9
3 O PRÍNCIPE E DISCURSOS As duas principais obras políticas de Maquiavel são O Príncipe e os Discursos. O estudo da doutrina política desse autor não dispensa a leitura da História de Florença, de A Arte da Guerra e nem mesmo de sua comédia mais famosa, A Mandrágora. Mas as duas primeiras obras são paradigmáticas e reúnem os principais elementos do pensamento político de Maquiavel, embora alguns estudiosos enxerguem contradições entre o discurso nitidamente republicano que permeia os Discursos e os conselhos contidos em O Príncipe. Essas duas obras foram escritas num mesmo período da vida de Maquiavel: os Discursos começaram a ser redigidos em 1513, sua redação foi interrompida para a produção de O Príncipe, e concluída somente em 1517. Apesar de serem obras contemporâneas, sempre causaram certa perplexidade as contradições aparentes ou reais entre os dois textos. Discursos é uma obra explicitamente republicana, na qual Maquiavel deixa claro que considera a república de tipo misto uma forma superior de governo, sobretudo se comparada com a monarquia. Nela destacam-se as virtudes da república democrática e sustenta-se que somente uma república igualitária, no sentido de que todos deveriam ter igualdade de oportunidade para participar dos assuntos do Estado, permitiria o desenvolvimento da virtù de todo o povo e, por conseqüência, a expansão política e territorial do Estado, bem assim, somente uma república democrática, tal como foi a romana, garantiria a liberdade

Capítulo 3

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Capítulo 3

3 O PRÍNCIPE E DISCURSOS

As duas principais obras políticas de Maquiavel são O Príncipe e os

Discursos. O estudo da doutrina política desse autor não dispensa a leitura da História

de Florença, de A Arte da Guerra e nem mesmo de sua comédia mais famosa, A

Mandrágora. Mas as duas primeiras obras são paradigmáticas e reúnem os principais

elementos do pensamento político de Maquiavel, embora alguns estudiosos enxerguem

contradições entre o discurso nitidamente republicano que permeia os Discursos e os

conselhos contidos em O Príncipe. Essas duas obras foram escritas num mesmo

período da vida de Maquiavel: os Discursos começaram a ser redigidos em 1513, sua

redação foi interrompida para a produção de O Príncipe, e concluída somente em 1517.

Apesar de serem obras contemporâneas, sempre causaram certa

perplexidade as contradições aparentes ou reais entre os dois textos. Discursos é uma

obra explicitamente republicana, na qual Maquiavel deixa claro que considera a

república de tipo misto uma forma superior de governo, sobretudo se comparada com a

monarquia. Nela destacam-se as virtudes da república democrática e sustenta-se que

somente uma república igualitária, no sentido de que todos deveriam ter igualdade de

oportunidade para participar dos assuntos do Estado, permitiria o desenvolvimento da

virtù de todo o povo e, por conseqüência, a expansão política e territorial do Estado,

bem assim, somente uma república democrática, tal como foi a romana, garantiria a

liberdade almejada pelo povo. Entretanto, O Príncipe é uma obra de conselhos ao

monarca, em especial ao novo monarca ou àquele que pretenda fundar um principado.

Também chamado de “espelho de príncipe”, esse gênero era comum na época e, em

regra, dedicava-se ao aconselhamento dos príncipes, como uma espécie de manual de

boas maneiras.

A questão tem suscitado as mais diversas abordagens. Isaiah Berlin

(2004, p. 67) considera que não há uma contradição essencial entre as duas obras, já

que Maquiavel prefere um principado bem governado a uma república decadente. Seus

conselhos e máximas seriam os mesmos numa e noutra obra (“são descrições de

métodos de se concretizar um único objetivo: a visão humanista e periódica que o

domina”) e a proposição moral ou ética sustentada em O Príncipe estaria presente

também nos Discursos.

Page 2: Capítulo 3

2

Na mesma trilha segue a abordagem de Quentin Skinner (1996). Para ele,

a despeito das inúmeras diferenças constatadas nas duas obras em questão, a

moralidade política subjacente aos dois livros é a mesma. A diferença mais relevante

entre os livros estaria no direcionamento dos conselhos políticos: numa os conselhos se

dirigem ao príncipe, noutra se volta para o corpo inteiro dos cidadãos.

Há realmente uma unidade entre O Príncipe e os Discursos. Tanto pelo

método do autor como pela construção de uma teoria política arrimada em conceitos

como virtù, na relação entre virtù e fortuna, na teoria dos ciclos históricos, na teoria da

corrupção natural de todas as instituições e formas de governo, na concepção do

caráter simbólico das ações políticas, na idéia de uma moralidade que norteia a ação

política e os fins a serem alcançados pelo Estado e pelo governante. A adoção do

gênero espelho de príncipe por Maquiavel parece ter sido uma estratégia para seduzir o

leitor e não uma efetiva proposição de aconselhamento ao príncipe. Newton Bignotto

(1991, p. 125) insiste nessa tese, chamando a atenção para o fato de que apesar de O

Príncipe ser dedicado a Lorenzo de Médici, duque de Urbino, Maquiavel (2000, p. 13-

14) critica, na Carta a Zenóbio Buondelmonti e Cosmo Ruccellai, os “escritores que

dedicam seus livros a algum príncipe, a quem atribuem, com profusão de elogios

banais, todas as virtudes”. Essa estranha contradição revela que a forma escolhida

para O Príncipe tem em vista a estratégia de chamar a atenção do leitor, ou seduzi-lo,

mais do que qualquer outra coisa.

Os elogios feitos por Maquiavel, no capítulo II de O Príncipe, aos

principados hereditários, especialmente por sua estabilidade, também conflitam com a

tese sustentada nos Discursos de que a estabilidade jamais é perene em qualquer

forma de governo e que a tensão gerada pelos conflitos é positiva para a edificação de

um Estado grandioso. As contradições se resolvem no decorrer da obra, quando

Maquiavel demonstra que a estabilidade jamais é um dado permanente e que o

governante, príncipe ou não, deve preparar seu Estado para o conflito e não para a

paz, seja para expandir-se, seja para defender-se. O que de fato unifica a doutrina de

Maquiavel nas duas obras é a construção de uma teoria política válida tanto para um

monarca quanto para uma república. Nesse sentido, conforme preleciona Bignotto

(1991, p. 125), os conselhos aos príncipes têm a pretensão de enunciar regras de

caráter universal, e o ator político deve ser encarado como um ente abstrato, pois as

Page 3: Capítulo 3

3

proposições desenvolvidas por Maquiavel - no que diz respeito aos meios para se

conquistar e conservar um Estado bem como aos fins a serem atingidos (grandeza,

glória, fama, liberdade etc.) - são as mesmas nas duas obras estudadas. Qualquer

consideração sobre o interesse imediato de Maquiavel em agradar ou bajular o duque

de Urbino para, com isso, conseguir retornar aos cargos dos quais fora destituído, não

tem relevância no estudo e na compreensão do alcance das teses desenvolvidas em O

Príncipe.

O momento da fundação do Estado é particularmente revelador dessa

equivalência das proposições em ambas as obras, pois o ato de fundação, segundo

Maquiavel, é sempre um ato solitário, um ato de um só homem, seja ele fundador de

um principado ou de uma república. Mas o momento da fundação é apenas uma

pequena fração do tempo de existência do novo Estado. Em seguida, no caso do

principado, deve o príncipe saber conduzir as coisas e possuir a virtù necessária para

tornar sua obra grandiosa, ao passo que, nas repúblicas, cabe ao corpo político a tarefa

de edificar o Estado nascente e, em ambos os casos, após a fundação surgem as

tarefas da conservação. O secretário florentino diz o seguinte:

É por assim dizer uma regra geral a de que as repúblicas e os reinos que não receberam as suas leis de um único legislador, ao serem fundados ou durante alguma reforma fundamental que se tenha feito, não possam ser bem organizados. É necessário que um único homem imprima a forma e o espírito do qual depende a organização do Estado. (MAQUIAVEL, 2000a, p. 49)

Para Maquiavel, os problemas relativos à criação de novos principados

não diferentes daqueles surgidos na criação de novas repúblicas. Nesse ponto,

Maquiavel afasta-se da tradição humanista, pois ele busca demonstrar que as

dificuldades e as regras indispensáveis na fundação de uma república ou de um

principado têm um caráter universal, ao passo que a tradição humanista afirma o

caráter singular e original da fundação de Roma, Florença e Veneza.

Assim, o que parecia ser uma contradição insuperável entre O Príncipe e

os Discursos encontra solução plausível no confronto dessas obras. A construção de

uma doutrina política que pretende afirmar postulados universais supera as

contradições existentes nas duas obras, por não serem contradições essenciais e, por

isso, não comprometerem a unidade do pensamento de Maquiavel.

Page 4: Capítulo 3

4

REFERÊNCIAS

BERLIN, Isaiah. Prefácio: A originalidade de Maquiavel. Tradução de Bárbara

Heliodora. In: MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier. 3. ed. São

Paulo: Ediouro, 2004. 286 p.

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991. 229 p.

BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 3. ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 311 p.

BURCKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália. Tradução de Vera Lúcia

de Oliveira Sarmento e Fernando de Azevedo Corrêa. Brasília: Ed. Universidade de

Brasília, 1991. 347 p.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed.

Coimbra: Almedina, 1997, 1461 p.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia.1. ed. São Paulo: Ática, 2002. 229 p.

MACHIAVELLI, Niccolò. Il Príncipe. Biblioteca dei Classici Italiani, 1996. Disponível em:

<http://www.classicitaliani.it/index007.htm>. Acesso em: 15 mar. 2005.

_________. Discorsi sopra la prima deca di Tito Lívio. Biblioteca dei Classici Italiani,

1998. Disponível em: <http://www.classicitaliani.it/index054.htm >. Acesso em: 19 jul.

2005.

_________. Istorie Fiorentini. Biblioteca IntraText, 2002. Disponível em:

<www.intratext.com/IXT/ITA1109/_IDX009.HTM>. Acesso em: 20 jul. 2005.

_________. Dell’art della guerra. Biblioteca dei Classici Italiani, 1998. Disponível em:

<http://www.classicitaliani.it/index053.htm>. Acesso em: 21 jul. 2005.

Page 5: Capítulo 3

5

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. 2. ed. São

Paulo: Martins Fontes, 1996. 182 p.

_________. O Príncipe e dez cartas. Organização, tradução e apresentação de Sérgio

Bath. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998a. 102 p.

_________. História de Florença. Tradução, apresentação e notas de Nelson

Canabarro. 2. ed. São Paulo: Musa, 1998b. 431 p.

_________. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução de Sérgio

Bath. 4. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000a. 436 p.

_________. O Príncipe e escritos políticos. Tradução de Olívia Bauduh. São Paulo:

Nova Cultural, 2000b. 287 p.

_________. A Mandrágora. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,

2003. 131 p.

_________. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier. 3. ed. São Paulo: Ediouro, 2004.

286 p.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. Tradução de Maria Ermantina Galvão Gomes

Pereira. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 392 p.

RIBEIRO, Renato Janine. Sociedade contra o social: o alto custo da vida pública

no Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2000. 233 p.

_________. Um pensador da ética. Cult, São Paulo, n. 77, dez. 2004. Disponível em:

<http://www.renatojanine.pro.br/FiloPol/pensador.html>. Acesso em: 19 jul. 2005).

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de

Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia das Letras, 1996. 724 p.

Page 6: Capítulo 3

6

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Tradução de João Dell’Anna. 24. ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003. 302 p.