Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    Contos de AprendizCarlos Drummond de Andrade

    Nas histrias que ele nos contava, quando meninos, o que meprendia a ateno. a ponto defascinar-me, no era

    o enredo, o desfecho, a moralidade; e sim um aspecto particularda narrativa, a resposta de umapersonagem, o

    mistrio de um incidente, a corde um chapu ...

    A SALVAO DA ALMA

    BRIGA de irmos... Ns ramos cinco e brigvamos muito, recordou Augusto, olhos perdidos num ponto

    X, quase sorrindo. Isto no quer dizer nos detestssemos. Pelo contrrio. A gente gostava bastante uns dos outros

    e no podia viver na separao. Se um de ns ia para o colgio (era longe o colgio, a viagem se fazia a cavalo,

    dez lguas na estrada lamacenta, que o governo no conservava), os outros ficavam tristes uma semana. Depois

    esqueciam, mas a saudade do mano muitas vezes estragava o nosso banho no poo, irritava ainda mais o malogro

    da caa de passarinho: "Se Miguel estivesse aqui, garanto que voc no deixava o tiziu fugir", gritava dison.

    "Voc assustou ele falando alto ... Miguel te quebrava a cara." Miguel era o mais velho, e fora fazer o seu ginsio.

    No se sabe bem por que sua presena teria impedido a fuga do pssaro, nem ainda por que o tapa no rosto de

    Tito, com o tiziu j longnquo, teria remediado o acontecimento. Mas o fato que a figura de Miguel, evocada

    naquele instante, embalava nosso desapontamento e de certo modo participava dele, ajudando-nos a voltar para

    casa de mos vazias e a enfrentar o risinho malvolo dos Guimares: "O que que vocs pegaram hoje?" "Nada."

    Miguel era deste tamanho, impunha-se. Alm disso, sabia palavras difceis, inclusive xingamentos, que nos

    deixavam de boca aberta, ao explodirem na discusso, e que decorvamos para aplicar na primeira oportunidade,

    em nossas brigas particulares com os meninos da rua. Realmente, Miguel fazia muita falta, embora cada um de

    ns trouxesse na pele a marca de sua autoridade. E pensvamos com nsia no seu regresso, um pouco para gozar

    de....sua companhia, outro pouco para aprender nomes feios, e bastante para descontar os socos que ele nos dera,

    o miservel.

    Vocs, criados em cidade grande, no se espantem com esse jeito de nossa infncia do interior. Ah, no

    interior se briga muito. At mesmo no meu estado, smbolo de ordem e moderao, terra de bois pacficos e de

    polticos suaves e bem comportados ... H uma fora acumulada querendo expandir-se, uma energia que sobrou

    do tempo da luta com os emboabas, no sei ... Olhem: na minha terra damos grande apreo cultura intelectual.

    Mas confiamos pouco em seus efeitos. O delegado de polcia, um bacharel gordo e de bigodes fornidos, lia

    Spinoza, tomava a boa pinga de januria e no gostava de amolaes; se as amolaes apareciam, chamava o

    comandante do destacamento e mandava rachar a lenha. Com o pau cantando, ele voltava ao seu Spinoza. De

    resto, nas relaes civis, em meio semi-rural, o tapa, o murro, o pescoo e o cacete so recursos limpos de ...

    polmica. S o punhal e a garrucha so proibidos; mas, em casos extremos, lcito empreg-los. O povo no

    gosta de assassinos, embora inveje os valentes. Ai de quem apanha sem reagir, e isto ns sabamos de sobra,

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    porque papai o pregava ao almoo e ao jantar, ele que tinha uma vida agitada, no transporte de tropas para o

    Esprito Santo, negcio perigoso e de lucro incerto, por causa dos rios sem ponte, dos ladres de estrada, dos

    camaradas bbados, das febres, do crdito a doze meses, dos compradores que fincavam p no mundo e nunca

    mais davam as caras ... O velho nos contava mais de uma histria de noite dormida ao relento, em que ele e seu

    pessoal acordavam com os animais soltos no campo, aos relinchos, o fogo apagado, e vultos escuros remexendoos alforjes num canto ... Pois em nenhuma dessas ocasies precisou liquidar ningum, nem permitiu que o

    fizessem. Tudo acabava com os ladres amarrados e conduzidos vila mais prxima, s vezes com algumas

    costelas quebradas, mas que r diabo! o lombo carece sofrer um bocadinho. Por isso mesmo um dia ou outro ns

    nos surrvamos a frio, sem qualquer motivo, porque o lombo carece sofrer, e h um certo prazer em curar ferida.

    Assim crescamos ns cinco, e a vida no era m. Um apenas participava pouco das aventuras arriscadas,

    e era a meiga Ester, que mesmo assim figurava a mido nas brigas, ora como causadora, ora como anjo da paz. Na

    paz, Ester era nossa cliente; vendamos-lhe estampas de decalcomania, pastilhas de hortel e chocolate, caixas

    vazias de sabonete. Tinha um fraco pelas caixinhas, que eram utilizadas em laboriosas arrumaes de pentes,dedais, laos de fita, caramelos, conchas, roupas de boneca, bolas de gude, lpis de cor e outras maravilhas.

    Explorvamos sordidamente sua boa-f e, mais do que isso, sua facilidade em arranjar dinheiro com papai.

    Duzentos ris por uma caixinha de sabonete ingls era preo mais do que razovel, mas eu pedia quinhentos; e

    Ester, ignorando o valor das coisas, ou dando-lhes um valor especial, que nos escapava, estendia os quinhentos

    ris. s vezes eu praticava uma torpe manobra: sob um pretexto qualquer, confiscava o objeto vendido; eram

    lgrimas e queixas, e afinal entrvamos em acordo; eu restituiria o objeto, mediante um suplemento de trezentos

    ris ... Se Tito estivesse ali, a injusta combinao malograria. Porque Tito era contra a injustia. Discutiria

    comigo, o sangue me subiria cabea, e eu acabaria perdendo ... Eu perdia sempre.No tenho vergonha de confessar que perdia sempre, porque Tito era mais velho do que eu um ano, e

    tinha muito mais peito. Minha criao com leite esterilizados, meus resfriados contnuos, minha a inapetncia,

    tudo isso me condenava a um papel inferior nas lutas da famlia; mas tudo isso me fornecia tambm

    raiva suficiente para morder, unhar, cuspir, gritar, sempre que vergava a fora do brao ... Eu vivia em guerra com

    todos, precisamente porque era o mais raro, e no raro essa fraqueza triunfava por um expediente de audcia

    extrema, ou apenas porque o mais forte, cnscio de seu poder, abandonara o campo ao desesperado. Se eupercebesse que era por esta ltima razo, ficaria profundamente humilhado; mas a cegueira da vitria no me

    permitia verific-lo.

    De todos, Tito era que mais me batia; desvantagem de ser caula ... ramos os mais prximos pela idade,

    e os outros dois, Miguel e dison, sentiam vergonha de "sujar as mos em mim". Tito dizia sentir tambm essa

    vergonha, mas era mentira dele. Ao menor pretexto, estvamos no cho, embolados. Direi em seu louvor que

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    nunca foi desleal. Combatia com aviso prvio, fazendo a necessria provocao e dando-me tempo suficiente para

    correr; mas eu no corria, e ele caa-me em cima. Por minha vez, eu gostava de provoc-lo tinha esperana de

    que, um dia, chegaria a venc-lo. Estudava seu estilo de luta, comparava - o com estilos, treinava, sozinho no

    quarto, diante do espelho, pedia a Miguel e a dison que me ensinassem a maneira de desvencilhar-me do

    adversrio deitado sobre mim no cho. Intil. Ele desmoralizava todas as tticas. Era mais duro, mais gil, maiscontrolado.

    Eu tinha nove anos e estava farto de apanhar. Nenhuma perspectiva de mudana, entretanto. Tito me

    defendia contra os assaltos dos meninos no grupo escolar, mas s vezes, depois desses choques, ao chegar em casa

    voltava-se contra mim, acusando-me de haver provocado barulho sem ter fora para sustent-lo. O orgulho dos

    Novais repontava nessa recriminao, porque um Novais no podia apanhar, e se no fosse ele, Tito, eu, Augusto

    Novais Jnior; apanharia em pblico, para gozo dos Teixeira, dos Andrada, dos Guimares e de outros cls rivais.

    Insubmisso, mas desesperanado, ia-me deixando crescer. Quando tivesse vinte anos, nossos traces seriam

    iguais, e eu derrubaria Tito, mas era longe, vinte anos. Criana tem pressa de viver, e no lhe prometam umacompensao no futuro, a necessidade urgente, o blsamo que venha j, amanh ser tarde demais ...

    Eu estava nessa melancolia quando Ester veio dizer que tinham chegado uns padres e que iam comear as

    "misses". A famlia sentara-se nos bancos da sala de jantar, luz do lampio. Papai lia jornal, mame cerzia

    meias.

    - Chegaram em boa hora, s assim eu consigo que esses hereges se confessem - comentou mame,

    placidamente.

    - Hmmm - resmungou papai, e continuou a ler as notcias do mundo.

    A idia de misses no era particularmente festiva, mas sempre importava em reunies no adro da igreja,leilo em beneficio do altar novo, muito foguete, liberdade de chegar tarde em casa, e outros prazeres. Era bom.

    Nenhum de ns se manifestou contra a idia de confisso. "Herege", na linguagem local, significava cristo

    displicente, de pouca reza e nenhuma prtica, fugindo aos deveres do culto e limitando-se a vagas promessas

    mentais de oferecer um tosto s almas, diante de algum aperto. Ns quatro ramos hereges declarados, e somente

    Ester mantinha o equilbrio entre sentimento e ao, amando Jesus e procurando segui-lo. Os outros iam missa

    por obrigao penosa, se a manh era clara e havia jogo de bola no campo da Fbrica. Renovamos sem fervor e

    bocejvamos diante dos apelos dominicais do padre. Com grande mgoa de mame, que considerava sagrada a

    pessoa do padre, e de ouro as palavras de sua boca.- Esses meninos no sabem uma palavra de catecismo. Louvado seja Deus! Quando crescerem, no sei o

    que ser deles. Quem no est bem com Deus tem mau fim.

    Papai resmungava, concordando. Mas nosso progresso em doutrina crist era mnimo.

    Novas notcias chegaram sobre os missionrios. Eram estrangeiros - de que pas mesmo, .ningum sabia,

    to atrapalhado o portugus que falavam -, muito vermelhos, e estavam dispostos a fazer uma boa colheita de

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    almas para Deus , no dizer da piedosa D. Antonina. E pregavam, pregavam. Todos os dias, e hora em hora, a

    partir das duas da tarde, um deles subia ao plpito e narrava os horrores do Inferno, os jardins do Paraso, a

    misria da alma em pecado mortal, a traio de Judas, a aflio dos ricos no juzo final, a doura de sofrer e ser

    humilhado, o perigo de casar somente no civil, a necessidade de contribuir para as obras pias, a loucura de lidar

    com maons e espritas... Ns escutvamos, pensando em outra coisa, com exceo Tito, absorto, de olhosbaixos.

    Enquanto um pregava, os outros padres ouviam em confisso. Veio primeiro a gente dos distritos, que

    morava longe e carecia ser despachada depressa. Depois as pessoas gradas do lugar, autoridades, comerciantes,

    suas famlias. Em seguida os operrios. E s no fim as crianas, que, j trabalhadas, ardiam no desejo de ajoelhar-

    se e contar suas faltas, to contagioso o exemplo das pessoas grandes, e porque, afinal, seria uma vergonha no

    ter pecados quando toda gente os tinha e vinha confi-los ao padre vermelho.

    Entramos os cinco, em fila, na sacristia escura. Mentiria se dissesse que no estvamos compenetrados - o

    tom era de respeito -, mas somente Ester se mostrava perfeitamente natural e apta para o misterioso colquio coma divindade. Por isso mesmo, fizramos questo de que ela fosse conosco, deixando de lado o grupo das meninas,

    para que de certo modo suprisse nossa insuficincia e desse ao cu garantia satisfatria de nossas almas to sujas.

    Um a um, murmuramos nossos erros e recebemos nossas penitncias. Os erros dos quatro homenzinhos

    eram comuns, e o preo do resgate no podia variar. Cinco padre-nossos e cinco ave-marias para cada um; e f,

    perseverana e humildade para evitar nova queda nos pecados de ira, gula, cobia e luxria, em que nos

    refocilvamos. Ester certamente apresentou carga mais leve de erros, pois s teve trs padre-nossos e trs ave-

    marias, e no lhe foi feita a recomendao subsidiria.Voltvamos para casa, quando Tito me puxou pelo brao, chamando-me a um canto. A tarde caa.

    - Vamos dar uma volta?

    - Pra qu?

    - toa. Amanh no tem aula. A gente pode andar um bocadinho.

    Sem motivo para recusar, concordei. Fomos andando. De uma s rua era feita nossa cidade, mas que

    variada! Essa rua tomava todas as direes, partia-se, recompunha-se; um pedao subia o morro, outro margeava

    o crrego. E havia trechos de estrada sem casas nem chafariz, havia hortas, ranchos, palmeiras fora d,1 linha, elas

    que so o prprio alinhamento, mil coisas que podiam interessar uma criana disposta a viver. Mas a confissoinfiltrara em ns seu leo espesso e triste, e um desejo de nos purificarmos, de atingirmos a bondade e a

    compreenso, nos tornava indiferentes matria cotidiana.

    Foi Tito quem rompeu o silncio.

    - Escuta uma coisa ... Estou com vontade de mudar de vida.

    - Eu tambm - secundei num abandono confiante.

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    - Acabar com certas coisas, sabe? Mudar mesmo de vida Olha: de hoje em diante no brigo mais com

    voc. Apesar de contrito, mostrei-me incrdulo.

    - Ora. Voc diz isso toa. Amanh voc implica outra vez comigo e me bate.

    - No bato mais no, pode acreditar. Juro por Deus.

    - Voc sabe que a gente no deve jurar, como isso?- Quando jura por bem, diferente. Estou jurando por bem.

    Voc no acredita?

    Seria feio no acreditar. Mas que garantia me dava ele de sua firmeza em cumprir o juramento? Calei-me.

    - Bem, se voc no acredita, pacincia. No fico zangado por isso. Mas voc vai ver. De hoje em diante a

    gente no briga mais. Est feito? Toque.

    Toquei. Paz em nossos coraes, paz na montanha onde a cidade era um sulco insignificante, e as cabras e

    as galinhas j dormiam. Ao aperto de mo, uma confiana absoluta nos propsitos pacifistas de Tito me invadiu, e

    vi minha frente um futuro de honra e lealdade. Mas Tito queria ir mais longe, marcar com um acontecimentoaquela mudana da alma.

    - Escuta uma coisa ... - (A voz engasgava-se, de emoo e falta de costume.) - Vou provar a voc que sou

    seu amigo e no quero mais abusar de minha fora. Diz uma coisa que eu possa fazer, mas uma coisa dificil, ruim

    mesmo, pra me humilhar diante de voc ... O que voc quiser eu fao. Juro que fao.

    - Tito, no estou te conhecendo hoje. Por que voc diz isso?

    -J disse a voc que quero mudar de vida ... viver bem com

    os irmos, ser um sujeito decente. Diz depressa uma coisa, quero mostrar que sou sincero, no estou

    enganando no. Voc quer me dar um tapa na cara?-No.

    - Quer me sujar a cara de barro?

    -No.

    - Quer me entornar uma bacia de gua suja na cabea?

    -No.

    - Quer rasgar minha coleo de Jlio Verne?

    -No.

    - Ento voc no quer se vingar de mim de jeito nenhum?, - No, Tito, de jeito nenhum. Eu acredito em voc e basta. E melhor assim.

    Mas Tito no se conformava. Como iniciar um novo rumo de vida sem expiar os erros antigos? Chegou a

    impacientar-se, embora de leve.

    - Tambm voc no ajuda, bolas!

    - Ajudo sim, ora essa. Mas eu tambm no quero humilhar voc.

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    Tito levantou a cabea, encarou-me:

    - Mas eu quero ser humilhado, t ouvindo?

    Trinta anos se passaram, e seu olhar e sua voz esto ainda intatos em mim, revelando a convico

    profunda e ardente, de que se fazem os santos, os mrtires polticos ...

    Ou seria ainda orgulho, orgulho de pisar o orgulho, que levava Tito a essa espantosa declarao?Compreendi subitamente que era preciso atend-lo, contribuindo para a purificao de sua alma. E

    embora eu, tambm ungido de suave arrependimento, no quisesse praticar nenhum ato mau, decidi-me a

    humilhar meu irmo. Chegvamos parte inclinada da rua, de subida difcil, agravada pelo mau calamento.

    - Bem, se voc quer mesmo isso ... Eu no pedi nada, voc sabe ... Ento vamos fazer uma coisa. Eu subo

    nas suas costas e voc me leva at em casa, como um animal. T certo?

    Ele no podia dizer que no. A idia de ser montado - e por mim - no era das mais aprazveis. Pensara

    em tapa no rosto, por ser a imagem costumeira entre ns, embora a mais cruel; mas servir de burro a algum, e ir

    de passo pela rua onde havia outros meninos, gente que vinha da igreja ... Era duro. Aceitou.Exigi mais - e nisto acho que no foi simplesmente para atend-lo, e sim por um comeo de pecaminosa

    deleitao que de cinqenta em cinqenta passos ele se detivesse, gritando:

    "Sou burro e quero capim! Sou burro e quero capim! Sou burro e quero capim!" Depois do que, a marcha

    recomearia, at chegarmos em casa.

    Tito ps-se de quatro, eu montei-o, segurando nos ombros, e l fomos rua acima, ele salvando a sua alma,

    e eu - sem querer - tirando a minha desforra. Ai, anos de humilhao e derrota, de gengivas sangrando e de braos

    roxos na poeira! J no me pesava no peito aquele joelho de chumbo, eplogo de nossas batalhas; nem escutava

    aquela boca implacvel, exigindo a confisso da derrota: "Diz que apanhou! Diz!" "Apanhei ... " Eu montava emmeu irmo como num burro manso, e era ele quem sujava as mos na terra de esterco, que mos? As patas que me

    levavam, na minha doce, gloriosa e pacfica reabilitao; e triunfando sem malcia e sem dio, eu cumpria um

    desgnio de Deus. Passando-lhe a mo no pescoo, eu o acariciava, ao meu bom, meu querido Tito ...

    Mas, pouco a pouco, a idia da facilidade desse triunfo comeou a aborrece-me. Antes de tudo, a posio

    do cavalheiro era cmoda, como havia suposto. Tito fazia o possvel para conduzir-me bem, mas os ps

    suplementares careciam de prtica. E a cada momento, seus longos cabelos lhe caam na testa, obrigando-o a

    afast-los. Ele andava, andava, j estava suando ...

    - Sou burro e quero capim! Sou burro e quero capim! Sou burro e quero capim!Gostei ouvir estas palavras, foi talvez a melhor sensao de tudo; mas a marcha, em si, no tinha as

    delcias imaginadas. E se eu estimulasse o animal? Talvez se ele apressasse a andadura mesmo que para isso

    fosse preciso levantar-se, e ento eu me agarraria mais ao pescoo, colocando-me s suas costas e enlaando-Ihe

    os rins com as pernas - sim, talvez assim fosse melhor ... mas eu no tinha esporas nem freios. Para estimular Tito

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    recorri a um golpe duplo de calcanhares; no calculei bem a intensidade do movimento, e fui atingir meu irmo na

    virilha.

    Ele soltou um berro fulgurante, que exprimia a dor acima de todas as boas intenes e de todas as virtudes

    do corao. Senti que a noite, com suas escassas estrelas, se virava sobre ns. Rolou no cho e eu rolei com ele.

    Formamos um bolo confuso e agitado, pernas, braos, cabelos, areia, roupas e pedras. Sempre to seguro noataque, Tito parecia cego de dor, pois nem me atingia cheio nem me dominava, e eu fugia dele como um peixe,

    sentindo a violncia de sua clera e a vergonha do meu abuso. Mas no escuro, na confuso e na raiva, seus dedos

    afinal prenderam minha carne e me castigaram, esquecidos de toda bem aventurana.

    - Toma, desgraado! Toma, cachorro! Toma! Era assim que voc queria ajudar a salvar minha alma?

    Toma, bandido!

    No pudemos comungar no dia seguinte.

    O sorvete

    Quando chegamos ao colgio, em 1916, a cidade teria apenas cinqenta mil habitantes, com uma

    confeitaria na rua principal, outra na avenida que cortava essa rua. Alguns cafs completavam o equipamento

    urbano em matria de casas pblicas de consumao e conversa, no falando no espantoso nmero de botequins,

    consolo de pobre. As ruas do centro eram ocupadas pelo comrcio de armarinho, ainda na forma tradicional do

    salto dividido em dois: fregueses de um lado, dono e caixeiros do outro; alfaiates, joalherias de uma s porta,

    agncias de loteria que eram ao mesmo tempo pontos de venda de jornais do Rio ostentavam cadeiras de

    engraxate. Um comrcio mido, para a clientela de funcionrios estaduais, estudantes, gente do interior que vinhavisitar a capital e com pouco se deslumbrava. O centro da aglomerao social, concentrando todos os prestgios,

    impondo-se pelas sedues que emanavam de cartazes coloridos, que nos pareciam rutilantes e gigantescos, e

    beneficiando-se noite (contavam-nos) com a irradiao dos focos luminosos dispostos em fieira na fachada, era

    o cinema. Para ele convergiam, nas matins de domingo, rapazes e moas de boa famlia, facilmente

    reconhecveis pelo apuro do vesturio como pela distino e superioridade naturais da atitude. A um simples olhar

    de meninos do interior, como ramos ns, identificava-se a substncia particular de que se teciam as suas vidas,

    roupas, hbitos, e, se no fosse muita imaginao, o seu prprio enchimento fsico. Tanto certo que o homem da

    cidade oferece admirao desarmada do morador da roa, que, entretanto a repele por instinto, a receia e ainveja, a expresso de um modelo ideal inatingvel, em que se somam todas as perfeies possveis, sntese que

    de refinamento produzido pela cultura, pelo asfalto, pela eletricidade, pelo Governo e por tantas outras entidades

    poderosas.

    Quanto ao aspecto no turno do cinema, abstenho -me referi-lo diretamente, porque o colgio no nos

    permitia sair noite, e s alguns anos depois pude fazer a experincia da sua freqentao, de certo com olhos j

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    infludos por uma penetrao maior de outras vises da cidade, e abolida em parte a virgindade spera das minhas

    sensaes de quase aldeo. Alunos internos, dispnhamos apenas dos domingo para os nossos passeios isentos da

    censura colegial, no espao de tempo que se confinava entre - a concluso da missa das oito e o toque de sineta

    para o estudo das seis da tarde. Abria-se pois nossa frente, se o nosso comportamento se houvesse mantido em

    nvel tolervel durante a semana, um dia de solou de chuva, e visitas tediosas a parentes ou de prazeresinsuspeitados, de bom ou mau emprego, mas inexoravelmente limitado na sua parte final: o atraso na volta

    constitua infrao punida com recluso no domingo seguinte, e apenas era to grave que no nos animvamos a

    enfrent-la. Ficava assim, no centro de nossa fuga- hebdomadria, o maravilhoso cinema, em sua sesso das duas

    horas da tarde, suas fitas americanas ainda destitudas de sofisticao, seus vendedores sibilantes de balas e de

    amendoim torrado, a hiptese algo desconcertante de um palco extra com bailarinas, tudo pela quantia assaz

    considervel de mil e cem ris. Considervel, dada a exigidade do nosso oramento infantil, que a munificncia

    paterna jamais ousaria transpor, vista do que expressamente regiam os estatutos: "Os senhores pais no devero

    de modo algum fornecer dinheiro aos educandos, salvo o destinado a pequenas despesas, o qual ficar sob aguarda do estabelecimento"; e esse dinheiro, a de ns ainda era menor do que nossas mesquinhas despesas.

    Eu tinha onze anos, Joel, treze, o que, alm do tamanho, lhe bastava para se atribuir definitiva autoridade

    sobre mim. Na realidade, Joel era meu comandante. J exercia o comando na cidade, minha onde crescramos

    amigos inseparveis; diante do espelho da "cidade grande", minha timidez xucra apoiava-se na capacidade de

    resolver, dirimir e providenciar, atributos que sempre me faleceram. Quando meu pai se decidira a internar-me

    naquele colgio distante, o pai de Joel considerou que devia dizer o mesmo com seu filho. O prazer que isso me

    causou no vinha somente de que eu teria a meu lado o amigo mais agradvel e com quem me entendia melhor;

    era ainda como se eu vagamente considerasse Joel um protetor, um guia cmodo, e pressentisse nele o escudocontra os perigos ainda nebulosos da vida no internato e na capital, e, porque nebulosos, maiores.

    Eis-nos pois, eu e Joel, num domingo de maro, nosso mofino dinheiro no bolso, cata de sensaes

    amveis cuja recordao nos servisse para povoar o terreno baldio da semana seguinte; por que, tanto quanto

    posso certificar-me do meu esprito infantil de trinta anos atrs, e do de meu companheiro, o que buscvamos era

    menos um prazer concreto a possibilidade de armazen-lo, de prend-lo numa espcie de vaso transparente onde

    se tornasse definitivamente objeto de contemplao e referncia; era em suma!.. como afinal para tanta gente de

    esprito infantil ou adulto, matria para recordao, que compensasse as horas de cio, desnimo. Ou trabalho,

    quando no simplesmente que se pudesse exibir a colegas menos afortunado porque passaram presos o domingo:"Eu fiz isto, e voc no; fui ao circo, e voc no; e at - vantagem dramtica - machuquei uma perna, e voc no!"

    Mas a prpria aventura exige um roteiro, ns o sabamos por intuio; e o nosso fora pacientemente

    concebido nas conversas de recreio e atravs de bilhetes silenciosos passados entre as carteiras, na sala de estudo.

    Em sntese, nosso domingo se comporia de: ida a p para a cidade, a fim de acumular recursos, e fazer um pouco

    de exerccio; passeio no parque, com inspeo dos bichos ainda no conhecidos e exame mais minucioso de um

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    gavio-de-penacho no suficientemente apreciado da primeira vez; almoo em casa de meu tio; jogos no quintal

    com os primos; matin de cinema; gulodices compradas a um doceiro de rua e comidas num banco de jardim;

    passeio pela cidade, talvez uma excurso de bonde ao subrbio; e volta. Esse programa no era suscetvel de

    variar muito nos domingos subseqentes, mas pareceu-nos de uma sublime originalidade, e enquanto batamos a

    p pela rua plantada de mangueiras, amos prelibando o gozo que sua execuo nos proporcionaria.Sim, nenhuma das operaes de que se compunha o programa parecia por si mesma extraordinria, mas,

    medida que se iam consumando, ficavam registradas em ns como outros tantos episdios memorveis, cujo

    esplendor atravessaria as horas mornas, projetando-se para alm da mediocridade de nossos destinos. No

    distinguamos bem os elementos da paisagem, nas ruas arborizadas que palmilhvamos, mas esses elementos se

    inseriam automaticamente em ns, e nos sentamos capazes de fornecer aos colegas uma descrio abundante de

    tudo quanto passara despercebido nossa viso imediata; visto de perto, o gavio-de-penacho no tinha o porte

    real que lhe atriburamos, mas, j recuado no espao e na percepo comum, recuperava a majestade; o almoo

    em casa de tio Lucas era talvez um bom almoo, mas, porque em estado de reminiscncia, enchia-se de pratos etemperos que nele no figuravam de fato; e o cinema ...

    A caminho do cinema, a dois passos dele, na rua principal, est a confeitaria, a cuja porta grato a gente

    deter-se, ante as formas caprichosas e coloridas que ali se dirigem simultaneamente a vrios sentidos. Certos

    bolos e cremes, antes de serem degustados pela boca vida, o so pelo nariz e pelos olhos, e, se no-lo permitissem,

    o seriam pelas mos, que amariam verificar a maciez, a doura e a delicadeza da pasta. nico sentido no

    beneficiado, o ouvido permaneceria alheio a essa fruio geral, se no chegassem at ele os rudos normais numa

    casa onde se comem, choque de loua no mrmore, de metais na loua, pequenos rumores familiares a que se

    ligam imemorialmente as sensaes do paladar, e que tanto contribuem para a composio desse extraordinrioprazer de comer.

    Estvamos absortos na contemplao ritual, misto de ateno a formas simblicas, e de sonho em torno de

    idias complexas que elas sugeriam - ali, diante daqueles pudins e daqueles roxos, amarelos, solferinos, verdes e

    rseos montculos de acar, gelia, ovo, frutas cristalizadas e invisvel manteiga, quando um objeto vulgar, mas

    inslito no lugar onde se achava, me captou o interesse. Encostado a uma das trs portas da confeitaria, do lado da

    calada, um quadro-negro propunha-nos os seguintes dizeres em giz branco:

    HOJE

    Delicioso sorvete de ABACAXIEspecialidade da casa HOJE!

    A inscrio emocionou-me intensamente, e dei conta a Joel de minha perturbao.

    - Voc est vendo?

    Aparentemente, Joel no se deixara invadir pelo sortilgio das palavras. Sua superioridade!

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    - "Delicioso sorvete de abacaxi ... " Nunca tomei disso.

    - Eu tambm no - respondeu o fortssimo Joel. - Deve ser porcaria.

    Eu sabia que Joel falava da boca para fora, e que a idia de sorvete, exposta de maneira to sbita, e to

    estranha a ele quanto a mim prprio, no lhe podia ser indiferente, e muito menos repugnante. Maliciosamente,

    procurava cativ-lo no interesse de uma profunda alterao de nosso programa. A saber: cancelaramos a sessode cinema, e com os fundos disponveis atacaramos o sorvete de abacaxi.

    Notei que outra coisa no desejava Joel, mas da psicologia do chefe, que muitas vezes prefere conceder

    por magnanimidade o que contava fazer de vontade prpria. Na realidade, o chefe no concede nunca, mas parece

    estar sempre se dobrando; e assim cultiva iluses teis. Meu desejo de trocar o cinema pelo sorvete era porm to

    evidente, que Joel receou talvez satisfazer o seu de um modo que parecesse capitulao real a um subordinado.

    Estas coisas imagino hoje, porque ento no achei sentido na firmeza com que ele comandou:

    - A gente j tinha resolvido ir ao cinema, agora o jeito ir. a sorvete fica para domingo que vem.

    Sem Joel, eu no me arriscaria aventura do sorvete. Entre duas privaes, a do sorvete e a de Joel,resignei-me quela. E a campainha da porta do cinema, como cigarra, zinia. Pois vamos!

    Mas, quem disse que o desenho animado, com Mutt e Jeff engatinhando as primeiras tentativas de fixao

    da personagem ideal, em preto e branco, lograva prender-nos? Quem disse que a comdia de Carlito ... ? A mais

    simples comparao de dois prazeres deteriora o que estamos desfrutando, e oferece o risco de corromper o

    segundo, se chegamos a atingi-lo, pela indisposio em que nos deixou a frustrao do primeiro. No escuro, eu

    procurava encontrar no rosto de Joel a tristeza do sorvete frustrado, e se tal sentimento no se manifestava de

    maneira irrecusvel, a verdade que pelo menos tivera suficiente poder para eliminar todo indcio de satisfao

    ante as proezas espetaculares que William Farnum desenvolvia na tela, salvando Louise Lovely - ou seria talvezoutro astro, outra estrela.

    Arrependimento da proibio imposta a si mesmo e a um amigo, insatisfao, esprito de aventura,

    volubilidade da alma humana, ou qualquer outro mvel no esclarecido, o certo Joel, catucando-me o brao,

    murmurou:

    - Vamos l, vamos?

    Eu sabia que "l" era a confeitaria, pois o sorvete de abacaxi entrara comigo no cinema, sentara-se na

    minha cadeira e embora o soubesse frio, queimava-me. Fomos confeitaria, templo misterioso onde se ocultava,

    na parte dos fundos, vedada por uma portinha de vidro opaco, a essncia imanente coisa ou palavra sorvete, eque meus pobres sentidos se aguavam para interpretar.

    O garom depositou cuidadosamente sobre a toalhinha alva dois copos cheios de gua, dois guardanapos

    de papel, com florezinhas plidas, e duas tacinhas de vidro, contendo, cada uma delas, meia esfera de uma

    substncia alva e brilhante. Crianas de cinco desprezaro minha narrativa; e j ouo um leitor maduro, que me

    interrompe: "Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histrica?" Leitor irritado, no

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    bem isso. Peo apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda h dois meninos do mais longe serto. Eles

    nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos os meninos de todos os pases, se

    travavam conhecimento com uma coisa de que s conhecessem antes a representao grfica ou oral, dela se

    aproximavam no raro atribuindo-lhe um valor mgico, s vezes divino, s vezes cruel, em desproporo com a

    realidade e mesmo fora dela; um valor independente da coisa e diretamente ligado a sugestes de som, cor, forma,calor, densidade, que as palavras despertam em nosso esprito malevel. Como posso reconstituir agora tudo o que

    ns criramos, para nosso prprio uso, em torno da palavra sorvete, representativa de uma espcie rara de

    refresco, que s pequenas. cidades no era dado conhecer; e cruzada bruscamente com a nossa velha e querida

    palavra abacaxi, ambas como que envoltas, por uma astcia do gerente da confeitaria, na seda fina e macia da

    palavra "delicioso"?

    A carga de simpatia e sensualidade com que me atirei - nos atiramos - s meias esferas trazia talvez em si

    o germe da decepo que logo nos assaltou. O sorvete era detestvel, de um frio doloroso, do qual se exclua toda

    lembrana de abacaxi, para s ficar a idia de uma coisa ao mesmo tempo ptrea e frgil, agressiva aos dentes, e,mais para alm deles, a uma regio ntima do ser em que est o ncleo da personalidade, sua mais profunda

    capacidade de gozar e sofrer. Era uma dor universal o que ele espalhava, e to rpida e difundida como se

    invadisse no mesmo segundo, por mil filamentos, toda a rede nervosa ... Lgrimas subiram-me aos olhos. No

    rosto de Joel, tambm o sofrimento se desenhava.

    Evidentemente, era impossvel continuar com aquilo, e tnhamos de resolver no espao de alguns

    instantes, perante o olhar talvez malicioso dos freqentadores, do garom, do caixa, o problema de liquidar com o

    sorvete sem ser por via de ingesto, ao lado de outro problema, oh, to mais penoso, o da transformao imediata

    do nosso lrico conceito de sorvete numa triste noo experimental, erma de toda satisfao fsica ou esttica ...Mas como fazer desaparecer um objeto de difcil transporte e conservao, num lugar pblico? Pergunta que os

    assassinos devem formular-se, fechados no quarto com o cadver; os mais sinistros e engenhosos expedientes tm

    malogrado. Em certo sentido, ns nos sabamos criminosos, porque, insisto, o homem do campo, a ss com as

    complicaes /da cidade, sempre dbil; ramos debilssimos. E nada mais triste do que reparar na tranqilidade

    esmagadora que os da cidade assistem nossa angstia insolvvel. "Por que pediu sorvete? Se no ia gostar?! E

    por que no gostou? admissvel que algum no goste de sorvete? Logo de abacaxi! Especialidade da casa!" O

    caixa sara do trono para dizer-me isso com a mo direita coando o queixo e o bigode ... Olhava-me com desdm

    e reprovao. No, no saiu nem disse nada. Mas eu ouvia dentro de mim suas palavras, a vergonha que elasfariam derramar sobre minha famlia - o filho do Coronel Juca no gosta de sorvete de abacaxi: ele teve coragem

    de ir a uma confeitaria elegante, pedir um sorvete e estrag-lo: e minha boca doa com a lembrana daquele gelo

    ardente e custico.

    Ento reatacamos o sorvete, mas ele continuava intragvel. A verdade que, sem noo alguma de como

    ingeri-lo, ns pretendamos absorv-lo a dentadas, em grandes pores que levavam consigo o pnico de um

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    motor de dentista. O cu da boca era um teto fulgurante de dor: e o pior que, eu bem o sentia, essa dor era

    ridcula.

    Renunciei antes de Joel empreitada de amor-prprio; que o garom e o caixa me matassem, mas no

    "comeria" mais aquilo. Olhei firme para meu amigo, que, por ser de nimo mais rude do que eu, ou por haver

    descoberto instintivamente a tcnica de tomar sorvete sem dor, ou finalmente por temperamento de chefe,continuava levando a colher boca, a meia bola de neve j solapada.

    Joel percebeu meu desconforto sem apoi-lo, e com um olhar peremptrio baixou-me esta ordem, entre

    dentes:

    - Acabe com isso se no quer ficar desmoralizado.

    Era um pensamento, uma noo dos Mendona, formada na educao burguesa de vrias geraes, que

    ele ministrava a um membro de outra famlia no menos rica de princpios respeitveis, os Caldeira Lemos. Uma

    reputao pode perder-se com menor prova de fraqueza. H um orgulho de famlia, de pessoa, que o indivduo

    recebe no bero e tem que sustentar. Joel tirava seu comportamento, numa situao assim imprevista, do corpo dedoutrina dos Mendona, e me lembrava que eu devia fazer o mesmo.

    Sucede que aquilo que nos penoso fazer, por iniciativa prpria, mas sabemos necessrio, se torna fcil

    de executar quando um poder estranho no-lo determina. Todo o encanto do sorvete estava perdido. Mas restava

    um dever do sorvete a cumprir, um dever miservel. Refreando as lgrimas, o desapontamento, a dor que um filho

    de boa famlia no pode sentir em pblico, mastiguei as ltimas pores daquela matria atroz.

    Joel olhou-me de novo, j agora aprobativo e cordial. Ele tambm sofrera bastante, mas a vida um

    combate. O garom aproximou-se. Joel ps a mo no bolso, perguntou quanto era. O dinheiro no chegava.

    A doida

    A DOIDA habitava um chal no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o crrego, onde os

    meninos costumavam banhar-se. Era s aquele chalezinho, esquerda, entre o barranco e um cho abandonado;

    direita, o muro de um grande quintal. E na rua, tornada maior pelo silncio, o burro que pastava. Rua cheia de

    capim, pedras soltas, num declive spero. Onde estava o fiscal, que no mandava capin-la?

    Os trs garotos desceram manh cedo, para o banho e a pega de passarinho. S com essa inteno. Mas

    era bom passar pela doida e provoc-la. As mes dizia .....o contrrio: que era horroroso, poucos pecados seriam

    maiores. Dos doidos devemos ter piedade, porque eles no gozam dos benefcios com que ns, os sos, fomosaquinhoados. No explicavam bem quais fossem esses beneficias, ou explicavam demais, e restava a impresso de

    que eram to os privilgios de gente adulta, como fazer visitas, receber cartas, entrar para irmandades. E isso no

    comovia ningum. A loucura parecia antes erro do que seria misria. E os trs sentiam-se inclinados a lapidar a

    doida, isolada e agreste no seu jardim.

    Como era mesmo a cara da doida, poucos poderiam diz-lo.

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    No aparecia de frente e de corpo inteiro, como as outras pessoas, conversando na calma. S o busto,

    recortado numa das janelas da frente, as mos magras, ameaando. Os cabelos, brancos e desgrenhados. E a boca

    inflamada, soltando xingamentos, pragas, numa voz rouca. Eram palavras da Bblia misturadas a termos

    populares, dos quais alguns pareciam escabrosos, e todos fortssimos na sua clera.

    Falta um pedao

    do meio vibrou um golpe na primeira janela. Bam! Tinha atingido uma lata, e a onda de som propagou-se

    l dentro; o menino sentiu-se recompensado. Esperaram um pouco, para ouvir os gritos. As paredes descascadas,

    sob as trepadeiras e a hera da grade, as janelas abertas e vazias, o jardim de cravo e mato, era tudo a mesma paz.

    A o terceiro do grupo, em seus onze anos, sentiu-se cheio de coragem e resolveu invadir o jardim. No s

    podia atirar mais de perto na outra janela, como at praticar outras e maiores faanhas. Os companheiros,

    desapontados com a falta do espetculo cotidiano, no queriam segui-lo. E o chefe, fazendo valer sua autoridade,tinha pressa em chegar ao campo.

    O garoto empurrou o porto: abriu- e. Ento, no vivia trancado? .. E ningum ainda fizera a experincia.

    Era o primeiro a penetrar no jardim, e pisava firme, posto que cauteloso Os amigos chamavam-no, impacientes.

    Mas entrar em terreno proibido to excitante que o apelo perdia toda a significao. Pisar o cho pela primeira

    vez; cho inimigo. Curioso o jardim se parecia com qualquer um; apenas era selvagem, e o melo-de-so-caetano

    se enredava entre as violetas, as roseiras pediam poda, o canteiro de cravinas afogava-se em erva. L estava,

    quentando sol, a mesma lagartixa de todos os jardins, cabecinha mbil e suspicaz. O menino pensou primeiro em

    matar a lagartixa e depois em atacar a janela. Chegou perto do animal, que correu. Na perseguio, foi para rentedo chal, junto cancelinha azul (tinha sido azul) que fechava a varanda da frente. Era um ponto que no se via

    da rua, coberto como estava pela massa de folhagem. A cancela apodrecera, o soalho da varanda tinha buracos, a

    parede, outrora pintada de rosa e azul, abria-se em reboco, e no cho uma farinha de calia denunciava o estrago

    das pedras, que a louca desistira de reparar.

    A lagartixa salvara-se, metida em recantos s dela sabidos, e o garoto galgou os dois degraus, empurrou a

    cancela, entrou. Tinha a pedra na mo, j no era necessria; jogou-a fora. Tudo to fcil, que at ia perdendo o

    senso da precauo. Recuou um pouco e olhou para a rua: os companheiros tinham sumido. Ou estavam mesmo

    com muita pressa, ou queriam ver at onde iria a coragem dele, sozinho em casa da doida. Tomar caf com adoida. Jantar em casa da doida. Mas onde estaria a doida?

    A princpio no distinguiu bem, debruado janela, a matria confusa do interior. Os olhos estavam

    cheios de claridade, mas afinal se acomodaram, e viu a sala, completamente vazia e esburacada, com um

    corredorzinho no fundo, e no fundo do corredorzinho uma caarola no cho, e a pedra que o companheiro jogara.

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    Passou a outra janela e viu o mesmo abandono, a mesma nudez. Mas aquele quarto dava para outro

    cmodo, com a porta cerrada. Atrs da porta devia pois estar a doida, que inexplicavelmente no se mexia, para

    enfrentar o inimigo. E o menino saltou o peitoril, pisou indagado r no soalho gretado, que cedia.

    A porta dos fundos cedeu igualmente presso leve, entreabrindo-se numa faixa estreita que mal dava

    passagem a um corpo magro.No outro cmodo a penumbra era mais espessa e parecia muito povoada. Difcil identificar imediatamente

    as formas que ali se acumulavam. O tato descobriu uma coisa redonda e lisa, a curva de uma cantoneira. O fio de

    luz coado do jardim acusou a presena de vidros e espelhos. Seguramente cadeiras. Sobre uma mesa grande

    pairavam um amplo guarda-comida, uma mesinha de toalete, mais algumas cadeiras empilhadas, um abajur de

    renda e vrias caixas de papelo. Encostado mesa, um piano tambm soterrado sob a pilha de embrulhos e

    caixas. Seguia-se um guarda-roupa de propores majestosas, tendo ao alto dois quadros virados para a parede,

    um ba e mais pacotes. Junto nica janela, olhando para o morro, e tapando pela metade a cortina que a

    obscurecia, outro armrio. Os mveis enganchavam-se uns nos outros, subiam ao teto. A casa tinha se espremidoali, fugindo perseguio de quarenta anos.

    O menino foi abrindo caminho entre pernas e braos de mveis, contorna aqui, esbarra mais adiante. O

    quarto era pequeno e cabia tanta coisa.

    Atrs da massa do piano, encurralada a um canto, estava a cama. E nela, busto soerguido, a doida esticava

    o rosto para a frente, na investigao do rumor inslito.

    No adiantava ao menino querer fugir ou esconder-se. E ele estava determinado a conhecer tudo daquela

    casa. De resto, a doida no deu nenhum sinal de guerra. Apenas levantou as mos altura dos olhos, como para

    proteg-los de uma pedrada.Ele encarava-a, com interesse, E simplesmente uma velha, jogada no catre preto de solteiro atrs da

    barricada de mveis. E que pequenininha! O corpo sob a coberta formava uma elevao minscula. Mida,

    escura, desse sujo que o tempo deposita na pele, manchando-a. E parecia ter medo.

    Mas os dedos desceram um pouco, e os pequenos olhos amarelados encararam por sua vez o intruso com

    ateno voraz, desceram s suas mos vazias, tornaram a subir ao rosto infantil.

    A criana sorriu, de desaponto, sem saber o que fizesse. Ento a doida ergueu-se um pouco mais,

    firmando-se nos cotovelos. A boca remexeu, deixou passar um som vago e tmido.

    Como a criana no se movesse, o som indistinto se esboou outra vez.Ele teve a impresso de que no era xingamento, parecia antes um chamado. Sentiu-se atrado para a

    doida, e todo desejo de maltrat-la se dissipou. Era um apelo, sim, e os dedos, movendo-se canhestramente, o

    confirmavam.

    O menino aproximou-se, e o mesmo jeito da boca insistia em soltar a mesma palavra curta, que entretanto

    no tomava forma. Ou seria um bater automtico de queixo, produzindo um som sem qualquer significao?

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    Talvez pedisse gua. A moringa estava no criado-mudo, entre vidros e papis. Ele encheu o copo pela

    metade, estendeu-o. A doida parecia aprovar com a cabea, e suas mos queriam segurar sozinhas, mas foi

    preciso que o menino a ajudasse a beber.

    Fazia tudo naturalmente, e nem se lembrava mais por que entrara ali, nem conservava qualquer espcie de

    averso pela doida. A prpria idia de doida desaparecera. Havia no quarto uma vela que talvez estivessemorrendo.

    Nunca vira ningum morrer, os pais o afastada em casa um agonizante. Mas deve ser assim que as

    pessoas morrem.

    Um sentimento de responsabilidade apoderou-se dele. Desajeitadamente procurou fazer com que a cabea

    repousasse sobre o travesseiro. Os msculos rgidos da mulher no o ajudavam. Teve que abraar-lhe os ombros -

    com repugnncia - e conseguiu, afinal, deit-la em posio suave.

    Mas a boca deixava passar ainda o mesmo rudo obscuro, que fazia crescer as veias do pescoo,

    inutilmente. gua no podia ser, talvez remdio ...Passou-lhe um a um, diante dos olhos, os frasquinhos do criado-mudo. Sem receber qualquer sinal de

    aquiescncia. Ficou perplexo, irresoluto. Seria caso talvez de chamar algum, avisar o farmacutico mais

    prximo, ou ir procura do mdico, que morava longe. Mas hesitava em deixar a mulher sozinha na casa aberta e

    exposta a pedradas. E tinha medo de que ela morresse em completo abandono, como ningum no mundo deve

    morrer, e isso ele sabia no apenas porque sua me o repetisse sempre, seno tambm porque muitas vezes,

    acordando no escuro, ficara gelado por no sentir o calor do corpo do irmo e seu bafo protetor.

    Foi tropeando nos mveis, arrastou com esforo o pesado armrio da janela, desembaraou a cortina, e a

    luz invadiu o depsito onde a mulher morria. Com o ar fino veio uma deciso. No deixaria a mulher para chamarningum. Sabia que no poderia fazer nada para ajud-la, a no ser sentar-se beira da cama, pegar-lhe nas mos

    e esperar o que ia acontecer.

    Prespio

    Dasdores assim se chamavam as moas naquele tempo) sentia-se dividida entre a missa-do-galo e o

    prespio. Se fosse Igreja, o prespio no ficaria armado antes de meia-noite e se se dedicasse ao segundo no

    veria o namorado.

    difcil ver namorado na rua, pois moa no deve sair de casa, salvo para rezar ou visitar parentes. Festasso raras. O cinema ainda no foi inventado, ou, se o foi, no chegou a esta nossa cidade, que antes uma fazenda

    crescida. Cabras passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: a tropa. E vivas espiam de janelas, que se diriam jaulas.

    Dasdores e suas numerosas obrigaes: cuidar dos irmos, velar pelos doces de calda, pelas conservas,

    manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o mximo, no porque a casa seja pobre,

    mas porque o primeiro mandamento da educao feminina : trabalhars dia e noite. Se no trabalhar sempre, se

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    no ocupar todos os minutos quem sabe de que ser capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moa? Eles so

    confusos e perigosos. Portanto, impedir que se formem. A total ocupao varre o esprito. Dasdores nunca tem

    tempo para nada. Seu nome, alegre fora de repetido, ressoa pela casa toda. Dasdores, as dlias j foram

    regadas hoje?" "Voc viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?" "Ah, Dasdores, eu bem,

    prega esse boto para sua mezinha." Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil coisas. Mas umengano supor que se deixou aprisionar por obrigaes enfadonhas. Em seu corao e a voa para o sobrado da

    outra rua em que, fumando ou alisando o cabelo com brilhantina, est Abelardo.

    Das mil maneiras de amar, pais, a secreta a mais ardilosa, e eis que ocorre na espcie. Dasdores

    sente-se livre em meio s tarefas, e at mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas

    para o trabalho ... Alguma coisa mais do que resignao sustenta as donas de casa.) Dasdores sabe combinar omovimento dos braos com a atividade interior - uma conspiradora - e sempre acha folga para pensar em

    Abelardo. Esta vspera de Natal, porm, veio encontr-la completamente desprevenida. O prespio est por

    armar, a noite caminha, lenta como costuma faz-lo no interior, mas Dasdores ntima do relgio grande da sala

    de jantar, que no perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo d um salto repentino, desafia o incauto:

    "Agarra-me!" Sucede que ningum mais, salvo esta moa, pode dispor o prespio, arte comunicada por

    uma tia j morta. E s Dasdores conhece o lugar de cada pea, determinado h quase dois mil anos, porque cada

    bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do prespio que cede a novidades.

    As caixas esto depositadas no cho ou sobre a mesa, e desembrulh-las a primeira satisfao entre asque esto infusas na prtica ritual da armao do prespio. Todos os irmos querem colaborar, mas antes

    atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade plena da direo. Jamais lhes ser

    dado tocar, por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em So Jos. Nos pastores, sim, e nas grutas subsidirias.

    O melhor seria que no amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a paisagem de gua e

    pedras, relva, ces e pinheiros, que h de circundar a manjedoura. Nem todos os animais esto perfeitos; este

    carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia consertar, mas parece a Dasdores que, assim mutilado e

    dolorido, o Menino deve querer-lhe mais. Os camelos, bastante midos, no guardam proporo com os

    cameleiros que os tangem; mas so presente da tia morta, e participam da natureza dos animais domsticos, a qualpor sua vez participa obscuramente da natureza da famlia. Atravs de um sentimento nebuloso, afigura-se-Ihe

    que tudo uma coisa s, e no h limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura, pelos

    camelinhos; sente neles a macieza da mo de Abelardo.

    Algum bate palmas na escada; de casa! amigas que vm combinar a hora de ir para a igreja. Entram e

    acham o prespio desarranjado, na sala em desordem. Esta visita come mais tempo, matria preciosa ("Agarra-

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    me! Agarra-me!). Quando algum dispe apenas de uns poucos minutos para fazer algo de muito importante e

    que exige no somente largo espao de tempo mas tambm uma calma dominadora - algo de muito importante e

    que no pode absolutamente ser adiado - se esse algum nervoso, sua vontade se concentra, numa excitao

    aguda, e o trabalho comea a surgir, perfeito, de circunstncias adversas. Dasdores no pertence a essa raa

    torturada e criadora; figura no ramo tambm delicado, mas impotente, dos fantasistas. Vo-se as amigas, paravoltar duas horas depois, e Dasdores, interrogando o relgio, nele v apenas o rosto de Abelardo, como tambm

    percebe esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos, dissimulados nas ramagens do papel da

    parede, e um pouco por toda parte.

    A mo continua tocando maquinalmente nas figuras do prespio, dispondo-as onde convm. Nada far

    com que erre; do passado a tia repete sua lio profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as figuras, de fixar a

    estrela, de espalhar no lago de viIra os patinhos de celulide, est alterado, ou subtrai-se. Dasdores no o saboreia

    por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a

    impedir o segundo? Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando, talvez! preferncia aeste ltimo, pois no fundo da caminha de palha suas mos acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir -

    sentia, Deus me perdoe - era um calor humano, j sabeis de quem.

    Aqui desejaria, porque o mundo cruel e as histrias tambm costumam s-lo, acelerar o ritmo da

    narrativa, prover Dasdores com os muitos braos de que ela carece para cumprir com sua obrigao, vestir-se

    violentamente, sair com as amigas depressa, depressa -, ir correndo ladeira acima, encontrar a igreja vazia, o adro

    j quase deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, no braos e pernas suplementares, e sim

    outra natureza, diferente da que lhe coube, e pura placidez. Correi, sfregos, correi ladeira acima, e chegai

    sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliao.No assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se policiam. O dono desta noite, depois do Menino, o

    relgio, e este vai mastigando seus minutos, seus cinco, seus quinze minuto. Se nos esquecermos dele, talvez pule

    meia hora, como um prestidigitador furta um ovo, mas, se nos pusermos a contempl-lo, os nmeros gelam, o

    ponteiro imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que

    assim lograria folga para localizar condignamente os trs reis na estrada, levantar os muros de Belm. Comea a

    faz-lo, e o tempo dispara de novo. "Agarra-me! Agarra-me!" Nas cabeas que espiam pela porta entreaberta, no

    estouvamento dos irmos, que querem se debruar sobre o caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na

    muda interrogao da me, no sentimento de que a vida variada demais para caber em instantes to curtos, nocalor que comea a fazer apesar das janelas escancaradas h uma previso de malogro iminente. Pronto, este ano

    no haver Natal. Nem namorado. E a noite se fundir num largo pranto sobre o travesseiro.

    Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, Juntando na imaginao os dois deuses,

    colocando os pastores na posio devia e peculiar adorao, decifrando os olhos de Abelardo, as mos de

    Abelardo, o mistrio prestigioso do ser de Abelardo, a aurola que os caminhantes descobriram em torno dos

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    cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro - quem botou! - ardendo na areia do

    prespio, e que Abelardo fumava na outra rua.

    Cmara e cadeia

    - AFINADOR de piano, em excurso, vinte e cinco mil-ris.

    - Quanto?

    - Vinte e cinco mil.

    - exagero. s vezes o afinador no ganha isso durante a viagem. O Juca Silveira me contou. A principal

    fonte de renda dele a criao de perus. E j paga imposto de indstria e profisso ...

    - Bem, se ns formos indagar dos contribuintes quanto que eles querem pagar, a tesouraria fica sem

    recursos para comprar um mao de velas quando faltar luz. Seria prefervel que eles mesmos fizessem o

    lanamento.A Cmara Municipal discutia o oramento para 1920, os dois vereadores ponderavam ponto por ponto

    cada ttulo da receita. O municpio pobre, arrecada 72 contos por ano. Houve praga na lavoura; deu peste no

    gado; o emprstimo para instalao de luz eltrica vence juros penosos. Para atender ao servio de estradas,

    instruo, s eleies, ao funcionalismo, a tanto compromisso, torna-se imperioso lanar novos impostos, criar

    taxas inditas, como essa de afinador. Mas piano quantos pianos ter o municpio? Quinze, no mximo; dos quais

    apenas uns cinco nos distritos: a taxa talvez no produza cinqenta mil-ris. Uma ninharia, meu caro!

    No calor da sala, os vereadores tentam reerguer as finanas pblicas. Salo muito quente, com efeito. D

    pra frente da praa, que recolhe o sol da tarde, ao passo que a outra sala, olhando para a montanha e o valeprofundo, recebe uma doce brisa, em que narinas mais apuradas distinguem o perfume de rvores distantes, e os

    caadores chegam a identificar um cheiro de anta.

    Falta a pagina 52

    cheio de servio, defendia realmente os interesses da comunidade, e no os de classe? A batalha contra o

    comrcio, representado por Joo Batista, era contnua e deixava-o exausto. O povo precisava de escolas, de uma

    enfermaria nova no hospital em runas - mas Joo Batista no admitia que se cobrasse mais dos bilhares e das

    fbricas de aguardente. Ele, Valdemar, ficava com o papel odioso. Ora bolas!

    Valdemar levantou-se, atravessou a sala, foi at os fundos do prdio para respirar um ar menos oficial. Osfuncionrios tinham sado. Da janela, a paisagem oferecia-se como um repouso. A cidade, to seca, to

    estrangulada de morros, perdia ali suas limitaes. A rampa verde conduzia ao fundo do vale, onde serpeava uma

    gua tmida, mas reconfortante para a vista. E do outro lado do crrego, a rua subia, caprichosa e determinada, at

    o sop da serra, que barrava o horizonte. Contornando a rua, rvores esparsas ou em bosque, pastagens, moitas de

    arbustos, caminhos que se interrompiam na verdura para surgir mais alm. Poucos sinais de homem, e entre eles a

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    boca da mina, l longe, pequena mancha preta no dorso cinza-roxo da montanha. Do alto do casaro, o vereador

    sentiu o prazer de existir dentro da natureza, e olvidou por momentos o dficit municipal.

    Dois andares da fachada principal, trs na dos fundos - a casa estava assentada sobre uma ladeira, e aquele

    era um dos pontos de vista mais altos da cidade. Baixou os olhos at a ladeira gramada. Galinhas ciscavam - eram

    do fiscal da Cmara, no adiantava reclamar. Ciscavam minuciosamente junto s paredes da casa, chegando at asgrades - pois l embaixo, ao nvel do cho, era a cadeia, onde os presos se distraam jogando-lhe sobras de comida

    ou pequeninas coisas que as assustavam.

    Valdemar nascera na cidade e desde menino se habituara ao espetculo dos presos. Faziam objetos de

    taquara, madeira, desenhos de areia colorida sobre vidro. Com as mos nas grades, contemplavam os escassos

    transeuntes que desciam a ladeira. Viam eternamente as mesmas rvores, fitavam a mesma serra. E cantavam.

    No era proibido conversar com eles, atravs dos ferros. Pareciam alegres quando algum parava para dar uma

    prosa. Sempre houve presos. Os meninos achavam aquilo natural. Mas agora, j homem, Valdemar via-os de

    maneira diferente. Sabia da misria deles, e achava estranho, ou quando menos desagradvel, estar ali fruindo apaisagem e o ventinho, quando debaixo de seus ps homens humilhados se amontoavam confusamente, na semi-

    escurido, na umidade.

    - Como fazer leis e cobrar impostos pisando sobre presos?

    - perguntava a si mesmo. - A cadeia a parte condenada da

    Cmara. Ao entrar, a gente no olha para a enxovia. Tem constrangimento, ou talvez medo, de perceber o

    que se passa l dentro, naquela imundcie. certo que tudo corre por conta do Governo do Estado, que no pensa

    em construir uma cadeia decente. Mas podemos concordar com essa vergonha?

    E j no tinha gosto para sorver o ar da serra nem perder os olhos na mata. Uma simples tbua o separavade meia dzia de criaturas embrutecidas, pisadas, que comiam, dormiam e faziam necessidade juntas, sobre o

    cho atijolado que no se lavava nunca. O ar pareceu-lhe empestado, como se de repente subisse at as alturas da

    Cmara o cheiro de mofo e de urina que pairava na parte baixa do edifcio.

    Um rumor f-lo voltar-se. Vinha da sala de sesses, onde vozes alteradas se cruzavam Valdemar deixou a

    sacada, foi correndo ver o que havia.

    A sala perdera subitamente a fisionomia grave e sonolenta. Os vereadores estavam de p, tinham recuado

    para trs da mesa da presidncia. O farmacutico brandia uma cadeira, em atitude de ameaa e defesa. Major

    Ponciano estendia os braos, com as mos espalmadas, como para fazer sustar o avano de um inimigo afoito.Joo Batista media com os olhos a distncia que o separava do corredor dos fundos, das sacadas da frente, de

    todos os pontos de sada ou refgio; mas no se resolvia. E o Coronel Lindolfo abria e fechava a boca, tentando

    articular uma palavra enrgica, porm a voz lhe faltava. Quatro rostos brancos. Em frente deles, a trs metros de

    distncia, estava um homem de p no cho, em manga de camisa, cala de pano riscado, barba por fazer, olhos

    brilhantes.

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    - Retire-se! - exclamou afinal o presidente da Cmara, num esforo que lhe fazia tremer a barba. - Ou

    antes, no se retire, fique preso a mesmo. O senhor est preso, ouviu? Est preso em nome da lei!

    O intruso no se mostra intimidado, mas indeciso. Olha um pouco espantados para aqueles homens que se

    encolhiam, e quase sorri; talvez lhe agrade aumentar o susto dos vereadores. Tinha esperado, por certo, ser

    atacado e subjugado depois de muita luta; no podia crer que o poder pblico, to majestoso, se refugiasse atrsde uma mesa. Foi quando percebeu a chegada de Valdemar. O primeiro impulso deste foi atirar-se ao

    desconhecido. O movimento, assim claro, determinou outro, de precauo, da parte contrria. Os dois fitaram-se,

    Valdemar deteve-se. Mesclando-se curiosidade, uma brusca simpatia paralisou-lhe os gestos, ao verificar, pela

    roupa do homem, que ele devia ser um dos presos da cadeia.

    Meireles fazia-lhe sinais desesperados, alertando-o: e como fossem inteis, advertiu:

    - No chegue perto dele, professor! um criminoso perigosssimo! Daquela morte das Duas Pontes!

    Do grupo atemorizado partiam exclamaes, murmrios.

    _ Onde est o diabo desse destacamento que no aparece? _ Que fim levou o cabo? Com certeza jogandonalgum botequim. No faz outra coisa.

    - Os soldados devem estar bbedos!

    _ Quem sabe se ele no matou o carcereiro? No compreendo como pde sair de l!

    - Precisamos providenciar!

    O Coronel procurava impor-se:

    _ O senhor est preso, repito! Vamos, renda-se autoridade! _ Preso? - disse o criminoso. - Preso eu j

    estou h dois anos. O senhor no pode me prender outra vez, Coronel. Afinal eu no fugi, apenas subi a escada ...

    A objeo deixou perplexo o agente executivo, mas o farmacutico acudiu a seu favor:- Como no fugiu? Pois se ousa at desacatar a Cmara, interrompendo os nossos trabalhos! Volte j para

    a enxovia, depressa! Se no quer que usemos de violncia ...

    - Calma - retrucou o detento. - No vim fazer mal a ningum. Estou descansando. Podem me revistar: no

    tenho um canivete.

    - Como foi que chegou at aqui? - perguntou Valdemar, em tom sereno.

    - A porta estava aberta, ou por outra, eu abri a porta. L embaixo fazia muito calor ...

    - E os outros?

    - Os outros ficaram - respondeu calmamente o preso. A maioria est doente por causa da comida ( umalavagem de porcos) e por falta de exerccio. No quiseram me acompanhar. E eu no teimei com eles.

    Os vereadores sentiam-se mais confortados. Afinal, um assassino no to perigoso como se pinta.

    Aquele era moo - rosto de vinte e cinco anos, apenas envelhecido pela barba e pela magreza. No seria um

    rstico. Fisionomia at simptica. Ou estaria engabelando os presentes para depois puxar da faca e sangr-los?

    queda de tenso sucede nova tenso. O medo rene os homens, faz de quatro deles, na sala, um bolo s. Nessa

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    expectativa escoam-se momentos preciosos para os vereadores e para o preso. Mas o tempo trabalha a favor da

    Cmara. impossvel que no aparea algum soldado, mesmo brio. O secretrio, o amanuense, o fiscal-geral

    surgiro a qualquer instante, ou, se tambm andarem escondidos nalgum canto, ho de pedir socorro. E a cidade

    libertar seus representantes.

    -Vamos sentar um pouco - disse Valdemar, aproximando-se e batendo de leve no ombro do preso.Sentaram-se, em meio ao espanto dos outros.

    Engraado, tem dois anos que eu no sei o que cadeira.

    - Macio, hem?

    Apalpava com agrado a palhinha do assento, mas sentara somente na ponta. No seu abandono, parecia

    disposto a saltar, ao menor gesto suspeito do outro. Que delcia, estar ali em cima (sempre cismava no que

    costumariam fazer aqueles velhotes que pisavam duro sobre sua cabea), interrompendo a sesso da Cmara,

    calmamente pousando numa boa cadeira de braos, livre do bodum e da tristeza dos companheiros.

    - Agora me diga uma coisa - continuou Valdemar sabe que no direito isso que voc fez?O outro riu, sacudindo os ombros.

    - Ah, moo, se o senhor vivesse naquele chiqueiro ... No s porcaria. uma poro de coisas. Por

    mais que a gente trabalhe, o tempo no passa. Ento de noite, no escuro, nem avalia. S isso de no ficar um

    minuto sozinho. J pensou em viver dez, vinte anos numa sala, sempre com as mesmas pessoas? Desculpe a

    confiana, mas mesmo sendo com sua famlia o senhor suportava? Se ao menos dessem uma cela para cada um de

    ns, como fazem com as doidas e as mulheres da vida. No. tudo embolado. Roupa, suor, p, barriga. Ento

    parece que at as faltas se misturam, e eu j nem sei mais os erros que carrego nas minhas costas ... Alm do meu,

    claro.Os vereadores vinham se aproximando, entre curiosos e prudentes.

    - Mas afinal voc saiu para fazer o qu?

    - Eu? - (ficou algum tempo hesitando, procura de palavras). - Nada. Sa porque no agentava mais e dei

    um jeito na fechadura ...

    - E j que voc saiu, que que vai fazer agora?

    O homem passou a mo na testa, encarou Valdemar: - Moo, o senhor est perguntando demais.

    E depois de uma pausa:

    - Ento o senhor no sabe o que vai fazer um cristo quando fica livre da grade? Que faz um passarinhofora da gaiola? - s vezes no sabe mais voar, e pego de novo - responder deu filosoficamente Valdemar.

    O outro voltou a rir.

    - , pode ser. Mas sempre bom experimentar, no acha? Olhe, se eu no experimentasse o cadeado ...

    - Valdemar percebia que um jogo estava se desenvolvendo, de resultado incerto. No podia prolongar

    indefinidamente a conversa com o preso. Sentia-o pronto a aproveitar o menor descuido para evadir-se. A maneira

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    compreensiva como o tratara tinha-o cativado talvez, mas o encanto se romperia a qualquer momento, se que

    havia encanto, e no simplesmente clculo. De resto, a cena parecia regida pelo acaso, e haveria no preso a

    tendncia de se confiar aos vaivns desse acaso. Antes de fugir, queria ele, quem sabe? Zombar daqueles homens

    importantes.

    - Escute. Se voc, em vez de subir, tivesse sado pela porta da rua, eu no iria atrs para peg-lo. No meu oficio. Mas voc veio c em cima e confessou ter escapado por um jeito que deu na fechadura. Sinto muito,

    meu filho, mas eu vou levar voc de novo l para baixo. E j.

    - No me encoste! - gritou o preso, dando um pulo e tirando do bolso alguma coisa que apertava na mo. -

    Essa carinha limpa no me engana. Tudo igual! E chega de conversa! Adeus, minha gente ...

    Foi saindo de costas, muito gil, mo erguida e fechada, e sumiu, literalmente sumiu, como evaporado no

    calor. Valdemar ainda quis persegui-lo, num gesto mais formal do que instintivo, mas o farmacutico travou-lhe o

    brao: - Est doido?! - e da, ele simpatizara tanto com o preso, a cadeia l embaixo era to repugnante ... A

    polcia que se arranjasse. Chegando sacada viu ainda o homem, que desaparecia no beco.

    Beira - Rio

    .\ OESTE ficavam os terrenos da Companhia, onde tinham comeado os obras para insta1ao da grande

    indstria. A leste improvisara-se uma cidade, residncia de diretores tcnicos e operrios, chamada Capito

    Borges, em honrado desbravador daquele serto. No meio ficava o rio, que se atravessava de balsa.

    Sete da manh, e o trabalho principiando no campo. O apontador chegava ainda com escuro, porque no

    conseguia dormir na casinha de pau-a-pique onde ele, mulher e filhos viviam como que em depsito, espera devaga na vila proletria. Os mosquitos resistiam a tudo, e o fio de som que emitiam no vo lento, indo e vindo,

    tecia sobre a cama uma espcie de cortinado. A mo, levantando-se, dilacerava a trama, que contudo logo se

    recompunha, e to constante no seu dom de irritar que, se por acaso cessasse um momento, o silncio feria por sua

    vez, de inesperado. Ento o apontador ia acordar o balseiro, e os dois, cortando o rio, presenciavam calados o

    nascimento do sol, que do campo em runas, na outra margem, ia tirando pouco a pouco uma usina em construo.

    O dia de trabalho espichava-se por oito horas legais e mais duas e prorrogao, sem pagamento;. A

    Companhia tinha pressa na execuo do programa. Como no restassem trabalhadores a recrutar, na regio,-

    exigia-se de todos um esforo maior. Quanto remunerao desse suplemento de servio, falava-se que iriaformando um bolo para o operrio receber, acabada a obra, ou quando se retirasse. Falava-se. Mas ningum sabia

    nada ao certo.

    E fiscal do Ministrio do Trabalho, naquelas brenhas ... voc viu?

    Na barranca do rio, do lado de Capito, caboclos macilentos, meio curvados, esperam a balsa. Ela voga a

    manh inteira, transportando material e gente. Os homens parecem cansados antes de comear a lida. Os tcnicos

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    chegam mais tarde, e como se para eles no houvesse mosquitos; americanos louros e bem dormidos, que

    construram suas casas entre jardins, ou que saem do hotel com ar tranqilo.

    Curiosa vila de Capito, onde h dez refrigeradores e no h esgotos; muitos meninos, e nenhuma escola;

    um cinema; uma capela novinha, um posto policial, e o imenso armazm; o mais so casas esparsas, ces

    procura de ossos; estrumeira de animais marcando a direo dos caminhos; e o cemitrio, j com doze corpos.O hotel da Companhia; o cinema da Companhia; o armazm da Companhia. O posto policial foi

    1nstalaao expensas da Companhia, e a capela e o cemitrio constituem doaes amveis da Companhia. Mas o

    nico negcio da Companhia realmente a usina, e se a administrao consente em explorar ramos subsidirios,

    isto se deve a seu esprito benevolente, a seu desejo de servir. - Essas miudezas s do amolao - explica o

    subdiretor, que brasileiro, mas adquiriu sotaque norte-americano.

    Em vo procuraramos um botequim. No h. proibido beber. A proibio no est nas leis de um

    estado onde se bebe tanto, e mesmo onde se destila cachaa to fina, sob cinqenta nomes diferentes, e que

    fonte considervel de receita pblica. Proibio tcita, estabelecida pela Companhia, no interesse dos seusservidores ... bem, e no interesse do servio. O lcool foi rigorosamente proscrito como o jogo. Verdade seja que

    h abundncia de baralhos e de usque no grande armazm quadrado. Mas esta uma seo reservada aos tcnicos

    e alta administrao, que quanto mais bebem e jogam - admirvel - mais trabalham.

    O resto - gneros do pas, tecidos, objetos de uso - o trabalhador encontra no armazm, ao alcance da

    bolsa. Por um processo muito simples, que consiste em pedir vale ao escritrio, troc-lo no armazm pelo artigo

    desejado, e no fim do ms receber ao escritrio um extrato de conta, datilografado. Por esse extrato ele verifica

    no ter saldo.

    Apesar de tudo, dinheiro sempre aparece, maravilhoso. Um trabalhador, admitido ontem, trouxe consigooitenta cruzeiros; mulheres h que conseguiram economizar alguma coisa, plantando horta ou lavando roupa; e at

    mesmo homens acorrentados ao armazm logram de quando em quando, fora de abstenes, receber do

    pagador da Companhia, atnitos, uma cdula de CEM CRUZEIROS.

    Esse dinheiro, surgido assim quase clandestinamente, como gua que furou cano, mexe-se inquieto na

    algibeira, quer sair, transformar-se em coisas boas da vida. No as h em Capito, fora o cinema, que de resto vive

    fechado, com enguio no motor. Ento...no podendo usufruir as coisas boas da vida os trabalhadores contentam-

    se em obter algo que as represente. A bebida no coisa boa em si, mas o poder e imaginao e, ao mesmo

    tempo, de frustrar-se tirania dessa imaginao. Novo desaponto: em Capito tambm no h bebida. No hnada. Os homens tomam a balsa, desiludidos.

    O apontador veio de uma cidade onde h um bar em cada esquina, o lcool, por assim dizer, esguicha das

    ruas, Mas l se tantas outras coisas para distrair o esprito e movimentar os sentidos~ que s raramente lhe

    ocorria beber.

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    Em Capito diferente. A necessidade avana com o dia e no esmorece, antes prossegue ativa noite

    adentro. Ento, organiza-se o comrcio subterrneo das garrafas, e no servio os trabalhadores aparecem bbedos,

    h turmas desfalcadas. Bebe-se para esquecer, para lembrar, para fazer de conta, para cortar doena, para agentar

    o repuxo, para zombar da administrao. O subdiretor fareja cachaa no ar, d ordens rspidas.

    _ Quem beber ser expulso no sufragante. E quem vender bebida come cadeia - avisam os chefes deturma.

    O apontador dobra como um cobertor sua insnia habitual, sai, bate porta do balseiro - faz frio, a nvoa

    mistura a noite e as guas na mesma indeterminao - e os dois, chegando a margem do rio, percebem com

    espanto uma sombra movendo-se. Uma sombra com um cigarro, deslocando-se em meio a volumes vagos. A

    brasa minscula mostra o queixo e um negro.

    _ Eh, irmo, qu que h? - pergunta o balseiro.

    _ de paz, irmo. Simplcio da Costa, vosso criado, que veio de Pirapora para vos servir.

    O balseiro acende o cigarro no pito do outro. O apontador faz o mesmo. Esto amigos.Ento Simplcio da Costa, vosso criado, explica suas atividades pr-matutinas. Vai montar ali, beira-rio,

    bem em frente da balsa um varejo de cigarro, pastis e aguardente. Mas aguardente da legtima, no essa gua-

    benta que at menino enjeita.

    _ Acho bom tu tomar cuidado - previne o balseiro. - A Companhia no brinquedo, enjeriza logo contigo.

    O negro riu:

    - A Companhia manda do lado de l do rio. Do lado de. comanda Simplcio da Costa, com a autoridade do

    Governo. Tirei licena do Governo para negociar. Paguei estampilha na coletoria de Guap. A Companhia no se

    meta comigo, que eu racho ela, irmozinho!Os dois homens estavam fascinados. Na frira da madrugada, a idia da cachaa, trazida de longe por um

    negro de Pirapora, reconciliava-os com a vida. J no lhes pesava a solido no mato, a luta noturna contra os

    mosquitos, a dureza do trabalho pago com salrio injusto, o vazio de Capito. O negro ofereceu-lhes uma "prova",

    que ele andava sempre provido de uma garrafinha. E a cachaa chegou mais perto, penetrou neles, aqueceu-os. A

    manh nascia, hesitante, mas vinha encontr-los restaurados e geis, como se tivessem menos dez anos.

    Comeam a chegar os trabalhadores da usina, e travam conhecimento com Simplcio da Costa. O negro

    estende no cho, forrando-os com jornal, os objetos de seu comrcio. Ali vai surgir uma tenda sumria, com

    algumas ripas e folhas-de-f1andres, onde os operrios encontraro a nica coisa de que realmente precisam,porque d o esquecimento de todas.

    Em algumas horas o negcio de Vosso Criado conquista a confiana pblica. Os homens param ali o

    tempo de se reconfortar, de trocar duas palavras - nas obras, tinham esquecido a conversa - e vo descendo para o

    rio. Hoje a balsa leva homens menos curvados.

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    Os grandes da Companhia chegam por sua vez ao ponto de embarque, na grama h cascas de frutas e

    pontas de cigarro. Um negro quenta sol, montando guarda a uma bitcula. Dentro, no balco de pinho, pratos

    vazios e alguns maos de cigarro. Na inspeo rpida, os olhos no vem a coisa proibida. O negro tranqilo

    como uma rvore, contemplando a corrente.

    O trabalho no campo, esse dia, tem outro rendimento. Que se passou com os homens? Alguns cantam, epoucas vezes aqueles ares tero ouvido canto de gente. A administrao est desconfiada, como se o mais certo

    lhe parecesse mesmo uma produo mesquinha, regular, isenta de efuses meldicas.

    Mas os vigias da Companhia participam a infrao. Um negro, vindo do Norte, sob pretexto de negociar

    com cigarros e coisas de comer, na realidade est vendendo uma cachaa perturbadora. De sorte que toda essa

    boa disposio para vem simplesmente do lcool.

    O subdiretor chama dois homens de confiana. Eles tm a misso de policiar disfaradamente os colegas

    e, quando preciso, descer-lhes a lenha sem dar impresso de que por ordem superior. Recebem instrues para

    entender-se com o negro e convid-lo a remover sua tralha da beira do rio.Mas s primeiras palavras dos espoletas, Vosso Criado mostra uma pistola carregada, e diz simplesmente:

    - Tirei licena do Governo. Est tudo legal. E quem no gostar no carece beber, minha gente.

    - Os homens entreolham-se, cautelosos. No justo se expor assim por amor da Companhia. E vo mais

    tarde contar ao subdiretor uma histria atrapalhada, tanto mais esquisita quanto suas palavras saem num bafo de

    cachaa.

    O subdiretor exprobra-Ihes a fragilidade: Que vergonha para a Companhia! Ento no h por a dois

    homens capazes de conversar com um negro ordinrio? No havia.

    noite, em Capito, o subdiretor manda chamar o comandante do destacamento policial, para umaconferncia no hotel. O comandante simptico, e aceita uma cervejinha - sem exemplo - para molhar a conversa.

    No dia seguinte, antes de amanhecer, Vosso Criado fazia caf quando seis praas cercam a vendinha, e o

    comandante lhe diz, com uma presso leve no brao:

    - Vai dando o fora de mansinho que esta venda acabou.

    O negro quer saltar, mas sente no peito uma forma dura, fria.

    Prefere discutir:

    - Eh, compadre, deixa de caoada. Licena do Governo est aqui ...

    - Ora, negro, tu acredita em licena? Licena isto - e fez um sinal s praas.Dois soldados amarraram Vosso Criado. Outros dois ficaram de sentinela para obstar a interveno de

    algum paisano. E os restantes, entrando na vendinha, comearam a tirar de l os maos de cigarros, as latas e os

    pratos de pastis e de doces, as garrafas escuras, sem rtulo.

    - Tua venda acabou, negro ... Eu no te disse? - falou o comandante para Vosso Criado, que se mantinha

    digno.

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    Recuando o brao para tomar impulso, os soldados lanavam no ar cada objeto, cada garrafa cheia. O

    volume ia cair no rio, deslizava um momento, depois a gua avermelhada engolia a coisa preciosa. O negro,

    firme.

    - Olha negro, tua cachaa acabou.

    Mas ele no olhava, e parecia crescer, peito estofado, indiferente destruio do seu estabelecimento.- Vamos obrigar esse negro a olhar para o rio, seu comal1dante?

    - Deixa ele. Tanto faz. Mas andem depressa com esse servio.

    E as garrafas rolando na correnteza, a venda sumindo. Sumiram as latas, os pacotes de fsforos, um rolo

    de fumo, que trescalava. A caixa de charuto, abrindo-se no ar, deixou cair uma chuva de nqueis que tambm

    soverteu nas guas.

    - diacho! E a gente precisando tanto de cobre, hem, Marcolino!

    - Agora vamos tacar fogo - ordenou o comandante.

    As tbuas de pinho comeam a arder. As chamas antecipam a manh que est a chegar. Da a pouco noh mais nada de p. - Solta esse negro, gente.

    Vosso Criado, j livre, sacode-se, tira desdenhosamente da camisa uma folha queimada, trazida pelo

    vento, e que se desfaz em Cinza.

    - Agora, negro, finca o p na estrada e vai olhando sempre para a frente. Se no ...

    Empurram-no, mas Vosso Criado no quer correr. Caminha natural num passo pesado, de ps chatos, sem

    pressa.

    - Eta negro safado, at parece que ele tem costume ...

    Para assust-lo, os soldados atiram a esmo. Detidos a distncia pelas sentinelas, apontador e balseirocontemplam as runas.

    Meu companheiro

    Dei cinco mil-ris pelo cachorrinho; o homem sorriu. Como a cada ninhada era de seis, ele faria uma bela

    fria se os vende a todos por aquele preo. Talvez esperasse apenas dois ou trs mil-ris filhote de co, no

    interior, no vale nada. verdade que aqueles eram realmente bonitos, e no se podia dizer que fossem meros

    vira-latas - alguma coisa de raa insinuava-se na forma curta do focinho, na lisura do plo. Que raa? A cidadeno dispunha de animais finos; o nico que por l andou foi um fox terrier, na casa do mdico, e morrera h anos.

    Que raa, pois?... No sei, no se podia saber, talvez fosse apenas dos meus olhos; mas o diabo do cachorrinho

    mal acabara de nascer e j me fitava com jeito carinhoso que seria impossvel abandon-lo; comprei-o

    imediatamente. com vergonha que uso esta palavra comprar, ao referir-me a um amigo, mas em nossa absurda

    sociedade capitalista os valores mais puros so objeto de mercancia; o afeto e um animal adquirido como antes a

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    fora de trabalho de um negro, ou como ainda hoje...paremos com esse socialismo. Fiz pois o negcio e, de volta

    para casa, ia pensando na necessidade de conquistar para o cozinho a amizade de Margarida.

    Pois no foi difcil consegui-la. As pessoas mais intransigentes um dia acordam abertas tolerncia; e

    Margarida nem era intransigente. Seu ponto de vista contrrio existncia de animais domsticos em nossa casa -

    pelo que dizia - baseava-se exclusivamente no zelo pela sade das crianas e no amor limpeza. Ouvira falar deuma criana mordida de co hidrfobo; detestava pulgas; e queria que o cho e os mveis do nosso interior to

    modesto fossem limpos como sua conscincia. Um gato que apareceu por l, vindo no se apurou de onde,

    desapareceu dois dias depois, Deus sabe de que maneira; Margarida no quis olh-lo, talvez para no simpatizar

    com ele, por essa fora de atrao que tm os gatos mais desdenhosos. Ces nunca tivemos, e quanto a

    passarinhos eu concordava que no valia a pena possu-los em gaiola. Meus filhos iam pois brincar com os

    animais da vizinhana. Imaginem a alegria que tiveram com a chegada de Pirolito.

    Este nome de Pirolito imps-se porque na casa vizinha a moa cantava "Pirolito que bate bate". O rabinho

    do cachorro que eu trazia ao colo tambm batia de prazer, como logo me pareceu, de sorte que achei adequadoaproveitar a inspirao do momento e no criar o difcil problema domstico de escolher nome. Pirolito foi

    acolhido com simpatia ruidosa pelos meninos, e minha mulher, embora querendo simular descontentamento, no

    pde deixar de sorrir diante da sem-cerimnia com que ele, subitamente, tomou conta da casa e de todos.

    Logo se colocou a questo da propriedade - sempre a propriedade! - e foi preciso d-lo a Juquinha o

    caula, que por sua vez era uma espcie de propriedade dos irmos mais velhos, e com isso contornei o dissdio

    que fatalmente se estabeleceria entre estes. Pirolito passou a existir como parte integrante da famlia. Margarida

    tentava furtar-se a seu encantamento, mas tambm ela se deixava surpreender brincando com o animalzinho,

    fazendo-lhe ccegas, alisando-lhe o plo, ensinando-lhe pequenas habilidades. Ele no aprendia nada. Ou antes:s aprendia por esforo prprio, e no pelos processos educativos que aplicvamos. Assim, para subir a escada: os

    movimentos que o obrigvamos a fazer no se repetiam espontaneamente, e a pacincia se esgotava sem que fosse

    registrado o menor progresso. Um dia, sem aviso prvio, e para assombro de ns todos, Pirolito ergueu as

    patinhas dianteiras, deu um salto elstico e subiu gloriosamente os degraus da escada. Depois, desceu com a

    mesma ufania e tornou a repetir a faanha, muito excitado. Na terceira vez, cansou-se no meio do trajeto, deitou-

    se e dormiu.

    Est claro que acontecimento dessa natureza abalou profundamente a famlia, e quase que dissipou as

    reservas de Margarida. Novas manifestaes de seu humor fantasista vieram consolidar a situao de prestgioabsoluto que ele desfrutava entre ns. No irei contar as mil e uma coisas engraadas que costuma praticar um

    cachorrinho novo. Parece que todos os cachorrinhos o iguais, em que pese vaidade ou ternura cega dos donos:

    no posso, porm, acostumar-me idia de que Pirolito realizasse atos em srie, herdados do primeiro. Pelo

    menos e os realizava com uma nota pessoal, um humour selvagem que era sua contribuio prpria para a

    renovao dos gestos padres a espcie. vou citar apenas dois exemplos. Todo co tem seus instantes de ale ria

  • 8/2/2019 Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz

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    louca, geralmente depois do banho, quando se pe a correr pela casa afora, sem nenhum objetivo de caa, e

    desafiando nossa agilidade em persegui-lo; no mais puro sentido da palavra, um esporte. Percorre

    invariavelmente os mesmos lugares, passa chispando nossa frente, e afinal d por findo o exerccio, j

    arquejante de cansao. Pirolito confirmava a regra, mas, ao passar pela sala de visitas, detinha-se sempre diante do

    enorme retrato de meu av, estendendo o focinho como para fareja o mistrio de suas barbas negras - e prosseguiana corrida maluca. A parada em frente do retrato s vezes lhe era fatal, porque algum dos meninos - ou eu mesmo

    - aproveitava a ocasio para peg-lo, ao que ele reagia sempre de m-vontade. Solto um momento depois, j no

    recomeava a correria. Mas, quando lhe ocorresse faz-la de novo era certa a estao em frente das barbas de meu

    av, por um motivo jamais suspeitado dos ignorantes que ns somos. Talvez seja falta de respeito, conjeturou

    minha mulher - e rimos. .

    Tambm prprio da generalidade dos ces uma atitude graciosa de espreguiamento, que consiste em

    esticar o pescoo, dobrando as pernas da frente e mantendo levantada a parte posterior do corpo, escancarar a

    boca, fech-la, cerra os olhos e assim fazer uma espcie de reverncia, focinho baixo, ao amigo ou amiga (nocreio que o faam quando sozinhos ou entre si). Esta atitude de Pirolito, eu a chamava de "fazer Fragonard",

    porque tnhamos na parede da copa uma oleogravura reproduzindo a tela de Fragonard em que um co toma essa

    postura diante de uma dama; era uma folhinha, brinde da padaria. Quando Pirolito "fazia Fragonard", ns nos

    dispnhamos a consider-lo o mais distinto exemplar da raa canina em todos os tempos, mas a galanteria sculo

    XVIII de sua atitude era logo comprometida por um jeito pouco versalhesco de piscar o olho esquerdoe sim

    piscava o olho esquerdo! - e com essa particularidade parecia exprimir desdm no somente pelo acervo de ato

    mecnicos recebidos de seus ancestrais, como tambm pela interpretao pequeno-burguesa que atribuamos a seu

    espreguiamento, com base num flagrante da vida aristocrtica francesa ... Margarida dava de ombros. E da,trabalho no lhe faltava em casa, para que ela perdesse tempo com um cachorrinho.

    Adquiri logo o hbito de conversar com Pirolito. Conversvamos horas e horas, sua e minha maneira.

    Abanar o rabo, lamber, levantar ou descer as orelhas, contemplar-me de boca aberta, resfolegando - eram outras

    tantas maneiras de exprimir seus conceitos sobre as coisas do tempo, que eu traduzia para a limitada linguagem

    humana, como se fosse necessrio comunic-los a outro homem que s compreendesse portugus. Geralmente ele

    me tratava por esse diminutivo com que na cidade todos me conheciam: Motinha, e o fazia sempre na terceira

    pessoa: "Motinha est pensando que vai ganhar na loteria? Que esperana! Trate de dar suas aulas no ginsio, se

    no quer