Carboidratos - CIÊNCIA HOJE • vol. 39 • nº 233

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CARBOIDRATOSO acar que as pessoas pem no caf, as fibras de uma folha de papel e o principal constituinte da carapaa de um besouro so substncias que pertencem ao mesmo grupo: os carboidratos. Sabe-se, h muito tempo, que essas substncias atuam como reservas de energia do organismo, mas estudos recentes revelam que elas tm outras e importantes funes biolgicas. Esses resultados indicam que muitos carboidratos podem ter aplicao na medicina. Substncias desse grupo extradas de ourios-do-mar, por exemplo, apresentam propriedades que as apontam como candidatos a substitutos da heparina, um dos compostos naturais mais utilizados hoje como medicamentos em todo o mundo.

Vitor Hugo Pomin e Paulo Antnio de Souza Mouro Laboratrio de Tecido Conjuntivo, Hospital Universitrio Clementino Fraga Filho, e Instituto de Bioqumica Mdica, Universidade Federal do Rio de Janeiro

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De adoantes a medicamentos

Os carboidratos so as macromolculas mais abundantes na natureza. Suas propriedades j eram estudadas pelos alquimistas, no sculo 12. Durante muito tempo acreditou-se que essas molculas tinham funo apenas energtica no organismo humano. A glicose, por exemplo, o principal carboidrato utilizado nas clulas como fonte de energia. O avano do estudo desses compostos, porm, permitiu descobrir outros eventos biolgicos relacionados aos carboidratos, como o reconhecimento e a sinalizao celular, e tornou possvel entender os mecanismos moleculares envolvidos em algumas doenas causadas por deficincia ou excesso dessas molculas. O avano cientfico permitiu conhecer de modo mais detalhado as propriedades fsico-qumicas dos carboidratos, resultando na explorao dessas caractersticas em diversos processos industriais, como nas reas alimentar e farmacutica. Um dos carboidratos com maior utilizao mdica a heparina, composto de estrutura complexa, com ao anticoagulante e antitrombtica (reduz a formao

de cogulos fixos trombos no interior dos vasos sangneos), obtido de tecidos animais, onde ocorre em baixa concentrao. A necessidade de maior produo de medicamentos desse tipo, devido ao aumento da incidncia de doenas cardiovasculares, e os efeitos colaterais associados heparina vm aumentando, nos ltimos tempos, o interesse pela busca de substitutos para esse composto. Recentemente, no Laboratrio de Tecido Conjuntivo, do Instituto de Bioqumica Mdica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, extramos de ourios-do-mar e de algas marinhas novos compostos, conhecidos como fucanas sulfatadas e galactanas sulfatadas, com propriedades semelhantes s da heparina. Experimentos mostraram que tais compostos agem como anticoagulantes e antitrombticos em camundongos, ratos e coelhos, embora no tenham, nos organismos de origem, funes biolgicas relacionadas coagulao. Com isso, abrem perspectivas promissoras para o desenvolvimento de substitutos da heparina.dezembro de 2006 CINCIA HOJE 25

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Um grupo distinto de molculasOs carboidratos, tambm conhecidos como glicdios ou acares, so molculas constituintes dos seres vivos, assim como protenas, lipdios e cidos nuclicos (figura 1). A combinao das diferentes funes bioqumicas de cada uma dessas molculas permite a integridade da clula e de todos os processos metablicos, fisiolgicos e genticos dos organismos vivos. Antigamente, acreditava-se que os carboidratos estavam envolvidos apenas com funes estruturais e energticas. Isso decorria da dificuldade tcnica no estudo qumico e biolgico desses compostos. A partir da dcada de 1970, o surgimento de tcnicas avanadas de cromatografia, eletroforese e espectrometria permitiu ampliar a compreenso das funes dos carboidratos. Hoje existe um novo ramo da cincia a glicobiologia voltado apenas para o estudo desses compostos. Sabe-se agora que eles participam da sinalizao entre clulas e da interao entre outras molculas, aes biolgicas essenciais para a vida. Alm disso, sua estrutura qumica se revelou mais varivel e diversificada que a das protenas e dos cidos nuclicos. Os primrdios do estudo de carboidratos esto ligados ao seu uso como agentes adoantes (mel)

ou no preparo do vinho a partir da uva. Nos escritos dos alquimistas mouros, no sculo 12, h referncias ao acar da uva, conhecido hoje como glicose. Os relatos iniciais sobre acares na histria vm dos rabes e persas. Na Europa, o primeiro agente adoante foi sem dvida o mel, cuja composio inclui frutose, glicose, gua, vitaminas e muitas outras substncias. H indcios de que Alexandre, o Grande o imperador Alexandre III da Macednia (356-323 a.C.) introduziu na Europa o acar obtido da cana-de-acar, conhecido hoje como sacarose (e o primeiro acar a ser cristalizado). A dificuldade do cultivo da cana-de-acar no clima europeu levou ao uso, como alternativa, do acar obtido da beterraba (glicose), cristalizado em 1747 pelo farmacutico alemo Andreas Marggraf (1709-1782). A histria dos carboidratos est associada a seu efeito adoante, mas hoje sabemos que a maioria desses compostos no apresenta essa propriedade. A anlise da glicose revelou sua frmula qumica bsica CH2O, que apresenta a proporo de um tomo de carbono para uma molcula de gua. Da vem o nome carboidrato (ou hidrato de carbono). Tal proporo mantm-se em todos os compostos desse grupo. Os mais simples, chamados de monossacardeos, podem ter de trs a sete tomos de carbono, e os mais conhecidos glicose, frutose e galactose tm seis. A frmula desses trs acares a mesma, C6H12O6, mas eles diferem no arranjo dos tomos de carbono, hidrognio e oxignio em suas molculas. Os monossacardeos, principalmente as hexoses, podem se unir em cadeia, formando desde dissacardeos (com duas unidades, como a sacarose, que une uma frutose e uma glicose) at polissacardeos (com grande nmero de unidades, como o amido, que tem cerca de 1.400 molculas de glicose, e a celulose, formada por entre 10 mil e 15 mil molculas de glicose). Embora muitos polissacardeos sejam formados pela mesma unidade

Figura 1. Estruturas representativas de algumas macromolculas biolgicas: em A, cido desoxirribonuclico, ou DNA (as fitas laterais representam os carboidratos ligados a grupos fosfatos e as hastes do interior, em azul, vermelho e branco, so as bases nitrogenadas que formam o cdigo gentico); em B, albumina, protena mais abundante do plasma, com 585 aminocidos e rica em estruturas espirais conhecidas como hlices (cada cor representa uma regio da protena); em C, micela, uma estrutura formada por vrias molculas de lipdio em soluo aquosa (as linhas verdes representam a cauda hidrofbica e as esferas azuis a cabea hidroflica); em D, a glicose, principal monossacardeo da natureza, formada por tomos de hidrognio (em cinza), oxignio (em vermelho) e carbono (em verde)26 CINCIA HOJE vol. 39 n 233

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(glicose, no caso do amido e da celulose), as diferenas em suas estruturas, como presena ou no de ramificaes e variedade nas ligaes entre as unidades, conferem a eles propriedades fsico-qumicas muito diversas. Outro polissacardeo importante a quitina, que constitui o exoesqueleto a carapaa dos artrpodes (insetos e crustceos). A estrutura molecular da celulose e da quitina impede que sejam digeridos pelas enzimas do nosso trato gastrintestinal. A celulose, presente na madeira, o composto orgnico mais abundante no planeta. Como o filo dos artrpodes tem o maior nmero de espcies e indivduos na natureza, a quitina outro polissacardeo abundante. Alm disso, os cidos nuclicos (DNA e RNA), molculas responsveis pela hereditariedade e encontradas em todos os seres vivos, tm acares (ribose e desoxirribose) em suas estruturas. Os carboidratos, portanto, so os compostos biolgicos predominantes na natureza (figura 2).

GRUPO KEYSTONE

De combustveis a reguladoresOs carboidratos so os combustveis da vida. Eles armazenam a energia nos seres vivos, na forma de amido e glicognio (outro polissacardeo), e a liberam para as reaes metablicas quando so degradados (em especial a glicose). Atuam ainda como doadores de carbono para a sntese de outros constituintes das clulas. So os principais produtos da fotossntese, processo em que a energia solar transformada em energia qumica pelas plantas e depois transferida, atravs da cadeia alimentar, para os animais. Estima-se que sejam formados mais de 100 bilhes de toneladas de carboidratos na Terra, a cada ano, pela fotossntese nesse processo, as plantas captam a luz solar e usam sua energia para promover reaes, envolvendo molculas de gs carbnico (CO2) e de gua (H2O), que produzem glicose, armazenada depois como amido nos tecidos vegetais. Entretanto, os carboidratos no tm apenas funo energtica. Esto presentes tambm na superfcie externa da membrana das clulas. Nesse caso, podem ser glicoprotenas (quando ligados a uma protena), glicolipdios (se unidos a um lipdio) ou proteoglicanos (quando esto na forma de cadeias de glicosaminoglicanos um tipo de polissacardeo unidas a uma protena). Essas formas conjugadas presentes nas membranas atuam como receptores e sinalizadores, interagindo com molculas e outras clulas. A remoo de hemcias envelhecidas do sangue foi um dos primeiros eventos biolgicos estudados que revelou a participao da estrutura dos carboidratos (em glicoprotenas) em um processo de sinalizao. Hemcias jovens tm, em sua superfcie, glicoprotenas cuja extremidade rica em cido silico. Quando tais clulas envelhecem, suas glicoprotenas perdem esse cido e passam a expressar, em sua extremidade, a galactose. Esse monossacardeo reconhecido por receptores do fgado, que ento capturam e removem da circulao as hemcias velhas. Os grupos sangneos A, B, O e AB so outro exemplo tpico de um sistema de sinalizao controlado pela estrutura de carboidratos em glicoprotenas. Os grupos A e B diferem em apenas um tipo de monossacardeo nos glicolipdios ou glicoprotenas das hemcias. No A est presente a N-acetilgalactosamina (uma galactose ligada a grupos qumicos amino e acetil) e o B tem a galactose a diferena entre esses dois carboidratos est em apenas alguns tomos, mas isso pode levar a um resultado fatal, se o indivduo receber o tipo sangneo incompatvel em uma transfuso. Os carboidratos encontrados nesses compostos mistos tambm funcionam como receptores na membrana celular. A ao de diversas toxinas deFigura 2. A celulose, principal componente da madeira, e a quitina, que forma a carapaa externa dos artrpodes (como besouros e outros insetos, aracndeos e crustceos), so os polissacardeos mais abundantes na natureza

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plantas e bactrias (da clera, da difteria, do ttano e do botulismo, entre outras) depende da interao com gangliosdios (glicolipdios cidos) especficos de suas clulas-alvo. Por isso, estudos nessa rea pretendem projetar agentes teraputicos capazes de inibir essa interao, evitando os efeitos nocivos das toxinas. Em 2005, o glicocientista Lior Horonchik e seus colaboradores, do Departamento de Biologia Molecular da Escola de Medicina de Jerusalm (em Israel), mostraram que a degenerao dos neurnios causada por infeco pelo pron (protena responsvel pelo chamado mal da vaca louca) depende da presena, na superfcie das clulas nervosas, de receptores (proteoglicanos) que contm glicosaminoglicanos. O pron precisa interagir com esses polissacardeos para entrar no neurnio isso significa que o papel deles no reconhecimento celular fundamental para o desenvolvimento dessa infeco. Algumas molculas reguladoras da proliferao de tipos celulares como o fator de crescimento para fibroblastos (FGF) e o fator de transformao do crescimento b (TGF-b) tambm atuam interagindo com os carboidratos dos proteoglicanos. Essas informaes permitem que os glicocientistas desenvolvam molculas com o objetivo de regular esses processos biolgicos.

Doenas relacionadasO fato de que muitas doenas, genticas ou adquiridas, decorrem de defeitos no metabolismo de carboidratos outro forte estmulo para o estudo desses compostos. A galactosemia, por exemplo, uma doena hereditria rara, caracterizada pela deficincia em enzimas que processam a galactose. Nos portadores, esse carboidrato, normalmente convertido em glicose, acumulado na forma de galactose-fosfato, o que leva a retardo mental severo e, com freqncia, morte. Recm-nascidos e crianas com galactosemia no podem ingerir substncias com galactose, em particular o leite (a lactose, presente no leite, um dissacardeo formado por glicose e galactose). J a intolerncia lactose, tambm causada por deficincia enzimtica, pode ter trs origens: defeito gentico raro na capacidade de sintetizar a lactase intestinal, reduo da produo da enzima devido a doenas intestinais ou deficincia adquirida com o avano da idade. Tanto na galactosemia quanto na intolerncia lactose, essencial uma dieta livre de lactose. Outros exemplos de doenas ligadas a desordens no metabolismo dos carboidratos so as mucopolissacaridoses, como as sndromes

LESO VASCULAR

Heparina Inibidores plasmticos

Co-fator II da heparina Fatores intermedirios

Antitrombina

Fator X ativado

Protrombina (Fator II)

Trombina (Fator II ativado)

Fatores intermedirios

Fibrinognio

Polmero de fibrina

COGULO DE FIBRINA

Figura 3. Esquema simplificado da coagulao sangnea. Aps a leso vascular, so ativadas enzimas (fatores plasmticos) que iniciam a cascata de coagulao, at a ativao do fator X e do fator II (protrombina), responsveis pela ativao da trombina, enzima que induzir a transformao de fibrinognio em fibrina (protena filamentosa que forma os cogulos, interrompendo a perda de sangue). O controle da ao da trombina essencial para regular a cascata, pois ela participa das etapas finais de formao do cogulo e tambm refora o processo ativando os fatores intermedirios envolvidos. O co-fator II da heparina e a antitrombina inibem a ao da trombina e tm sua atuao acelerada pela heparina

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de Hurler e de Hunter, que levam a retardo mental e morte prematura. A doena mais conhecida relacionada aos carboidratos o diabetes, decorrente de fatores hereditrios e ambientais, que levam a uma deficincia na produo ou a uma incapacidade de ao da insulina (hormnio cuja funo principal controlar a entrada de glicose nas clulas). Nos portadores, a quantidade de glicose no sangue aumenta, comprometendo vrios rgos e os sistemas renal, nervoso e circulatrio. A doena pode ser regulada pelo consumo controlado de carboidratos e, em casos mais severos, pela administrao de insulina. Alm do diabetes, uma dieta exagerada em carboidratos pode acarretar outros problemas, como obesidade, doenas cardiovasculares, tromboses e avano da aterosclerose (depsito de substncias nas paredes dos vasos sangneos, obstruindo a circulao). O excesso na ingesto desses compostos tambm intensifica a sntese e o armazenamento de gordura, alm de desestimular os receptores de insulina nas clulas, gerando a forma mais grave do diabetes. Esse quadro piora com um estilo de vida sedentrio, que reduz a metabolizao dos glicdios. Em contrapartida, dietas com poucos carboidratos tambm podem prejudicar a sade, j que eles so a fonte principal de energia para as clulas.

de glicose e frutose) menos cristalizvel, mas muito usado na fabricao de balas e biscoitos. A quitosana, um polissacardeo derivado da quitina, tem sido utilizada no tratamento da gua (para absorver as gorduras), na alimentao e na sade. Por sua atuao na reduo da gordura e do colesterol, a quitosana pode ajudar no combate obesidade, e estudos farmacolgicos recentes comprovaram que ela apresenta efeitos antimicrobianos e antioxidantes. Outro exemplo de polissacardeo usado na indstria farmacutica o condroitim-sulfato, um tipo de glicosaminoglicano. Os colrios oftalmolgicos, em sua maioria, so solues de condroitim-sulfato, j que esse composto o constituinte predominante da matriz extracelular do globo ocular e tem grande afinidade por gua, o que permite melhor lubrificao. Tambm vem sendo utilizado na preveno e tratamento da osteoartrose, talvez porque seja abundante em proteoglicanos do tecido cartilaginoso.

Benefcios e riscos da heparinaOs avanos no estudo das funes dos carboidratos ajudaram a entender doenas associadas a essas molculas, a conhecer a ao farmacolgica de alguns polissacardeos e a desenvolver novos compostos desse tipo com ao teraputica. Um bom exemplo a heparina, um glicosaminoglicano com atuao anticoagulante e antitrombtica, hoje o segundo composto natural mais usado na medicina, perdendo apenas para a insulina. Sua utilizao freqente por causa da incidncia de doenas cardiovasculares. Estas, segundo a Organizao Mundial de Sade, so responsveis por cerca de 30% das mortes em todo o mundo (mais de 16,5 milhes de pessoas em 2004). No Brasil, cerca de 70% das mortes esto associadas a essas doenas, ndice similar ao dos pases desenvolvidos. A heparina tem uma potente atividade anticoagulante porque amplifica a ao de dois compostos presentes no plasma, antitrombina e co-fator II da heparina, capazes de inibir a ao da trombina (enzima que promove a coagulao) e do fator X ativado (protena que acelera a formao da trombina) (figura 3). A heparina interage simultaneamente com esses compostos e com a trombina ou o fator X ativado. Essa interao ocorre principalmente entre as cargas negativas da heparina e as regies positivas dos inibidores plasmticos e da trombina. A formao desses complexos inibe a ao da tromdezembro de 2006 CINCIA HOJE 29

Uso industrial dos carboidratosAlm da importncia biolgica dos carboidratos, esses compostos so matrias-primas para indstrias importantes, como as de madeira, papel, fibras txteis, produtos farmacuticos e alimentcios. A celulose o principal carboidrato industrial, com um consumo mundial estimado em quase 1 bilho de toneladas por ano. Alguns polissacardeos, como gar, pectinas e carragenanas, extrados de algas marinhas, so utilizados graas a suas propriedades gelatinosas em cosmticos, remdios e alimentos. A carragenana empregada para revestir cpsulas (drgeas) de medicamentos, para que o frmaco seja liberado apenas no intestino, aumentando a sua absoro. O gar serve ainda para a cultura de microorganismos, em laboratrios. Tanto o gar como a carragenana so tambm usados, como espessantes, na produo de sorvetes. A sacarose (extrada da cana-de-acar) o principal adoante empregado na culinria e na indstria de doces. O acar invertido (obtido pela quebra da sacarose, que resulta em uma mistura

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bina, interrompendo o processo de coagulao do sangue. O uso clnico desse glicosaminoglicano, no entanto, apresenta efeitos colaterais, como reduo da quantidade de plaquetas (trombocitopenia) e propenso a hemorragias. Alm disso, a dose necessria para obter o resultado adequado varia de paciente para paciente e a heparina precisa ser extrada de tecidos de mamferos (como intestino de porco e pulmo bovino), onde ocorre em baixa concentrao e ainda apresenta risco de contaminao por vrus e prons. Os efeitos indesejados desse composto, associados ao aumento da incidncia de doenas tromboemblicas no mundo, motivam a pesquisa de novos agentes anticoagulantes e antitrombticos.

Esperana nos ourios-do-marMuitos compostos tm sido testados, em todo o mundo, em busca de novas drogas que evitem ou combatam a trombose. Em nosso laboratrio, substncias extradas de ourios-do-mar e de algumas espcies de algas marinhas revelaram-se fontes promissoras de molculas anticoagulantes e antitrombticas. Nos ourios-do-mar, os carboidratos que estudamos esto situados na superfcie dos vulos e participam do processo de fertilizao. Quando o espermatozide desses animais entra em contato com o gel que recobre os vulos, polissacardeos presentes nesse gel induzem, no espermatozide, a chamada reao acrossmica. Nessa reao so libera-

das enzimas que dissolvem o gel, facilitando a penetrao do espermatozide, e uma protena deste, a actina, polimerizada, formando filamentos que ajudam a expor outra protena, a bindina, em sua superfcie. A bindina liga-se ao seu receptor na superfcie do vulo, desencadeando a fuso das membranas dos dois gametas, a liberao do material gentico do espermatozide dentro do vulo e a fuso dos dois ncleos, formando o zigoto, que dar origem ao embrio. Dois mecanismos diferentes so fundamentais para que gametas da mesma espcie de ourio-domar se reconheam (figura 4). Um baseado na especificidade da protena bindina (reconhecimento com base na bindina), e o outro depende da induo da reao acrossmica pelo polissacardeo que recobre o gel do vulo (reconhecimento com base no carboidrato). Se a reao acrossmica no induzida, a bindina no exposta e, portanto, no h fertilizao. Esse ltimo mecanismo foi descrito em nosso laboratrio, e demonstramos principalmente que cada espcie de ourio-do-mar tem um polissacardeo de estrutura particular recobrindo seu vulo. As anlises desses polissacardeos revelaram que so polmeros constitudos exclusivamente por monossacardeos de fucose ou galactose. Esses compostos tm ainda, ligados estrutura bsica de carboidrato (CH2O), grupamentos sulfatos idnticos aos encontrados nos glicosaminoglicanos, que conferem carga negativa ao polmero. Por isso, so conhecidos como fucanas sulfatadas e galactanas sulfatadas. Outra observao curiosa que esses compostos exibem grande variedade estrutural, em funo do tipo de ligao entre os monossacardeos e do padro de sulfatao. O reconhecimento de molculas especficas de cada espcie de ourio-do-mar, durante a fertilizao, tem grande importncia biolgica, pois vrias espcies podem conviver no mesmo ambiente e seus gametas so liberados na gua do mar, onde ocorre a fertilizao. Esse reconhecimento, portanto, impede a formao de hbridos.

Figura 4. Mecanismos de reconhecimento entre espermatozide e vulo em ourios-do-mar. Em A, reconhecimento baseado na estrutura, distinta em cada espcie, da protena bindina na reao acrossmica, ocorre a dissoluo do envoltrio gelatinoso do vulo e a actina (em laranja) polimerizada no espermatozide. Aps esses eventos, a bindina (em verde) exposta, podendo ligar-se ao receptor de membrana (em vermelho) do vulo da mesma espcie. Em B, reconhecimento baseado na estrutura, distinta em cada espcie, do carboidrato para que a reao acrossmica ocorra, o espermatozide deve ser reconhecido pelos polissacardeos sulfatados presentes no envoltrio gelatinoso (em branco) do vulo da mesma espcie30 C I N C I A H O J E v o l . 3 9 n 2 3 3

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Figura 5. Representao molecular da ao anticoagulante dos polissacardeos sulfatados. A trombina (em azul) inibida pela ao da antitrombina (em verde) e do co-fator II da heparina (em laranja). Em ambos os casos, o polissacardeo sulfatado (em cinza) aproxima o inibidor e a trombina, atravs da interao de suas cargas negativas com as cargas positivas dessas molculas (na trombina, a interao ocorre no stio denominado EXO II). Em seguida, o grupo hidroxila (-OH) do aminocido serina (S), presente na trombina, liga-se a aminocidos situados na extremidade C dos inibidores a arginina (R), na antitrombina, e a lisina (L), no co-fator II de heparina. No entanto, o polissacardeo sulfatado altera o mecanismo anticoagulante do co-fator II da heparina, induzindo nesse inibidor uma modificao estrutural que permite a interao de sua extremidade N com o stio EXO I da trombina

Nossos estudos com fucanas e galactanas sulfatadas, de ourios-do-mar e de algas marinhas, demonstraram que sua ao anticoagulante similar da heparina elas tambm amplificam a inibio da antitrombina e do co-fator II da heparina sobre a trombina. Ao contrrio da heparina, obtida de mamfero, essas fucanas e galactanas (sulfatadas) apresentam menores riscos de contaminao por partculas virais e prons nocivos ao homem, j que so isoladas de organismos marinhos. A estrutura qumica dos polissacardeos sulfatados de ourios-do-mar, como as anlises revelaram, mais simples que a dos compostos obtidos de algas marinhas e que a da heparina. Isso permitiu estabelecer uma relao entre as estruturas qumicas das fucanas sulfatadas e galactanas sulfatadas de invertebrados marinhos e sua ao anticoagulante (figura 5). Os testes desses compostos em diferentes modelos de trombose em animais experimentais mostraram uma potente atividade preventiva contra a trombose, tanto venosa quanto arterial. Portanto, esses novos polissacardeos sulfatados podem ajudar no desenho estrutural de novas drogas com aes especficas sobre cada tipo de trombose e com poucos efeitos adversos. Resultados recentes indicaram outras aes te-

raputicas anticncer, antiviral e antiinflamatria das fucanas sulfatadas de organismos marinhos. No entanto, ainda no foram elucidados os mecanismos de ao desses polissacardeos nessas outras aes biolgicas, assim como a influncia de suas caractersticas estruturais.SUGESTES PARA LEITURA

A contribuio da glicobiologiaEm sntese, o estudo dos carboidratos e glicoconjugados vasto dentro da biocincia. Inmeras funes podem ser desempenhadas por essas macromolculas, em nvel molecular, celular, tecidual ou fisiolgico e at na produo industrial. Sem dvida, as descobertas recentes com o estudo de carboidratos contriburam para a compreenso de inmeros eventos biolgicos e para a obteno de novos compostos com aes teraputicas em diversas patologias. Assim como as demais reas da pesquisa bioqumica, a glicobiologia ainda pode colaborar muito para ajudar a desvendar os processos biolgicos da natureza.

LEHNINGER, A. L.; NELSON, D. & COX, M. M. Princpios de bioqumica. So Paulo, Sarvier, 2002. MOURO, P. A. S. Use of sulfated fucans as anticoagulant and antithrombotic agents: future perspectives, in Current Pharmaceutical Design, v. 10 (9), p. 967, 2004. VOET, D.; VOET, J. G. & PRATT, C. Fundamentos de bioqumica. Porto Alegre, Artmed, 2000.

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