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Camila Deus Dara - Ninho de Fogo - A Mestiça

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Melane, uma garota de 16 anos que vive com a avó, descobre não apenas ser uma mestiça de bruxa e dragão, como também uma princesa em um mundo chamado Ninho de Fogo.Com ajuda de seu fiel guardião David, e o pequeno Jack, o garotinho de quase 300 anos de idade, ela volta pra sua terra natal, descobrindo que o lugar está se despedaçando.Em um mundo de dragões, fadas e sereias, Melane terá que ser forte para a batalha que colocará em risco o mundo onde nasceu, enquanto tenta descobrir a quem pertence seu coração.Uma mistura de romance, aventura, guerra e salvação é o que te espera em Ninho de Fogo!

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Ninho de Fogo AMestiçaLivro1

Para Eduardo.Magia não é real, mas sua imaginação é.Agradecimentos

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Vovô, você é um dos maiores responsáveispor eu ter me tornado uma devoradora delivros. Obrigada por todas as histórias queme contou, o coelho e a onça serão parasempre os melhores.

Mirella Santana (www.mirellasantana.deviantart.com),

muito obrigada pela capa maravilhosa, ficoumelhor do que eu tinha imaginado.

Danilo, você ainda não sabe, mas serviu deinspiração para um de meus personagenspreferidos.Isie, obrigada por ser aventurar comigonesse mundo distante.Mãe, você vai dizer que amou o livro, mesmonão sendo verdade, pois mães são assimmesmo. Te agradeço por isso, e por sempreestar ao meu lado.E por fim, agradeço a Melane, David e Jack,por me escolherem para contar sua história,e por me tirarem de noites entediantes nafrente do computador. Adorei fazer parte

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desse mundo e vocês sempre farão parte domeu.

Prefácio

Você já se sentiu deslocado, como se nãopertencesse a lugar nenhum?E não importa o quanto você tente, não con-segue se adaptar. É como montar umquebra-cabeça, sabendo que muitas peçasestão perdidas e você nunca conseguirá ver aimagem final.É assim que minha vida funciona, todas aspeças estão espalhadas, então fico o tempotodo juntando os pedaços, pois sei que sófarei parte de algum lugar e serei eu mesma,quando completar o quebra-cabeça.

Capítulo 1 Despertar

O despertador grita freneticamente na cô-moda ao lado de minha cama.

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Sei que tenho que levantar, mas o sono con-segue gritar mais alto que o despertador.Minha avó, Mary, entra pela porta trazendoum copo de leite quente e desliga os gritosque saem da cômoda.— Bom dia, anjo — ela diz deixando o copo esaindo para a cozinha, onde certamente estápassando manteiga em torradas quentinhas,como todas as manhãs.Me levanto relutantemente, me arrastandoaté o banheiro, lavo o rosto, escovo os dentese prendo meu cabelo ruivo, que hoje parecemais indomável que o normal, em um rabode cavalo no topo de minha cabeça.Não levo muito tempo me arrumando, tam-bém não sou tão vaidosa como minha amiga,Caroline, afinal estou apenas indo ao colégio.Me troco, coloco os sapatos, jogo um beijopara o retrato de mamãe e papai ao lado deminha cama e desço a escada tomando oleite, enquanto ando em direção à cozinha,

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onde encontro um prato com torradasamanteigadas recém-feitas em cima da mesa.Vovó está sentada com um livro de receitasnas mãos, alguns fios de seus cabelos grisal-hos estão soltos sobre sua testa, enquanto lêatentamente.Ela é o tipo de mulher que adora cozinhar,todos os tipos de comidas. Ela sempre me es-pera com um prato diferente na mesa, achoque por ter crescido sem meus pais, elapensa que eu preciso ser mimada em dobro.Vovó Mary é o tipo de senhora amigável egentil, igual aquelas que vemos nos filmes.Todo mundo gosta dela e ela sempre é aten-ciosa com todos.Acho que sou uma pessoa de sorte por tê-lacomo avó.Depois de comer dou um beijo em suabochecha rosada e saio em direção ao meucarro não tão novo assim, poremrecémcomprado.

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É um jipe Chrerokee 2005, a tintura verdemusgo está um pouco gasta e desbotada emalguns lugares, mas não me importo. Precisode um carro resistente e que ande bem pelaestrada de terra, então para mim o jipe estáótimo.David, meu vizinho há dois anos e melhoramigo desde então já está encostado no capôdo carro, me esperando.— Tem certeza que não quer ir de moto hoje?Esse carro me dá arrepios — ele sorri.— Sem chance, meu carro é muito mais se-guro que essa moto.— Depois não venha dizer que eu não avisei!David ou Davi, como eu gosto de chamá-locarinhosamente, é o tipo de cara que podemudar sua expressão em um segundo, emum momento parece bravo, com aquela carade mau que ele sempre tem, mas quandosorri suas feições se transformam completa-mente e ele parece um garoto de cinco anosde idade. Sem falar naqueles olhos azuis

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turquesa, que me dão vontade de olhar otempo todo e mesmo com seu um metro enoventa e dois centímetros de altura e mús-culos por toda parte, eu nunca poderia ficaramedrontada por alguém com olhos iguaisaos dele.Seus cabelos prestos estão grudados em seupescoço essa manhã, o que significa maisuma caminhada matinal para se manter emforma, que ele adora fazer; Não sei como eleconsegue, eu mal consigo me levantar dacama de manhã, imagine fazer umacaminhada.Caroline sempre diz que se tivesse alguémcomo David de vizinho, perderia horas nafrente do espelho antes de sair de casa, mascomigo as coisas não são assim, eu não o vejodessa forma e muito menos ele a mim, nóssomos bons amigos e me sinto muito bemsobre isso.Eu o deixo na cidade todas as manhãs, nocomeço pegávamos o ônibus, mas agora com

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meus dezesseis anos, eu dirijo meu não tãonovo carro.Ele trabalha em uma oficina mecânica aolado de meu colégio, então vamos e voltamospara casa juntos.Moramos em uma pequena cidade no estadoda Virginia, Estados Unidos, não sei por quemoramos tão longe da cidade, vovó diz que éporque adora o campo e a natureza, eu tam-bém gosto, quer dizer, o lugar é realmentelindo, as folhas das árvores são as maisverdes que já vi em minha vida e a gramatem sempre aquele cheiro de chuva que euadoro, de manhã quando o sol nasce e ilu-mina as árvores é como se algo mágico est-ivesse acontecendo, como disse, esse lugar éadorável, mas isso para mim é um poucodemais.David é meu único vizinho e pegamos umaestradinha de terra ao lado da floresta parasó depois pegar a pista asfaltada e ir para a

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cidade. Sim, é um longo caminho, mas comDavi é sempre um caminho divertido.Depois de deixá-lo na oficina e ouvir a despe-dida que ele sempre diz:— Te vejo depois.Estaciono o carro e vou para minha aula dequímica, onde encontro minha amigaCaroline sentada no lugar de sempre.— E aí? Como vai Davidelicia hoje?Reviro os olhos.— Bem!— Você sabe, ele daria um ótimo namoradopara esbaldar por ai como prêmio.— Caroline, eu te adoro, mas às vezes vocêdiz coisas tão absurdas que me pergunto porque gosto tanto de você.Nós rimos juntas. Caroline é o tipo de garotaque você apenas gosta, desde o primeiro mo-mento, ela é amiga de todo mundo e comaquele lindo e brilhante cabelo loiro que vaiate as sua costas, olhos dourados e pele ros-ada, não faltam pretendentes em sua fila.

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No intervalo, gostamos de nos sentar no gra-mado perto das árvores, onde é mais fresco.Aqui posso sentir o perfume das flores sil-vestre que dona Lucy, a zeladora da escola,faz questão de plantar por toda parte.Me sento ao seu lado, encostada num velhocarvalho, como sempre, estou rindo sobrealgo que Caroline disse, é só isso quefazemos a maior parte do tempo juntas.Estamos conversando tranquilamentequando Tifany, uma garota metida que temcomo atividade principal infernizar a minhavida, aparece.— Olha lá, se não é a caipira– ela diz mor-rendo de rir com suas amiguinhas seguidorasao seu lado.Não olho em sua direção e finjo não ter es-cutado seu comentário maldoso.— Ignore, Melane, não vale a pena– Carolinediz encostando a mão em meu joelho.— Eu sei – digo sem lhe olhar em seus olhos.Sei que não vale à pena, mas por uma vez,

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apenas uma vez na vida, gostaria que Tifanytivesse uma lição, não sei qual o problemadessa garota.O resto do dia passa normalmente, voltamospara sala de aula de Filosofia, onde tudo quefaço é apenas escutar a voz chata de minhaprofessora mais odiada, Odete. Juro que umdia ainda morro de tédio em uma de suasaulas e a única culpada será ela.Despeço-me de Caroline na saída e passo naoficina para pegar David.— E aí?– ele diz enquanto entra no carrobatendo a porta violentamente.— Ei, cuidado com o carro!– digo apontandoo dedo em sua direção.— Essa lata velha? – diz sorrindo larga-mente, me provocando.— Não responderei essa pergunta.Conversamos pelo caminho todo na voltapara casa, como todos os dias.— O que fez na oficina hoje?— O de sempre, consertei carros.

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Olho para ele com uma sobrancelha le-vantada e ele sorri de uma forma engraçada.— Jura?— Melane, sou um mecânico, é isso que osmecânicos fazem.— Ah, não sei por que ainda falo com você.— Porque você precisa de mim. – ele con-tinua sorrindo.Nem perco tempo lhe respondendo, apenasdou risada, sem tirar os olhos da estrada.Discutir com David é a maior perda detempo, pois você nunca ganha, jamais, nemmesmo quando está certa sobre o assunto.Chego a casa depois do longo caminho pelaestrada de terra, converso com minha avó noalmoço e a ajudo a lavar a louça. Depois subopara o quarto para terminar de ler o romanceque comecei há dois dias. O resto do tardepassa tranquilamente, termino o livro querealmente me surpreende no final, ao invésda baboseira de sempre, mocinha casando-secom mocinho e vivendo felizes para sempre,

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esse tipo de final sempre me irrita de umaforma que não entendo muito bem.Falo com Caroline pelo telefone à noite, es-cuto um pouco de como foi sua tarde comaquele tal garoto novo, o qual ela nunca maisirá querer sair novamente.Estudo um pouco quando a noite chega, asprovas ainda estão distantes, mas gosto deestar preparada, ainda mais se tratando deminha professora Odete, senhorita gosto deaplicar testes surpresas. Olho de relance parao despertador marcando 00:36, o que signi-fica que mais uma vez fiquei perdida naleitura, me esquecendo do mundo ao meuredor. Desligo a luz do abajur ao lado e medeito, caindo como uma pedra sobre otravesseiro.Eu vejo sangue, muito, escorrendo pelagrama verde enquanto sua cor vermelha ficaainda mais intensa pelo contraste. Umhomem está deitado no chão com um feri-mento profundo em seu peito, acaricio seu

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cabelo muito bagunçado e seus fios loirosdeslizam por meus dedos suavemente, en-quanto a brisa fresca os leva para longe demim.A ferida por onde o sangue escorre pareceprofunda e posso sentir o cheiro dequeimado penetrando meu nariz, coloco asmãos sobre seu peito ensanguentado echamuscado, a umidade quente percorreminha mão, escorrendo por entre os dedos,estamos sozinhos, isolados do mundo ánossa volta. É como se eu já o conhecesse,como se ele fizesse parte de minha vida, dealguma forma, como se eu me importassecom ele, como se tudo dependesse dele,desse momento, mas o mais estranho detudo é que não estou nem um pouco apa-vorada, nunca estive tão tranquila assim emtoda minha vida.Num momento estou vivendo essa cena,fazendo parte dela, sentindo a calma que merodeia e um segundo depois estou de fora,

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sobrevoando a área, vendo toda a cena doalto, o sangue saindo de seu corpo violenta-mente enquanto a garota de cabelos ruivosapenas observa, tocando levemente oferimento.É então que o pânico toma conta de mim.Acordo de uma só vez, me sentando na camarapidamente, ofegante, o suor pingando deminha testa enquanto coloco a mão sobre ocoração numa tentativa de acalmar as bati-das desesperadas.Foi apenas um pesadelo.Me levanto da cama e desço as escadas à pro-cura de um copo de leite quente, isso sempreme ajuda a dormir e espero que possa fazeralgo por mim agora. Esse estranho pesadelome afetou mais do que gostaria, de umaforma tão vívida que me assusta e dá arrepi-os apenas por lembrar. Tento evaporar ospensamentos, enquanto desço os degrausvagarosamente.

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Pego o leite na geladeira, o despejo em umcopo e aqueço no micro-ondas.Ando até o velho sofá laranja desbotado dasala e me sento com o copo morno em min-has mãos, dobro as pernas e tento beberlentamente, na esperança de que o sonovolte. Odeio ficar acordada a noite, poissempre me sinto uma morta-viva no diaseguinte.Escuto a moto de David se aproximando evou até a janela. Ele estaciona a moto no ex-ato momento em que olho pelo vidro em-baçado pela pouca neblina da noite.O que ele faz lá fora a essa hora?Coloco o copo na mesinha do centro feita demadeira velha e me apresso pela porta antesque ele entre.— David?– tento soar alto, mas ainda simtentando sussurrar, tudo ao mesmo tempo.Ele não me escuta e continua andando emdireção a sua casa.

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Apresso meus passos enquanto tento nova-mente, agora mais alto.— Davi?Ele se vira espantado, me olhando comaqueles grandes olhos azuis, agora pare-cendo assustados demais e olha pros dois la-dos antes de se aproximar.— O que faz aqui?– pergunta me olhandodiretamente nos olhos.— Eu ia fazer a mesma pergunta. Estavaapenas tomando leite quando te vi chegando.Ele continua me olhando sem dizer nada.— O que foi?– pergunto dando uma risadanervosa, tentando descobrir o motivo dessemistério todo, nós nunca tivemos segredosantes.David olha mais uma vez pros lados antes deresponder.— Não foi nada, estava apenas dando umavolta– diz enquanto coloca as mãos nosbolsos da calça.

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Levanto minha sobrancelha o máximo queconsigo enquanto o encaro.— Por que não quer me contar o que estavafazendo?Ele hesita uma vez antes de responder.— Mas eu já disse, foi apenas uma volta, anoite está quente, queria pegar um pouco dear.Aceno com a cabeça, mesmo não tendoacreditado em uma única palavra do quedisse, eu o conheço bem e sei quando estámentindo, como sempre hesita antes de re-sponder, fica sério demais, ou por seus olhossempre a procura de algo que não está porperto, sempre olhando em todas as direções,da mesma forma que acabará de fazer.— Tudo bem – digo me virando para voltarpara casa.Ele me puxa pela mão antes que me afaste.— Mel, porque está acordada?— Está quente demais para dormir – é tudoque digo antes de me virar novamente, não

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irei contar sobre meu pesadelo, não depoisde estar mentindo tão descaradamente assimpara mim.Onde ele deve ter ido? E por que não querme contar?Será que é uma garota? Nunca o vi com nin-guém, a não ser eu ou Caroline, mas isso étotalmente diferente. E se for uma garota,por que não me contar? Mas seria bem es-tranho estar com alguém tão tarde assim, outalvez seja por isso que não esteja me cont-ando a verdade.Sinto algo estranho quando esse pensamentopassa por minha cabeça, não tenho ciúmespor ele estar com outra garota, de jeito nen-hum, não é isso, ao menos é no que queroacreditar, acho que o fato preocupante e queme magoa é que ele esteja escondendo issode mim.Volto para cama na espera de poder dormirnovamente, mas é impossível. Se estavanervosa e agitada pelo pesadelo, agora estou

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totalmente impaciente com a mentira deDavid.Como havia dito antes, me sinto como umzumbi hoje de manhã, sei disso apenas en-quanto escovo meus dentes sonolenta.Visto a primeira roupa que vejo e me arrasto,literalmente, para a cozinha, segurando ocopo de leite que minha avó deixou no criadomudo mais cedo.— O que foi?– minha avó pergunta assimque entro na cozinha.— Sono– é tudo o que lhe respondo.Ela sorri de uma forma engraçada, comosempre, enquanto termina de colocar meuprato na mesa.— Noite difícil?— Você nem faz ideia. Tive um pesadelo.Ela congela-se no processo de virar o suco delaranja da jarra para o copo de vidro rosaque tenho desde pequena.— Pesadelo?– diz com sua voz de avó dedesenhos animados de domingo.

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— Ahan – digo balançando a cabeça en-quanto coloco um pedaço de torrada naboca.— Tinha alguém morrendo, eu acho, estavaqueimado e eu tentava ajudar, ao menos éisso que me pareceu.Seus olhinhos cinzentos ficam espantados emuito abertos enquanto me olha seriamente.— O quê? É só um pesadelo vó, não significaque vai acontecer - digo levantando osombros.— Não, é claro que não – ela diz sorrindo en-quanto termina de por meu suco no copo,mas algo estranho ainda permanece em seusolhos.Como as torradas quentinhas com manteigae saio depois de lhe dar um beijo dedespedida.David já está ao lado de meu carro verde, elesorri assim que me vê passando pela porta,mas não retribuo o sorriso, ainda estou

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magoada pela suposta saída para ver a tal ga-rota cuja qual não sei quem é... Ainda.— De mau humor? - ele pergunta enquantoentro no carro.— Por que está perguntando isso?— Nada, talvez algo na sua expressão som-bria– diz enquanto tenta imitar minha carafechada.Eu não quero, mas não consigo evitar eacabando rindo da careta que se forma emseu rosto, ele ri junto comigo.— Viu, não estou de mau-humor – digo cess-ando o riso e me mantendo séria novamente.Ele apenas me olha pelo canto do olho, en-quanto coloca o sinto de segurança com aameaça de um sorriso se formando em umdos quantos de seus lábios.Dirijo para escola normalmente, nenhum denós fala durante o caminho todo, estoucansada, morta de sono e de certa formaainda me sinto traída pela suposta mentira,pode parecer besteira e bla, bla, bla, mas

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Davi é meu melhor amigo, devíamos confiarum no outro.O deixo na oficina, como sempre.— Te vejo depois - ele acena antes de sair docarro.Devolvo o adeus com um balançar de cabeçae dirijo apenas mais alguns metros até ocolégio.Minha primeira aula é de Física, tudo o queuma morta viva não precisa, mas não tenhoescolha, me arrasto até a sala e me sento aolado de Caroline.— O que foi?– diz levantando uma de suassobrancelhas perfeitamente depiladas, en-quanto me olha dos pés a cabeça.— Sono – essa parece ser minha respostapara tudo hoje.Ela ri alto, tapando a boca com a mão.— Bem vinda ao clube colega, passo por issoquase todos os dias.Reviro os olhos em sua direção, pois meusmotivos por não ter dormido são bem

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diferentes dos dela, mas não consigo nãosorrir também.Os ponteiros do relógio parecem estar gruda-dos uns aos outros e as horas não passam, ésempre assim, quando mais queremos que otempo passe, mais ele se arrasta lentamentesobre nós.Finalmente o sinal do intervalo toca, voupara o gramado com Caroline, me acomod-ando sob uma árvore, enquanto vasculhominha mochila a procura de meu lanche.Estou comendo minha maça e rindo de umapiada que Caroline está contando sobreJason, seu último namorado, quando Tifanysurge do nada, certamente saída diretamentedas profundezas do inferno, vindo direta-mente e unicamente para arruinar meu dia.— E aí, caipira? Como foi o dia duro na roçahoje?— ela diz entre gargalhadas.Eu a ignoro, como sempre venho fazendo.— Caipira? Estou falando com você!

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Tudo teria ficado bem se ela não tivesse bal-ançado sua juba cacheada castanha echutado minha bolsa com o salto de setecentímetros de sua sandália rosa obviamentenova.— O que vai fazer caipira?Isso fez com que minha raiva surgisse em umnível que eu não me lembro de já ter sentidoantes.Qual o problema dela? Eu nunca fiz nadapara ela, por que ela me odeia?— Veio com a cara lavada de novo, roceira?Sabe, um batom às vezes cai bem!— diz entreas risadas exageradas com suas amigas igual-mente insuportáveis.Quando ela sai andando, morrendo de rir,minha mente se delicia com a imagem de seusalto quebrando, e ela caindo no gramado,passando a maior vergonha na frente daescola toda.Desejo isso com tanta vontade que quase meengasgo com a maçã quando Tifany cai

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apenas alguns metros a minha frente, le-vanto o maior tombo da historia da human-idade, quebrando seu salto na grama.Na volta para casa eu fico calada.— O que foi?— Davi pergunta curioso.— Não é nada.— Anda, o que aconteceu?— Nada, só aquela garota, Tifany, me ator-mentando de novo!— O que ela fez?— O de sempre? Me mandou usar um batom.— Ela tem inveja!Dei uma risada.— Inveja? De mim?— Sim— ele diz como se fosse a coisa maisobvia do mundo.— E qual razão Tifaby teria inveja de umacaipira como eu?— Porque você não precisa de maquiagem ouroupas caras para ficar linda e ser reparada,como ela precisa!

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Olho para ele chocada, não sabia que ele meacha bonita, na certa ele disse isso porquesomos amigos e ele gosta de mim, maismesmo assim, foi estranho.— E também ela caiu hoje, seu saltoquebrou!— Bom!— ele diz sorrindo.— Não, quer dizer, sim, foi bom, mas o es-tranho é que eu queria que tivesse aconte-cido, eu desejei isso, Davi.Ele fica enrijecido e volta a ficar sério.— Como?— Eu desejei que ela caísse e no mesmo in-stante ela caiu, coincidência, eu sei, mas meassustei na hora, eu senti algo, como se real-mente tivesse sido eu, sabe?— começo a rircomigo mesma.— O que exatamente você sentiu?Porque ele está sério e tão interessado nisso?Parece alucinado com a história— Melane, me diga!— Davi, foi isso, coincidência, é só.

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Chegando em casa paro o carro rápido e en-tro pela sala, jogando minha mochila nochão, já ouvindo as botas de David atrás demim. Ainda penso na noite passada, mas oque aconteceu na escola hoje me fez desligaro pensamento, tudo que posso ver é a cenade Tufanny se esborrachando no chão e decomo eu desejei que aquilo acontecesse.Antes que David me pergunte mais algumacoisa, me apresso para a escada, começo asubir, mas sou puxada pelo braço antes dechegar ao terceiro degrau.— Ai, o que você está fazendo?— digo puxan-do meu braço numa tentativa fracassada deme livrar de David.— Shiu!— Shiu? Qual o seu problema? Me solta!— Tem alguma coisa errada!— ele fala mesoltando enquanto vai para a cozinha.— Mary?— ele pergunta com uma voz maisalta que o comum, mas ainda longe de serum grito.

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— Mary?— Vovó?— Onde ela esta?— pergunto me preocu-pando, ela sempre está em casa quando voltoda escola.Subo as escadas correndo e vou olhar o ban-heiro, seu quarto, meu quarto, mas ela nãoestá em lugar nenhum.— Temos que sair daqui — ele me pega nova-mente pelo braço.— O quê? Por quê? Onde está minha avó?— Primeiro vamos sair daqui — ele já estáme arrastando para a sala.— David? O que está acontecendo?Estamos no quintal agora, David pega os ca-pacetes em cima da moto.— Porque você não me responde? O que estáacontecendo aqui?— Suba! — ele diz subindo ele mesmo namoto.Cruzo os braços em meu peito e não saio dolugar.

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— AGORA!— ele grita.Eu me assusto, ele nunca havia gritadoantes, e eu estou sem saber o que acontece,onde minha avó está? E porque temos quesair daqui correndo assim?Algumas lágrimas começaram a correr porminhas bochechas antes que eu consiga assegurar dentro de meus olhos.— Melane— ele diz calmamente, quase comoum suspiro.— Eu não tenho tempo de explicar agora, porfavor, se confia em mim, suba na moto.Eu obedeço, e no momento em que fechominhas mãos em sua cintura escuto umbarulho ensurdecedor de motos no final daestrada de terra.— Droga! — é tudo que consegue dizer antesde pisar no acelerador e sair em disparadacomigo em sua traseira.Eu nem ao menos tenho tempo de decifrar oque está acontecendo, o barulho das motos

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aumenta a cada minuto e agora já posso veros motoqueiros.Nós vamos em direção a floresta, Davidparece conhecer bem o caminho apertado earriscado por entre as árvores, pois passam-os tão rápido que eu apenas sinto as folhasraspando levemente em meus braços epernas.Não me atrevo a abrir a boca para tirar satis-fações do que está havendo, ou talvez sejaapenas o medo que me faz ficar paralisada.Depois de um tempo na perseguição semfim, chegamos a uma clareira no meio dafloresta, eu já estive aqui outras vezes,quando era criança, talvez, eu conheço esselugar.David derrapa, fazendo uma curva e a motopara.O som dos motoqueiros vai se aproximandoe então posso vê-los novamente, três homensparam e descem de seus veículos e ficam naentrada da clareira nos observando.

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David se posiciona em minha frente e os en-cara de volta.— David, quanto tempo meu amigo — umdos homens diz, o cara mais alto e aparente-mente mais velho também, ele tem algunsfios brancos nas laterais da cabeça se mistur-ando aos outros fios castanhos de cabelo, en-quanto os outros dois aparentam ter menosde trinta anos, eu diria que o garoto loiro nãodeve ter mais de dezenove.— Davi? Quem são eles?— escuto minha pró-pria voz sussurrar, mas ele não responde.— Nos de a garota e tudo será perdoado, semmágoas, sem ressentimentos ou punições —o cara velho diz abrindo os braços em formade rendição.David ainda continua calado.— Vamos David, isso não precisa ser assim,apenas entregue a garota.— Isso não vai acontecer – David apenas sus-surra em uma voz sombria e gélida.

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Posse ver um pequeno sorriso se curvandoem um dos cantos dos lábios do homemvelho.— Então será do meu jeito.— Suba nas minhas costas – David sussurrasem tirar os olhos do homem.Eu não entendo o que ele diz, e muito menosacho que ele está falando comigo, estouapenas esperando os caras sacarem umaarma atirarem em David e me estuprarem,antes de me matarem também. É o obvio nãoé?— Vamos, Mel, suba nas minhas costas –dessa vez ele grita, e eu obedeço novamente,ele está tremendo e sua pele parece cinzentaagora.Agarro-me ao seu pescoço como posso e ficosem saber o que fazer, essa cena toda meparece meio estúpida de estar acontecendo.David começa a tremer, cada vez mais e emum segundo ele está crescendo, explodindo,roupas despedaçadas voando em todas as

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direções, é tudo muito rápido e então eu es-tou nas costas de um dragão.Um dragão de verdade, enorme, cinzaprateado, com escamas azuis que refletem aluz do sol em meu rosto, eu não tenho tempode pegar os detalhes ou de assimilar as coisase já estamos no ar, voando entre as nuvens,mergulhando pelo céu numa velocidade quepode parecer impossível.Eu me seguro em seus chifres? Não sei o queé isso, mas eu os seguro da melhor forma queposso.Nós estamos fugindo novamente, mas agoratrês dragões nos perseguem ao invés desimples motoqueiros.Uma rajada de fogo passa bem perto de nós eDavid, ou melhor, o dragão David mergulhano céu despedaçando uma nuvem nocaminho.Mais fogo nos persegue, David desvia damelhor forma que consegue, às vezes vira o

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rosto e lança uma serpente de fogo nos ad-versários, mas eles desviam facilmente.Dessa vez o fogo passa há poucos centímet-ros de meu rosto, posso sentir a brasa quasequeimando minha pele, e o ar quente merodeando, o susto é tão grande que sem nemao menos perceber ou ter tempo de fazeralgo para evitar, solto as mãos de seus chifrese escorrego por seu corpo escamoso, grit-ando com todas as forças que existem emmim.Tento segurar em sua pele dura, em qualquercoisa que possa ser segurada, mas nada adi-anta, continuo caindo o me arranhando noprocesso desesperado de prender-me nova-mente ao seu corpo. Consigo agarrar uma desuas patas, a pele dura e escamosa machucameus dedos, mesmo assim continuo pen-durada, tentando voltar para cima. O arquase corta meu rosto, meus cabelos es-voaçam loucamente por todos as direções,daqui, de onde estou posso ver claramente os

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dragões, e eles também podem me ver facil-mente, pois no exato momento em que meusolhos se cruzam com um deles, o fogo correde sua garganta, vindo diretamente paramim. Não há o que fazer, estou sem saída,mal conseguindo continuar segurando a patade David e o fogo correndo, vindo para mim.Fecho os olhos esperando pelo pior, então nomesmo instante, poucos segundos antes daschamas me alcançarem, David balança a batapara frente, fazendo com que eu voe pelo céuem direção a sua boca, agora, presa entreseus dentes sou lançada novamente parasuas costas com um balançar de cabeça, es-tou outra vez me esforçando para me mantersegura no lugar.O mais estranho nisso tudo, não é meu mel-hor amigo ter se transformado em umdragão ou eu estar em suas costas voando ouentão estar sendo perseguida por trêsdragões, o mais estranho ou peculiar é queeu não estou nem um pouco assustada.

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Pelo contrario eu me sinto viva, de umaforma que nunca havia sentido antes, eusinto minha energia, desde meu dedinho dopé até o ultimo fio de cabelo de minhacabeça. O medo que eu senti na clareia, nosolo, com apenas pessoas sendo o inimigo, seevaporou no minuto em que eu estive no ar.Eu me sinto forte, como se nada pudesse meferir, é então que começa a esquentar, min-has mãos, meus olhos, minhas bochechas,quente, eu me sinto pegando fogo. Entãocomo se soubesse exatamente o que fazer, eume viro nas costas de Davi, me sentando defrente para os dragões e então em uma ex-plosão, rajadas de luz intensa e azul saem demeus olhos, lábios e mãos, uma luz tão po-derosa, fogo em forma de luz, atingindo odragão maior, o que minutos atrás era ohomem velho.Ele começa a gritar rugidos de dor se contor-cendo, caindo do céu em chamas azuis que

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cintilam por todo seu corpo, então ele volta asua forma humana antes de atingir o solo.Posso apenas ver os outros dois dragõesvoando para outra direção, a oposta de mim,recuando e fugindo.Então tudo fica escuro.

Capítulo 2 Queimar

A luz do sol bate em meu rosto, pego otravesseiro colocando em cima para bloquearos raios. É quando as imagens do dia anteri-or surgem em minha mente, me atingindotão forte que tenho uma dor de cabeçainstantânea.

Que sonho mais realista, penso virando nacama, foi o sonho mais vívido e surreal queeu já tive.Escuto a porta do quarto se abrindo e sei queé minha avó com o copo de leite quente. Tiro

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o travesseiro da cabeça me sentando na camae dou de cara com David.Minha primeira reação é cobrir o corpo como lençol.— Você está bem?— ele pergunta, algo na suaexpressão preocupada me assusta, o que elefaz em meu quarto?Então eu percebo, não estou em meu quarto,as paredes que deveriam ser azuis e amarelassão de madeira comum, o lençol que deveriaser florido é amarelado e desbotado e não hácortinhas para evitar que o sol me atinja pelamanhã.Esse não é meu quarto, o que significa quetudo não foi um sonho vívido, eu realmentepassei por tudo aquilo.— Foi tudo real?— me obrigo a perguntar,pois ele me olha de uma forma tão preocu-pada e tão piedosa que me lembra feições depessoas que vão visitar parentes queenlouqueceram.Ele apenas acena com a cabeça.

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— Você está bem?— ele se senta ao meu ladona cama, seus olhos azuis me examinandocom cautela.— Defina bem?— Alguma dor? Sensação de dormência? Al-guma coisa diferente?— ele ainda está me ol-hando daquela forma.— Só minha cabeça que dói — digo levando amão automaticamente para testa.Ele acena novamente, tirando minha mão esubstituindo pela dele.— Febre você não tem mais, essa dor passarálogo.— Eu tive febre?— Sim, por quase dois dias.— Dois dias? Que dia é hoje?— segunda-feira— ele diz calmamente.Eu aceno, sendo que ter tido febre por maisde dois dias é a coisa mais normal que meaconteceu desde a última vez que estiveacordada.

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Eu fui perseguida por dragões, vi meu mel-hor amigo se transformar em um, de algumaforma fiz chamas azuis saírem de mim ematei um homem dragão. Nossa, dizendo as-sim parece ainda mais inacreditável do quejá é.— O que aconteceu?— eu sussurro.— Eu vou explicar tudo, ma primeiro vocêtem que...— Comer— uma mulher na faixa dos quar-enta anos entra pela porta carregando umabandeja, ela possui a pele negra e olhos queparecem jabuticabas, seus longos cabelos es-tão jogados nas costas em uma trança grossae seu sorriso ao colocar a bandeja em meucolo é aconchegante, ela me lembra de casa.— Primeiro você tem que comer, querida.Nem tenho tempo de dizer alguma coisa, amulher já está colocando um pedaço de tor-rada com geleia na minha boca.— Essa é Verônica, ela nos deixou ficar emsua casa e ajudou a cuidar de você.

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Ela ainda sorri para mim.Tento sorrir em sua direção, enquanto corroos olhos pelo cômodo. Uma janela não muitogrande, sem cortinas, fazendo com que o solbata em mim conforme me movimento nacama, o cheiro do lugar não é ruim, apenasdiferente de casa e de tudo que conheço, semisturando com o aroma da comida.Poucos móveis, vejo um armário velho pertoda porta e um pequeno baú feito de madeiraao lado da cama.Termino de comer as torradas, o suco de lar-anja e todos os biscoitos, pois na primeiramordida, percebo que estou realmentefaminta.Verônica tira a bandeja de meu colo e saipela porta sem dizer uma palavra, apenassorrindo.David respira forte e senta na cama ao meulado. — Do que você se lembra?

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— Acho que de tudo, até o homem dragãocair em chamas, depois disso tudo ficouescuro e eu acordei aqui.— Certo — ele balança a cabeça.— Eu posso mudar de forma e me transform-ar em um dragão, sempre que eu quero, masa mudança é mais rápida em momentos denecessidade ou adrenalina, como foi naclareira— seus olhos turquesa estão bemabertos, mas parecem tranquilos. — Seu paiera assim também, então você tem nossosangue correndo em suas veias— ele respiramais uma vez. — Você também tem umaparte bruxa em seu sangue, que você herdoude sua mãe, é por isso que você pode lançaras chamas, você estava em perigo e por in-stinto despertou seu poder, na verdade achoque ele já estava começando a surgir.Quando me disse que desejou que o salto deTifany quebrasse e no mesmo instante elequebrou, não foi coincidência.

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Ele faz uma pausa, me estudando, como quepara ter certeza que eu estou acompanhando,acenando com a cabeça ele continua.— Nós escondemos você durante toda suavida, dragões não podem se envolver combruxas e seu pai quebrou essa lei quando seapaixonou por sua mãe.Ele foi morto por isso e ela foi caçada depois,ela se escondeu por um tempo, mas no diaque você nasceu ela morreu. Desde entãotentamos esconder você, protegê-la. Se eleste pegarem, vão te matar, você é a únicamestiça viva e é uma ameaça. Dragões nãopodem se juntar com bruxas, pois da uniãonasce algo muito poderoso que poderiadestruir a ambos os lados. Mas nós sabíamosque você não seria assim e é por isso que euprometi proteger você, pelo tempo que fossepreciso.— Nós quem? E como você sabe de tudo issoe conhece meus pais? Eu te conheço háapenas dois anos, David.

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— Não. Eu tenho cuidado de você a sua vidatoda, você apenas não sabia que eu estava lá.— Caleb, quarta série, porque você acha queele parou de te atormentar e roubar seulanche?— Foi você?Ele acena com a cabeça sorrindo.— E porque só nos conhecemos quando eufiz quatorze anos?— Porque você iria perceber que eu nãomudaria minha aparência. Foi por isso queeu te entreguei para sua avó e fiquei vigiandode longe.— Você me entregou para minha avó? Meconheceu bebê?— Mel — ele diz docemente. — Eu fiz seuparto.Arregalo os olhos, quase sem poder acreditarem suas palavras. Tento fechar os olhos eabri-los novamente umas duas vezes, na es-perança de que tudo volte a ser como antes,de que realmente tudo não tenha passado de

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um sonho, o mais estranho e real que já tive.Mas é claro, não funciona.Fico pensando, David fez meu parto, me con-hece desde o dia em que nasci, isso é doidodemais. Como eu nunca o vi, até fazer 14anos ao menos?Um borrão começa a se formar em minhamente nesse exato momento, como umalembrança, guardada e esquecida há muitotempo atrás...Tenho sete anos de idade, estou no parqueinfantil ao lado da escola. A maioria das cri-anças está na caixa de areia com a profess-ora, montando castelos, como os que vimosnuma história que ela contou mais cedo, al-guns estão nos balanços, mas não eu. Eugosto do escorregador, não exatamente dele,o que eu gosto mesmo é da altura e dasensação de estar beeem lá no alto, quasetocando as nuvens.Subo as escadas até o topo e fico em pé aolado da cerca pintada de vermelho e verde,

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seguro a grade com as duas mãos e deito acabeça bem para trás, sentindo o ventofresco daqui. Abro os olhos e vejo as nuvens,mas ao contrario das outras crianças, nãofico imaginando com que forma elas se pare-cem, fico pensando como é estar por entreelas, como seria voar.Começo a gargalhar sozinha, com a imagin-ação muito longe, no céu, imaginando que euposso voar.— Melane! Querida, cuidado, você pode cair.Escuto minha professora chamar, dizendomeu nome alto.Solto as mãos da cerca e olho para baixo, mesentando com os pés para fora, os bal-ançando enquanto a olho.— Tudo bem professora, eu não tenho medode altura.— Mas eu sim, desça daí, Melane.Faço que não com a cabeça e volto à posiçãoantiga, segurando na cerca enquanto olhopara o céu.

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— Melane, terei que subir ai em cima?— Eu não vou cair – digo sem tirar os olhosdo céu.— Nós já vamos voltar para sala de aula.Vamos, desça daí agora!Eu a ignoro, sei que ainda faltam algunsminutinhos para voltarmos.Posso escutar enquanto ela bufa lá em baixoe irritada começa a subir os degraus doescorregador.Fico parada, esperando até o último minuto,apenas esperando ela chegar bem perto.Assim que ela se aproxima, me esquivo ecorro para o escorrega, deslizando até o chãode terra fofa. Sorrio largamente, fazendocara de ordinária, enquanto a olho lá emcima.— Porque você é assim, Melane?– ela per-gunta com as mãos na cintura.Apenas levanto meus ombros como resposta.Não tenho culpa se não gosto de fazer asmesmas coisas que as outras crianças. Nunca

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posso brincar da forma que quero, quandoestou no balanço, ela me faz descer, pois es-tou balançando alto demais, quando estouno escorrega, estou me arriscando perto dacerca, fico sem saída, não me deixam fazernada do que quero.O parque está quase vazio hoje, mas há umhomem ao lado do poste de luz amarela, comos braços cruzados e a perna dobrada, re-costando suas costas. Seus olhos estão emminha professora enquanto sorri de umaforma engraçada.Ele se assusta quando percebe que estou ol-hando em sua direção, fazendo com que eume assuste também, e volte correndo parafila onde as crianças esperam pelaprofessora.Ela desce as escadas do escorrega de carafeia, me olhando pelo canto do olho quandopassa por mim, mas não diz nada.— Ok crianças, todos de mãos dadas e nãosaiam de seus lugares.

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Andando em fila, segurando as mãos demeus colegas, consigo dar uma última ol-hada no homem, que continua encostado noposte.Não me lembro de já ter visto olhos tão azuisassim, nem antes ou depois desse dia.— Eu vi você uma vez, tenho certeza disso,contei para minha avó quando cheguei daescola, que um homem de olhos azuis estavarindo de mim no parque. Ela ficou tãonervosa na hora, agora sei por quê.— Eu me lembro desse dia, me desespereiquando percebi que você estava me olhando.Sua avó me deu uma bronca mais tarde.Tudo está tão confuso para mim, a vida queeu conheço se evapora numa simples tardede sexta-feira e agora tudo está um caos,minha mente está um caos.— Sua avó concordou com que eu ficasse porperto, achamos que seria mais seguro apenaseu, do que mais de minha espécie, assim nãochamaria tanta atenção.

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Só então me dou conta, o pensamento surgecomo uma pedra caindo em minha cabeça,minha avó...Onde ela está? Ela não estava em casa nasexta e hoje já é segunda.— Minha avó? David, onde ela está?Ele não precisa dizer mais nem uma palavra,a expressão em seu rosto diz tudo, e eu seique nunca mais a verei.Meu coração dispara e as lágrimas rolam emmeu rosto, uma sensação de aperto e dor quenão diminuí apenas se intensifica.— Eu sinto muito Mel, ela não pode fazernada, ela era apenas humana, sua mãe her-dou sangue de bruxo de seu avô, não tinhanada que ela pudesse fazer.A dor cresce mais rápido do que as lágrimasrolam, a voz de David se transforma emapenas um ruído abafado e distante. Eucomeço a sentir de novo, aquele calor, emminhas mãos, pernas, olhos, em cada peda-cinho de meu corpo.

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David me segura pelos ombros, os olhos ar-regalados, os lábios se movem, mas nãoposso escutar nada, eu apenas sinto a dor.Ele toca meu rosto, o segurando com as duasmãos.— Melane, fique calma, olhe para mim.Eu olho para ele, o sol bate diretamente emseu rosto agora e o turquesa de seus olhos setransforma em algo mágico, a luz refletindonos grandes olhos azuis me traz uma paz quenão sei como explicar. Aos poucos a dor e aqueimação vão embora, me deixando apenascom as lágrimas no rosto.E então novamente vem a escuridão, metragando para dentro dela.

Capítulo 3 Enfrentar

Escuto a voz de Verônica como se estivessesubmersa em água.

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— Melane querida, você está acordada?— eladiz docemente, enquanto me esforço paraentende o significado de suas palavras. —Melane, está tudo bem agora, você está comfome?

Abro os olhos, vejo o sorriso aconchegante eos olhos de jabuticabas de Verônica, me ol-hando carinhosamente.— Você consegue se sentar?— Eu não sei — escuto minha própria vozagora dizendo.Com sua ajuda me sento, enquanto elacoloca mais uma almofada em minhas cost-as. Os pensamentos voam por minha mente,nenhum da forma como eu gostaria, tudoque posso sentir é dor.— Minha avó, ela...— Shiii, eu sei meu bem, eu sei. Foi umaperda difícil para todos nós, mas vamos su-perar tudo isso, você verá. Ela era umagrande mulher! — Verônica diz com o olharno horizonte.

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— Você a conhecia?— pergunto enxugandouma lágrima que escorre.— Sim— ela diz com um sorriso.— Éramos grandes amigas. Sua mãe e euestudávamos juntas quando pequenas e suaavó foi como uma segunda mãe para mim.— Que dia é hoje? Quer dizer, por quantotempo mais eu dormi?— minha avó se foi,assim como meus pais e eu estou sozinhaagora, não quero falar mais sobre isso, estoucom muito medo que a dor e o calor possamvoltar e que eu durma por mais dois dias.— Ainda é segunda, você dormiu apenas poralgumas horas. Você é nova nesse mundo eusar seu poder assim requer muita energia, épor isso que você dorme.Parece tentador, mas eu não quero dormirmais, uma hora ou outra eu terei que en-frentar a realidade, então quanto mais cedo,melhor.

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Minha avó Mary sempre dizia que a curapara as dores do coração é o tempo, então euquero que ele comece a passar logo.— Onde está David?— Lá em baixo, vigiando.— Eu posso descer?— Se você se sente bem para ficar de pé, sim.Me levanto apoiando a mão no colchão, es-tou usando uma calça larga preta e uma cam-iseta verde comprida.— Desculpe, mas eu não tinha nada do seutamanho.— Não tem problema— nunca me importeicom moda e não será agora que isso irá meincomodar, na verdade, essa seria a últimacoisa que iria pensar.— Não se sente tonta?Eu me sinto um pouco, mas minto. Nãoquero ficar aqui sozinha, pensando em coisasdas quais não posso fazer nada para mudar.— Não, eu estou bem.

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Ela diz que sim com a cabeça e me leva até aporta.Desço as escadas de madeira velha lenta-mente, me esforçando no corrimão e encon-tro um David muito abatido olhando pelapequena janela da sala.O lugar tem o mesmo cheiro do quarto e damesma forma que antes, algum cheiro decomida se mistura com o de madeira. A salaé pequena, um sofá azul desbotado nocentro, uma mesinha de cor escura com umvaso de flores em cima dela, e perto da es-cada, uma estante contento mais livros doque pode suportar.Ele se vira quando eu desço o último degraue sem nem uma palavra se dirige até mim eme abraça, quente, rígido e reconfortante. Dealguma forma me sinto um pouco melhor de-pois disso.Nos olhamos por uns longos segundos e en-tão eu sei que tudo ficará bem.

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— Eu falhei com você!— ele diz cabisbaixo. —Eu devia protegê-la, cuidar de você e de suaavó, e eu falhei.Ele se sente culpado, mas eu não o culpo. Al-guém com certeza deve ter a culpa disso tudoestar acontecendo, mas não é David. Podeser qualquer um, menos Davi.Ele cuidou de nós por todo esse tempo, eletem cuidado de mim, eu nunca irei pensarque ele é o causador de toda essa dor quesinto agora. Ele é o responsável por eu nãoestar desmoronando, ele é o único que mefaz continuar a ser forte, eu só me sinto as-sim por ele estar por perto.— Eu sei que parece que tudo está perdido eque você não tem mais ninguém, mas eu es-tou aqui e eu sempre vou estar aqui para vo-cê. Sabe disso não é?Aceno com a cabeça tentando sorrirlevemente.— Não é sua culpa— digo ainda com meus ol-hos presos aos seus.

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— Talvez tivesse sido melhor ter te contadosobre a verdade antes, então você não estariatão perdida e despreparada agora. Poderiater sido muito pior, você poderia não ter des-pertado o poder, poderia ter acontecidotantas outras coisas ruins — ele diz mais parasi mesmo do que para mim.— Sim, talvez, mas ai ela nunca teria tido avida normal que os pais dela sonhavam queela tivesse. Ao menos assim ela teve seusdezesseis anos normais e só agora entrounesse caos— Verônica diz atrás de mim, en-quanto desce a escada.— Agora já está feito, não se pode mudarisso. O importante por agora é você não des-maiar toda vez que seu poder se manifestar.Descanse um pouco e mais tarde irei teajudar com isso, sua mágica pode ser difer-ente da minha, mais ainda é magia não é?— Você também é uma bruxa?— Em carne e osso, meu bem!

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Me deito na cama depois de tomar banho ecomer o ensopado delicioso que Verônicafez.Olhando ao meu redor percebo o quanto ascoisas mudaram, eu era apenas uma meninacaipira que morava na roça com a avó, de re-pente sou uma mestiça de dragão e bruxa,vivendo num chalé escondido na floresta. Enão tenho mais minha avó me esperando emcasa.É diferente perder alguém que nunca con-heceu, como minha mãe e meu pai, eu seique eu os amo e que eles seriam maravil-hosos comigo e de certa forma eu sinto faltadeles, mas eu nunca tive um abraço deminha mãe ou um beijo de boa noite de meupai, agora de minha avó... Ela sempre estevelá para mim. Quando eu acordava assustadaa noite ou quando eu me machucava no

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quintal, ela sempre esteve lá. Eu sentirei faltadela para sempre.Depois de derramar o que me parece um riode lágrimas no travesseiro, eu adormeço.Na manhã seguinte acordo com o solbatendo em meu rosto novamente, masdessa vez sei exatamente onde estou.Faço uma promessa a mim mesma antes desair da cama, não mais irei chorar. Minhaavó não iria querer isso, eu tenho que serforte, eu sei que posso suportar isso e tudo oque vier pela frente e eu o farei... Por ela.Desço as escadas e sigo o delicioso aroma decafé que sai da cozinha.Verônica está sentada com uma xícara namão, ao seu lado na mesa está um garotocom o mesmo sorriso acolhedor, ele pareceser alto, possui a mesma pele morena queVerônica, os olhos castanhos e o cabelocortado bem curto, rente à cabeça.Ele se vira no momento em que coloco os péspara dentro da cozinha.

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— Oi, eu sou Lucas — ele diz se levantando eestendendo a mão direita em minha direção.Eu a perto e tento sorrir, enquanto ele sorride volta.— Ele é meu filho, veio para ajudar. Maschega de falação agora, coma logo que temosque ajudar você com seus desmaios,mocinha.Me sento na mesa ao lado de Verônica e Lu-cas, a cadeira range com meu peso.Como as panquecas com geleia que Verônicapreparou com um copo de leite, ninguém diznada, apenas me olham. Embora acrediteque Lucas só está calado por ordens de suamãe, pois seus olhos e sua expressão dizemque ele tem muito para falar.Depois vamos para sala, apenas nós duas.— David? Onde está?— pergunto.— Patrulhando a área, não se preocupe, elefoi assim que Lucas chegou. Você estásegura.

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Aceno com a cabeça, mas no momento nãoestou preocupada com a minha segurança,mas sim com a de David, ele é tudo quetenho agora.— Venha querida, sente-se de frente paramim.Sentamos uma de frente para outra, as per-nas dobradas, ela estende suas mãos e seguragentilmente as minhas.— Em magia não há muita coisa para ensin-ar, seus instintos falarão mais alto, sempre,você apenas tem que confiar em si mesma—ela diz olhando em meus olhos. — Agora, vo-cê tem que se controlar, aprender a reduzir opoder para não desmaiar como tem feito nasúltimas vezes. É bem simples, requer apenasconcentração. Pense em seu poder crescendodentro de você, o imagine surgindo e to-mando conta de seu corpo.Eu faço como ela manda, e tento imaginar ocalor subindo por meus membros, imagino ador, mas nada acontece.

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— Não funciona agora— digo frustrada.Verônica respira uma vez.— Pense no motivo que te fez liberar a ener-gia, tente lembrar.Lembro de ontem quando descobri que vovóhavia morrido. A dor, a perda, o medo,aquela sensação de abandono, de estar soz-inha, é o suficiente para trazer tudo à tonanovamente, a queimação começa. O fogocrescendo dentro de mim.— Está funcionando, eu poso sentir.— Respire, Melane, você está no controle, vo-cê controla o poder e não o contrário.A dor aumenta, eu sinto a energia por todosos lados, ficando mais forte, meus olhoscomeçam a brilhar levemente agora, e eudesejo não ter começado com isso.— Melane, sinta, você tem o controle, repitacomigo, eu tenho o controle — Verônica dizcalmamente.— Eu tenho o controle — digo entre osdentes.

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— De novo.— Eu tenho o controle.— Outra vez.— Eu tenho o controle — praticamente gritoagora, e então sinto a energia voltando paradentro de mim, diminuindo. Eu estou bemoutra vez— abro os olhos lentamente. — Deucerto, funcionou — digo quase nãoacreditando.Verônica apenas sorri, como se nunca tivessetido dúvidas sobre isso.Passo algumas horas da tarde treinando issosozinha no quarto. Fico sentada no chão comas pernas cruzadas, imaginando a dor, o cal-or, e o fazendo voltar, depois de algumasvezes me sinto mais confiante.Já é quase final da tarde e David ainda nãovoltou, começo a ficar preocupada. Vou olharpela janela do quarto, ela está um pouco em-baçada, mas ainda posso ver o lado de fora. Afloresta parece medonha daqui de cima, algo

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que nunca imaginei sentir olhando essa pais-agem, mas eu sinto.Fico observando as folhas balançando, o céuescurecendo aos poucos, parece que tudoque sentia ao olhar essa imagem,desapareceu.Minha avó amava essa floresta, talvez meuamor por ela tenha morrido junto com ela.Obrigo o pensamento a ir embora, assim queele começa a se formar em minha cabeça. Euprometi, serei forte.Depois de alguns segundos vejo uma luzprateada no céu, consigo ver as folhas se mo-vimentando, e depois de uns poucos in-stantes, David sai em sua forma humana porentre as folhas das árvores.Desço as escadas correndo, ele está entrandopela porta quando chego.— Você ficou fora o dia todo, alguma coisaaconteceu?

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— Temos que ir embora, dragões vascul-hando a área, por toda a parte, logo eles es-tarão aqui.— Eu vou com vocês — Lucas diz saindo dacozinha.— Será mais seguro se eu for— ele diz antesque alguém o impeça.David acena com a cabeça.Verônica nos entrega mochilas, onde en-chemos com comida enlatada, biscoitos, gar-rafas de água, algumas capas e cobertores.Ela não quer que Lucas vá conosco, sei pelasua expressão, mas ela não diz nada. Sintome agradecida por tudo que ela está fazendo,não sei se é certo levar seu filho conosco,mas não sei o que devo fazer.— Para onde vamos afinal?— pergunto.— Para onde eles não esperam, vamos voltarpara o Ninho.

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Capítulo 4 Memórias

Saímos para a floresta no meio da noite, semlanternas, David explica que tem visãonoturna e nos guiará, estou praticamente ce-ga sendo guiada por sua mão fechada sobre aminha.

Andamos um bom tempo na escuridão dafloresta, o vento soprando forte, nem mesmoas folhas e árvores conseguem mantê-loafastado, não estamos correndo, mas vamosem passos largos, tenho que apressar-mepara poder acompanhar o ritmo. Andamostanto, até meus pés não aguentarem maisum passo.

— Vamos parar para dormir — Davi diz.

— Não precisa, eu aguento— digo, emboranem mesmo eu tenha creditado em minhaspalavras.

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— É melhor pararmos, comermos e dormir-mos um pouco. Amanhã sairemos cedo. Eufico com o primeiro turno.Lucas não faz nenhum sinal de relutância,ele parece exausto também.Não fazemos fogueira para não chamaratenção, então nos encolhemos dentro denossos casacos e cobertores e ficamos próxi-mos. Lucas e eu deitamos atrás de umapedra grande e David se mantém sentado en-costando as costas na pedra.Mesmo cansada não posso dormir, muitacoisa martelando em minha cabeça.Sento-me ao lado de Davi.— Você precisa dormir — ele diz sem meolhar.— Eu não consigo. Você não está com sono?Saiu cedo para patrulhar e não parou atéagora.— Estou bem. Já passei por coisas piores —agora ele me olha, e seus olhos de alguma

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forma conseguem ainda ser azul brilhante,mesmo nessa escuridão.— Me conte mais sobre minha mãe? Sobre odia em que nasci. Eu só preciso saber umpouco mais de detalhes.Ele me olha parecendo cansado, e respondesuspirando.— Detalhes?Aceno com a cabeça, confirmando.— Do que se lembra daquele dia?— Lembro-me exatamente de tudo, como setivesse sido ontem.— Então me conte... Por favor.Ele vira o rosto para o lado novamente, maisum suspiro antes de continuar.— Acho que você tem o direito de saber nãoé? É de sua vida que estamos falando — con-tinuo o olhando fixamente. — Estava comsua mãe, escondidos na casa de um amigo,era perigoso sair de lá e vir para Terra, oúnico lugar por onde podíamos fugir estava

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sendo vigiado, e nas condições que sua mãeestava, seria muito arriscado.Seu pai tinha morrido não fazia muitotempo, e todos nós estávamos acabados, suamãe mais do que ninguém. Acho que a únicacoisa que a mantinha viva, era você, ela pas-sava horas conversando com você, acari-ciando a barriga, ela cantava uma canção deninar. Não me lembro muito bem como era,falava alguma coisa sobre peixes e ondas domar— ele sorri largamente, com os olhos dis-tantes, como se não estivesse mais aqui,comigo, e sim no dia que aconteceu.Sinto um aperto no peito, mas me mantenhocom a expressão limpa, prestando atençãoem cada palavra.— Achamos que realmente iríamos con-seguir, faltava pouco tempo para você nas-cer, mas não foi assim que as coisas aconte-ceram. Num dia, no meio da noite, a casa foiinvadida, do nada, fogo sendo jogado emcima de nós pelo teto, janelas, por todos os

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lados, nem sei como conseguimos sair dedentro com vida. Nunca estive tão apavoradoassim em toda minha vida. Meu amigo Gab-riel, que estava junto para ajudar a cuidar desua mãe se transformou em dragão e nos deucobertura enquanto tentávamos sair pelafloresta. Sua mãe nunca teve tanta coragemcomo naquele dia, corremos o máximo quepodemos, para dentro da floresta escura,tentando nos esconder em qualquer lugarque podíamos. As contrações vieram de re-pende, ainda faltava alguns dias para vocênascer, mas por tudo que estávamos pas-sando, a hora havia chegado.Parecia que havíamos os despistados, tenteicarregar sua mãe no colo, mas era inevitável,o parto iria acontecer, indiferente do quequeríamos.Eu a deitei na grama, e mesmo sem saber oque fazer ou como agir, eu fiz.Não foi um parto difícil, não demorou quasenada, poucos minutos depois eu tinha a bebê

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de olhos verdes em minhas mãos — ele fazuma pausa, sorrido levemente. — Foi aprimeira coisa que eu vi, seus olhos. Eu tecoloquei nos braços de sua mãe, e ela lhe em-brulhou em sua roupa, a apertando tão forte-mente contra seu peito, ela te queria mais doque tudo nessa vida, mas isso não duroumuito tempo, eu não sei de onde saíram, poronde vieram, mas eles estavam lá, por todosos lados.Peguei você nos braços e tentei ajudar suamãe, mas ela se negou, me mandou seguirem frente e não parar por nada, para ir paraTerra e encontrar sua avó.— Prometa-me, prometa-me que sempre iráprotegê-la, nunca irá abandoná-la — elapegou minhas mãos, apertando com umaforça que não sabia que possuía, seus olhosestavam arregalados, porém nãoamedrontados.

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Eu não queria, insisti mais do que consigome lembrar, mas ela era persistente e não medeixaria ganhar dessa vez.— Eu prometo, nunca vou deixá-la — entãoeu fui, sem olhar para trás, e não parei, comoela havia mandando. Tudo que ouvi foi umaexplosão, a floresta entrou em chamas, nãosei o que ela fez, e nem como fez, mas ela nossalvou.Cheguei até a saída de nosso mundo, em-brulhei você em minhas roupas, me trans-formei, te agarrei com a boca e sai de lá. Fiz oque tinha que fazer. E foi isso.Não sei o que devo dizer a ele, imagino comodeve ter sido duro, ter passado por tantascoisas, sozinho, perdendo tantos amigos. Porminha causa.Desvio o olhar tentando encarar minhas pró-prias mãos, mas mal posso vê-las nessaescuridão.— Você sabe, não precisa cumprir essapromessa— digo baixinho.

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— O quê?— ele me olha parecendo confuso.— Nunca me abandonar e sempre me pro-teger, foi uma promessa feita há muitotempo, e em outras circunstancias, sabe, vo-cê estava sem saída, mas não tem que serassim, sinta-se livre — é o mais justo a sefazer, livrá-lo dessa promessa, embora nãoseja o que eu gostaria que acontecesse.Ele solta um sorriso abafado.— Não é por isso que cumpro minhapromessa, Melane— viro o rosto em suadireção. — Seu pai era como um irmão paramim. Acho que isso é um dos motivos queme mantêm unido a você, de certa forma.Abandoná-la não é uma opção para mim,não por ter prometido, mas por não quererque seja de outra maneira.Eu sorriu levemente para ele.— Isso é um alivio.Ele acena com a cabeça.— Aquele dia, quando você estava chegandode noite, e fui falar com você, perguntando

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onde estava, você disse que foi dar umavolta, pois estava quente demais paradormir, isso não era verdade, não é?— per-gunto levantando uma sobrancelha.Ele sorri levemente antes de responder.— Não, não era.— E...?— Eu tinha sim saído para dar uma volta,realmente estava calor, mas não fiz um pas-sei de moto. Fui voar um pouco, sentir asensação do vento no rosto, tão forte quequase pode machucar, passar por dentro dasnuvens, esticar as asas o máximo que con-sigo e mergulhar no céu, eu adoro isso, achoque é por esse motivo que gosto de motos,não é nada comparado ao que se sentevoando, não, mas é o mais parecido queposso alcançar aqui. Posso contar nos dedosàs vezes em que me transformei em dragãodurante esses anos, foram apenas duasvezes, é arriscado. Por isso estava nervosoquando você me encontrou.

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Sinto-me mal por ele, deve ter sido duro, to-do esse tempo cuidando de mim, longe decasa e de quem ele realmente é. Mas não seio que dizer, o que deveria dizer?— Sinto muito?Ele sorri novamente.— Não sinta, Mel, isso não é culpa sua.De certa maneira, é minha culpa sim, masnão há o que fazer para mudar o passado,nós dois perdemos muito e passamos pormuito. Então, não posso ficar me corroendopor coisas que não possuem saída.— Eu tenho mais perguntas — digo tentandomudar de assunto.— É claro que você tem.— Me conte mais sobre tudo isso. Do lugarde onde você veio e de onde eu vim também,— Ok — ele diz com uma voz pesada,suspirando.— Eu não te contei muita coisa ainda afinal.É que são tantas coisas... Bem, o lugar deonde viemos se chama Ninho de Fogo, é

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onde nós, dragões, nascemos e vivemos, nãoé um mundo completamente diferente doseu, temos muitas coisas em comum.Nós temos um rei que governa por nós, infel-izmente não é um rei muito sábio oupiedoso. Pode ter sido há muitos anos atrás,mas algo mudou dentro dele, muitos dizemque ele enlouqueceu. A verdade é que ele émesquinho, tem sede de poder em suasmãos. Nenhum rei pode ser bom com tantaganância assim. Ele governa há milhões deanos e tem apenas um herdeiro vivo, você.— O quê?— Sim, seu pai, príncipe Samuel era filho dorei Ariel, sendo assim, quando Ariel assinouo mandado de morte de seu pai, você setornou a última herdeira. Ariel tinha muitomedo de que Samuel tomasse seu lugar notrono, no nosso mundo as pessoas não morr-em de velhice, morremos apenas por algumadoença rara, por assassinato ou algum outromotivo fora do comum, então o trono passa

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para o próximo da linha assim que o rei anti-go estiver velho demais. Então quando Arielsoube sobre sua mãe, a vingança caiu comouma luva. Ele havia encontrado a desculpaperfeita para matá-lo e assim eliminar todasas chances de perder o reinado.Sua avó, Cristal, não concordava com as atit-udes de seu avô, depois da morte de seu paiela desapareceu. Todos acham que ele amatou também — ele diz com os olhoscansados.Eu sou uma princesa, certo, mais uma coisapara minha listinha. Nessas circunstâncias,nada mais me surpreende.Meu avô é o responsável pela morte de meuspais e é por causa dele que estamos fugindo.Como um homem mata o próprio filho porpura ganância e agora persegue a neta? Quetipo de monstro ele é?— Sim, ele é abominável, e o mundo dosdragões está caindo cada vez mais rápido,ainda existem muitos rebeldes que eram a

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favor de que seu pai viesse a governar oNinho, mas depois das mortes eles semantiveram calados, com medo, mas eles ex-istem, nós só precisamos reunir todos eles.— O que vai acontecer quando chegarmos lá?Ele suspira antes de responder.— Guerra, Mel. Ariel tem que morrer. Comvocê conosco as chances são maiores, o povotem esperança em você.— Em mim?— pergunto surpresa.— Você tem mais poder do que imagina,Melane. As pessoas não terão mais medocom você por perto — ele diz sorrindo.As pessoas têm fé em mim? Uma garota queviveu na roça durante toda sua vida? Não seicomo posso dar esperança a um povo quenem ao menos conheço, em um mundo quenunca estive.— Você tem muito que aprender sobre simesma. Você é muito mais do que pensa,possui sangue de dragão e de bruxa em suasveias, Mel. Seus pais eram as pessoas mais

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valentes que eu conheci e você não é difer-ente deles.— Você era muito amigo de meu pai?— nãoconsigo ver, mas escuto seu sorrisosussurrado.— Sim. Você se parece muito com ele, tem omesmo sorriso, sabia?— Verdade?— Ahan, e você têm muita coragem, assimcomo ele, você está enfrentando tudo issomuito bem.— Que outra escolha eu tenho?— Descanse um pouco, Mel, amanhã saire-mos cedo — ele diz docemente.— Está bem, boa noite.— Boa noite— ele sussurra.Me deito de costas para David.— Davi — sussurro de volta. — Quantos anosvocê tem?Ele espera alguns segundos antes deresponder.— Muitos — ele sorri.

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— Exatamente?— trezentos e quatorze... Está bom paravocê?Pego fôlego, como ele pode ter trezentos equatorze anos? Ele aparenta ter vinte e dois,ou menos, como ele pode ter vivido tanto?Eu iria viver tanto assim também?Tantas perguntas para serem feitas.— Davi, você disse que não podia me con-hecer criança porque eu veria que você nãoiria envelhecer, mas eu iria perceber que vo-cê não envelhece agora também, não é?— Errado. Nós podemos parar de envelhecersempre que quisermos, paramos o tempopara nós, Posso ter a aparência de umhomem de 10 anos pelo resto de minha ex-istência, mas não podemos voltar no tempo,eu iria envelhecer com você. Eu tenho envel-hecido, dois anos até agora— ele diz com osom de um sorriso fraco.— E você iria abrir mão de tudo isso eenvelhecer?

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— Por você? Sim.Todas as outras perguntas que eu tinha fo-ram caladas com essa resposta.Depois de um tempo adormeço, escutando arespiração lenta de David ao meu lado e al-guns poucos roncos de Lucas.

Capítulo 5 De volta ao lar

De manhã, acordo com Lucas e David empa-cotando as coisas. Agora, de dia, possoavaliar melhor o lugar onde estamos, Daviddeve enxergar muito a noite mesmo, pois es-tamos bem escondidos aqui, a pedragrande sendo rodeada por arbustos largos.

— Eu preciso ir ao banheiro — digo enver-gonhada, mas eu realmente preciso fazerxixi.— Vá ali atrás rapidinho, não fique longe —Lucas diz apontando um arbusto próximo.

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Vou até o arbusto e consigo terminar rapida-mente, mas quando estou fechando o últimobotão da calça, escuto um ruído bem a minhafrente.Penso ser um animal, mas então vejo um parde pés humanos.— David! — grito o mais alto que posso.David já está ao meu lado em menos de doissegundos.— Tem alguém ali – aponto para a árvore afrente.Antes que ele possa chegar perto, a pessoasai correndo por entre as árvores, David saiatrás a toda velocidade, mas o espião pareceser rápido.Eles somem de vista, Lucas está ao meu ladoagora, preparado para lutar.Alguns segundos mais se passam, meu cor-ação quase saindo pela boca, enquanto meusolhos percorrem o caminho de árvores aminha frente.

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Então David reaparece puxando um meninopelo braço.— É só uma criança?— Lucas perguntaindignado.E é, um menininho que deve ter uns dez ouonze anos de idade, cabelos dourados e olhosnegros, sobre uma pele pálida com algumaspoucas sardas no nariz. Algo estranho metoca por dentro nesse momento, apenas porum milésimo de segundo, sinto que conheçoesse garotinho de algum lugar, mas não con-sigo me lembrar de onde.— Ele não é um menino, tem que quase tan-tos anos quanto eu.Ele não me parece ter ―tanto anos?.— Ele parou no tempo, Jack tem quasetrezentos anos, mas descobriu que a vidapode ser mais fácil para uma criança. Nin-guém suspeita de um menininho, não é,Jack?O garoto sorri como um menino levadoquando é pego fazendo algo que não deve.

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— Não sei por que esse alvoroço todo, só es-tou aqui para ajudar! — ele diz com uma vozangelical de criança.— Então porque fugir?— Lucas pergunta.— Sou apenas um menino assustado! — elediz sorrindo.— Sim, claro. Quem te mandou aqui Jack?—David pergunta.— Ninguém, eu estava apenas curioso. Es-cutei rumores que ela havia sido encontrada.— seus olhos redondos estão grudados emmim agora.— Quais são os rumores?— Que o bebê voltou, e que ela irá tomar seulugar no trono. As noticias correm rápido porlá.— O que veio fazer aqui?— David perguntanovamente.— Eu já disse, eu precisava vê-la. É real-mente ela, não é? — seus olhinhos pretos searregalam para mim. — Claro que é, ela é acara da realeza, mesmos olhos verdes,

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cabelos ruivos. — ele sorri, enquanto piscapara mim de uma forma que garotos da id-ade dele não deviam fazer.— As coisas tem andado feias por lá, Ninhode Fogo não está nem perto de ser como jáfoi um dia.Um ruído abafado surge por entre as árvores.Todos nós olhamos para cima à procura doque originou o som.— Quem está com você?–—David perguntasussurrando.— Ninguém, eu juro, eu vim só— Jack dizcom uma voz fininha sussurrando.— Como sabe que não foi seguido?— Lucas équem pergunta agora.— Eu não sei — David e Lucas olham paraele.— Sou apenas um menino — Diz erguendo asmãos.— Qual é, Jack? Metade do Ninho sabe quevocê não é um menino há muito tempo.Rápido, vamos sair daqui. Ele foi seguido.

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David mal pode terminar a frase, um par dedragões sobrevoam o local onde estamos.Nos abaixamos, tentando nos esconder entreas folhas e arbustos.— Eu os afasto, nosso povo precisa ser salvo— Jack grita as palavras pulando para forado esconderijo improvisado, para logo ex-plodir em um dragão. Nem de perto um tãogrande como os dragões que vi antes, masainda sim, um dragão, preto com asasesbranquiçadas.Ele voa em toda velocidade para o céu, con-tornando os outros dois e foge para o ladooposto do nosso.Isso parece funcionar, os dois dragões o es-tão seguindo.— Vamos, não deve estar tão longe daqui —David diz apressado, me puxando pela mão,forçando-me a correr.— O que não está longe?— perguntoofegante.— O portal!

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— Portal?— Claro! Como você achou que chegaríamosao Ninho?Corremos por entre a floresta, tenho minhamão fechada na de Davi e Lucas bem atrás demim. O tal portal não está perto como eletinha imaginado, a prova disso são minhaspernas que tremem e parecem que vão des-moronar, quando finalmente David diz.— Chegamos, é bem ali.Duas pedras retas, muito altas, uma de cadalado, com uns quinze metros de distância asseparando.— Tem que estar em forma de dragão paraatravessar— David diz se afastando de nósuns bons metros. Joga a mochila e memanda pegá-la. — Vire-se agora.Eu me viro, e escuto o som de jeans se ar-rastando pelo corpo. E então uma explosão.Viro-me e ele já está em sua forma dedragão.

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— Guarde— Lucas pega as roupas no chão eas coloca em minha mochila.Lucas me puxa para o lado dando espaço aogrande dragão que se posiciona em frente aoportal, lançando uma rajada de fogo porentre ele.O fogo para, formando uma parede entre aspedras e vai se dissolvendo aos poucos, ab-rindo as portas para o outro mundo.Devagar, as chamas vão se evaporando e oNinho começa a surgir bem na minha frente.Nesse momento Jack passa gritando esoltando fogo, atravessando o portal de umasó vez, logo depois dele os dois dragõessurgem entre as nuvens.David se posiciona para levantar voo, masLucas o para.— Não. Pegue ela e vá, eu vou atrasá-los omáximo que conseguir.David apenas balança a cabeça concordando.Ele me agarra pela mochila nas costas comsuas garras e atravessa o portal comigo.

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Antes de atravessar só posso aproximando,enquanto Lucas sussurra ver os dragões sealgo para si mesmo, levantando as mãos,uma parede branca translúcida aparece emsua frente, bloqueando as feras quecomeçam a soltar baforadas de fogo em suadireção. Ele é um bruxo também.E então estou em outro lugar, estou agora emNinho de Fogo.A tontura e a confusão chegam imediata-mente, assim como a falta de ar repentina.Não sei se foi atravessar o portal ou ter vistoLucas em perigo, os causadores desses sinto-mas, mas não consigo pegar ar para dentrode meus pulmões, eu tento respirar, masnada acontece. Caio no chão com umbarulho abafado, David me solta quando es-tamos próximos ao solo, um segundo depois,um David humano está na minha frente.— Fique calma, Mel, vamos, respire. Estátudo bem, eu estou aqui, faça junto comigo— ele começa a fazer longas respirações,

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levantando as mãos junto com os pulmõespara dar ênfase, então aos poucos posso sen-tir o ar percorrer meu corpo novamente.— Isso, devagar. É normal isso acontecer nasua primeira vez atravessando o portal— eleexplica.Aceno com a cabeça enquanto respirolentamente.— Ótimo, você já parece bem, me passe àmochila — diz a pegando de minhas costas.Somente agora percebo que David está semsuas roupas, completamente nu, bem naminha frente, e a primeira coisa que mesurge na mente é como eu nunca tinha re-parado como seu peito é realmente largo.— Mel?— David diz com as sobrancelhas le-vantadas, enquanto continuo a olhar em suadireção.— Oh! Claro, desculpe— me viro rapida-mente, sentindo as bochechas queimandomais do que fogo.

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Escuto barulho de tecido se arrastando, de-pois de alguns segundos me viro e vejo umgarotinho subindo a colina onde estamosagora. É Jack.Não é uma colina muito alta, com terra ver-melha batida e algumas folhas secas espalha-das pela superfície, o ar além de seco, équente, o céu parece cinzento e com muitasnuvens escuras daqui.— E lá vem ele. Porque você trouxe osdragões de volta? — David pergunta nervosoenquanto observa Jack se aproximar.— O que eu podia fazer? Eles estavam quaseme pegando!— Claro! Jack só ajuda quando nada ameaçasua jovem vida.— O que posso dizer? Sou apenas umgarotinho.— Sim, essa é sua frase favorita!— E Lucas?— pergunto aflita. — Ele ficarábem?

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— Eu não sei, Mel, realmente espero quesim, mas agora temos que sair daqui, antesque os dragões voltem.— O que vai fazer com ela sabichão? Todosirão reconhecer essa juba ruiva, e da formaque as coisas estão, ainda há aqueles queacham que ela é a culpada de tudo, não achoque ficarão muito felizes com isso — Jack dizcom uma expressão travessa.— Do que você está falando?— Veja por si mesmo — Jack diz estendendoos braços para além da colina.Levanto-me e vou até a beirada para olhar apaisagem. É tudo muito sombrio, árvoressem folhas, chão de terra por toda parte, cas-as destruídas, poeira se elevando para o céue ruas vazias.— Não foi assim que imaginei esse lugar—digo sussurrando.— É porque ele não era assim, não desde aúltima vez que estive aqui.

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— É, as coisas mudaram muito nesses dezes-seis anos — Jack diz parecendo sério en-quanto me olha.— Porque tudo está seco?— David pergunta.— Um presente do rei, quando ameaçamoscomeçar uma guerra. Um feitiço dosgrandes, lançado no meio da noite. O céuacendeu em uma explosão vermelha, depoischamas caíram levando tudo que tinha vidapor aqui, foi assustador. Pessoas mortas defome e com famílias para alimentar, nãocomeçam uma rebelião sozinhas, não é?David pega uma capa com capuz da mochilae me faz vesti-la para cobrir meus cabelos.— Temos que sair daqui— é tudo o que elediz antes de vestir ele mesmo uma capa iguala minha.Descemos rapidamente a colina, Jack parececonhecer bem o caminho.Chegamos à aldeia, aqui de perto as casasparecem piores, há crianças nas sarjetas es-perando por esmolas que nunca chegam e

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mulheres sujas tentando vender algo que meparece com pão torrado. O ar aqui é quente etraz consigo um aroma de sangue e brasas.Aperto minha mão na de David, as pessoasparecem não nos notar ou então não seimportam.As pedras no caminho machucam meus pés,mesmo com os sapatos, não imagino comoestão os pés das crianças descalças que per-ambulam por aqui.Alguns metros a frente, depois de ardamosapenas por uns segundos, posso escutar umrugido alto de dor. Com passos largos nosapressamos para ver o que acontece, as pess-oas parecem não ligar para os rugidos, émais como algo que eles estão acostumados,continuam agindo naturalmente, como senada estivesse acontecendo.Apenas mais alguns metros e avistamos umpar de dragões se enfrentando violenta-mente, um dragão marrom esverdeado acaba

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de dar uma potente mordida no dragão men-or, de cor avermelhada.Meus olhos se arregalam com a cena brutalque acontece diante de mim. Há algumaspessoas em volta, seus rostos tranquilos,apenas observando, como se essa cena fossealgo rotineiro para eles.David parece tão chocado quando eu, en-quanto observa calado com sua cara fechadade sempre.— Desde quando nos enfrentamos em plenovilarejo?— ele pergunta aflito enquanto olhapara Jack.— As coisas tem sido difíceis por aqui, algu-mas apostas sempre são bem-vindas em situ-ações extremas de fome— Jack diztranquilamente.O dragão maior lança sua calda pontuda,acertando fortemente o rosto do dragãoavermelhado, que inconsciente cai no chãocom uma pancada forte voltando a sua formahumana. É uma mulher.

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O dragão marrom volta a sua forma dehomem também, e ainda nu, sai gritandocom os braços levantados comemorandocom a multidão a sua volta.A mulher fica jogada ao chão, ninguém fazmenção de ir ver como ela está, ninguémnem ao menos olha em sua direção, entãosaio correndo até ela. Escuto David chamarmeu nome, mas não me importo, me ajoelhoao seu lado, tirando os fios curtos de seu ca-belo negro de seu rosto pálido. Ela é jovem,jovem demais, deve ter minha idade ou atémenos que isso.Pego uma garrafa de água da mochila e des-pejo em seus lábios rachados, ela tosse algu-mas vezes antes de abrir os olhos e engolir aágua. Sorrio levemente e ela faz o mesmocom aparente dificuldade.— Qual seu nome?—pergunto, enquantoenxugo sua testa suada.Ela tosse mais uma vez antes de responder.— Rachel.

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— O que você está fazendo?— Jack diz já aomeu lado.— Ajudando!— Ninguém ajuda aqui. Ela sabia onde es-tava se metendo quando aceitou lutar.— Você também não pensaria duas vezes setivesse uma irmã pequena em casa e umamãe doente para alimentar — a garota dizfracamente, mas consigo sentir o ódio emsua voz.— Você pode se levantar?— pergunto, segur-ando seus braços para ajudá-la.Ela acena com a cabeça.— Já passei por coisa parecida antes.— Pegue— tiro dois pacotes de biscoito damochila e lhe entrego, colocando um doscasacos que carrego na bolsa em cima deseus ombros.— Não é muito, mas...Ela pega os pacotes receosa.— É mais do que qualquer um já fez por mimem toda a minha vida — Rachel diz com

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olhos arregalados.— Obrigada! – — diz seafastando, mancando, certamente indo levaros biscoitos para casa.David me olha sério agora.— Eu não podia deixá-la ir sem nada.Ele acena positivamente.— Você fez bem, agora vamos, precisamosencontrar alguém.Jack solta o ar pelos lábios fazendo umbarulho de deboche.— Sabe onde Amélia mora?— David per-gunta a Jack.— Mas é claro que sei.Seguimos Jack pela cidade devastada, a cadapasso que dou, me surpreendo mais.Nunca vi pessoas tão pobres e sofridas comoessas.O calor me faz suar por baixo da capa grossa,o vento não ajuda, é ainda mais quente eabafado.A poeira me faz tossir, é difícil respirar poraqui, mas todos parecem estar acostumados

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com o clima seco, eles andam quietos pelasruas, sem nos dirigir sequer um único olhar.Um vento forte sopra por cima de nós, le-vanto o olhar e vejo pássaros gigantes, comasas metálicas parecidas com espelhos sobrea luz do sol, sobrevoando a área soltando ru-gidos melodiosos.— Fênix?— David pergunta, surpreso.— Criaturinhas odiosas, levam tudo ao pé daletra— diz Jack, mal-humorado..— Elas gostam de criar suas colônias per-feitas de lugares destruídos, para assimrenascer das cinzas dos outros — Davi dizainda com os olhos grudados nos belospássaros.— Como eu disse, levam tudo ao pé da letra...Abutres, isso que elas são. Deixem-nos empaz, suas carniceiras — Jack grita, levant-ando as mãos para o céu. —Elas estão nosrodeando há meses.

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— Isso aqui está pior do que eu pensava—David diz, mais para si mesmo do que paranós.Apenas continuo andando com os olhospresos no céu, observando, enquanto oslindos pássaros desaparecem por entre asnuvens.Depois de andar por um tempo infinito,chegamos a uma casinha pequena demadeira velha e gasta.Jack bate na parta, dando socos fortes efazendo barulho.Um homem de cabelos grisalhos abre aporta, que range eternamente.Ele olha feio para Jack no momento em quevê seu rosto, depois vira os olhos para David,os arregalando e sorrindo.— David, é você?Eles se abraçaram fortemente, dando tapasnas costas e sorrindo largamente.— Entrem, rápido.

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Entramos pela porta que range mais uma vezao ser fechada, é uma casinha bem simples,poucas janelas pequenas, uma mesa demadeira com apenas três cadeiras no centrodo cômodo, cortinas esfarrapadas feitas deum tecido verde florido, alguns bancos demadeira encostados na parede, mais duasportas fechadas logo depois de um pequenoespaço onde fica a cozinha.— Minha nossa, é você mesmo. Eu nemposso acreditar — o homem diz mais umavez abraçando David.— Também senti saudades pai.Oh! É o pai dele, agora que percebo a semel-hança, eles possuem os mesmos olhos azuis eo mesmo sorriso infantil nos lábios.— Deixe-me olhar para você.Depois de olhar para David por um mo-mento realmente longo, o homem vira os ol-hos em minha direção.

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Jack parece entediado sentado em uma dascadeiras, revirando os olhos de uma formanada agradável.— É ela?— o pai de David pergunta meencarando.— Sim, é ela, eu tive que trazê-la — David dizpuxando o capuz para baixo de minhacabeça, revelando meus cachos ruivos, queimagino estar numa bagunça ainda maiorque a de costume.Os olhos do pai de Davi brilham ao olharpara minha ruivisse, então a porta se abre deuma vez, e duas mulheres entram ar-regalando os olhos, deixando cair à sacolaque levam nas mãos.Elas não dizem nada, apenas me olham.Jack se apressa, fechando a porta. — Cubraessa cabeça, alguém podia ter te visto — dizparecendo zangado.A mulher que aparenta ser mais velha per-corre o olhar por tola sala, parando direta-mente em David.

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Eles sorriem e se abraçam também, en-quanto ela passa as mãos freneticamente porseu rosto e cabelos.— Querido, eu senti tanta saudade.— Eu também. Amélia— Davi diz sorrindo.A garota mais nova ainda tem os olhosgrudados em mim. — É ela?Acho que devo começar a me acostumar comessa pergunta.— Sim, é ela. Contemple os cachos ruivos porum tempo infinito agora— Jack diz aindasentado.— Angélica? Como está crescida — Davidfala, indo abraçar a linda garota de cabeloscastanhos ondulados que vão até sua cintura.— Você devia ter uns 14 anos desde a últimavez que te vi — ele diz sorrindo.A garota cora as bochechas num tom forte devermelho, também sorrindo.— É bom te ver também — ela diz sem jeito.— Mel, esse é meu pai, Damião, sua esposaAmélia, que praticamente me criou, e essa é

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Angélica, sobrinha de Amélia e minhagrande amiga.— Oi — é tudo que digo, fazendo um gestocom a mão.— Não posso acreditar que é ela. Eu escutohistórias sobre você a minha vida toda, tenhoesperado tanto por seu regresso — Angélicafala com olhos vidrados em mim.— Histórias sobre mim?— Sim. O bebê que um dia voltaria e nosdaria salvação — diz ainda fascinada.— Calma, Angélica, ela acabou de chegar, es-tá nesse mundo há pouco tempo, ainda hámuito para aprender — Damião se aproxima.— Chegaram agora?—Amélia pergunta, re-colhendo a sacola do chão.— Há poucas horas — Jack responde.— O que ele faz aqui? Veio roubar algumacoisa de novo, Jack?— Amélia diz, apont-ando o dedo em sua direção.— Ele estava ajudando — digo sem graça.

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Ele estava mesmo, ele espantou os dragõesna floresta, se não fosse por ele, não sei comoteria sido.Jack me olha agora, um brilho travesso nosseus olhos escuros. Ele pisca para mim sor-rindo novamente.Esse garoto me provoca arrepios, comoaquelas crianças demoníacas nos filmes deterror, um rosto adorável com uma voz an-gelical sob um humor debochado e mal-humorado e um sorriso malicioso.Todos na sala me olham.— Ele ajudou a atravessarmos o portal.— Sim, eu ajudei.Amélia revira os olhos.— Como chegaram aqui?— Damião pergunta— Nos descobriram, saímos da Terra as pres-as, tivemos ajuda de Verônica e Lucas... —Davi diz, deixando as palavras morrerem noar quando o nome de Lucas passa por seuslábios.

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— E minha ajuda, não se esqueça, a ruivinhadisse isso claramente— Jack fala, apontandoo dedo indicador para David, que apenas lheolha de relance.— Vocês devem estar com fome, vou ver oque posso fazer — Amélia diz, indo emdireção a cozinha.— Venha me ajudar, Angélica.Alguns minutos depois estamos sentados amesa com um prato de pão torrado commanteiga e um copo de um suco que pormais que tente, não consigo distinguir osabor. Comemos tudo.Já está escurecendo lá fora, a aldeia pareceainda mais sombria agora, o vento faz barul-hos estranhos quando sopra por entre os gal-hos secos das árvores, a poeira brinca nasjanelas e o clima começa a mudar. O calor in-suportável de mais cedo já não existe, agoraestá começando a esfriar, cada vez mais.Damião acende um pouco de madeira na

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pequena lareira improvisada no meio dasala.— O que pretendem fazer?— ele pergunta sesentando em frente ao fogo.Com um suspiro David responde.— Ainda não sei. Acho que ainda temos avantagem de não saberem que estamos aqui.Então ainda temos algum tempo parapensar.— Se descobrirem que ela está aqui, o quevão fazer?— Angélica pergunta aflita.David apenas balança a cabeça negativa-mente. — Não vamos pensar nisso agora.— Eu não quero ser um estorvo para nin-guém, se for arriscado eu ficar aqui...Ainda não entendo o que se passa de ver-dade, não sei com o que estamos lidando,mas não quero por a vida de ninguém emperigo, muito menos a família de David.— Não diga bobagens querida, você é maisque bem-vinda aqui — Amélia diz me ol-hando carinhosamente, como se eu fosse

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alguém querido para ela e não uma meradesconhecida. Nunca conheci nenhum par-ente de Davi, e nunca parei para pensarsobre isso antes, mas agora, não poderiaimaginar pessoas diferentes.— Vamos ficar bem – David diz olhando emminha direção com um sorriso carinhoso.— Vocês ainda têm mantido contados comalguns dos rebeldes?— ele pergunta para aseu pai.— Não, ninguém mais fala sobre isso poraqui, o medo é maior que a vontade de lutar.— As coisas vão mudar por aqui então —David resmunga para si mesmo.— Ok, chega disso por hoje, tiveram umalonga viagem até aqui, já está tarde e vocêsdevem estar cansados. Vou arrumar as coisaspara dormirmos — Amélia diz abrindo umarmário de madeira e pegando algumascobertas.— Vou ficar aqui essa noite também — Jackdiz entediado.

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As pessoas da sala olham em sua direção.— O quê?— ele pergunta com uma expressãoinocente. — Por que não vai para sua casa?—David pergunta. — Quero ajudar, só isso.— Não tem que ficar aqui Jack, obrigado pelaajuda até agora— David diz como se o casotivesse sido encerrado.— Pode ficar Jack, mas tem que se compor-tar dessa vez— Amélia diz levantando o dedoindicador em sua direção.— Pode deixar— ele diz sorrindo mal-dosamente para David.— Toma! — Escuto Jack sussurrar as sílabasolhando diretamente para David, enquantosorri largamente.— Você pode dormir com Angélica— Améliadiz me olhando.Angélica sorri para mim, estendendo a mãodireita, eu seguro em sua mão e juntas va-mos para o final da sala onde uma cortinacomprida está retraída.

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Angélica a puxa formando uma parede de te-cido que nos separa dos outros.— Mulheres precisam de privacidade.Eu concordo sorrindo, apesar de privacidadeser uma das últimas coisas em minha mente.Arrumamos cobertores no chão, nosaconchegando em meio aos livros amontoa-dos. Coloco uma das camisolas velhas,porém muito confortáveis de angélica e medeito ao seu lado.— Quantos livros! — digo empurrando al-guns deles para o canto.— Eu gosto de ler, faz o tempo passar— eladiz os arrumando mais para longe de mim.— Eu também gosto de ler, é o que mais faço,fazia onde morava.— Sério?— ela pergunta sorrindo.— Sim, não há nada melhor para mim, maseu lia mais histórias do que livros científicos,como esses seus parecem ser.

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— Eu leio de tudo, mas gosto de saber sobrenossa raça, esses livros falam sobre nossasorigens.Aceno com a cabeça tentando sorrir em suadireção. Angélica seria aquele tipo de garotanerd se morasse na Terra, acho que teriagostado dela se a tivesse conhecido por lá.— Como está indo com as coisas?-ela per-gunta se virando para me olhar.— Indo... Foi difícil no começo e ainda é, masacho que estou conseguindo — digo sem ol-har para ela.— Esse lugar não costumava ser assim antes,você teria gostado daqui, tinha muitasárvores frutíferas e os campos eram repletosde flores, de todas as cores imagináveis. Aspessoas eram gentis umas com as outrastambém.— Sinto muito.Ela apenas dá de ombros.— Como foi no dia em que o feitiço destruiuas coisas por aqui?

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Ela pensa um pouco antes de responder, equando fala seus olhos ficam presos nohorizonte.— Não me lembro muito bem, eu tinha apen-as 14 anos, estava chegando em casa quandoo céu começou a pegar fogo, tudo muito ver-melho, é do que mais me lembro. A magia foicaindo sobre nós, matando tudo, destruindotodas as coisas... Foi terrível.— Sinto muito de novo, não sei o que dizer.— Não sinta, não foi sua culpa!— ela diz coma ameaça de um leve sorriso no canto doslábios.— Angélica?— pergunto me virando paraolhá-la mais de perto.— Sim?— ela responde com seus olhos vidra-dos em mim.— Porque todo mundo olha feio quando Jackestá por perto?Ela sorri uma vez antes de responder.— Jack pode parecer um menino, mas elenão é. Ele usa essa aparência inocente para

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trapacear em tudo que ele possa, já perdi aconta de quantas vezes o vi roubando namercearia, muita gente por aqui sabe que elenão é confiável, ele não tem um pingo deeducação, e sempre é grosso comigo.— Isso não me parece ser algo terrível — digosorrindo.— Melane, porque alguém escolheria ficarcriança para o resto da vida?— ela perguntame encarando.— Eu não sei, talvez porque a vida seja maisfácil quando você é uma criança. Você vê ascoisas de outra maneira— digo dando deombros.— Exatamente, facilidades, é o que Jackprocura.Aceno com a cabeça, mesmo tendo nopensamento que meus dias de criança foramos melhores de minha vida, não pensariaduas vezes se pudesse voltar a ter 10 anos deidade.

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— Você está com medo?— ela pergunta unsminutos depois.Medo? É algo que eu tenho sentido muitonesses últimos dias, entretanto não acho queesteja com medo. Passei por tantas coisasque de certa forma me sinto forte.— Não — é apenas isso que respondo.— É por isso que você é quem é. E é por issoque nós seremos salvos.

Capítulo 6 Komodo

Algumas horas se passam e eu ainda estouacordada, estou exausta, mas o sono nãovem. Essa hora é a pior, à noite, quando es-tou sozinha, tem sido as horas mais difíceis,quando tudo começa a martelar novamenteem minha cabeça, repetidamente. É quandotodas as preocupações surgem, me lem-brando de que elas estão ali e que não irãoembora tão cedo.

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Penso em meu avô, sendo o culpado de todoesse caos, de todo o sofrimento. Me Lembrode minha avó Mary, na verdade, tento nãopensar muito nela, não me ajuda muito fazerisso, então mando o pensamento para longesempre que posso.

Fico revivendo os acontecimentos, comotudo isso é possível, e como essas coisas sãoreais. Até então tenho vivido aventuras apen-as pelas páginas dos livros que pego na bibli-oteca da escola, mas agora estou vivendominha própria história, e isso é totalmentediferente do que nos livros. Penso em minhaamiga Caroline e como ela está. O que todosdevem estar pensando? Minha avó e eu desa-parecidas, será que já nos deram comomortas?

Será que Caroline sente minha falta? Tifanycertamente está feliz.Será que mais alguém, além de Caroline,sentiu nossa falta? Talvez nada tenha

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acontecido afinal, talvez os dias nesse mundopassem de forma diferente do que na Terra,como em ―As Crônicas de Nárnia?, e seNinho de Fogo também for dessa forma?Essa é uma pergunta que não posso me es-quecer de fazer amanhã para alguém.Escuto um som abafado, como de pés de-scalços sobre o chão de madeira. Abro umapequena fresta de cortinha e vejo Jack an-dando na ponta dos pés.O que ele vai fazer? Roubar alguma coisa?Ou então fugir no meio da noite para contara guarda real onde estou escondida.Uma sensação de medo toma conta de mim,talvez ele realmente seja uma pessoa nãoconfiável, devo ter sido enganada por suaface doce de criança.Observo mais um momento, esperando elesair pela porta para poder acordar David elhe contar o que sei.Ele continua silencioso, desvia da porta echega até um armário na cozinha. Jack se

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abaixa abrindo a portinha, pegando umpequeno embrulho de sobras do jantar, en-tão se senta com as pernas cruzadas no chãoe come rapidamente, voltando nas pontasdos pés para sua cama improvisada.Abafo minha risada com uma das mãos. Eunão acho que ele seja assim tão terrívelquanto às pessoas pensam.Pra mim, é só um menino com muitos anosde vida. Acordo cedo com Angélica setrocando ao meu lado. — Bom dia, princesa.— Não me chame de princesa. Melane, esse émeu nome. — Como quiser — ela respondesorrindo.— Angélica, como vocês fazem para tomarbanho por aqui?Na verdade, não me importo muito com isso,mas faz muito tempo desde a última vez quetomei banho, na casa de Verônica.Ela torce o nariz uma vez antes de responder.— Usamos o lago aqui perto, a água é escura,mas é a única opção que temos.

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— Eu só preciso de um pouco de água.— Tudo bem, levo você até lá depois.Aceno com a cabeça.Troco-me e retraio a cortina.David e os outros já estão à mesa tomandocafé, ele sorri quando me vê.— Pensei muito essa noite— ele diz com oslábios na xícara de café.— Tem uma coisa que eu tinha me esque-cido... A vorpal! — ele diz com um sorrisomalicioso nos lábios.Todos na mesa levantam seus olhos para ele.— Você sabe que ela não funciona mais. Ofeitiço só funcionava com Samuel – Damiãoé quem diz.— Talvez funcione com Melane também. Elasaberá que ela é filha dele, ela a recon-hecerá— David diz parecendo vidrado.— Mesmo se isso for verdade, como irá pegá-la? Está guardada a sete chaves dentro docastelo. É impossível — Damião retruca.

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— O que é uma vorpal?— pergunto já agoni-ada de não estar entendendo nada.Todos na mesa me olham, como se eu fosseuma idiota por estar fazendo essa pergunta.— É a espada de seu pai— Jack diz, enquantocoloca um pedaço de pão na boca sem se im-portar com a manteiga que escorre por seuqueixo.— Ela é mágica, sua mãe a enfeitiçou. A es-pada tem vida própria, ela escolhe quem airá usar, ninguém conseguiu empunhá-la de-pois que seu pai faleceu, a espada está ad-ormecida, ninguém nem ao menos conseguelevantá-la. E continuará adormecida, apenasesperando para ser despertada— Angélica dizcom olhos brilhantes de fascínio.David a olha boquiaberto.— O quê? Eu tenho pesquisado muito sobreessas coisas — ela diz na defensiva.— Ela foi feita unicamente para proteger seupai em batalha, sua mãe a enfeitiçou comamor, por isso ela tem o maior dos poderes.

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Seu pai nunca perdeu uma luta com ela —David diz me olhando.— Ficaríamos muito mais fortes com a vorpalem suas mãos, Melane— Davi diz mais parasi mesmo do que para mim.— Não importa. É impossível chegar até ela— Damião diz mais uma vez.— Talvez não seja impossível — Jack diz comum sorriso malicioso nos lábios.

— Sem chances — David diz pela milésimavez— Não vou deixar você aos cuidadosdesse moleque. Esqueça, Jack, pensarei emoutro plano.

Jack conta sobre um plano que acabara deter, mas David, é claro, não concorda comabsolutamente nada do que surge, segundo

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ele, de sua mente insana e imatura decriança.

Ele disse que muitas pessoas do castelo de-vem favores a ele.— Não sabe quantos favores pode descolarem uma partida de pôquer bem jogada, meufilho — foi o que ele disse.Jack acha que pode me colocar dentro docastelo. Um dragão pequeno e negro comoele, poderia se esconder facilmente entre asnuvens à noite e se infiltrar dentro dastorres.Uma vez lá dentro, ele dependeria dalealdade das pessoas que devem a ele paranão nos capturar.Claro, ele não iria dizer que eu estaria lá tam-bém. Seu plano era dizer que sempre tevecuriosidade de ver a vorpal com seuspróprios olhos. Um garoto curioso. Ninguémiria desconfiar, pois é impossível de levantara espada, de qualquer forma.

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Depois de estar dentro do quarto, onde a es-pada é guardada, ele abriria a janela, e eu es-taria do lado de fora, sentada num galho deárvore que ele deveria me colocar antes deentrar no castelo.Eu pegaria a espada e a despertaria. Subirianovamente em suas costas e nós iríamos fu-gir de lá sãos e salvos, simples assim.— As coisas não são simples, Jack. Você estácontando com a honra de pessoas desonra-das, se eles não cumprirem com suas dividasde pôquer, você poderia ir preso por invadiro castelo, poderia até morrer e Melane ficariapresa em um galho de árvore no meio danoite, sozinha, onde seria descoberta logopela manhã, e morta. Fim de papo.— Confie em mim cara, dividas de pôquersão sagradas. Nada mais é tão honrado.— Por que você está tão interessado emajudar afinal?— David pergunta a Jack.— Por que... — ele diz dando uma pausapensando um pouco antes de responder. —

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Acho que esse mundo merece algo melhor,algo melhor do que esse rei de bosta quetemos e essas terras podres sem vida.— Porque essa espada é tão importante?—pergunto.— Ela tem um poder único, ela te guiaria.Com ela, você nunca estaria sozinha. Elapode lutar por si só, tudo que precisa fazer éempunhá-la, Mel. Nossas chances se multi-plicariam. Depois de reunirmos os rebeldes,nossas chances de convencê-los a lutar pornós seriam bem maiores.É isso, precisamos da espada, mas David ja-mais irá concordar.— Esqueçam — ele diz mais uma vez. — Nãoirei arriscar Melane dessa forma, pensareiem outra coisa.E assim ele encerra a conversa.Um tempo depois coloco minha capa e vouandar pela aldeia com Angélica, ela precisa ircomprar pão.

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— Como vamos comprar pão se tudo aqui es-tá morto? Como eles conseguem os ingredi-entes? Até onde vi, toda terra está seca— per-gunto logo que saímos de casa.— Algumas pessoas têm favores pendentescom alguns tipos de criaturas, magia ajudana maioria das vezes. Alguns têm pequenosjardins em seus quintas, mas eles não durammuito tempo, depois precisam fazer um novofeitiço para que as coisas voltem a crescer.— Que tipos de criaturas?— Todos os tipos — ela diz levantando osombros. — Elfos, fadas, duendes, alguns atéconseguiram ajuda de bruxas. Qualquer tipode coisa que tenha magia.Nem perco tempo perguntando se esse tipode coisa existe mesmo, depois do que vi,acredito em tudo que me disserem. É isso, étudo verdade, todas as criaturas dos livrossão reais. Engraçado, eu sempre quis queelas fossem mesmo, acho que toda garotaque adora livros como eu, imagina isso um

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dia, mas agora, vivendo no meio disso tudo,não sei o que pensar.As ruas nas mesmas condições de ontem. Arseco e quente penetrando nossos pulmõescom terra vermelha, enquanto faz meus ol-hos arderem com a fumaça que parece estarimpregnada pelas ruas.O olhar nos rostos das pessoas é deprimente,me sinto fraca apenas por estar aqui tãoperto dessas pessoas sem saber o que fazerpara ajudá-las.Fico pensando sozinha, enquanto camin-hamos caladas uma ao lado da outra.Como um rei joga uma praga em suas própri-as terras? E deixa seu próprio povo morrerde fome dessa forma?Alguém assim não deveria governar.— Ariel sempre foi cruel assim?— pergunto aAngélica, desviando o olhar em sua direção.— Não. Antes ele costumava ser bom, aspessoas gostavam dele. Num certo dia, ele

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acordou mudado, ou talvez ele sempre tenhasido e nunca tenha demonstrado.Algumas pessoas dizem que ele enlouqueceu.Dizem que ninguém pode governar por tantotempo assim, não faz bem para cabeça.— As pessoas gostavam de meu pai?— Sim. Ele era um homem bom. Ele cos-tumava me dar flores quando me encon-trava— Angélica diz sorrindo com o olhardistante. — Eu era apenas uma garotinha,mas eu me lembro. Era um homem muitohonrado, todos aqui eram a favor de seureinado.Andamos poucos quarteirões quando Jacknos alcança.— O que foi Jack?— Angélica pergunta oencarando.— Nada, só vim dar uma volta, não aguentomais olhar para cara de David, aquele caraprecisa relaxar um pouco, cruzes.Reviro os olhos, mas para mim mesma doque para alguém em especial.

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Sei que David pode ser meio ―velho? àsvezes e que na maioria fica com a cara demau, mas ele é uma das melhores pessoasque conheço no mundo, sei que tudo que fazé para me proteger.Continuamos andando, percebo os olhinhospretos de Jack grudados em mim e o olho le-vantando uma de minhas sobrancelhas.— Você até que é bonita— ele diz levantandoos ombros Dou risada.— Obrigada!Apenas alguns passos mais e avisto a garotado outro dia, Rachel, caminhando sozinhapelas ruas de terra.— Rachel?— pergunto indo em sua direção.Ela sorri quando me vê.— Olá.— Você está bem?— Consegui um emprego assando pães. Nãoganho quase nada, mas é alguma coisa.

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Fico feliz por ela e ao mesmo tempo, aliviadade saber que tem como se sustentar de al-guma forma.— Como vai sua mãe?— pergunto preocu-pada sobre a mãe doente que ela mencionouno outro dia, quando a ajudei.— Ainda doente. Minha irmã cuida dela en-quanto trabalho — diz com um encolher deombros.— Vou torcer por ela— Angélica diz sorrindoolhando para Rachel.— Obrigada!— Se tiver algo que possamos fazer por você,não deixe de avisar, está bem?— ela sorripara mim enquanto acena com a cabeça.Não sei por que, mais sinto que preciso cuid-ar dessa garota, ela aprece tão frágil esolitária, tendo uma família para cuidar.Nunca precisei fazer algo parecido em minhavida, nem sei se seria capaz de tal coisa, as-sim como Rachel é capaz.

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— É aqui que você trabalha?– Angélica per-gunta, assim que chegamos em frente a umacasinha pintada com tinta azul clara, já gastapelo tempo.— Sim, é aqui — Rachel diz enquanto entrapor uma porta pequena e reaparece abrindouma janela.— Estávamos indo comprar pão mesmo, vouquerer dez, por favor — Angélica estende al-gumas moedas e uma nota, onde posso veralgum tipo de símbolo real parecido com umbrasão contendo o numero referente à nota eescrito ―Brasas? logo abaixo.— Brasas — leio em voz alta.— É assim que chamamos nosso dinheiro poraqui — Rachel fala o pegando da mão deAngélica.— Oh, desculpe, com esse dinheiro você podelevar apenas seis — ela diz com um olhartriste.— Seis? Mas ontem mesmo estive aqui e opreço estava como o de sempre.

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— Sinto muito, foram as ordens que me pas-saram antes de voltar para casa ontem, comdez brasas você pode levar apenas seis pães.Eu sinto mesmo, não posso fazer nada e senão obedecer, posso ser demitida.Angélica acena com a cabeça, sem dizernada.— Vocês estão ficando loucos, isso é um ab-surdo, onde já se viu uma coisa dessas?Como que mudam o preço de um dia para ooutro. E nós, consumidores, somos o que en-tão? Cadê o dono dessa joça, em?—Jack per-gunta aos gritos.— Jack pare com isso — digo olhando bemem seus olhos.— Larga de ser boba, Melane, eu só saio da-qui com dez pães, hora essa, onde já se viu,isso é roubo.Nesse instante, um homem aparentementemuito alto sai pela porta, onde Racheltrabalha.

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— O que está acontecendo aqui?— seus olhospercorrem o local e param sobre Jack.— É você, outra vez causando problemaspara mim.— Mas é claro, essa bosta de lugar só está as-sim porque ninguém se ajuda, o que pre-tende aumentando os preços dessa forma?— Vá embora, é a última vez que lhe aviso,da próxima não será assim.— Você acha que tenho medo de um velhogordo igual você, cai dentro babaca.— Jack, cale-se, vamos embora— Angélicadiz.— Não saio daqui sem meus dez pães — elebate o pé no chão, feito uma criançamimada.O homem tira os fios castanhos de cabelodos olhos e se aproxima lentamente de Jack.Coloco-me em sua frente, antes que elechegue perto demais.— Ele é só uma criança— digo sem tirar osolhos dele.

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— Não, ele não é, e já me tirou do sério, nãosabe quantas vezes ele me causou problemasessa semana, já chega, saia da frente,mocinha.— Não será necessário, nós estamos indoembora.O homem me encara por um segundo.— Não o quero perto de meu estabeleci-mento outra vez, fui claro?— Sim— digo acenando.Ele se vira para entrar novamente na casa,quando um pedaço de pedra o acerta bem nomeio das costas.— Claro uma ova, seu otário — apenas escutoa voz fina de Jack atrás de mim, antes queele saia correndo por entre as pessoas, esbar-rando na maioria enquanto foge.Angélica fica tensa ao meu lado, enquanto ohomem alto nos olha furiosamente.— O dinheiro fica comigo, e vocês sumamdaqui.

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Angélica faz que sim com a cabeça antes deme puxar pelo braço, me levando emboradali.— Eu ainda não acredito nisso, perdemos dezBrasas e não compramos comida nenhuma,o que Jack pensa que está fazendo?–—Angélica diz pela milésima vez, sentadanuma das cadeiras a mesa.— Eu não suporto esse garoto — David dizcom o olhar distante.— Ele só está revoltado por essa situação, acabeça dele é diferente da nossa, é como setivesse apenas onze anos de idade— Améliadiz o defendendo.A porta se abre e Jack entra por ela, como senada tivesse acontecido.— No que você estava pensando?— Angélicapergunta quase gritando.— Fazendo justiça, ué. Se você não se im-porta de ser enganada, eu me importo.— O dinheiro não era seu para se importar!— Eu ajudo os indefesos, sua ingrata.

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— Ingrata, me fez perder o dinheiro.Não quero mais ouvir a discussão, aindamais agora que David entrou no meiodizendo que Jack deve para de se meter evoltar para sua vida.Vou para meu colchão improvisado, ondepenso por um bom tempo, tentando ignoraros gritos.Todas essas pessoas, tenho que fazer algumacoisa. Nada irá adiantar ficar parada, esper-ando as coisas acontecerem para mim.David disse que essa espada iria garantir queos rebeldes se juntariam a nós para poder-mos derrotar o rei, meu avô Ariel.Não gosto da ideia de lutar com meu próprioavô, mas que outra saída eu tenho?É isso que meu pai iria querer, ele iria quererque seu povo fosse feliz, que fossem livres.Apostas no meio da aldeia, crianças pas-sando fome, árvores secas para todo lado,não é esse o mundo que ele iria querer. De-pois de um tempo, quando ninguém mais

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está discutindo, vou até a cozinha ondeDavid está sentado parecendo muito con-centrado, enquanto conversa com Damião.— Vou pegar aquela espada— digo, pondofim nessa discussão.— O quê?— ele me olha confuso.— Vou pegar essa espada— digo firmemente,sem piscar, e fazendo meu melhor para pare-cer decidida.— Você não sabe o que está falando. Jack éum irresponsável, não coloque fé em nadaque ele fala — Davi diz levantando os braçospara o alto, e aumentando o tom de voz.— Eu não me importo, David. Não vou ficaraqui parada.— Mel, você não vai e pronto — ele diz vir-ando de costas para mim, indo em direção aporta.— A decisão não é sua. Eu vou, David, comou sem sua permissão — minha voz não soatão decidida quanto antes, mas não tiro osolhos de onde ele está.

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Ele se vira me olhando magoado.— Eu não tenho escolha. E já me decidi—olho diretamente em seus olhos, não gostoda forma como me olha agora, mas nãotenho outra saída.E realmente não tenho, se arriscar minhavida para pegar essa espada é tudo que possofazer no momento, então é isso que farei.Alguém precisa tomar uma atitude, algo pre-cisa ser feito e tem que ser agora.

David não está gostando nada do queacontece, sua cara feia continua durante todoo caminho até uma colina perto da casa deDamião.

Sei que ele só está preocupado, mas tenhoque fazer isso.

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Eu me recuso ser a garota que precisa sersalva o tempo todo. Fiz uma promessa, euserei forte e eu lutarei, é isso.O plano de Jack irá dar certo, tem que dar, eeu terei essa tal espada mágica comigo logo.— Virem-se— Jack diz com a mão segurandoa barra da calça.— Ah, por favor, me poupe— David diz sevirando com uma expressão que não sei dis-tinguir entre raiva e deboche.Viro-me também, e em poucos segundos es-cuto a explosão abafada atrás de mim.O pequeno dragão negro de asas esbran-quiçadas está parado a minha frente.David ainda tem a carranca no rosto, e o ol-har preocupado. — Não se preocupe, eu vouvoltar logo.Ele me puxa para um abraço apertado, sintosua respiração pesada e quente em meupescoço.— Ficarei esperando aqui.

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David amarra as roupas de Jack em suaspernas.— para quando voltar a ser menino — dizcom um levantar de ombros.Ele me levanta pela cintura, me ajudando asubir nas costas de Jack.— Te vejo depois.Dou-lhe mais um sorriso antes de levantar-mos voo e desaparecermos no céu.Tudo está muito escuro, quase não posso verestrelas por aqui. A noite é gelada e o ventobate em meu rosto, como rajadas de gelo mepenetrando até os ossos.Afundo-me mais em Jack, tentando me pro-teger do vento, mas parece não adiantar,mesmo com sua pele quente por baixo demim, o frio é tão forte que chega a doer.Aguente firme, é o que penso.Ficamos no ar por um bom tempo, o dragãoa baixo de mim é tão escuro que eu malposso vê-lo dentro da negritude da noite.

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Tudo é muito escuro, não há luzes por aqui.Só depois de muito tempo é que posso av-istar um grande castelo brilhando levementecom a luz do fogo que queima em grandestochas a nossa frente. Elas estão enfileiradas,bem na entrada, mas ainda é difícil enxergardaqui do alto.O castelo parece ser feito de algum tipo derocha, é escuro, daqui é como se fosse cinza,mas não tenho como dizer ao certo.Jack diminui a velocidade de seu voo, con-tornando o castelo lentamente por entre océu.Não consigo ver lá em baixo, não sei se hápessoas por lá.Jack é tão escuro que somos praticamenteinvisíveis, se não fosse pelo pouco reflexo desuas asas esbranquiçadas, ninguém poderiadizer que estamos aqui. Ele voa mais umpouco, parando perto de uma árvore, perto osuficiente para que eu possa descer e me se-gurar em um galho grosso. Quase escorrego

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no processo, nunca fui uma garota que brin-cava de subir em árvores, ler sempre foi maisatrativo para mim. Por sorte, consigo me se-gurar, então me sento, colocando as pernasuma de cada lado do galho e o seguro firme.Jack olha para mim mais uma vez, antes desair voando novamente. Eu o observo e ovejo sumir por entre a noite.As árvores são saudáveis aqui, verdes e fres-cas, o cheiro de rosas enche meu nariz, quaseme embriagando.Tento me esconder por entre as folhas comoposso, não tenho como dizer com clareza,pois ainda está escuro, mas devo estar hámais de vinte metros do chão agora, entãome concentro em não cair, apertando umpouco mais minhas mãos no galho.Há uma grande janela alguns poucos centí-metros de minha árvore, eu posso ver luzesbrilhando de dentro.O chão abaixo de mim é fresco, grama verdee úmida, o ar aqui não é seco e não há poeira.

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É assim que esse lugar devia ser antes, écomo deveria ser hoje.Passo uns bons minutos tentando escutaralgo de dentro da janela, mas nada acontece.A ansiedade começa a tomar conta de mimaos poucos, mil coisas começam a passar porentre minha mente. Será que Jack con-seguiu? E se ele foi pego?Balanço a cabeça pros lados, tentando elim-inar os pensamentos e me obrigo a ficarneutra, apenas observando a janela, tent-ando novamente escutar algo de dentro. Fi-car nervosa não é a resposta.Já estou mais do que preocupada, quandoescuto um click e a janela se abre.O menino de cabelos dourados, agora umtanto quanto ofegante, me procura com osolhos negros por entre as folhas.— Melane?— ele sussurra.Apareço próxima a janela, ele me estende amão, me ajudando a entrar silenciosamente.

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— Eu disse, dividas de pôquer são sagradas— ele sussurra, sorrindo triunfantemente.É inevitável, eu sorrio de volta. Seu rosto decriança feliz é algo adorável de se ver. Dessavez ele apenas sorri, sem maldade ou malí-cia, como o sorriso de uma criança deve ser.— Rápido, vamos depressa— ele diz.Olho ao meu redor, paredes douradas bril-hantes, quadros enormes com desenhos depessoas desconhecidas enchem as paredes.Cortinhas vermelhas e felpudas emolduramas janelas de ouro e cristal.Um tapete azul marinho feito de veludo aca-ricia meus pés sujos, candelabros cintilantesbrilham a cima de nós, nunca havia visto umlugar tão luxuoso e bonito assim em minhavida.Passo a mão sobre a cortina macia,afundando os dedos no tecido vermelho.O lugar tem um cheiro bom, floral, provavel-mente pelas lindas flores espalhadas pelasala em jarras de cristal delicadas. Posso ver

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um vaso grande, encostado a parede, cheiode rosas vermelhas e apenas uma única rosabranca no centro, explicando o cheiro em-briagante que senti na árvore.Vejo meu pai em um quadro grande bem nomeio da sala. Ele está usando uma armaduraprateada, segurando um capacete com umafaixa de cabelos arrepiados no centro, umsorriso triunfante estampado no rosto. Eleparece feliz. Há um homem parado ao seulado na pintura. Eles são parecidos, o outro,no entanto é mais velho, alguns poucos fiosde cabelos brancos saem por entre seus ca-belos ruivos, seus olhos verdes parecem mepenetrar até a alma, enquanto observo a pin-tura feita a mão.— Conheça seu avó, princesa— Jack diz sus-surrando para mim.É claro que é ele. É bonito, e não tem aaparência de um velho avô, como eu tinhaimaginado. Claro, se você pode parar de en-velhecer, por que razão iria fazê-lo? Ele não

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parece um garoto jovem também, deve estarna faixa dos quarenta e cinco anos. Imaginoque deva ser parte do respeito, talvez um reicom aparência muito jovem não deva ser tãorespeitado como um mais velho.Não sei ao certo porque, mas um sorriso seforma em meus lábios, talvez por pensar emtudo que poderíamos ser se ele não tivesse setornado essa criatura odiosa e mesquinhaque matou meus pais e está acabando comesse mundo. Tudo poderia ser diferente.Ignoro meus pensamentos, pois sonhar, ima-ginando como poderia ter sido, não mudaránada. Volto minha atenção para o cômodo.A minha frente uma mesa prateada rodeadade diamantes, uma almofada macia em cima,aconchegando a maior espada que já vi, naverdade, é a única espada que vi na vida, merefiro às espadas que já vi em livros ou emfilmes, ou então... Ah não importa.

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É uma espada enorme, deve ter quase meutamanho, prateada e afiada, com um rubivermelho sangue esculpido em seu punhal.Ela é linda, e ao mesmo tempo parece mor-tal, para alguém que saiba como usá-la, éclaro.Aproximo-me para olhar mais de perto, orubi reflete, um pequeno brilho percorre seucomprimento assim que boto meus olhossobre ele. Por um instante, enquantomantenho meus olhos presos nele, é quasecomo se o vermelho fosse realmente feito desangue, parece estar liquido ai dentro, semovimentando lentamente.Ela parece me chamar.Não resisto e a toco levemente com o dedocontornando seu punhal.Uma sensação de dormência percorre meudedo, para depois uma corrente elétricapulsar dentro de mim. Uma sensação deaconchego, ela me reconhece, gosta de mim.

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Não sei como explicar, eu posso ouvi-la den-tro de minha mente, não com palavras, mascom sensações.Ela sabe quem eu sou e confia em mim.— Komodo.— O quê?— Jack pergunta confuso.— É o nome dele — digo sem tirar os olhosda espada.— Como você sabe?— ele pergunta, os olhosbrilhando agora.— Ele me disse! — digo sorrindo.Não me pergunte como, eu apenas sei, comose um sussurro surdo tivesse sido sopradoem meus ouvidos, um sussurro, como se eumesma tivesse pensando as palavras, masnão sou eu quem está fazendo isso. Não háexplicação lógica, assim como para tudo queanda acontecendo, sinto-me conectada a es-pada de uma forma tão plena e solida que édifícil traduzir em palavras.Eu entendo a espada, é como se ela fizesseparte de mim, como se sempre tivesse feito.

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— Beleza, funcionou. Vamos cair fora daqui— ele diz revirando os olhos, se apressandopela janela. — Anda, pega esse negócio evamos.Jack pula pela janela, explodindo novamenteno pequeno dragão negro, despedaçandosuas roupas pelo ar no processo.Estendo minha mão confiante, a espadaparece ser muito grande para alguém do meutamanho conseguir segurá-la, mas eu nãotenho medo, sei que está tudo bem. Ela mepertence agora.Lentamente eu a empunho com a mãodireita, leve como uma pluma.Sorrindo, corro até a janela onde Jack me es-pera. Subo em suas costas, então nós mer-gulhamos no céu novamente, parecendoquase invisíveis por entre a escuridão quenos cerca.Começo a sorrir freneticamente em suas cos-tas. Sinto a energia de Komodo por todo meucorpo, ele está completo comigo agora, como

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se estivesse esperando por isso há muitotempo.O frio do vento já não me incomoda mais, naverdade, nem me importo, estou feliz demaispara me importar. Sinto-me como se tivesseencontrado um velho amigo, um bom velhoamigo.Voamos de volta rapidamente, o trajetoparece bem menor agora, do que foi parachegarmos até o castelo. Posso sentir a res-piração ofegando de Jack, foi uma viagemmuito longa, sei que ele deve estar cansado.Avisto David sentado na colinha a nossafrente, quase um pontinho perdido em meioàs árvores secas que o rodeiam. Ele fica de pésorrindo quando nos vê chegando.Levanto Komodo o mais alto que posso paraque ele veja que conseguimos.A espada consegue brilhar forte, mesmoagora no meio da noite, vejo seu sorriso sealargar cada vez mais.

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Jack faz uma aterrissagem conturbada, porpouco não caio de suas costas, me seguro emseu pescoço no último minuto.David já está ao meu lado me ajudando adescer.— Vocês conseguiram. Não posso acreditarque conseguiram — diz entre as risadas, mepuxando para um abraço apertado.Jack volta a sua forma humana, sem se im-portar por estar nu.— Essa coisa pesa quinhentos quilos — eleestá sem fôlego.David tira seu casado, o jogando para Jack,que o pega no ar.— Parece leve como o vento para mim —digo, levantando a espada acima de minhacabeça.— Como foi? Deu tudo certo?— Exatamente como o combinado. Como eudisse que seria— Jack fala, enquanto dobraas mangas do casaco enorme que vai até seusjoelhos.

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— David, isso é incrível, a espada, eu possosentir ela dentro de mim, ela até fala comigo.— Eu sei, eu me lembro bem dela, já vi seupai a usando muitas vezes — seus olhos estãopresos em Komodo.— Se chama Komodo, eu soube no momentoem que o peguei nas mãos, ele gosta de mim— eu sorrio.— Komodo... Faz tempo que não escuto essenome.— Pessoal, vamos embora daqui, está frio, eeu estou morto. Lembram-se, criançapequena, voando, ida e volta até o castelo,com uma garota nada leve e uma espada es-magadora nas costas — Jack diz levantandoas mãos para o alto.Voltamos para casa de Amélia com Komodoenrolado numa manta.Todos ficam fascinados por termosconseguido.— Quem diria que ela iria mesmo funcion-ar— Damião fala sorrindo.

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— Posso segurá-la?— ele pergunta eufórico.— Hm, não sei, acho que não é uma boaideia— digo a ele.— Não, vai lá, deixe ele tentar.Você con-segue—Jack diz sorrindo.— Tem certeza?— pergunto a Damião.Ele acena com a cabeça, ansioso.Coloco Komodo sobre a mesa de madeira dacozinha. Damião se endireita, estufa o peito,fecha as mãos na bainha de Komodo e tentalevantá-lo.Ele faz força, seu rosto fica vermelho e elesolta uma baforada de ar violenta com oesforço.— Esse negócio pesa mais do que qualquercoisa que eu já vi na vida— ele diz sem ar, de-sistindo de levantar a espada.Todos na sala dão risadas, mas Jack em es-pecial parece estar tendo um ataque de tantoque rir.— Quase morri para trazer Melane com issonas costas, acho que só não me esmagou,

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pois ela o estava segurando, deve ter dosadoo peso, ou algo assim— Jack diz aindagargalhando.— Engraçado— digo, pegando Komodo coma mão direita sem um pingo de esforço. —Tão pesado como uma agulha para mim.Todos me olham sorrindo.— E agora?— pergunto eufórica.— Agora... Temos que reunir todos os re-beldes. O pessoal do castelo saberá que vocêestá de volta, quem mais poderia levantar aespada? Eles sabem — David diz meencarando.Me deito com Komodo ao meu lado, aindaenrolado na manta. Me sinto segura com elepor perto, sim eu continuo dizendo ele, poisa espada é macho, é estranho de dizer, tantoquanto de explicar, mas ele é. Sinto um pou-co de meu pai dentro de Komodo, como seele de alguma forma estivesse cuidando demim.

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Capítulo 7 Mascarada

Na manhã seguinte, acordo com um barulhoalto que surge do lado de fora. São murmúri-os, as pessoas estão falando, todos sabemque a espada sumiu do castelo.

A espada que não pode ser empunhada dur-ante dezesseis anos está desaparecida, o quesignifica apenas uma coisa. A mestiça voltou.

Angélica entra pela porta eufórica.

— Todo mundo já sabe... Estão todoscomentando — ela diz apressadamente.— Algumas pessoas estão com raiva, achamque você devia ter voltado antes, e não ter es-perando o lugar se despedaçar para entãoaparecer. Outras estão frenéticas, achandoque finalmente seremos salvos — ela con-tinua na mesma euforia. — As coisas vãoficar feias agora, rei Ariel deve mandar suas

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tropas para cá para vasculharem. Ele não vaiparar até encontrá-la.— Temos que escondê-la, ao menos até po-dermos reunir todos— David diz.— Eu tenho uma ideia— Jack diz levantandoo dedo indicador.— Chega de ideias, Jack, noite passada fun-cionou, mas poderia ter sido um desastre—David diz serio.— Não é arriscado. Tenho um plano — Jackdiz novamente.— Então fale — Damião se apressa.— Ela precisa ficar invisível. Aqui, com vo-cês, esse é o primeiro lugar onde iram pro-curar. Ela tem que ficar com alguém descon-hecido, alguém discreto.— Ele tem razão, ela não pode ficar com agente — Damião fala seriamente.

— Eu não vou deixá-la — David diztranquilamente

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balançando a cabeça, como se essa não fosseuma alternativa. — E mais uma coisa, essacabeleira ruiva precisa sumir —Jack diz apontando para minha cabeça.A primeira coisa que surge em minha menteé ter a cabeçaraspada, tintura para cabelo é algo comumem meu mundo, masnão acho que seja tão natural aqui, onde nãohá eletricidade e aspessoas se vestem da mesma forma que osfigurantes dos filmessobre a Távola Redonda.Sei que sempre reclamo de meu cabelo ba-gunçado edescontrolado, porém, a ideia de ficar semmeus cachos não meagrada, mas estou disposta a raspá-los agora,caso seja necessário. — Não se preocupem,eu sei o que fazer. Esperem pormim aqui, eu voltarei logo — o garotinho saipela porta saltitando

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e sorrindo.— Eu odeio esse cara— David diz, o olhandosair pelaporta.— Jack tem seus defeitos e pode ser tra-paceiro às vezes,mas ele ama esse lugar e está disposto a fazertudo para salvá-lo— Amélia diz calmamente. — Ele teve umavida difícil— elacompleta.— Sim, claro — David diz sinicamente.— Você não sabe de tudo, querido. Às vezesas pessoasformam uma máscara para tapar o que real-mente são.Fico imaginando sobre o que Amélia estáfalando. Jacktem uma máscara? O que ele esconde?Poucos minutos depois, escuto o mesmo sommelodioso

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que escutei no primeiro dia aqui, são asfênix, outra vez. Olho pela pequena janela dasala e as vejo voando pelocéu, enquanto cantam como se estivessemmarcando território. — Elas estão vindo commais frequência — Damião diz,também olhando pela janela.— O que elas estão esperando?— pergunto.— O último de nossa espécie cair, ou entãolevar osúltimos com sigo, são criaturas odiosas queconstroem suassociedades das cinzas de outras, mas nãoirão atacar sem motivo. Isso me alivia, cenasdesses enormes pássaros atacandoessa aldeia já estavam se formando emminha mente. Se issoacontecesse, não sei se iríamos aguentar, nãoda forma em queesse povo está.

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Depois de quase duas horas, Jack entra pelaporta da sala,trazendo um embrulho de tecido nas mãos.— Demorou — Amélia fala, enquanto ele en-tra. Ele está sorrindo quando puxa o tecido,revelando umapequena jaula de aço com um ser pequeninoe brilhante dentro. — Uma fada! — Angélicacantarola fascinada. — Você aprisionou umafada, seu miserável?— David diznervoso.— Não. Eu joguei por ela. Pôquer é uma dá-diva, meusqueridos — ele diz sorrindo.— Nenhum ser merece ser aprisionado e sermotivo deaposta. Você não sabe com quem está mex-endo, fadas são serem

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vingativos— Davi diz olhando fixamenteparo o pequeno serdentro da jaula.Ela é linda, seus cabelos são de um brancobrilhante,deslizando até sua cintura, seus olhos sãograndes e negros, umapele azulada que reluz mais que fogo, asasprateadas aparecempor entre seus cabelos, asas compridas,quase do seu tamanho,com pontas finas que se curvavam para oslados.Até hoje, tudo que sei sobre fadas se resumea pó de pirimpim pim, e que nunca, mas nunca em suavida você deve dizerque não acredita nelas, pois se fizer isso, umafada irá cair mortinha em um canto domundo. Parece que estou errada sobre o quesei sobre elas, pois o olhar fixo e gélido que a

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pequena fada dá para todos no cômodo, nãome soa nada amigável, é como seela estivesse tentando memorizar o rosto decada um nesse lugar. Ela me dá arrepios.— Sei exatamente com quem estou memetendo. Fadaspodem não ser os seres mais amigáveis domundo e podem servingativas ao extremo, mas são honradas —ele diz levantando ajaula para poder olhar diretamente nos olhosda fada. — Eu não aprendi aqui, não há motivos para rancor. Açoé o único materialcapaz de deter os poderes de uma fada— eleolha para mimagora. — Vamos ver então. Você me concedeum desejo, coisapequena, e eu te liberto, combinado, fad-inha?— Jack dizencarando o pequenino ser.

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Ela apenas acena afirmativamente com acabeça. — Preciso que faça com que os ca-belos ruivos dessa garotamudem de cor, pretos talvez, loiros, eu nãome importo vocêapenas tem que mandar esse ruivo embora.A fada olha em minha direção, volta os olhospara Jack eacena novamente.— Estamos de acordo?— ele pergunta a en-carando. Mais uma vez ela acena.— É uma promessa— ela diz com uma vozbaixa emelodiosa.Com um aceno de cabeça Jack abre apequena porta dajaula, libertando a fada.Colocando a mão do lado de fora, ela se im-pulsiona e saide dentro graciosamente.Suas asas batendo mais rápido do que asasde beija-flor,

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tão rápido que elas parecem não existir, écomo se ela apenasflutuasse no ar, sem a ajuda de nada, comomágica. Ela voa atémim, parando em frente ao meu rosto.— Os fios ruivos irão sumir, cabelos negroscomo a noiteem seu lugar irão surgir...Sua voz ecoa por minha cabeça, comomelodia sendoderretida em meus ouvidos, meus cachoscomeçam a cair deminha cabeça, se dissolvendo em pó antesmesmo de tocar ochão. Fios negros começam a crescer em seulugar, escuros,compridos e lisos, caindo por minhas costas.— O ruivo apenas irá voltar, quando dele aprincesaprecisar...Mais uma vez a melodia de sua doce voz ecoapor minha

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mente, me deixando um tanto quandosonolenta.— Eu não lhe devo mais nada agora— ela dizolhandopara Jack.— E eu muito menos a você— ele diz pis-cando um olho eacenando com a cabeça.Com um pequeno aceno ela sai pela janelasubindo tão altono céu que torna-se impossível de se ver.Passo as mãos receosas em meus lindos e se-dosos cabelosescuros, eles deslizam facilmente por entremeus dedos, algototalmente novo do que antes, quando meusdedos ficavam presosem cachos indomáveis.Eu sorrio.— Fiquei bonita?— Você sempre é bonita, mas eu preferiaantes — David

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diz me avaliando.— Ah! Quem se importa? Você não podemais serreconhecida, querida. É isso — Jack diz, en-quanto me olhaentediado.— Ótimo trabalho, Jack. Isso vai facilitarmuito as coisasDamião diz.— Eu posso tocar?— Angélica pergunta, jácom as mãosacariciando meus fios negros.— Claro. Eles não são macios?— perguntoentre risadas. — E agora? É isso? Não temcomo saberem que sou eu —falo triunfante.— Não tão rápido, eles podem desconfiar, etambém temessa espada enorme com a gente — Améliaaponta para Komodo. Pego a espada e sintosua energia passar por mim. — Ele nãogostou do cabelo — digo gargalhando. —

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Melane não pode mais ficar aqui, está ar-riscado demais— David diz pensativo.— Me esconderei com ela pela floresta.— Oh povinho! Que floresta meu bem?Aquelas árvoressão só pele e osso.A parte da floresta que ainda tem vida ficaperto do castelo,onde eles te pegariam facilmente— Jack falaabanando as mãospara o céu.— Que outra ideia você tem, moleque?— Não se iluda, David, não sou um menino,estou apenaspreso no corpo de um — ele sorri, da mesmaforma maliciosa desempre.— Não se preocupem, crianças, Jack estáaqui para ajudar— diz e se vira para a porta.

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— Que outra criatura vai capturar dessavez?–—Davidgrita antes que ele saia.— Você nem faz ideia.Todos na sala se olham, a mesma expressãopreocupada norosto, mas ninguém diz nada.

A noite chega rapidamente, não tão friaquanto as anteriores, mas tão escura quanto.Jack ainda não voltou, e começo a me per-guntar se ele irá voltar. Estou em minhacama improvisada acariciando Komodocomo se fosse um animal de estimação,quando a parede de cortinha se move apenasuns centímetros para o lado.— Mel? Está acordada?—é a voz de Davidsussurrando.

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— Sim, estou — digo puxando mais a cortina,agora podendo ver seus lindos olhos bempróximos a mim.— Está com sono?— Não. Quase não tenho tido sono essesdias.— Quer ver uma coisa?— ele pergunta comos olhos brilhando.Aceno com a cabeça, levantando-me cuida-dosamente para não acordar Angélica.Coloco um casaco fino por cima da camisolae saio pela porta segurando a mão de David.— Aonde vamos?— pergunto animada.— para terra dos sonhos... Jack não é o únicocom favores pendentes — ele diz sorrindo.— Terra dos sonhos?— Você verá quando chegarmos — é tudo oque ele diz.— Vamos andando até aquele lado, me trans-formo e vamos voando, o caminho é um pou-co longo para ir andando.

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— Eu posso me transformar em um dragãotambém?— pergunto animada, ainda nãotinha pensando nisso. Eu posso soltarchamas azuis e falar com espadas mágicas,porque não ser um dragão também?— Não, Mel, tem que ser um puro sanguepara transformação dar certo.— Ah — digo desanimada.— Ei, quem precisa ser um dragão, quandopode ser uma mestiça poderosa que todosquerem matar?— ele diz sorrindo largamentepara mim.Eu rio junto.— Ah, David, eu tinha me esquecido...Quando eu voltar para Terra, o tempo emNinho de Fogo passa da mesma forma quelá?— Voltar, não sei quando faremos isso — eleparece com o pensamento longe.— Mas sim,Mel, sinto muito, os dias aqui passam damesma forma que na Terra.

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— Ah, por um instante pensei que poderiaser como em ―Nárnia? — digo me achandomuito boba agora.— Eu tenho mais perguntas.— Mas é claro que você tem.— Como os homens dragões surgiram? Querdizer, como eles começaram a se transform-ar?— é uma pergunta que não tinha me pas-sado pela cabeça, até esse momento.— Bem, seria a mesma coisa se eu te pergun-tasse como o ser humano surgiu.— É, existem algumas teorias para isso,evolução, religiosas, muitas teorias.— Nada muito exato, mas existem algumaslendas que o povo conta, tem uma que minhamãe me contava quando era pequeno.— Então me conte— digo virando o olhar emsua direção, atenta.— Não é nada demais, algumas pessoasdizem que um homem chamado Nicolosquando tinha 13 anos encontrou um filhotede dragão, sem pais, era apenas um bebê

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sozinho, morrendo de fome. Na época existi-am dragões que destruíam vilas inteiras emum piscar de olhos, todos sabiam quequando se encontra um dragão a única coisaa se fazer é matá-lo. Mas não foi isso queNicolos fez, ele cuidou e alimentou opequeno bichinho, tudo isso sem dizer nadaa ninguém. Deixou o animal escondido numacaverna e todos o alimentava. Anos se pas-saram, o menino e o dragão criaram laços in-separáveis, laços mais fortes do que os deirmãos de sangue, muito além disso. Diz àlenda que dragões são as criaturas mais di-fíceis de ganhar a confiança, mas uma vezque a tem a terá por toda eternidade.Num dia qualquer, alguém da aldeiadescobriu sobre o segredo de Nicolos, todosse revoltaram, e num ato de desespero emedo, foram atrás do traidor e do monstro.Não é fácil matar um dragão, de jeito nen-hum, mas como ele faria tudo pela proteção

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de Nicolos, se deu por vencido e deixou-seser morto.Pouparam a vida do homem, já que a bestanão existia mais.Nicolos deitou-se ao lado do corpo de seuamigo naquela noite, não chorou, nenhumaúnica lágrima, mas a dor que crescia em seusolhos era de amedrontar a qualquer um.Na manhã seguinte ele tomou uma decisão,que poderia causar repulso ou estran-hamento em outros, mas para ele aquilotinha um significado, e ele precisava fazer.Não foi uma tarefa simples, a pele de umdragão é a armadura mais poderosa e resist-ente que pode existir, não foi por esse motivoque ele a queria, não, era algo maior. Commuito esforço, perseverança e motivação, eleaos poucos, dia após dia, conseguiu separar apele do animal. Com suas próprias mãos fezuma armadura a qual prometeu sempre ve-stir para simbolizar seu amigo, que não

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poderia mais estar ao seu lado, mas que viv-eria para sempre em sua memória e seucoração.Ele mesmo não imaginava o que haviaacabado de fazer, pois naquela mesma noite,quando vestido com sua armadura feita dapele de seu companheiro, enquanto olhavaas estrelas, algo inesperado aconteceu. A lig-ação entre os dois era tão grande, seus laçostão inquebráveis, algo assim dificilmente seacaba com a morte. A pele do dragão ganhouvida, se fundindo com a pele de Nicolos, cadafibra de armadura se juntando ao seu corpo,os tornando um só. Em uma explosão, suapequena forma humana se transfigura,dando espaço ao grande dragão que um diaele chamou de amigo.Nicolos não se vingou do povo da aldeia, seucoração era puro demais para tal ato, ao in-vés disso ele os ensinou que nem tudo é daforma que parece ser, e nem toda besta é naverdade um monstro.

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Depois disso nenhum dragão inocente sofreunas mãos dos humanos.E foi isso, dizem que depois, os filhos queNicolos podiam se transformar em dragões, eos filhos deles também, e assim por diante.— Nossa! — digo com os olhos brilhando, en-quanto David me observa sem expressão,como se já tivesse escutado e contado essahistória um bilhão de vezes.— É claro, isso é só uma história que o povoconta — diz levantando os ombros.— Você não acredita?— Talvez...— Eu acredito!— porque não acreditar? Faztodo sentido, ao menos para mim, estou emum mundo mágico agora, é difícil as coisasnão fazerem sentido, vendo por esse lado. Eacredito que quando se tem laços tão fortescom alguém, a morte é apenas um estágio,dificilmente será o fim.Ele sorri balançando levemente a cabeça.— Sinto sua falta— diz sem me olhar.

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— Estou aqui — apertão sua mão.— Dos dias tranquilos na Terra, sinto falta depassar mais tempo com você— ele vira orosto em minha direção.— Eu também — digo com um sorriso fraco.— Quando tudo isso acabar, prometo que ireite compensar.Dou risada.— Me compensar? Como?— Ainda não sei, mas vou pensar em algo atélá — me responde sorrindo.Chegamos a um local um tanto afastado dacasa de Amélia.David tira suas roupas quando não estou ol-hando e se transforma no dragão cinza comescamas azuis brilhantes.Ele levanta uma pata, onde eu me apoio parapoder subir em suas costas.Estou pegando o jeito da coisa agora, seusdois chifres são mais fáceis de segurarquando não estamos sendo perseguidos.

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Com um salto estamos no céu, entre asnuvens escuras da noite fechada.O vento hoje é refrescante, tudo tão tran-quilo daqui, nenhum som lá de baixo, apenaspaz.Quase não dá para enxergar nada daqui decima, apenas o vento em meu rosto, e a ar-madura quente da pele de David, é fácil ima-ginar que nada do que aconteceu foi real, da-qui posso até pesar que tudo não passa deum sonho e que logo irei acordar. Osdevaneios somem rapidamente de minhamente, quando depois de voarmos por umtempo não muito longo, chegamos a umaclareira numa parte da floresta.As árvores aqui também estão destruídas esecas, mas tem algo diferente.Depois de descer de suas costas, ele se trans-forma em humano de novo.Tapo os olhos elhe jogo as roupas que vim segurando dur-ante a viagem.

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Depois de se trocar, ele pega minha mãonovamente, e começamos a caminhar.— O que viemos fazer aqui?— perguntocuriosa.— Eu queria lhe dar um presente — ele dizme olhando.Andamos poucos passos, ainda de mãos da-das, parando em frente a uma sequoia gi-gante, a única que ainda tem folhas presasem seus galhos, folhas verdes e saudáveis portodos os lados, algumas flores também flor-escem por entre os galhos, flores azuis e ros-as. Existe grama, verde e fresca, formandoum circulo apenas onde a árvore está situ-ada. Olhando para o céu vejo estrelas bril-hantes apenas no local onde a árvore seencontra.— O que é isso?— digo admirada demais coma beleza desse lugar.— Eu disse, Jack não é o único que temfavores pendentes — ele me olha de formamisteriosa. — Uma vez, quando era criança,

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salvei uma fada de uma armadilha de aço.Ela me agradeceu e me concedeu umdesenho. Eu não o usei até hoje.De frente para árvore enorme, David elevaseus olhos para o alto e diz em um tom devoz bem alto.— Eu tenho um favor a cobrar.Alguns segundos depois vejo luzes cintilandopor dentro do tronco, como se ele tivesse suaprópria luz interna que reluz para todo oslados.Todas as cores em uma só, eu vejo rosa, azul,amarelo, verde e branco, tudo junto por den-tro do casco da árvore e por entre as folhasagora.Fadas de todos os tipos e cores saem porentre as folhas e nos avaliam. Todas lindas,brilhantes e formosas. Posso ver ao ladodireito da árvore, bem acima daquela lindaflor azul, a fada de cabelos brancos sentadaem um dos galhos finos do alto.

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Eu sorrio em sua direção, mas tudo o que re-cebo de volta é seu olhar gélido.— Meu nome é David Agalion estou aquipara cobrar um favor feito há quase 300anos atrás — ele diz calmamente.Uma fada de cabelos verdes desce por entreos galhos, parando em nossa frente.Ela tem olhos amarelos e asas douradas, quepara mim parecem ser feitas de ouro.— Creio que eu lhe deva um favor. Umapromessa feita para um garotinho há muitotempo atrás— ela diz, sua voz doce eaveludada.— Desejo ver alguém de outro mundo, al-guém que já se foi... Isso é possível?— elepergunta sem tirar os olhos dela.— Tudo é possível. Apenas pense na pessoadesejada, imagine como se ainda estivesseentre nós — ela continua tranquilamente. —Das lembranças mais profundas surgirá,aquele que logo novamente partirá. — as pa-lavras da fada ecoam ao nosso redor,

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penetrando minha mente, quase me deixan-do zonza.Primeiro nada acontece, então algo começa abrilhar, acendendo, como uma vela numlugar muito escuro. Apenas uma chamapequena que começa a crescer.A chama se acende, iluminando o lugar anossa frente.Meus pais, minha mãe com seus cabeloscastanhos ondulados caindo sobre os om-bros, olhos grandes e dourados e um sorrisocarinhoso no rosto. Meu pai com seus cachosruivos desordenados na cabeça, olhos verdescomo os meus, sorrindo ao me ver.Estendo as mãos para tocá-los e eles fazem omesmo, no entanto, nada acontece, é comose uma rajada de vento passasse correndopor mim, gelando todo meu corpo noprocesso.Eles me olham tristemente, depoiscolocamos as mãos próximas, sem realmenteencostar, eu quase posso senti-los agora.

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— Eu sinto tanto a falta de vocês — digofracamente.Minha mãe sorri. Tranquilidade, é isso o quesinto.Meu pai olha sorrindo para David, por apen-as um segundo, antes de voltar o olhar emminha direção.Posso ver David sorrindo também.— E aí, camarada?— ele diz encarando meupai.Eles apenas ficam lá, olhando para mim sor-rindo carinhosamente.Não sei por que, mas eles não podem falar,deve ser alguma lei de fadas ou algo pare-cido, eu não me importo. Só de poder vê-los,isso já é bom demais.Não sei dizer quanto tempo ficamos assim,parados, quietos, apenas olhando uns aosoutros, imaginando como poderia ter sido,como as coisas deveriam ter sido.

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Então da mesma forma que vieram, eles sevão, deixando somente a floresta escuranovamente.Só agora percebo que tenho lágrimas escor-rendo pelo rosto.— O favor está pago. Não lhe devo maisnada.Com um aceno de cabeça a fada se recolhepara dentro da árvore, levando todas as out-ras consigo.Fico paralisada na escuridão da noite, apen-as com a mão de David fechada sobre aminha, me impedindo de desmoronar.— Você está bem?— ele perguntapreocupado.Faço que sim com a cabeça.— Mel, eu não fiz isso para você ficar triste,eu queria lhe dar um presente, a oportunid-ade de ao menos os ver... Nem que fosseapenas por uns instantes — ele fala agoni-ado, sua voz ficando apenas um pouco mais

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rouca que o normal, como sempre acontecequando fica nervoso.— Não é isso — digo enxugando a última lá-grima de meus olhos. — Foi a coisa maismaravilhosa que alguém já fez por mim.Ele me olha sorrindo, apertando ainda maissua mão sobre a minha.Andamos em silêncio até a clareira, onde elese transforma outra vez em dragão, subo emsuas costas da mesma forma que antes,usando sua pata como apoio.Voamos de volta para casa de Amélia,parando apenas alguns quarteirões dedistância.Desço com facilidade de suas costas, e cam-inho lentamente até a beirada de umpequeno morro de terra batida, enquanto es-pero ele se trocar.O vento aqui é fresco, meus cabelos esvoaça-dos fazem cócegas em meu rosto conformemexo minha cabeça, isso normalmente teriame irritado, mas não hoje, não agora.

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— Esta cansada?— ele pergunta se sentandoao meu lado.— Não. Estou feliz.— Era tudo que eu queria— ele sorri paramim, seus cabelos negros também se es-voaçam por todas as direções, os olhos tur-quesa acesos agora, como se tivessem suaprópria fonte de luz particular, apenas com alua nos iluminando e seu rosto de uma al-guma forma, mais perfeito do que já é.Estamos tão perto, joelhos se tocando. Eu oolho fixamente, captando cada centímetro deseu rosto, querendo capturar esse instanteem minha memória, esses olhos, tão lindos,tão familiares, tão David. Ele pega minhamão entre as sua, mexe seus dedos contra osmeus por meio segundo, se inclina e mebeija.Tranquilidade. Sinto sua respiração calmaem meu rosto, seus lábios gentilmente con-tra os meus, tão doce. Sua mão desliza paratrás de meu pescoço, me puxando para mais

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perto enquanto me beija lentamente, comose eu fosse feita de cristal e qualquer movi-mento brusco pudesse me quebrar em ummilhão de pedaços.É como um por do sol quente depois de umanoite tempestuosa.É quase como estar em casa novamente.

Capítulo 8 Surpresas

Amanheceu e eu ainda não dormi, as lem-branças da noite passadaflutuam por minha cabeça.

Ver meus pais foi algo tão maravilhoso,nunca em minha vida imaginei que isso seriapossível de acontecer.Foi uma noite perfeita, com um finalperfeito.David, não consigo dizer seu nome ou pensarnele sem imaginar seus lábios em minha

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mente e a forma como eles ficaram pression-ados contra os meus.Foi meu primeiro beijo. Teve aquela vez aossete anos quando uma garota me desafiou abeijar aquele garoto, Toby, o fedorento, eunão podia parecer fraca então o beijei, maseu não conto isso como primeiro beijo, não éassim que primeiros beijos devem ser.Então, oficialmente meu primeiro beijo foicom David.É estranho também, nunca havia pensandonele dessa forma, eu o acho lindo, é claro,quem não acha? Mas ele sempre foi meuamigo, o irmão que eu nunca tive.Mas agora, depois que tudo isso aconteceu,não consigo pensar em David e na palavrairmão, elas não combinam mais Ele é maisque isso, talvez fosse isso que devia teracontecido, afinal. Talvez ficar juntos fosse omais certo a ser feito. Eu estou muito bemcom isso.

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Angélica começa a se mover ao meu lado nacama, se virando para me olhar.Ela parece aborrecida hoje.— Como foi a noite?— ela perguntarabugenta.Sorrio ao lembrar novamente do beijo, ig-norando seu mau- humor.— Foi boa — figo ainda sorrindo.— Que bom!Me levanto, seguindo o cheiro de café.David está à mesa com Amélia e Damião,com xícaras fumegantes nas mãos.Ele me olha diretamente nos olhos no mo-mento em que me aproximo da mesa. Sintomeu rosto queimar imediatamente.Ele sorri perante minhas bochechas, queagora devem estar num tom forte de ver-melho tomate.— Jack ainda não apareceu — Amélia dizcom os lábios em sua xícara de café.

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David da uma risadinha sínica por entre oslábios.— Ele pode estar com problemas?— per-gunto me preocupando verdadeiramente.Jack pode não ser o tipo de pessoa que todosesperam que ele seja, mas ele tem meajudado muito, e de certa forma, eu gostodaquele garoto.— Não, Jack sabe se virar sozinho — Daviddiz.Angélica se aproxima para pegar um poucode café, ela ainda está rabugenta e com umacarranca no rosto.Ela olha fixamente para David, enquantodespeja seu café na xícara com raiva.— O quê?— ele pergunta levantando os om-bros, sem saber o que se passa.— Nada! — ela diz com um sorriso falso e saipela porta.Isso me pareceu uma cena de ciúmes? Euacho que sim. Será que Angélica é apaixon-ada por David? Essa ceninha diz que sim.

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Talvez ela tenha me visto sair no meio danoite com ele ontem e tomou suas própriasconclusões.Não é algo que eu irei me preocupar agora,talvez depois.Agora eu só quero curtir a sensação gostosa eo frio na barriga que sinto toda vez que melembro de ontem à noite.Minha calma e sensação de borboletas no es-tomago não duram muito tempo, do nadaum forte barulho estoura do lado de fora.Corremos todos para janela para ver o que é.Soldados do rei, umas poucas dezenas deles,vasculhando as casas, destruindo e der-rubando pessoas.Angélica entra correndo pela porta.— Eles chegaram... Vieram pegar Melane—ela diz desesperada.Meu coração dispara, meus olhos procuramautomaticamente por David ao meu lado.— Vai dar tudo certo, Mel. Confia emmim?—ele pergunta me encarando.

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Faço que sim com a cabeça.Ele acena de volta.— Pegue Komodo— ele diz apontando paraespada.Eu o pego, ainda embrulhado numa manta.— Você precisa sair daqui agora está bem?Eu encontro você depois, mas agora vocêtem que ir, se misture com as pessoas e ajanaturalmente.— Pode fazer isso?— ele pergunta com asduas mãos em meu rosto.— Sim— não tenho certeza se posso, mas étudo que tenho no momento.Ele me beija rapidamente e carinhosamentenos lábios.— Te vejo depois — diz sorrindo, tentandoesconder o desespero por trás de seus olhos.Saio pela porta dos fundos da casa e tentome misturar entre a multidão assustada.Os soldados estão em um circulo agora, suasarmaduras prateadas brilhando sobre a luzdo sol. Eles carregam lanças, espadas e

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escudos com um formato redondo, umgrande dragão vermelho desenhado nocentro de cada escudo.— Quem manter a mestiça sobre proteção,pagará com a própria vida como punição.Entreguem a garota e tudo ficará bem — umdos soldados diz.— A escolha é de vocês, uma morte ou cen-tenas?— outro soldado, o mais forte e maisalto diz dessa vez.Continuo caminhando normalmente porentre as pessoas, posso sentir a energia deKomodo em minhas mãos, ele quer lutar,precisa me proteger.É quando os soldados começam a invadirmais casas, derrubando portas e pessoas queficam no caminho.Não posso mais aguentar. Minhas mãos tre-mem, tenho que fazer alguma coisa.Olhando fixamente para manta em minhasmãos, os soldados do rei destruindo mais ca-sas a minha procura. Começo a

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desembrulhar Komodo, que se agita por den-tro de antecipação.— Você está louca? Embrulhe esse negóciode novo.Uma voz grave e muito rouca sussurra emmeu ouvido, um homem alto, ombros largose fortes, pele muito pálida, com pequenassardas no nariz, os cabelos dourados caídosna testa desorganizadamente e os olhos maisnegros que já vi.É como se eu já o conhecesse, algo na formafamiliar como me olha, ou então como seuscabelos loiros ficam mais bagunçados sobre atesta por causa do vento quente e forte quesopra sobre nós.Não pode ser, mas... É ele.— Jack?— pergunto sussurrando, os olhosarregalados.Ele sorri abertamente para mim.— Fiquei bonito, não é?— pergunta sorrindoainda mais.— Como? Você...

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— Sim, sim eu explico para você depois, va-mos sair daqui agora.Segurando minha mão, Jack me leva por umcaminho, nos distânciando da aldeia e dadestruição causada pelos soldados.— Não posso deixar esses homens fazeremisso com aquelas pessoas — digo desolada.— Você pode, você é mais valiosa viva paraeles do que morta. Eles irão pagar por isso,Melane. Não seja burra.Andamos por entre a floresta seca e sem vidapor um bom tempo. A escuridão começava anos envolver agora.Depois de tanto andar, chegamos a uma cav-erna escondida no meio de folhas secas egalhos.O lugar não parece abandonado, está maispara escondido do que abandonado.— Pode entrar, não tem ratos. Eu semprevenho aqui — Jack diz entrando primeiro.

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Depois que entro, ele fecha a entrada comuma pedra por dentro tapando os buracosdos lados com mais folhas secas.Há cobertores por aqui, papeis rabiscadoscom desenhos infantis grudados nas paredescinzentas.— Encontrei esse lugar quando fugia de meupai quando ele queria me dar uma surra porter feito algo errado — ele diz sorrindo.Depois se senta acendendo um lampião queestá ao seu lado.— Você está adulto — digo deslumbrada.— Sim. É muito estranho ser alto, estou acos-tumado a ser baixo e... Menor — ele diz en-quanto aperta os músculos do braço fazendouma carranca.Dou uma risada.— Onde você esteve?— pergunto aindasorrindo.— Crescendo? Não é tão rápido como vocêimagina, e dói...Muito. Crescer aos poucos éuma coisa, crescer dez anos em uma noite é

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bem diferente. Isso doeu para caramba,tenho arrepios só de lembrar — ele diz com oolhar distante se perdendo por um segundo.— Porque você cresceu?—Uma pessoa desconhecida, discreta? Nãoera isso que estávamos precisando?— ele dizcomo se fosse a coisa mais obvia.— Você cresceu para me ajudar?Ele apenas dá um levantar de ombros.— Não vamos ser sentimentais agora.Eu sempre soube, Jack não é o miserável tra-paceiro que todos pensam que ele é.— Como se sente adulto?— Estranho. Ainda sou eu mesmo, mas difer-ente. Sabe, tem coisas que você só conseguedepois que fica mais velho, não importaquantos anos eu tinha, em um corpo de ga-roto eu sempre iria pensar como um garoto.— Porque todas as crianças crescem, menosuma.— Como é que é?

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— Nada, é só uma frase de Matthew Barrie,ele escreveu um de meus livros preferidos.Conta à história de um garoto que nuncacresce.— E por que ele nunca cresce?— Jack per-gunta curioso.— Ele não queria ser adulto, não queria per-der todas as coisas boas de quando se é cri-ança, assim como você.— Não era por isso que eu não crescia— elediz parecendo um pouco irritado.— Então, por quê?— Tenho meus motivos, mas isso nãoimporta.— Você é esquisito, sabia?— Disse à garota que conversa com uma es-pada— ele levanta umas de suassobrancelhas.— Belo ponto, mas você foi criança por quasetrezentos e anos e do nada resolve crescer?Ele demora uns segundos antes deresponder.

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— Não quero mais viver assim, com nossomundo destruído, quero que tudo volte aonormal.— Nem tudo, você não é mais criança.— Faz um bom tempo que deixei de ser, quala diferença?— Obrigada— não entendo Jack, mas ele estáajudando, desde que o vi pela primeira vez,ele só ajudou.— Não faço só por você— ele diz carrancudo.— De qualquer forma, seja qual for o motivo,está me ajudando — ele levanta os olhos emminha direção, mas não diz nada. — Eagora? O que faremos?— pergunto um se-gundo depois.— Esperamos. Pela manhã voltamos paraaldeia.Adormeço rapidamente essa noite, como setodo o cansaço desses dias tivesse me at-ingido de uma só vez. Durmo bem, como nãotenho dormindo há muito tempo.

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Jack

Fico sério, assim que saiu pela porta da casade Amélia. O quê me espera essa noite nãoserá nada agradável, e também sei que es-tarei quebrando uma promessa, mas fazerisso é mais importante agora. É só isso queimporta, não irei me ligar aos fatos, é dizem,os meios justificam os fins, e meu fim émuito valioso para mim, espero por isso háquase trezentos anos. Tem que dar certo, eufarei dar certo.

Ando silenciosamente, passando por todaaldeia, vendo as pessoas nas ruas, a maioriame conhece, ao menos pensam que me con-hecem. Ninguém sabe quem realmente sou,nem meus motivos por ser assim.

Passo rapidamente pelas árvores ressecadasaté chegar à caverna, onde tenho ficado todo

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esse tempo. Fecho a porta com a pedra e mesento no chão.

Hoje tudo irá mudar, depois de todos essesanos, a minha chance chegou e não possodesperdiçá-la. Respiro fundo, penso uma úl-tima vez nos motivos para estar fazendo isso,e então deixo acontecer.

A dor me atinge de uma só vez, assim comoos gritos que saem cortados de minha gar-ganta, a sorte é que estou longe de todos,ninguém pode me ouvir daqui.

Sinto cada parte de mim, cada célula se mul-tiplicando, a pele esticando, assim como osmúsculos crescendo, é uma dor sem fim eisso é apenas o começo, tenho o resto do diapela frente. Contorço-me no chão, me de-batendo como um louco. Nunca senti nadaparecido com isso, crescer dez anos é maisdifícil do que eu imaginei que seria, mas épreciso.

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Não sei quantas horas se passaram desdeque cheguei aqui, vi que o sol se pôs e quenasceu novamente, mas finalmente terminei,estou dez anos mais velhos. Acho que a dordeve ser a punição por ter me mantido cri-ança todo esse tempo. Não importa mais, jápassou. Foi difícil, nunca senti tanta dor emminha vida, nem em meus pensamentos,nunca poderia imaginar algo tão dolorosoquanto foi, mas é isso, já foi.

Ainda estou sentado no chão, olhando meusmembros crescidos. Estico a mão bem abertaem frente ao meu rosto, quase quatro vezesmaior do que era, abro e fecho os dedoslentamente. Se alguém me pudesse veragora, pensaria que sou um idiota por estaragindo dessa forma, mas não há ninguémpor perto, então... Quem se importa?

Coloco as roupas de meu pai, que já haviadeixado aqui mais cedo, elas me servem

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perfeitamente, como se tivessem sido feitaspara mim.

Pego o espelho que um dia foi de minha mãee vejo meu reflexo, agora muito mudado.Sorrio, estou parecido com meu pai, semprefui, mas agora a semelhança se multiplicou.

Saio pela porta a escondendo novamentecom as folhas antes de ir embora.

Vou direto para aldeia, desejando que nãotenha demorado tempo demais natransformação.Escuto os gritos antes mesmo de poder av-istar o povoado, eles já estão aqui. Corro porentre as ruas devastadas, e para minha sur-presa minhas pernas longas são muito maisrápidas do que as antigas, eu sou muito maisrápido agora.Posso ver os soldados destruindo tudo pelafrente, e a multidão de pessoas desesperadas.

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Melane, tenho que achá-la, antes que eles aachem primeiro.É quando a vejo, os cabelos agora negros caí-dos por suas costas, me aproximo rapida-mente e para minha felicidade, bem no in-stante em que essa idiota tenta retirar Ko-modo da manta em que está escondido.— Você está louca? Embrulhe esse negóciode novo — digo, e embrulho a espadanovamente.— Jack?— ela pergunta com olhosarregalados.Sorriu antes de responder.— Fiquei bonito não é?— Como? Você...— Sim, sim eu explico para você depois, va-mos sair daqui agora.Seguro sua mão, aparentemente muito men-or que a minha e a puxo para fora da aldeia.Eles não podem capturá-la.— Não posso deixar esses homens fazeremisso com aquelas pessoas.

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E eu não posso deixar que eles a levem, pre-ciso dela. Tenho esperado por isso minhavida toda, nada vai me impedir agora.Tento pensar rápido, dizer algo que possafazer sentido para que ela me siga.— Você pode, você é mais valiosa viva paraeles do que morta. Eles irão pagar por isso,Melane. Não seja burra.Ando com ela ainda segurando minha mão,até chegarmos a minha caverna.— Pode entrar, não tem ratos. Eu semprevenho aqui.Na verdade costumava ter ratos, antiga-mente é claro, mas agora...Depois de fechar a porta com a pedra, aobservo, enquanto avalia o lugar.— Encontrei esse lugar quando fugia de meupai quando ele queria me dar uma surra porter feito algo errado.Eu sorrio com a lembrança, as poucas quetenho dele são felizes, até mesmo as de

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quando tentava me dar uma surra. Sintofalta dele.Sento-me no chão acendendo o lampião e meobrigo a tirar as lembranças da memória,preciso estar focado no que tenho que fazeressa noite.— Você está adulto.— Sim. É muito estranho ser alto, estou acos-tumado a ser baixo e... Menor — digo en-quanto aperto meu braço, eu gostava mais decomo eram antes.Ele sorri de uma forma engraçada.— Onde você esteve?— Crescendo? Não é tão rápido como vocêimagina, e dói...Muito.Crescer aos poucos é uma coisa, crescer dezanos em uma noite é bem diferente. Issodoeu para caramba, tenho arrepios só delembrar— na verdade, tento não lembrardisso, nunca mais quero lembrar da noitepassada.— Porque você cresceu?

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Por que... Desculpe, não posso lhe dizer, issoé particular demais, e você, de todas as pess-oas no mundo, é a que não pode saber disso.A sorte é que estou preparado para isso, per-guntas das quais não sei a resposta, ou entãonão posso respondê-las.— Uma pessoa desconhecida, discreta? Nãoera isso que estávamos precisando?—falocomo se fosse a coisa mais obvia, é a respostaque ela quer ouvir, então é o que eu digo.— Você cresceu para me ajudar?— Não vamos ser sentimentais agora—Apenas dou um levantar de ombros.Ela me olha de uma forma estranha, seus ol-hos verdes parecem brilhar, desvio o olhar,não querendo mais ver dessa cena.— Como se sente adulto?— Estranho. Ainda sou eu mesmo, mas difer-ente. Sabe, tem coisas que você só conseguedepois que fica mais velho, não importaquantos anos eu tinha. Em um corpo de ga-roto eu sempre iria pensar como um garoto.

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— Você é esquisito, sabia?— Disse à garota que conversa com umaespada.— Belo ponto, mas você foi criança por quasetrezentos anos e do nada resolve crescer?Essa garota não se cansa de perguntas? Jádisse que fiz isso por ela, não é o bastante?Não é o que ela queria ouvir?— Não quero mais viver assim, com nossomundo destruído, quero que tudo volte aonormal.— Nem tudo, você não é mais criança.— Faz um bom tempo que deixei de ser, quala diferença? — ninguém entende isso? Souum homem, me tornei um há muito tempo,só estava preso no corpo de um menino.— Obrigada— ela diz com os olhos baixos.Essas palavras causam uma sensação es-tranha dentro de mim, mas eu a ignoro.— Não faço só por você— acho que essa é aprimeira vez que digo a verdade hoje.

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— De qualquer forma, seja qual for o motivo,está me ajudando — ela está fazendo comque as coisas fiquem mais difíceis para mim.Só quero que ela durma de uma vez.— E agora? O que faremos?Porque você não se cala e para de me fazerperguntas? Durma logo, para que eu possafazer o que preciso.— Esperamos. Pela manhã voltamos paraaldeia.

Finalmente, ela adormece. Sinto como setivesse levado uma eternidade até issoacontecer.Respiro fundo uma vez antes de meaproximar.Ela está deitada, usando uma coberta comotravesseiro, as duas mãos estão juntas de-baixo de sua bochecha direta, como as

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crianças pequenas dormem. Seus cabelos es-tão caídos em seu rosto, ficando ainda maispretos pelo contraste com sua pele muitobranca. Ela nem é tão bonita assim, olhe só,o nariz dela é até desproporcional! Olho pormais uns segundos, a quem estou tentandoenganar? Ela é perfeita. E como eu não re-parei nisso antes? Aquela vez quando faleisobre isso, dizendo que ela era bonita,quando fomos comprar pão, não foi de ver-dade, apenas estava tentando ganhar suaconfiança, as mulheres gostam desse tipo decoisa, não é?Isso está sendo mais difícil do que imaginei,na verdade, nunca imaginei que seria difícil,não pelo motivo que preciso fazê-lo.Sento-me ao seu lado, e fico a observando,por horas e horas.Eu sei, esse tem sido o propósito de minhavida, é esse o motivo de não ter crescido, seio quanto quero isso, mas... Como pensei quepoderia fazer quando a hora chegasse? É

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diferente, agora, olhando para ela. Esse nãosou eu, não sou assim, não quero ser essehomem.Depois de uma eternidade, levanto-me e saiopela porta.Não posso fazer isso.

Capítulo 9 DespedaçadaMelane

O sol não bate em meu rosto essa manhã, enão sou acordada por nenhum barulho. Abroos olhos vagarosamente.Jack está sentado bem próximo a mim,descascando laranjas.Sento-me espreguiçando-me.— Só temos laranjas, e não pense que foi fácilconsegui-las — diz, enquanto me passandouma das frutas.— Não tem problema, gosto de laranjas. Eudormi bem está noite.Ele apenas me olha de lado.

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— E você? Tudo bem? Essa foi sua primeiranoite como adulto.— É, foi tudo muito bem, sim — ele diz semme olhar.Comemos nossas laranjas e então voltamospara nossa longa caminhada de volta paraaldeia.Ainda mantenho Komodo escondido namanta, enquanto andamos.É estranho estar com Jack assim, alto,pareço tão pequena perto dele agora, e aindapor cima ele está quieto, quieto demais,fazendo com que tudo fique mais estranho.— O que foi?— pergunto virando o rosto emsua direção.— Han? O quê?— ele pergunta, parecendodistraído.— Você não disse uma palavra.— Estou apenas um pouco cansado— é tudoo que ele diz.Deve ser pela mudança, ter crescido tantoem uma noite, deve ser cansativo, então não

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pergunto mais nada, continuamos nossocaminho, calados.Sinto um aperto no coração, assim que avistoa aldeia, tudo está destruído, quero dizer,mais do que já estava antes, algumas pessoasvasculham por entre as ruínas e destroçospor algo que possa ser útil.A poeira parece ser ainda maior agora, mefazendo tossir enquanto ando pelas ruas.Crianças chorando, casas quebradas. Eusinto cheiro de morte no ar, com certezahouve mortes por aqui ontem, e tudo porminha causa.Seguro firma na mão de Jack, sinto ele se en-rijecer com o toque, mas não se afasta, ao in-vés disso, ele me olha com o canto do olho devez ou outra.— A culpa é minha— sussurro por fim.— Não, Melane, a culpa não é sua. Você nãofez isso, foram aqueles miseráveis — ele dizsem me olhar.

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— Eu podia ter evitado tudo isso. Lembra-se?Uma morte ou centenas?— Não houve centenas de mortes.— Como você sabe? E não importa. Alguémmorreu por minha causa.Continuamos andando em meio a devast-ação, até que vejo um rosto conhecido.— Damião!— digo correndo em sua direção.— Querida, você está bem? Pensamos quetivesse sido capturada— ele me abraça.— Estou bem. Onde está todo mundo?— Jack?— Damião diz olhando para figuraalta e musculosa ao meu lado.— E aí?—Jack se esforça num sorriso torto.— Você cresceu!— Sim, é uma longa história, fiz isso por umbem maior e bla bla bla.— Onde estão todos?— repito.Amélia se aproxima com Angélica que temlágrimas nos olhos.— Onde está David?— pergunto nervosa eaflita.

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— Melane, ele foi capturado ontem — Dam-ião diz com os olhos brilhando, com as lágri-mas ameaçando sair.E é aqui que meu mundo desaba.Capturado. Ele não está mais aqui. E tudoisso é minha culpa.Se eu tivesse ficado e lutado, ao menos eleestaria aqui, e ninguém além de mim teriamorrido.Mortes em vão, sem sentido algum.Porque estou sendo tão protegida?Eu deveria salvá-los e não ao contrario. Todomundo se preocupa unicamente com minhasegurança.Minha avó Mary, Lucas, as pessoas da aldeiae agora David.Quantos mais terão que morrer para eupossa continuar vivendo?— Ele não morreu, Melane. — Jack diz pelamilésima vez. — Eles precisam dele vivo.Você não entende? É uma armadilha paraencontrarem você— ele diz me encarando.

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Estamos na casa de Amélia agora, ou no querestou dela, mesas e cadeiras estão quebra-das e reviradas pela sala, as cortinhas rasga-das, roupas espalhadas, tudo destruído.Angélica me olha gelidamente do canto ondeestá sentada no chão. Ela não disse nada,mas ela me culpa, eu sei. Seu olhar não podementir, ela sente algo por David e me culpapor ele ter sido capturado.O pior é que ela não está errada, eu tambémme culpo, mas eu vou encontrá-lo.— Se ele está vivo eu vou achá-lo — digofirmemente.Recuso-me a chorar. Não mais lágrimas, nãomais a garotinha chorona que eu já fui umdia, eu não tenho esse luxo agora. Fraquezase tornou algo intolerável em minha vida.— Oh, meu pai! Garota, você não ouviu nemuma palavra do que eu disse?—Jack per-gunta levantando as mãos para o alto.— É. Uma. Armadilha— ele diz calmamente,dando ênfase em casa silaba. — Sabem que

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você tem vivido com David na Terra, ele é omais próximo que você tem aqui. Sabem quevocê irá tentar salvá-lo, e eles estarão teesperando. Diga-me, como irá salvá-lo sendocapturada e morta?— Eu não pretendo ir sozinha. Vamos juntartodos os rebeldes, o mais rápido possível.— É, agora sim. Quanto mais gente melhor—ele me encarando.Murmúrios altos começam a se formar dolado de fora.Saio apressada, achando que podem ser maissoldados.Não são soldados, são as pessoas da aldeia,eles estão nervosos, aflitos e com medo.— A culpa é dela!— Temos que achar a mestiça e entregá-la.— Se ela tivesse se entregado nada disso teriaacontecido.— A culpa é dela.— Achem a mestiça.Todos eles gritam euforicamente.

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Estão com raiva de mim. Querem me matar.Eles iriam me matar se soubessem que estoubem aqui.— Vocês não sabem sobre o que falam, seusignorantes... Ela veio para salvar vocês! —Jack diz em um grito rouco, com sua novavoz adulta.— Nos salvar? Eu vejo apenas morte poraqui, meu amigo — um homem velho diz.— Então é isso, irão entregar a garota que es-tá predestinada a salvar vocês ao homem emque os colocou nessa situação?— ele fala comum sorriso sínico. — Que povinho, em? Nãotêm vergonha nessas caras sujas? Talvez vo-cês mereçam essa desgraça sobre suascabeças — grita com ódio.— Jack, vamos sair daqui — digo puxandoseu braço. — Eles estão sofrendo, pessoasmudam em momentos de dor. Eles não sãopessoas más — digo, tentando acalmá-lo.

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— Ela fica comigo essa noite. É mais seguropara vocês e para ela— Jack diz a Damião en-quanto saímos para a floresta morta.Ele apenas acena com a cabeça, sem dizeruma palavra.Andamos apressadamente por entre as pess-oas, nos afastando rapidamente.Jack resmunga o caminho todo Eu apenasfico calada.David, seu nome ecoa por minha cabeça otempo todo, enquanto a imagem das pessoasgritando meu nome com ódio se misturamem meus pensamentos.Aquelas pessoas querem me matar. Comovou conquistar meu exercito se meu povoquer me ver morta?Estou me saindo uma bela princesa. Nem aomenos me apresentei e já sou odiada por to-dos. O pior de tudo é que David está lá,preso. Pode estar sendo torturado, ou coisapior.

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Uma chuva forte cai do lado de fora da cav-erna de Jack. Fico imaginado as pessoas quetiveram as casas destruídas, como elas estão?

Não tenho feito muita coisa por meu povodesde que cheguei, tudo que tenho feito é meesconder, mas não quero mais fazer isso,preciso tomar alguma iniciativa.

Jack está quieto, sentado vendo o fogo quei-mar no lampião a sua frente.— Você está bem?— pergunto, quanto mesento mais perto.Ele me olha de cima, sinto sua respiraçãoquente em meu rosto.— Acho que nunca estive bem, Mel.Ele me chamou de Mel, apenas David mechama assim. Sinto um pouco de ciúmes nahora em que as palavras saem de sua boca,

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mas percebo que gosto de como o som ficaem seus lábios. Ele tem permissão para mechamar assim também.— Eu nunca estive bem. Sou um homem dequase trezentos anos, que passou toda suavida no corpo de um menino. Eu sou umcovarde.— Você não é um covarde! Você é uma daspessoas mais corajosas que eu conheço. Vocême ajudou a passar pelo portal, nos ajudou aandar pela aldeia, se arriscou me levandopara o castelo para pegar Komodo, jogoupôquer com homens três vezes maiores queseu tamanho, ganhou a fada que mudou meucabelo, você cresceu dez anos em uma noite,sentiu a dor disso sozinho nessa caverna.Você tem me salvado desde o dia em que meconheceu. Tudo isso no corpo de um menino.para mim está bem longe de ser um cov-arde— digo passando o braço por sua cin-tura, o abraçando.

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Jack pode ser diferente das outras pessoas,ele fala tudo o quer e quando quer, assimcomo uma criança, acho que essa parte nãoera apenas por ele estar no corpo de ummenino, isso é algo somente dele, pode atéparecer um defeito, mas é isso que eu maisgosto nele.Jack me abraça de volta, descansando oqueixo sobre minha cabeça, ele é quente eaconchegante também. Seu coração bateforte em seu peito, sinto seus músculos rí-gidos em meu rosto e sem que eu perceba aslágrimas começam a sair de meus olhos,escorrendo por meu minhas bochechas eparando em sua camisa.Quando dou por mim, há uma rodela mol-hada no tecido onde meu rosto se encosta.Jack não diz nada, apenas me aperta maisforte contra seu peito.Tudo está um caos, David não está mais aquie um aperto estranho esmaga meu coraçãoessa noite. Eu choro silenciosamente, se não

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fossem pelas lágrimas não teria como saberque estou chorando.De alguma forma me sinto melhor com seusbraços ao meu redor, é como acalmar minhador insuportável para algo tolerável.Fico muito tempo pensando sozinha, nopovo da aldeia que teve que morrer por mim,em David que está preso com aquelas pess-oas, em angélica e seu olhar gélido sobremim. Me agarro mais firmemente em Jack,sentindo seu coração bater em minhabochecha, seu perfume adocicado tomandoconta de mim.Adormeço em seus braços essa noite.Sei que estou sonhando, de que outra formaestaria em minha cama confortável, lendoum livro numa tarde de sábado tranquila?Eu me lembro desse dia. É de manhã, minhaavó está na cozinha, fazendo torta de limão,minha favorita, enquanto estou no quarto,deitada de barriga para baixo na cama, con-centrada lendo um livro. Meu cabelo está

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preso no alto da cabeça num coque desorde-nado, e ainda estou vestindo meu pijamabranco de bolinhas vermelhas, estou usandomeias de pares diferentes também, uma érosa e a outra é preta, meu rosto está limpo,sem maquiagem alguma. O sol está bem fra-quinho entrando suavemente pela janelaaberta, assim como o vento fresco, uma man-hã perfeita para ler um bom livro de ro-mance, do jeito que eu gosto. É em horascomo essas que agradeço por morarmos tãolonge da cidade, e não termos um único viz-inho sequer.Lady, a poodle com pelos tingidos de azul es-tá deitada ao meu lado no tapete. Ela é a ca-chorrinha de Caroline, estou com ela poresse final de semana, pois sua dona teve queviajar de última hora com seus pais e nãotinha ninguém com quem a deixar.Eu gosto de cachorros, então não me im-porto de ficar com Lady, ela é bem com-portada, nunca me dá trabalho... Até agora.

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Tudo está tranquilo, até que Lady do nadaresolve sair correndo pela porta, ela nuncafez esse tipo de coisa antes.Me levanto rapidamente e desço a escadascorrendo atrás dela.— Lady, pare, me espere.— O que houve?— minha avó pergunta lá dacozinha.— Não se preocupe, é apenas Lady tendo umataque de pelanca, eu vou pegá-la.Lady desce as escadas feito um raio, e saipela porta aberta da sala.Corro em sua direção, escorregando em min-has meias no caminho, por pouco não caiode cara no chão da varanda.— Lady, pare agora! — grito, mas ela fingenão me ouvir.Ela corre em direção à casa vazia do vizinho.Vejo uma moto muito grande preta e prataparada em frente à velha casa abandonada.Então, no exato momento em que Lady tenta

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entrar pela abertura do cachorro, um homemabre a porta e a pega no colo de uma só vez.Ele tem cabelos negros que caem bagunça-dos em sua testa, fazendo um enorme con-traste com sua pele bronzeada. Assim que le-vanta o rosto em minha direção, posso verolhos azuis demais, brilhando de uma formaque nunca imaginei ser possível. Ele sorripara mim, enquanto acaricia as orelhas deLady.— Ela é sua?— pergunta, vindo em minhadireção.— Não. Quer dizer, sim. Ela é de uma amiga,mas estou cuidando dela — digo sem jeito,cruzando os braços no peito.Ele acena ainda sorrindo.— Eu sou David, acabei de me mudar paracá.— Não sabia que essa casa estava em con-dições de ser habitada— é tudo que vem emminha mente.

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— Não está, mas vou fazer com que fique—ele diz olhando para a casa.Aceno com a cabeça.— E seu nome é?— Melane.Lady se debate no colo de David, querendo irao chão.— Ah, me dê ela, antes que corra nova-mente— digo me aproximando e a pegandode seu colo.— A gente conversa em casa, Lady— digo ol-hando feio para ela, enquanto aponto o dedoindicador em seu rosto.David, ri mais ainda.— Bem, eu já vou indo — digo, já me virandopara entrar.— Mel?— ele me chama antes que me afaste.Me viro, olhando em seus olhos, essa é aprimeira vez que alguém me chama assim.— Gostei das meias — ele sorri de uma formaengraçada, enquanto aponta pras minhasmeias diferentes.

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Apenas sorrio de volta, sem poder conter asbochechas que provavelmente estão muitovermelhas, e ando em passos largos paradentro de casa. Me esqueci de como estouvestida.Foi assim que o conheci.Depois desse dia, passamos a nos versempre, e aos poucos ele se tornou meuúnico e melhor amigo.

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Capítulo 10 Por um fio

Acordo pela manhã com as lembranças dosonho vivas em minha mente. O dia que oconheci parece tão longe, num tempo tãodistante, meu maior medo é que esse temponunca volte, que eu nunca mais volte a vê-lo.

Se David estivesse aqui, ele diria que temosque nos manter positivos, ele acredita emmim, me disse que sou mais forte do quepenso, é hora de provar a mim mesma queele está certo sobre isso.

Tento me virar e percebo que ainda estounos braços de Jack. Seus lábios estão en-treabertos e ele respira tranquilamente.Olhando para ele agora, enquanto dorme,posso jurar que as feições infantis estão devolta ao seu rosto. Ele é bonito, sempre foi.Mesmo quando criança, com o rosto angelic-al e olhos redondos, agora é diferente, uma

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beleza mais máscula. Ele ainda é o Jack queconheço, tem os mesmo cabelos loiros desar-rumados sobre a testa, os mesmos olhosnegros hipnotizantes, os longos cílios doura-dos, as adoráveis sardas no nariz e a pele tãopálida quanto a minha.Olhos sonolentos se abrem no momento emque estou avaliando suas feições bem deperto. Finjo estar acordando também, tentoparecer o mais sonolenta possível.Ele parece não notar, senta-se espreguiçandoao meu lado.— Vamos até a aldeia agora?— pergunto, jáficando de pé.— Não. É melhor ficarmos por aqui hoje —ele diz me puxando com a mão, me fazendosentar novamente no chão. — Vamos esperara poeira baixar, aquelas pessoas estão comraiva de você agora, Mel.— Eu não me importo, Jack. Não posso vivermais assim, se mais gente morrer enquantoeu me escondo... Eu não posso aguentar.

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— Você precisa estar preparada antes. Nãoseja idiota.— Como vou me preparar se estou trancadanuma caverna? E não me chame de idiota.— Então não aja como uma. Vamos treinar.— Treinar?Ele acena, me olhando.Jack se levanta, e começa a procurar algonum dos cantos bagunçados da caverna. Eletira uma espada do meio de uns cobertores,ela é pequena, bem menor que a minha, masparece muito afiada.— É um sabre. Meu pai me deu quando fizoito anos, e me ensinou a usar—diz, olhandopara a espada em suas mãos. — Onde estáseu pai agora?— Ele morreu quando eu ainda erapequeno... Quero dizer, pequeno mesmo, eutinha dez anos — ele diz ainda olhando paraespada, seus olhos melancólicos.— Oh! Sinto muito Jack.— Não tem problema, já faz muito tempo.

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Sem mais uma palavra ele sai em direção afloresta morta.— Anda, moleza— diz, virando o rosto paramim.Me apresso, indo atrás dele, levando Ko-modo comigo.Olhando para mim ele se posiciona, levant-ando sua espada em minha direção.— Vamos ver o que você pode fazer — ele dizsorrindo.— Eu não posso fazer nada, Jack. Eu nuncalutei com alguém em toda minha vida, atéentão tudo que sei é que se alguém quiserlutar comigo, eu provavelmente apanhareiaté a morte— digo revirando os olhos.Komodo começa a tremer em minhas mãos,ele quer lutar.Confiança. É essa palavra que ecoa emminha mente, como se eu mesma tivessepensando isso, mas não sendo eu. Ele querque eu confie nele. Komodo se manifesta deformas estranhas dentro de minha mente.

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Minha mão se eleva a minha frente, como setivesse vida própria.Jack sorri para mim, o mesmo sorrisotravesso de quando ele era um menino.Tento ficar na mesma posição que ele, emguarda. Como se tivesse feito isso milhões devezes antes, me aproximo de Jack com umpasso largo acertando em cheio sua espadacom Komodo.Ele se assusta, recuando um passo, os olhosbem abertos agora, mas o sorriso continuaem seus lábios.Jack vem para cima de mim, tentando meacertar. Rapidamente desvio de seu golpecom um simples girar de braço.Avanço em sua direção, girando Komodo emminhas mãos, ele parece ser feito de plumasagora, leve como o ar a meu redor.Um sorriso brota lentamente em meus lá-bios, Jack faz uma investida em minhadireção. Me defendo facilmente, parando

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Komodo no ar, o aço de nossas espadasrangem quando se separam e faíscas caempelo chão.Freneticamente começo a golpear seu sabrecom investidas potentes e firmes.Jack desvia com dificuldade. O suor começaa escorrer por seu pescoço, onde a maioriade seus cabelos já está grudada.Não consigo parar, Komodo me proporcionauma energia tão poderosa, eu me sinto tãoforte. É como se eu soubesse exatamentecada golpe que Jack fará a seguir, como se eutivesse experiência em lutar. Komodo e eunos fundindo em um só, ele sabe tudo que eusei e eu sei tudo que ele sabe, cada luta queele passou, cada carne que rasgou ou perfur-ou, cada golpe desviado e cada batalhavencida.Sinto as mãos de meu pai por baixo das min-has, me guiando, é bom demais.Com um giro no ar golpeio a espada de Jack,a jogando vários metros de distância,

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parando com Komodo em seu pescoço, en-quanto ele cai no chão.Seus olhos se arregalam, e seu sorriso sealarga.— Ainda bem que você nunca tinha feito issoantes, não é? — ele diz sorrindo ainda mais.Seguro cômodo com a mão esquerda, es-tendendo a outra para levantar Jack.— Onde aprendeu a lutar assim, princesa?— Nunca lutei em toda minha vida, eu jádisse. É Komodo, ele sabe o que fazer pormim.— Sorte sua então — ele diz sorrindo, en-quanto olha para Komodo.

Jack descasca o resto das laranjas que aindatemos, nós as comemos dentro da caverna,enquanto ele recupera o fôlego.

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— Então, acha que estou preparada agora?—pergunto, enquanto mastigo um pedaço delaranja.— Você fez um bom trabalho, mas não sei seé o suficiente ainda — ele diz sem me olhar.— Não quero esperar mais, Jack. David estácom eles e mais pessoas podem morrer se eunão aparecer. Já sabemos, Komodo luta pormim.— Me de mais um tempo, Mel, vamos treinarmais para ter certeza que você pode lutar —agora ele está me olhando.— Não tenho tempo de treinar, quantotempo mais acha que posso ficar fazendoisso?— Só mais hoje então. Treinaremos hoje,amanhã de manhã vamos para aldeia e vocêse mostra para o povo.— Eu não sei Jack.— David iria querer que você estivesse pre-parada— diz, me olhando bem nos olhos.— Isso é jogo sujo!

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— Quem disse que eu jogo limpo?— seus ol-hos travessos aparecem novamente.Concordo em ficar presa aqui mais um dia,mas apenas um dia, amanhã irei para aldeiae todos saberão que eu estou aqui.Quero ajudá-los, sinto necessidade de fazeralguma coisa por essa gente, minha gente.Depois de comermos passo a tarde toda lut-ando com Jack.Ele é um bom lutador, sua espada é pequenae fina, mas tenho certeza que ele fará umbom estrago se lutar de verdade com alguém.Seus braços fortes a manejam com plenaconfiança, ele luta com graça, quase como seestivesse brincando. Talvez tenha sido assimque ele tenha aprendido a lutar, brincando.Ganho todas às vezes, apena nas últimasquando já não aguento mais ficar em pé, éque Jack vence.Não aguento mais dar investidas com espa-das por hoje, embora Komodo seja tão levequanto o ar, agora ele não me parece mais

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tão leve assim. Minhas pernas doem e meusbraços também, estou tão cansada que po-deria dormir agora mesmo. Komodo luta pormim, ele ainda quer lutar, mas ele precisa demeus braços e agora, meus braços não po-dem mais funcionar.Jack parece cansado também, não tantoquanto eu, mas ainda sim, cansado.— Vou procurar comida, você precisa recu-perar as forças.— Aonde você vai?— Não vou muito longe, consigo algo rápidoe volto. Você pode dormir enquanto isso,parece bem cansada.Não me parece uma má ideia, estou mortaem pé e faminta também.— Durma, quando você acordar terá algogostoso preparado. Jack sabe fazer pratosdeliciosos — ele diz sorrindo convencido.— Está bem.Entro na caverna enquanto Jack coloca apedra fechando a entrada.

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Em poucos segundos, caio no nosso. Nãotenho sonhos, apenas durmo, cansada de-mais para sonhar.Não sei quanto tempo se passou desde queadormeci, ainda está claro lá fora, posso verpelas frestas da pedra.Jack não está aqui, então significa que nãodeve ter passado muito tempo, por isso aindaestou exausta, acho que vou continuar deit-ada e dormir de novo, meus braços aindadoem.É quando escuto um ruído do lado de fora. Obarulho não está longe, posso ouvir pés searrastando pelo chão de terra.— Jack?— digo sussurrando para mimmesma.O som para, mas continua um segundodepois.Me levanto, colocando o rosto próximo apedra tapando a entrada da caverna.Não escuto mais nada, talvez eu apenastenha imaginado.

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Relutantemente arrasto a pedra com esforçopara poder dar uma espiada, preciso com-provar que realmente não é nada, depois detudo que me aconteceu, não é de se espantarque eu esteja um pouco paranoica.Não vejo nada, mas ainda está de dia, quaseno fim do dia, mas ainda sim.Saio vagarosamente, olhando tudo ao meuredor, aperto os olhos tentando enxergar omais longe possível, mas aparentemente nãotem ninguém aqui. Sorrio aliviada, e pensorealmente estar ficando paranoica.Mas então, apenas um segundo depois, eu osvejo descendo das árvores.Criaturas asquerosas, não muito altas, de-vem ter pouco mais de um metro de altura,barrigas e pés enormes sobe roupas esfar-rapadas e imundas. Alguns têm cabelos em-baraçados e cheios de nós, quase se ar-rastando pelo chão, outros possuem apenasalguns fios saindo de suas cabeças grandes,pares de olhos escuros, narizes de bruxas

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com verrugas saltadas nas pontas. Elas car-regam armas nas mãos, machados, espatas,punhais, e outras coisas que nem faço ideiado que sejam, mas parecem afiadas e muitoperigosas.Eles me olham quando chegam ao chão, meinspecionam de cima a baixo. Não me pare-cem amigos.Penso em Komodo, ele está jogado no chãoda caverna, perto de onde eu estava dor-mindo, não irei conseguir pegá-lo a tempo.As criaturas começam dando passos curtos,silenciosamente em minha direção. Elas es-tão tão perto que posso sentir o mau cheirose impregnando em meu nariz e pele, umcheiro tão terrível, que nem sei como descre-ver, é insuportável.Olho para Komodo jogado no chão, consigosentir sua energia sem ao menos o estartocando, ele grita por dentro querendo meproteger. Sinto meu coração acelerando

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dentro de meu peito, sem saída, eles á minhafrente, as pedras á minha retaguarda.Olho mais uma vez para Komodo, e entãocomo se meu desejo de tê-lo comigo estivessese realizando, ele se levanta, flutuando,vindo em minha direção, como num passe demágica. O pego no ar, segurando fortemente.Ele sente meu medo, minha necessidade, écomo se meu desespero fizesse parte de seudesespero, ele precisa estar comigo, minhamãe deve ter usado um feitiço muito bom emKomodo. Ele me ama, manter-me segura équase como ar para quem precisa respirar.Agora com ele em minhas mãos, me sintomais confiante, mas ainda posso sentir min-has pernas tremendo.Meus braços ainda doem e eu continuocansada, mas me sinto viva agora. Komodome passa a força que preciso para lutar, comele é como se meu medo e dor fossem di-vididos em dois, diminuir a carga para queela possa ser mais fácil de suportar .

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Me afasto da caverna, não posso ficar cer-cada por paredes de pedra onde será fácil meencurralar.Ando em passos curtos me mantendo o maislonge possível das criaturas a minha frente.Algumas estão sorrindo, dentes amarelados,totalmente encardidos em seus rostospeludos.Há umas cinquenta delas na minha frente,mas elas são pequenas. Fico parada agora, defrente pras criaturas, em guarda, então elasavançam de uma só vez, todas elas ao mesmotempo, correndo para cima de mim.Acerto uma bem na cabeça, antes mesmo dese aproximar, Komodo é bem cumprido e ospega com facilidade.Girando os braços numa velocidade que nemmesmo eu sabia que era capaz, vou atingindoqualquer um que se aproxime. Um deles giraseu machado atrás de mim, mas me abaixo econsigo desviar, o machado atinge o ser àfrente de mim, bem em sua garganta.

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Com a mão esquerda arranco a lança da mãode um deles e atiro em um que está correndopara mim. Komodo está concentrado, at-ingido a maioria no pescoço, sangue espirraem meu rosto em cada golpe que dou, sintomeu cabelo pegajoso em minha nuca.Meus olhos ficam embaçados com a quan-tidade de sangue que espirra quando de-capito um dos monstrinhos ainda no ar,quando ele salta tentando me acertar comum punhal.Sinto uma dor latejante na perna esquerda,sangue jorra pela abertura de minha calça,onde o corte se encontra. O monstropequeno que me acertou sorri, enquantoavança novamente. Com um grito o acertobem no coração o prensando no chão, gir-ando rapidamente para pegar os que vêmpor minhas costas, mais deles começam aaparecer por entre a floresta, eles surgem portodas as partes.

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Tento me afastar, recuando pelas folhassecas no caminho, há muitos deles agora, portodos os lados.Eles gritam para mim, balançando seusmachados e espadas em suas mãos.Sinto Komodo tremer de fúria, permaneçoem minha posição, avaliando o perímetro dafloresta.Não há como lutar, eles são pequenos, massão muitos, centenas. Tento me concentrar,como fiz na casa de Verônica, tento fazercom que o poder saia de mim, mas pareceimpossível, sinto-me exausta. O desesperocomeça a tomar conta de minha mentequando todas as tentativas de fazer o podersair falham. Talvez seja por estar tãocansada, eu não sei, de que adianta ter algoassim se ele não funciona quando preciso?Quando o uso demais, desmaio, e quando es-tou cansada demais, ele não aparece? Estoupor minha conta e sozinha.

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Sem ter alternativa aparente, saio correndofloresta adentro, tropeçando em meuspróprios pés no caminho.Galhos raspam em meus braços e pernas,cortando meu rosto enquanto tento afastá-los com as mãos desesperada.O sol está quase se pondo e a escuridãocomeça a ganhar vida.Eles gritam cada vez mais alto enquanto meperseguem. Me atrevo a olhar para trás e osvejo correndo tão rápido que logo que al-cançarão. Alguns começam a subir nasárvores ao meu redor, me perseguindo porentre elas, saltando de galho em galho.Meu coração disparado parece querer saltarde meu peito a qualquer momento, minharespiração está forte, a garganta seca, os ol-hos arregalados, enquanto forço meus pés omáximo que posso para frente.Um ruído ao meu lado tira minha atenção.Uma das criaturas salta de uma árvore aminha direta, giro meu braço

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automaticamente para o lado, o acertandoantes mesmo de chegar ao solo, Komodogrita em minha mente, mais sangue espirraem meu rosto, posso sentir o gosto enferru-jado em meus lábios agora.Não sei o que posso fazer, parar e enfrentá-los está fora de cogitação, correr é a únicasaída, mas até quando? Adrenalina me forçaa correr ainda mais rápido que as criaturasatrás de mim, mas não sei por mais quantotempo irei aguentar.Elas não desistem, continuam a meperseguir com perseverança e gritos deeuforia.Fim de linha. Sinto as mãos tremendoquando avisto o abismo onde termina afloresta, apenas alguns metros mais. É isso,então me preparo para a batalha mais umavez, enquanto corro em direção ao buracosem fim.Respiro fundo, enquanto vou me aproxim-ando cada vez mais. Meu coração saindo pela

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boca, as pernas bambas. Não posso vencer,sei disso, mas eu morrerei tentando.Obrigo meus pés a parar de correr no in-stante que chego à beira do penhasco. Migal-has de terra e pequenas pedras caem naimensidão, me provocando, mostrando qualserá meu destino.Me viro, confiante, sentindo cada fibra demeu ser em minhas mãos. Komodo emitetoda sua energia através de mim, sinto asmãos de meu pai novamente por baixo dasminhas.As criaturas diminuem seus passos conformese aproximam, elas sorriem agora, dentesafiados e podres aparecem por cima de seuslábios escuros. Vão chegando mais perto,batendo suas armas levemente nas mãos pe-ludas enquanto me olham nos olhos.Dou uma última olhada para o abismo atrásde mim, um último vislumbre do que meespera.E então não preciso mais pensar.

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Um sorriso surge lentamente entre meus lá-bios, enquanto recuo um passo, me jogandopenhasco a baixo.

Sinto o ar penetrando meu corpo como semil espadas estivessem sendo enfiadas emmim, as veias saltando de meus membros, oscabelos se esvoaçando enlouquecidamenteao redor de meu rosto, a queda parece nãoter fim.

Num instante estou caindo, afundando naimensidão escura a minha volta, e no outroestou voando. Jack me pega no ar, aterrissobruscamente em suas costas de pele dura dedragão. Um lindo e enorme dragão preto,três vezes maior que o dragão que eraquando menino, suas asas gigantes e esbran-quiçadas dominando o ar a sua volta.

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Sinto meu coração bater novamente, umasensação de segurança tomando conta demim. O ar volta vagarosamente por meuspulmões agora. Ele me salvou, mais uma vez.

Rapidamente Jack contorna o abismo, su-bindo até onde as criaturas estão. Umrosnado sai de seu peito quando ele os avistaabaixo de nós.

Com um potente rugido, rajadas de fogosaem de sua garganta, atingindo tudo que es-tá abaixo. Árvores secas pegando fogo rapi-damente, enquanto as criaturas corremdesesperadas tentador escapar das chamasque os consome.

Jack ainda não se dá por satisfeito, ele con-tinua soltando mais fogo a sua volta, até nãoter sobrado mais ninguém.Sobrevoamos a área a procura de maisdesses monstrinhos, mas não encontramos

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nada. Jack aterrissa onde o fogo já não podemais nos alcançar, perto de sua caverna.Desço com dificuldade por entre suas esca-mas e espinhos, mas consigo chegar até ochão sem me machucar.Uns segundos e ele está em sua forma hu-mana de novo. Fico de costas esperando elese trocar. É quando escutamos um pequenobarulho, como de um graveto se quebrandobem ao nosso lado.Uma daquelas criaturinhas está parada atrásde uma árvore morta.Jack se apressa, a segurando pela gola daroupa imunda que está vestindo, a levant-ando do chão.— Por que vocês nos atacaram?— ele per-gunta com uma voz que com certeza teria medado medo se eu estivesse no lugar dacriatura.O pequeno monstrinho gagueja ao tentarresponder.

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— Não me... Me machuque. Nós, na... Nãoqueríamos — ele diz com uma voz rouca, finae asquerosa.— Por que. Nos. Atacaram?— Jack repete,dando ênfase em casa silaba.— Fomos obrigados, nós não queríamos —ele treme ao dizer.— Quem os mandou fazer isso?— O mestre, nunca o vimos. Obedecemos pormedo.Ele treme descontroladamente agora, se eunão tivesse sido atacada, até poderia sentirpena, mas não sinto, nem mesmo umpouquinho, não sei como não o mato eumesma agora.— Perdão... Nós não queríamos — ele con-tinuava a repetir.— Suma daqui, e não volte mais. Da próximavez não terei misericórdia — Jack diz, o ol-hando bem de perto nos olhos. Se fosse pormim, não o teria libertado, nem ao menos

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pensaria duas vezes antes de matá-lo, ele nãopensou quando me atacou.Jack o solta, o jogando no chão, o pequeninosai correndo enlouquecidamente por entre asárvores secas, e some de vista em poucossegundos.Estou olhando a floresta, tentado avistar omonstrinho, quando reparo num Jack nu aomeu lado fazendo o mesmo que eu.— Oh, meu Deus! —digo cobrindo os olhos.— Por que o espanto?— ele diz, enquanto dárisada.Eu não respondo, apenas espero ele setrocar.— Pronto, pode olhar.— Onde você estava?— pergunto, socandoseu peito com toda a minha força.O acerto duas vezes antes que ele segureminhas mãos.— Ei, não me bata, eu salvei sua vida, sua in-grata — diz ainda me segurando.

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— Você me deixou sozinha e esses monstrin-hos apareceram e me atacaram. Pensei queiria morrer — digo, praticamente gritando,enquanto tento livrar minhas mãos.— Desculpe. Fui procurar comida, esqueceu?Não queria que você morresse de fome.Achei que estaria segura aqui — diz me ol-hando nos olhos, levantando um tom em suavoz.— Segura? Olhe para mim! — grito, soltandomeus braços e fazendo sinal para os cortesem minhas pernas e braços, fora o sanguepor todos os lados.Ele parece só agora ver o verdadeiro estadoem que me encontro, me olha dos pés acabeça.— Eu sinto muito — ele diz parecendo fraco.— Você está bem?— pergunta seaproximando.Respiro fundo, as lágrimas ameaçando sair,mas eu consigo fazer com que fiquem dentrode meus olhos.

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Aceno dizendo que sim com a cabeça.Ele se aproxima agachando-se ao meu lado,levanta os retalhos de minha calça rasgadaobservando os cortes causados pela corridana floresta e a espada de uma das criaturas.Jack passa os dedos levemente pelos feri-mentos, cortes e arranhões Sinto dor comseu toque leve, mas não me movo.Ele se levanta sem dizer uma palavra, agorainspecionando meus braços, olhando cadapedacinho de pele, sua mão se fecha em meuqueixo levantando meu rosto en-sanguentado, está procurando por feri-mentos que possam ter por aqui também.Depois de me estudar por uns minutos eleme puxa para um abraço apertado. Seusbraços fechados em meus ombros, sua res-piração quente em meu pescoço, eu possosentir seu coração agora muito acelerado.— Eu nunca mais vou te deixar sozinha — elediz ainda me abraçando. — É uma promessa!— ele não me solta ainda.

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Fecho meus braços por sua cintura agora,afinal, ele me salvou.Nem estou brava com ele, estou elétrica,ainda pela corrida, pela luta e adrenalina quepassei, eu apenas precisava gritar com al-guém e Jack é o único por perto nomomento.Estou feliz por ele estar aqui, e por ele ter mesalvado. Não sei o que teria acontecido se elenão tivesse aparecido, provavelmente eu es-taria morta agora.— Desculpe por ter gritado— digo, ainda comos braços ao redor de sua cintura.Ele se livra de nosso abraço, mas mantémsuas mãos em meus ombros.— Está doendo muito?— pergunta, avaliandomeus ferimentos uma vez mais com os olhos.— Um pouco, não é nada— eu minto, estádoendo muito, mas não quero mais preocu-pações para cima de mim. — O que eramaquelas coisas?— Goblins— ele diz tranquilamente.

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Minhas sobrancelhas arqueadas lhemostram que eu não sei o que isso significa.— Criaturinhas feiosas e extremamente bur-ras, no entanto, são ótimos soldados e obed-ecem facilmente, pois são manipuláveisdemais.— Você acha que foi meu avô que os mandouaqui?— Provavelmente — ele diz com um levantarde ombros.Jack olha pela primeira vez a nossa volta,onde algumas dúzias de goblins estão mortosespalhados pelo chão. Estraçalhados, decap-itados, com cortes fundos nos pescoços eperfurações no lugar onde deveriam ficarseus corações. Sangue espalhado por todasas direções, Komodo pingando gostas aomeu lado. Eu pareço uma assassina macabrasaída diretamente de um filme de terror.— Você fez um ótimo trabalho por aqui — dizcom um assobio longo.

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Respiro profundamente, a cena faz meu es-tômago embrulhar.Me olhando mais uma vez ele diz.— Precisamos limpar você.— Por favor. O cheiro de sangue faz meu es-tomago revirar.— Tem um lago bem perto daqui, por aquelelado — diz apontando para a esquerda.— Tem um lago aqui? Por que você não foipescar uns peixes ao invés de ir procurarcomida tão longe?— pergunto, como se issofosse a coisa mais obvia a se ter feito.— Porque aqui não tem peixes, espertinha.Lembra-se? O feitiço destruiu quase tudo.Devem existir peixes nas profundezas dolago, mas é impossível pescá-los.— Ah!— é tudo o que digo.Jack rasga um pedaço de sua própria blusa,tirando uma tira de tecido, se abaixa atéminha perna e a amarra bem em cima deminha ferida.Eu grito de dor na hora.

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— Desculpe. Eu tinha que fazer — diz mepegando no colo.— Eu posso andar, serio — digo sem podereu mesma acreditar em minhas palavras.— Ahan — ele diz sem se importar.Seus braços fortes me acomodam perfeita-mente. Descanso minha cabeça em seu peitoconfortável, o balançar de seus passos me dásono. É tentador dormir agora, a única coisaque me impede de fechar os olhos é a dorlatejante em minha perna, e ela é quemparece ganhar essa batalha.Tento não pensar na dor insuportável, é in-evitável, mas tento ao menos não focar meupensamento nela.— Você não tinha ido buscar comida?— digo,escutando o roncar de meu estomago.Ele suspira.— Sim, encontrei um javali escondido umpouco longe daqui, mas eu o deixei cairquando vi você desmoronando do penhasco.

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A culpa é sua— ele me encara com as so-brancelhas juntas.— O que vamos comer agora?— minha bar-riga ronca.Ele olha ao redor mais uma vez e arqueiasuas sobrancelhas para mim.— Goblins?Minha bile ameaça sair apenas com opensamento grotesco de comer goblins.— Você não está falando serio, não é?— per-gunto realmente indignada.— Não tem mais nada por aqui, acredite. Fuiao inferno para buscar aquele javali, Melane.Goblin assado não deve ser tão ruim assim —diz com o olhar distante.— Sem chance.— Então fique com fome, eu comerei goblinshoje — ele diz gargalhando alto— Obrigada, mas prefiro morrer de fome.Jack anda por mais um tempo comigo emseus braços, até que chegamos num lago decor escura, quase cinzenta.

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As águas parecem calmas aqui, não há vent-os também. Ele me coloca sentada em umapedra próxima a margem, lentamenteafundo minhas pernas nas águas geladas dolago. Primeiro sinto uma dor afiada, depoisalivio, o frio é quase como um anestésico.Está anoitecendo e ficando escurorapidamente.— Vou acender uma fogueira, está bem? Émelhor correr o risco do que ficar no escuropor aqui. O lago pode ser tão traiçoeiroquando o a floresta.— Como assim?— Não se preocupe, eu estou aqui.É só o que ele diz, então se prontifica a juntargravetos caídos no chão para acender o fogo.Fico na pedra com as pernas submersas naágua. Tiro o casaco ensanguentado, ficandocom a camiseta de baixo, o deixo de lado napedra, enquanto pego água com as mãos elavo meu rosto.

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O sangue parece seco e escuro agora. Precisode um pouco de esforço para limpá-lo e seique meu rosto deve estar avermelhado detanto ter que esfregar.Lavo meus braços, os mergulhando na água.O lago está realmente frio, mas não me im-porto, qualquer coisa para limpar o sanguede meu corpo.Retiro minha perna da água gelada, e a dorvolta instantaneamente, a coloco de voltarapidamente e a sensação de dormênciaretorna.Dou uma olhada em Jack, agora terminandode juntar os galhos.Começo então a tentar limpar meu casaco.Parece impossível limpar todo o sangue dele,está impregnado.Desisto de limpá-lo o colocando de volta napedra, pego Komodo que está do meu lado eo mergulho também para limpálo.É quando eu a vejo.

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Ela está bem próxima, apenas alguns metrosda pedra onde estou.Somente a cabeça para fora da água, olhosgrandes me observando. Está escuro, mas aluz da lua parece tão forte aqui que posso vê-la quase perfeitamente. Ficamos nos olhandopor uns segundos antes dela se aproximarlentamente.Ela se eleva mais um pouco sobre a água,agora posso ver lindos cabelos loiros esver-deados sobre seus ombros finos e pele per-feita de porcelana.A ponta de uma longa causa verde folhasurge, submergindo atrás de sua cabeça.Estamos quase lado a lado agora, eu sorriopara ela, que me retribui timidamente osorriso.— Saia de perto dela. Anda, suma daqui suamaldita— escuto os gritos de Jack se aproxi-mando de nós.

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Os olhos da sereia se arregalam, antes delasaltar de volta pras profundezas do lagogelado.— Você está bem?—Jack diz ao meu lado, se-gurando meu rosto com as duas mãos.— Sim, eu estou. Ela não ia me machucar,por que a assustou?— pergunto perplexa.— Você não conhece sereias, Mel, não sãocomo os contos de fadas que você está acos-tumada. São traiçoeiras, te afogam sem quevocê perceba.— Não acho que ela iria me afogar, ela pare-cia... Com medo.— Acredite em mim, Melane, da próxima vezque vir uma sereia, se afaste.Aceno com a cabeça mesmo sem concordarcom ele. Não acho que ela iria me fazer mal,ela parecia doce, na verdade.É como se ela quisesse me ajudar.— Deixe-me me ver sua perna— Jack diz aretirando da água para olhá-la.

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Uma careta se forma em meu rosto no exatomomento em que minha perna sai da águafria e anestésica.Vejo a testa de Jack franzir ao ver meu rostocontorcido. Ele suspira uma vez.— Está tão ruim assim?— Parece que está inflamada. Devia ter ven-eno na espada dele — diz sem tirar os olhosdo ferimento que me recuso a olhar. Nuncagostei de machucados, embora sempre tenhaconvivido com eles, sou muito desastrada.Rasgando mais um pedaço de sua camisa, elefaz outro curativo improvisado. Junta min-has coisas e me pega no colo novamente.— Não vai apagar a fogueira antes de irmos?— Não. Ela pode servir de distração para aque faremos perto de casa.Andamos no caminho escuro e silenciosocom a visão noturna de Jack.Chegamos à caverna agora.Ele me coloca no chão, próximo a pedra ondeencosto minha cabeça pesada.

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A dor ainda continua, mas não quero que eleperceba.Rapidamente ele acende uma fogueira. Pegaalguns potes com ervas verdes dentro da cav-erna e espalha por cima de minha pernaferida.Arde no momento em que a pasta atingeminha pele, mas depois refresca e alivia.— O que tem nessa pasta?Ele me olha pelo canto do olho.— Você não vai querer saber...E pela expressão em seu rosto, acho que eleestá certo sobre isso.— Feche os olhos agora.Eu obedeço. Porque sei o que está por vir.Apenas escuto o barulho de sua espadacortando.Continuou de olhos fechados por um tempo,até que ele diz que é seguro olhar.Um pedaço de carne está preso com umgraveto sobre a fogueira.

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— Viu, não parece tão ruim agora não é?—ele diz tentando sorrir.Poderia não parecer se eu não soubesse doque se trata aquele pedaço de carne, mas eusei, globins fedorentos.Ele se senta ao meu lado, ficamos em silencioesperando a carne ficar pronta.— Doendo muito?— Não — eu minto novamenteEle me olha de uma forma estranha, como sesoubesse que estou mentindo.Depois de uns minutos ele se levanta, cort-ando pedacinhos pequenos de carne.Ele come um, mastigando lentamente.— Realmente, não é tão ruim— diz sorrindo.— Que nojo — é apenas o que lhe respondo.— Vamos, Mel, você precisa comer.— Não, obrigada.— Mel, você está ferida e cansada. Precisa deforças, por favor, apenas prove. Pense que éfrango — diz apontando um pedacinho decarne em minha frente.

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Eu estou com fome, faminta.Com um suspiro,fecho meus olhos e abrominha boca. Jack coloca a carne entre meuslábios, eu a mastigo rapidamente, quase semsentir o gosto e a engulo de uma vez.— Viu, não foi tão ruim, foi?— Não — digo tentando sorrir.E não foi. Uma vez minha avó disse quequando estamos com fome, qualquer coisairá parecer deliciosa. Talvez seja isso.Como tanta carne de goblin essa noite queme sinto a ponto de explodir a qualquermomento.Depois Jack apaga a fogueira e me carregano colo para dentro da caverna.Minha perna ainda sangra e a dor é agoniz-ante, o efeito da pasta que ele havia colocadoem mim foi apenas momentâneo.Um grito agudo escapa de meus lábiosquando minha perna raspa no chão ao mesentar. Os olhos de Jack estão me estudandoe sua testa fica franzida.

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Ele senta-se atrás de mim, me acomodandoem seu peito.— Você vai ficar bem, Mel. Durma, vou cuid-ar de você.Eu tento, dormir é tudo o que eu quero, masa dor é mais forte que o sono.Fico deitada por um tempo que não seidefinir ao certo, pode ter se passado anos ouapenas segundos, não sei dizer. Minhacabeça dói e parece muito pesada, eu mesinto quente, tão quente que o corpo de Jackparece muito gelado, comprado ao meu, em-bora esteja na temperatura normal.— Você está queimando de febre— escutoJack dizer mais para ele mesmo do que paramim.Sinto seu corpo deixar o meu agora, estoudeitada contra o chão frio da caverna.Jack volta com algo nas mãos, ele me ajuda asentar e me obriga a engolir uma coisa verdee marrom com gosto amargo, que eu nem

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faço ideia do que seja e nem perco tempotentando descobrir.Novamente ele volta a me aconchegar emseu peito.Passo a noite toda em delírios, me sentindotão quente quanto o sol.Jack continua acordado o tempo todo aomeu lado. Só depois de umas boas horas as-sim, é que a coisa verde que me fez engolirparece ter tido algum efeito, e melhoradominha febre, ainda me sinto doente e minhaperna dói como o diabo, mas não me sintomais queimando.Logo os primeiros raios de sol aparecem porentre as laterais da porta improvisada depedra.Jack ainda está dormindo atrás de mim. Opobrezinho ficou acordado a noite toda mevigiando, acho que só quando sentiu meucorpo menos quente é que conseguiu pegarno sono.

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Minha perna dói tanto que posso sentir a dorpor todos os lados do corpo, como se elativesse se espalhando.Eu preciso da água gelada do lago. Já está dedia, e não fica muito longe daqui.Não quero acordar Jack, ele precisa dormir.Levanto-me o mais silenciosa que posso paranão acordálo, me arrastando lentamente decima de seu peito, mordendo os lábios paranão gritar quando o peso de meu corpoacerta minha perna em cheio, é como se milagulhas estivessem sendo enfiadas em minhacarne. Respiro fundo, pego Komodo que estájogado no chão e me arrasto pela fresta, ab-rindo a pedra usando a espada comobengala. Minha perna grita em protesto, masnão me importo. Logo melhorará, quandochegar até o lago.Vou me arrastando pela floresta, com muitadificuldade, me segurando nas árvores secasao meu redor para não cair.

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Me apoio em Komodo a cada passo que dou,sinto que vou cair a qualquer momento, masnão desisto, continuo me arrastando.Depois de um tempo eterno, avisto as águascinzentas a minha frente.Um som de alivio escapa de meus lábios nomomento em que minha perna toca a águafria.Dormência, enfim.Fico sentada na pedra com os olhos fecha-dos, aproveitando a sensação. A perna aindadói, mas é incomparável a dor que sentinoite passada, nem me arrisco a tirá-la daágua, e muito menos de olhar para o feri-mento, sei que está feio demais. Como ireifazer agora? Quanto tempo levará para esseferimento se curar? Isso é tudo que eu nãopreciso, como posso ajudar alguém se nemao menos posso me manter de pé?Deito a cabeça para traz, tentando nãopensar nisso.

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Abro os olhos no momento em que sintouma mão se fechando em minha canela.Rapidamente me abaixo e vejo uma lindacauda verde folha submersa.Pânico toma conta de mim.Lentamente ela imerge da água, seu rosto apoucos centímetros do meu. Sua pele pareceainda mais perfeita agora, na luz do sol, seuscabelos loiros esverdeados caem por seusombros cobrindo seus seios.Ela me olha profundamente dourados.Paraliso-me, nenhuma palavra com seusgrandes olhos

consegue sair de meus lábios. Não é o medoque me consome, ela não me assusta, achoque a surpresa de vê-la e a advertência queJack fez ontem é que fazem esse conflito emminha cabeça.

Ainda segurando minha canela ela levantaminha perna a retirando da água. A dor vemnovamente, ainda mais penetrante, uma

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careta se forma em meu rosto, mas consigonão gritar.

Ela se concentra em minha ferida, passandolevemente os dedos pegajosos. Então algo in-esperado acontece. Ela começa a chorar, semsom algum, apenas as lágrimas escorrendopor seu rosto.

— Oh! Não chore, eu estou bem.

Ela parece não se importar com o que digo.As lágrimas caem sobre meu corte, uma poruma, pingando dentro da ferida inflamada.

Calma, sensação de alivio novamente. Diantede meus olhos, vejo a ferida se fechando, di-minuindo para então minha pele muito pál-ida ficar intacta, como se nada tivesseacontecido.

Ela levanta seu olhar para mim e sorri.

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Toco minha perna levemente com a ponta demeus dedos.

A dor se foi, assim como o machucado.Como eu havia imaginado, ela não queria memachucarontem à noite. Ela queria me ajudar.— Obrigada— digo sorrindo.— Sem problemas — ela responde com a vozmais bela,hipnotizante e encantadora que eu já haviaescutado. É comomusica derretida sendo sussurrada em meusouvidos.—Melane! Melane, onde você está — Jackgrita. —Jack, estou aqui, no lago — grito devolta.Poucos segundo se passam e ele aparece porentre afloresta.— O que você está fazendo aqui? Quer mematar de

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preocupação? Pensei que tinham te cap-turado — diz enquanto seaproxima de mim.— Desculpe, eu só precisava de água fria,mas veja —digo virando para mostrar a sereia que mesalvou, mas ela nãoestá mais aqui.— Você é louca, garota? Saindo com esseferimen... —Suas palavras se perdem no ar quando ele seaproxima e vê minhaperna intacta novamente.Boquiaberto ele toca a pele de minha perna.— Foi a sereia, a de ontem à noite. Ela chor-ou em cima daferida e...— Ai! — sou interrompida por um cascudona cabeça. — O que eu disse sobre sereias,Melane?— ele dizparecendo realmente bravo agora.— Ei, isso doeu — digo, colocando a mão

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automaticamente em cima da cabeça.— Não me importo. Sereias são perigosas,preste atenção.Não ouviu nada do que disse ontem ànoite?— diz soletrandocada silaba lentamente.— Desculpe, Jack, mas veja, ela me salvou,não queria mefazer mal — digo apontando para perna.— Você teve sorte dessa vez— ele diz se vir-ando, indoembora.— Nem tive tempo de me despedir dela, nemsei seu nome. Ele não me espera, começa avoltar pela floresta. — Me espere, Jack —digo descendo rapidamente dapedra, indo atrás dele.Andamos silenciosamente de volta para cav-erna, masquando estamos quase chegando, ele diz.— Desculpe pelo cascudo.Eu sorrio.

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— Não tem problema.— Nunca mais suma dessa forma — diz semme olhar. — Tudo bem.— Ou da próxima vez eu não irei te procurar.Eu sei que ele iria, mas mesmo assim con-cordo. — Está bem.— Você parece criança, a gente não pode tir-ar o olho nempor um segundo — ele está falando mais parasi mesmo do quepara mim novamente.Sento-me no chão assim que chegamos.Ainda estouolhando minha perna curada.— É impressionante, não é?Ele me olha de pé ao meu lado.— Lágrimas de sereias têm poder curativo —diz coçandoa cabeça.— Nem agradeci a ela. Você a espantou antesdisso. — Não me acuse, senhorita espertinha.Sua sorte é que

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essa sereia era boazinha, a maioria não é as-sim, acredite em mim— diz levantando as sobrancelhas.— Não importa, estou curada. Hoje voltamospara aldeia. Ele suspira uma vez, ainda meolhando, as sobrancelhasbem levantadas, mas ele não diz nada, apen-as acena com acabeça.

Capítulo 11 Revelada

Jack fica calado no caminho pela floresta.

Não perdemos tempo olhando a paisagemdestruída, e vamos direto para casa deAmélia.Ela me abraça forte assim que entro pelaporta.Angélica me cumprimenta com um abraçotambém, mas seu olhar gélido ainda per-manece em seus olhos quando me olha.

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Damião não está em casa.— Os soldados vieram ontem — Amélia dizaflita.— Prometeram voltar hoje à noite. Se nin-guém te entregar, eles irão começar a matarnovamente — Angélica diz me olhando den-tro dos olhos.Eu concordo com o que ela pensa, ninguémdeve morrer por minha causa.— Ninguém precisará me entregar, eu apare-cerei por conta própria— dgo sem desviar oolhar do seu.— Você está maluca? Enlouqueceu? Você,apenas você contra um exercito?— Jack diz,sorrindo sinicamente tirando sarro.— O que você quer que eu faça?— perguntolevantando os braços.— Espere os outros, iremos juntar os re-beldes, se lembra?— Eu não tenho tempo para isso, Jack, elesvirão hoje, não posso mais deixar que aspessoas morram. Eu simplesmente não

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posso viver com isso, você não consegueentender?Ele balança a cabeça pros lados, mas não diznada.

A noite não demora a chegar, ficamos nacasa de Amélia até então.Jack não disse uma palavra durante o diatodo.Fico pensativa com Komodo em minhasmãos, mesmo que eu quisesse, não poderiasoltá-lo. Ele sabe que algo está para aconte-cer e seu desespero de me proteger não mepermite soltá-lo, ele sente que estou nervosa.

Não sei o que irá acontecer, mas me escond-er, me acovardando não é mais uma opção.Não permitirei que mais ninguém morra pormim, que mais famílias se destruam.

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Penso em Davi, lembro-me de seus lindos ol-hos adoráveis e a forma como me olhasempre, então lembro que ele está desapare-cido, preso em algum lugar, com apenas ahipótese de que está vivo servindo de iscapara mim.

O pensamento me deixa doente por dentro.Sinto falta dele, e da época em que tudo eramais fácil e tranquilo, minha única preocu-pação era uma garota chata que me ator-mentava na escola. Minha realidade estábem diferente hoje. Essa é minha vida agora,gostando ou não, é assim que as coisas são, eirei dar o melhor de mim para que tudo seresolva, é isso que esperam que eu faça.

Mais algumas horas se passam, o céu azuldesaparece e a escuridão começa a ganharvida, assim como o vento que se intensifica láfora. Agora já posso ouvir os passos or-questrados dos soldados se aproximando.

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Ergo a cabeça, me levanto e saio pela porta,sem dizer uma palavra.Jack já está em minhas costas, sua espadaem suas mãos.Estou usando um casaco grande, escondendoKomodo entre o tecido largo.Vejo homens enormes, com armaduras e es-padas afiadas, ao menos duas dúzias deles.Sinto meu coração acelerar em meu peito.As pessoas da aldeia ficam aglomeradas, to-das amedrontadas, mas eles não precisammais ter medo, é tudo o que penso.— Entreguem à mestiça! — soldado da frentegrita. Quando ninguém responde, ele dá umpasso.— Eu mandei entregarem à mestiça—diz dando ênfase em cada silaba. — Não?Ninguém? Então irá haver mais mortes hoje— ele diz sorrindo lentamente.Com dois passos largos me coloco a frentedas pessoas amedrontadas da aldeia, vejoJack prontamente ao meu lado.

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— Ninguém irá morrer hoje — digo com umavoz serena, tirando a capa de cima de meusombros, ficando em guarda com Komodo emminhas mãos. — Eu estou aqui!Nesse instante, o vento sopra, fazendo comque a terra vermelha voe sobre meu corpo,deixando um rastro de poeira que brilha coma luz do fogo dos lampiões em volta de mim,cabelos negros começam a cair sobre meusombros se transformando em fumaça antesde chegar ao chão.Fios ruivos saem de minha cabeça, chegandoquase em minha cintura, cacheados evolumosos, em toda sua gloria.Murmúrios se elevam a minha volta. Dedosapontados em minha direção, gritos deindignação.Os soldados parecem espantados, eles me ol-ham atentamente por baixo de seus ca-pacetes brilhantes.

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O fogo acesso dos lampiões pendurados nascasas reflete em meus cabelos, os fazendoparecer chamas vivas em minha cabeça.Komodo treme em minhas mãos.— Matem-na— o soldado da frente sussurra.Não estou com medo.Meu coração bate freneticamente e minharespiração está rápida, mas não estouassustada.Aperto os olhos, segurando Komodo comforça.Os homens com armaduras avançam sobremim, e eu me sinto pronta para eles.Rapidamente com um único golpe, apenasdobrando um pouco os joelhos e torcendo obraço, decapito o primeiro dos muitos queainda correm em minha direção.Arrastando Komodo de um lado para o outropelo ar, acerto mais dois deles, rasgando pro-fundamente no lugar onde devem estar seuscorações.

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Jack está ao meu lado dando o máximo de si,ele ataca mais rápido, já foram seis em suaespada.As pessoas da aldeia gritam, correm e seescondem em suas casas.Continuo a girar minha espada pelo ar, cort-ando tudo o que vejo pela frente, levantandouma parede de terra e poeira junto comigo.Jack e eu estamos lado a lado, lutando jun-tos, sangue espirrando em nossos rostos.Mais uma pessoa se junta a nossa batalha. ÉDamião.Logo ele aparece a minha esquerda, segur-ando uma espada tão grande quanto aminha. Ele parece saber o que faz, a idadenão lhe dá nenhuma desvantagem sobre oshomens que nos atacam.Três espadas comigo agora.Vou avançando conforme homens vãocaindo aos meus pés.Com um giro no ar, acerto a garganta dosoldado que tenta me acertar com o escudo.

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Faíscas saem de Komodo quando acertofortemente a espada do oponente, estamoscara a cara, apenas com o aço nos separando.Com um grito saindo de minha garganta,avanço com toda força, o derrubando aminha frente, sem esperar ou prolongaracerto Komodo em seu peito com tanta vont-ade que por pouco no o finco no chão deterra vermelha.Damião acerta mais dois a minha esquerda,ele parece ofegante agora, mas continua comtoda energia, o suor escorre por seu pescoço,mas ele parece focado.Jack já não está mais ao meu lado, uma ol-hada rápida e o vejo alguns metros à frentecom quatro homens a sua volta. Ele estácercado.Ele gira a espada, pegando o primeiro a suafrente, prontamente girando para traz , in-terrompendo o golpe que viria a seguir. Maishomens se juntam ao seu redor.

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Acerto freneticamente o soldado que correpara mim, tentando chegar onde Jack estápara ajudá-lo.Mais homens aparecem, vindo em minhadireção, de onde eles estão saindo?Escuto Jack gritar, sua perna foi cortada,vejo o sangue escorrendo por sua calça, vejosua perna tremer, mas ele ainda mantémposição de guarda, atacando sem descanso.Algo dentro de mim muda.Ele está em perigo. Tudo parece estar emcâmera lenta agora, vejo o sangue pingar,gota por gota de sua perna, sua espada gir-ando acertando o homem ao seu lado. VejoDamião perfurando o coração de alguém, en-quanto o suor desce lentamente de sua testa,sinto meu coração, cada batida rápidasoando lentamente em meu peito, como si-nos em uma catedral.O ar ao meu redor levantando a poeira atémeus olhos semicerrados.

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Sinto cada pedaço de meu ser, respiro umavez, escutando as batidas de meu coração. Osolhos de Jack se arregalam enquanto sua es-pada rodopia em suas mãos.Algo cresce dentro de mim nesse segundo,sinto a força subindo, saindo de meu interiore se posicionando em minhas mãos, at-ravessando Komodo, nos unindo em um sócorpo. Komodo muda de cor, esquentandoaos poucos, para então começar a queimar.Um tom de vermelho fumegante toma contade seu comprimento, enquanto faíscas caemao meu lado.O mundo volta a sua velocidade normal en-quanto avanço com passos largos, com umgrito de fúria levanto Komodo acima deminha cabeça, saltando no ar e acertandoperfeitamente o peito do homem mais próx-imo a mim.Um rastro de fogo persegue Komodo poronde ele passa. O homem que teve o peito

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rasgado se consome em chamas no chão, ochuto com toda força abrindo caminho.Continuo avançando, minha visão focada emJack, apenas alguns metros adiante.Rapidamente vou me aproximando,matando sem o menor esforço, é como se eutivesse feito isso à vida toda.Komodo sente minha raiva, minha fúria eprincipalmente meu medo do que possaacontecer com Jack, nunca o senti tão confi-ante em minhas mãos.Rastros de fogo por todos os lados ondepasso, corto gargantas com a mesma facilid-ade em que corto legumes para umensopado.Sangue espirrando em meu rosto e corpo,fogo queimando tudo que se oponha em meucaminho, nada me detém.Apenas alguns segundo e estou lado a ladocom Jack.Com um giro no ar acerto os homens que ocercam, assim, sem esforço algum. Eles caem

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a minha volta, formando um circulo demorte com cheiro de churrasco queimado.Fumaça sobe no ar, por todos os lados ondeos rastros de fogo estiveram.Todos os soldados estão caídos no chão, al-guns em chamas, outros com ferimentos pro-fundos derramando sangue vermelho equente sobre a terra, alguns apenas tostadose com fumaça saindo de seus corpos para sejuntar ao resto que está no ar.Estou parada bem ao lado de Jack que meolha com olhos arregalados.Seguro Komodo com as duas mãos a minhafrente, minhas pernas separadas, ainda estouem guarda, esperando o que ainda pode vir.Espero alguns poucos segundo, nadaacontece. A ameaça acabou, por agora.Meus olhos se acalmam, assim como meucoração diminui as frenéticas batidas. Ko-modo aos poucos deixa o vermelho fu-megante para então voltar à cor prata de aço.

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Damião me olha fixamente, descansando asmãos nos joelhos.Ninguém diz uma palavra durante os próxi-mos segundos. Apenas contemplamos avisão de morte que se espalha pelo chão.Alguns rostos aparecem chocados pelaspequenas janelas das casas, outros estão es-piando pelas frestas das portas, todos comexpressão de espanto grudada em seus ros-tos assustados.Aos poucos as portas vão se abrindo,rangendo no processo, e as pessoas vãolentamente se arrastando para fora.Desabo Komodo ao meu lado, deixando aponta afiada tocar a terra, enquanto respiropesadamente.Olhos curiosos e amedrontados surgem emminha direção.Tenho a impressão de que toda aldeia estáaqui, parados na minha frente.Algumas crianças escondidas atrás das per-nas de seus pais me olham com olhos

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brilhantes de esperança. Jogo um sorrisopara uma garotinha pequena de cabelos en-caracolados, ela sorri de volta e se escondeainda mais na perna de sua mãe.Espero pelo julgamento, estou apenas esper-ando. Quando será que os legumes podresserão jogados em mim? Quando os xinga-mentos por eu não ter aparecido antescomeçaram a jorrar por cima de minhacabeça? É apenas questão de tempo, estouapenas aguardando, esperando o bombarde-io por todas as mortes que já causei.Nada acontece. Tudo está em silencio, elesme olham e eu os olho de volta.Então, contradizendo tudo o que pensei aspessoas sorriem para mim.Seus olhos brilham com a luz dos lampiões eseus sorrisos se alargam cada vez mais. Elescomeçam a aplaudir.Aplausos e mais aplausos, gritos de incentivosão jogados da multidão. Crianças são

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levantadas pelos ombros de adultos parapoderem ter uma visão melhor de mim.Uma sensação de alívio e emoção percorremeu corpo, acendendo cada fibra de meu ser,sinto-me poderosa, mas de uma forma difer-ente, eles me dão poder, mas acima de tudo,sinto-me feliz.Vejo pelo canto do olho Jack mancando, seaproximando de mim, ele também está sor-rindo, seus olhos escuros focados nos meus.Ele para ao meu lado, olha para multidão anossa frente e diz com uma voz alta.— Contemplem a princesa, Melane!Explosão de gritos e risadas, todos parecemfelizes e esperançosos.Alguns segundos depois a multidão cessa agritaria e os aplausos.Um por um, todos os moradores do Ninho seajoelham, abaixando as cabeças, formandoum mar de pessoas a minha frente.— Conseguiu princesa— Jack sussurra emmeu ouvido.

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O sol nasce no dia seguinte, trazendo consigoos raios quentes de esperança que esse povonecessita.Noite passada foi o estopim de encoraja-mento que as pessoas precisavam.Eles têm coragem, são pessoas fortes, con-seguiram sobreviver até aqui, apenas precis-avam de alguém para dar o primeiro passo,alguém para lhes mostrar o caminho. Eu fuiessa pessoa, e agora, juntos conseguiremosdar o passo seguinte.Crianças foram dadas para que eu as ab-raçasse, mãos apareceram para eu as aper-tar, palavras de confiança, esperança e co-moção foram ditas em meu rosto, depois quetodos se curvaram perante a mim noitepassada.A chama de esperança que lhes faltava foiacessa.

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— Você realmente existe! Eu sabia que exis-tia — uma mulher com aparência velha dizsegurando minha mão com olhos cheios deágua.— Nunca desisti de você, sempre soube quevoltaria para nos salvar— um homem de ca-belos castanhos ondulados, disse me ol-hando nos olhos.Depois voltei para casa de Amélia e Damião,onde cai no sono pesadamente.Sonhos estranhos tomam conta de minhamente. Embora eu não possa distingui-los. Étudo um borrão escuro, acho que vejo umlago a minha frente, mas não posso dizercom precisão. A sombra de uma pessoaameaça ficar focada em minha visão, maslogo se mistura com o resto dos borrões de-saparecendo, vejo um pequeno borrão azulno meio de todo o negro e então tudo desa-parece de novo.

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Acordo cedo com o som de vida que surge dolado de fora, há algo diferente no ar, seiantes mesmo de sair da cama.Abro os olhos e vejo Angélica parada em suacama me olhando.— Bom dia— digo a ela.— Me desculpe — ela diz num sussurro semgraça.Levanto uma sobrancelha.— Eu culpava você, por David e por tudo quenos aconteceu, mas você não é a culpada.Você apenas foi jogada nessa confusão toda,assim como eu. — Peço desculpas — ela dizmais uma vez.Não digo nada, apenas aceno com a cabeçaenquanto tento sorrir.Não acho que Angélica esteja errada em meculpar, mas até pouco tempo eu nem sabiaque esse lugar existia, não sabia de nadadisso, e para alguém que viveu a vida todanuma chácara lendo livros, acho que nãotenho me saído tão mal assim.

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Um grito vindo da cozinha toma minhaatenção, me fazendo levantar da cama deuma vez. É Jack.Abro as cortinhas e saio correndo.— Calma, Jack, não está tão ruim assim, e eujá estou terminando — Amélia diz, enquantocostura a pele cortada da perna de Jack.Alivio, posso respirar novamente.— Vá com calma, mulher, minha perna não écarne de açougue— ele diz rabugento.Sorrio com a cena. Um homem tão grandeque lutou em uma batalha sangrenta noitepassada, agindo como um menino quando semachuca.Ele vira o rosto e sorri no momento em queme vê.Sua expressão se contorce novamente emuma careta.— Ei, mulherzinha, delicadeza zero, não émesmo?— diz levantando as mãos para oalto.— Quieto, Jack, esse foi o último ponto.

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— Finalmente. Essa mulher não tempiedade— ele diz me olhando, apontando odedo para Amélia.Sorrio novamente, estou sempre sorrindoquando Jack está por perto.— Como vai a perna?— pergunto ainda sor-rindo. — Vai ficar boa— Amélia responde.— Bom dia, princesa— Jack diz vindo atémim.— Bom dia, Jack. Doendo muito?— perguntoapontando pros pontos em sua perna.— Ah, que nada, picada de mosquito.— Claro!— digo sem conseguir conter o riso.— Do que ela está rindo?— ele perguntaapontando o dedo indicador para mim.— Como vão as coisas por aqui?— pergunto aAmélia.— Boas, as pessoas estão confiantes agora.Estão terminando de enterrar os mortos deontem.Aceno com a cabeça.

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— E David? Não tivemos nenhuma noticiadele— digo desolada.— Ele ainda está vivo. É a arma que eles pos-suem contra você, não vão matá-lo — Jackdiz com um levantar de ombros.— Espero que esteja certo.Angélica coloca uns pedaços de torta namesa sem dizer uma palavra. Eu sei que elaestá sofrendo por ele, eu também estou, masnão há tempo para minha dor, tenho quepensar em um modo de tirá-lo de lá.Agora que tenho a aldeia ao meu lado, tudoficará melhor.Damião entra pela porta da sala com doishomens ao seu lado, um deles deve ter porvolta de quarenta anos de idade, o outro émais jovem.O mais velho tem cabelos grisalhos empequenas partes de seu cabelo ralo e barba,mas ele parece ser forte. O mais novo possuicabelos castanhos com mechas douradas es-palhadas e olhos encantadoramente azuis.

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— É um prazer conhecê-la, princesa— os doisdizem em uníssono ao me ver.Tenho que me acostumar com as pessoas mechamando de princesa.— O prazer é meu — digo mesmo sem saberquem são eles. Se estão com Damião, devemser amigos.— Esses são Daniel e Edmundo, lideres dosrebeldes — Damião os apresenta.-Oh!— é tudo que sai de minha boca.— E aí?— Jack pergunta com a boca cheia detorta.— Queremos ajudá-la, princesa Daniel, ohomem mais velho diz.— Damião nos contou sobre o que pensamem fazer, destruir rei Ariel, quero que saibaque meus homens estarão ao seu ladoquando a guerra começar — ele prossegue.— Isso é maravilhoso, aceito sua ajuda —digo a ele sorrindo.

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— Seu pai era um homem honrado, tenho or-gulho de lutar lado a lado com sua filha — elediz me mandando um sorriso acolhedor.— Obrigada! Significa muito para mim.Os olhos de Edmundo, o cara dos olhosazuis, estão vidrados em Komodo, que des-cansa na mesa da cozinha.Quando percebe que estou olhando, ele des-via o olhar corando a ponta de suas orelhaslevemente de vermelho.— É muito bonita sua espada, princesa— elediz sem jeito.— O nome dele é Komodo.— Eu poderia tocá-lo?Antes mesmo que eu tenha tempo de dizer,Jack responde por mim.— Vai lá, tente levantá-lo, vai com fé.— Jack gosta de ser brincalhão. A verdade éque ninguém além de mim pode levantar Ko-modo, ele pesa toneladas para qualquer umque não seja eu — digo por fim.

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Os olhos de Edmundo brilham enquanto ol-ham para a espada.— Posso apenas tentar, princesa? Com suapermissão?Daniel revira os olhos.— Se você insiste...Jack cai na gargalhada quando Edmundo ex-austo pelo esforço deixa os braços caírem aolado de seu corpo.Edmundo também sorri agora.— Realmente, pesa toneladas. Como vocêconsegue?— para mim ele é bem leve— digo, o pegandofacilmente de cima da mesa.— Meu filho tem fascínio por espadas —Daniel o repreende.— Estamos aqui para treinar as pessoas daaldeia, aqueles que quiserem ajudar embatalha. Nossos homens são bem numer-osos, mas quanto mais pessoas, melhor.— Concordo com você.— Vamos começar hoje mesmo.

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— Ai, ai, quantos ainda vou ver tentando le-vantar essa espada?—Jack diz aindagargalhando.

O sol quente castiga, caindo sobre nossascabeças, o vento quase não sopra e quando ofaz é tão quente quanto os raios que nosatingem.

Mesmo assim as pessoas parecem confiantesenquanto escutam atentamente as instruçõesde Daniel.Ele reuniu um grande número de homens emulheres, estão todos aglomerados de pé,enquanto ele explica algumas táticas de luta.Jack está sentado numa pedra ao seu lado,apenas observando.Fico parada, não muito perto fazendo omesmo que ele.

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A maioria das pessoas reunidas ali são ho-mens, quase todos bem jovens, mas tambémhá mulheres. Elas parecem focadas nas pa-lavras de Daniel, não se vê nem um pingo devestígio de medo em seus olhares.Esse povo tem esperança novamente, elestêm vontade de lutar pelo que é deles, e vãofazer isso com cada vibra e cada gota desangue que há dentro de si.Me aproximo e me sento ao lado de Jack.Sem me olhar ele se afasta uns centímetros,me dando espaço na pedra.— Tragam todas as armas que tiverem e ven-ham hoje à tarde para o treino — Daniel dizpor fim, encerrando a reunião.— Eles não sabem lutar?— pergunto a Jack.— Uma grande parte sabe, mas tem aquelesque ainda precisam aprender — ele diz comum levantar de ombros.— Não vai ser arriscado? Quer dizer, praspessoas que não possuem experiência comluta?

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— Daniel é um ótimo professor... E eu tam-bém, olhe só para você— ele diz sorrindo, en-quanto me cutuca com o ombro.— Eu tenho Komodo, ele faz todo o trabalhopor mim, tudo que tenho que fazer é segurá-lo.Jack me olha uns poucos segundos antes dedizer.— Isso, minha cara, é o que você pensa.Ele se levanta da pedra, me deixando sozinhaenquanto caminha mancando em direção aDaniel.Mais tarde nesse mesmo dia os homens deDaniel montam um ―campo de treina-mento?, alguns pedaços de madeira simu-lando pessoas para que possam atacá-los, es-padas fincadas no chão esperando serem em-punhadas, arcos pendurados nos galhos dasárvores com alvos feitos de madeira ao lado,Edmundo está lutando com um dos homensde seu pai, parando em certos momentos,falando sobre o golpe que acabara de ser

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apresentando, com um circulo de pessoas asua volta aprendendo.Jack está parado encostado numa árvore.— Ele é bom — digo me aproximando deJack, apontando na direção de Edmundo queagora rende seu oponente, o prendendo nochão.Jack apenas faz um som de riso sínico comos lábios.— O que foi? Por que está rabugento? Oh,espere, quando é que você não está rabu-gento?— pergunto fazendo cara de espanto.Ele me olha com tédio.— HA! Há! Você é tão engraçada, Melane.Sério, veja como morro de rir de você— elediz fingindo um riso forçado.Eu sorrio mesmo sem ter a intenção.— Sério, Jack, porque está aqui desse jeito?Ele me olha por um segundo.— Não me deixam ajudar, tenho que esperarminha perna cicatrizar ou então os pontosvão abrir e eu vou ter que sofrer nas mãos

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daquela mulherzinha, de novo — diz comuma careta no rosto.— Eu tenho uma ideia— digo com um sorrisolentamente se formando em meus lábios.Ele levanta suas sobrancelhas para mim.— O quê?— Você podia ir até o lago comigo... A sereia,ela poderia ajudar.— Não, não, não, Melane, sem chances. Nen-huma sereia vai por suas mãos pegajosas emmim.— Ela não precisa por as mãos em você,apenas suas lágrimas — digo parecendo umacriança teimosa.— Esqueça! — diz encostando o dedo indic-ador na ponta de meu nariz.— Jack, esse negócio vai demorar dias paracicatrizar, e ela pode resolver isso em segun-dos. Ela é boazinha, você mesmo disse.Ele olha para o horizonte, pensando com oolhar distante.

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— Pense bem, Jack. Assim você poderiaajudar nos treinos — ele não responde. —Qual é, Jack? Qual o problema?Ele apenas me olha sem dizer nada.— Por mim? Eu não gosto de ver vocêmachucado assim, jogado pelos cantos etriste. Por favor, por mim?— repito, fazendominha melhor expressão de pena.Ele me olha mais uma vez, uma expressãonão confiante em seu rosto.

Capítulo 12 Pequenasrachaduras no vidro

— Não acredito que estamos fazendo isso —Ele diz enquanto marchamos em direção aolago.— Confie em mim, Jack, ela não é ruim.— Espero que você esteja certa. Sereias nãosão confiáveis. Eu não gosto nenhum poucodelas.

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— Você ao menos já esteve com uma em suavida?— Pergunto levantando a sobrancelha.— Não, apenas vi uma de longe uma vez, Masjá ouvi histórias demais de homens seafogando, hipnotizados com sua beleza, enão quero ser o próximo.— Ela não vai te hipnotizar, estarei ao seulado.Andamos mais uns minutos até chegar àbeira do lago cinzento.Jack parece relutante.Dobro minha calça até os joelhos, tiro asbotas que angélica havia me emprestado eentro nas águas frias do lago.— Você não vem?Ele espera mais uns segundos antes de tam-bém dobrar sua calça e tirar suas botas.Jack para ao meu lado dentro do lago, seu ol-har está distante, no horizonte.— Isso não é uma boa ideia, é melhor a genteir embora— ele diz se virando para ir.Pego sua mão, o fazendo parar.

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— Jack, confie em mim.Ele me olha nos olhos, respira fundo uma veze volta a ficar ao meu lado, ainda com a mãofechada na minha.— E agora?— Esperamos?— dou de ombros.Sentamos os dois na mesma pedra em queestive as duas vezes em que a seria apareceu.Jack senta tirando completamente seu corpoda água.Fico apenas com os pés mergulhados, bal-ançando enquanto espirro poucos pingos deágua em meu rosto.Alguns minutos se passam e nada acontece.— É isso, ela não vem — ele diz levantando asmãos para o alto.— Vamos esperar mais um pouco.— Melane, vamos embora, minha perna nemestá tão ruim assim, e eu não me importo.Vamos!

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— Fique quieto, se ela escutar você gritandoassim, vai ficar com medo e não vai aparecer— digo dando um beliscão em seu braço.— Ei, pare de me beliscar, que coisa.— Então fique quieto, Jack, parece um men-ino, fique calado e espere. Ela virá, eu sei.— Não me mande ficar quieto e não mechame de menino, já viu meu tamanho pertode você agora?—Mais que coisa, cale-se— digo eu mesmagritando agora.Viro meu rosto para o horizonte tentando ig-norar Jack ao meu lado. É quando a vejo, al-guns metros a nossa frente, apenas com osolhos fora d’água.— Você tem apenas mais dez minutos, depoisdisso estou indo.— Shiu, Jack, olhe ali— digo sussurrando,apontando na direção da sereia.Jack fica rígido ao meu lado, suas veias dopescoço saltadas. Ele não tira os olhos dela anossa frente.

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— Oi, você se lembra de mim?— digo me es-ticando na pedra. — Não vamos te machucar.— Claro que não, ela é que vai — Jack sus-surra entre os dentes em meu ouvido.Dou-lhe um olhar duro de repreensão e es-pero que ele tenha entendido o recado.— Só estou dizendo, a culpa será sua — elesussurra com as mãos estendidas emrendição.— Queria sua ajuda. Meu amigo — digo se-gurando Jack pelo braço, o trazendo maispara perto na pedra. — Ele está ferido, pen-sei que poderia ajudá-lo, assim como meajudou.Ela se aproxima lentamente, emergindo orosto quando está próxima.Jack não tira os olhos dela.— Olá— digo sorrindo.— Olá— ela responde sorrindo com a voz me-lodiosa e doce.

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Sua cauda verde folha aparecendo atrás sobea água. Jack desvia o olhar, se fixando nalinda cauda. Ele ainda está rígido.— A perna dele, ele foi ferido — digo apont-ando para canela de Jack.A sereia tira seus braços com a pele perfeitade porcelana e envolve a perna de Jack emseus dedos pegajosos.— Ei, ei, ei. Calminha aí, minha filha— elepuxa a perna.A expressão da sereia muda e ela fica séria.— Não ligue para ele. Jack tem medo de vo-cê— digo dando outro beliscão em seu braço.— Quem disse que eu tenho medo dela?Faça-me o favor, Melane— ele diz com voz dedeboche.Ela bate sua cauda na água com força,fazendo água espirrar em nossa direção. Jackpula na pedra, se assustando.A sereia curva os lábios lentamente em umsorriso.

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— Claro que não está com medo — ela oencara.Tento segurar minha risada, mas é impos-sível, tapo os lábios com a mão, tentando aomenos abafar o som.Jack faz uma carranca aparecer em seu rostoe não diz nada.— Qual seu nome? Não tive tempo de lheagradecer aquele dia.— Meu nome é Summer — ela responde comum sorriso doce.— É um lindo nome. O meu é Melane.— Eu sei, princesa Melane. As noticias corr-em rápido por aqui, até mesmo de baixod’água. Foi um prazer salvar sua vida.Um som sínico sai dos lábios de Jack.— Não me obrigue a beliscá-lo novamente—digo virando o rosto em sua direção.Agora é Summer que tenta segurar sua ris-ada, pela minha advertência.Jack apenas balança a cabeça negativamente,ainda carrancudo.

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— Posso ver sua perna agora?— ela perguntaestendendo a mão.Ele relutantemente estende a perna em suadireção.Summer se abaixa olhando o ferimento, paraentão lentamente derramar suas lágrimassobre ele. O corte se fecha instantaneamentee a pele de Jack está curada.— Viu, Jack, eu disse que ela poderiaajudar— digo sorrindoEle ainda está olhando para pele curada.— Obrigado — ele diz relutantemente.— Sem problemas.— Você vive aqui?— pergunto a Summer.— Não, vivemos bem mais no fundo, ondeainda há vida, mas gosto de ver o sol, entãoestou sempre perto da superfície.— Vocês são muitos aí em baixo?— Sim, não tanto quanto antes, muitos mor-reram, mas estamos sobrevivendo, a vidatem sido difícil, não há mais muitos peixes

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por aqui, mas estamos fazendo o melhor quepodemos.— Aqui em cima as coisas não estão muitodiferentes — digo tristemente.— Mas vamos mudar essa situação — Jackdiz.— Em nome de todas as sereias eu lheofereço nossa ajuda no que precisar.— Obrigada.— Mel, temos que ir — Jack diz, já selevantando.— Tudo bem. Eu volto para vê-la — digo aSummer, antes de afundar até os joelhos naágua.— Estarei esperando.— Você não vem, Jack?— pergunto, quandochego a margem do lago e percebo que eleainda está sentado na pedra.Ele olha nervosamente para mim e depoispara Summer, parada ao seu lado na pedra.— Jack, ela não irá te fazer mal — digobufando.

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Summer o encara com seus grandes olhosdourados.— Tudo bem, eu me afasto — ela diz dandoum mergulho, sumindo nas profundezas.Rapidamente Jack desce da pedra e em pas-sos largos está de volta a terra.— Por que você tem tanto medo dela? Ela teajudou, não é uma sereia má. Existem pess-oas boas e pessoas más, assim como assereias. Toda espécie é assim — digo levant-ando as mãos para o alto.Ele não diz nada, enquanto coloca sua bota,desdobrando a calça.Faço o mesmo com meus sapatos.— Vamos logo — ele diz já andando pelocaminho de árvores secas.— Espere!— digo correndo para poderalcançá-lo. — Por que você está agindo as-sim, Jack?Ele para de caminhar, se vira e me olha nosolhos.— Meu pai foi morto por uma sereia, Melane.

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Minha boca se abre, mas nenhuma palavraconsegue sair por ela.Ele se vira e continua caminhando.— Eu sinto muito, não teria feito você vir seeu soubesse. — Esqueça. Não quero falarsobre isso.— Jack, eu...— Esqueça. Vamos voltar antes que escureça.Eu respeito sua vontade e ando calada ao seulado até chagarmos a aldeia.Ele se afasta indo em outra direção, assimque me deixa na casa de Amélia.Sinto-me mal por ele, e por tê-lo levado até asereia.Mas como eu iria saber? Pensei que ele apen-as tinha um medo por conta das lendas desereias que deve ter escutado na vida.Deve ter sito duro para ele ficar tão próximode Summer. A imagem de seu corpo se en-rijecendo assim que ele a avista surge emminha mente, me trazendo angustia por

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imaginar o que se passou em sua cabeçanaquele momento. Sinto-me culpada.— Oh, você está ai. Onde esteve o dia todo?—Amélia pergunta, me trazendo para dentro.Depois de comer o ensopado que Amélia eAngélica fizeram, saio pela porta a procurade Jack.Não consigo me concentrar em outra coisa anão ser nele desde que soube a verdade sobreseu pai.Nem mesmo consegui comer direito.Ando pelas ruas silenciosas da aldeia. Ovento soprando forte em meus cabelos, anoite está quente, mas o vento é fresco.Depois de uns minutos caminhando semdireção alguma, vejo uma figura ao longesentada na beira de uma colina apreciando alua cheia. É Jack.Com dificuldade subo pela colina, não querofazer barulho, mas vejo que minha tentativade ser silenciosa é inútil, pois quando

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alcanço o topo, ele já está com o pescoçovirado olhando em minha direção.Ele me olha uma vez e volta sua posição an-tiga, observando a lua.Me aproximo e me sento ao seu lado, ficandona mesmo posição, com os joelhos dobradose os braços por cima deles.Fico quieta, não sei o que falar e não sei seele quer ouvir algo que eu tenha para dizer.Só não quero que ele fique aqui em cimasozinho.Alguns poucos segundos se passam antesque ele diga, ainda olhando para lua.— Eu tinha dez anos. Meu pai havia melevado para acampar — ele diz com um sor-riso fraco. — Nós fazíamos isso sempre quepodíamos. Me lembro de ficar empanturradode tanto comer as amoras que ele havia col-hido e depois dormir em frente à fogueiraque fizemos juntos.Ele faz uma pausa, ainda sem me olhar.

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— Havíamos combinado de ir pescar pelamanhã, mas eu dormi demais e ele foi soz-inho. Acordei e fui direto para o lago,sabendo que ele estaria lá.Jack suspira agora, pegando ar comdificuldade.Meus olhos estão presos em seu rosto, en-quanto ele volta a falar.— Chegando lá eu o vejo, o corpo na margeme a cabeça mergulhada, uma cauda rosa ebrilhante apontava por cima d’água. Corrigritando desesperadamente o mais rápidoque minhas pernas permitiram, mas já eratarde demais. A desgraçada levantou acabeça por cima da água quando me escutougritando, tinha lindos cabelos loiros escor-rendo por sua pele perfeita, covardementeela mergulhou, sumindo dentro do lago —mais um suspiro antes de continuar. —Tentei reanimá-lo, mas ele já não estavamais comigo. Eu gritei, chorei, até comecei a

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socar seu peito com toda minha força, masnada adiantava. Ele já tinha ido.Meus olhos estão bem abertos, ardendo coma ameaça das lágrimas. Jack era só ummenino.Ele continua lá, imóvel olhando para o céu.Fico de frente para ele e o abraço, afundandomeu rosto em seu pescoço.Ele me abraça de volta, fechando seus braçosem minha cintura, me apertando tão forteque fico imaginando qual foi a última vez queo abraçaram.Sinto meu ombro úmido e escuto o menordos soluçares em meu ouvido.— Eu sinto muito Jack — sussurro em seupescoço.— Estou sozinho desde então — ele responderoucamente.Afasto-me uns centímetros para poder olhá-lo nos olhos, segurando seu rosto com asduas mãos. Seu olhar perfura meu coração,ele está assustado, de verdade. Jack vive

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sozinho há muito tempo, sem ninguémnaquela caverna, uma criança, apenas umacriança que não confia em ninguém. Meucoração afunda um pouco mais, pensando naimagem de um garoto solitário vivendonuma caverna.— Você não está mais sozinho. Você nuncamais vai estar, eu estou aqui agora.Ele se inclina apoiando sua testa na minha,suas mãos ainda em minha cintura.— Você promete?— ele sussurra.— Prometo... Com tanto que me prometaalgo em troca— digo ainda com sua testaapoiada na minha.Ele se afasta apenas alguns centímetros, seusolhos úmidos olhando diretamente nosmeus, enquanto acena com a cabeça.— Quero que prometa que não irá mais so-frer sozinho, que irá dividir seja lá o que forcomigo — digo olhando de volta para seus ol-hos escuros.Ele sorri fracamente entes de responder.

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— Prometo.— Com o dedo mindinho e tudo?— perguntosorrindo, estendendo meu dedinho.— Com o dedo mindinho e tudo — ele sorritambém, apertando seu dedo no meu.Passamos o resto da noite olhando as poucasestrelas que restaram no céu.

Acordo de manhã com o sol forte me quei-mando o rosto. Estou deitada no peito deJack que ainda dorme profundamente.Passamos a noite na colina, como isso foiacontecer? Não me lembro de ter dormido,uma hora estava vendo o céu estrelado e naoutra, acordo com o sol batendo no rosto.Me levanto apressada, acordando Jack noprocesso.Ele abre os olhos sonolentos, senta-se calma-mente, um longo bocejo sai de seus lábios,

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enquanto coça a cabeça, fazendo com queseus cabelos fiquem ainda mais bagunçadosque o normal, e esfrega os olhos.— Bom dia— diz roucamente.— Nós dormimos aqui... Amélia deve estarpreocupada.— Relaxa, eles nem devem ter acordadoainda — diz espreguiçando-se.— Pode ser, é melhor eu voltar logo então —digo já descendo a colina rapidamente. Nãoquero preocupar Amélia ou Damião, aomenos esse é o motivo em que quero acredit-ar por estar tão nervosa de ter dormido aqui,com ele.— Espere, eu vou junto.Escuto Jack gritar, enquanto se junta a mimna descida.Andamos rápido pela aldeia, todos parecemestar dormindo ainda, ao menos não temninguém nas ruas.Abro silenciosamente a porta da casa e per-cebo que ninguém está acordado.

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— Sim, todos dormindo — sussurro paraJack.— Como eu disse — ele sussurra de volta.— Vou me deitar então — digo ainda em sus-surros acenando para minha cama pro-visória. Não sei como explicar, mas sintouma necessidade enorme de colocar algumadistância entre nós.Ele acena fazendo sinal positivo com o dedoenquanto fecho a porta.Na ponta dos pés, deito-me em minha cama.Angélica abre os olhos no exato momento emque encosto o rosto no travesseiro.— Onde estava?— ela pergunta baixinho,com olhos atentos em meu rosto.— Adormeci na colina, nem percebi.— Com quem estava?— ela continua o inter-rogatório, ainda com olhos penetrantes.— Com Jack — digo relutantemente.— Hmm — ela acena com a cabeça. — EDavid, já se esqueceu dele? Nem se importa

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mais que ele está preso sabe-se lá onde?—diz levantando um tom em sua voz.Quem ela pensa que é para falar assimcomigo? Julgandome sem nem ao menossaber o que se passa em minha vida!Fui tirada da tranquilidade que tinha naTerra e trazida para um turbulento mundoonde sou princesa. Tenho que salvar todomundo, enquanto sou cercada por criaturasmágicas. Meu melhor amigo e talvez futuronamorado foi raptado por minha culpa, es-tou trabalhando na forma de salvá-lo. Luteiuma batalha sangrenta apenas alguns diasatrás e estou formando um exercito paramatar meu avô.— Do que você está falando Angélica? Jackprecisava de mim ontem à noite. Você nãosabe o que se passa em minha vida. David?Claro que me preocupo, estou com o planopara salvá-lo em andamento. Só acho queficar em casa deitada numa cama em posiçãofetal derramando lágrimas no lençol não

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ajudará em nada — digo as palavras rapida-mente às cuspindo de meus lábios.Ela me olha nervosa ainda.— A qual é, Melane. Pensa que eu não sei?Eu vejo a forma como se olham, só acho queDavid não merece algo assim. Ele abriu mãode tudo para cuidar de você. Ele deixou suafamília, sua vida, para poder cuidar da sua—ela diz quase gritando.— Você não tem o direito de falar assimcomigo! Você pensa que sabe das coisas, masnão sabe. Não sabe o que se passa entre mime Jack e muito menos com David, é apenasuma criança boba que está com ciúmes — re-spondo com o mesmo tom de voz que ela.— David é um homem maravilhoso e vocênão o merece. Você nem se importa por eleter sido capturado por sua culpa.A raiva invade meu peito, sinto a fúria cres-cendo dentro de mim.Angélica está errada, eu me importo comDavid, me preocupo com ele cada dia que

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passa. Penso em como ele deve estar, se estácomendo e se está bem, mas não posso pas-sar os dias sofrendo e chorando como umamulherzinha.Sou uma princesa, as pessoas confiam e de-pendem de mim.Se chorar ajudasse em alguma coisa, euchoraria, mas não adiantaria nada.Prefiro agir, ninguém será salvo por uma ga-rota deprimida que espera as coisas aconte-cerem enquanto fica deitada em melancolia.Sinto minhas mãos esquentando agora, faziauns dias desde a última vez que treinei meucontrole na casa de Verônica. Fecho minhasmãos em punhos enquanto escuto os berrosestridentes e histéricos de Angélica ao meulado.Sinto minha cabeça pesada, eu quero mecontrolar, mas a queimação não diminui.— Cale-se agora, Angélica— digo com osdentes cerrados.

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Não entendo sua resposta, seus lábios semovem, mas sua voz é abafada.Sinto a queimação nos olhos agora, eles es-tão bem abertos e sei que o brilho azuladoestá aparecendo em minha pupila,ameaçando tomar conta de toda a íris.Os lábios de angélica se fecham, cessando agritaria imediatamente.Sinto minha respiração acelerar, assim comomeu coração.Olho mais uma vez para ela, agora com a cer-teza de que o azul cintilante toma conta detoda extensão de meus olhos.Respiro profundamente, imagino a forçavoltando para o lugar de onde veio, comouma chama se apagando, sinto a queimaçãodiminuindo lentamente, até o momento emque some de vez.Com um piscar de olhos volto à cor verde es-cura natural de minha íris.Angélica ainda está paralisada, com olhos ar-regalados e mãos tremendo.

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— O que está acontecendo? Porque essa grit-aria toda?— Amélia aparece por entre aparede de cortina com uma expressão aflita.Angélica aponta o dedo indicador em meurosto.— Foi ela. Ela ia usar seu poder em mim...Seus, seus olhos estavam brilhando... Azul...Ela ia me matar — diz gaguejando com odedo ainda apontando em minha direção.— Não seja ridícula, Angélica— Amélia dizvirando o olhar para mim.— Da próxima vez sugiro que pense bemantes jogar bobagens no rosto de alguém queé capaz de te destruir com apenas um olhar—digo isso e me levanto, saindo pela porta, afechando com força atrás de mim.Só preciso sair daquele lugar, ficar sozinha.Não planejei aquilo, não controlo meu podere nem sei se um dia serei capaz de controlá-lo, ele simplesmente aparece quando temvontade de aparecer.

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Não sei se foi certo ou errado dizer aquelaspalavras a Angélica antes de deixar a casa,mas também não acho certo o que ela fezcomigo.Me julgar sem nem ao menos me conhecer.O que ela quis dizer com ―eu vejo como vo-cês se olham?? Jack e eu somos amigos. Eu oestava ajudando noite passada, é isso que osamigos fazem, não é?Como ela pode jogar na minha cara que nãome preocupo com David?Eu me colocaria no lugar dele se eu pudesse,mas eu não posso.Minha mente tem sido um caos todo essetempo, dizer que não me preocupo é comome dar um tapa na cara, tudo o que tenhofeito até agora é me preocupar, com todos.Ando em passos fortes e raivosos meafastando da aldeia, sem nem ao menos ol-har para onde estou indo, apenas vou meafastando por entre os galhos secos, tent-ando conter minha raiva. Quando dou por

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fim, percebo que estou de frente paramargem do lago.Sento-me no chão de terra, ainda estoufuriosa.Levanto-me inquieta e começo a jogarpedras e gravetos no lago com toda minhaforça.Alguns segundos se passam, levanto minhasmãos até meus lábios e grito o mais alto queconsigo até sentir minha garganta arranhadadoer.Mais calma, volto em passos lentos até aaldeia, dessa vez sabendo para onde estouindo. Caminho pelas ruas até chegar onde ostreinos estão acontecendo.Edmundo está sentado numa pedra observ-ando as pessoas enquanto lutam comespadas.Sento-me no chão ao seu lado.— Princesa.– Ele me cumprimenta, assimque seus olhos azuis me localizam no chão.Seus olhos me lembram os de David. Não são

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de um tom turquesa e nem tão grandes ebrilhantes como os dele, os de Edmundo sãode um tom mais frio, mas ainda sim é famili-ar, algo na forma doce como ele me olha.Sorrio fracamente em sua direção.Um som de espadas se chocando chamaminha atenção.É Jack que luta com Daniel, ensinando aspessoas ao seu redor.O suor escorre por seu pescoço liso, ondeseus cabelos dourados estão grudados, seusolhos negros parecem concentrados demais,e nos seus lábios há um lindo sorriso en-quanto ataca ferozmente com seu sabre.Jack está sempre sorrindo, quer dizer, nashoras em que não está emburrado ou rabu-gento com uma carranca. Na maior parte dotempo ele tem um sorriso no rosto. É comose nada o abalasse, como se algo da criançaque ele foi até poucos dias atrás ainda est-ivesse vivo dentro dele. Crianças estãosempre felizes, não importa o que. Um

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sorriso surge em meus lábios enquanto o as-sisto lutar, não quero que ele mude nunca,não importa o que as pessoas digam oupensem sobre ele, ninguém o conhece comoeu conheço, ninguém sabe como ele é pordentro e é assim que eu quero que ele fiquepara sempre, sendo ele mesmo.— Ele luta bem — Edmundo diz sem tirar osolhos da luta.— Seu pai também — lhe respondo.— Sim, meu pai tem anos de experiência,Jack não.— Como vão as coisas por aqui?— Muito bem. As pessoas estão melhorandoe aprendem rápido, logo estarão prontospara batalha.— Só espero que ninguém nos ataque en-quanto isso — digo ainda com os olhos emJack.— Se eles vierem, estaremos preparados,princesa. Não lutará sozinha — Edmundo dizme olhando.

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Nesse instante, Daniel ataca com toda suaforça, chocando sua espada com o sabre deJack, eles estão cara a cara agora, espadacontra espada.Daniel faz uma careta enquanto o lança nochão parando seu metal a poucos centímet-ros do pescoço de Jack.As pessoas aplaudem. Com um sorrisoDaniel estende a mão na direção de Jack,ainda caído no chão.— Mais uma vez— Jack diz já se colocandoem posição de guarda.Daniel balança a cabeça negativamente.— Prefiro parar enquanto estou ganhando —ele diz com um sorriso.Meio emburrado Jack se afasta vindo emminha direção.— Eu teria ganhado se lutássemos de novo,ele sabe disso —Edmundo dá risada.— O quê?— Jack pergunta levantando asmãos para o alto.

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— Nada— Edmundo responde.— Que cara é essa?— Jack pergunta com osolhos em mim.Levanto o rosto surpresa.— Que foi?— ele pergunta novamente.— Não é nada — digo olhando pras pessoasque começaram a lutar a minha frente.— Edmundo, venha ajudar aqui — Danielgrita.— Com sua licença, princesa— ele diz comum aceno.Jack se senta na pedra, onde Edmundoestava.— Você está estranha.Solto o ar com força por entre os lábios.— É Angélica. Disse que não me importo porDavid não estar aqui, e que a culpa é minha.— Ah, não ligue para o que ela diz, Angélicasempre foi meio psicopata mesmo, acha quesomente ela tem problemas.— Ela me deixou nervosa— digo mexendoem meus dedos.

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— Quem ela não deixa?— Quase usei meu poder nela... Quer dizer,eu não ia usar, eu não queria, mas isso não éalgo que eu possa controlar ele simplesmentevem. Por pouco consegui ter controle sobremim.Jack me olha em silencio.— Você me acha um mostro agora?— per-gunto olhando para minhas mãos.Ele demora apenas uns segundos antes deresponder.— Não — levanto meu olhar até seu rosto. —Não é culpa sua, Melane. Não pode se culparpor coisas que não pode controlar. Angélicaque não devia ser tão burrinha e te provocarassim.Eu sorrio.— Mesmo assim, eu não devia ter feitoaquilo, me sinto mal por isso agora. Eu aameacei antes de sair, e isso não está certo.Ele ri alto agora, jogando a cabeça para trás.— Você a ameaçou? Como?

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— Disse que não devia mexer com alguémque pode destruí-la com os olhos.Ele ri mais alto ainda.— Aí, eu queria ter visto essa — ele segura abarriga enquanto ri.— Jack, não tem graça— digo me esforçandopara segurar o riso preso em minha voz.Não consigo e começo a rir junto com ele.Rio tanto que sinto os olhos lacrimejando eminha barriga dói.— Tenho que pedir desculpas a ela — me le-vanto para voltar até a casa.— Está bem. Quer que eu vá junto?— Não precisa, vou sozinha.— Ok — ele me joga uma pedrinha no ombro,enquanto me afasto. Viro o pescoço apenas osuficiente para ver Jack rindo sozinho, sent-ando na pedra.

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Fico parada em frente à porta, apenas unspoucos segundos antes de girar a maçaneta eentrar.Angélica está sentada a mesa, descascandobatatas, enquanto Amélia costura algumacoisa num tecido amarelo ao seu lado.As duas me olham assim que cruzo a porta,mas ninguém diz nada a principio.Respiro fundo uma vez antes de começar.— Eu sinto muito. Foi covardia de minhaparte agir daquela forma, reconheço e peçodesculpas.Amélia sorri levemente para mim de sua ca-deira. Angélica mantém seus olhos presosnos meus.— Me desculpe também por dizer tudoaquilo, estava apenas preocupada. Ficomuito nervosa às vezes, quando estoupreocupada.Aceno com a cabeça.

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— Caso encerrado, não se fala mais nisso.Estamos entendidas?—Amélia pergunta comuma de das sobrancelhas levantada.— Sim— Angélica e eu respondemos emuníssono.Mas tarde nesse mesmo dia volto a me sent-ar na pedra em que Edmundo esteve, paraolhar o treino e ver como as coisas estãoindo.As pessoas estão melhorando. Muitos ho-mens já sabem lutar desde pequenos, apenasos mais jovens não conhecem as técnicas deluta.Daniel e Edmundo parecem se divertir aoensinar o povo.Jack também está ajudando, toda vez que mesento, o vejo batendo espadas com alguém,ou então atirando flechas, sempre acertandoo centro dos alvos.Parece que tudo está dando certo até agora.Não fomos atacados depois daquele dia san-grento em que me revelei. Talvez tenham

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ficado com medo ou então estejam armandoalgo muito terrível, não tem como saber.Não sei como será no dia em que atacaremosos portões reais e muito menos como será ahora em que terei que derrotar meu avô. Aideia de matá-lo não me agrada nem umpouco.Edmundo senta-se ao meu lado novamente.— Edmundo?— pergunto sem tirar os olhosdas pessoas lutando.— Sim?— Você sabe o que aconteceu? Digo, com orei?Ele pensa um segundo antes de responder.— Acho que ninguém sabe. Ele era umhomem bom, antes de tudo isso. Eu gostavadele, todos gostávamos. Num certo dia acor-dou e ordenou a morte de seu filho, entãosua esposa desapareceu, poucos dias depoistudo aqui foi destruído com magia— ele dizolhando para o horizonte.— Ele tem poder de magia?

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— Não, ele teve ajuda de alguém. O rei écomo todos os outros dragões, apenas setransforma em um.— Quem o ajudou então?Ele levanta os ombros.— Quem sabe? E isso importa? Quemajudou?— ele pergunta me olhando.— Talvez, pois essa pessoa pode continuar oajudando.Ele pensa sobre isso um minuto.— Não se preocupe, temos você lutando aonosso lado — ele diz sorrindo.— Temos ma-gia lutando por nós também.— Uma luta para a plateia princesa?—Jackgrita a alguns metros de distância.— Não quero envergonhá-lo — grito de volta.As pessoas a sua volta dão risada.— Vai lá— Edmundo diz sorrindo.Me levanto, arrastando a ponta de Komodopelo chão no caminho, já me acostumei alevá-lo para onde quer que eu vá, me sinto

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segura com ele por perto e ele sente que meprotege, nós formamos um belo time juntos.Jack está parado com seu sabre na mão, sor-rindo em minha direção, enquanto meaproximo.As pessoas estão animadas, os olhos gruda-dos em nós.Me endireito, levantando Komodo.— Pronta?— ele pergunta.— Eu sempre estou — digo acenando com acabeça.Ele avança, chocando sua espada contra aminha. Andamos em círculos, enquantoraspamos nossas espadas freneticamentepelo caminho.Algumas pessoas gritam, outras dão risadasaltas, enquanto algumas apenas observam.Crianças aparecem por entre as pernas dosadultos para ver a princesa lutar.Jack ainda sorri, embora vez o outra façauma careta quando lanço Komodo em suadireção com força.

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Com um golpe planejado, arrasto Komodopelo ar acertando diretamente o centro dosabre de Jack, o tirando de suas mãos e ar-remessando para longe. Com um chute emseu peito o derrubo no chão apontandominha espada para sua garganta.Todos aplaudem alto e gritam.— Eu disse— digo, enquanto estendo minhamão.— Não vale, ela tem uma espada mágica—diz com o dedo apontado em meu rosto.As pessoas riem ainda mais.O sol está quase se pondo agora, vejo os últi-mos raios sumindo ao longe.— É melhor eu ir para casa de Amélia, vocêvem Jack?— Não, hoje não.— Onde você mora?– pergunto curiosa.Ele me olha por um segundo com um meiosorriso nos lábios.— Você já esteve lá.— É na caverna? Você mora lá?

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Ele acena com a cabeça.— Por todo esse tempo você morou lá?Ele levanta os ombros, acenando mais umavez.— Minha antiga casa traz muitas lembranças,das quais não gosto de lembrar — diz porfim.Penso um segundo antes de dizer.— Quer saber, o clima lá na casa da Amélianão está muito bom mesmo, posso ir comvocê?Ele me olha sorrindo.— Mas é claro.— Edmundo, você pode avisar Amélia quenão dormirei em casa hoje?— perguntoquando ele se aproxima.Ele nos olha por meio segundo.— Está bem, princesa, eu aviso.— ótimo, obrigada.Sorrio para ele antes de sair com Jack paradentro da floresta seca.

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— Sabe, morar aqui nem é tão ruim assim —digo no meio do caminho.— Não, não é— ele responde sem se virar.— Aqui é calmo, tranquilo e devia ser lindoquando as coisas ainda eram... Vivas — digoolhando em volta.— É, isso aqui já foi bem mais bonito. Haviamuitas flores nas árvores e frutas de todos ostipos por todos os lados, era muito bonito.— Eu imagino. Na Terra temos muitoslugares bonitos também. Onde eu moro oumorava, lá é bem gostoso, temos umafloresta perto de casa e a grama sempre temum cheirinho de chuva que eu adoro. Todosos dias os pássaros cantam bem cedinho emminha janela. Minha avó sempre colhiaflores para por no meu quarto — digo com oolhar e o pensamento longe.— Sente falta de casa não é? — ele pergunta,agora me olhando.Casa. Não sei mais onde é isso e nem ondepertenço. Supõe-se que casa é o lugar onde

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temos pessoas que amamos ou o lugar ondenos sentimos bem sem nem saber o motivo.Não tenho mais a pessoa que amo me esper-ando em casa e já não sei onde me sentireibem de novo, então... Quem sabe?— Sinto falta do meu quarto, quando eu erapequena, minha avó disse que eu podiapintar as paredes da cor que eu quisesse,escolhi amarelo porque é a cor do sol e azulporque é a cor do céu — digo sorrindosozinha.Jack também tem um leve sorriso nos lábios.— Eu me sujei inteira para pintar as paredes,mas no final ficou tão bonito. Minha avó pin-tou flores brancas ao lado de minha camapara que elas fossem a primeira coisa que euvisse quando abrisse meus olhos. Uma vez vium retrato de minha mãe segurando asmesma flores, minha avó disse que meu paisempre lhe trazia essas flores brancas , maseu nunca as vi em nenhuma lugar, apenas naparede e na fotografia.

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— Ela parece uma boa pessoa. Sinto muito.Aceno com a cabeça.Chegamos à caverna de Jack, corro os olhospela área esperando ver goblins fedorentosnos primeiros passos da decomposição, massurpreendo-me, quando não encontronenhum.— Onde estão os goblins?— Dei um jeito neles. Não ia ficar com aquelacambada apodrecendo perto de minha casa.— Ainda bem que não estão aqui — digo comum suspiro.Hoje a noite esfria um pouco mais, ficamosdentro da caverna encolhidos, cada um comuma coberta, sentados de frente um para ooutro, enquanto conversamos.— Jack?— pergunto pensativa.— Fala.— Você não teve irmãos?Ele balança a cabeça negativamente antes deresponder.— Não, sem irmãos.

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— E sua mãe? O que aconteceu com ela?Nunca falamos de sua mãe antes, sei queperdeu o pai muito jovem, mas e ela?Ele abaixa a cabeça, encarando o chão comuma expressão estranha no rosto.— Jack?Depois de uns poucos segundos ele fala semtirar os olhos do chão.— Ela... Aconteceu algo com ela quando euera pequeno — é tudo o que ele diz.— O que aconteceu?Ele levanta o rosto, me olhando diretamentenos olhos, ele parece triste.— Podemos só, não falar sobre isso?Aceno, dizendo que sim com a cabeça. Nãosei o que pode ter acontecido com sua mãe,mas se ele não se sente bem nem para con-tar, não deve ter sido nada fácil, e eu respeitosua vontade de querer ficar calado. Existemcoisas que são difíceis demais para suportar,ainda mais para compartilhar com os outros.

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Eu sei disso, passei por muita coisa parecidaem minha vida.Depois disso, Jack fica calado, o silencio re-ina dentro da caverna. Sinto-me mal por tertocado no assunto, e penso que a melhorcoisa a se fazer agora é dormir, o deixarsozinho.Então me deito e durmo cedo, de qualquerforma o treino me deixou exausta. Adormeçono exato momento em que encosto minhacabeça no travesseiro improvisado decasacos.Essa noite eu sonho, com David.Ele está perto do lago, mas ele não é maiscinzento e escuro, ele é claro, azul esver-deado com águas cristalinas. O sol batediretamente em seu rosto, seus olhos tur-quesa refletem a luz, se transformando nova-mente em mágica. Sua pele perfeita sobe seucabelo muito preto pingando água que cai,deixando gostas presas em seus cíliosescuros.

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Ele me olha sorrindo, enquanto meaproximo.— Sinto sua falta— ele diz me olhandodiretamente nos olhos.— Eu também sinto a sua.Me sento ao seu lado no chão de grama verdee fresca. Sua mão se fecha sobre a minha enossos joelhos se tocam.— Onde você está?— pergunto olhando den-tro de seus olhos feitos de mágica.Ele dá de ombros.— Vamos falar de coisas boas. Como temsido a vida?— ele pergunta sorrindo.— Penso em você todos os dias.Ele ignora o que digo.— Soube que venceu vários soldados daguarda real e que o povo da aldeia te adora.Aceno com a cabeça.— Muito bom, você vai conseguir, Mel, eu seique vai. Você tem muito mais força do quepensa que tem.

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— Quando vou te ver de novo?— pergunto,virando seu rosto em minha direção.Ele segura minhas mãos gentilmente, as tir-ando de seu rosto.— Está tudo bem, Mel — diz beijando leve-mente meus dedos.— Não, não está. Por favor, me diga onde vo-cê está para que eu possa tirá-lo de lá—tenho que me esforçar para manter as lágri-mas dentro dos olhos.— Tudo bem seguir em frente, Mel, eu en-tendo. Você não tem escolha. Você amaquem você ama, simples assim.— Eu amo você— digo sussurrando.Ele sorri docemente me olhando.— Eu sei.Então tudo se torna uma imagem escura eborrada, vejo apenas os olhos azuis se mis-turando entre os borrões negros,desaparecendo.Acordo de uma vez, com suor escorrendopela testa.

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Meu coração acelerado, batendo descontro-ladamente, esse sonho pareceu tão real. Suavoz, seus olhos, tudo tão real.Fico deitada uns segundos pensando em suaspalavras.―Você não tem escolha, você ama quem vocêama?. Tudo que quero é encontrá-lo.Olho ao meu lado procurando por Jack, masno seu lugar encontro a parede da cavernapintada de azul e amarelo, algumas poucasflores brancas pintadas desjeitosamente aomeu lado.Fico parada, admirando, lágrimasameaçando rolar por meu rosto.Então ele entra pela porta de pedraimprovisada.— Ah, você já acordou. Gostou?— diz apont-ando para a parede.Aceno com a cabeça.— Você fez tudo isso? É maravilhoso — digoemocionada.

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— Não foi nada. Tinha um pouco de tintaguardada aqui há muito tempo, eu gostavade desenhar quando era pequeno, você en-tende o que quero dizer, pequeno de quandorealmente era novo — diz dando de ombros.— Obrigada, Jack, significa muito paramim— digo, enquanto me levanto e o abraçoforte pela cintura. Ele me abraça de voltasorrindo.— Gostou das minhas flores?— diz sorrindoainda mais.Olho mais uma vez pros rabiscos formandopequenas flores brancas e também dourisada.— A intenção é a que conta, não é o quedizem?— ele pergunta.— Está perfeito, Jack — digo ainda olhando aparede.— Não fique convencida, não fiz por você, fizpor mim, fiquei com inveja de sua parede dacor do sol e do céu.

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Eu apenas sorrio para ele mais uma vez, en-quanto olho pras cores que sempre me de-ram esperança e tranquilidade, mesmo nosdias mais difíceis.Um pedacinho de minha antiga casa, aqui,uma parte de mim feita por ele, guardadadentro dessa caverna... Algo me faz pensarque agora esse não é apenas o lugar secretode Jack, é meu também, ou então, nosso.Olho mais uma vez para Jack sorrindo, eledeve ter acordado cedo para fazer tudo isso,e ainda sem me acordar, quer dizer, silencionão é uma das virtudes de Jack. Começo a rirsozinha, o imaginando pintando as paredesenquanto tenta não fazer barulho.

Capítulo 13 Conflitos

Não temos muito tempo de apreciar a vista,um rugido alto chama nossa atenção. Vem láde fora e o som começa a aumentar.

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Saio correndo da caverna com Jack, para vero céu repleto de dragões voando em direçãoà aldeia.Alguns soltam fogo pelo caminho, enquantooutros apenas gritam furiosamente selançando mais rápido no céu. Observamosapenas uns milésimos de segundos antes queeles sumam de vista.Jack e eu nos olhamos apenas um segundoantes dele se transformar em um dragão aomeu lado.Com a ajuda de sua pata subo em suas costase com um salto estamos voando em direçãoaos dragões e a aldeia.Jack voa rápido por entre as nuvens, tãorápido que o vento chega a machucar meurosto, mas os dragões a nossa frente são maisrápidos ainda, eles chegam primeiro que nós,ateando fogo em tudo que aparece pelafrente, nas casas, nas árvores secas e parameu desespero, nas pessoas.

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O ataque surpreende a todos, ninguém es-perava por isso agora. Pensávamos quehaviam ficado com muito medo pela ultimavez.Em um instante vários homens e mulheresda aldeia explodem, se transformando emdragões para revidar o ataque, vejo muitosdos homens de Damião fazendo o mesmo.Assim que chegamos, Jack se abaixa voandobem perto do chão me jogando na terra ver-melha, depois sai voando de volta para oalto.Confusão total, agarrando crianças no pess-oas correndo para suas casas, colo pelo cam-inho, gente gritando enquanto outros fazema transformação para proteger seu povo.Estou no meio desse caos, sozinha, apenascom Komodo em minha mão, ele está in-quieto, sinto suas vibrações dentro de mimcomo se fossem as minhas próprias.Estou na terra e os ataques no ar, comoposso ajudar dessa forma?

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Um dragão de cor verde musgo passavoando, quase esbarrando no chão. Nesseexato momento me abaixo, ficando de joel-hos, enquanto levanto Komodo sobre minhacabeça, em poucos segundo ele voa sobremim, o aço de minha espada atinge sua carnerasgando fundo, cortando de uma extremid-ade a outra, sangue de sua barriga cai sobremim no processo e o dragão desaba naminha frente, seus pulmões dão um ultimosuspirar, antes dele morrer.Me levanto, chacoalhando o sangue dosmeus braços, olhando ao redor.Uma criança grita sozinha em um cantoescondido entre dois bancos de madeira.Corro em sua direção, enquanto os gritos erugidos estouram por todos os lados.Agarro a garotinha pequena, a mesma quesorriu para mim no dia que me revelei paraaldeia. Sangue mancha sua roupa amareladesbotada, ela está tremendo e tem lágrimasescorrendo nos olhos.

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— Não Se preocupe— digo olhando em seusolhinhos pequenos.Não posso ficar com ela no colo, procuro umlugar seguro para deixá-la, mas nada aquiparece seguro agora.Uma mulher aparece correndo em minhadireção. pegando a garotinha de meusbraços.— Obrigada, princesa, obrigada porencontrá-la.Apenas aceno com a cabeça, enquanto lheentrego a pequena.Olho para o céu e vejo Jack arrancando umpedaço de carne das costas de um dragãocom os dentes, ele se apoia com as garrassobre a casca pesada de seu adversário,parece estar ganhando fácil a luta.Uma rajada de fogo é arremessada em minhadireção, não tenho tempo de correr ou depensar, apenas coloco Komodo em minhafrente, o fazendo de escudo.

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O fogo bate em sua superfície, o fazendo ficarvermelho como brasa, no exato momento dacolisão, depois rebate as chamas, as fazendovoltar diretamente de onde vieram, acer-tando o dragão amarelado em cheio.Um rugido agudo de dor chama minhaatenção, procurando no céu vejo umpequeno dragão avermelhado tentando selivrar da boca com dentes afiados de umdragão duas vezes maior. É Rachel.Ela precisa de ajuda, o que ela está fazendono meio disso tudo?Não penso duas vezes antes de agir, ar-remesso Komodo com todas as forças para oalto. Ele voa para cima, rodopiando no cam-inho, tão rápido como uma bala, atingindo ocoração do dragão esverdeado que estáatacando Rachel. Suas presas soltam a carnedas costas dela para gritar de dor antes decair no chão em sua forma humana.

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Ela me olha de cima e faz um som queacredito ser de agradecimento. Eu sorrio devolta, fazendo joia com o dedo.Ando em passos largos até o homem caído,piso em seu peito e arranco Komodo de seucoração. É incrível, mas não sinto nenhumapiedade ou dor em vê-lo dessa forma, estoumudada, mais forte.Jack passa voando rápido bem perto dochão, fazendo com que meus cabelos voemem meu rosto, atingindo um dragão comuma batida potente no caminho, depoissoltando chamas em sua direção antes de le-vantar voo novamente para o alto.Tento olhar para o céu a procura de um alvopara arremessar Komodo, mas todos pare-cem estar se movimentando rápido demaispara conseguir atingi-los.Nesse instante sinto uma baforada quenteatrás de mim, bem na minha nuca, me pre-paro para virar segurando Komodo comforça entre os dedos, mas antes que possa

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fazer isso, algo me agarra pelas costas me le-vando com sigo para o ar, antes de soltar ra-jadas de fogo no dragão as minhas costas.É um dragão azulado, ele me segura entre asgarras, com sua ajuda subo em suas costas,ele vira o rosto em minha direção, vejo os ad-oráveis olhos azuis de Edmundo, me olhandoda mesma forma carinhosa. Sorte que os ol-hos são as únicas coisas que não mudamquando eles se transformam, essa é a únicamaneira de saber quem são.Dou tapinhas em sua cabeça o agradecendo.Em suas costas, agora no ar, tenho uma visãomelhor.Me seguro da melhor forma que posso, apen-as com minhas pernas agarrando firm-emente enquanto arremesso Komodo nodragão a minha esquerda, Komodo rodopiano ar como um bumerangue, lhe cortando agarganta antes de fazer a volta e parar nova-mente em minha mão.

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Edmundo avança com tudo sobre um dragãode cor amarronzada lhe mordendo o pescoçobrutalmente.Fico de joelhos em suas costas, me ar-rastando até perto de sua cabeça onde possover com clareza o pescoço exposto do dragãoamarronzado, perfuro-lhe a carne profunda-mente com minha espada, sinto a energia deKomodo dentro de mim no mesmo instante.Edmundo lhe atiça fogo antes mesmo de at-ingir o chão em sua forma humana.Me coloco na posição antiga, sentadanovamente.Muitos rebeldes atacam violentamente, semnenhuma piedade, jogando rajadas de fogopelo ar, mordendo, despedaçando, rasgandoe destruindo os soldados reais.Ainda sim, posso ver pessoas sofrendo nochão, crianças correndo ao lado de suasmães, irmãs e irmãos assustados. Estamosencorajados e destemidos a lutar, mas eles

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são muitos, há muitas pessoas indefesas aquitambém.É então que começa novamente, mas dessavez não sinto medo por ele estar vindo, sinto-me aliviada, na verdade.O fogo começa a crescer dentro de mim, bemmais forte dos que as outras vezes, se espal-hando para todos os lados, tomando conta decada parte de mim.Sinto-me poderosa, posso ver reflexos azula-dos saindo de mim e sei que meus olhos es-tão acessos agora, assim como minhas mãossegurando Komodo.Fico de pé nas costas de Edmundo, semdesequilibrar.Já não penso mais, a magia toma conta demim, ela age sozinha agora, faz o que euquero que seja feito, mas faz por si só.Raios azuis saem de mim, iluminando todo océu, formando um mar de luz ao meu redor.Cada dragão atingido pela luz entra emcolapso de chamas azuis cintilantes, os

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dragões a quem eu protejo nada acontece, anão ser uma luz que brilha quando lhes tocaa pele, apenas o inimigo sucumbi pelo poder.O céu brilha com as chamas que resplan-decem dos inimigos, as pessoas no chãoparam para olhar, enquanto eles caem emsuas formas humanas lentamente no chão.O céu está limpo agora, apenas meu povo es-tá no ar.Aos poucos sinto o calor voltar para dentrode mim, então posso ver com claridade nova-mente. Está feito.Edmundo mergulha no céu, parando emterra firme, onde desço de suas costas.Uma multidão de homens mortos, por todosos lados onde olho.Sangue por todas as partes, inclusive emmim, na maior parte de mim, Komodopingando gotas vermelhas e o cheiro de sal eferrugem tomando conta do lugar.Não desmaio dessa vez, não sinto minhacabeça doer e nem aquela sensação de

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descontrole ou de perdição, sinto-me forte.Pude ajudar esse povo, o sentimento de estarfazendo o certo toma conta de mim enquantotodos ao meu redor gritam emcomemoração.O grande dragão preto de olhos da mesmacor, para ao meu lado me olhando. Já ouviudizer que podemos sorrir com os olhos? Édessa forma que ele me olha agora.Edmundo se junta a mim também, com osmesmos olhos sorridentes que Jack.A garotinha que segurei nos braços surge damultidão e abraça minhas pernas.— Obrigada, princesa Melane— ela diz com orosto afundado em minha perna direita.Pego a no colo, ela fecha seus bracinhospequenos ao redor de meu pescoço.— Eu que agradeço, sem você não teria con-seguido. Você me deu forças àquela hora,sabia?

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Ela me olha com olhinhos brilhantes en-quanto sorri. Coloco-a de volta no chão, elacorre para sua mãe.A confiança dessas pessoas se multiplica cemvezes mais nesse instante, todos parecem teras esperanças renovadas, mais uma vez.Todos, inclusive eu.

É noite, ainda tem pessoas enterrando osmortos ou apenas os queimando peloscantos.Caminho pela aldeia, olhando tudo a minhavolta. As coisas parecem às mesmas, casasvelhas, crianças nas ruas, pobreza e secapara qualquer lugar que olho, mas se olharcom um pouco mais de atenção, você veraque nem tudo está igual. O olhar nos rostosdas pessoas está diferente, elas exalam vida,sabem que tudo irá mudar e que esses diasruins estão para acabar.Jack está terminando de enterrar um homemquando me aproximo.— Como se sente?— ele pergunta

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— Confiante... Sinto que logo as coisas vol-taram a ser como antes.— Espero que sim, meu bem, alguns dias at-rás eu era só um menininho que podia fazero que quisesse o dia todo. Olhe para mimagora, estou cavando covas — diz revirandoos olhosSorrio para ele.— Formamos um belo time hoje, não?— É, tem essa parte boa de crescer, querdizer, tirando a parte em que fiquei tão bon-itão assim, me transformar em um dragãoficou muito mais divertido agora que sougrande— ele diz com um sorriso largo.Damião e Edmundo se aproximam de nósenquanto rimos juntos.— Boa luta, princesa— Edmundo diz.— Tive ajuda de um amigo — digo piscandopara ele.Jack olha com uma cara feia e ao mesmotempo engraçada para mim. Apenas dou deombros em resposta ao seu olhar.

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— Princesa, espero que esteja preparada,pois atacaremos amanhã— Damião diz semdelongas.Mil coisas passam em minha cabeça nessemomento, pensamentos sobre as pessoasque lutarão ao meu lado, sobre suas famíliasque ficarão para trás, sobre David e se o vereinovamente, sobre minha vida a de Jack e oque será do destino de meu avô e de todo opovo de Ninho de Fogo. Tudo isso será de-cido amanhã.Aceno com a cabeça para Damião.— Estou pronta.— Todos foram bem treinados, mesmo quetenha sido em pouco tempo. Pessoas deses-peradas podem fazer coisas inimagináveis,ainda mais quando se trata de suas famílias eseu mundo — Damião diz confiante.— Sim, você os treinou bem, e fizemos umbom trabalho hoje. Confio em você.Ele sorri.

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— Não podemos esperar mais, outro ataquesurpresa como esse, não sei se resistiríamos,tem muitas pessoas inocentes por aqui, etemos a vantagem da surpresa, eles esperamque estejamos cansados, e indefesos — Ed-mundo diz pensativo.— Iremos por terra e pelo ar, dividindo ossoldados pela forma em que são mais efi-cientes. Os dragões irão na frente, sobre-voando a área, atacaremos com fogoprimeiro, depois atacaremos por terra,destruindo tudo que aparecer pela frente—Damião diz mais uma vez, parecendo muitoconfiante. — Eles não estarão esperando porisso, mas tenho certeza de que o castelo es-tará bem guardado. Depois do que fez comaqueles soldados, tenho certeza que colo-caram segurança máxima por lá.— Somos numerosos, e estamos com a vant-agem da surpresa ao nosso lado, e temos vo-cê conosco, princesa— Edmundo diznovamente.

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— Queremos penetrar o castelo, e colocá-ladentro, para então atacar o rei — Damião dizme olhando.Aceno para ele.A ideia de matá-lo, mesmo não o conhecendoe sabendo de todo mal que ele causou, nãome agrada, mas não existe outra maneiradisso tudo acabar. Farei o que tenho quefazer, mesmo sofrendo com isso.— Meus melhores soldados estarão ao seulado, não te abandonarão.— Eu também ficarei perto de você— Jackdiz virando o rosto em minha direção.Sorrio para ele.— Uma vez que tivermos o rei em nossasmãos a batalha terminará. E nós venceremos— Edmundo diz com os olhos brilhando.— Em palavras parece simples, mas não seráassim tão fácil quanto parece— Damião dizolhando para Edmundo.— Iremos conseguir — é tudo o que digo.— Mas antes temos um presente.

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— Presente?— pergunto sem entender.— Sim, venha comigo.Eu o sigo com Jack ao meu lado. Vamos an-dando até chegar a uma casinha pequena.— Entrem.Estendida em uma cama feita de madeiravelha, está uma armadura de aço brilhante,reluzindo com os poucos raios de sol que en-tram pela janela.Ela tem exatamente meu tamanho.Damião e Edmundo sorriem ao meu lado,enquanto eu e Jack olhamos a armadura comadmiração.— É linda— digo agradecendo.— É feita com o aço mais poderoso quetemos aqui. Foi difícil fazer, mas todos aquitemem pela sua segurança, então com muitoesforço conseguimos terminá-la noite pas-sada— Edmundo diz.— É maravilhosa, obrigada.— E eu? Ninguém teme por minha segur-ança?— Jack diz ao meu lado.

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Damião dá uma risada.— Todos teremos armaduras, nada tão po-deroso quanto essa, mas iremos nos virarbem — ele diz ainda sorrindo.— Sei — Jack diz parecendo rabugento, paravariar.— Deixarei na casa de Amélia antes doanoitecer — Edmundo diz, apontando paraminha armadura.— Obrigada.Todos da aldeia parecem ocupados hoje, al-guns afiam suas espadas, sentados a frentede suas casas, outros ajustam seus arcos en-quanto alguns treinam seus golpes nasárvores.Todos têm algo para fazer no dia antes daguerra começar.Tudo poderá mudar amanhã, o destino detudo depende do amanhã.Saio da casa de Damião caminhando comJack ao meu lado.

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— Sabe, me sinto melhor sabendo que vocêestará ao meu lado amanhã— digo unsminutos depois, ainda caminhando.— Eu prometi que não iria te deixar sozinha,não é?— pergunta sorrindo.— Sim, mesmo assim, obrigada, Jack.— Pelo quê?— Por estar comigo. Você tem me ajudadomuito, está me ajudando desde o dia em quete conheci.Ele balança a cabeça sorrindo.— Está com medo?Penso um minuto sobre isso antes de re-sponder, é a mesma pergunta que Angélicahavia me feito dias atrás, quando chegueiaqui.Temo por algumas pessoas e por esse lugar,temo pela vida de David que está precisandode mim, pela vida de Jack, mas não tenhomedo de morrer, minha preocupação está li-gada as pessoas que me rodeiam e a este

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povo que merece ser livre e ter paz nova-mente em suas vidas.Farei o que for preciso para salvá-los.— Não, não estou com medo — respondosem desviar os olhos de minhas botas.Escuto sua risada baixa.— Você é única, Melane— diz ainda sorrindosozinho.Depois de falar com algumas pessoas e escut-ar suas palavras de incentivos, abraços aper-tados, sorrisos preocupados e encorajamen-tos, deixo Jack na ―arena de treino? dandoas últimas dicas de luta juntamente com Ed-mundo e vou até o lago, sozinha.Me sento na pedra, balançando minhas per-nas na água fria e chamo por Summer.— Summer? Você está por aqui?— perguntoalto.Nada acontece.— Summer?— grito mais alto dessa vez.Vejo a água se movimentar, e então umacauda verde aparece sobre a água cinzenta.

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— Você veio!— ela diz se aproximando demim.— Eu disse que viria— digo sorrindo.— Seu amigo? Jack, certo? Como ele vai?— Ele vai bem, obrigada por ter ajudado nooutro dia. Jack tem certos problemas comsereias, mas é uma boa pessoa.— Sim, muitos têm problemas com sereiaspor aqui — Summer diz com um suspiro. —O que lhe trouxe aqui hoje?— ela perguntacom um sorriso.— Queria lhe ver. Amanhã iremos atacar ocastelo.— Oh! Desejo-lhe concentração e sorte, queas fadas orem por você— ela diz me olhandonos olhos.Não sei exatamente o que isso significa, mascreio que seja algo bom.— Obrigada, Summer, vou precisar.— Você irá conseguir, está no seu destino —ela diz com a voz linda e melodiosa de sereia.

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— Muitas pessoas poderão se machucaramanhã, isso me preocupa muito. Não con-heço muitos dos que lutarão, mas sei que sãoboas pessoas e temo por suas vidas — digodesabafando.— Você será uma boa rainha, tem bom cor-ação— ela diz sorrindo.— Você é uma boa amiga, Summer, me sintocalma ao seu lado.— É coisa de sereia, trazemos tranquilidade,não há nada que eu possa fazer sobre isso emuito menos você pode fazer algo para evitar— ela diz dando de ombros.Eu rio.— Não me importa o motivo, gosto dasensação. Ela também sorri.— Só espero que tudo dê certo amanhã, tudodepende disso.— Tenho certeza que tudo sairá bem,Melane, foi feito para dar.Aceno com a cabeça, tentando acreditar comtodas as forças que tudo ira funcionar. Fazer

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esse lugar voltar a ser o que era antes é a pri-oridade em minha vida, nada mais é tãosagrado para mim agora.— Pode ficar aqui por uns minutos? Só nãoquero que a tranquilidade vá embora.— É claro.Fico sentada com os pés na água gelada ecom a calma que Summer proporciona pormais uns minutos antes de voltar para aaldeia.Caminho lentamente, olhando tudo ao meuredor, tentando imaginar como esse lugardeveria ter sido um dia. Como seria sem tudoestar seco, e se as árvores tivessem folhas, aágua sendo clara, e as crianças tendo sorrisosnos rostos ao invés das expressões sombriase tristonhas de sempre.Isso tudo irá mudar, farei de tudo para quemude.Nem percebo o quanto andei, apenas tomoconta de todo o caminho quando me aprox-imo da casa de Amélia.

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Jack está sentado perto da casa afiando seusabre.— Onde estava?— ele pergunta quando meaproximo. — Fui até o lago — digotranquilamente.Ele apenas me olha sério por uns segundos.— Sozinha?Aceno com a cabeça.Ele bufa e olha para longe.Sei que Jack não gosta de sereias, tambémsei que ele tem um bom motivo para isso,mas Summer é diferente, ela não é má. Gostodela e confio nela, sei que é minha amiga.Ainda sim, me sinto mal pela forma que eleme olha agora, como se eu o tivesse traído dealguma maneira.— Você não se lembra de nada do que disse,não é?— pergunta friamente.— Lembro-me de cada palavra, Jack, mas...— O que você tem na cabeça? Quer morrernas mãos de uma sereia pegajosa? É isso,Melane? Garota estúpida, no que pensou

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quando decidiu sair sozinha para ir ver umasereia? Qual o sentido disso?— ele perguntagritando agora.— Em nada, Jack, não pensei em nada. Euapenas queria vê-la, só isso. Não pode culpartodas as sereias pelo que aconteceu com seupai.— Na verdade, eu posso sim— diz isso e saiandando para longe de mim.Me sinto culpada, mas sei que Jack está er-rado sobre Summer, sinto algo bom quandoestou com ela e não estou falando sobre essenegócio que as serias tem de te trazer tran-quilidade, estou falando sobre algo mais pro-fundo, sinto que posso confiar nela.Fico parada vendo Jack sumir de minhavista.A noite chaga rápido, apenas porque queroque esse dia dure para sempre, para termostempo de nos preparar para batalha. Queroque amanhã aconteça, quero vencer e queroter esse lugar de volta como era antes, mas o

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medo por todas as mortes que aconteceramme consome.Várias pessoa estão amontoadas num lugar,discutindo a batalha de amanhã. ProcuroJack, mas não o vejo em lugar nenhum.Depois de andar por um tempo sem ter nen-hum sinal dele, imagino que ele possa estarna colina, a mesma que passamos a noitejuntos, alguns dias atrás.Em passos largos começo a andar até lá.Quando estou na metade do caminho, vejoAngélica a minha frente, carregando umaarmadura.— É para Damião — ela diz me olhando.Aceno com a cabeça, não tenho tempo parafalar com Angélica, preciso ver Jack.— Onde você está indo?— ela pergunta assimque passo ao seu lado sem dizer umapalavra.— As pessoas têm que parar de me fazer essapergunta — respondo sem olhar para trás,continuando em meu caminho.

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Ela não responde nada.Continuou andando por um tempo até av-istar a colina e a figura escura de Jack sen-tado na beira.Não me preocupo em ser silenciosa emminha subida, sei que não adiantará, ele meescutará de qualquer forma.Assim que alcanço o topo ele se vira e meolha.— Hei — digo tentando sorrir.Ele não responde.Me aproximo e me sento ao seu lado, respir-ando fundo uma vez antes de dizer.— Desculpe. Não queria deixá-lo preocupadoou fazer você se sentir traído, mas... Não seio que dizer — digo olhando pras minhasmãos.Ele não diz nada.— Sei como se sente. Não o chamei para ircomigo, pois sei que não se sente bem aolado dela.

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— Não me importaria de ter ido se tivesse mechamado — diz sem me olhar, mas com a vozcalma.— Não queria que passasse por aquilo denovo.— Não me importo de ver a sereia, se isso temantiver segura.— Desculpe. Não quero ficar assim com você,amanhã lutaremos, quero que tudo fiquebem entre nós.Ele se levanta de uma vez, encostando a mãono galho da árvore ao seu lado.Me levanto também, ficando próxima a ele.— Você não entende, não é Melane?— dizsem me olhar novamente, com o rosto viradopara o horizonte. —Não tem nada a ver commeu pai... Ou com as sereias — ele se vira meolhando nos olhos agora. — É você. É tudosobre você— diz roucamente.Não sei o que dizer, permaneço parada, ol-hando para ele, enquanto seguro minharespiração.

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— Sou um fracassado, Melane, não sou nada.Só quando você chegou é que pude sentir al-guma coisa, como se eu ainda tivesse esper-anças. Faz muitos anos desde que não mepreocupo com ninguém... Ou com nada, atévocê chegar — ele diz parecendo irritado,mas ao mesmo tempo preocupado e agitado,é uma mistura de sentimentos e sensaçõessurgindo em seu rosto que fica difícil decifrarqual delas ele está sentindo.Jack respira fundo antes de continuar, aindaolhando em meus olhos.— Você parece estar sempre se metendo emconfusão, não consegue entender. Você é aúnica coisa boa que me aconteceu em quasetrezentos anos, eu preciso que você fique se-gura— ele pausa mais uma vez ante decomeçar novamente. — Perdi todo mundoque amei nessa vida, não quero te perdertambém, não posso. Simplesmente nãoposso.

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Ele continua me olhando profundamente nosolhos— Não pode me proteger para sempre, Jack— digo com um sussurro fraco.Confusão total reina em minha mente nesseinstante. Ele acaba de dizer que me ama? Ouisso é só coisa de minha cabeça? Seria umamor de irmão ou algo mais forte? Nadadisso faz sentido para mim agora, minhacabeça parece um trem desgovernado, e meucoração está quase saindo de meu peito coma força que bate aqui dentro.Me sinto perdida, mas de uma maneira feliz,eu acho. Nunca me senti tão perdida assimna vida antes, com essa enorme confusão desentimentos dançando dentro de mim.Ele se aproxima mais uns passos, tirandoqualquer distância que há entre nós.— Não, mas eu posso tentar.Estamos tão perto agora que posso sentir seuhálito quente em meu rosto, seus lindos ol-hos negros, tão escuros e profundos quanto

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um buraco negro pode ser, me olhando tãopenetrantemente que fica difícil não acredit-ar que pode olhar dentro de minha almanesse momento.Ele inclina seu rosto em minha direção e mebeija, antes mesmo que eu possa ter umareação sobre isso.Explosão, por toda parte, derramamento delava, começando de onde nossos lábios setocam até a ponta do meu dedinho do pé.Eu o sinto por todos os lados, como se ele es-tivesse se fundindo a mim.Sinto seu cheiro, tão próximo que é difícildistinguir se é o seu perfume ou o meu, suasmãos em minhas costas me apertando tãofortemente contra seu corpo, como se fosse-mos um só.Quente, somos feitos de fogo agora. Meu cor-ação bate rápido com batidas fortes, como ja-mais havia batido antes. Seus lábios tão ma-cios e urgentes ao mesmo tempo, semovendo quase desesperadamente contra os

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meus, sem ter cuidado algum sobre a formacomo me toca, sem medo ou delicadeza,apenas sendo impulsivo, imprevisível, sendoapenas... Jack.Um suspiro abafado sai de meus lábios,quando sua mão desliza para trás de meupescoço, e eu o beijo de volta. Eu realmente obeijo, com a mesma intensidade.A sensação ardente de estar completa e nolugar certo, onde eu sempre deveria ter es-tado é algo totalmente diferente do que haviasentido com David.David... Oh não, como posso estar fazendoisso com ele? O pensamento me atinge deuma vez.Me afasto de Jack, desconectando relutante-mente meus lábios dos seus.Seus lindos olhos negros agora parecem maisprofundos ainda, ele me olha fixamente, suarespiração ofegante se misturando com aminha, ele ainda têm suas mãos em minhascostas e os lábios mais vermelhos que o

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habitual. Acho que nunca esteve tão lindocomo agora.— Eu não posso fazer isso — sussurro antesde sair correndo, descendo a colina o maisrápido que posso.

Capítulo 14 Escolhas eReencontros

Como posso ir para uma guerra amanhã seuma já está acontecendo dentro de minhacabeça hoje?Corro o mais rápido que posso para casa deAmélia.Os pensamentos voando. Não paro para as-similar o que acaba de acontecer, mas o for-migamento em meus lábios e as batidasfrenéticas em meu peito, me fazem crer quetudo foi real.Jack me beijou, de verdade e disse que meama, mais ou menos. Eu não tenho certeza.

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O pior é que eu o beijei de volta, eu real-mente quis beijálo de volta. Devo ser umapessoa terrível mesmo, Angélica está certa,não mereço David, sou uma pessoaabominável.Como posso me deixar ser beijada por umhomem, sabendo que David está desapare-cido, provavelmente preso em algum lugar?Não conseguiria me olhar num espelho setivesse um por perto agora.Sinto-me fraca, sem saída.Meu coração não consegue se acalmar, nãoconsigo distinguir se é por estar me sentindotão suja e enojada de mim mesma ou se épelo beijo.Como cheguei a isso? Jack e eu éramos ami-gos, eu gosto dele, e de estar com ele, daforma como sorri, de seu cabelo douradosempre desarrumado sobre sua testa, de seusolhos escuros, gosto das carrancas que seformam em seu rosto e da forma como meolha sorrindo sempre. Gosto de muitas

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coisas em Jack, ok, mas amigos gostam umdos outros, não é? Como nossa amizade setransformou... Nisso? Eu nem sei a palavracorreta para o que somos agora.O que minha avó diria sobre mim agora?Provavelmente estaria desapontada... Não.Ela iria olhar para mim com seus olhos cin-zentos e expressivos com aquele olhar de―sou velha e sei mais do que você? e diria:―Tudo tem seu tempo? ou então ―Tente nãopensar sobre isso agora, tenho certeza queamanhã não irá parecer tão complicadoquanto parece hoje?. Ela sempre tinha algosábio ou confuso para dizer, sinto falta delapara me ajudar.E agora? Amanhã iremos para guerra, comoJack deve estar se sentindo depois disso?Quero que ele fique focado na luta e não como pensamento em mim ou em nosso beijo, ouna fuga que pratiquei depois disso, descendoa colina como uma macaca ambulante.Quero que ele fique bem.

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―Você ama quem você ama? escuto a fraseecoar novamente em meus ouvidos. Balançoa cabeça na esperança de esvaziar a mentetirando todos esses pensamentos confusos delá.Estou em frente à porta da casa de Améliaagora. Respiro fundo, duas vezes, e giro amaçaneta.Angélica está sentada a mesa olhando a ar-madura de Damião.— A sua está na sua cama — diz se virandopara me ver.— Ok.— Você está bem?— ela pergunta com um ol-har de curiosidade.— Sim— é tudo que lhe respondo.— Fez o que tinha que fazer?— ela perguntase virando na cadeira, me dando as costas.— Do que você está falando?— Você estava tão apressada, imaginei quetinha algo importante para fazer.

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Qual o problema dessa garota? Porque tantaimplicância assim? Já não basta a confusãoem que me meti, ainda tenho que aturá-la?— Faça-me um favor, Angélica?— digo do-cemente a ela.— O quê?— ela diz me olhando.— Cuide da sua vida!— digo dando ênfase emcasa silaba e me viro, fechando a cortinhaperto de minha cama.Minha armadura está ao lado de meu col-chão, sendo iluminada pela luz do lampiãoperto da parede. Corro os dedos pelo açolentamente, depois me deito com as mãos at-rás da cabeça.Nem perco tempo tentando dormir, pois seique será inútil, toda vez que fecho os olhos éseus lábios que eu vejo. Apagar as luzes tam-bém não funciona, a escuridão da noite melembra seus olhos e seu cheiro continua im-pregnado em mim, ele está em todos oslugares, em cada pedaço de mim, não hácomo escapar.

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―Você ama quem você ama?, mas e se quemvocê ama não for a pessoa certa? E se vocênão sabe se realmente ama essa pessoa? E sevocê não quiser amar essa pessoa? Se você játem alguém a quem amar?Não tenho nenhuma resposta para as per-guntas que não se calam em minha cabeça.E isso não é só, preciso estar focada paraamanhã, preciso dormir, descansar e ficarpreparada para a batalha.Sou uma princesa mestiça de dragão e bruxa,coisas assim não deviam fazer parte daminha vida, eu deveria saber sempre o quefazer, mas acontece que eu não sei, não façoideia do que preciso fazer, nem ao menos seio que estou fazendo agora.Fecho meus olhos mais uma vez numa tent-ativa fracassada de dormir. Seus lábiossuaves voltam a minha mente mais uma vez,e meu coração dispara de novo. Não irei con-seguir dormir essa noite.

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Tento então me lembrar de David, daquelanoite em que me levou para ver as fadas emeus pais.Lembro-me de voar em suas costas, sentindoo vento em meu rosto, do brilho azul de suasescamas e da forma como me sinto bemquando estou com ele.Lembro-me de seus olhos azuis, aqueles quesempre adorei, que sempre me acalmavam.,lembro-me de nosso beijo, da forma suavecomo aconteceu e da tranquilidade que sentinaquele momento. Lentamente fecho os ol-hos novamente, tentando manter essas lem-branças em minha cabeça, e então, não émais seus lábios que eu vejo, nada mais étranquilo, é tudo, qualquer coisa, menostranquilidade. Com Jack nada é simples daforma que é com David.Não posso mais confiar em mim mesma, atémeus pensamentos me traem agora, comapenas um fechar de olhos.Isso não vai dar certo, preciso me focar.

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Começo a pensar na batalha de amanhã.―Pelo ar e pela terra?, foi o que Damiãodisse.Antes disso tudo acontecer, nunca tinha es-tado em uma briga em toda minha vida.Sempre fui uma garota muito pacífica, coisasperigosas ou agressivas sempre me davammedo. Agora, estou num mundo de dragões ecriaturas místicas com uma espada que secomunica comigo enquanto tento salvar atodos.Quem diria que eu, a garota quieta de ca-belos ruivos descontrolados, seria umaprincesa?Escuto uma movimentação do lado de fora eme levanto para olhar pela janela afastando acortinha.O sol aponta no horizonte, enquanto pessoasse aglomeram no centro da aldeia.Já amanheceu, e eu nem percebi, estava tãoconcentrada em meus pensamentos que nemvi as horas passando.

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Me apresso, vestindo minha armadura e meatrapalhando no processo, mas por fimacabo conseguindo colocá-la. Deixo meus ca-belos emaranhados soltos, pego Komodo eabro a porta de cortina.Vejo Damião na cozinha abraçando Amélia.— Eu vou voltar — ele diz segurando seurosto com as duas mãos.Ela acena com a cabeça, enxugando uma lá-grima que escapa de seus olhos.Ele se vira quando entro, fazendo barulho nochão de madeira.— Ficou bonita — diz sorrindo para mim.Amélia se aproxima, me abraçando apertadopela cintura.— Nos conhecemos há pouco tempo, mas jásinto um carinho enorme por você. Fiquebem — diz sussurrando em meu ouvido.— Obrigada, eu ficarei, e irei trazer David devolta comigo.Ela se afasta, sorri e acena com a cabeça.

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Angélica está parada na porta, abraçandoDamião, enquanto ele sussurra algo em seuouvido.Quando me aproximo ela me olha nos olhos.— Pode não parecer, mas se cuida.Apenas faço que sim com a cabeça antes desair pela porta com Damião ao meu lado.— Como está se sentindo?— ele me perguntaassim que cruzamos a porta.— Agitada.— Tudo ficará bem.Vamos andando no meio da multidão depessoas, todos indo na mesma direção.Todos usando suas armaduras que agorabrilham com a luz fraca do sol, alguns segur-ando espadas, com arcos presos em suas cos-tas, outros com escudos redondos e lanças,parecem confiantes, enquanto marchavampara a batalha.Daniel está parado em cima de uma pedra,dando as últimas instruções.

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Ele grita, misturando sua voz aos demais gri-tos e aplausos que se formam a sua frente.Corro os olhos pela multidão o procurando.Vejo mulheres com cabelos presos no alto desuas cabeças, segurando lanças afiadas, en-quanto sussurram algo para si mesmas,penso que deva ser algum tipo de oração.Olho por todos os lados, mas não o vejo emlugar nenhum, quero falar com ele ao menosum minuto antes de sair.— Edmundo — digo quando o vejo a minhafrente.Ele não me escuta no meio da multidão econtinua andando. Corro em sua direção, ovirando pelo ombro quando me aproximo.— Edmundo...— Princesa— ele diz sorrindo, olhando paraarmadura. — Serviu perfeitamente.— Sim, obrigada, mas você viu Jack?— per-gunto apressada.

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— Sim, claro. Ele vai pelo ar, está do outrolado se preparando com os outros que irãocom ele.Pelo ar? Não foi isso que tínhamos com-binado. Ele lutaria por terra, ao meu lado, foio que ele disse. Não iria me deixar sozinha,eu não quero ficar sozinha.— Algum problema?— Edmundo pergunta,apertando os olhos enquanto me avalia.— Não, tudo bem, vou ver se consigoencontrá-lo.— Está bem. Não demore, sairemos logo.Digo que sim com a cabeça e me apressopara o outro lado da aldeia.Alguns passos rápidos, acenando pras pess-oas que me cumprimentam pelo caminho.— Princesa, Melane.Alguém me chama pelas costas, tento ignorare continuo meu caminho, mas suas mão sefecham em meu ombro e sou obrigada a mevirar.

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— Princesa— é Rachel, ela está vestindo umaarmadura, segurando uma espada pequenanas mãos, seus cabelos negros e curtos estãopresos em um coque.— Rachel, não sabia que iria lutar — elaparece ser muito nova para estar aqui.— Disseram que tenho talento. Será umahonra defender nosso mundo ao seu lado—diz fazendo uma reverencia.— Assim como será honrado para mim —digo-lhe sorrindo.Sinto meu coração apertar, uma garota tãopequena, jovem e magrinha como Rachel,numa luta como essa, me arrepio apenas depensar no que poderá acontecer com ela.— Não se preocupe, Daniel nos treinoumuito bem, estamos preparados, princesa—diz olhando para expressão preocupada emmeu rosto.— Eu sei. Rachel cuide-se, eu preciso iragora, estou procurando Jack.

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— Jack? Ele está bem ali, vai atacar comodragão — ela diz apontando perto de umaárvore, onde Jack está encostado falandocom mais dois homens.Sinto um frio estranho na barriga no mo-mento em que o vejo.— Obrigada— digo, indo na direção daárvore.Ele me vê se aproximando, parece agitado edesconfortável.— Boa luta, princesa— um dos homens gritaquando me vê chegando.Sorrio para ele.Jack vira o rosto e começa a andar paralonge.Apresso meus passos para alcançá-lo.— Hei, Jack, espere— digo quase gritando.Ele continua andando.— Hei, Jack?Ele para e se vira de uma vez.— O quê?— pergunta friamente me olhando.

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— O que houve?— pergunto parecendocalma, mas por dentro, estou gritando.— O que houve com o quê?— ele continuagélido.— Você vai voando, pensei que iríamos junt...— Mudei de ideia— diz atropelando minhaspalavras se virando para ir embora.Eu o vejo indo para longe de mim, um apertoestranho esmaga meu peito e vai aument-ando a cada passo que ele dá.— Você prometeu que não me deixaria soz-inha nunca mais — grito antes que se afastedemais.Ele se vira, gritando de volta com as mãos le-vantadas para o alto.— E quem disse que eu cumpro minhaspromessas?— então ele volta a andar, sum-indo no meio da multidão.Por que ele tem que ser assim? Por quê?Por que as coisas com ele têm sempre queser dessa forma? Sempre tudo ou nada,porque nunca se tem um equilíbrio com

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Jack? Tudo deveria ser mais simples com ele,da forma que é com David, como sempre foi.Sinto vontade de gritar bem alto, tirar tudode dentro de mim, só não acho que devafazer isso agora, com todo mundo se pre-parando para guerra, tudo que não precisamé de uma princesa descontrolada, entãorespiro fundo e faço o que todos esperam queeu faça.Volto em passos lentos até onde Edmundoestá, ao lado de seu pai.Ele me olha uma vez quando me aproximo.— Tudo bem?Aceno afirmativamente com a cabeça, masnão estou nada bem, na verdade, estou longede estar.Respiro fundo, duas vezes, e me obrigo alimpar os pensamentos de minha mente,preciso estar focada.Todos estão formando uma fila atrás e aomeu lado, cada um com sua arma e escudonas mãos, todos parecendo muito confiantes.

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— E hoje tomaremos de volta o que é nosso!— Daniel grita para a multidão que noscerca.Todos gritam levantando suas armas para oalto.— princesa, quer dizer algumas palavras?—Daniel pergunta se aproximando de mim.Não tenho muita certeza se quero fazer isso,mas é o certo, essas pessoas precisam disso,é o que tenho buscado desde que chegueiaqui, fazer esse lugar voltar ao que era, entãoando alguns passos, ficando de frente praspessoas.— Sei que os dias não tem sido fáceis, e quetiveram muitas perdas, mas tudo isso iráacabar, nada mais de mortes, fome, ou dor.Nós somos capazes de conseguir isso, e nósiremos conseguir — lembro-me das palavrasque Jack disse no meu primeiro dia emNinho de Fogo, quando estávamos na casade Amélia. — Esse mundo merece algo mel-hor! Hoje faremos isso ser possível outra vez,

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eu acredito em vocês! — grito, levantandominha espada, enquanto a multidão grita devolta para mim.Dragões passam voando acima de nós, cort-ando o céu rapidamente a nossa frente.Levanto a cabeça e avisto o dragão negrocruzando as nuvens, enquanto desaparece devista.Suspiro uma vez antes de focar a visão e amente na luta novamente.Começamos a marchar rumo ao castelo, to-dos em seus devidos lugares, em fila, damesma forma que se vê nos filmes, umaguerra de verdade.Andamos por muito tempo, voando o cam-inho até o castelo não parece ser tão longeassim, mas caminhando, isso parece umaeternidade.Os dragões aparecem novamente no céu, ru-gindo em nossa direção.É o sinal de que podemos atacar.

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Apressamos nossos passos e começamos acorrer.Já posso ver o castelo a minha frente agora,há homens em toda sua volta e algunsdragões no telhado do castelo e nos muros deproteção.Aquela vez em que estive aqui, para recuper-ar Komodo, não pude ver com clareza eu malpodia ver um palmo a minha frente comaquela escuridão, mas hoje está de dia, bemcedinho, o sol ilumina cada parede rochosado castelo fazendo com que pareça aindamais radiante, quase com vida própria, en-quanto reflete os raios.É um castelo quase como os que vemos noslivros de contos de fadas, telhados pontudosformando desenhos magníficos em sua es-trutura, um caminho de tijolos escuros cercacada pedaço onde se deve caminhar, há umalagoa com água cristalina, praticamente cer-cando o castelo todo, grama verde cobre cadapedacinho de terra, as árvores são imensas, o

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ar é fresco e a brisa é gelada, tudo aqui emitevida. É como todo esse lugar devia ser.Os guardas podem nos ver agora, parecemsurpresos, mas não demonstram estar commedo, ao menos é isso o que me parece.Os homens a minha volta gritam, enquantoapertam os passos em direção a luta.Edmundo me olha mais uma vez como seperguntando se está tudo bem pela milésimavez hoje.Tento dar um sorriso leve e forçado para ele,ele acena com a cabeça e fica exatamente aomeu lado, enquanto avançamos em direção aguarda real.Komodo grita em minha cabeça, ele está tre-mendo em minhas mãos, essa batalha tam-bém é dele. Meu pai foi morto pelo rei, Ko-modo sente falta dele ainda, é como se meupai ainda fizesse parte da espada de algumaforma, isso me faz sentir mais perto dele, en-tão é como se nós três estivéssemos aqui. Ko-modo, meu pai e eu, juntos num só corpo.

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Levanto minha espada a minha frente segur-ando forte entre meus dedos suados.Os dragões de nosso time chegam ateandofogo. É então que a batalha começa.Os dragões do rei começam a atacar de volta,uma guerra acontece no ar.A minha frente, soldados reais avançam.Corto a garganta do primeiro em uníssonocom a espada de Edmundo, que faz o mesmocom o homem ao seu lado.Não tenho tempo de mais nada, apenas vejoo inimigo e seu sangue que espirra em meurosto.Komodo corta facilmente a armadura dossoldados, como se fossem feitas de manteiga.Avanço sem medo, acertando todos queaparecem em meu caminho.Não sinto pena e nem piedade, tento nãopensar no que estou fazendo e sim porqueestou fazendo.Por meu povo, meus pais, vovó Mary, porDavid, Jack e por mim.

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Todos precisam de salvação.Giro Komodo no ar, acertando o peito dohomem que tenta me atingir com sua lança.O próximo coloca seu escudo para se defend-er, o parto no meio facilmente com minhaespada, e perfuro seu coração.Uma olhada rápida para o lado, Edmundoarranca sua espada do peito de um homem,ele tem sangue no rosto, assim como tenhono meu, posso sentir o gosto em minhalíngua.O céu parece ser feito de fogo, dragões seatacando com todas as forças, ateandochamas uns nos outros.Um deles cai do céu ao meu lado, por poucoscentímetros não sou atingida, mas isso nãome amedronta.Enfio Komodo em seu pescoço, quando per-cebo que ele ainda respira.Quando estou em batalha é como se algomudasse dentro de mim, como se uma partede mim, uma parte mais forte e corajosa

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tomasse conta de minha mente, como paraque a outra parte, a piedosa, não estrague ascoisas. Não sei como isso acontece, mas nãome importo agora, a parte corajosa não mepermite pensar nisso, e estou bem assim,posso lutar melhor.Muitos dos soldados reais estão mortos,jogados pelo chão, mas ainda há muitos pelafrente. A guerra parece nunca ter fim.O céu está mais limpo agora, quase não hádragões adversários, nossos homensderrotaram a maioria deles e estão termin-ando com os que ainda restam.Não sei há quanto tempo estou aqui, cort-ando gargantas, penetrando corações e pul-mões, mas o tempo parece eterno.Edmundo continua ao meu lado, firme,como havia prometido, não me deixou nempor um minuto.A não ser agora, com apenas uma olhada emminha direção ele explode, se tornando o

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dragão azulado, me pegando pelos ombrosantes de levantar voo.Tento me soltar para subir em suas costas,mas suas garras não soltam meu ombro.Ele sobrevoa o castelo, soltando uma rajadade fogo num dragão que aparece do nada anossa frente.— Me deixe subir, Edmundo — grito.Ele faz um som estranho, me olhando nos ol-hos e depois aponta para o castelo, aper-tando os olhos em sua direção.Edmundo me solta numa parte alta do caste-lo, e para ao meu lado, ainda no ar. Ele apon-ta para entrada, uma porta feita de ouro, elequer que eu entre.O plano, penetrar o castelo e destruir o rei.Não sabia que faria isso sozinha, pensei queiria com todos os homens comigo.Antes que possa perguntar algo sobre isso,ele sobe no céu, voltando para batalha.Estou sozinha na enorme sacada.

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Olho mais uma vez para o céu, antes de en-trar pela porta, tento procurar Jack, mas nãoo encontro.Um frio estranho passa por meu estomago eo medo ameaça tomar conta de mim.Me obrigo a não pensar nisso, ele está bem,eu sei que está, digo isso para mim mesma eentro pela porta de ouro.Entro em um quarto, a cama está no centro,enorme, com aqueles mosqueteiros lindosque vemos nos filmes, caindo sobre ela, acolcha azul marinho, com fios do que meparece ser ouro. costurando desenhossimétricos por seu comprimento.Tapetes felpudos por toda parte, de um tomde azul e verde escuro, cortinas azuis, asparedes tem mais quadros espalhados doque tinta.Um espelho grande a minha frente tomaconta de quase toda a parede, me aproximodele. Meus cabelos estão revoltos ao redor demeu rosto ensanguentado. Minha armadura

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já não é mais brilhante e glamorosa, osangue escorre por ela, me sinto macabra,algo saído de um filme de terror, a espadapendurada ao meu lado pingando gotas ver-melhas no tapete macio, e meus olhos...sãode um verde doentio, me olho por mais unsinstantes até poder reconhecer a garota portrás do espelho.Aos poucos meus olhos voltam ao tom deverde normal e posso ver alguns vestígios daMelane de antes.Aceno com a cabeça para mim mesma no es-pelho e saio do quarto, abrindo a portavagarosamente.Tudo parece muito silencioso por aqui, nãovejo ninguém e tão pouco escuto alguém.Tudo muito calmo.Há um corredor imenso, varias portas dosdois lados.Ando lentamente pelos corredores, deixandogotas de sangue pelo piso brilhoso feito demármore, mais quadros pelas paredes, flores

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em grandes vasos de cristais deixam um per-fume maravilhoso no ar.As paredes aqui são de um tom de fúcsiaclaro e lavanda, fazendo com que tudo fiquemais aconchegante, é como calma para meusolhos.Tudo aqui é lindo, é como se nada do queaconteceu lá fora tivesse atingido esse lugar,como se nada de terrível tivesse ocorridonesse mundo.Não sei para que lado devo ir ou em qual dascentenas de portas desse corredor enormedevo entrar. Olho ao meu redor, nervosa,sem saber o que fazer. Todos dependem demim agora, mas nem sei onde estou.Continuo andando sem saber para onde vou.Ninguém aparece, tudo continua silencioso,sem nenhum sinal de vida.Onde estão todos? Onde rei Ariel deve estar?E o mais importante para mim, onde Davidestá?

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Komodo treme em minhas mãos, olho emsua direção com as sobrancelhas levantadascomo quem diz,? o que foi??Não sinto sua energia em resposta ele apenascontinua tremendo, mas não é como das out-ras vezes, agora ele está calmo, me passandouma tranquilidade familiar, que começa emmeus dedos e sobe por meus braços, to-mando conta de meu corpo.É estranho, estou perdida no castelo dohomem a quem devo matar, não sei o que es-tou fazendo, mas inexplicavelmente me sintosegura nesse momento.Komodo aos poucos se acende em uma fracaluz amarelada, como a de uma vela.Fico olhando para ele sem entender o queacontece, a sensação de calma se intensificaagora, sinto-me tranquila de repente, quasecomo da mesma forma que me senti quandovi meus pais na árvore das fadas.Levanto os olhos lentamente e me espanto,quase derrubando o vaso atrás de mim.

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É meu pai. Ou o fantasma de meu pai. Ele es-tá aqui, seus mesmo cabelos ruivos desarru-mados e seus lindos olhos verdes, iguais aosmeus, me olhando carinhosamente, mas eleestá translúcido, como um fantasma deveser.Ele não diz nada, apenas sorri para mim.Eu o olho chocada, vejo que ele tem uma lig-ação com Komodo, como se uma pequenalinha translúcida os tivesse interligando,como se ele só pudesse estar aqui, graças aKomodo.Ele acena com o dedo indicador para o finaldo corredor.Continuo a olhar para ele.Meu pai começa a caminhar pelo corredor,seguro de onde está indo, ele pausa para meolhar quando fico presa no mesmo lugar.Acenando com a cabeça, ele sorri mostrandoo caminho e então eu o sigo.Vou atrás dele sem tirar os olhos de seurosto, ele continua a andar, até chegar a uma

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escada no fim do corredor, vou atrás quandoele desce as escadas, virando à direita depoisde descer o último degrau.Nenhum sinal de vida por aqui também, asmesmas cortinas felpudas o mesmo chão demármore e os mesmos tapetes macios estãoespalhados por essa sala, meu pai continuaadiante chegando a uma porta feita demadeira escura.Depois meu pai sorri mais uma vez para mime desaparece, a luz de Komodo aos poucossome e ele volta a ser o que era antes.Estou de frente para essa porta, sozinha denovo.Olho mais um segundo para porta, antes degirar a maçaneta, ela abre sem fazer o menorruído.Uma escada comum de madeira escorrida aminha frente, desço os degraus, segurando ocorrimão. Parece escuro aqui, quase não háluz, apenas uma ou duas velas espalhadaspelas paredes.

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Continuo descendo, sendo guiada apenaspelo corrimão.Chego ao final da escada, parece ser umlugar velho, cheira mal, um cheiro de sanguee morte, coisas apodrecendo, nada parecidocom o castelo com portas de ouro que vi láem cima.A luz aqui é um pouco melhor, há mais velaspresas nas paredes, continuou correndo o ol-har pelo cômodo, têm jaulas em algunslugares, nem quero imaginar o que sãoaqueles ―montes? caídos dentro de algumasdelas, parecem bichos mortos, mas nãoquero verificar para comprovar.Tapo o nariz com a mão, mas não adianta, ocheiro está por toda parte.Começo a caminhar, examinando as coisas,deve haver alguma coisa aqui, já que meu paime guiou até essa porta.É quando eu o vejo, jogado no chão de umajaula.— David?—pergunto sussurrando.

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Ele levanta lentamente a cabeça do chão comdificuldade.— Mel?— ele diz roucamente, tentando focarseus olhos acessos em mim.— É você— me aproximo da jaula.Ele se levanta desjeitosamente se aproxim-ando da grade.Forço a porta, mas está trancada.— Se afaste — digo a ele.Assim que ele se afasta um pouco, corto o ca-deado com Komodo, facilmente.Entro correndo e o abraço forte. Ele fechaseus braços ao redor de minha cinturafracamente.— Você está bem?— pergunto me afastando,olhando em seus olhos iluminados, tirandoos fios suados de cabelo negro de sua testa,tentando ver seu rosto pela luz das velas.Ele está mais magro, sujo e posso ver umcorte antigo de uns dez centímetros em suabochecha direita.

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— O que é isso?— levanto os dedos, tocandoa cicatriz.Ele balança a cabeça negativamente, tirandominha mão de seu rosto.— Melane, tem que acabar com isso agora—ele diz, parecendo desesperado.— O quê? Eu não entendo.— A guerra, Melane, termine isso agora!— O que você está falando, Davi, você não es-tá bem, está machucado e...— Não. Melane, essas pessoas não merecemmorrer, estão obedecendo a ordens de umhomem que não pode tomar suas própriasdecisões, seu avô foi enfeitiçado — ele diz ar-regalando os olhos azuis.— O quê? Como enfeitiçado?— Não há tempo para isso. Seu avô foi en-feitiçado, não é ele que está fazendo tudoisso, ele é apenas um fantoche nessa historia.— Quem o enfeitiçou?— Não sei, Mel, não importa agora, temosque parar isso. Precisamos achá-lo.

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— Onde ele está?— pergunto tentando as-similar tudo.— Sei onde ele fica, fui chamado lá variasvezes. É o colar. O colar o está mantendopreso.— Como você sabe?— Ele brilha de uma forma estranha, igualseus olhos. Eles reluzem no exato momentotodas às vezes. Tem que ser isso.— E se não for?— pergunto nervosa.Ele me olha com olhos cansados, assim comoseu corpo gasto parece estar.—É melhor que seja— é tudo o que ele diz.— Venha comigo, eu sei onde ele está — dizpegando minha mão, me puxando pelaescada.— Mas e você? Não está machucado...— Não se preocupe comigo.David nos guia para fora do quartinho ondeestava preso, estamos no cômodo grande deuma sala agora.Com a luz posso ver melhor seu estado.

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Ele realmente está bem mais magro do quecostumava ser, seu cabelo está sujo e milvezes mais desarrumado que o habitual, suasroupas na mesma situação, ele tem manchasde sangue em algumas partes das roupas,tento não pensar em como elas foram pararali.Quando ele vira seu rosto, posso ver melhorsua cicatriz rosada na bochecha. Ela não émuito grande, mas é funda e mesmo isso nãodiminui em nada sua beleza, mesmo nesseestado ele ainda parece lindo para mim.Puxo meu braço o fazendo parar.Ele me olha confuso. O puxo para um abraçoapertando, afundando meu rosto em seupeito.A confusão em seus olhos muda para algoacolhedor e carinhoso, sem dizer nada, meaperta pela cintura uma única vez antes de selivrar de meus braços.— Temos que ir, Mel.Aceno com a cabeça. Ao menos ele está bem.

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O sigo pelo castelo por um tempo curto, atéchegarmos a uma porta feita de madeira es-cura, quase preta.— É isso, ele deve estar aí dentro.Respiro fundo uma vez antes de abrir a portalentamente.Não sei o que me espera por trás dessa porta,nem ao menos sei o que devo fazer, mas issotem que terminar hoje.A porta range, mas não me impede de ter-minar de abri-la.É uma sala grande, parecida com todas asoutras desse lugar, ouro, tudo feito de ouro,vasos de flores coloridas, tapetes felpudos, ecortinas macias, apenas uma coisa está difer-ente, o homem de cabelos ruivos olhandopela janela.É ele, meu avô, olhando tranquilamente aguerra que acontece em seu quintal, lenta-mente ele puxa as cortinas azuis, asfechando, fazendo com que a luz das velaspresas em castiçais de prata, sejam as únicas

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a iluminar o local. Ariel vira-se em minhadireção, a ameaça de um sorriso brincandono canto de seus lábios, apertando seus ol-hos, me analisando.Fico imóvel, sem reação nenhuma, apenas oencarando de volta.— Estava esperando por você, tenho esper-ado há muito tempo — ele diz suavemente,com uma voz grossa, encorpada e ao mesmotempo doce, como a de um avô deveria ser,como eu imaginava que seria.— Viu só?— ele aponta para a janela. — Suaculpa, não devia ter causado tanto alvoroço.— Não seja ridículo — David diz sorrindosarcasticamente.— Oh, vejo que você está livre, é claro queestá.Continuo imóvel, olhando para ele como sefosse algo vindo de outro planeta, tudoparece tão confuso, David disse que não é elequem está ali, que é outra pessoa. Como?Ariel me parece exatamente como na foto

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que vi outro dia, no quarto onde Komodo eraguardado, a não ser por...— Esperei muito tempo por esse dia, meubem.Seus olhos, eles cintilam agora, e o colar deum tom doentio de vermelho preso em seupescoço faz o mesmo, brilhando no mesmoinstante que seus olhos.Volto meu olhar para o seu, é claro, tinhaque ser isso, esse não é meu avô, nunca po-deria ser, não fazia sentido algum, um reibom, que todos gostavam, mudar tanto as-sim de um dia para o outro.— Quem é você?–— digo finalmente, com avoz firme.Ele me olha parecendo surpreso e então sorrilevemente.— Sabe, estava certo de que a queria morta,mas depois dessa demonstração de poder,estou começando a pensar diferente — elediz, ignorando minha pergunta. — Muitobom esses negócios que faz com essa espada!

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— Sei que não é meu avô. Quem é você?Ele me olha calmamente, respirando fundo,eu até poderia dizer que está sorrindo com osolhos, enquanto me encara mais uma vez.— Isso importa?— Na verdade não, irei matá-lo de qualquerforma — digo sem medo.Ele sorri.— Só me responda uma pergunta.Ele levanta a mão direita, me encorajando aperguntar.— Por quê?Ariel vira um pouco a cabeça para o lado epensa meio segundo antes de dizer:— Porque eu posso, essa poderia ser uma boaresposta, mas não, não é assim, minhaquerida— ele suspira uma vez antes de con-tinuar. — Acho que a resposta mais exata évocê, fiz isso para que você viesse até mim,você é uma ameaça, não podia deixá-la soltapor ai, tive que tomar atitudes. Sinto muitose pessoas tiveram que morrer para isso

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acontecer, mas os fins justificam os meios,não é que dizem?— ele sorri.Raiva, ódio, repulsa, uma mistura de senti-mentos toma conta de meu corpo, enquantoo olho cerrando os dentes e apertando Ko-modo mais fortemente entre meus dedos, atéque os nódulos fiquem brancos.— Porém, comecei a ver as coisas diferentes,você não tem ideia do que poderíamos fazerjuntos. Como disse, comecei a ter novos pla-nos para você.— Pena, continuo com os mesmos planosque tinha antes para você. — levanto Ko-modo agora, o segurando em posição deataque.David coloca a mão direta em meu ombro,olhando-me com cautela, me lembrando desua presença aqui, tinha me esquecido dele.— Desculpe — sussurro, olhando direta-mente em seus olhos confusos, antes deforçá-lo porta a fora, apenas apontando emdireção a ela com o dedo indicador.

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— Não, Melane, não faça isso — ele conseguegritar antes que eu bata fortemente a porta,mantendo-a trancada. Não sabia que tinhaesse tipo de poder, até agora, acho que nemAriel sabia, pois sua expressão surpresa oentrega.Ele sorri em minha direção, com os olhosbrilhando.— É isso que estou tentando dizer, você é im-pressionante. Há quanto tempo está usandoseu poder?Eu não lhe respondo, apenas continuo comKomodo levantando a minha frente.— Besteira, abaixe essa coisa, não pretendolutar com você, não mais.— É uma pena novamente, pois é exatamenteisso que pretendo.Não lhe dou tempo de raciocinar, avançocom Komodo em sua direção, tentando acer-tar seu peito, mas ele desvia facilmente parao lado. Tão rápido.Ele balança a cabeça lentamente.

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Tento outra vez, deixando Komodo controlara luta por mim. Ariel saca uma espada tãogrande quanto a minha de sua cintura e blo-queia meu ataque, estamos cara a cara agora.— Não precisa ser dessa forma.O ignoro, me focando somente na luta, tent-ando não prestar atenção ao que ele diz. Oempurro fortemente o fazendo tombar al-guns pequenos passos para trás, isso oparece pegar de surpresa.Ele vem em minha direção agora, lançandosua espada com toda força em mim, meubraço lançasse automaticamente, travandoseu golpe. Giro Komodo, levando sua laminacomigo no caminho, quase a fazendo voar desuas mãos.A fúria me controla, não sei quem ele é, enem sei ao certo o que ele quer, mas isso temque terminar.Não posso me desconcentrar, tenho quemanter a porta fechada, e David atrás dela,

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não quero ter que me preocupar com elenesse momento.O barulho de aço chocando-se é alto, faíscassaem de minha arma, enquanto avanço viol-entamente em sua direção.Penso em tudo que já aconteceu, em tudoque meu povo já passou, na morte de meupai, minha mãe, vovó Mary, e tantos outrosdesconhecidos que não mereciam esse des-tino cruel, tudo para alimentar o ego de umsó homem.Isso me dá forças agora, sinto a energia den-tro de mim se espalhando, queimando meucorpo. Posso ver Komodo começando amudar, deixando sua cor prateada pelo ver-melho fogo de antes, o mesmo quando ossoldados atacaram a aldeia no dia em que merevelei.Sinto as mãos quentes, o calor andando porentre meus dedos e tomando conta de seucomprimento.

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Os olhos de Ariel se arregalam quandominha espada ilumina o lugar, totalmenteacessa, queimando, feita de brasa.Sem pensar, lanço Komodo em direção aoseu peito, ele se defende no último minuto,agora aparentemente se esforçando para se-gurar o golpe.Seus olhos estão diante dos meus, posso vero ódio dentro deles mudando, se tornandomais amedrontados do que raivosos.Ele sorri lentamente, como se algo tivesse seformando em sua mente.— Não está se esquecendo de nada, princesa?Se eu morrer, seu avô morre também...Sei que ele pode ver a confusão tomandoconta de meu rosto, sabia que tinha que fazerisso, mas a ideia de matar alguém inocente,meu próprio avô... Meio segundo de pânico,foi tudo o que ele precisou para me derrubar,me empurrando no chão com toda sua força.Caio com um baque estrondoso, Komodo es-capa de minhas mãos, voando vários metros

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para longe de mim, antes de cair sobre o pisode mármore com um barulho metalizado.Apenas tenho tempo de virar o pescoço emsua direção, enquanto inutilmente esticomeu braço para tentar pegá-lo, mas meu avôjá está em cima de mim, as pernas passadaspor cada lado de minha cintura e sua espadatocando levemente minha garganta, en-quanto um sorriso forma-se em seus lábios.Estou presa no lugar, sem poder ao menosmexer um único músculo de meu corpo, é al-gum tipo de feitiço, posso senti-lo dentro demim, correndo por minhas veias, enquantopetrifica cada célula dentro de mim, me deix-ando imóvel.Apenas tenho controle sobre meus olhos, àúnica coisa que consigo movimentar agora.Pelo conto do olho vejo Komodo há unsquatro metros de distância, posso sentir suafúria daqui, ele sente raiva e medo, ele pre-cisa me proteger.

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Ariel continua me olhando com o sorrisodoentio no rostoSinto a mágica dentro de mim, tentando sair,tentando se libertar, a luz azul ameaça bril-har para fora de mim, mas nada acontece,não tenho nenhum poder sobre sua magia.Não consigo pensar em mais nada agora, seique é o fim, mantenho-me de olhos bemabertos olhando diretamente em seus olhos,não lhe darei o gostinho de vitória, me encol-hendo de olhos fechados como um coelhoamedrontado.Ele me olha diretamente nos olhos, virando opescoço para o lado.— Não era para ser assim, mas não me deuescolha.Me mantenho firme, sem desviar os olhospor nenhuma vez.Ele levanta sua espada o mais alto que pode,a segurando com as duas mãos.Um vislumbre de todos que amo passa porminha cabeça, enquanto sua espada desce

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em câmera lenta em direção a minhagarganta.Vejo vovó sorrindo para mim em nossa casa,Summer com gotículas minúsculas de águaescorrendo de seu rosto e cabelos, vejo Davidcom seus olhos risonhos feitos de mágicaturquesa, me olhando carinhosamente, comosempre tem feito, e então vejo Jack, com suaexpressão travessa e sardas espalhadas pelonariz, enquanto diz algo sarcástico. Sinto poreles e por todos os outros que decepcionei,mas por agora quero apenas lembrar-me deseus rostos em minha mente o máximo queconseguir aguentar. Agora e para sempre.A espada afiada de Ariel desce lentamenteem minha direção, cortando o ar ao seuredor, estou ciente de tudo, até que umbrilho como o de uma vela começa a piscarao meu lado, a linha feita de luz começa a seprojetar de Komodo e no final meu pai surgenovamente, dessa vez mais solido e vivo queantes.

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Ele quebra a distância entre Komodo o se-gurando pela mão direita rapidamente secolocando entre mim e a espada de Ariel, in-terrompendo seu ataque.Confusão transparece no rosto de meu avô,ele olha para meu pai com tanta incredibilid-ade e tanto assombro.Os olhos de meu pai são quase feitos de fogo,enquanto olha diretamente para Ariel, suaboca se abre como se estivesse gritando,como se estivesse libertando toda sua dor,mas nenhum som sai de seus lábios, com suaoutra mão livre, ele agarra de uma vez o rubivermelho preso ao colar e o arranca violenta-mente do pescoço de meu avô.O rei solta a espada, caindo de joelhos nochão, suas mãos vão até seus olhos úmidos,enquanto ele olha ao seu redor, como se est-ivesse vendo tudo pela primeira vez.— Enfim... — ele diz roucamente.Continuo deitada no chão, imóvel, mas agoranão por magia, mas sim por puro choque.

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O peito de meu pai levanta-se suavementesom sua respiração, o verde folha de seus ol-hos volta aos poucos, ele ainda está com orubi preso por entre os dedos, ele o olha fixa-mente por alguns segundos antes de colocá-lo no chão e enterrar Komodo bem nocentro, o despedaçando em mil partículasque se elevam pelo ar antes de virar algumtipo de pó vermelho e diluir-se como a brisa.Alivio surge em seu rosto, ele me olha umaúltima vez, sorrindo carinhosamente, e de-pois desaparece, assim, como se nunca est-ivesse estado lá, um apagão, da mesmaforma que a TV desliga-se quando acaba aenergia, sem nenhum vestígio de que esteveaqui.Ainda estou no chão com meu avô caído dejoelhos ao meu lado.Me sento e olho em sua direção.Ele ainda olha a sala como se essa fosse aprimeira vez em sua vida.

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— Querida — diz roucamente, quando seusolhos encontram os meus.Ele tem os olhos úmidos e suas mãos tre-mem levemente.— Sinto muito... Eu... Esse não era eu... Eununca iria...— ele tenta, gaguejando, mas nãopreciso de nenhuma palavra dita agora, eacho que ele também não.Quebro a pouca distância entre nós e o ab-raço fortemente, me ajoelhando também.Ele me aperta contra seu peito forte, en-quanto enterra seu rosto em meus cabelos,sinto a umidade de seus olhos em meupescoço.David entra pela porta quase tropeçando emseus próprios pés, as portas se abrem de re-pente, a calma que sinto agora faz com queme esqueça do poder que usava, mantendo-as fechadas.Ele nos olha uma vez antes de relaxar os om-bros, visivelmente aliviado.

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Ariel coloca as mãos em meu rosto sorrindopara mim.— Iremos arrumar todo esse pesadelo,querida.— Vamos logo, a guerra continua lá fora,temos que parálos — David diz, apontandopara a grande porta de madeira escura.Aceno com a cabeça, me levantando en-quanto estendo as mãos para ajudar meuavô.Sorrio fracamente quando passo ao lado deDavid, as coisas vão voltar a ser como eramantes, sei disso.Corro para entrada do castelo, ainda há umaguerra lá fora, pessoas inocentes lutandoumas com as outras, ainda há muito queconcertar.O pensamento de que tudo irá se ajeitarcomeça a se dissipar vagarosamente deminha mente, quanto me aproximo dagrande porta feita de ouro da entrada.Consigo escutar os gritos de agonia e de fúria

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que surgem de fora, abro a porta do castelocom um empurrão forte com as duas mãos.A guerra acontece, ainda mais violenta doque algumas horas atrás, sangue por todaparte em que olho, o céu parece ser feito deum tom de laranja e vermelho, pela quan-tidade de fogo que é arremessada pelosdragões que lutam.Não vejo Jack em lugar algum de onde estou,sinto uma dor surgindo dentro de mim,ameaçando meus nervos por não saber se eleestá bem. Procuro mais uma vez e nada.Meu coração bate desesperadamente pelasvidas que hoje foram perdidas, por todo o so-frimento que esse povo teve, pelo ódio quefoi brotado nesse lugar e tudo isso sendoacusado pela pessoa errada.Sinto o peito apertar da mesma forma queaperto minhas mãos sobre Komodo, quegrita dentro de minha cabeça nessemomento.

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— Parem todos — grito o mais alto queposso.David está ao meu lado, com os mesmos ol-hos arregalados que meu avô.— Eu ordeno que vocês parem — Ariel grita,enquanto sua face fica rosada e suas mãostremem ao seu lado.O resultado é o mesmo de quando gritei, nin-guém nos escuta, todos continuam o mas-sacre sanguinário a nossa frente. Posso verEdmundo no céu atacando as costas de umgrande dragão amarelado.— Pare, Edmundo, pare com isso todosvocês.Novamente ninguém me escuta.— Tentarei pelo ar — David diz antes de ex-plodir em um grande dragão e com um saltosubir para o céu rugindo o mais alto quepode.Ele corre pelo ar rugindo e berrando, contor-na dragões, desviando de suas chamas semsoltar nenhuma de seus lábios.

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Mas nada acontece, ninguém parece nos es-cutar, ninguém parece querer nos escutar. Araiva é grande, as perdas que esse povo teve,todo o sofrimento, a vontade de ter sanguederramado e de ter o inimigo derrotado émaior do que a capacidade dos gritos quetemos em nossas gargantas.Isso não irá funcionar, tenho que pensar emalgo rápido.Meu avô treme ao meu lado, sua face aver-melhada, seus olhos arregalados, enquantovê seu povo morrer, lutando uns contra osoutros, matando de sua própria espécie. Édemais para ele, eu sei, ainda mais que aculpa disso tudo estar acontecendo sersupostamente dele. Ele fica imóvel, como semover algum de seus músculos fosse algoimpossível nesse momento.Avanço correndo em direção à multidão quese consome a minha frente, gritos de agoniasurgindo de mim enquanto avançodesesperada.

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— Parem agora, foi um erro! Basta, isso estáerrado, vocês precisam parar.Estou distraída, olhando a guerra e tentandocessá-la, meus olhos estão perdidos nosangue e nas mortes que acontecem, Ko-modo sendo arrastado no chão enquantocorro o mais rápido que minhas pernas mepermitem, estou tão concentrada em deter aluta que não percebo quando um dragão voabaixo, ateando fogo em minha direção. Sópercebo o perigo quando as chamas estãopraticamente me cima de mim, estou con-fusa, desnorteada e desesperada, não hátempo de fazer nada. Tudo acontece muitorápido agora.Um dragão preto passa por mim, voandomais rápido do que qualquer outra coisa, sejogando na minha frente,abrindo suas asas omáximo que consegue, fazendo uma cortinaprotetora sobre mim, enquanto recebe o im-pacto das chamas em meu lugar. É Jack.

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Capítulo 15 O poder em mim

A grande quantidade de fogo acerta direta-mente em seu peito escuro, o fogo consomesua carne, enquanto o cheiro de queimadoinvade meu nariz, a cena toda parece passarem câmera lenta aos meus olhos, estouciente de cada movimento seu a partir deagora, suas asas sendo consumidas pelofogo, enquanto cai alguns metros ao meulado com um baque estrondoso, quicandoduas violentas vezes na grama antes de ater-rissar de vez. De olhos arregalado, vejo Jackvoltar a sua forma humana, desacordadocom o peito todo chamuscado, o sangueescorrendo rapidamente de suas feridas.

Não sei o que fazer, nem o que pensar, nãosei de nada, apenas fico paralisada vendo seucorpo imóvel jogado sobre a grama verde,fazendo seu sangue contrastar ficando aindamais vermelho do que deveria ser.

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É então que algo acontece dentro de mim,meu coração fica lento, ao invés de baterdescontroladamente em meu peito, minharespiração se acalma, sinto-me leve, mas al-guma coisa cresce dentro de meu peito, algoque não sei dizer exatamente o que é, sintouma energia tomar conta de meu corpo, masdessa vez não é o calor, é algo diferente, maispoderoso. Não é fogo, é luz.

Meu corpo todo se acende, meus pés, pernas,braços, e até meu rosto e mãos que seguramKomodo fortemente por entre meus dedos,minha espada se transforma na mesma corde azul cintilante que meu corpo, sinto cadapedaço de mim, no entanto é como se nãocontrolasse meus movimentos, como se aforça fosse tão grande que comandasse pormim, entro em um estado de transe e deixo opoder tomar conta.

Olho para guerra, que ainda acontece por to-das as direções, sem esperar mais nem um

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minuto, levanto Komodo o mais alto queconsigo sobre minha cabeça, a luz fica aindamais forte, sinto que posso brilhar mais queo sol nesse momento e então o grito vem,saindo das profundezas de minha garganta,cortando o ar a minha volta, o chão começa atremer com o impacto, o ar muda de direçãocomo se uma onde sonora tivesse se form-ado, os dragões do céu caem, igualmente àspessoas do solo, o grito é tão alto e potenteque provavelmente tenha sido escutado nosquatro cantos do planeta.

Komodo brilha ainda mais em minhas mãos,refletindo toda minha luz em sua lâmina, oazul de meu corpo transfere-se para espada,o levanto mais alto ainda, quase o forçando asair de meus dedos, então a luz escapa pelaponta como um raio indo em direção ao céuvazio, o clarão toma conta de tudo, cada ped-aço da imensidão acima de nós fica da cor damágica que existe dentro de mim, aos poucos

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as partículas brilhantes caem, pegando cadapedacinho de terra no processo.

Cada gota de magia toca o solo, fazendo comque a terra vermelha seja substituída porgrama, verde e fresca, cada árvore secaganha vida, com seus galhos cobertos de fol-has, frutas e flores, o ar cinzento desaparece,assim como o calor abafado que nosperseguia por onde quer que fossemos, florescrescem pelo chão, de todas as cores ima-gináveis, trazendo o aroma doce até nossosnarizes imediatamente, esse lugar ganhavida de novo.

O transe ainda toma conta de mim, e agoranão vejo nada a minha frente a não ser Jack,ainda caído no chão, praticamente morto,rodo Komodo em minha mão direita e ofinco no chão de grama, enquanto vou emsua direção, sem correr, sem me apressar,apenas dou passos tranquilamente, sabendoexatamente o que fazer.

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Me abaixo ao seu lado, me ajoelhando nochão. Seu rosto está pálido, muito maispálido que o habitual, o sangue espalhado di-ficulta olhar para seu ferimento, mas issonão faz diferença agora.

Deveria estar apavorada, mas não estou. Fiosdourados deslizam por entre meus dedos,enquanto acaricio seu rosto levemente.

Sangue escorrendo por onde olho, pessoasem chamas, uma guerra que não deveria tercomeçado acontecendo, dragões caindo docéu da mesma forma e intensidade que gotasde chuvas em uma tempestade, nada dissoimporta agora.

É ele, apenas ele.Posso escutar o som de seu coração batendolentamente, quase parando, sinto sua vidaevaporando diante de meus olhos, sinto suador, como se fosse minha.

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Me abaixo mais, encostando meu rosto noseu e deixo a luz tomar conta de nós, nosfazendo ser um só sobre o manto azulado.A claridade cresce, fazendo com que seucorpo fique totalmente coberto, cintilandojuntamente com o meu, abro meus olhos ol-hando diretamente para seu rosto, aquelerosto que tanto adoro que sempre me olhacom um sorriso nos lábios e com os olhosbrilhando.A energia fica mais forte, se antes brilhavamais que o sol agora brilho cinquenta vezesmais, coloco levemente minhas mãos emcima de seu peito despedaçado pelo fogo e aferida fecha-se lentamente sob meus dedos,sinto a pele se unindo, sem nenhuma cica-triz, nenhuma marca, meio segundo depoisseus olhos se abrem lentamente para mim.Ele me olha confuso, porém sem medo, a luzainda toma conta de nós, sorrio para ele as-sim que seus olhos se encontram com os

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meus. Ele está vivo, é como se nada mais im-portasse para mim nesse momento.O raio de luz volta até Komodo que aos pou-cos tornasse feito de aço prateado nova-mente, meus olhos finalmente voltam a sermeus e eu tenho poder sobre meu corpo maisuma vez.A escuridão vem imediatamente, e tudo queposso fazer é abraçá-la...

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Jack

Não posso pensar nela, tenho que manterminha atenção na luta, morrerei caso con-trario. Desvio do fogo no último instante,comprovando o que acabo de pensar. Agarroo dragão que acabara de me lançar chamas, ogirando no ar, mandando-o diretamentepara o chão. Faz tempo que a vi entrando nocastelo, eu devia ter ido junto, cumprido apromessa e ter ficado ao seu lado. Sim, estoucom raiva, muita, eu me abri para ela, eununca me abro paraninguém. Que tipo depalavra é essa? ―Se abrir? quem usa essa ex-pressão? Pelo jeito, eu uso. Que merda é essaque está acontecendo comigo?

Por que não consigo me concentrar nabatalha? Por que só faço perguntas para mimmesmo? Perguntas, das quais não tenho asrespostas. Não estou acostumando a me ver

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tão vulnerável assim, não faz parte de mim,eu não sou fraco, mas então por que é exata-mente assim que me sinto? É ela, é tudoculpa dela, nada disso estaria acontecendo seela não tivesse ido embora para ficar comele. David, o cara que é capturado naprimeira vez que as coisas se complicam, porguardas da corte real, aqueles babacas... Eupoderia acabar com todos eles sozinho.

Porque ela demora tanto? Pelo visto sereiobrigado a entrar eu mesmo lá e acabar comisso de uma vez por todas.

É ela, saindo pela porta principal, coberta desangue, seus olhos estão arregalados, en-quanto olha para o céu, devastada, nunca avi assim antes.

David está ao seu lado, e rei Ariel também, oque ele faz ali? Ele está chorando? É isso?Chore mesmo, velho, veja o que fez com esselugar.

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O que ele faz com ela? Era para ele estarmorto agora. Isso deve ser coisa de David, elee sua imensa piedade. Uma ova, eu mesmoirei matar esse velho, e não terei piedade.

Hei! O que ele está fazendo, não a deixe soz-inha, seu idiota, por que ele se transformou?Você é o guardião dela, protegê-la é suaobrigação, que inferno, o que há de erradocom essa gente?

Já chega! Hora do show acabar, Ariel temque morrer, não sei por que ele está aliparado, como se fosse um doente mental, seestivesse babando até me convenceria.Avanço pelo ar em sua direção, desviando-me das chamas e dos inimigos quase auto-maticamente, como tenho feito nesse meiotempo.

O quê? Melane está correndo pelo campoaberto, arrastando sua espada pelo chão e

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gritando? O que essa idiota pensa que estáfazendo?

Quer morrer? Digo berrando, mas apenasrugidos saem de minha boca, é difícil secomunicar quando estamos numa formadiferente de quem queremos entregar amensagem. O que essa demente estáfazendo? Gritando? Cale-se, Melane, nin-guém a está escutando, saia de campo abertoe volte lá para dentro.

Vou ignorá-la, se quer ficar e ser um alvo fá-cil, que seja, não é minha obrigação protegê-la... Ariel, ele é quem terá toda minhaatenção, só mais alguns metros e o fogo iráconsumi-lo, lentamente, eu espero, queroque sofra, da mesma forma que nos tem feitosofrer.

Só mais um pouco adiante e... Não. Melane,sua idiota, olhe para frente, rápido.

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Ela não irá conseguir, está perdida, des-norteada, ainda nem se quer o viu se aproxi-mando... Não há tempo para mais nada,avanço o mais rápido que consigo, forçandominhas asas, cortando o vento e me jogo emsua direção, recebendo as chamas em seulugar. Sei o que disse antes, não é minhaobrigação protegê-la, estou irritado com ela,hoje mais do que nunca, mas apenas, nãoposso com a ideia de viver em um mundo emque ela não viva.O fogo me acerta em cheio, como uma bolade canhão, bem no meio do peito, se espal-hando rapidamente por todo meu corpo,consumindo minhas asas, o cheiro dequeimado vem logo depois, me deixando tãotonto que mal posso manter-me acordado.Caio no chão, quicando duas vezes sobre agrama, antes de desmoronar, quase desa-cordado volto a minha forma humana, sintoos ossos quebrados, não sei dizer quais fo-ram atingidos, apenas que foram muitos. A

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dor é algo impossível de descrever, é apenasdor, dor, somente dor, eu choraria sepudesse, mas não tenho controle sobre mimmesmo, mal posso manter-me de olhos aber-tos. Sempre tive raiva de pessoas que prefer-em a morte nos momentos de dificuldade, eusempre disse: ―Hei! Largue de ser estúpidoe viva, aguente firme?, mas vejo que estavaerrado quanto a isso, pois morrer não meparece tão estúpido ou errado assim agora.Tudo está confuso, estou caído no chão, soz-inho, morrendo lentamente, enquanto osangue escorre violentamente de meu corpomoribundo. Então algo acontece, um barulhoinfernal, deduzo com o pouco de sanidade econsciência que me resta, ser parte de minhaimaginação, e fecho meus olhos, apenas es-perando por não sentir mais nada.Mas então o som desaparece, silêncio tomaconta de tudo, posso senti-la ao meu lado,não posso abrir meus olhos novamente, opeso das pálpebras parece ser infinito, e não

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me arrisco a tentar levantá-las, não importa,ela está aqui, sei disso, não preciso abrir osolhos para comprovar. Seus dedos acari-ciamme levemente, para depois substituí-lospela pele macia de seu rosto junto ao meu,seu perfume consegue ser ainda maior doque o de minha carne queimada, seus ca-belos roçando meu pescoço, talvez eu játenha ido, ou esteja indo e isso possa ser ocomeço do paraíso, a não ser pela dor queainda me consome, e pelo fato de que eununca iria para o céu, não, meu destino seriaoutro, bem diferente.Não importa, vivo, morto, que se dane, elaestá aqui.Sinto-me quente agora, não queimando, nãomais, apenas quente, confortável, a dor cessainstantaneamente, é como se um manto decalor me rodeasse, aquecendo cada fibra demeu corpo, suas mãos feitas de seda tocammeu peito, sinto o tecido de minha pelefechando-se, correndo de encontro com a

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outra extremidade, como se nada tivesseacontecido. Não existe mais dor, nem medo,apenas calma, paz, de uma forma que nuncasenti antes, o peso de toneladas que se alo-javam em meus olhos desaparece, e possofinalmente abri-los.Ela sorri docemente, a luz azulada nosrodeando, nos tornando um só, presos numabolha protetora, ela e eu. Meio segundo de-pois seus olhos ficam confusos e desfocadose ela desaba em meus braços inconsciente.

Capítulo 16 De volta àrealidade Melane

Logo na primeira tentativa de abrir os olhossou golpeada por fleches de luz negra, comose a cor estivesse explodindo lentamente, damesma forma que acontece quando alguémestá prestes a desmaiar, sinto-me tonta,como se tivesse ficado com os olhos fechadosdurante muito tempo. Volto a fechá-los, fico

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apenas uns poucos segundos assim e tentoabri-los novamente, uma luz não muito forte,mas suficiente para me incomodar alcançameu rosto, fazendo com que o processo sejaainda mais doloroso. Então finalmente, con-sigo abrir os olhos, lentamente e piscando al-gumas vezes, antes de tê-los totalmenteabertos. Estou deitada em uma cama, dessasiguais as que vimos em filmes de princesas,com uma cortina branca rendada feita de umtecido muito fino, caindo pelo dossel, desliz-ando elegantemente até o chão. O travesseiropor trás de minha cabeça é o mais macio quejá experimentei em toda minha vida, assimcomo o colchão, a colcha que tenho por cimade meu corpo também é branca com muitasrendas tecidas com ouro? Deslizo as mãospelo tecido macio, sentindo o maravilhosoaroma de flores que me rodeiam.

Começo a correr os olhos pelo cômodo, o te-cido que envolve a cama está tapando avisão, mas ele é tão fininho que posso ver por

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trás tranquilamente. Uma janela fechadafeita de cristal e ouro, com cortinas felpudasazuis bem a minha frente, vasos cobertos deflores por todos os lados onde olho, um es-pelho enorme, desses que ficam de pé, feitospara olhar o corpo todo, sua moldura tempedras coloridas que refletem a luz do sol evez ou outra atingem meu rosto. Uma cô-moda feita de madeira está recostada aparede, assim como alguns quadros comdesenhos de rosas pintadas a mão. Mais umaolhada para o local onde estou, e logo toda amemória da noite passada surge em minhamente.

Lembro-me da guerra, do sangue, do verdedoentio dos meus olhos, de encontrar David,ser guiada por meu pai, de lutar com meuavô, lembro-me de ficar tomada pelo poder,fazer esse lugar voltar ao que era antes, deJack sendo atingido pelas chamas e então desalvá-lo. Todas as imagens desse dia passama toda velocidade por minha cabeça,

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correndo sem parar, indo e voltando, memostrando tudo o que aconteceu, como umaconfusão de fatos sendo jogada em mim,tudo de uma vez.

Respiro fundo, tentando assimilar tudo o queaconteceu. David está bem, assim como meuavô e Jack. Depois de ver que ele estava bem,não me lembro de mais nada depois disso, anão ser acordar nesse quarto.

Sei que estou no castelo e que de algumaforma consegui eliminar o feitiço que tomavaconta de Ninho de Fogo. Um sorriso levesurge lentamente em meus lábios, coisasboas aconteceram.

Tudo que consigo pensar é em me levantardessa cama e ver como todos estão, mas ficocompletamente tonta quando tendo sentarno colchão.

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Uou, por essa eu não esperava, levo a mãoautomaticamente até a testa e fecho os olhos,esperando a tontura passar.

Escuto a porta se abrindo, é uma mulher,usando um vestido amarelo escuro rodado,ela sorri largamente quando vê meus olhosabertos em sua direção.

Ela se apressa para a cama, arregaça a cor-tina, ainda me olhando sorrindo.— Princesa, isso é maravilhoso, vocêacordou.Tento sorrir, enquanto lembro que dormipor dois dias aquela vez que usei meu poderpara atingir o dragão que me perseguia, naprimeira vez que vi David se transformar emum dragão. Quase não pergunto por quantotempo passei deitada nessa cama, tenhomedo da resposta, mas ainda assim, eu pre-ciso saber.— Por quanto tempo eu dormi?— Por quase dois meses, princesa.

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Fico a encarando de olhos arregalados, pen-sei que pudesse ter sido cinco ou talvez atémesmo oito dias, mas dois meses? Doismeses inteiros? Como isso foi acontecer?— O que importa é que você está acordadaagora.Ela está certa, se tem uma coisa que aprenditodo esse tempo aqui, é que, não se deveficar chorando ou se consumindo por coisasque já passaram e não se tem mais como vol-tar atrás, e alias, se tudo deu certo mesmo,meu avô está livre e esse lugar também,quem se importa?— Como estão todos?— Seus amigos estão bem, assim como seuavô, você salvou nosso mundo, princesa, eulhe agradeço muito — ela diz, fazendo umgesto de saudação dobrando os joelhos.— Era o que eu mais queria na vida – digosorrindo. — Onde estão todos?— perguntoainda a olhando.

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— David fica aqui a maior parte do tempo.Todos esses dias, ele apenas sai para comer,quando não come aqui, ou quando precisafazer algo muito importante, mas ele pratica-mente vive nesse quarto. Seu avô tambémpassou muito tempo aqui com você.Não sei qual dos dois eu quero ver primeiro,sinto tanto a falta deles. Não vejo à hora dever David , depois de tanto tempo preocu-pada, ao menos tenho certeza de que ele estábem, assim como meu avô, acho que nuncaquis tanto conhecer alguém, da forma quequero conhecê-lo.A imagem de olhos negros passa por minhamente, me lembrando mais uma vez do queaconteceu há dois meses, ele salvou minhavida, recebeu todo o fogo em meu lugar, deusua vida pela minha. Abro a boca para per-guntar como ele está, mas a fecho rapida-mente, sei que ele está bem, a lembrança es-tá bem vívida para mim agora, eu o salveitambém, como poderia não ter salvado? Só

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de imaginar não o ter mais por perto medeixa doente.Então mando o pensamento para longe e nãopergunto nada sobre ele.— Qual seu nome?— pergunto para mulherde vestido amarelo.— Oh, perdão princesa, meu nome é Isabela,ao seu dispor — ela novamente se abaixafazendo a saudação.— Não precisa dessas coisas comigo, Isabela.Eu posso me levantar?Ela me olha meio preocupada antes deresponder.— Eu não sei bem, você fez muito esforço,seria bom repousar.— Chega de repouso, estou nessa cama hádois meses — digo me sentando de uma vezno colchão, fico um pouco tonta, mas logopassa.— Espere, você tem que comer antes, vocêestá fraca ainda.

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— Certo, posso comer em outro lugar quenão seja o quarto? Quero ver como as coisasestão.Ela me olha um segundo antes de responder.— Tudo bem, princesa, como quiser. Oh, eudeveria chamar seu avô, ele mandou chamá-lo caso acordasse.— Eu posso ir até ele? Fazer uma surpresa?— Tudo bem, mas antes você deve comer.Aceno com a cabeça sorrindo.Me levanto, tendo certeza de que possomanter-me de pé, testando as pernas lenta-mente no chão antes de me levantar total-mente da cama.Estou usando uma camisola rosa comprida,muito confortável, mas não sei se devo sairde um quarto em um castelo vestida comroupas intimas.— Aqui — Isabel diz abrindo a gaveta da cô-moda, tirando um vestido verde comprido,saído diretamente do mundo dos sonhos de

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qualquer garota, porém não dos meussonhos.Torço os lábios uma vez, não fico animadapor usar um vestido como esse, nunca gosteide vestidos, eles te proíbem de se moviment-ar direito, e você fica sem liberdade com eles,mas não quero parecer mal-agradecida, e eusou uma princesa, acho que as pessoas es-peram que eu use um vestido como esse, aoinvés de jeans rasgados e camisetas, que sãona verdade meu tipo de roupa favorito.— Ele é lindo— digo finalmente.Ela sorri largamente.— Quer ajuda para vesti-lo?— É, eu acho que vou precisar— respondosorrindo.Me visto rapidamente com ajuda de Isabela,o vestido ao contrario do que imaginei, é levee solto, e faz ondas a minha volta conformeme movimento, até que não é tão ruimassim.

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Depois disso sou guiada por Isabela até asaída do quarto.Um corredor imenso aparece por de trás daporta, mas não é o mesmo em que estivequando fui guiada por meu pai, esse é ilu-minado, é como se emanasse vida, todo esselugar emana vida.— Venha comigo até a sala de jantar, vocêpode comer lá.Sei que estou com fome, muita, mas a vont-ade de olhar para todo esse lugar, explorarcada pedacinho disso é mil vezes maior que afome.— Você pode ir na minha frente Isabela, eupreciso dar uma olhada por aqui. Você voltapara me pegar quando meu café da manhãestiver pronto.Tudo bem?— Como quiser, princesa.— Me chame de Melane.Ela acena com a cabeça sorrindo.

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— O salão de festas fica logo ali em baixo, ésó descer por essas escadas, não saia de lá,não quero que se perca.— Eu não sairei — digo já indo em direção aosalão.Desço por uma escada feita de ouro, que caiem formato de redemoinho até chegar aochão, segurando num corrimão de algo pare-cido com mármore, tudo parece diferenteagora, nada como o lugar sombrio de antes.É como se estivesse olhando tudo pelaprimeira vez, os degraus parecem nuncaacabar, mas finalmente chego ao último.Estou num lugar enorme, como se fosse osalão principal do castelo. Meus olhos bril-ham com tanta informação passada de umavez só, a minha frente um rio desaba sobre aparede alta, por um dos buracos perfeita-mente desenhados para a água passar, águacristalina e pura, brilhando com o reflexo dosol que vem das janelas que tomam conta dequase todas as paredes a minha volta, ele

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corre pelo meio da sala, percorrendo todosos metros até a outra extremidade ondesome por entre as aberturas das paredes, de-ve ser a mesma água que contorna todo ocastelo, pelo lado de fora.Me aproximo, mergulhando a mão na águafresca, e sorrio com a sensação. Algunspequenos peixes passam nadando rapida-mente, bem ao lado de meus dedos. Isso élindo.O sol reflete por cima agora, trazendo umrastro de pequenas partículas de poeira,formando um caminho feito até o topo docastelo. Levando a cabeça e vejo o teto, feitode cristal, somente na parte que cobre ondeas águas caem, fazendo tudo aqui parecermágico. O céu está azul, de uma forma quenão consigo imaginar mais viva, quase nãohá nuvens e os pássaros voam sossegada-mente, enquanto aprecio a vista. Eu nunca vipássaros por aqui antes.

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Uma das janelas próxima a mim está aberta,o vento balançando a cortina azul felpuda.Chego mais perto, colocando as mãos noparapeito, enquanto me encanto com o quevejo.Árvores, grama verde, flores por todo per-curso além de onde meus olhos podem al-cançar. Sorrio largamente, enquanto a feli-cidade me rodeia por dentro. O ar tambémnão é mais quente, ou sufocante, é fresco, etrás consigo um cheiro de folhas verdes, daforma que sempre deveria ter sido.Fecho os olhos, apreciando, como se aindanão pudesse acreditar no que vejo. Per-maneço nessa posição, de olhos fechados,apenas aspirando oo delicioso aroma quevem de fora, poderia ficar aqui para sempre,apenas sentindo o vento balançar meus ca-belos, enquanto alguns raios de sol passampor mim aquecendo minha pele, eu ficariaaqui por mais muito tempo, se não fosse osom de sapatos ecoando, vindo em minha

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direção. Escuto sua voz antes mesmo de mevirar.— Mel?Me viro lentamente, o encarando, apenas al-guns metros longe de mim, parado exata-mente onde o sol bate descendo do teto,fazendo com que seus olhos turquesasfiquem quase insuportáveis de se olhar.Ele sorri, transformando suas feições nas deum garoto de cinto anos de idade, comosempre sorriu antes de tudo isso acontecer.Corro em sua direção, sorrindo também, eme atiro em seus braços, antes mesmo dedizer qualquer coisa. Ele me aperta, levant-ando meus pés completamente do chão, en-quanto afunda seu rosto em meu pescoço.Suspirando ele me coloca novamente nochão, segurando meu rosto com as duasmãos.Só agora percebo, ele ainda tem a cicatrizrosada na bochecha. Sinto o estomago aper-tar, imaginando como ela foi parar ali.

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Coloco levemente os dedos sobre ela, quasesem tocar, com medo que possa machucá-lo,ela é alta, porém lisa, novamente penso oquanto essa marca se torna insignificanteperante sua beleza, ele ainda continua tãoperfeito quanto antes.— Não é nada, esqueça isso — ele diz retir-ando minha mão, entrelaçando seus dedosaos meus.Sei que estou com uma expressão preocu-pada, mas ele a ignora.— Fiquei com tanto medo de que não acor-dasse mais — diz com os olhos fixados nosmeus.— Estava com medo de nunca mais ver vo-cê— digo, me lembrando dos dias angusti-antes, sem saber onde ele estava, se estavabem, ou se ao menos estava vivo.— Estou aqui agora e não vou a lugar algum.— Você promete?

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— Prometo — diz, deslizando seus dedos portrás de meu pescoço, me puxando para umbeijo.Relutantemente esquivo-me de alguns centí-metros para trás, quase seu toque e meafasto instintivamente, mas a inquietude, onervosismo e até a dor que forma-se em seusolhos nesse momento vencem qualquer tipode objeção que eu pudesse ter até então.Posso ser forte para muitas coisas, possomatar homens desconhecidos, lutar embatalhas e até fazer magia, mas não possoganhar quando se trata dos grandes olhosazuis.Então sem pensar duas vezes me aproximo, obeijando exatamente como antes, doce,carinhoso, cuidadoso e apaixonante, assimcomo ele. Fecho meus braços em volta de seupescoço, o beijando com mais vontade, dese-jando que nada do que lhe aconteceu tivesseacontecido, como se eu pudesse tirar todador que sentiu apenas com esse beijo. Não

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posso com a ideia de que tenha sofrido,muito menos de saber que a culpada fui eu,tudo o que quero é que ele seja feliz, não im-porta como.Não sei quanto tempo ficamos assim, nosbeijando, pode ter se passado horas ou se-gundos, não tenho como saber ao certo etambém não me importo com isso. Ele estávivo, está aqui comigo e prometeu nunca medeixar. Um inquietante e perturbadopensamento com o rosto de Jack estampadobem na frente surge em minha mente, masme obrigo rapidamente a mandá-lo embora,de volta de onde veio, pois não posso lidarcom isso, não com os braços de David fecha-dos em minha cintura e com seus olhosgrudados aos meus. Não sei se posso escond-er um pensamento assim, tendo seus olhosme encarando tão profundamente comoagora.Ele encosta sua testa na minha e suspirapesadamente antes de dizer.

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— Você não faz ideia do medo que senti, nãosabendo como você estava— ele diz aindacom sua testa presa na minha.— Também senti medo por você, nem aomenos sabia se estava vivo — digo passandoa mão sobre seu rosto.— Eu nunca poderia abandonar você, nunca.Nesse instante Isabela desce apressada pelaescada.— Oh, vejo que já se reencontraram, agoravocê precisa comer— ela diz apontando odedo indicador em minha direção.— Obedeça a moça— Davi diz segurandominha mão, enquanto me guia pela escada.Andamos por mais uns poucos corredoresaté chegar numa sala grande com uma mesade café da manhã enorme. Me sento em umadas pontas e David senta-se ao meu lado.Nem sei por onde devo começar a comer, eunem ao menos sei o nome da maioria dospratos que estão na minha frente.

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— Experimente esse, é um dos meus favori-tos — David diz, vendo a expressão confusaem meus olhos.Um prato com algo parecido com frutas am-arelas e rosadas cortadas em formas redon-das, boiando sobre algum tipo de molhobranco, coloco um pedaço na boca mastig-ando lentamente para sentir o sabor. Égostoso, não algo que comeria todos os dias,nem nada do tipo, mas é gostoso, nem tãodoce, nem tão azedo, uma mistura dos dois.— O que é isso?— pergunto colocando maisum pedaço entre os lábios.— Frutas silvestres, gostou?Faço que sim com a cabeça.Depois de comer mais do que posso aguent-ar, me levanto e vou sendo guiada por Davidaté o local onde meu avô está.Andamos de mãos dadas pelo piso feito demármore até chegar numa linda porta deouro com desenhos de flores e dragões

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estampados. David me olha ternamente umavez antes de empurrá-la.É como um sonho, meus olhos se arregalam,enquanto observo tudo de boca aberta, éuma biblioteca, a mais incrível que já vi, comdois andares repletos de livros de todos ostamanhos, todas as cores, poltronas e mesasespalhadas pelo chão, juntamente com livrosamontoados por todos os cantos, milhares deprateleiras feitas de madeira escura repletasde livros, algumas estão até meio tombadas,suportando mais livros do que podemaguentar. Sorrio enquanto observo tudo tãoalegre, calmo e mágico, não poderia desejarum lugar mais encantador quanto esse, étudo o que uma apaixonada por históriascomo eu poderia desejar. Imagino como teriasido perfeito morar aqui, tento pensar emquantos livros teria lido, quantas horas teriapassado aqui, teria sido fantástico!— Isso é maravilhoso!— Sabia que você iria gostar.

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— David, isso aqui é um sonho, eu nemposso acreditar — digo pegando um livro decima de uma das mesas e o folheio.Nesse instante escuto passos, e de trás deuma das enormes prateleiras aparece meuavô, sorrindo para mim.Ele abre os braços sem dizer nada, então eucorro e me aconchego neles, sorrindo. Umsuspiro sai de seus lábios, enquanto meaperta contra seu peito forte.— Não tem ideia do quanto estou orgulhosode você, obrigado!Eu me afasto para poder olhá-lo melhor.— Nada disso teria sido possível sem você—ele coloca mechas de meu cabelo atrás daorelha. — Eu queria tanto conhecê-la, você éigualzinha ao seu pai — seus olhos ficam umpouco distantes nesse momento.— Também estou feliz em vê-lo — digo, e oaperto pela cintura mais uma vez.Enfim, posso respirar calmamente, meu avônão é o homem cruel que estava imaginando,

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ele é o homem bom e carinhoso, da formaque deveria ser.— Acabou agora! — digo sorrindo para ele.Ele me olha estranhamente, apertando os ol-hos verdes.— Você sabe que eu nunca quis nada disso,não é? Nunca fui eu, todas essas coisas, euestava sendo controlado, se lembra disso?Aceno com a cabeça.— Me lembro de tudo que aconteceu.— O homem que fez isso, eu sei quem é, eupodia senti-lo, podia ver o que estava aconte-cendo, só não podia fazer nada para pará-lo.Não sei como pude me esquecer desse de-talhe, a pessoa que controlava meu avô aindaestá solta por ai.— Isso quer dizer que ainda não acabou?Ele suspira uma vez antes de balançar negat-ivamente a cabeça.— Na verdade, creio que esteja apenascomeçando, minha filha.— Quem é ele?

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— Não precisamos lidar com isso imediata-mente, você pode descansar, ver seus ami-gos, já deu uma olhada e viu como esse lugarficou?Não quero descansar, se esse lugar aindacorre perigos, não posso deixar que nadamais aconteça por aqui.— Não, me diga quem ele é?— É uma longa história — David é quem dizao meu lado.— Eu tenho tempo.Meu avô acena com a cabeça me levandopara uma das poltronas, onde se senta aomeu lado.— Você já deve ter ouvido a história sobre osmestiços, sobre como somos proibidos denos relacionar com bruxas, não é?Faço que sim com a cabeça, sem tirar meusolhos de seu rosto.— Essa lei existe por uma razão, ninguémproibiu isso do nada. Há muitos anos atrásuma de nossas mulheres se apaixonou por

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um bruxo, eles tiveram um filho, esse garotomestiço cresceu por aqui, viveu conosco, seunome era Pedrus, sabíamos que ele era po-deroso, ele não se transformava em umdragão como nós, mas tinha muito poder.Não sei como isso foi acontecer, mas ele en-louqueceu, acho que era muito poder paraum garoto suportar, ele quase nos destruiu,foram vários dias de dor, muitos morreram,bruxos vieram ajudar na guerra, eles temiampor sua raça também. Então unidos, bruxos edragões lutaram e enfim conseguimosderrotá-lo. Depois disso a lei de proibição derelacionamentos entre humanos e bruxossurgiu. Ninguém queria correr o risco dissoacontecer novamente.— Poderia ser diferente com outros bebês —digo imaginando, não porque as coisas de-ram errado com esse garoto que elas sempreiriam dar, afinal sou uma mestiça e nãotenho intenção de destruir Ninho de Fogo emuito menos bruxas.

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— Era um risco que não poderíamos correr,poder demais na mão de uma única pessoa, éperigoso demais.David parece perceber meu olhar confuso,pois diz no mesmo instante.— Você não é assim, Mel, pare de pensarnessas coisas, você é diferente!Meu avô só percebe agora meu conflito.— Claro que é, você nos salvou.— Mas se esse garoto foi destruído, quem es-tá fazendo isso?Os olhinhos verdes de Ariel se apertam.— Nós achávamos que ele estava morto, masele não está.— Você o viu?— Eu tinha pequenas visões enquanto estavatomado por ele, via seu rosto, às vezes escut-ava um pensamento ou outro, mas não seionde encontrá-lo. Sei que ele controla osgoblins, eles são criaturinhas ruins sim, masobedecem mais por medo do que qualqueroutra coisa. Quando ele descobriu que outra

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mestiça havia nascido, você seria a única quepoderia matá-lo, ele ficou desesperado, eupodia sentir isso, ele precisava te acharprimeiro, mas então algo mudou, ele achaque se juntando a você terá muito maispoder.— Isso nunca vai acontecer — digorapidamente.— As coisas que me fez fazer, mandei matarminha própria esposa e filho...Eu o abraço mais uma vez, não há nada quese possa fazer sobre isso.— Eu sinto muito por tudo.— Eu também, minha filha, mas eu tenho vo-cê agora! — Nós precisamos achá-lo.— Estamos fazendo buscas, minhas tropasestão cuidando de encontrá-lo, mas nãoachamos nada até agora, estamos vascul-hando todo o reino.— Você disse que ele controla os goblins? Fazsentido, eles já me atacaram.— Quando?— David pergunta me encarando.

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— Você já havia sido capturado, eu estavacom Jack, ele me salvou.David desvia o olhar por uns segundos, antesde voltar a me encarar.Continuo o olhando, sem poder acreditarque as coisas ainda não estão nem perto dofim.— Como vocês podem estar tão tranquilosassim? Com ele solto por aí?— perguntoincrédula.— Melane, porque você acha que ele não semanifestou, e nem nos atacou durante essesdois meses?— meu avô pergunta com aquelacara de homem sábio que ele tem.Levanto os ombros em resposta.— Ele está com medo, ele está morrendo demedo. Ele não imaginava que alguém da suaidade e com tão pouco tempo usando seupoder poderia fazer algo tão grande, comodesfazer a maldição dele de uma só vez. Eusenti o medo dele, ele estava desesperado, na

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verdade, nunca imaginou algo assimacontecendo.— Imagine alguém que é considerado a pess-oa de maior poder no mundo, do nadadescobrir que uma garotinha é capaz de fazeralgo tão grande com tão pouco tempo de ex-periência — David diz com um tipo de sor-riso de superioridade no rosto.Penso por dois segundos antes de falar:— para mim isso é um motivo ainda maiorpara temer, pois imagine o que uma pessoaassim pode fazer, uma pessoa poderosa,desesperada, e assustada, você não sabe oque o pânico faz com as pessoas.— Estamos bem agora, vai dar tudo certo,você vai ver— David diz retirando o sorrisodo rosto e colocando uma expressão preocu-pada no lugar.— Tudo ficará bem, cuidaremos para quefique— Vovó sorri para mim de uma formaacolhedora.

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— Você não se lembra de mais nada sobreesse tal de Pedrus? Como ele sobreviveu?— Não, eu não tinha acesso a mente dele,apenas algumas lacunas em momentos es-pecíficos, na maior parte do tempo eu apenasfica preso, como se estivesse imóvel dentrode meu próprio corpo, enquanto ele contro-lava cada ação.— Como isso aconteceu? Como ele conseguiute controlar?Meu avô suspira uma vez antes de falar:— Eu não tinha ideia, fui me vestir como emtodas as manhãs, minhas roupas ficam sep-aradas ao lado da cama, junto delas havia umcolar, achei que era parte da vestimenta dodia, nem me importei com isso, é normalusar joias, mas então no momento em quecoloquei o colar no pescoço, exatamente nomomento em que encostei o cristal no peito,algo aconteceu, foi como se todo meu corpotivesse sido congelado, como estar petrific-ado. Meus membros se moviam

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normalmente, mas não era eu quem os con-trolava, eu ficava numa parte parada docorpo, apenas vendo tudo acontecer, nuncanem pensei que isso pudesse existir, atéporque, para mim, Pedrus estava morto hámuito tempo.— E isso aconteceu depois que souberam queminha mãe estava grávida?— pergunto o ol-hando nos olhos.— Sim, depois disso vieram todas as mortes,a destruição, o feitiço que acabou com esselugar, e as buscas intermináveis para teencontrar.É estúpido dizer, mas não consigo nãopensar que tenho minha cota de culpa nahistória, afinal se não fosse por mim, nadadisso teria acontecido.— Pare de pensar besteiras, Melane— Daviddiz passando a mão levemente em minhascostas.— Eu não estou pensando em nada.— Eu sei que está, então pare!

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Eu apenas o olho pelo canto do olho, semdizer mais nada.— Nós iremos encontrá-lo, meus homens es-tão vasculhando todo o reino, ele não pode seesconder para sempre.Não quero falar sobre isso, acordei há poucosminutos e já fui bombardeada por todas es-sas noticias, talvez eles estejam certos, talvezPedrus esteja mesmo com medo, porenquanto.— E Komodo? Onde está?— pergunto, melembrando que não o tenho nas mãos.David sorri.— No mesmo lugar onde você o deixou. Nin-guém iria conseguir tirá-lo de lá, mas foi di-vertido ver o povo tentar — ele diz rindoainda mais.Eu rio também, assim como meu avô.— Vá buscá-lo, vá e veja como está seumundo, tudo isso aqui é seu — Ariel diz es-tendendo as mãos para fora do cômodo.— Vamos?— David pergunta me encarando.

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— Mal posso esperar para ver esse lugar!Alguns guardas reais me cumprimentam,quando passo por eles pela porta principaldo castelo.O ar fresco é o primeiro a me dar as boas-vindas, logo depois dele, vêm os raios de solquentes e acolhedores, a brisa levando meuscabelos para trás e trazendo o aroma dasflores, o céu azul acima de mim, tudo daforma que deveria ser, tudo perfeito.Olho para David e sorrio, enquanto camin-hamos para fora do castelo.— Eu nem posso acreditar nisso, é tudo tãodiferente.— É como sempre foi, você apenas conheciaa forma errada daqui, essa é a verdadeira.Andamos lentamente pela grama verde queafunda sob meus pés.— E todo mundo? Amélia, Damião?— Eles estão bem, ansiosos esperando vocêacordar.— E Rachel? Tem visto ela?

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— Sim, a mãe dela ficou melhor, e a irmãz-inha dela é uma garotinha linda!Me alegro com a noticia, é bom saber que elaestá bem.— E Jack?— finalmente pergunto.Ele continua caminhando normalmente, en-quanto responde tranquilamente.— Ele está ótimo, o mesmo de sempre, masagora está crescido — ele diz gargalhando.— Qual a graça?— pergunto sem entender.— Nada. É que ele conseguiu ficar ainda maisfeio do que quando criança.Dou risada o acompanhado, embora nãoconcorde com isso, Jack foi uma criançalinda e isso apenas melhorou quandocresceu.Andamos por alguns minutos, até chegarmosao local onde a guerra aconteceu dois mesesatrás. Não há nenhum vestígio do que houve,o lugar está limpo, claro e puro. Posso verKomodo fincado na grama, exatamente ondeeu o deixei.

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— Você devia ter visto, fizeram concursospara quem conseguisse o tirar daí, as cri-anças foram as que mais tentaram.Sorrio com a ideia e aperto o passo até aespada.Posso senti-la agora, sentir sua energia grit-ando por mim.— Também senti saudade— digo, enquanto adesenterro facilmente do chão.Agora sua energia corre por mim, pegandocada célula do meu ser, nos interligandonovamente, mas algo está diferente.— O que foi?— David pergunta percebendominha expressão.— Algo mudou. Agora somente eu estouaqui, Komodo e eu. Antes era como se meupai sempre estivesse aqui também, eu o sen-tia, era como se suas mãos ficassem porbaixo das minhas, mas agora não, ele não es-tá mais aqui — continuo olhando a espada.Aquela última vez em que o vi, quando elearrancou o colar do pescoço de Ariel, foi

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como se ele tivesse usado todas as últimasforçam que lhe restavam, sinto que nuncamais irei vê-lo.— Talvez ele só estivesse aqui por causa deseu caso inacabado, e agora está livre—David diz me olhando.— Aquele dia no castelo, quando meu avô foilibertado, não fui eu quem o salvou, foi meupai, ele apareceu por algum tipo de ligaçãocom Komodo, ele arrancou o colar dopescoço de Ariel. Eu não tive nada com isso,se não fosse por ele, as coisas ainda estariamda forma que estavam, eu não fiz nada!— Eu discordo, para começar, seu pai nãoteria feito nada disso se você não tivesselevado Komodo até lá, e depois ter tirado ofeitiço desse lugar, pare de tentar sedesmerecer, Melane.— E agora ele se foi, estou tentando senti-lo,mas é como se nunca estivesse estado aquiantes.— Pense que ele está livre, finalmente livre!

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Aceno com a cabeça, mesmo sentindo faltadele, era bom sentir suas mãos sobe as min-has, fazia com que eu me sentisse maisamada.— É bom ter Komodo de volta! — digo sor-rindo, enquanto o giro entre os dedos.David sorri também.— Pronta para ver mais coisas por ai?— É claro.Nesse instante escutamos gritos.— David! Espere!É um dos guardas reais, ele corre em nossadireção.— O capitão quer lhe ver, rever os lugares debusca.— Oh, diga que vou mais tarde, estou comMelane agora, ela acordou agora pouco.— Oh! Princesa— o homem faz umareverencia.Eu sorrio para ele.

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— Pode ir, David, eu posso ver as coisas pormim mesma, teremos muito tempo para nosfalarmos depois.— Você tem certeza?— ele pergunta pare-cendo confuso.— Tá tudo bem!— Ok, não demore então, eu te encontro as-sim que terminar isso — ele se aproxima medando um beijo na testa. — Te vejo depois —diz enquanto se afasta com o guarda.Começo a caminhar, indo em direção aolago, onde conheci Summer, mal posso es-perar para vê-la.Ando rapidamente, levantando a bainha demeu vestido verde, desejando estar usandocalças. O caminho é o mesmo pela floresta,mas agora ao invés de árvores secas emortas, estas estão emitindo vida por todosos lados, os pássaros cantando por todolugar, e as flores derramadas aos montespelo chão verde. Em pouco tempo chego àbeira do lago, ao invés das águas cinzentas e

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escuras, agora tudo é claro e cristalino, águaespelhada, brisa fresca, é um dos lugaresmais lindos que já na vida!Me aproximo da água, tiro meus sapatos, le-vanto mais meu vestido e sento na pedra,onde sempre sentei para falar com Summer,coloco a mão na água e balanço, sentido eladeslizar por entre meus dedos, sorrio com asensação.Queria que ela estivesse aqui, perguntarcomo estão as coisas lá em baixo.Coloco os dois pés na água, enquanto sinto ocalor do sol batendo diretamente em mim.— Seus cabelos parecem ser feitos de fogoassim.Escuto sua voz ao longe. Abro os olhos e vejoa linda sereia sorrindo parada, alguns metrosna minha frente.— Summer!A sereia mergulha e em meio segundo estáao meu lado.— Quando acordou?

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— Agora pouco, como você está? Como vãoas coisas ai em baixo?— Estamos todos bem, graças a você.— Isso é tão incrível, às vezes penso que es-tou sonhando, tenho medo de acordar —digo observando sua cauda verde folha per-feitamente sobe a água.— Isso é real, você tornou as coisas reais.Suspiro, sentindo o cheiro doce das floresmais uma vez.— Depois quero que conheça uma pessoa,minha irmã, ela estava fora por causa dasituação de Ninho de Fogo, mas agora que ascoisas estão bem de novo, ela voltou.— Eu iria adorar conhecê-la.— Eu nunca a vi de vestido antes, ele é lindo— ela diz passando as mãos pegajosas pelotecido verde do vestido.— Sim ele é, mas não é nada prático.Ela dá risada.— Porque não tira e vem nadar comigo?É tentador, não tem como dizer não.

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Me levanto na pedra e tiro o vestido pelacabeça, ficando apenas com a roupa debaixo, uma calça e blusa brancas coladas aocorpo, e entro na água de uma só vez, pu-lando da pedra e espirrando água emSummer.Nós rimos juntas, enquanto ela joga água emmeu rosto com sua cauda.— Sabe, quando eu era pequena eu queria seruma sereia.— É? Nunca me imaginei sendo nada quenão fosse uma sereia.— Eu gosto da água.— Eu sempre quis ser algo mais do que umasimples humana, sonhava em ser uma sereia,ou uma fada, queria poder falar com os ani-mais, ver gente morta, qualquer coisa,qualquer coisa que me impedisse de ser nor-mal. Minha avó dizia que eu lia históriasdemais.

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— Parece que seu sonho se realizou então,você é bem mais do que uma simples hu-mana, ou uma sereia.Nunca sonhei em salvar um mundodestruído por um mestiço das mesmas raçasque as minhas, mas ainda sim, ela tem razão,sou algum tipo de personagem de algum liv-ro que possa ter lido alguma vez, só que real,minhas escolhas não são tão fáceis como vir-ar a página de um livro, elas decidem comoas coisas serão, nada é simples quando tudodepende de você. Nos livros tudo é maissimples.— E agora você pode vir sempre nadarcomigo, se antes eu sempre estava aqui porcausa do sol, agora que as coisas estão bem,eu praticamente não saio desse lugar.De repente algumas gotas de água caem emmeu nariz, e dessa vez não é Summer quemas está jogando, elas vêm do alto, do céu.

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As gotas aumentam e a chuva cai sobre nós,chuva de verão, aquela gostosa e refrescante,que todo mundo adora.— Eu nunca vi chuva por aqui.— Nunca choveu desde que o feitiço nos at-ingiu, mas agora, nesses últimos dois meses,elas são frequentes.Levanto a cabeça para o céu sorrindo.Summer desvia o olhar e se vira, ela pareceestar procurando por algo, como se estivessetentando ver alguma coisa.— O que foi?— pergunto, já ficandopreocupada.— Não é nada, alguém vem vindo ai. Voltemais tarde, gosto muito de passar o tempocom você, e ainda preciso lhe apresentarminha irmã.— Tudo bem eu volto, mas por que tem queir?— Nada demais, só não me acho muito maisdesejada agora, até outra hora, princesa.

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Dito isso, ela mergulha sumindo para dentrodo lago, me deixando sozinha na chuva.Balanço a cabeça sorrindo, sereias, quem asentende?Ando até a margem do lago, torcendo o ca-belo no processo e jogando o vestido mol-hando no chão, enquanto tento ver quem seaproxima.Acho que Summer se enganou, não vejo nin-guém. Aperto os olhos na direção que Sum-mer olhava, mas não posso ver nada com achuva e as árvores, então continuo tentando.Agora, há poucos metros de distância possover claramente quem se aproxima, ele aindanão me vê, está com a cabeça baixa, os fiosloiros de seus cabelos caindo molhados, lhetapando o rosto, ele caminha lentamente,como se não se importasse com o tempo, oucom os pingos de chuva caindo sobre suascostas.Fico paralisada, apenas o observando, sintoque algo me mantém presa ao chão, não

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consigo me mexer, nem piscar, como se cadapedaço dessa cena fosse único e perde-losseria como um crime imperdoável. A cadapasso que ele dá, mais alto meu coração pulaem meu peito, cada passo, cada batida seacelerando, por que isso acontece comigo?Por que me sinto assim, apenas por o ver seaproximando? Por que não consigo fazeresse sentimento ir embora? E a maior per-gunta de todas, por que parece que nãoquero que esse sentimento se vá?É nesse momento, enquanto brigo comigomesma, que ele levanta seu rosto e me vêparada, o olhando de volta. Ele se assusta emprimeiro momento, mas depois seus olhos sesuavizam e posso ver as expressões infantisvoltarem para seu rosto, e então ele sorri.— Melane?— ele grita de onde está, algunsmetros longe de mim.Eu aceno para ele sorrindo também.Uma coisa engraçada sobre Jack é que elepode ter mil expressões, mil tipos de faces

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diferentes, alguma sempre me pega de sur-presa, como a de agora. Não sei explicarmuito bem, mas ele fica diferente, cada vezque o vejo é como se uma nova forma de ol-har ou de sorrir estivesse surgido em seurosto, sinto que ele fica diferente, como sefosse outra pessoa, mas sem deixar de ser elemesmo, a forma de sorrir às vezes muda,mas o sorriso é o mesmo, assim como osmesmos olhos, mudando apenas a forma deolhar, eu sei, isso parece confuso, mas Jack éconfuso também, tudo nele é. Não consigopensar em uma forma fácil de explicar, naverdade nada sobre ele é fácil de se explicar,e isso é frustrante. Jack tem mil formas deolhar, inúmeros modos de agir, é extrema-mente imprevisível, eu só queria por umaúnica vez poder entender todas essas milfaces que ele tem, mas a verdade é que nãoconsigo entender nem ao menos uma.

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Jack acelera o passo, tirando a distância quenos separa, ele não está correndo, mas andarápido, com passos largos.A chuva aumenta, caindo com mais intensid-ade sobre nós, o vento também sopra, não osuficiente para nos provocar frio, é maiscomo uma brisa refrescante de verão.— Quando acordou? — ele diz sorrindo, as-sim que se aproxima, posso ouvir o tom rou-co de sua voz deslizar para dentro de meusouvidos, como música boa e tranquila,daquelas que te lembram da infância ou deum passado distante e inalcançável.— Hoje de manhã— digo sem jeito, mas semtirar os olhos dele, não por escolha, mas pelafalta dela.Ele desliza o olhar por mim, faço o mesmoacompanhando seus olhos escuros, a roupabranca está colada ao meu corpo, não trans-parente, mas ainda sim, revelando coisas quenão revelaria normalmente. Cubro o peitocom os braços, os fechando ao meu redor, ele

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com aparente constrangimento desvia o ol-har de minhas roupas e volta a encarar meusolhos.Eu não sei o que dizer, na verdade, nem aomenos sei o que pensar, e tenho até medo deme permitir fazer isso agora, então esperoque ele diga algo.— Você está bem? Quero dizer, tá tudobem?— ele pergunta coçando a cabeça,desconfortável, por que estamos assim,agindo dessa forma um com o outro?— Sim, passei dois meses dormindo, mas es-tou bem.Algumas gotas de água ficam presas em seuscílios loiros, enquanto algumas escorrem desua testa até seu pescoço lisinho, para depoisdescer pela camisa que agora está agarradaao seu peito e ombros largos.— Nossa! Já se passou dois meses? Eu nemtinha percebido.E então toda a magia é quebrada com essaúnica frase.

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Ele nem ao menos notou os dias se pas-sando, nem sentiu minha falta, isso não lhecausou nenhuma dor, nem saudade, ou nadado tipo.Algo aperta meu peito enquanto as palavrassaem de seus lábios, se antes meu coraçãoestava acelerado, agora ele se derrete, escor-rendo de meu peito, sinto como se tivesselevado um soco no lugar do coração, e o pioré que isso nem ao menos faz sentido, eu nãodeveria sentir nada disso. Está na cara queJack não se importa, que ele nunca seimportou.Não quero demonstrar nenhuma reação, en-tão tenho que ir embora daqui, logo.— Já está ficando tarde, estão me esperandono castelo, eu tenho que voltar.Ele apenas acena com a cabeça.— Tchau — digo pegando minhas roupasmolhadas, vestindo os sapatos e pegando Ko-modo do chão, quase engolindo as palavras,

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segurando o choro que por pouco nãoescapa.Ele levanta a mão acenando, mas não diznada, enquanto caminho para longe dele.

Jack

Dois meses, já se passaram sessenta e um di-as, e ela ainda não acordou, fico me pergunt-ando se um dia irá acordar, o pior é saberque ela está assim por minha culpa, que elafez isso para me salvar.

Ando lentamente pela chuva, gosto do modocomo cai sobre minhas costas, e da lama quese forma no chão, enquanto caminho por ela,ajuda a me distrair, esses dias não foramfáceis, nada me distrai o suficiente para tirá-la da cabeça.

Continuo caminhando para o lago, eu nãogosto de lá, muitas memórias ruins sobre a

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água, mas também foi lá que passei instantescom ela, estar lá me ajuda a lembrar, comose algo nos conectasse quando estou ali.

Levanto o rosto vagarosamente enquantovou me aproximando de lá, e então como semeu pedido tivesse sido realizado, eu a vejo,parada na margem do lago, me olhando devolta.

Um sorriso cresce em meus lábios, enquantochamo seu nome.— Melane?Ela sorri para mim acenando.— Jack!Minha maior vontade é correr, correr paraela, mas quão idiota eu pareceria se fizesseisso? Ela não se importa, não me vê da formaque eu a vejo, ela deixou isso bem claro hádois meses, quando foi embora correndodaquela colina, depois que eu a beijei.Sinto as batidas do coração aumentando, en-quanto quebro a distância que nos separa.

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— Quando acordou?— Hoje de manhã.Só agora me dou conta de seu estado, asroupas brancas e curtas coladas ao seucorpo, enquanto gotas de chuva correm porsuas pernas claras. Nesse instante ela cobre opeito com os braços, mostrando que perce-beu meus olhares indiscretos, então meobrigo a perguntar algo para ao menosdisfarçar.— Você está bem? Quero dizer, tá tudobem?— pergunto, me obrigando a coçar acabeça para dar algo para minhas mãosfazerem e tentar controlar a vontade de tocaros fios molhados de seu cabelo ruivo queescorrem de seu rosto até seus ombros.— Sim, passei dois meses dormindo, mas es-tou bem.Eu quero dizer a verdade, mas não posso, elafoi embora, tento lembrar-me disso.— Nossa! Já se passou dois meses? Eu nemtinha percebido.

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Eu minto, de que adianta dizer a verdade?para que dizer que a vi durante todo essetempo? Quase todos os dias desses doismeses, só não a vi nos dias em que o irritantedo David não saiu de seu quarto, fiquei horasesperando ele sair um dia, mas o infeliz con-tinuou lá durante todo o tempo. Entreiescondido no castelo pela janela quase todosos dias para vê-la. Dois miseráveis meses,sessenta e um dias de puro desolamento edesespero, o ódio, o medo de que não acor-dasse me consumiu por todo esse tempo, acada segundo, cada momento, eu não me es-queci dela nem por um minuto, meu coraçãosó voltou a bater normalmente agora pouco,quando a vi parada aqui.— Já está ficando tarde, estão me esperandono castelo, eu tenho que voltar — ela diz já sevirando.O que posso dizer? Apenas aceno com acabeça.

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— Tchau — ela diz fracamente, como se algoa estivesse incomodando.O que foi isso? Decepção? Ela parece decep-cionada, e se eu estiver errado? E se ela real-mente se importar?Vamos idiota, diga a ela que a viu quase to-dos os dias em que esteve adormecida, digalogo. Conte que morreu todos os dias dur-ante o tempo em que ela não esteve aqui. Euquero dizer, mas algo me trava no lugar, en-tão tudo que faço acenar, enquanto ela cam-inha para longe de mim.

Melane

Eu detesto isso, a forma como ele podemudar meu humor tão rápido assim. Elenem percebeu que se passaram dois meses, éclaro que ele não percebeu, porque perceber-ia? É do Jack que estamos falando, então porque isso me magoa tanto? O pior é que achoque sei a resposta, só não quero admitir, pois

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admitir seria tão errado quanto, tão erradoquanto gostar de comer batata frita commolho de morango. Não seria apenas errado,mas também injusto, comigo, com David, eaté mesmo com ele.

Tento vestir o vestido enquanto ando, équase impossível por causa do tecido mol-hando, mas finalmente consigo.Continuo caminhando, tentando não pensarnisso, é algo que aprendi a fazer aqui, man-dar os pensamentos para longe por umtempo, é fundamental para mim.Começo a fazer o caminho para aldeia, pre-ciso ver como estão todos.Depois de uns bons minutos a chuva final-mente para, e posso ver o vilarejo.Nem ao menos parecem as mesmas casas epessoas de antes, tudo foi reconstruído, cas-as feitas de pedra e tijolos, não há criançasdescalças pedindo esmolas nas ruas, algumasárvores ficam envolta das casas, e flores pre-sas em vasos nas portas, vejo algumas

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barracas onde vendem-se alguns tipos decomidas diferentes, não há mais cheiro desangue ou de brasas, só o cheiro de vida per-corre o ar.— É a princesa?— um homem diz apontandoo dedo para mim.Várias pessoas olham em minha direçãonesse momento.— Sim é ela, princesa Melane.Uma multidão de crianças corre para mim,abraçando minhas pernas, quase me der-rubando no processo.Eu as aperto em mim da forma que posso,enquanto começo a gargalhar.Enquanto isso mais pessoas se aglomeram aminha volta, homens, mulheres, senhores, esenhoras, todos sorrindo para mim.Eles gritam meu nome, sorriem para mim, eentão a aldeia fica cheia, com tantas pessoasamontoadas ao meu redor que fica difícil vero resto do mundo, eles começam a aplaudir,todos aplaudem em minha direção.

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Algumas lágrimas escorrem por meu rosto,lágrimas de felicidade, todo mundo está feliz,agora possuem motivos para lutar, acreditamna vida novamente.— Melane?Escuto a voz conhecida de Amélia gritandono meio do mar de pessoas.Corro em sua direção, me arrastando pelaspessoas e a abraço fortemente.— Oh! Querida, que bom que está bem.— Que bom que você também está bem,Amélia. E os outros? Damião, Angélica?— Estão bem ali — ela aponta o dedo a nossafrenteAceno para eles que, alegremente acenam devolta para mim.Fico um bom tempo na aldeia, conversandocom todos, abraçando pessoas, recebendoagradecimentos, tudo tão bom, tão real, étudo o que sempre desejei para essas pessoase para esse lugar.

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Depois volto para casa quando está quase es-curecendo, David vem até a aldeia me pro-curar e voltamos juntos.— Então, como passou por tudo isso soz-inha?— David pergunta quando estamospróximos ao castelo.— Eu não estava sozinha.— Eu não estava com você— ele cutuca seuombro no meu de leve, me fazendo rir.— Sim, você não estava aqui, mas tive muitaajuda, em tudo.Ele acena com a cabeça.— Conheci uma sereia também, ela se chamaSummer.— Sereias, goblins, o que mais eu perdi?Nesse instante, a imagem dos lábios de Jackpassa por minha mente, posso ver clara-mente seus olhos arregalados, me lembro denossa respiração ofegante, da pressão desuas mãos em minhas costas, do gosto de suaboca e o cheiro de seu hálito, o pensamento é

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tão forte que é quase como se tivesseacabado de passar por isso novamente.Penso em contar a David sobre o beijo, nãogosto de mentir, mas algo me impede dedizer as palavras.É como se um nó tivesse se formando emminha garganta, então não digo nada.Sim, me sinto mal por isso, mas pensandobem, para que contar? para que magoá-lo?Não significou nada e não irá se repetir,nunca mais. Então enterro esse pensamentode volta para o lugar de onde veio e o tranconum lugar escuro e afastado de minhamente. Digo a mim mesma que isso não temimportância, foi apenas uma coisa queaconteceu, mas que nunca deveria teracontecido, foi um grande erro, só isso. Jacknão é o tipo de cara que quero para mim, eununca o entendo, nunca sei no que estápensando, e ele nem ao menos se importa.Ao contrario de David, eu sempre sei o que

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ele vai dizer, posso prever todos seus passos,sempre.— Nada demais, coisas sem importância— étudo o que lhe respondo, dessa forma não es-tou mentindo, omitir não é a mesma coisa,certo? Eu sei que parece terrível e erradoomitir algo assim, mas só não quero magoá-lo sem motivos.Caminhamos de mãos dadas até o castelo,onde comemos e depois me deito na cama.Alguns poucos segundos depois de meaconchegar nas cobertas a porta se abrelentamente.— Vovô?— Será que você está velha demais para essascoisas?— ele pergunta levantando a mãodireita, onde segura um livro de histórias.— Não tão velha assim — respondo sorrindo.Ele se aproxima e senta-se ao meu lado nacama.— Eu deveria ter feito isso quando você eracriança.

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— Eu nunca serei velha demais para escutarhistórias, não tem nada no mundo que eugoste mais do que isso.— Seu pai também adorava ler, você é tãoparecida com ele — ele passa a mão leve-mente por meu rosto e coloca uma mecha decabelo atrás de minha orelha.Tiro sua mão de meu rosto e a aperto entremeus dedos. Ariel me observa por mais unssegundos.— Pronta? — diz abrindo o livro e levantandoa sobrancelha.— Pronta!Sei que dormi por dois longos meses, masadormeço assim que a voz grave e familiar demeu avô começa a soar para dentro de meusouvidos. A tranquilidade e o conforto quesinto apenas por escutá-lo é algo realmentemaravilhoso, é como passar por um déjà vu,como se sempre tivesse ido dormir escut-ando essa voz.

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Capítulo 17 Quando sonhos setransformam em visões

Eu vejo Jack, ele aparenta ter 11 anos de id-ade, mas não posso dizer se é a idade real ousó a aparência. Ele está em pé ao lado deuma cama, onde uma mulher dorme. Seusolhinhos pretos estão úmidos e vermelhos,suas mãozinhas seguram a mão esquerda damulher com tanta força, que posso ver os nó-dulos de seus dedos rígidos, enquanto eletenta segurar o choro.

— Eu vou resolver isso, eu prometi e eu vou,não se preocupe! — ele diz, enquanto enxugacom a mão uma lágrima que escorre por suabochecha.

Tanta dor, tanto sofrimento, eu quase possosentir junto com ele.A mulher continua deitada, aparentementedormindo, posso ver seu peito subindo e

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descendo com a respiração. Ela tem cabelosescuros, longos e lisos que descem por seusombros lindamente, seu rosto é rosado, elase parece um pouco com ele.Acordo de uma vez, sem ser de supetão, semme sentar na cama rapidamente, apenasabro os olhos, mas me lembro exatamente dosonho que tive, foi tão real.Nesse instante, me lembro do sonho que tivequando ainda estava na Terra, aquele em quevi o homem de cabelos loiros sangrandoqueimado. Aquilo tudo aconteceu, viviaquela cena, aquele homem do sonho eraJack. O que tudo isso significa, afinal?Me arrumo rapidamente, pegando um dosvestidos do armário, pego o mais simples,aquele que não é tão longo assim, e saio pelaporta procurando por David.Procuro na biblioteca, no salão principal e nacozinha, mas não o encontro em lugarnenhum.

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Vou para saída do castelo, imaginando queele esteja na aldeia, mas sou parada no mo-mento em que saio pela porta grande deouro, pois tropeço em alguém, por pouco nãocaio no chão, sou salva por mãos fortes queme seguram pela cintura no exato momento.— Edmundo? — sorrio ao ver os olhos azuisaconchegantes de Edmundo, e o abraçofortemente. — É tão bom ver você, comoestá?— É muito bom vê-la também, princesa.Como tem sido desde que acordou?— Ah, tudo ótimo. Eu sei que ainda temosque encontrar o tal do Pedrus que nos cau-sou todo aquele mal, mas por hora, estouaproveitando os minutos de sossego — nósdois rimos. — Você sabe onde David está?— Sim, eu acabei de vê-lo no lago, ali do ladodo castelo, é só virar por ali— ele diz estic-ando o braço na direção.— Tudo bem então, Edmundo, eu precisofalar com ele. Foi realmente bom ver você—

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digo o abraçando mais uma vez pela cintura,antes de sair na direção que ele indicou.Ando apenas alguns metros contornando ocastelo, até avistar David sentado a margemde um lago, é de lá que vem a água que correpor dentro do castelo e em volta dele.— Davi, oi! — digo me sentando ao seu lado.— Hei — ele diz beijando minha testa. — Oque foi?— pergunta olhando minha ex-pressão diferente.— Queria perguntar uma coisa.— O quê?— Uma vez, quando ainda morávamos naTerra, eu tive um sonho, sonhei com aqueledia da guerra, vi Jack ensanguentado equeimado, na época pensei que era apenasum sonho, mas então aconteceu — digo melembrando exatamente do dia em que tiveesse sonho. Me lembro de vê-lo deitado en-quanto tocava seu ferimento, lembro do sen-timento que tive estando ao seu lado, e de

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como o pânico tomou conta de mim naquelanoite.— Sua mãe podia fazer isso, ela tambémtinha visões através de sonhos.— Foi o que pensei, que estivesse tendovisões, mas então, hoje eu sonhei com Jack,mas quando ele ainda era criança.— Nem sempre as visões são do futuro, po-dem ser do passado também, coisas que irãoacontecer em dois, em cinco anos, coisas queestão acontecendo, ou até mesmo coisas queaconteceram há anos atrás. Era assim comsua mãe.— Então como saber quando é visão equando é apenas um sonho?— Tá aí, você não tem como saber!— dizerguendo os braços.— Ah, isso é tão frustrante.— Por quê? O que você sonhou?— Ele tinha aparência de uma criança, igualsempre foi, estava de frente para uma cama,

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onde uma mulher dormia, ele estavachorando.— Faz sentido!— O quê? Por quê?— A mãe dele morreu de uma doença, ficoude cama vários dias antes de morrer.— Oh!Uma sensação ruim percorre meu corpo,sinto pena de Jack, e ao mesmo tempo ima-gino a dor que ele sentiu, me lembro de seurosto no sonho, de como sofria. Ele passoupor tanta coisa na vida!— Mas então, porque eu sonhei com isso?Quero dizer, os sonhos, as visões devem terum significado, não é?Ele apenas dá de ombros.— Sempre foi um mistério para sua mãe.— De que ainda ter visões se não posso fazernada com elas?— Elas podem ser úteis.— É, não sei como.

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— Ah! Pare de ser resmungona, quando ficoutão ranzinza?— ele bate a mão na água comforça, espirrando um monte dela em meurosto.— Hei! — digo fazendo o mesmo, mas espir-rando o dobro de água em seu rosto.Sorrindo, ele começa a jogar mais água,David entra no lago, me levando junto comele. Começo a bater na água, jogando tantaágua nele quanto ele joga em mim.— Chega! — digo depois de uns minutos. —Não aguento mais — eu começo a rir, en-quanto saio do lago me sentando namargem.— Bobona, eu venci! — ele se senta ao meulado.— Não vale, você é mais forte, consegue jogarmais água.— Não aceita que perdeu! — ele ri aindamais.Eu olho para ele, o sol bate em seu rostoagora, fazendo seus olhos ficarem com

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aquele tom mágico novamente, junto com ospingos de água grudados em seus cílios.— Eu sonhei com você também.— O que aconteceu?— Nada, você estava molhado e conversavacomigo!— Então já se realizou, não é?— diz medando um beijo na bochecha.Aceno com a cabeça, mas não digo que nosonho ele me dizia aquela frase ―você amaquem você ama, simples assim?, nem aomenos sei o motivo por não contar, só nãome parece certo dizer.Depois disso voltamos para castelo, onde en-contramos meu avô no salão principal,aquele onde o rio corre pelo chão, e o teto decristal despeja raios de sol em cima da água.— Eu estava pensando! — ele diz sorridente.— David já lhe contou?— ele pergunta comos olhos alegres.— Me contou o quê?

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— Achei que você queria contar— David dizdando de ombros.— O quê?— Gostaria de coroá-la como princesa, afinal,você é minha herdeira.— Você acha que isso é necessário? Querodizer, com tanta coisa acontecendo, omestiço ainda está livre por ai.— Esse povo precisa de uma festa assim,dizem que o amor move montanhas, não é?Pois alegria também pode mover, esse povoprecisa de um pouco disso, e eu também.— Bem, se o fará feliz...Ariel se aproxima e me abraça fortemente.—Será em dois dias!— Apenas dois dias?— pergunto imaginandoque esse tipo de coisa deva levar um tempopara ser preparado.— A data é perfeita, mas você não se lembra,não é?— David pergunta ao meu lado.— Me lembrar de que?— É seu aniversário.

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Não dá para acreditar que já estamos emsetembro, dia vinte e seis chegará em dois di-as, tanta coisa aconteceu, tanta coisa mudou,eu mudei mais do que qualquer outra coisa.Faz quase cinco meses que estou nessemundo. Sorrio levemente em pensar queconseguimos mudar tudo em pouco tempo,claro, comparado ao tempo que esse povoviveu assim, cinco meses não é nada pertodisso.— Eu não me lembrava! — e para falar a ver-dade, nem me importo, quer dizer, as coisasque faziam sentido antes, agora já não fazemmais tanto sentido assim, como festas,aniversários, celulares novos, roupas. Sei queesse povo precisa de algo animador, elesmerecem, só não consigo ficar tão animadaquanto meu avô e David parecem estar. Ficofeliz por tudo estar dando certo, mas nãoconsigo parar de pensar que a qualquer mo-mento tudo isso pode acabar, enquanto

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Pedrus estiver por aí, não consigo ficar tran-quila, não depois de tudo que passei.— Você costumava esquecer seu aniversárioquando estamos na Terra, imagine agora—Davi sorri para mim.

Esses dois dias passaram mais rápido do queimaginei, nem posso acreditar que hoje sereicoroada princesa, há poucos dias atrás tudoisso aqui estava um caos, e hoje teremos umafesta. Eu na verdade nem sei o que pensar.Estou sentada numa cadeira macia enquantoIsabela terminar de arrumar meu cabelo, en-quanto lhe desejo sorte e pensamentos posit-ivos por dentro para que possa domar meuscachos, ele irá precisar, conheço esse cabelohá muito tempo para saber que é um casoperdido, mas como ela insistiu, deixei quetentasse.

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Estou usando um vestido azul brilhante queé agarrado em minha cintura por causa doespartilho, vale a pena dizer, que coisinhamais abominável, tudo bem que te deixa comuma cintura muito mais fina do que a quevocê tem, mas não vale à pena ficar sem res-pirar para conseguir uma cintura fina, só es-tou usando essa coisa, pois não quero decep-cionar ninguém hoje, enfim, voltando aovestido, ele é rodado, tem tanto tecido quequase posso me perder nele, mas é lindo,como todo vestido de uma princesa deve ser.— Prontinho! — Isabela diz me olhando deuma forma estranha, penso comigo mesmaque deva ser por causa do cabelo, eu bemque avisei.Me viro para poder encarar o espelho atrásde mim.Primeiramente me assusto, quase não recon-heço a garota no reflexo, meus cabelos estãopresos de uma forma que alguns cachos pos-sam balanças quando mecho minha cabeça,

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alguns fios escorrem por meu pescoço erosto, meus lábios estão vermelhos, fazendocom que meus olhos fiquem ainda maisverdes, tudo parece se destacar ainda maispela cor azul escura do vestido.— Você está tão linda— Isabela diz com aameaça de choro em sua voz.— Você é incrível, como conseguiu fazerisso?— pergunto sem acreditar que sou eumesma.— Não precisei me esforçar, a modelo ajudamuito.Nós rimos juntas.— Ande, levante-se para que eu possa vê-lamelhor.Me levanto da cadeira e fico de frente paraIsabela, que deixa duas lágrimas escorrer doolho esquerdo, enquanto me encarasorridente.— Ah, pare com isso, Isabela, é só umvestido.

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— Desculpe — ela enxuga as lágrimas rapida-mente com a manga de seu próprio vestido.— Está na hora, escute, a música parou — elalevanta o dedo indicador perto do rosto en-quanto fala.— Mas já? Eu não sei se estou pronta — hojefaço 17 anos e serei coroada princesa, épressão demais.— Você está — diz isso e me empurra pelaporta do quarto, onde saio para o corredorque me levará até a escada para o salão prin-cipal, onde todos me esperam.Respiro fundo uma vez antes de começar acaminhar lentamente até a escada, coloco amão no corrimão feito de ouro e levanto orosto para ver todos do reino no salão, todosolhando diretamente para mim.A música volta a tocar novamente assim queapareço, é uma música calma, mas ainda simtem um ritmo animado.

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Sinto aquele frio na barriga percorrer todomeu corpo, não sei dizer se é de uma formaboa ou ruim.Todos aplaudem enquanto desço os degrausatentamente para não tropeçar em meuvestido exageradamente longo, posso vermeu avô sentado em seu trono a minhaespera.Não estou assustada por hoje me tornar ofi-cialmente princesa de Ninho de Fogo, só nãosei se saberei administrar o cargo, quer dizer,uma princesa de verdade, são muitas re-sponsabilidades, e ainda temos tanto pararesolver, é tanta coisa com que se preocupar.A confusão e os pensamentos começam a to-mar conta de mim, a ameaça de desesperocomeça a se formar em minha mente, mastodo drama e falta de ar repentina sãomandados embora, assim que o vejo no finalda escada de caracol. Ele sorri assim quenossos olhos se encontram, e os dele con-seguem ser ainda mais azuis com essa roupa,

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está usando algum tipo de uniforme daguarda real, é quase como um terno azulmarinho com o desenho do brasão em formade dragão vermelho desenhado em seu peito,onde se encontram os cinco botões doura-dos. É estranho, mas David consegue medeixar calma, mesmo quando tudo está umabagunça, é aquele que sempre me trás paz,não importa o quê, ele sempre sabe o quetem que ser feito, com ele não há jogos, eusempre sei o que está pensando, ele tem sidomeu braço direito por tanto tempo.Ele pega minha mão direita e a beija leve-mente, assim que me aproximo.— Está nervosa?— pergunta sussurrando emmeu ouvido, enquanto caminhamos até meuavô.— Não — respondo fazendo sinal negativocom a cabeça.Enquanto andamos até o trono, posso ver to-dos a minha volta, Amélia, Damião,Angélica, Rachel e Edmundo. O que foi isso?

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Edmundo sorrindo de forma estranha paraAngélica, sinto algo no ar, e conheço essetipo de olhar. Sorrio por dentro por imaginá-lo com a doida da Angélica, torço para estarenganada quanto a esse olhar que ele deu emsua direção. Edmundo é bom demais paraela.Todos estão aqui, o reino todo, cada criança,cada pessoa conhecida e desconhecida,menos ele. Não posso ver Jack em lugar al-gum. Não falei mais com ele e nem o vi de-pois daquele dia no lago, dois meses adorme-cida e o único momento em que estive comele foram aqueles poucos segundos, ele nemao menos tentou me ver depois disso. Sinto ocoração pesando um pouco mais que o nor-mal em meu peito, mas me obrigo a aguent-ar, mandar qualquer tipo de pensamentoruim embora, não preciso de drama por hoje.Sorrio assim que me aproximo de meu avô.David lhe entrega minha mão direita damesma forma que os pais fazem com suas

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filhas nos casamentos, quando as entregamaos noivos. Isso me faz que me faz rir. DepoisDavid se coloca ao nosso lado, da mesmaforma que os outros guardas reais que estãovestindo roupas iguais as dele.Ele me abraça ternamente antes de se virarpara o público.— Hoje é um dia muito importante para nós,não só por estarmos nos recuperando e porminha neta estar completando 17 anos, mastambém por termos de volta nossa princesa,que hoje toma de volta seu lugar por direito— ele faz uma pausa para me olhar carin-hosamente. —Minha filha, assamos porcoisas terríveis, e ainda iremos passar porum pouco mais até tudo voltar ao que eraantes. Graças a você sabemos que tudo serápossível, você devolveu esperança ao nossopovo, trouxe de volta a faísca que cada umprecisava para acender o fogo de nossos cor-ações. É com muita honra, orgulho e amorque hoje lhe nomeio como princesa Melane

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Mary Thompson Draconem, herdeira e fu-tura rainha de Ninho de Fogo — fico feliz porele não ter alterado meu nome, apenas acres-centou o Draconem, o nome real.Ele se abaixa para pegar a coroa que está emcima de uma almofada azul, ela é prateada,muito delicada, com três desenhos pon-tiagudos em cima contendo diamantes emcada uma das pontas, e a coloca em minhacabeça.Todos explodem em aplausos e sorrisos,flores são jogadas em mim, gritos de euforiae encorajamento. É nesse momento que to-dos meus medos se evaporam, e sei que tudoirá dar certo, terá que dar, farei o que forpreciso para que dê, não posso decepcionaresse povo e nem esse lugar, eu amo tudoaqui, e irei lutar por eles, eu sou suaprincesa, e eles são meu povo, eu fariaqualquer coisa por eles. Acho que acima dequalquer outra coisa, amar seu reino e seupovo é o essencial.

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Olho para David, que está sorrindo eaplaudindo para mim, sorrio de volta em suadireção. Ele está aqui, ele sempre estevecomigo, em todos os lugares e momentos,Davi é meu anjo protetor, sei que ele nuncairá me abandonar, os olhos azuis sempre es-tarão lá por mim, não importa o quê.A noite parece não ter fim, muita dança, ab-raços, beijos, pessoas novas para conhecer,tudo tão maravilhoso.O salão foi enfeitado com bolas de cristaiscom velas acessas dentro, flores de todas ascores por todos os lados, uma fonte com al-gum tipo de bebida alcoólica foi colocada nocentro, perto de onde o rio desabada, cor-rendo pelo salão. Uma orquestra toca dooutro lado do salão, nem sei o nome de al-guns dos instrumentos que estão sendo toca-dos, mas o som é maravilhoso. Enfeites emtons de azul, assim como meu vestido, ascortinas azuis também foram trocadas paracombinar, tudo perfeito, nada fora do lugar.

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— Posso?— David se aproxima, estendendo amão, enquanto danço com meu avô.— É claro — Vovô diz beijando meu rostoantes de se afastar.David pega minha mão e coloca a outra emminha cintura, enquanto me gira lentamentepelo salão.— Você nasceu para usar esse vestido, al-guém já lhe disse isso hoje? Está tão linda!—ele sorri ternamente, me olhando direta-mente nos olhos.Eu não lhe respondo, apenas sorrioafundando meu rosto em seu peito, en-quanto dançamos seguindo o ritmo lento damúsica.— Você não faz ideia do quanto está linda,não é Mel? Uma verdadeira dama, deveriausar vestidos mais vezes. Porque você osodeia tanto?— ele pergunta sorrindo.— Eu não os odeio, só me sinto presa quandoestou usando um.

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Depois de algum tempo, o jantar é posto etodos nos sentamos numa mesa realmentegrande, meu avô se senta em uma das pon-tas, eu fico ao seu lado, David logo depois demim.Os pratos mais estranhos de minha vida sãoservidos, como um pouco de cada um, masnão irei mentir dizendo que adorei, não quea comida seja ruim, é só tudo tão diferentedo que estou acostumada, comida de gentechique.Não sei quanto tempo se passou desde quedesci os degraus da escada, mas começo ame sentir cansada. Corro os olhos pela mesae pelo salão, onde ainda há pessoasdançando, todos tão felizes, talvez vovô est-ivesse certo, essa gente precisava disso, todosprecisavam.Não me importando com etiqueta, ao menosa que aprendi na Terra, coloco meu cotovelona mesa e apoio meu rosto em minha mão,então bocejo.

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Algo chama minha atenção. A porta entreaberta do salão, algo não está certo, sabequando você vê reflexos de algo e logo depoiseles somem? Posso jurar que isso acabara deacontecer, continuo olhando nessa direção,algo não me deixa desviar os olhos, e entãoalguns segundos depois, posso ver seu rostoapontar atrás da porta da entrada, ele tentaser discreto, mas Jack sendo discreto é quasetão impossível quanto eu parecer uma damasentada nessa cadeira.Ele faz sinal com a mão, me chamando,aperto meus olhos em sua direção e levantoàs sobrancelhas, numa tentativa de dizer ―oque você quer??.Ele ignora meus olhares e faz um gesto com acabeça para que eu o siga.O que ele está fazendo aqui? Pensei que nemao menos tivesse vindo, o que ele quer?Penso duas vezes antes de levantar, mas issoaqui está tão entediante, essas comidas são

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tão estranhas, preciso sair daqui, ao menospor um minuto.— Aonde vai?— David segura delicadamentemeu braço, quando me levanto.— Hmm, eu não demoro! Prometo — digome livrando de seus dedos, me dirigindopara porta. Algo quase me faz parar na met-ade do caminho, não gosto da ideia de deixarDavid, mas não posso evitar que minhas per-nas continuem me levando para porta aminha frente.Jack está parado ali, encostado na porta,uma perna dobrada e a outra esticada, comos olhos brilhando. Sei que estou com umpouco de raiva dele por não ter sentidominha falta, mas não sorrir com sua ex-pressão é tão inevitável, e inútil de tentar nãoficar feliz por o ver, eu me sinto feliz agora, enem ao menos sei o motivo.— Coroa legal! — diz apontando para minhacabeça.

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— O que foi?— pergunto sussurrando e ig-norando seu comentário.— É seu aniversário, achou que não viria?Levanto uma sobrancelha em sua direção,mas não posso evitar ficar contente em es-cutar que ele se lembrou da data.— E tenho que te mostrar uma coisa— ele dizpegando minha mão e me levando pelocorredor do castelo, o que dá para a saída.— Espera, não posso sair, estamos numjantar e...— Ah, qual é, Melane, você não quer estar lá,devia ter visto sua cara sentada naquelamesa.Mordo os lábios, ele está certo, mas não seise devo ir, não, na verdade eu sei que nãodevo, mas não consigo resistir. Seus olhos es-tão brilhando tanto e ele tem essa excitaçãoem sua expressão, eu não posso com isso.— Vamos?— ele estende a mão.Olho mais uma vez para mesa, onde todosme esperam, vejo David conversando com

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meu avô, sinto um aperto no coração, masainda sim seguro as mãos de Jack. É errado,mas de uma forma certa, eu não sei como ex-plicar, mas o sentimento que cresce dentrode mim no momento em que nossas mãos setocam é tão intenso e radiante que não temcomo isso ser errado.Eu o sigo até uns bons metros para longe docastelo, segurando a bainha do vestido azul,enquanto corro de mãos dadas com ele.— Sabe, esse negócio é bonito e tudo, maisnão combina nem um pouco com você. Vocêé uma mulher livre, esse vestido te mantémpresa— diz isso e no mesmo instante rasga aparte de baixo do vestido com as mãos.Espanto! É a primeira reação que tenho.— Você está louco, perdeu um parafuso dacabeça? Eu não acredito que rasgou meuvestido — digo segurando a parte debaixo,avaliando o estrago. Ele é louco, é o segundopensamento que tenho, só pode ser louco.

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— Como irei voltar lá para dentro desse jeitoagora?— pergunto com os olhos arregaladosem sua direção.Ele parece realmente tranquilo quandoresponde.— Meu lema é: se preocupe com as coisasapenas quando chegar a hora de se preocu-par, você ainda não tem que voltar para lá,relaxa, afinal, você é a princesa, não é?— Jack, qual seu problema, olhe só o que vo-cê fez! Você não pensa antes de fazer ascoisas? Não me importo com seu lema, não évocê que terá que entrar lá dessa maneira.— Ah, larga de frescura, aposto que temmuito mais de onde esse veio. Não ia darpara você andar com ele pela floresta, vamoslogo, estamos perdendo tempo, logo vaiescurecer.Respiro fundo uma vez, quase me arrepend-endo de ter saído do castelo com ele, mas aforma como me olha, nunca o vi tão animadoassim antes.

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É como um Peter Pan adulto, eu sei que issopode parecer ruim de se dizer, algo quenunca cresce por dentro e nem amadurece,mas não digo isso como algo negativo, é ex-atamente ao contrario, pois acho que essa é aqualidade de Jack que mais adoro, ele ésempre ele mesmo, não importa o quê,sempre faz o que quer fazer e da forma quequer, ele não se importa com as pessoas ou oresto do mundo, e sim, algumas vezes issopode me irritar,como nesse momento, masessa é a apenas a forma como ele é, não sepode mudar isso nas pessoas, ou você asaceita da forma que são, ou simplesmente asdeixa ir, e eu não quero que ele se vá.— Eu não sei como te aguento, Jack, sincera-mente! para onde estamos indo?— Não sei como pude me esquecer dissoquando me contou sobre as flores!— O quê? Que flores?— ele está louco, sópode ser isso, primeiro rasga meu vestido eagora começa a falar coisas sem sentido.

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— As que sua avó pintou em sua parede, asque seu pai levava para sua mãe— ele diz eu-fórico, enquanto anda rapidamente por entreas árvores, me puxando pela mão.— O que tem as flores? Eu não estou entend-endo nada, Jack.— É isso que estou tentando dizer, não seicomo me esqueci disso quando me faloudelas, deve ter sido pelo fato de não as tervisto durante esses dezesseis anos, mas elasficam tão perto da caverna— continuou ol-hando para ele, enquanto caminhamos rapi-damente. — É claro que você nunca viu essasflores na Terra, pois elas não são de lá, elassão flores daqui, só nascem nesse reino, sónuma clareira perto da caverna para ser maisexato.— Oh! É isso!— Sim, mas elas não são flores comuns, sãoLágrimas de Emily.— O quê? Lágrimas de Emily? Esse é o nomedas flores?

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— Sim— ele diz em voz alta, sorrindo larga-mente, tão animado.— É uma lenda. Emily amava Heitor, dizemque nunca existiu um amor tão grandequanto o deles. Um dia, Heitor teve que irpara guerra, numa das várias que o reino jásofreu, mas ele não voltou. Emily ficou diasesperando por ele, dizem que ela teria esper-ando por mil anos, se pudesse. Heitor mor-reu na guerra, levando o coração de Emilycom ele. Ela ficou devastada, não era mais amesma, não tinha mais vontade de viver,nada mais importava— ele faz uma pausapara me olhar. — Aqui em nosso mundocremamos as pessoas quando elas morrem.Emily pegou as cinzas de Heitor e as levouaté a clareia onde eles costumavam se encon-trar quando eram mais jovens, ela se ajoel-hou no chão, lembrou-se de todos os dias,tardes e noites que passaram juntos,lembrou-se de cada abraço, cada beijo, cadapalavra de carinho trocada, cada toque, tudo

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o que ainda estava vívido em sua mente,trouxe todas as lembranças a tona, ela despe-jou as cinzas no vento, as espalhando portoda a clareia e ainda ajoelhada, ela chorou.Não lágrimas comuns, mas lágrima de dor,de amor, não existe no mundo poder maisforte que o amor. As lágrimas escorrerampor seu rosto, lágrimas de sangue, envoltaspor laços de dor que a fizeram brilhar comogotas de sol, elas ecoaram pelo ar ao tocar osolo, fazendo um efeito sonoro de eco e nomesmo instante uma flor apareceu em seulugar, ela cresceu e desabrochou de uma sóvez, uma flor branca com pétalas entrelaça-das umas nas outras, com formatos de gotas.Então uma explosão de flores começou acrescer na clareia, elas são frutos do amor deEmily, frutos do puro e verdadeiro amor. Lá-grimas de Emily, é costume de nosso povopresentear suas amadas com essas flores,uma forma de dizer o quanto você as ama —ele pausa mais uma vez, agora sorrindo. — É

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por isso que seu pai as dava de presente parasua mãe, e é por isso que você nunca as viuna Terra— ele termina a frase, feliz por selembrar de tudo.— Isso é... Incrível! — as flores que ficarampintadas em minha parede durante toda aminha vida, as mesma do retrato de meuspais, são flores que representam o amor ver-dadeiro, tudo faz sentido agora, o porquêvovó as pintou em meu quarto, ela deviasaber, isso tudo tem um significado muitomaior para mim, não é só o amor, é algo queme liga aos meus pais.— Vem, estamos perto!— ele pega minhamão mais uma vez e me guia pelo caminho.Passamos por debaixo de uns galhos cober-tos de folhas e então chegamos a clareia deEmily e Heitor.— Aqui estão, Lágrimas de Emily. Elas dão oano todo, mas somente nesse lugar. Haviamdesaparecido com o feitiço que destruiu as

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coisas por aqui, mas agora elas voltaram,como se nunca tivessem ido embora.O campo coberto por flores brancas a minhafrente é lindo, o perfume delas quase me em-briaga, tão doce, tão calmo e tranquilizador.Me aproximo, ajoelhando enquanto acariciouma delas levemente.As mesmas flores da parede, exatamentecomo me lembro, elas são diferentes, nãosomente pelo formato de gota, mas por cres-cerem para baixo, o caule sobe e depois securva, como se uma lágrima em forma de florestivesse caindo.A pétala é tão sedosa quanto o ar, leve, quasenão se pode sentir o toque, macia e delicada,mas ao mesmo tempo resistente, como oamor deve ser!— Você está ajoelhada exatamente ondeEmily ajoelhou, sabia?Eu sorrio, passando a mão pela gramaúmida, Jack se senta ao meu lado.

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— Obrigada! — digo virando o rosto paraolhá-lo.Ele apenas levanta os ombros sorrindo.— O que tem feito por esses dias?— per-gunto, ainda acariciando a flor.— Hmm, nada demais, apenas coisas.Eu olho em sua direção.— Pesquei, treinei com meu sabre, nada de-mais — diz novamente, dando de ombros.Aceno com a cabeça, voltando à atençãonovamente para Lágrima de Emily.— Eu ainda não lhe agradeci pelo que fez,sabe, não só por ter salvado minha vida, mastambém por todo o resto, nos livrado damaldição.— Não tem nada de que agradecer, nãoprecisaria salvá-lo se não tivesse me salvadoantes — ele vira o rosto para mim agora. —Sim, eu me lembro de tudo, aquele dragãoteria me pego se você não tivesse se jogadona minha frente, se tem alguém aqui queprecisa agradecer, sou eu.

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Ele continua me olhando.— Sua vida vale mais que a minha.Eu sorrio lentamente.— Quero dizer, você podia fazer muito maispor esse mundo do que eu — ele corrige afrase instantaneamente.Aceno com a cabeça.— Ainda sim, você salvou minha vida.Obrigada!Ele coloca dois dedos na testa e acena, damesma forma que soldados fazem, eu sorriocom isso.— Eu também tenho que me desculpar. Eudevia ter ficado com você, talvez aqueledragão nem tivesse quase te acertado se eutivesse cumprido a promessa para começar,eu não sou um cara muito dessas coisas,sabe, cumprir promessas, ser honrado — elesorri uma vez. — Eu só não estou acos-tumado a ter que dar satisfações ou devernada pras pessoas. Eu não gosto que de-pendam de mim, ou que esperem coisas de

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mim, pois sei que essas coisas nunca virão—seu rosto vira para o lado, olhando para ohorizonte.— Você não precisa se explicar para nin-guém, Jack, muito menos me dar satisfações— digo, também olhando para o horizonte.— Sim, eu sei, mas eu devia.Viro o rosto em sua em sua direção dessavez.— Como é se tornar uma princesa? Querodizer, oficialmente.— Não sei ainda, quando descobrir, te conto— dou uma risada.— Ah, já ia me esquecendo. Tem outra coisaque quero lhe mostrar — ele diz mudando deassunto.— O quê?— digo pegando sua mão estendidapara mim, me ajudando a levantar do chão.— A melhor coisa que você vai comer na suavida.— Ah, ótimo, não tem ideia das coisas queme deram para comer naquele jantar.

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— Comida de gente rica?— nós rimos juntos.Andamos apenas alguns passos, até um pé deamoras vermelhas do tamanho de limões.— Eu nunca vi amoras desse tamanho antes.— Elas não existem na Terra, é coisa daqui.Encontrei esse pé quando era criança, ésério, não tem nada melhor.Arranco uma das enormes amoras e levo atéos lábios, o caldo escorre por meu queixocom a mordida. Fecho os olhos sentido osabor escorrer por minha língua.— Isso é a melhor coisa que eu já comi navida.— Eu disse! — ele sorri largamente agora.Olho para o céu escurecendo, ele estánaquele tom de laranja escuro, quase ficandoazul marinho, quando a noite está apenas al-guns minutos de tomar conta de tudo. Doumais uma mordida na fruta antes de dizer:— Acho que é melhor eu voltar, eles devemestar me procurando — não consigo não rircom essa frase, pareço uma adolescente que

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foge no meio da noite para ir a uma baladacom os amigos.— Tudo bem. Ah, leve uma Lágrima de Emilycom você — ele diz me puxando de volta paraclareira.— Eu não quero estragar as flores, ficam tãolindas aqui!— Não tem problema, elas nunca morrem,nem mesmo depois que são arrancadas dopé, e quando você as tira daqui...— ele diz ar-rancando uma flor. — Outra nasce no lugar—no mesmo instante, outra flor surge, to-mando o lugar da anterior.— Como o amorverdadeiro, nunca morre, nem desaparece,ou diminui— ele me entrega a flor, me ol-hando diretamente nos olhos.— Faz muito sentido!— Feliz aniversário — diz enquanto me en-trega a flor.Voltamos rapidamente para o castelo, a noitejá toma conta de todo o céu, mas a lua cheiailumina o caminho de volta.

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Assim que avisto o castelo, me lembro do es-tado de meu vestido.— Que droga, Jack, como vou entrar comesse vestido agora?Ele começa a rir descontroladamente en-quanto me olha.— Qual a graça?— Nada. Não se preocupe com isso, Melane,você não nasceu para ser uma lady.Finjo ficar ofendida.— Quem é você para decidir isso?— Ninguém, só acho que você é livre demaispara se portar como tal, você é feita de fogo,Melane, deve sempre queimar, não importao quanto tentem te apagar, você sempre con-tinua queimando.— Devo encarar isso como um elogio?— per-gunto com a sobrancelha levantada.— Absolutamente.Eu sorrio, e ele faz o mesmo.— Eu vou indo então — digo acenando e mevirando.

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— Melane— ee diz antes que eu me afaste.— Sim?— Senti sua falta! — ele sorri uma vez antesde se virar para ir embora.Fico uns segundos sorrindo feito boba, eunão entendo Jack, e nem sei se algum dia ireientender, ―senti sua falta?, o que ele querdizer com isso? Primeiro nem se deu contado tempo passando e agora sente minhafalta? Como eu disse, porque as coisas nãosão mais simples com ele? Simples como ascoisas são com David? Oh! David, ele deveestar me procurando, o tempo passou maisrápido do que imaginei.Saio correndo para dentro do castelo,avaliando o estado do vestido rasgado noprocesso.Alguns guardas me olham, enquanto entrocorrendo, mas para minha sorte, ninguémdiz nada.

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Me esquivo rapidamente para escada e corropara meu quarto, sem que ninguém me veja,ainda há muitas pessoas no salão de festas.Entro correndo pela porta do quarto, a fechocom um baque e respiro tranquilamente porter consigo chegar.— O que aconteceu?— escuto sua voz acusad-ora antes mesmo de me virar.— Oh! Não me faça nervosamente, colocandoa explicar isso — digo sorrindo Lágrima deEmily no nariz e aspirando seu aromaautomaticamente.— Uma Lágrima de Emily? Onde conseguiuisso?— David pergunta parecendo muitoconfuso agora.— Jack, ele se lembrou das flores, uma vezcomentei sobre como tenho flores brancaspintadas na parede do quarto, ele veio aquipara me levar até elas, e cortou meu vestido,pois ele é muito estúpido.David fica pensativo enquanto me observa.— Foi por isso que saiu àquela hora?

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Eu não quero responder mais, porque elesimplesmente não para de me fazerperguntas?— Por que nunca me falou nada sobre asflores?— pergunto tentando mudar deassunto.— Não teria como falar delas sem explicaroutras coisas, então só não falei, e depois nãome lembrei delas quando chegamos aqui.— Elas são tão bonitas — digo acariciando aflor.Ele abre a boca para dizer algo, mas nesse in-stante meu avô abre a porta do quarto, mesalvando de mais uma enxurrada de pergun-tas das quais não quero responder.— Oh, você está ai. Estava te procurando, oque aconteceu com seu vestido?— ele per-gunta espantado, enquanto me olha. Davidvira o rosto no mesmo instante, esperandomais explicações.Odeio Jack por isso, é o meu maiorpensamento agora, tudo isso poderia ter sido

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evitado se ele não tivesse rasgado o vestido.Sei que deveria estar furiosa, mas começo arir sozinha, isso é tão Jack.— Do que você está rindo?— David pergunta.— Não é nada! Foi um acidente o vestido terse rasgado, mas está tudo bem, sério — étudo o que digo.— Ah, não importa, você deve estar cansada,não é? Por isso veio para o quarto, imagineique estaria aqui, vim lhe dar boa noite.— Sim, estou muito cansada, morta, na ver-dade— digo, numa tentativa desesperada detirar todos do cômodo para que não mefaçam mais perguntas.— Certo, então vamos lhe deixar descansar —vovô Ariel diz beijando minha testa. —Durma bem, estou muito orgulhoso de você,minha princesa.Eu sorrio para ele, enquanto se dirige até aporta.— Vamos, David, ela precisa descansar.

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David se aproxima, também beijando minhatesta.— Feliz aniversário — ele sussurra antes desair pela porta.Sei que devia me sentir culpada por deixá-lopreocupado e confuso dessa forma, mas tudoque consigo sentir agora é alivio, e nem aomenos sei o motivo ao certo por isso.Assim que a porta se fecha, sento em minhacama, respirando fundo duas vezes,pensando em tudo que me aconteceu desdeque cheguei em Ninho de Fogo. Minha vidaestá tão mudada do que já foi um dia, tudotão diferente, hoje sou uma princesa, masainda sim, não deixo de ser a garota caipiraque vivia a base de sonhos na Terra.Minha realidade já não é mais como eraantes, vivo em um mundo onde fadas,sereias, goblins, bruxos e dragões são reais,onde tudo pode ser real. Sentada na cama,penso em como as coisas aconteceram, emcomo nada mais será o mesmo, nunca mais.

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Tiro a coroa prateada da cabeça e a observopor uns segundos antes de colocá-la em cimada cômoda, depois tiro o vestido pela cabeça,solto o bendito espartilho, o jogando nochão, desejando nunca ter conhecido tal ped-acinho de tecido odioso.Coloco uma das camisolas confortáveis e be-las da gaveta e me deito na cama, o dia foipuxado e realmente me sinto cansada. Achoque dormir é bom, é onde mais tenho encon-trado paz ultimamente. Então assim faço,deslizo para de baixo dos lençóis e adormeçoquase instantaneamente.

Me sinto voando, olhando toda a paisagemdo alto, então minha visão começa a acelerar,correndo pelo caminho, todas as imagenspassam muito rápido, é quase impossível dedizer por onde estou indo.

Então do nada, depois de correr por algumtempo, eu paro de uma vez, na beirada deum precipício, posso ver uma ponte que

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separa os dois lados da terra, na outra ex-tremidade, a mais longe mim, posso ver umcastelo de aparência sombria, todo feito depedra escura. A visão de tudo começa a an-dar novamente, me levando para mais pertodo castelo, entro por uma das vidraçasenormes, ando por um corredor, atravessouma porta feita de madeira e lá permaneçoparada.

Apenas alguns segundos se passam, então aporta se abre e um homem entra por ela.Ele está de costas para mim, usa uma roupacinza, e seu cabelo loiro que chega até seusombros está preso em um rabo de cavalobem feito, ele anda pelo cômodo, procurandoalgo em uma prateleira, escuto um pequenosom de um sorriso, quase imperceptível.— Ah, você está aqui— ele diz sem se virar.Uma voz melodiosa, grossa e firme, nãoamedrontadora como imaginei, mas arrepi-ante e sedutora ao mesmo tempo.Ele sorri levemente antes de continuar.

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— Bem-vinda ao meu humilde castelo, nãotem ideia do quanto queria lhe conhecer,princesa! — ele sorri levemente. — Agorasaia de meus pensamentos! — ele grita se vir-ando, revelando um rosto perfeito, narizreto, lábios cheios e um par de olhos cinzen-tos hipnotizantes.O som de seu grito é como um furacão vindoem minha direção, me fazendo voar por ondeentrei, saindo pela vidraça e correndo pelocéu, fazendo todo o caminho de volta atéminha cama.Me sento de uma vez, ofegante, o lençol aomeu redor está úmido pelo suor, assim comominha testa e cabelos, meus olhos estão ar-regalados, e meu coração bate descontrola-damente. Uma sensação de pânico quase to-mando conta de mim, aqueles olhos, tão fri-os, tão assustadores. Olho ao meu redor umavez antes de sussurrar para mim mesma.— Pedrus, sei onde encontrá-lo...

Continua...

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Camila Deus Dará é uma garota de vinte etrês anos que adora moda e maquiagem aomesmo tempo que Star Wars e BilboBaggins.

Sempre gostou de heróis e princesas presasem torres altas. O mundo da imaginação foiseu melhor esconderijo, um lugar onde tudo

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era possível. Passou então a escrever suaspróprias histórias e a ficar cada vez mais en-cantada com esse mundo, onde ela podia serquem quisesse ser.

Ela se casou e se tornou mãe, mas sua mentecontinua perdida em reinos distantes e espa-das mágicas.

Esse livro foi publicado de forma independ-ente, para saber mais sobre a autora bastaacessar o blog:http://ninhodefogo.blogspot.com.br/Ou então visitar a página do Facebook:https://www.facebook.com/ninhodefogoNão deixe de visitar e comentar sobre a obra,sua opinião é muito importante.

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