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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE HISTÓRIA
CARREIRAS NO VALE DO TAQUARI: AS CORRIDAS DE CAVALO
EM CANCHA RETA
Emanuele Amanda Scherer
Lajeado, junho de 2014
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Emanuele Amanda Scherer
CARREIRAS NO VALE DO TAQUARI: AS CORRIDAS DE CAVALO
EM CANCHA RETA
Monografia apresentada na disciplina de
Trabalho de Conclusão de Curso II, do
Curso de História do Centro Universitário
UNIVATES, para obtenção do título de
Licenciado em História.
Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando da Silva
Laroque
Lajeado, junho de 2014
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AGRADECIMENTOS
À minha família, por me ensinar o valor da educação e por me educar com
princípios e valores que me guiaram até aqui.
Ao meu namorado, Alexandre, pelo apoio, companheirismo e paciência
durante a realização deste trabalho.
Ao professor Luís Fernando da Silva Laroque, que aceitou ser meu orientador
e dedicou muito do seu tempo a me auxiliar e me aconselhar em aspectos
acadêmicos e também profissionais.
A todos os professores do Curso de História da UNIVATES, pelos
conhecimentos compartilhados ao longo da minha trajetória como graduanda.
Aos entrevistados que abriram suas portas para me receber e compartilharam
comigo suas memórias.
Aos meus amigos e colegas de trabalho, pelo apoio, conselhos e muitas
risadas.
Foram muitos aqueles que contribuíram para realização desse trabalho. A
todos que, de alguma forma, me auxiliaram na minha trajetória pessoal, profissional
e acadêmica estendo esses agradecimentos.
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RESUMO
O estudo trata das corridas de cavalo em cancha reta na região do Vale do Taquari e tem como objetivo identificar características e singularidades na realização de carreiras de cavalos, no que se refere a corridas em cancha reta, e suas contribuições para a formação histórica, social e cultural do Vale do Taquari. A pesquisa utilizou-se do método qualitativo e os procedimentos metodológicos consistiram em levantamento de fontes bibliográficas e documentais, elaboração de diários de campo e entrevistas com base na metodologia da história oral, com participantes das carreiras de cancha reta de alguns dos municípios das porções norte, centro e sul da região do Vale do Taquari. Os dados foram analisados embasados em aportes teóricos que estudam a cultura e a memória, tais como Barth ([1968] 2000), Geertz (1978), Santos (1983), Pollak (1989; 1992) e Nora (1993). As corridas de cavalo em cancha reta constituem uma tradição desde a introdução do cavalo no Rio Grande do Sul. Na região onde se localiza o Vale do Taquari, predominantemente formada por descendentes de imigrantes açorianos, alemães e italianos, as corridas de cavalo em cancha reta foram realizadas nos mesmos moldes das tradicionais carreiras das regiões de campanha, somente atualizando alguns dos seus elementos culturais. Palavras-chave: Carreiras em Cancha Reta. Vale do Taquari. Tradição. Grupos étnicos.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE MAPAS
Mapa 1 – Colonização do Vale do Taquari ............................................................... 44 Mapa 2 – Localização das Canchas e Hípicas pesquisadas ..................................... 47
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Gráfico das vantagens de vitória no momento da chegada ..................... 37 Figura 2 – Proprietário posando ao lado de seu cavalo ............................................ 51 Figura 3 – Compositor ao lado de um animal que venceu várias corridas em canchas ...................................................................................................................... 55 Figura 4 – Crianças desempenhando a função de jóquei ......................................... 57 Figura 5 – Jóquei “segurando” o cavalo nas balizas de chegada .............................. 58 Figura 6 – Juiz a postos na baliza de chegada ......................................................... 59 Figura 7 – Dois parelheiros montados por seus jóqueis. O terceiro homem à esquerda era Henrique Britzki, que atuava como subdelegado acompanhando as carreiras da região .................................................................................................... 62 Figura 8 – Carreira na cancha do Sr. Eduardo Porto ................................................ 67 Figura 9 – Jogo da pedra ou Arremate em carreira na cancha de Linha Clara ......... 77 Figura 10 – Comprovante de aposta do Jogo da Pedra ou Arremate entregue ao apostador .................................................................................................................. 78 Figura 11 – Explicação sobre Arremate em uma hípica ............................................ 79 Figura 12 – Jogo da Pedra ou Arremate sendo organizado antes da carreira em Linha Clara ................................................................................................................ 80 Figura 13 – Caixas onde ocorre a largada dos animais ............................................ 85
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 7 2 O HOMEM E O CAVALO ....................................................................................... 20 2.1 O homem e o cavalo ao longo da história ....................................................... 20 2.2 O Cavalo no Rio Grande do Sul ....................................................................... 28 2.3 As corridas de cavalo em cancha reta ............................................................ 32 3 A CANCHA RETA NO VALE DO TAQUARI ........................................................ 42 3.1 As canchas do Vale do Taquari ....................................................................... 42 3.2 A cancha reta: ambiente de vivência da tradição ........................................... 49 3.2.1 Grupo dos proprietários de animais ............................................................. 50 3.2.2 Grupo dos Compositores .............................................................................. 53 3.2.3 Grupo dos Jóqueis ......................................................................................... 55 3.2.4 Grupo dos Juízes ........................................................................................... 58 3.2.5 Grupo dos Apostadores ................................................................................ 60 3.3 As relações de gênero ...................................................................................... 64 4 CANCHA RETA: O JOGO E A LEI NO VALE DO TAQUARI ............................... 69 4.1 A carreira e o jogo ............................................................................................. 69 4.2 O sistema de apostas........................................................................................ 75 4.3 A questão da legalidade ................................................................................... 81 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 88 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 93 APÊNDICES ........................................................................................................... 101 APÊNDICE A – Roteiro semi-estruturado de entrevista com participantes de carreiras .................................................................................................................. 102 APÊNDICE B – Roteiro semi-estruturado de entrevista com donos de cancha de carreira .................................................................................................................... 104 APÊNCIDE C – Roteiro semi-estruturado de entrevista com mulheres que frequentavam as carreiras ....................................................................................... 106 APÊNDICE D - Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) ...................... 107
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ANEXOS ................................................................................................................. 108 ANEXO A – Código de Corridas de Cavalos ........................................................... 109 ANEXO B – Lei nº 14.459 ....................................................................................... 110 ANEXO C – Lei nº 14.525 ....................................................................................... 111
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1 INTRODUÇÃO
As carreiras, corridas de cavalo em cancha reta, foram uma prática cultural
amplamente difundida no Rio Grande do Sul desde a introdução do cavalo no século
XVI. Na região do Vale do Taquari os imigrantes e os seus descendentes se
apropriaram dessa atividade já praticada pelos primeiros gaúchos, inserindo-a em
seu cotidiano. Dessa forma, as carreiras constituem uma interessante temática para
a pesquisa envolvendo práticas e tradições culturais da sociedade.
O Vale do Taquari é composto por trinta e seis municípios, sendo que um
considerável número destes possui história relacionada à tradição da cancha reta.
Há canchas que estão em funcionamento ainda na atualidade. Outras, porém, foram
desativadas, mas as histórias vividas naqueles espaços permanecem na memória
dos seus frequentadores. Essa prática, portanto, não se desenvolveu de forma
isolada nem apenas por um determinado grupo de imigrantes, uma vez que as
corridas eram realizadas periodicamente, em vários municípios, sendo muito comum
os participantes circularem por várias canchas diferentes levando seus animais para
competir.
O universo próprio que se forma em torno de uma corrida de cavalos nos
moldes das carreiras é repleto de significados singulares, proporcionando um estudo
das complexas relações que se estabelecem naquele espaço e a partir dele, tais
como relações de gênero e relações de poder. O universo das carreiras teve suas
próprias leis, regras e vocábulos tradicionalmente mantidos durante séculos através,
principalmente, da tradição oral.
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O estudo proposto nesse trabalho dará enfoque ao período compreendido
entre o final do século XIX e a segunda metade do século XX. A década de 1880
será o marco inicial, pelo fato de ser a época de inauguração do Prado Estrelense, o
mais antigo prado de que se tem notícia no Vale do Taquari. Como limite final foi
estabelecida a segunda metade do século XX, em decorrência do número das
canchas de carreira ter considerável diminuição. A delimitação espacial compreende
os municípios de Marques de Souza, Teutônia, Estrela, Paverama, Progresso,
Arvorezinha, Vespasiano Corrêa e Taquari, que fazem parte da região do Vale do
Taquari, Rio Grande do Sul, na forma de sua organização política atual.
As corridas de cavalo em cancha reta eram uma atividade comum na
campanha1 do Rio Grande do Sul desde a chegada dos primeiros cavalos, mas o
Vale do Taquari, embora se constituísse uma região de imigração, também manteve
essa tradição da cultura gaúcha ao longo de sua história. O problema de pesquisa
que levantamos é: sabido que as carreiras em cancha reta são atividades da
campanha, como se explica serem encontradas, constituírem-se prática e adquirirem
representação cultural em uma área de imigração, como é o caso do Vale do
Taquari?
Em relação ao problema levantado, apresentamos a seguinte hipótese: há
fontes que indicam a presença oficial das canchas no Vale do Taquari desde o
século XIX, portanto os colonizadores imigrantes que chegaram na região se
apropriaram dessa prática cultural já existente, mas inseriram nela uma série de
elementos e concepções que traziam consigo, modificando-a em alguns aspectos e
dando continuidade a outros.
O objetivo geral deste trabalho é identificar características e singularidades na
realização de carreiras de cavalos no que se refere a corridas em cancha reta e
suas contribuições para a formação histórica, social e cultural do Vale do Taquari.
Dentre os objetivos específicos pretendemos: a) elaborar o histórico das carreiras no
Rio Grande do Sul a partir de uma revisão bibliográfica; b) caracterizar as carreiras,
corridas de cavalo em cancha reta, difundidas no Vale do Taquari; c) analisar como
a prática de corridas de cavalo em cancha reta repercute em aspectos culturais da
1 Região sudoeste do Rio Grande do Sul, caracterizada pela produção agropecuária.
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sociedade do Vale do Taquari; d) analisar as relações socioculturais que se
estabelecem a partir das carreiras.
Justifica-se a importância do estudo pelo fato das carreiras em cancha reta
serem uma prática na região do Vale do Taquari e alcançarem longo tempo na
história dessa sociedade. Percebe-se que houve uma diminuição do número de
canchas nos municípios que compõem o Vale, assim como a frequência com que
essas corridas ocorrem é menor, mas ainda assim na atualidade as carreiras
representam uma atividade cultural relevante e movimentam grande parte da
sociedade.
Salienta-se também que existe uma quantidade relativa de pesquisas que
tratam do tema em termos de Rio Grande do Sul, mais precisamente sobre a região
da capital, Porto Alegre, porém poucos estudos tratam das carreiras no Vale do
Taquari. Na maioria dos casos são crônicas ou breves capítulos de livros de história
regional. Sabe-se que a história das carreiras no Vale do Taquari difere
substancialmente da de outras regiões, como Porto Alegre, em que ocorreu um
processo de profissionalização e esportivização das corridas de cavalo, o que não
pode ser sentido no Vale do Taquari.
É interessante também destacar a singularidade da formação étnica da região
em questão, constituída em sua maioria por imigrantes de origem portuguesa, alemã
e italiana que integraram às suas tradições uma prática amplamente difundida nas
regiões de campanha, que eram as corridas em cancha reta. Podemos observar
muitas semelhanças entre as corridas nessas duas regiões, principalmente no que
diz respeito aos vocábulos de carreira. As corridas constituem uma atividade cultural
em que é possível observar e perceber diferentes manifestações e aspectos da
sociedade, como as relações de gênero e de poder que estão presentes e muito
latentes nesse meio.
Aprovada em janeiro de 2014 pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio
Grande do Sul, a Lei 14.459 declara as Carreiras de Cavalo em Cancha Reta
integrantes do Patrimônio Histórico e Cultural do Rio Grande do Sul. Segue trecho
da justificativa encaminhada pelo Deputado Edgar Pretto:
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Defendemos aqui um bem cultural imaterial, onde as carreiras de cancha reta se enquadram como uma manifestação cultural, que é confirmada e legitimada pela historia da formação do povo gaúcho, onde antes mesmo da utilização da bombacha já existiam nos finais de semana, preenchendo tardes com muita diversão, como encontros sociais. O famoso jogo de osso, as fartas carpas com uma rica gastronomia, onde ficaram ilustres os pasteis de carreiras, se criando um dito popular quando um produto tem uma alta venda, se diz: “vendeu mais que pastel em carreira”, as apostas nas patas dos parelheiros – cavalos da competição – enfim, momentos que fizeram e fazem parte do nosso cotidiano como em versos de composições tradicionalistas de musica, poemas e trovas (RIO GRANDE DO SUL. Assembleia Legislativa. Projeto de Lei 223 2012, texto virtual).
Dessa forma, reafirma-se a importância de que se façam estudos sobre essa
temática, nas suas mais diversas especificidades.
A pesquisa sobre as corridas de cavalo em cancha reta no Vale do Taquari
possibilitará também compreender como essa sociedade se manifesta em situações
que possuem uma organização característica singular, uma lei própria, nas quais o
que é aceitável na sociedade em geral não é aceitável durante uma carreira, ou vice-
versa, pois as carreiras possuem um complexo ritual de realização e
desenvolvimento, podendo constituir-se como uma possibilidade de análise cultural
interessante.
A concepção de cultura utilizada neste trabalho é a proposta por Geertz
(1978), a qual não está condicionada ao espaço geográfico, ou seja, porção norte,
centro ou sul do Vale do Taquari. Não estamos desconsiderando as peculiaridades
de cada espaço geográfico, mas é importante salientar que não foi o único fator.
Vários outros elementos também influenciaram na formação cultural dos grupos
étnicos da região em estudo.
Analisando a complexidade de realizar um estudo que se proponha a
interpretar uma atividade cultural de um determinado grupo inserido em um contexto
mais amplo, torna-se fundamental deixar bem explícito que, quando nos propomos a
lançar um olhar sobre uma cultura, o fazemos do lugar que ocupamos no mundo.
Neste sentido, somente compreenderemos uma situação que presenciamos se
nossa construção cultural tiver possibilitado o reconhecimento de algum ato presente
naquele contexto.
[...] o que achamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem [...] a maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma
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ideia, ou o que quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente (GEERTZ, 1978, p. 19).
Em vista disto, o único que pode lançar um olhar “de dentro” para a cultura de
um grupo é aquele que está inserido nela como sujeito, aquele que se constitui
como parte dela. Cabe ao historiador lançar um segundo olhar, considerando aquilo
que é visto pelo grupo em questão. Assim sendo, apoiaremo-nos em relatos de
depoentes para adentrar o universo singular das corridas.
Um comportamento isolado não caracteriza uma cultura ou uma atividade
cultural de um grupo. É, assim, interessante perceber aspectos como intensidade,
participação social, valorização da cultura por parte do próprio grupo. Dessa forma
teremos condições mais seguras de compreender a importância de determinada
atividade para aqueles homens que durante tanto tempo a repetiram. Os artefatos
contribuem significativamente na medida em que são representações construídas
pelo próprio grupo cultural e refletem a sua percepção de si mesmo (GEERTZ,
1978).
A História Cultural não se propõe a estabelecer comparativos e traçar roteiros
pelos quais os grupos sociais passaram, nossas interpretações não podem repousar
em argumentos seguros, até mesmo porque a cultura não se mostra como algo
mensurável e muito menos imutável (GEERTZ, 1978). Não é possível criar conceitos
referentes a uma cultura nacional, primeiro porque as fronteiras políticas são
totalmente arbitrárias quando utilizadas para compreender parâmetros culturais, já
que o território é percebido de formas diferentes por grupos distintos. Segundo
porque, dentro do mesmo território, teremos a existência de culturas diferenciadas
associadas a práticas regionais, religiosas, étnicas, geográficas e tantas outras. No
estudo proposto utilizaremos como referência a fronteira política, por ela nos
possibilitar trabalhar com amostras dos principais grupos étnicos que constituíram
essa sociedade.
Entendemos como grupos étnicos aqueles que partilham uma identidade,
supondo que há grupos humanos que partilham essencialmente da mesma cultura e
há diferenças que distinguem essas culturas de todas as outras, reconhecendo que
não há correspondência simples entre as unidades étnicas e as semelhanças e
diferenças culturais (BARTH, [1969] 2000). Nesse sentido, as fronteiras étnicas
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adquirem função de oportunizar situações de contato entre pessoas de diferentes
culturas, persistindo as diferenças culturais dos grupos étnicos apesar da interação
entre eles.
É ainda interessante destacar que, mesmo fazendo uma análise
“microhistórica” de uma cultura, não se pode compreendê-la apartada do seu
contexto maior. Ela é parte de um todo, não ocorre em um segmento isolado, não se
dá de maneira separada dos outros aspectos sociais, mas sim ocorre como parte
deles. As carreiras representam uma característica cultural do Rio Grande do Sul,
em que o contexto é um definidor. Suas particularidades regionais vão se definindo
por meio de características singulares que formam os grupos em cada região. As
peculiaridades de um determinado grupo social só têm essa forma porque este
grupo está inserido socialmente em um meio maior e esse meio interfere nas suas
relações sociais e culturais.
Cada análise cultural séria começa com um desvio inicial e termina onde consegue chegar antes de exaurir seu impulso intelectual. Fatos anteriormente descobertos são mobilizados, conceitos anteriormente desenvolvidos são usados, hipóteses formuladas anteriormente são testadas, entretanto o movimento não parte de teoremas já comprovados para outros recém-provados, ele parte do tateio desajeitado pela compreensão mais elementar para uma alegação comprovada de que alguém a alcançou e a superou (GEERTZ, 1978, p. 35).
Ao falar em cultura estamos também falando dos sujeitos que fazem parte
dela e que a vivem, e esses sujeitos têm memórias. Entendemos memória não como
algo imóvel no tempo, como uma fotografia do passado. As memórias carregam
histórias de vida individual. O que Pollak (1992) chama de memórias “vividas por
tabela” são memórias transmitidas por meio de interlocutores, mas são tão reais
quanto as primeiras, pois dizem respeito tanto a vivências individuais como de
grupos, já que a memória “[...] é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida
física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento
em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa” (POLLAK, 1992, p. 4). Da
mesma forma, os acontecimentos vivenciados por um grupo são compreendidos de
forma diferenciada por cada indivíduo. Cada um impregna suas lembranças com as
suas vivências, de forma que um relato sobre o mesmo dia pode ser completamente
diferente para duas pessoas que estavam no mesmo local.
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A memória e a identidade são valores que estão constantemente em conflito.
Essas relações são tensas porque a memória também serve como uma forma de
reconhecimento de membros de um mesmo grupo, uma forma de criar uma
identidade coletiva, uma identificação com um espaço, com um acontecimento, com
uma ideologia, até mesmo com um partido político.
Os silêncios que percorrem nossas falas também são portadores de
discursos. Portanto, conforme Thompson (2002), é imprescindível que o
entrevistador tenha a capacidade de ficar calado e escutar, permitindo assim que o
depoente tenha mais autonomia e, por consequência, mais segurança em sua fala.
Sobre isso temos:
O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas (POLLAK, 1989, p. 3).
Em alguns casos, principalmente de grupos que historicamente são
oprimidos, os silêncios também são formas de manifestação. Nas carreiras, quando
se fala da presença feminina, os silêncios são mais frequentes, possibilitando um
estudo do papel ocupado pelas mulheres nesse cenário, aparentemente mais
relacionado à submissão.
Geertz (1978) realiza um estudo sobre as rinhas de galo em Bali fazendo uma
análise antropológica dos costumes balineses e das representações culturais
presentes nessa atividade. Traçando um paralelo entre o trabalho de Geertz e as
corridas de cavalo, podemos dizer que ambas são representações muito cruas das
organizações sociais:
[...] a briga de galos se expressa com mais força sobre as relações de status, e o que ela expressa a esse respeito é que se trata de assunto de vida ou morte. O fato de que o prestígio é assunto profundamente sério torna-se evidente em qualquer lugar de Bali – na aldeia, na família, na economia, no Estado. Uma fusão particular de títulos polinésios e de castas hindus, a hierarquia do orgulho constituiu a espinha dorsal da sociedade em termos morais. Entretanto, é somente nas brigas de galo que os sentimentos sobre os quais repousa essa hierarquia se revelam em suas cores naturais. Envolvidos, nos outros lugares, numa névoa de etiqueta, uma nuvem espessa de eufemismo e cerimônia, de gestos e alusões, aqui eles se expressam sob o disfarce muito tênue da máscara animal, uma máscara que na verdade os revela muito mais do que os oculta (GEERTZ, 1978, p. 314).
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Ao observar as corridas de cavalo, assim como as rinhas de galo, há uma
identificação do homem com o animal, profunda a ponto de ambos confundirem-se
um com o outro. Dessa forma o homem mostra-se despido de algumas normas
morais e é possível realizar um estudo dos traços culturais marcantes nas corridas
de cavalo em cancha reta.
Para o desenvolvimento dessa pesquisa utilizaremos fontes documentais
como o acervo digitalizado do jornal O Taquaryense, fotografias dos acervos de
depoentes, estatutos de corridas de cavalo, legislações e fontes bibliográficas.
Não são muitas as bibliografias que tratam especificamente do tema da
pesquisa, portanto utilizaremos como referências também obras que tratam das
características dos gaúchos primitivos, assim como de sua formação, relatos de
viajantes que passaram pelo sul do Brasil e obras que tratam do cavalo.
O francês Saint-Hilaire, em viagem à então Província do Rio Grande do Sul,
no ano de 1820, relata que na região de Viamão todos possuíam um grande número
de cavalos, mas que eram muito maltratados. Já sobre Rio Pardo o viajante escreve
que existia uma grande preocupação com os equipamentos dos cavalos a ponto de
seus proprietários gastarem grande parte de sua renda em estribos, freios e
retrancas de prata.
O “Preparo do Cavallo de Carreira ou Guia do Compositor” (1989), da autoria
de Joaquim Alencastre, Capitão da Cavalaria Ligeira da Província do Rio Grande do
Sul, escrito em 1882, destina-se a fazer uma narrativa minuciosa dos cuidados que
devem haver com os cavalos destinados às carreiras desde sua descendência até
sua alimentação, treinamento e exercícios.
A preocupação com o uso do cavalo crioulo em carreiras foi manifestada por
D. M. Riet no ano de 1918 na sua publicação “O Cavallo crioulo – problema de
defesa nacional” (1918). De acordo com o autor, é raro que um cavalo de corrida
chegue aos seis anos de idade sem que apresente algum defeito. Assim, resta
comprometido o cruzamento desses cavalos, acarretando-lhes uma falta de
rusticidade. O autor argumenta que o uso do cavalo crioulo para as corridas o
desvirtua da sua real origem.
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“O cavalo na formação do Brasil” (1964), de José Alípio Goulart, merece
destaque entre as obras que tratam do cavalo no Brasil. Sua singularidade está nos
estudos que o autor faz sobre a introdução do cavalo social e econômico no país. O
autor dedica um subcapítulo de sua obra às carreiras.
Aparício Silva Rillo, na obra “‘Já se viram!’ – História, Tradição, Folclore e
atualidade da Cancha Reta no Rio Grande do Sul” (1975), apresenta um panorama
das corridas em cancha reta principalmente nas regiões fronteiriças, com
importantes fontes documentais.
Guilhermino César, no estudo “História do Rio Grande do Sul: Período
Colonial” (1979), destaca a corrida em cancha reta como um dos principais
divertimentos dos gaúchos no século XVIII, na chamada Era do Couro, juntamente
com o jogo do osso.
As publicações referentes ao cavalo gaúcho e às corridas em cancha reta se
multiplicam na década de 1980 como, por exemplo, Carlos Castillo, que publica “O
Cavalo Gaúcho” (1983) em que retrata a figura do cavalo do Rio Grande do Sul.
Lothar Francisco Hessel escreve o livro “O município de Estrela: história e
crônica” (1983), onde menciona artigo do jornal O Taquaryense de 5 de janeiro de
1888 que trata da existência de um prado na cidade de Estrela, no Vale do Taquari,
inaugurado com apresentação de um estatuto que regulamentava as corridas de
cavalo e velocípedes.
Dante de Laytano dedica um capítulo de “Folclore do Rio Grande do Sul”
(1984) ao gaúcho e ao cavalo, no qual referencia o terceiro e último número da
revista Querência (Porto Alegre) ao falar dos Termos e Expressões de Carreira.
Descreve uma extensa lista de termos específicos utilizados nas corridas de cancha
reta e também das raças de cavalos que participavam dessa prática cultural.
As carreiras, enquanto prática cultural e social do povo gaúcho, são
destacadas na obra de Raul Anes Gonçalves intitulada “Mala de Garupa (Costumes
Campeiros)” (1984) em que é descrita a atuação dos diferentes segmentos da
sociedade rio-grandense e seu envolvimento nas corridas: as mulheres que
preparavam os alimentos, os guris que carregavam balaios, fazendeiros que traziam
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seus parelheiros, gaúchos montados em lindos cavalos, um subdelegado que fazia o
policiamento e as comadres que cochichavam.
No estudo “O Gaúcho a pé – um processo de desmitificação” (1985), da
autoria de Elizabeth Rizzato Lara, as corridas de cavalo são citadas como uma das
diversões dos gaúchos primitivos.
Edilberto Teixeira publica o estudo “Dicionário gaúcho do cavalo” (1987) em
que apresenta uma série de termos e conceitos típicos das carreiras de cavalos.
Com as mesmas características se destaca a obra “Dicionário de regionalismos do
Rio Grande do Sul” (1996) de Zeno Cardoso Nunes e Rui Cardoso Nunes.
Tau Golin, no estudo “O povo do pampa: uma história de 12 mil anos do Rio
Grande do Sul para adolescentes e outras idades” (1999), descreve em um breve
capítulo de quatro páginas o cenário das corridas, assim como seus principais
personagens.
Rodolfo Roberto Schroeder publica o estudo “Pelas trilhas do passado” (1999)
onde relata alguns casos envolvendo as corridas em cancha reta no Vale do
Taquari. No ano seguinte Gino Ferri publica “A história de Encantado em fotografias”
(2000). Nesta obra, do acervo de Hugo Peretti o autor traz a fotografia da chegada
de dois parelheiros em cancha de Encantado. Já a obra “Estrela: Ontem e Hoje”
(2002), de José Alfredo Schierholt, dedica um parágrafo ao Turfe. O autor engloba
também as carreiras sob essa nomenclatura.
“Desvendando o Enigma do Centauro: como a união homem-cavalo acelerou
a história e transformou o mundo” (2008), da autoria de Bjarke Rink, trata da
importância do encontro entre humanos e equinos para o mundo na forma em que o
conhecemos hoje. O autor faz um estudo que se inicia com a domesticação do
cavalo até sua importância na atualidade.
As questões de gênero no turfe são analisadas por Adelman e Moraes no
artigo “Tomando as rédeas: um estudo etnográfico da participação feminina e das
relações de gênero no turfe brasileiro” (2008). O trabalho se baseia em uma
pesquisa etnográfica realizada no Jockey Club do Paraná em que as autoras
acompanham o árduo esforço da mulher para conquistar o seu espaço nesse meio.
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“Em busca da identidade luso-brasileira no associativismo esportivo em Porto
Alegre no princípio do século XX” (2009), da autoria de Janice Zarpellon Mazo e
Tiago Oviedo Frosi, publicado na Revista Brasileira de Ciência do Esporte, trata dos
primeiros prados da capital gaúcha. Os autores buscam compreender como ocorreu
o confronto de identidades culturais entre as associações esportivas luso-brasileiras
e teuto-brasileiras em Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX.
O artigo “Corridas de Cavalo em Cancha Reta em Porto Alegre (1855/1877):
uma prática cultural-esportiva sul-rio-grandense” (2010), da autoria de Ester Liberato
Pereira, Janice Zarpellon Mazo e Vanessa Bellani Lyra, publicado na Revista de
Educação Física da Universidade Estadual de Maringá, aborda como se
desenvolveu a prática de corridas de cavalo em Porto Alegre em um cenário de
pleno desenvolvimento no qual elas eram incentivadas. Inicialmente elas ocorriam
na periferia, depois surgiram os primeiros prados e assim as corridas em cancha reta
vão perdendo o seu espaço. O trabalho se utiliza de fontes impressas como o
catálogo da Revista do Globo, acervo e obra comemorativa do Jockey Club do Rio
Grande do Sul.
“Salto alto e botas: representações das mulheres nas práticas equestres em
Porto Alegre/RS reproduzidas pela Revista do Globo (1929-1967)” (2010) é outra
produção de Ester Liberato Pereira e Janice Zarpellon Mazo, publicada na Revista
Fazendo Gênero. O estudo abarca os anos de 1929 a 1967 e a fonte de pesquisa foi
a Revista do Globo. As autoras concluem que entre as décadas de trinta e setenta
Porto Alegre sofria fortes influências europeias e norte-americanas. As mulheres no
contexto do turfe são mostradas com muita elegância e sempre acompanhadas de
uma figura masculina, não sendo atuantes nessa modalidade esportiva.
Do mesmo ano data a publicação “Um olhar histórico sobre a emergência dos
primeiros clubes esportivos na cidade de Teutônia, no Rio Grande do Sul” (2010) da
autoria de Cecília Elisa Kilpp, Janice Zarpellon Mazo e Vanessa Bellani Lyra. O
artigo publicado na Revista Pensar a Prática estuda o surgimento dos clubes
esportivos na cidade de Teutônia, destacando-se, para fins desse estudo, o trecho
em que fala dos prados para corridas em cancha reta. No ano seguinte Janice
Zarpellon Mazo, Ester Liberato Pereira e Carolina Fernandes da Silva publicam na
revista Motriz o artigo “Revista do Globo: as mulheres porto-alegrenses nas práticas
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equestres” (2011) no qual fazem uma análise da participação feminina nos esportes
envolvendo o cavalo a partir da pesquisa no acervo da Revista do Globo.
Dentre as publicações mais recentes destacamos a dissertação do Programa
de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano da UFRGS de Ester
Liberato Pereira, “As práticas equestres em Porto Alegre: percorrendo o processo de
esportivação” (2012). O trabalho acompanha as corridas de cavalo desde seu início
até a esportivização ocorrida no século XX na capital.
A pesquisa proposta é qualitativo-exploratória (GIL, 2002) e se configura
como uma análise do tipo característico utilizado pela história cultural. No trabalho
também foi utilizada a pesquisa de campo através da metodologia da História Oral.
O trabalho com História Oral prevê uma série de cuidados metodológicos devido à
singularidade inerente a essa prática. O método possibilita que o pesquisador tenha
acesso à memórias e informações ausentes em outras fontes de pesquisa, lidando
com aspectos como subjetividade, emoções e cotidiano (FERREIRA; AMADO,
2002). Foram realizadas nove entrevistas identificadas como EA, EB, EC, ED, EE,
EF, EG, EH, EI e EJ, com três descendentes de açorianos, quatro descendentes de
alemães e três descendentes de italianos, os quais tiveram sua identidade
resguardada. As entrevistas foram feitas conforme roteiros semiestruturados
(APÊNDICES A, B e C), gravadas em áudio e posteriormente transcritas. O roteiro
semiestruturado permite que o entrevistador tenha segurança quanto aos aspectos
fundamentais da entrevista, mas não limita a entrevista a estas questões,
possibilitando que o diálogo transcorra por novos dados que vão sendo
apresentados. É imprescindível que o entrevistador tenha a capacidade de ficar
calado e escutar, permitindo assim que o depoente tenha mais autonomia e por
consequência mais segurança em sua fala (THOMPSON, 2002).
Como metodologia de trabalho consolidada a História Oral requer o uso de
procedimentos que qualifiquem as entrevistas como fontes orais. Por isso os
entrevistados dessa pesquisa foram selecionados segundo critérios que atestem a
importância das suas contribuições para a mesma, levando em consideração
região/municípios de circulação, grau de envolvimento com as práticas de corrida
em cancha reta, questões de gênero e grupos sociais envolvidos. Na perspectiva de
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considerar toda a subjetividade presente nos discursos dos depoentes, nos atemos
para o seguinte:
A consideração do âmbito subjetivo da experiência humana é a parte central do trabalho desse método de pesquisa histórica, cujo propósito inclui a ampliação, no nível social, da categoria de produção dos conhecimentos históricos, pelo que também se identifica e solidariza com muitos dos princípios da tão discutida “história popular” (LOZANO, 2002, p. 16).
Os entrevistados assinaram um Termo de Consentimento Livre Esclarecido
(APÊNDICE D) onde consta sua concordância em participar da pesquisa. A
pesquisa também contou com fontes como diários de campo (Diário de Campo 1,
Diário de Campo 2, Diário de Campo 3, Diário de Campo 4, Diário de Campo 5,
Diário de Campo 6, Diário de Campo 7 e Diário de Campo 8) com anotações feitas
pela pesquisadora em visita às canchas de carreira pesquisadas e às casas dos
depoentes.
A estrutura do texto está dividida da seguinte forma: introdução, que
apresenta a temática da pesquisa, a metodologia e o referencial bibliográfico
utilizado na mesma; segundo capítulo, “O homem e o cavalo”, que trata das relações
sociais, políticas, econômicas e culturais da humanidade com o cavalo nas
diferentes épocas da história, sua introdução no Brasil e Rio Grande do Sul e o
desenvolvimento das carreiras, as corridas de cavalo em cancha reta; terceiro
capítulo, “A Cancha Reta no Vale do Taquari” em que se estudam as canchas da
região do Vale do Taquari, os personagens das carreiras e as relações de poder e
gênero estabelecidas nesse espaço; quarto capítulo, “Cancha reta: o jogo e a lei no
Vale do Taquari”, que trata da relação entre as carreiras e os jogos de azar, o
sistema de apostas e as legislações que falam das corridas de cavalo;
considerações finais, em que se apresentam as constatações feitas sobre as
relações entre os grupos étnicos e as carreiras no Vale do Taquari, assim como sua
realização e continuidade na atualidade.
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2 O HOMEM E O CAVALO
A complexa relação entre humanos e cavalos moldou aspectos fundamentais
da sociedade que conhecemos na atualidade. Seja na locomoção, na guerra, na
economia, na política ou na cultura, a presença do cavalo modificou a estrutura da
forma de vida humana.
Neste capítulo estudaremos a história das relações entre homens e cavalos
em diferentes épocas, assim como sua introdução no Brasil e no Rio Grande do Sul
e a formação da tradição das corridas de cavalo em cancha reta.
2.1 O homem e o cavalo ao longo da história
Os primeiros cavalos já percorriam as planícies europeias e asiáticas anos
antes do surgimento do homem, mas essas planícies não foram seu habitat natural.
Segundo Lima, Shirota e Barros (2006), os ancestrais do cavalo moderno surgiram
no continente americano durante a Era Cenozóica. Após milhões de anos de
evolução surgiu o gênero Equus, que migrou para a Europa e para a Ásia através de
ligações terrestres que existiam naquele período. Há 8.000 anos os cavalos
americanos foram extintos, e as causas dessa extinção ainda são desconhecidas
(LIMA; SHIROTA; BARROS, 2006).
Conforme Lerner (1998) os cavalos atuais do gênero Equus apareceram há
aproximadamente um milhão de anos. Esses animais deram origem a três tipos de
cavalos: 1) O cavalo da floresta: ancestral dos cavalos usados em tarefas pesadas,
tinha um andar lento e cascos grandes e fortes adaptados aos pântanos europeus;
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2) O cavalo asiático: conhecido também como przewalski, em homenagem ao
polonês que o descobriu, existe até a atualidade; 3) O cavalo tarpã: animal que deu
origem às raças mais velozes que conhecemos nos dias atuais (LERNER, 1998).
As espécies de equinos, durante seu processo evolucionista, passaram por
modificações e adaptaram-se ao ambiente. Sem possuir grandes presas, garras ou
um aparelho inocular, os equinos desenvolveram a capacidade de atingir em poucos
segundos uma velocidade que lhes permitia fugir de seus predadores. O aparelho
anatômico dos equinos colabora para que o animal possa percorrer longas
distâncias em alta velocidade, assim:
[...] toda a fisiologia do cavalo gira em torno da sua velocidade. Em outras palavras, o cavalo evoluiu em função de agilidade, velocidade e resistência. A sua sobrevivência bem sucedida por 58 milhões de anos pode ser atribuída ao aperfeiçoamento constante do seu aparelho locomotor, em consequência do qual todo o resto - sistema de alimentação e comportamento social - se adaptou (RINK, 2008, p. 26).
A união entre homem e cavalo modificou a forma com que o ser humano se
relacionava com o ambiente. Na literatura há a figura mitológica do centauro, criatura
que possui a cabeça humana e o corpo de equino, cuja união provocou a junção de
duas características fundamentais para compreendermos a dominação humana. No
imaginário mitológico o centauro representa uma criatura com inteligência humana e
velocidade animal, combinação que deu ao homem um poder sem igual. A palavra
Centauro significa guardião do gado, e possui um sentido ambíguo:
[...] a mitologia grega é ambígua em relação ao Centauro – às vezes apresentando-o como um inimigo traiçoeiro e, em outros momentos, como inteligente, conhecedor da equitação, caça, música e medicina. A razão para essa dualidade de atitude é que o Centauro – o guerreiro das estepes – era, quando amigo, o mais precioso e, quando inimigo, o mais perigoso (RINK, 2008, p. 54).
A fascinação do homem pelo cavalo pode ser percebida em diferentes épocas
e na utilização em diversas funções. Ele é mencionado na mitologia, na história, na
literatura, no esporte, na guerra, no trabalho e, de certa forma, podemos dizer que o
cavalo acompanhou de muito perto a trajetória humana no planeta. As culturas são
produto da interação do homem com o meio, portanto a interação do homem com o
cavalo é um fator formador de cultura. Recorrendo a Santos (1983, p. 15) temos que
a “[...] diversidade das culturas existentes acompanha a variedade da história
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humana, expressa possibilidades de vida social organizada e registra graus e formas
diferentes de domínio humano sobre a natureza”.
Os primeiros povos que utilizaram o cavalo para a montaria foram os povos
nômades das estepes eurasianas (cimmerios, citas, hunos, turcos magiares e
mongóis). Inicialmente foi utilizado para a locomoção, o que lhes garantiu a
possibilidade de percorrer maiores extensões territoriais, invadindo e dominando
áreas dominadas por outros povos. O cavalo montado por um homem também era
utilizado para o controle de outros bandos de cavalos.
Os povos sedentários precisaram buscar novas estratégias militares para se
defenderem dos ataques velozes das cavalarias nômades que, contando com a
agilidade oferecida pelo cavalo, reuniam condições para combates mortais. O
período que se seguiu ficou conhecido como “Ciclo dos Centauros” e teve início por
volta de 1.500 a. C. (RINK, 2008).
O cavalo não foi apenas uma arma de guerra ou um veículo de transporte, por
isso provavelmente se distingue de tantas outras descobertas humanas que se
tornaram obsoletas. O cavalo passou a integrar as distintas sociedades humanas,
bem como a fazer parte de suas tradições e de sua cultura, representando para
cada grupo símbolos próprios e distintos. Dessa forma, a simbologia do cavalo está
presente em diversas manifestações culturais mundo afora. Tratando-se de
fenômeno que passa a ter significados conforme os elementos da tradição das
sociedades, temos:
Lendas ou crenças, festas ou jogos, costumes ou tradições – esses fenômenos não dizem nada por si mesmos, eles apenas o dizem como de uma cultura, a qual não pode ser entendida sem referência à realidade social de que faz parte, à história de sua sociedade (SANTOS, 1983, p. 47).
Durante a Idade Média surge na Europa a emblemática figura do cavaleiro
medieval, homem que tinha como função proteger reis e reinos em troca de terras e
riquezas. Segundo Duby, era o cavaleiro da Idade Média que gozava da maior
liberdade naquela sociedade.
O cavaleiro goza os prazeres do corpo. A função que desempenha autoriza-o a passar o tempo entre prazeres que são também uma forma de fortalecimento do treino. A caça - por isso, as florestas, as áreas reservadas a esse jogo de aristocratas, se fecham aos arroteadores, o banquete: empanturrar-se de caça enquanto o homem comum morre de fome, beber,
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e do melhor vinho, cantar, folgar, entre camaradas, para que se estreite, à volta de cada senhor, o grupo dos seus vassalos, bando truculento que é preciso constantemente manter alegre. Esporear um bom cavalo na companhia dos irmãos, dos primos, dos amigos. Berrar horas a fio entre a poeira e o suor, desfraldar todas as virtudes de seus braços. Identificar-se com os heróis das epopeias, com os antepassados cujas proezas é preciso igualar. Subjugar o adversário, capturá-lo, para o espoliar. No arrebatamento, chegar por vezes a matá-lo. Embriaguez da chacina. O gosto do sangue. Destruir e, chegada a noite, o campo juncado de mortos: eis a modernidade do século XI (DUBY, 1989, p. 17-18).
O cavaleiro medieval desfrutava de um poder e de um status que lhe permitia
desenvolver dominação frente aos camponeses, já que a posição social que ele
ocupava era temida e admirada. Neste contexto, ora tido como assassino, ora como
herói, o cavaleiro é a personificação do poder da união entre homem e animal.
Sobre a sociedade medieval Le Goff transcreve um manuscrito florentino do
século XIII, conforme segue:
O Diabo tem IX filhas, que casou
a simonia com os clérigos seculares
a hipocrisia com os monges
a rapina com os cavaleiros [...] (LE GOFF, 1995, p. 18).
Este trecho ilustra a associação dos cavaleiros com as pilhagens e furtos, o
que contrasta com uma visão tradicional honrosa dos cavaleiros. Assim, o cavalo é
uma ferramenta utilizada como forma de manter a dominação diante dos mais
fracos, e o cavaleiro é um personagem ganancioso que toma aquilo que lhe
interessa.
O fato de vencer uma guerra ou uma batalha dava ao cavaleiro um prestígio
social que lhe garantia uma série de privilégios, como bebidas, festas e mulheres.
Porém, estar no campo de batalha lhe trazia riscos mortais ou a possibilidade de
ficar gravemente ferido. As demonstrações de coragem em corridas e competições
equestres foram uma boa alternativa para os homens garantirem um status
privilegiado na sociedade sem correrem tantos riscos.
Há uma gama extensa de variações esportivas envolvendo o cavalo: a corrida
de cavalos, a corrida de biga, o polo, a caça a cavalo, a justa2, a caça à raposa, as
2 Competição marcial com dois cavaleiros montados (RINK, 2008).
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corridas com obstáculos, os enduros equestres, a arquearia montada, entre outros
(RINK, 2008). Todas essas variações têm em comum a busca pela excelência, a
prova de que o homem aliado ao cavalo possui a capacidade de vencer barreiras
intransponíveis sem essa união. A relação estabelecida historicamente entre homem
e cavalo é uma relação de poder.
A necessidade humana de arriscar-se para afirmar a sua virilidade é uma das
bases da relação entre esses dois seres fisicamente distintos. Inicialmente
precisamos entender o conceito de dominação. Atrelada à doma do animal, é uma
forma de afirmação da submissão da natureza perante o ser humano. O animal que
era selvagem passa a ser controlado, e antes do enfrentamento entre os homens há
o enfrentamento entre homem e animal.
Durante uma corrida de cavalos o homem está constantemente reafirmando
seus próprios limites e seu lugar na sociedade. No momento da corrida quem está
no controle da situação é o jóquei: o cavalo responde aos estímulos externos que
sofre. Simbolicamente, além da dominação da natureza pelo homem, há também o
embate entre o homem que deverá manter o controle sobre o cavalo e a disputa
contra os adversários da corrida com o objetivo de cruzar primeiro a linha de
chegada. O significado destas reações pode ser ampliado para além das corridas de
cavalo para compreendermos muitas relações existentes na sociedade atual, onde o
homem busca constantemente estar no controle, não se submetendo às condições
naturais e se reafirmando enquanto dominador de uns em relação aos outros.
A necessidade humana de autoafirmação na prática de jogos é analisada por
Jacques Le Goff como uma atividade usual na Idade Média:
Uma vez satisfeitas as necessidades essenciais de subsistência e, quanto aos ricos, as exigências – não menos essenciais – do prestígio, pouco ficava aos homens da Idade Média. Sem se preocuparem com o bem-estar, sacrificavam tudo às aparências quando isso estava nas suas possibilidades. As suas únicas alegrias profundas e desinteressadas eram as festas e os jogos, mas, nos grandes, a festa era também ostentação e autopropaganda (LE GOFF, 1995, p. 126).
As corridas de cavalo são a personificação da junção de duas grandes
paixões históricas do homem, o cavalo e o jogo. Assim como no Medievo o jogo
desempenha uma função primordial na vida social, é uma forma de conquistar e
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manter status diante do grupo. A vitória traz ao apostador honra e credibilidade que
ele partilha com o seu círculo de apoiadores.
A importância do cavalo ficou impregnada na cultura dos povos ibéricos.
Exemplo disso é o culto ao cavalo na Espanha e em Portugal. A situação da
Península Ibérica frente à frequente possibilidade de invasões inimigas fez surgir
uma nobreza guerreira. Os reis, assim, se preocupavam em manter gente de cavalo
para lutar em suas guerras, davam em troca da honra da cavalaria terras e quantias
em dinheiro.
[...] era a posse do cavalo que sustentava o título de cavaleiro concedido pelos capitães d’África, ou pelo vice-rei da Índia, tanto assim que, para confirmá-lo, El-Rei exigia a prova de que o titulado servira, com cavalo e armas, o mínimo de seis meses (GOULART, 1964, p. 17).
Levando em consideração a rigidez da estrutura social europeia nesse
período, é surpreendente observar que a posse de um animal pudesse favorecer
um crescimento na condição social. Os plebeus tinham na posição de cavaleiro a
única possibilidade de ascensão. “A Cavalaria e o cavalo se constituíam nas maiores
aspirações do homem; e a inclinação literária era toda no sentido das narrativas de
feitos heroicos de invencíveis ginetes medievos” (GOULART, 1964, p. 26).
No Velho Mundo o cavalo já tinha conquistado um espaço primordial na
manutenção das relações econômicas, sociais, políticas e culturais daquela
sociedade. Sua reintrodução na América se deu de forma conflituosa, através da
invasão dos conquistadores europeus. Durante o processo de conquista da América,
o uso bélico do cavalo mostrou-se uma das principais armas utilizadas pelos
conquistadores espanhóis. O espanto dos povos nativos diante do animal é descrito
em vários relatos de missionários e cronistas. Sobre o papel do cavalo na conquista
temos:
O cavalo fora instrumento indissociável da conquista, ele era o símbolo de enobrecimento dos plebeus e contribuía para remanejar hierarquias sociais. Embora se saiba da utilização de outros animais, nas crônicas de conquista são mais recorrentes as referências aos cavalos, ficando assim mais evidente a sua importância e participação nos acontecimentos (ARAÚJO, 2011, p. 6).
Visando impor a dominação física e psicológica, o cavalo foi usado por Cortés
durante o seu avanço sob o Império Mexicano. Utilizando os próprios signos
mexicanos que viam os cavalos como seres sobrenaturais que guerreavam com
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vontade própria, Cortés usou o imaginário do povo mexicano para impor sua
dominação.
Sabe-se que os naturais do México, apesar da civilização que ali florescia e de outras possessões espanholas na América do Sul, estranharam o cavalo, acreditando inclusive que os invasores eram deuses e que o homem e animal constituíam um só corpo (GOULART, 1964, p. 36).
Para compreender o impacto da introdução do cavalo na América é preciso
considerar as estruturas simbólicas presentes na cultura dos povos pré-
colombianos. As análises das formas simbólicas não podem estar dissociadas dos
acontecimentos sociais e das ocasiões concretas, senão ficarão apenas no campo
da subjetividade (GEERTZ, 1978).
No Brasil, a inserção do cavalo se dá a partir da necessidade de animais para
a lida, na criação de gado e como força motriz para os engenhos de açúcar,
principais atividades econômicas desenvolvidas no período colonial. Há inúmeras
controvérsias sobre a chegada dos primeiros cavalos ao Brasil e sobre qual região
teriam eles galopado primeiro devido à imprecisão dos registros de carga que
acompanhavam as frotas de navios saídas da Europa. Sobre a chegada dos
primeiros animais temos:
Provavelmente, os primeiros cavalos voltados para utilização em solo brasileiro chegaram em 1534, quando D. Ana Pimentel, esposa e procuradora de Martin Afonso de Souza (donatário da Capitania de São Vicente), trouxe diversos animais domésticos das ilhas da Madeira e das Canárias. No ano seguinte, em 1535, Duarte Coelho (donatário da Capitania de Pernambuco) iniciou a criação de animais domésticos no nordeste brasileiro incluindo, provavelmente, alguns cavalos. Oficialmente, a chegada de cavalos no Brasil só foi registrada em 1549. Naquele ano, Tomé de Souza (primeiro governador-geral) mandou vir alguns animais, de Cabo Verde para a Bahia, na caravela Galga (LIMA; SHIROTA; BARROS, 2006, p. 21).
Nos primeiros séculos de colonização portuguesa, além da necessidade
interna da nova colônia, houve interesse em produzir uma frota cavalar no Brasil que
suprisse as carências da cavalaria portuguesa. Portugal ressentia-se da falta de
cavalos para suas forças sediadas em Angola, “não só pelo que o cavalo
representava como arma de guerra como pelo pavor que lhe tinham os negros”
(GOULART, 1964, p. 49). Dessa forma, durante os séculos XVII e XVIII o Brasil foi o
principal fornecedor de montarias para as tropas portuguesas na África.
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No Brasil Colonial e Imperial o cavalo passou a designar status social. Uma
família abastada tinha em suas posses considerável número de animais, dentre eles,
o cavalo. Segundo Goulart o protagonismo do cavalo é visível na economia por meio
do animal de sela, de carga e de tração, cada um desempenhando uma função
específica na construção da economia brasileira do período. Paralelamente às
funções econômicas estão as funções sociais do cavalo, sobre as quais destaca-se:
O cavalo social de sela era o cavalo de stada, de montaria pessoal e exclusiva de seu dono, aristocrata rural, enriquecido pelo açúcar, pelo gado, pelo ouro, pelo café. No Brasil agropecuário, pode-se dizer que até fins do século XIX o cavalo ocupou posição sui generis no panorama aristocratizado que então se divisava. Tal era o excesso de cuidados e desvelos com que o cumulavam que, em alguns casos, até superavam as atenções dispensadas aos membros da família (GOULART, 1964, p. 111, grifo do autor).
Possuir um belo cavalo de sela para a montaria ilustrava a posição social do
indivíduo, indiferente de sua situação econômico-financeira, pois era comum o
endividamento para manter certos luxos como arreios de prata e capas bordadas de
veludo. A posse de um belo cavalo de sela resguardava ao proprietário um lugar na
sociedade aristocrática do Brasil Colonial.
Observa-se que a postura daquele que está montado é um tanto mais segura
e firme do que aquele que vem a pé, ou seja, produz naqueles que o cercam uma
submissão acentuada. Os Senhores de Engenhos do nordeste usavam o cavalo
para acompanhar o trabalho dos escravos nos canaviais, e “o simples patear do
cavalo senhorial bastava para incutir respeito à escravaria, à molecada do eito”
(GOULART, 1964, p. 113).
Na história brasileira da equitação, o início do século XIX merece nossa maior
atenção. Nesse período todas as províncias já estavam ligadas por estradas que
permitiam o acesso das cavalarias, colocando em operação toda a dinâmica
equestre no Brasil. Sobre o desenvolvimento da cavalaria brasileira temos:
Com a vinda do príncipe regente D. João e sua ampla ‘entourage” em 1808, o país se tornou o único das Américas a sediar uma corte europeia completa com cavalaria, desfiles militares e jogos equestres. Na administração de D. João VI são fundadas três coudelarias reais para promover a melhoria das raças cavalares brasileiras. [...] A fundação desses complexos equestres por D. João, talvez as primeiras na história da América do Sul, tem para o Brasil o mesmo significado da inauguração da primeira fábrica de automóveis, 1959, por Juscelino Kubitschek (RINK, 2008, p. 392).
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Nas diferentes regiões brasileiras os equinos figuraram com importância, mas
no sul do país essa situação será ainda mais nítida devido à formação econômica,
política e cultural que deu protagonismo aos cavalos.
2.2 O Cavalo no Rio Grande do Sul
Segundo Castillo (1983), há informações de que a chegada dos primeiros
cavalos à região que atualmente denominamos Rio Grande do Sul ocorreu após a
fundação de Buenos Aires por Dom Pedro de Mendonza, no ano de 1535. Durante
os confrontos pela conquista da Argentina, cerca de setenta e seis cavalos teriam
fugido, se espalhado pelo território e retornado ao modo de vida selvagem. Sua
reprodução espontânea deu origem a extensas manadas que se espalharam pela
Província oriental e chegaram até a campanha do Rio Grande do Sul (CASTILLO,
1983).
Tanto o cavalo quanto o gado espalhado pelo pampa foram objeto de
interesse econômico dos homens que ocupavam essa região, criando um
personagem especializado nessa atividade rural, o gaúcho. Esse típico homem do
pampa, por exemplo, tanto utilizava esses animais para o trabalho como para seu
divertimento, em corridas e rodeios.
O Rio Grande do Sul, desde sua formação como província do Brasil, foi um
território de muitas disputas, tanto por se constituir como território fronteiriço na
região do Prata como também pelas disputas internas que envolviam embates entre
os grupos indígenas que já ocupavam esses territórios e colonizadores que vinham
adentrando cada vez mais pelos interiores. Nesse cenário de província pampeana, a
lida com o gado e a importância do cavalo vão se tornando primordiais.
[...] Essa condição fronteiriça era objeto de grande preocupação para o governo brasileiro e o gaúcho, pois a guerra parecia ser sempre iminente. [...] A política das autoridades nesse sentido consistia em criar núcleos estratégicos de povoamento ao longo da fronteira e assim garantir-se de uma eventual disputa por parte da Argentina, do Uruguai ou do Paraguai (ZARTH, 1997 p. 26-27).
A organização militar da província foi influenciada pelo uso constante da
montaria. Ao promover o alistamento para o serviço militar a pé, o governador da
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então Capitania do Rio Grande no período de 1809 a 1814, D. Diego de Souza,
deparou-se com uma recusa do gaúcho, acostumado desde criança a andar
montado. Com o intuito de solucionar esse problema que atingia a segurança do
estado, conforme Reverbel (1986), D. Diego criou a artilharia montada, que obteve
êxito quanto ao voluntariado, sendo raras as deserções.
As revoluções rio-grandenses foram revoluções a cavalo, principal elemento dessas “patriadas”, como as denominam os uruguaios. As potreadas sempre tiveram dois objetivos: a remonta dos efetivos das forças que a praticaram e a privação de cavalos das forças inimigas, segundo o princípio caudilhesco de que tropa a pé é tropa fora de combate (REVERBEL, 1986, p. 32).
A figura do gaúcho enquanto nomenclatura, conforme Gutfreind (2006, p.
241), surgiu para designar o habitante da zona da campanha que se dedica à
criação de gado, “homens que ‘vagueavam’ pela campanha, tanto trabalhadores
sem emprego como ladrões de gado poderiam receber o mesmo tratamento,
atendendo pelo chamado de ‘gaúcho’”. Segundo um relatório do governador Paulo
Gama, do ano de 1803, estima-se que houvesse em torno de quatro mil “homens
soltos” em meio a uma população de trinta mil habitantes, referindo-se a esses
homens que circulavam pela região de fronteira sem paradeiro certo. Utilizavam
como vestimenta botas de couro de potro, com meio pé, chiripá de algodão, poncho
e na cabeça um chapéu (COSTA; FONSECA; SCHMITT, 2004).
Na lida diária destes homens o cavalo representa algo muito além de um
instrumento de trabalho. Desde os primórdios o gaúcho manifesta o seu grande
apego ao referido animal. A relação entre homens e cavalos é comum nas
referências da historiografia tradicional, que relacionam umbilicalmente a figura do
gaúcho ao cavalo, seu companheiro de todas as horas, seja no trabalho, seja no
lazer (LARA, 1985). A imagem do gaúcho foi sendo construída e moldada a ponto de
ganhar um sentido folclórico, ingressando na literatura e na ficção como “meio
homem, meio herói, sempre acompanhado do seu cavalo, ao ponto de se confundir
com ele, guerreiro impetuoso e machista solitário, um filho do deserto, um centauro
dos pampas, tal como o delineou a traços grossos a mão de Alencar” (GOLIN, 1983,
p. 23).
Na literatura, nos relatos de viajantes e cronistas, o uso do cavalo para a
realização das mais variadas tarefas é mencionado como uma característica do
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modo de vida dos habitantes do Rio Grande do Sul em suas atividades cotidianas,
por mais simples que possam ser, como ilustra Goulart:
Nos enterros, os esquifes eram levados ao cemitério amarrados transversalmente à garupa da montaria. Nenhum peão cumpriria uma ordem que exigisse sua locomoção a cem metros de distância, que logo não chamasse o seu cavalo. As madeiras que necessitavam ser transportadas, colocavam-nas sobre um couro e arrastavam êste pela fôrça do animal. Até a fabricação de manteiga dependia do cavalo: quando o leite estava suficientemente azêdo, punham-no em um saco de couro (bruaca) marrado ao cavalo por uma comprida soga; e o cavaleiro, andando com o animal a passo acelerado, pelo campo, por algum tempo, fazia com que o leite se transformasse em manteiga devido ao sacolo de encontro ao solo. Na debulha do milho e na mistura do barro para fazer tijolos, o cavalo estava presente e atuante (GOULART, 1964, p. 129).
A utilização do cavalo para a realização das tarefas cotidianas na fazenda e
nas atividades de lazer constrói um personagem que atua nos diferentes segmentos
da vida no campo. Ele é o companheiro nas horas de trabalho e acompanha seu
dono nas horas de lazer, de forma que as duas ações se tornaram tão indissociáveis
e paralelas que algumas atividades como a doma passaram a ser consideradas
tanto profissão como lazer. Diferente do que é percebido nas outras regiões do
Brasil, no Rio Grande do Sul as mulheres aprendem desde jovens a montar a cavalo
e demonstram prática na montaria, conforme temos em relatos de Viajante:
Um cavaleiro apeou diante de uma casa e entrou. Mas deu as costas, veio correndo uma menina de uns dez anos e, depois de examinar astutamente se não era observada, saltou, como uma gata sôbre a sela e disparou a galope! Regressou com a mesma rapidez, apeou de um salto e desapareceu, para não ser descoberta a sua travessura (AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 111).
O cavalo para os gaúchos é indissociável da vida cotidiana. No Rio Grande do
Sul não há a ocorrência do cavalo econômico e do cavalo social desempenhando
funções diferenciadas como ocorre nas outras regiões brasileiras. O mesmo animal
desempenha ambas as funções, ou seja, o animal destinado para a lida campeira é
o mesmo usado para o lazer.
Cabe fazer uma ressalva à forma romântica como é vista a relação do gaúcho
com seu cavalo. Segundo Reverbel (1986), sempre foram comuns na campanha rio-
grandense o rigor e a crueldade no trato dos animais de montaria, sendo um
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exemplo disso a antiga doma de potros à moda gaúcha3, uma das mais cruéis
existentes.
O Rio Grande do Sul, devido à sua formação como base pecuária para as
outras regiões do Brasil, aparece nesse cenário como personagem central
produzindo e vendendo cavalos, éguas, mulas e potros que desempenharam
importante função econômica e social em outras regiões brasileiras, como nas
regiões das minas, por exemplo.
Para ilustrar a figuração dos equinos nos inventários de bens dos membros
da alta sociedade rio-grandense, tomamos como referência dois personagens
conhecidos da história gaúcha, Bento Gonçalves da Silva e José Joaquim de
Andrade Neves, o Barão de Triunfo. No inventário post mortem de Bento Gonçalves
os bens animais figuram como terceiro maior percentual, com 22,39%, depois
escravos, 48,56%, e bens de raiz (propriedades), 28,06%. Desses animais, 739 são
bovinos e 330 são equinos. Esses dados apontam uma grande quantidade de
equinos se comparada com a dos bovinos. No inventário do Barão de Triunfo a
proporção é menor, para 136 bovinos há 23 equinos (VOGT; RADÜNZ, 2013). Ou
seja, os cavalos constituem uma importante parcela dos bens dos grandes
proprietários gaúchos durante o período Imperial.
Em muitos casos não temos a informação do número de cavalos que existiam
nas propriedades do sul do Brasil. Pressupõe-se, entretanto, que toda fazenda de
bovinos possui considerável número de equinos, pois os mesmos são fundamentais
nas atividades de pastoreio e por isso figuram em número considerável, assim como
as atividades que desempenham são de fundamental importância para o
desenvolvimento econômico da região.
Na cultura brasileira e gaúcha o cavalo foi introduzido ocupando espaços nas
tradições, festejos e lendas de cada região, integrando a vida e o jeito de ser do
povo brasileiro. O cavalo é elemento presente no folclore de todas as regiões
brasileiras, mas em cada uma delas possui uma representação diferenciada.
As Amazonas, Negrinho do Pastoreio e O Cavalo Encantado são algumas
das lendas que apresentam o cavalo como personagem central. Nos folguedos
3 Onde os potros sofrem a castração (REVERBEL, 1986).
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populares destacam-se as Cavalhadas, o Jogo da Argolinha, a Tourada, a
Vaquejada e a Carreira. Nas crendices temos o Cavalo-Marinho, o Cavalo-sem-
cabeça, o Cavalo do rio, o Cavalo de três pés, o Cavalo fantasma e o Cavalo de São
Jorge (GOULART, 1964).
Ocupando uma posição importante na trajetória do homem, o cavalo
possibilitou o desenvolvimento econômico, social, cultural, bélico e político de
sociedades que marcaram a história da humanidade que, no Rio Grande do Sul,
teve um caráter preponderante. Esse encontro provocou um rompimento nas
barreiras do tempo e do espaço. A sociedade que conhecemos atualmente só existe
devido a esse fabuloso encontro.
2.3 As corridas de cavalo em cancha reta
As carreiras constituem uma prática cultural muito comum em todo o território
do Rio Grande do Sul. Desde a chegada dos primeiros equinos ao território gaúcho,
a prática de corridas de cavalo em cancha reta se configurou como um lazer que
atraía pessoas de todos os grupos da sociedade, sem distinção de classe social e
até mesmo de sexo. As corridas eram uma atividade cultural muito presente:
“constituía uma prática comum entre os cavaleiros, soldados, regulares ou de
piquetes, peões ou mesmo índios missioneiros, a disputa para ver quem era o mais
veloz sobre o cavalo” (PEREIRA; MAZO; LYRA, 2010a, p. 659).
Saint-Hilaire (1987) menciona a existência de cavalos selvagens na região de
Santa Maria e a prática de corridas de cavalo, destacando que esse costume é
comum entre os portugueses e espanhóis, sendo que os primeiros chamam seus
cavalos de corrida de parelheiros. O referido viajante descreve brevemente seu
treinamento, que consiste em serem “[...] preparados para isso durante algum
tempo, presos em estrebaria e treinados diariamente. É o que chamam portugueses
e espanhóis, compor um cavalo” (SAINT-HILAIRE, 1987, p. 340).
Introduzidas no território gaúcho por portugueses e espanhóis, as corridas de
cavalos em cancha reta passaram a constituir um dos lazeres dos habitantes do sul,
como ilustra o trecho destacado:
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Livre de compromissos fixos, por serem intermitentes seus períodos de trabalho, o gaúcho tem grandes períodos de lazer. Mesmo seu trabalho assume um cunho de diversão, um sentido de torneio. Mas, além do trabalho que o gaúcho encara como uma atividade divertida e violenta, nas horas de descanso, ele reúne-se no galpão, ao pé do fogo, para conversar, ou nos bolichos para beber, jogar, apostar carreiras e danças ao som da viola (LARA, 1985, p. 19).
As carreiras em cancha reta e o jogo do osso4 são apresentados como
principais formas de diversão do gaúcho no século XVIII, assim como o rodeio, a
doma e a tropeada (CÉSAR, 1979).
Esses divertimentos são mais frequentemente apontados como atividades
desenvolvidas nas áreas rurais, em regiões onde a lida com os animais é um
trabalho e um passatempo.
O jogo das carreiras é o que mais tem empolgado o campesino gaúcho de todos os tempos e muito mais intensamente na época dos nossos avós, quando o cavalo tinha maior expressão em sua vida. Afeiçoado ao seu pingo, identificado com ele nos trabalhos campeiros, nas viagens e na guerra, o interesse pela vitória do cavalo de sua simpatia chegava a extremos incalculáveis (FREITAS apud LAYTANO, 1984, p. 67-68).
No Rio Grande do Sul do século XIX as atividades de lazer eram ditadas
pelos Estados Nacionais europeus, principalmente França e Inglaterra, onde a ida às
corridas de cavalo no Jóquei Clube se tratava de uma prática frequente. Já no Rio
Grande do Sul as corridas eram mais simples, realizadas em canchas retas com o
controle feito pelos próprios apostadores (RAMOS, 2006).
Segundo Golin (1999), as canchas são áreas capinadas com extensão
variável entre 260 a 400 metros. Ficavam localizadas habitualmente em meio a
terrenos utilizados para a criação de animais, próximas a um rio ou arroio para
possibilitar o refrescamento dos animais e com uma sombra para o seu descanso
(FREITAS apud LAYTANO, 1984). As raias ou trilhos possuem marcações com
estacas e cordas5 para delimitação das áreas específicas onde passarão os cavalos
4 Esse jogo é antigo e simples, ainda praticado no sul. Usa-se um osso do garrão de boi como se
fosse um dado, ele possui dois lados achatados, o mais curto é o azar e o mais comprido é a sorte. Os jogadores ficam em lados opostos e jogam o osso em direção ao centro. Se o lado maior ficar para cima o jogador ganhou, se o menor ficar para cima perdeu, se o osso ficar “deitado” continua-se jogando. A cada jogada é apostada uma quantia de dinheiro, depositada na mão de uma espécie de juiz (GOLIN, 1999, p. 87). 5 Em algumas regiões são passadas mangueiras sob as cordas, sendo chamadas as divisões dos
trilhos de mangas. As canchas podem apresentar somente dois trilhos para carreiras, ou mais para as pencas, corridas com mais de dois animais.
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em disputa. No início e no final da cancha haviam marcas chamadas de balizas6. O
proprietário, que ficava com uma parcela dos lucros obtidos nas apostas das
corridas, podia ser um indivíduo ou uma entidade.
As carreiras aconteciam ao final de um dia comum de trabalho ou poderiam
ser atadas, ou seja, agendadas com antecedência, sendo esta a forma mais
frequente. As carreiras, conforme Gonçalves (1984), podiam se estender por até três
dias. Os cancelamentos ocorriam somente em caso de chuva muito forte.
Dentre os personagens que compunham o cenário das carreiras de cancha
reta convém destacar dois protagonistas, o “compositor” e o “jóquei”. O compositor,
conforme Golin (1999), seria o indivíduo responsável pelo tratamento e preparo do
animal para a competição, sendo algumas de suas tarefas definir a alimentação do
cavalo e os exercícios que o mesmo teria que realizar e treinar arrancadas e
corridas para fortalecer o animal.
Eram os compositores que tratavam os mimados pingos a milho e alfafa fenada, com pasto verde limitado para não ficarem muito aguachados, e submetiam os animais a banhos e a exercícios especiais para adelgaçarem e enrijecerem os músculos. Os exercícios constavam de passeios matinais a cabresto ou montados e durante o dia os parelheiros eram obrigados a trotar em volta de uma estaca, amarrados por uma soga, que em geral, era um leve maneador [...] O treinamento principal constava de exercícios de prática das partidas na cancha, terminando com uma corrida em toda a cancha (FREITAS apud LAYTANO, 1984, p. 68).
O jóquei, também segundo Golin (1999), era quem montava o cavalo na
ocasião da corrida. Essa delimitação das funções do jóquei e do compositor nos
mostra que com o passar dos anos as carreiras foram se tornando mais
competitivas, exigindo de seus participantes um preparo cada vez maior e criando
assim novas profissões no cenário rio-grandense, já que a atividade exigia
especialização. Era de fundamental importância conhecer a origem dos cavalos
destinados às corridas em cancha reta, visando atender o que se esperava desses
animais. No trabalho “Preparo do Cavalo de Carreira ou Guia do Compositor” (1889)
temos o seguinte:
Aquelle que não provem de boa origem, permanece sob a influencia de uma degeneração moral que só lhe pode conceder inefficaz energia, alem de
6 As balizas consistiam em três estacas (ou mais, dependendo do número de trilhos) alinhadas no
início e no final da cancha. Essas estacas serviam de referência para os juízes definirem o vencedor da corrida.
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que, vem acompanhada quasi sempre da mediocridade das qualidades phisicas; elle deve ser rejeitado porque jamais se poderá libertar de tão grandes inconvenientes (ALENCASTRE, 1889, p. 1).
Os cavalos utilizados nas corridas primeiramente eram crioulos, animais
utilizados para o trabalho, com predominância de sangue árabe. Com o passar dos
séculos a raça específica do Cone Sul foi definida e passou a ser muito valorizada
nas atividades de pastoreio (GOLIN, 1999). Sabe-se que inicialmente os animais
que participavam das disputas também eram utilizados no trabalho campeiro, e
somente com o desenvolvimento das corridas como atividade desportiva (e
principalmente como forma de obtenção de lucro) é que esses animais passaram a
ser reservados para a única finalidade de corredores. Sobre a escolha dos cavalos
para corridas em cancha reta:
Já faz muito mais de meio século que foi introduzido neste Estado o cavalo inglês de corridas, em cujo sangue também predomina o árabe. Este tipo de cavalo, porém, foi selecionado para corridas em longo tiro, em hipódromos, enquanto o nosso crioulo foi talhado naturalmente para movimentos rápidos e em cancha curta. O Campeiro o escolhia pelo lance “bem rasgado de baixo”, que permitisse ao animal mais longas braçadas: pelas ventas bem abertas, para maior capacidade de respiração, mais fôlego e pelos aprumos dos membros (FREITAS apud MEYER, 1975, p. 62).
Havia também o que se pode chamar de tratamento estético dos animais que
participavam das disputas, seja para seu embelezamento, seja para confundir o
adversário quanto ao seu real valor. A aparência do animal era considerada
importante no momento de atar as carreiras - quando não se sabia o tempo do
animal era preciso observar atentamente todas as suas características físicas.
Nos dias de “carreira atada”, os crioulos chegavam cabresteados, cobertos de lindas capas, no geral coloridas. Todavia, fazia parte da picardia dos jogadores “enfeitarem” os cavalos, sujando-os, desfigurando-lhes os rabos, dando-lhes certo visual de pangarés, para que os adversários não percebessem seus reais valores (GOLIN, 1999, p. 86).
Em dias de carreira, havia movimentação em torno das canchas. Grande
parte da população local era mobilizada. Nesses momentos amigos se encontravam
e famílias se reuniam, configurando assim um ambiente onde as relações sociais
aparecem com predominância, era um local para ver e ser visto (PEREIRA, 2012).
As corridas se revelam uma possibilidade de analisar hábitos e costumes da
sociedade da época, já que é nas manifestações culturais e tradições que a
sociedade ilustra seus valores fundamentais (GEERTZ, 1978). Da mesma forma que
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nos centros urbanos as atividades de lazer pautam a vida social da população, no
meio rural essas atividades são caracterizadas por traços marcantes da cultura
regional. Sobre isto temos:
O jogo das carreiras é o que mais tem empolgado o campesino gaúcho de todos os tempos e, muito mais intensamente, na época dos nossos avós, quando o cavalo tinha maior expressão em sua vida. [...] É um jogo que interessava e ainda interessa a todos, de todas as idades, de todas as classes sociais, moços e velhos, ricos e pobres, patrões e empregados, que se nivelam nas suas expansões de alegria em pleno campo ao longo da cancha, na expectativa, cada parceiro, pela vitória do parelheiro do seu agrado (FREITAS apud LAYTANO, 1984, p. 67).
As carreiras de cancha reta movimentavam também grandes montantes de
dinheiro envolvidos nas apostas. Frente a isto se torna necessária a presença de
agentes policiais, chamados de subdelegados, para garantir a segurança do evento,
caso ocorra insatisfação de um apostador descontente.
O policiamento era feito por um subdelegado civil e vários soldados. Estes eram um misto de gaúcho e milico. Usavam chapéus de abas largas e bombachas, porém vestiam túnica e talabarte onde viam-se penduradas as armas: um revolver e uma enorme espada metida em uma larga bainha de metal branco, que arrastava ao solo quando desmontados (GONÇALVES, 1984, p. 94).
As apostas também podiam envolver propriedades, como fazendas e animais,
e até mesmo as mulheres eram objeto de apostas. Havia um contrato que
estabelecia as condições da realização da carreira. As apostas eram
convencionadas no contrato, mas além dessas haviam as apostas feitas no dia da
corrida, conforme demonstra o trecho a seguir:
[...] os parceiros de um ou de outro, todos os simpatizantes, ao longo da cancha e principalmente nas raias da partida e da chegada, em altas vozes, cheios de entusiasmo, propunham suas apostas, que eram tomadas pelos opositores, depositando as paradas nas mãos de pessoas respeitáveis, que as entregavam ao vencedor (FREITAS apud LAYTANO, 1984, p. 69).
Os acordos podiam ser selados entre os apostadores oralmente, sem
nenhuma espécie de registro escrito ou garantia de que a palavra fosse cumprida.
Assim, a palavra de um homem, nesse contexto, adquire um valor imensurável.
Relatos dão conta de que, quando o perdedor não dispunha da quantia apostada,
entregava, como forma de garantia do pagamento, um fio de cabelo do seu bigode.
Pelo que pesquisamos a respeito do regulamento dessas corridas, há poucos
registros escritos. O conjunto de regras é restrito aos frequentadores e participantes,
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contexto que será tratado em outro capítulo deste trabalho. Golin (1999) informa que
os juízes da partida davam a largada utilizando um laço ou uma bandeira, e no final
da cancha havia outro grupo de juízes responsáveis por definir o vencedor.
Normalmente este último era composto por três juízes: dois deles escolhidos por
cada proprietário de cavalo e um terceiro nomeado pelo juiz da carreira. Ou seja,
aquele juiz que dava a largada era quem determinava quem havia vencido a disputa
(PEREIRA; MAZO; LYRA, 2010a). Para determinar com clareza qual havia sido a
vantagem do cavalo vencedor sobre os outros competidores era utilizado um
sistema baseado na parte do corpo do ganhador ao passar pela baliza de chegada
antes do cavalo perdedor (FIGURA 1).
Figura 1 – Gráfico das vantagens de vitória no momento da chegada
Fonte: Rillo (1975, p. 96).
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Os termos empregados na vitória dos animais estão relacionados à parte do
corpo que o animal sobrepôs ao outro no momento da chegada:
[...] “ganhar de fiador” significava vencer pela diferença da cabeça, pois o “fiador” é a parte do bucal que passa atrás das orelhas e na conjunção com o pescoço. As outras medidas consagradas até hoje são: “de paleta”, “de meio corpo”, “de virilha”. Ganhar “de luz” significava passar à frente do perdedor sem que esse cobrisse qualquer parte do vencedor. Esses parâmetros ainda hoje são adotados em regiões da campanha (GOLIN, 1999, p. 88).
Os proprietários dos animais da carreira assinavam um contrato que continha
especificações como data da corrida, nome dos animais, peso do jóquei, vantagens,
o valor da parada7 e o depósito “que era uma espécie de multa para o que, no dia da
corrida, não pudesse cumpri-lo” (FREITAS apud MEYER, 1975, p. 69).
Demonstrando possuir um linguajar próprio, as carreiras vão se definindo com
o passar dos anos como uma prática cada vez mais especializada. Assim também a
linguagem para designar os cavalos que iriam participar da disputa. Os animais
preparados para a disputa entre dois cavalos eram chamados de parelheiros, isto é,
disputavam em parelhas (NUNES; NUNES, 1996). Havia também a possibilidade de
disputa entre mais de dois animais, nesses casos normalmente trios, que era
chamada de penca.
As trapaças eram um recurso muito comum, sendo de uma grande variedade
de ordem, como o suborno, roubo do animal para cansá-lo antes da corrida,
viciamento do animal no trilho contrário, trancamento da perna do corredor sobre o
cavalo contrário, desfiguração dos animais (FREITAS apud LAYTANO, 1984). Ou
seja, haviam diversos subterfúgios a que se recorria para causar uma turbulência no
momento da corrida. Essas características demonstram a configuração complexa
que as práticas de carreiras foram adquirindo com o passar do tempo, e a sua
importância, já que havia uma preocupação com a disputa que não se limitava ao
dia da corrida em si, mas que consumia muito tempo dos participantes. As corridas
adquirem configuração de atividade cultural embutida de significado e simbologias.
A cultura não é simplesmente um conjunto de significados e símbolos que
podem ser lidos com um método científico. O trabalho do antropólogo e do
7 Aposta principal envolvendo os proprietários e suas parcerias, simpatizantes que se cotizavam a
contribuir na parada (FREITAS apud MEYER, 1975).
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historiador que se propõem a examinar a fundo as características de uma cultura
sustenta-se a partir de uma pesquisa densa e sensível ao lançar esse olhar sobre o
outro, como ele vive, como age e pensa. Neste sentido, Geertz (1978) chama
atenção para o olhar sensível que devemos ter sobre os comportamentos.
Deve atentar-se para o comportamento, e com exatidão, pois é através do fluxo do comportamento – ou mais precisamente, da ação social – que as formas culturais encontram articulação. Elas encontram-se também, certamente, em várias espécies de artefatos e vários estados de consciência (GEERTZ, 1978, p. 27).
A presença das mulheres nas carreiras é relatada como secundária, não são
elas que atuam diretamente nas atividades ligadas às corridas em cancha reta. A
princípio seu envolvimento na atividade se dá como observadoras e também no
preparo da alimentação consumida nesses eventos. Como já mencionado, por se
tratarem de um evento social muitas famílias frequentam os ambientes das carreiras
para assistirem às corridas e, sendo assim, constituía-se um ambiente propício para
as moças solteiras da região desfilarem, observarem e possivelmente serem
observadas por futuros pretendentes.
A refeição habitualmente era realizada na forma de piquenique. Montavam-se
barracas e traziam-se carroças carregadas com caixas de bebida e gelo, carne de
gado, linguiça e leitão assado. Também eram preparadas rosquinhas e sonhos,
arroz-doce, até fatias de melancia eram ofertadas ao público do evento (PEREIRA;
MAZO; LYRA, 2010a). Além disso, havia uma variante nos alimentos e na forma do
preparo de acordo com as regiões analisadas, ainda mais com a chegada dos
imigrantes, alemães e seus descendentes, por exemplo, que incluíram algumas
iguarias típicas no cardápio.
A participação das mulheres como protagonistas de esportes envolvendo os
cavalos ocorre somente no início do século XX, acompanhando o processo de
modernização da capital, Porto Alegre. É nesse contexto que elas passam a realizar
a prática do hipismo. Mas, tanto nas carreiras em cancha reta quanto no turfe, a
participação feminina permanece restrita às arquibancadas. Esse diferencial pode
ser compreendido se analisarmos as origens aristocráticas europeizadas do hipismo,
tornando-o assim mais atraente aos olhos femininos (PEREIRA; MAZO, 2010b).
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Cabe fazer uma distinção entre as carreiras e o turfe: a principal diferença
entre as duas práticas está relacionada ao formato da pista - enquanto as carreiras
são disputadas em uma cancha reta, o turfe é disputado em uma cancha de forma
circular ou elíptica. Ambas as modalidades são provas de velocidade, vencendo
aquele que cruzar primeiro a linha de chegada.
Segundo Meyer (1975), o introdutor das corridas em círculo, no formato
europeu, no Rio Grande do Sul foi L. Jacome. Ele teria sido o responsável pela
organização do primeiro Prado de Porto Alegre, inaugurado em 9 de junho de 1872,
próximo ao Menino Deus, e também autor de um estudo intitulado “O cavalo na
Província do Rio Grande do Sul” (1873).
A criação dos primeiros prados na capital, salientando que prado encontra-se
como termo sinônimo de hipódromo, configurou um cenário onde o crescimento do
turfe, na segunda metade do século XIX, ocasionou o desaparecimento das canchas
retas, principalmente na cidade de Porto Alegre. Pereira (2012) afirma que em 1872
foram registradas as primeiras corridas no formato circular, havendo posteriormente
um considerável aumento no número de prados. Em 1877 é criado o Prado Porto
Alegrense, posteriormente denominado como Boa Vista. No mesmo ano iniciou a
construção do Prado Rio Grandense no bairro Menino Deus, e em 1891 iniciaram as
atividades do Prado Navegantes. Já em 1894 foi inaugurado o Prado Independência,
situado no bairro Moinhos de Vento. Esses ambientes propiciaram o
desenvolvimento do turfe, porém no interior do estado a cancha reta continuou a
delimitar a forma das corridas de cavalo.
Frente a isto, torna-se necessária uma análise mais aprofundada para dar
conta das razões que fizeram com que o interior do estado não profissionalizasse e
nem seguisse o caminho da esportivização das corridas de cavalo, conforme
aconteceu em Porto Alegre.
A introdução do cavalo no Brasil e no Rio Grande do Sul, segundo as fontes
consultadas, deu-se quase concomitantemente, com um ano apenas de diferença. A
sociedade sulriograndense, na mesma velocidade, apoiou sua construção no lombo
do animal, passando a introduzi-lo nos aspectos bélicos, econômicos, sociais e
culturais. A presença do cavalo marcou profundamente a vida e a cultura da
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sociedade que se formou no sul do Brasil. As carreiras são um exemplo de prática
cultural que moldou essa sociedade e se espalhou para além das regiões de
fronteira, onde já era uma tradição.
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3 A CANCHA RETA NO VALE DO TAQUARI
O costume de “atar carreiras” teve na Região do Vale do Taquari uma história
de tradição e continuidade. Tanto que ainda na atualidade correm carreiras no
interior dos municípios da região. Essa tradição mantém viva a lembrança dos jogos
e tradições primitivas do Rio Grande do Sul que se alastraram e também
influenciaram aqueles que na região se estabeleceram, como é o caso dos
imigrantes do Vale do Taquari e seus descendentes.
Neste capítulo abordaremos como essa tradição se firmou na região em
questão, como apoiou-se em uma estrutura familiar, quais são os personagens que
atuaram no cenário das corridas de cancha reta e como se dão as relações de
gênero a partir das vivências dessa prática cultural.
3.1 As canchas do Vale do Taquari
A Região do Vale do Taquari localiza-se na porção central do estado do Rio
Grande do Sul. Seu crescimento populacional está associado à colonização que se
deu em grande parte por meio de imigrantes açorianos, em fins do século XVIII, e
alemães e italianos vindos da Europa e de colônias antigas do Rio Grande do Sul,
no século XIX. Os imigrantes que se estabeleceram no Vale do Taquari trouxeram
consigo sua bagagem cultural. A mesma é composta por um conjunto de elementos
que os definem enquanto grupo étnico singular e, nos dizeres de Geertz (1978)
podemos constatar que possuem um sistema próprio de formas de agir aceito pelos
seus membros. Compreendemos que a cultura dos grupos étnicos estudados é
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resultante de um processo de construção e, portanto, está sujeita a transformações.
Corrobora com esta premissa a afirmação de Barth:
O conteúdo cultural das dicotomias étnicas parece ser, em termos analíticos, de duas ordens diferentes: (i) sinais e signos manifestos, que constituem as características diacríticas que as pessoas buscam e exibem para mostrar a sua identidade: trata-se frequentemente de características tais como vestimenta, língua, forma das casas ou estilo geral de vida; e (ii) orientações valorativas básicas, ou seja, os padrões de moralidade e excelência pelos quais as performances são julgadas (BARTH, [1969] 2000, p. 32).
Durante o estudo foram consideradas as variações culturais e significações
dos grupos étnicos açorianos, alemães, italianos e seus descendentes,
principalmente no que se refere às corridas de cavalo em cancha reta. Utilizaremos
como referência espacial as porções territoriais de ocupação no Vale do Taquari de
predominância dos grupos étnicos em questão (MAPA 1).
Nesta região, conforme Kilpp, Mazo e Lyra (2010), os primeiros registros de
corridas de cavalo em cancha reta são datados do final do século XIX no Prado
Estrelense. As corridas eram acompanhadas de outras formas de lazer como Tiro ao
Alvo e Grupos de Bolão. Segundo Kilpp, Mazo e Lyra (2010) o surgimento dessas
primeiras associações tinha intuito militar para em seguida se tornarem sociedades
recreativas, preservando a germanidade, isto é, mantendo os costumes alemães
imigrados. Dessa forma as demais práticas esportivas que se desenvolveram foram
as mais tradicionais dos alemães e europeus.
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Mapa 1 – Colonização do Vale do Taquari
Fonte: Adaptado pela autora com base em CODEVAT e Museu de Ciências Naturais Univates – MCN
(2009).
De acordo com Hessel (1983), a correspondência de 05 de janeiro de 1888
que se encontra publicada no jornal O Taquaryense informa que o prado de Estrela
teria sido inaugurado no dia 24 de dezembro, às quatro horas da tarde, em
solenidade na chácara do senhor F. F. Mena Barreto, onde estiveram presentes dez
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acionistas (HESSEL, 1983). Na referida data, conforme informa Hessel (1983), foi
apresentado o projeto dos estatutos para as corridas de cavalo pelo proprietário da
chácara. Na mesma oportunidade foi eleita a diretoria provisória do prado e a
solenidade foi finalizada com um churrasco e animação da orquestra dirigida pelo
senhor Cristiano Dexheimer. Segundo ainda a correspondência em questão, já havia
no ano de 1888 um estatuto regularizando as corridas de cavalo no Prado de
Estrela, portanto pode-se concluir que a prática já ocorria muitos anos antes do
mesmo.
Considerando as práticas tradicionais dos primeiros gaúchos envolvendo o
cavalo é possível perceber trocas de elementos culturais com imigrantes alemães e
seus descendentes que se estabeleciam em áreas coloniais, os quais também
traziam práticas sobre a utilização do cavalo pela tradição germânica. Dessa forma
conclui-se que as primeiras corridas de cavalo de que se têm registro no Vale do
Taquari ocorreram nas áreas de colonização alemã.
Ilustram a situação, por exemplo, as corridas noticiadas nos jornais e revistas
da época, como a carreira entre os cavalos Montenegro e Tostado disputada na
Cancha “Chacrinha”, próxima à vila de Estrela, em que a vitória do cavalo
Montenegro ocorreu por um corpo de diferença. A referida notícia foi publicada no
ano de 1936 na revista A Semana, que informou ter sido alto o montante das
apostas feitas na ocasião da corrida (SCHIEROLT, 2002).
O jornal O Taquaryense publica matéria em 1903 informando sobre a grande
animação que havia na comunidade por conta da revitalização que sofria o Prado
Taquaryense por meio de seu arrendatário, Sr. Henrique Peter. A região onde se
localizava o Prado Taquaryense é de colonização predominante açoriana, ilustrando
que as corridas de cavalo atingiam não apenas as regiões de colonização alemã, o
que nos remete à ideia de que a presença do cavalo nas diferentes regiões
oportunizou a apropriação de uma manifestação cultural que já existia no Rio
Grande do Sul há muito tempo, as corridas (O TAQUARYENSE, [s. d.] 1903, p. 4).
O Prado Estrelense (Estrela) e o Prado Taquaryense (Taquari), onde se
praticava o turfe, não funcionam atualmente. As sociedades foram fechadas nas
primeiras décadas do século XX e as causas estão provavelmente associadas a
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dificuldades financeiras, como demonstram os avisos publicados no jornal O
Taquaryense (1915) a respeito das convocações para assembleias onde o futuro do
Prado seria decidido. Em publicação de 11 de janeiro de 1915 a sociedade Prado
Taquaryense fica oficialmente liquidada, seguindo um aviso para que os sócios
compareçam à sede da sociedade para receber as cotas a que tinham direito sobre
a venda dos materiais existentes (O TAQUARYENSE, 11 jan. 1915, p. 3).
Portanto, assim como nas regiões de fronteira, nas regiões de colonização
europeia as corridas de cavalo foram difundidas amplamente, comprovando que
esta atividade não limitou ou reforçou as fronteiras étnicas e promoveu uma
interação cultural entre os diferentes grupos que passaram a ocupar a região do
Vale do Taquari. Pode se inferir a respeito desse quadro que houve uma
preocupação por parte dos grupos de imigrantes em integrar-se às atividades
desportivas, reafirmando suas identidades étnicas, apropriando-se de uma prática já
tradicional no Rio Grande do Sul e inserindo nela características de suas culturas.
Há um número considerável de municípios no Vale do Taquari que possui
uma trajetória de corridas em cancha reta. Muitas dessas canchas se encontram
desativadas no momento, outras foram recentemente recolocadas em
funcionamento depois de um longo período abandonadas e, em menor número,
existem canchas que estão há várias décadas promovendo carreiras. De acordo
com as pesquisas feitas e com os relatos dos depoentes, existiram canchas retas
em Arroio do Meio, Arvorezinha, Encantado, Estrela, Fazenda Vilanova, Marques de
Souza, Paverama, Progresso, Relvado, Tabaí, Taquari, Teutônia e Vespasino
Corrêa. Para efeito dessa pesquisa foram levantadas amostras das três áreas de
colonização (MAPA 2).
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Mapa 2 – Localização das Canchas e Hípicas pesquisadas
Fonte: Adaptado pela autora com base em Banco de Dados Regional da Univates (2012).
No Vale do Taquari, o aspecto geográfico foi um dos fatores para a escolha
da localização das canchas. Elas precisavam de uma área plana e da proximidade à
água corrente. Com o crescimento das cidades observamos que as canchas não
ficaram restritas à zona rural, pois foram cercadas pelos bairros que se formaram no
seu entorno, como no caso de Linha Germana (Teutônia). A maioria das canchas
manteve formato semelhante ao que tinha desde as primeiras décadas do século
XX, localizadas em áreas de zona rural, retiradas dos centros urbanos, como nos
casos de Marques de Souza, Paverama, Progresso, Arvorezinha e Vespasiano
Corrêa (DIÁRIO DE CAMPO 8, 2014).
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Cabe ainda fazer uma distinção ao que se considera como canchas de
carreira e hípicas. As canchas se referem à estrutura da cancha reta para corrida
propriamente, já as hípicas possuem uma cancha e, além disso, um espaço para
criação e treinamento de animais, sendo comum proprietários alugarem cocheiras
para seus animais em hípicas, incluindo alimentação e preparação para corrida
(DIÁRIO DE CAMPO 5, 2014).
Outro fator que merece destaque para a continuidade das corridas e
manutenção das canchas é a hereditariedade. As canchas são, na maioria dos
casos, uma herança de família, e a relação dos proprietários com as mesmas se
iniciou ainda na infância através do incentivo recebido dos seus antepassados. O
público participante das carreiras é composto por famílias que possuem na sua
tradição o vínculo com as corridas de cavalo, e que de alguma forma permanecem
perpetuando essa tradição, seja como proprietários de canchas, compositores,
jóqueis, proprietários de animais, apostadores ou apenas observadores. Ilustra o
fato das carreiras serem uma herança familiar o seguinte relato:
Olha, o que eu vou te dizer é que eu acho que isso aí vem de berço, de família. Gostar daquilo, aí a gente conserva aquela tradição [...] Um deixou de herança pro outro, sempre, que nem o pai, nós somos do Faxinal dos Pacheco, tudo era carreirista, os meus primos tudo era jóquei (ED, 18/02/2014, p. 3).
Apesar da criação de personagens com atividades específicas nas corridas
de cavalo ao longo dos anos, as carreiras não constituíram nenhuma profissão na
região do Vale do Taquari. Os personagens desse contexto desempenhavam
profissionalmente outras atividades e tinham na corrida de cavalos lazer e esporte.
As carreiras são uma atividade paralela desenvolvida junto ao trabalho, que pode
não ter relação alguma com o cavalo, diferente do que acontecia nos primeiros
séculos da chegada dos europeus no Rio Grande do Sul, quando as carreiras eram
um dos lazeres para o peão e seu companheiro de trabalho, o cavalo.
As corridas adquirem o formato de uma manifestação da tradição que,
mantidas durante gerações nos mesmos moldes, constituem uma herança cultural.
Sua manutenção torna-se uma forma de manter viva a memória dos antepassados.
Segundo Santos (1983), a tradição por si só não diz nada, só é relevante quando faz
parte de uma cultura, parte de uma realidade social. Tratando-se da memória temos
o seguinte:
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Porque a coerção da memória pesa definitivamente sobre o indivíduo e somente sobre o indivíduo, como sua revitalização possível repousa sobre a relação pessoal com seu próprio passado. A atomização de uma memória geral em uma memória privada dá à lei da lembrança um intenso poder de coersão interior. Ela obriga qualquer um a se relembrar e a encontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade (NORA, 1993, p. 18).
No Vale do Taquari os prados não se mantiveram por mais de três décadas,
enquanto que a cancha reta persiste até os dias atuais, caminhando em sentido
inverso ao da esportivização e profissionalização. A manutenção das pequenas
canchas ilustra uma série de sociabilidades que se estabeleceram nessa prática
cultural e que precisam ser analisadas por um olhar atento.
3.2 A cancha reta: ambiente de vivência da tradição
A corrida em cancha reta faz parte de um ambiente onde se estabelece uma
complexidade de relações sociais. Além de reafirmar as relações de poder
existentes em uma sociedade estratificada, elas estabelecem novas relações
fundamentais para a compreensão dos papéis desempenhados pelos indivíduos
nesse espaço. Neste sentido, temos:
As atividades lúdicas e esportivas, em suas diversidades, cristalizam os valores essenciais e contraditórios que modelam as civilizações; elas aparecem como espécies de teatralizações, de “mentiras que diriam a verdade” das sociedades que as produziram (BROMBERGER, 2008, p. 246).
Na análise das relações sociais e dos valores que se fazem presentes na
prática das corridas em cancha reta, percebemos o reflexo de uma série de valores
culturais dos grupos étnicos envolvidos nessa prática. Considerando o estudo de
Geertz (1978) sobre as rinhas de galo em Bali, é possível perceber uma rede de
questões relacionadas às práticas da sociedade balinesa.
Encenada e reencenada, até agora sem um final, a briga de galos permite ao balinês, como a nós mesmos, ler e reler Macbeth, verificar a dimensão de sua própria subjetividade. Na medida em que assiste a uma luta após a outra, com a assistência ativa de um proprietário e de um apostador, ele se familiariza com ela e com o que ela tem para transmitir-lhe, da mesma forma que o ouvinte atento de um quarteto de cordas ou o apreciador absorto de uma natureza morta torna-se aos poucos familiarizado com eles de maneira tal que eles também abrem sua subjetividade para ele mesmo (GEERTZ, 1978, p. 318-319).
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Poderíamos relacionar o estudo de Geertz sobre as rinhas de galo em Bali
com as corridas de cavalo no Vale do Taquari. Ambos os frequentadores formam um
grupo que se familiariza com essa prática cultural e projeta neste evento uma gama
de subjetividade que acaba por incidir nas relações sociais da comunidade regional.
Porém, é importante destacar que cada “[...] realidade cultural tem sua lógica
interna, a qual devemos procurar conhecer para que façam sentido as suas práticas,
costumes, concepções e as transformações pelas quais estas passam” (SANTOS,
1983, p. 8).
Os participantes das carreiras podem ser descritos a partir de cinco grupos:
os proprietários de animais, compositores, jóqueis, juízes e apostadores. Todavia,
não temos a intenção de adentrar nas especificidades de classificar a função de
cada um dos atores do processo. É importante salientar que essas relações são
complexas e dinâmicas, podem se transformar de acordo com os interesses de cada
grupo, considerando que os espaços pelos quais circulam os participantes e
frequentadores das corridas de cavalo em cancha reta não são sempre os mesmos,
assim como as funções que desempenham.
3.2.1 Grupo dos proprietários de animais
Nas primeiras décadas de colonização do Vale do Taquari não havia estradas
e a locomoção era basicamente a pé, por meio de picadas. Sendo assim, possuir um
cavalo para atravessar estas picadas levando mercadoria em seu lombo ou mesmo
utilizando-o para tropeadas transformava o animal em um importante bem
econômico (BARROSO, 2006). Possuir cavalos conferia para o grupo social respeito
e status.
Em vista disto era frequente que pessoas desse grupo social se deixassem
fotografar ao lado de seus cavalos, conforme podemos observar na imagem
(FIGURA 2). Verifica-se haver preocupação com a aparência, pois utilizavam os
melhores trajes e preparavam o animal para o registro com freios, arreios e estribos
trabalhados.
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Figura 2 – Proprietário posando ao lado de seu cavalo
Fonte: Acervo da família de Erny Wommer [s.d.].
Com o objetivo de exibir seus cavalos, os donos provocavam-se mutuamente
para corridas. Vencer, além de status social, garantia um prêmio financeiro
decorrente das apostas que eram feitas antemão. As notícias dos cavalos
vencedores corriam rapidamente pela região, sendo algumas imortalizadas em
crônicas, conforme segue:
Em nosso município [Arroio do Meio], na localidade de São Caetano, o Sr. Albino Fischer possuía uma égua muito corredeira de nome “Baiana”. Na redondeza não havia animal que competisse com a mesma. Surgiu um cavalo muito corredor, de um senhor de nome “Francula”, que residia na encosta da serra de Taquari. Estes dois animais correram diversas carreiras, sendo que às vezes ganhava um, outra vez era vencedor o outro.
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Como aqui por perto não existia uma cancha, as corridas eram realizadas na localidade de Beija-Flor, no município de Estrela, na propriedade de um senhor Prediger. Como a fama da égua “Baiana” transpassava as divisas do município, quando os dois animais corriam, era grande a afluência de público. A última carreira, me recordo do ganhador: foi o cavalo do Francula, sendo que quem apostou na égua Baiana perdeu muito dinheiro (SCHROEDER FILHO, 1999, p. 14-15).
No formato mais primitivo das carreiras eram os próprios proprietários que
preparavam seus animais para as corridas. Depois essa tarefa se tornou a
especialidade de um outro personagem, o compositor.
Nas carreiras, é o grupo dos proprietários de animais que ocupa o mais alto
nível socioeconômico. Constatou-se que habitualmente os proprietários possuem
mais de um animal destinado para a corrida, e estes recebem tratamento especial
desde os primeiros anos de vida (EA, 2013). Durante a entrevista o EA descreveu
um episódio do qual afirma ter vaga lembrança. Lembra-se que, ainda na infância,
houve um dia em que sua família escondeu os cavalos na mata porque os militares
estariam passando pela região e requerendo os animais de montaria para suprir as
necessidades da tropa. Esse episódio dataria do ano de 1932 quando, durante a
Revolução Constitucionalista, ocorreu o Combate do Fão na região de Soledade,
confronto entre revoltosos e forças estaduais (TROMBINI, 2010). Não há referência
ao confisco de animais de montaria por parte das tropas, porém a ilustração
demonstra o valor que tinham os cavalos para seus proprietários, a ponto de
refugiarem os animais na mata como no episódio descrito.
O relato anteriormente descrito evidencia o caráter projetivo da memória, ao
qual se refere Pollak (1992) quando faz um estudo sobre a guerra na Normandia em
1940. Os entrevistados descrevem os capacetes pontudos dos soldados alemães
usados na Primeira Guerra, até 1917. Essa memória se trata de uma transferência a
partir da memória dos pais (POLLAK, 1992). O EA elaborou uma associação entre
um episódio da sua infância onde recorda do momento em que esconderam os
animais na mata e a Revolução Constitucionalista, sem ter a consciência na
memória que ambos estavam relacionados.
A invocação da memória compreende uma ação premeditada, pois segundo
Nora (1993, p. 13) os “[...] lugares de memória nascem e vivem do sentimento que
não há memória espontânea”. Sendo assim, a memória precisa ser resguardada em
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espaços que lhe permitam a sobrevivência. Nas palavras e lembranças dos
proprietários de animais entrevistados, as vitórias obtidas nas corridas adquirem
sentido nostálgico e são descritas com muitos detalhes. Por outro lado, as derrotas
praticamente não são mencionadas. Essa constatação nos permite inferir que a
memória refugia-se no êxito das vitórias e silencia as derrotas.
3.2.2 Grupo dos Compositores
A pessoa que desempenha a função de compositor é o responsável pelo
treinamento e alimentação do animal. Essa tarefa possui como característica
fundamental a hereditariedade, já que os compositores não costumam compartilhar
seus segredos de treinamentos com possíveis adversários. Para ser iniciado nessa
profissão é importante possuir alguém na família que se disponha a compartilhar
esses ensinamentos (DIÁRIO DE CAMPO 1, 2014).
O treino dos cavalos para a corrida é muito específico, mas cada profissional
possui suas artimanhas, seus segredos. Segundo o depoente EB (2014),
primeiramente é preciso retirar o animal do pasto, diminuindo o verde da sua
alimentação. Aos poucos ele se acostumará com a cocheira8 e com o treinamento
diário, que deve ser feito logo pela manhã. Inicialmente o treino é feito por uma hora
e segue aumentando conforme a resposta do cavalo. Quando essa mudança do
pasto para a cocheira é repentina, em linguagem de carreirista, se diz que “virou o
cavalo” ou “enxugou muito o cavalo”, o que faz com que o animal não corra. Quando
o compositor observar que o animal já está adaptado à nova alimentação ele inicia o
treino de arrancadas ou largadas, que consiste na capacidade de explosão de
velocidade do animal. No momento em que o compositor perceber que o animal
atingiu seu auge ele “tira o tempo” do mesmo. Esse relato corresponde ao mesmo
sistema descrito por Freitas em um trabalho intitulado Antigos Jogos Desportivos da
Campanha.
Já quase na véspera da corrida fazia-se um floreio, uma corrida de experiência, em que se “tirava” o tempo do cavalo, quase sempre a relógio. Em cancha reta, de duas quadras, era considerado cavalo de lei o que fizesse o percurso em 15 segundos (FREITAS apud MEYER, 1975, p. 62).
8 Cocheira se refere ao abrigo do cavalo. No caso do preparo para carreira, o animal passa o dia na
cocheira com alimentação à base de forragem (EB, 2014).
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Salienta-se que uma quadra equivalia a 128 metros, podendo as canchas
terem de duas a quatro quadras. Mesmo após a modificação do sistema métrico
imposta pela Lei nº 1157, em 1862, por muito tempo as canchas ainda se utilizavam
do sistema de quadras (BENTO apud PEREIRA, MAZO; LYRA 2010a).
Com o desenvolvimento tecnológico passou-se a utilizar o cronômetro para
“tirar o tempo” dos animais. O novo processo consistia no fato de uma pessoa se
colocar junto à marca dos 300 metros e apertar o cronômetro assim que o animal
cruzasse pelas balizas (EG, 2014). Tendo conhecimento do tempo que os animais
demoravam para fazer aquele trajeto é possível fazer as devidas comparações e
saber se há a possibilidade de atar uma boa carreira.
Os animais mais utilizados nas corridas em cancha reta são o “Cavalo Quarto
de Milha” e o “Cavalo Inglês”. Segundo o depoente EE (24/02/2014, p. 7) “o cavalo
Quarto de Milha é pra 400 metros e o Inglês, puro sangue Inglês, esse é pra 500 ou
mais”. Tirando o tempo dos animais nos 300 metros, deduz-se que a velocidade do
Quarto de Milha manter-se-á praticamente a mesma ou reduzirá, pois se trata de um
animal com explosão na partida, enquanto que o Cavalo Inglês possui mais
resistência, podendo aumentar a velocidade nos metros finais da cancha. Cada
animal é escolhido de acordo com as suas características para a cancha que lhe é
mais favorável.
Nas hípicas, o compositor trata do preparo de vários animais, recebendo um
pagamento pelos seus serviços. É tradição dar uma porcentagem do valor obtido em
corridas vencidas para o compositor e para o jóquei.
Os compositores são atores fundamentais na realização das carreiras em
cancha reta. Sua especialização vem ocorrendo ao longo dos anos, mas os métodos
tradicionais de treinamento de animais ainda são mantidos por muitos deles (EB,
2014). Na Figura 3 temos um compositor da terceira geração da família posando ao
lado do cavalo que lhe proporcionou muitas vitórias em cancha na década de 1970
no Rio Grande do Sul.
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Figura 3 – Compositor ao lado de um animal que venceu várias corridas em canchas
Fonte: Acervo da família de Lino Schneider [s.d.].
A hereditariedade da função desempenhada pelos compositores nas corridas
em cancha reta garantiu a manutenção da tradição ao longo do tempo. Porém a
continuidade da sua existência se mostra ameaçada na atualidade, à medida que o
exercício da atividade não desperta interesse nos grupos mais jovens. Uma das
consequências da diminuição no número de compositores especializados é o
surgimento de hípicas onde um único compositor cuida do preparo de vários animais
(DIÁRIO DE CAMPO 2, 2014).
3.2.3 Grupo dos Jóqueis
O grupo dos jóqueis é pouco mencionado na bibliografia sobre a temática
levantada, pois sua atuação é reduzida praticamente apenas ao dia da corrida. O
jóquei é o responsável por montar o cavalo na ocasião da corrida, mas é de
fundamental importância que ele conheça o animal e tenha treinado com o cavalo.
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Devido a isso, cada proprietário ou grupo de proprietários tem seu jóquei de
confiança (DIÁRIO DE CAMPO 4, 2014).
Para a função de jóquei o peso é uma característica fundamental. Nos
contratos de carreira que pesquisamos constam poucas especificações sobre esta
função, mas a respeito do peso do jóquei os registros e narrativas informam, por
exemplo, “300 metros, dois 50 kg”, quer dizer que os dois animais farão o percurso
com 50 kg, se o jóquei pesar menos de 50 kg completará o peso com cartuchos de
chumbo colocados na guaiaca. Um outro exemplo aponta que “50 kg por nada”,
significa que há uma vantagem, um cavalo correrá com 50 kg enquanto o outro está
livre para colocar o peso que quiser (EB, 2014). Segundo o depoente EB, o peso
colocado sobre os animais rendeu muitas histórias engraçadas.
50% das carreiras se corre entre 30 e 40 quilos, o que aconteceu já, eles dizem se o cavalo é corredor, aí eles dizem tu pode cuspir em cima do teu cavalo, bota o que tu quiser, eu boto 50 e tu bota o que tu quiser, aí eles fazem a carreira, aí aconteceu já que o cara amarrou um galo em cima. E porque um galo é melhor que nada? Porque um galo quando o cavalo começa a correr, ele vai bater [as asas] e aí o cavalo se assusta e fica com medo e aí o cavalo ó [corre mais], e o cavalo com nada em cima aos poucos ele começa a parar de correr, porque ele vê que ninguém bate, isso acontece muito (EB, 11/02/2014, p.13).
Em função da questão relativa ao peso do jóquei, algumas crianças são
incentivadas para essa atividade. Como exemplo temos as entrevistas com dois ex-
jóqueis que relataram terem iniciado nas corridas de cavalo ainda crianças.
Eu comecei a correr com 10 anos [...] claro no começo tu começa aprendendo devagarinho e tal, aí com 12 anos eu comecei já a montar e correr carreira, isso foi influenciado pelos meus tios, meu vô sempre teve cavalo, gostava de carreira e coisa, fui incentivado por eles (EF, 15/03/2014, p. 4).
Na cancha da família Porto, no município de Taquari, vemos duas crianças
montadas, em imagem da década de 1960 (FIGURA 4). Utilizavam capacete de
jóquei e nenhuma vestimenta especial, aparentam estarem até com os pés
descalços.
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Figura 4 – Crianças desempenhando a função de jóquei
Fonte: Acervo da família Porto [s.d.].
O jóquei, assim como o compositor, possuía uma especialização para
desempenhar suas funções. Como treinamento específico para os jóqueis há uma
série de cuidados para vencer a corrida e estratégias para conseguir novas
carreiras, uma delas é segurar o cavalo, estratégia usada para não mostrar toda a
carreira do cavalo, ou seja, não ganhar com tanta vantagem, como ilustra a Figura 5
(EB, 2014).
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Figura 5 – Jóquei “segurando” o cavalo nas balizas de chegada
Fonte: Acervo da família Lino Schneider [s.d.].
Além de ter os conhecimentos técnicos, o jóquei precisava ser destemido,
pois a possibilidade de um acidente era uma realidade. São comuns nos relatos
histórias de jóqueis que sofreram graves acidentes durante corridas, até casos de
morte. Um dos depoentes informa em sua narrativa que o seu sogro faleceu em uma
corrida, conforme segue:
[...] isso parece até uma má palavra isso aí acontecer [...] eles disseram assim, “ganhei a carreira”, mas ele tinha perdido, [mas ele dizia] “ganhei a carreira, ganhei a carreira”, [disseram] tem que tocar de novo, [ele disse] “então se eu perdi essa carreira eu não quero ver as minhas três filhas”, e tocaram, e o cavalo abriu (ED, 18/02/2014, p. 6).
Na linguagem de carreira, “tocar de novo”, significa correr novamente, pois os
juízes não chegaram a um consenso, e “o cavalo abriu” quer dizer que o animal saiu
dos trilhos.
3.2.4 Grupo dos Juízes
Os juízes ou julgadores de carreira são aqueles responsáveis por validar e
dar os vencedores da corrida. Segundo o depoente EG (2014), há um juiz de
largada, também chamado de starter. Esse juiz é responsável por conferir se os
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cavalos estão colocados nas caixas e também por “dar as tampas”9. E é ele quem
poderá invalidar a carreira se constatar alguma irregularidade na largada (CÓDIGO
DE CORRIDAS DE CARREIRA, 1984).
Os juízes de chegada são sempre três. O primeiro e o segundo juízes darão
seu parecer sobre o vencedor da corrida e sobre qual foi a vantagem (Figura 6). O
terceiro juiz somente se manifestará se não houver consenso entre os dois
primeiros. Caso os juízes não acordarem em um veredicto, recorre-se à fotografia,
porém esta é utilizada apenas como último recurso (EG, 2014). Pode-se inferir que a
tecnologia adentrou o universo das carreiras, mas a continuidade da escolha dos
integrantes pelo uso da palavra e da honra ainda tem um significativo peso nesse
universo.
Figura 6 – Juiz a postos na baliza de chegada
Fonte: Acervo da família Porto [s.d.].
Para a escolha dos juízes cada proprietário de animal nomeia uma pessoa de
sua confiança, e o terceiro juiz é escolhido pelo proprietário da cancha (EA, 2013).
Para exercer essa função, tradicionalmente são escolhidas as pessoas mais idosas
9 Dar as tampas é uma linguagem específica das carreiras que significa dar a largada.
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do grupo que atestem a sabedoria e a experiência necessárias para desempenhá-la
(DIÁRIO DE CAMPO 8, 2014).
O parecer da vitória dado pelos juízes dificilmente é questionado. Os
frequentadores entendem que questionar uma vitória é questionar a própria lógica
da corrida (DIÁRIO DE CAMPO 8, 2014). Mesmo assim os enfrentamentos são
frequentes entre os proprietários de animais. Por meio de provocações, os ânimos
se exaltam de forma incondicional e algumas vezes chegam à agressão física.
Assim como na briga de galos em Bali, na carreira o risco é excitante, a derrota é
deprimente e o trunfo é gratificante, emoções que exemplificam a construção da
sociedade (GEERTZ, 1978).
3.2.5 Grupo dos Apostadores
Os apostadores, em grande parte, participam dos grupos descritos
anteriormente. Poucos são apenas espectadores das corridas. Os proprietários dos
animais fazem a aposta principal, enquanto que os demais podem participar das
apostas paralelas (DIÁRIO DE CAMPO 5, 2014). Não adentraremos nos detalhes a
respeito do sistema de apostas, pois o mesmo será tema do próximo capítulo.
Os apostadores são em grande maioria homens que têm como hábito
frequentar corridas em cancha reta. Os observadores não usuais não costumam
participar das apostas, mas não há nenhuma regra que impeça qualquer indivíduo
de fazê-las, porém essa intromissão não é bem vista pelos membros do grupo
(DIÁRIO DE CAMPO 5, 2014).
As relações entre os grupos que atuam no cenário das corridas em cancha
reta são ditadas por um sistema de parcerias. Os participantes de carreiras
constituem um grupo de pessoas que possuem relações de âmbito regional e até
mesmo inter-regional (EF, 2014). Nessa rede de relações entre proprietários,
compositores e jóqueis há o compartilhamento de informações tais como sobre a
origem dos cavalos, seus tempos, quantas carreiras ganharam ou perderam, enfim,
uma rede que favorece o funcionamento e a manutenção da tradição.
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Surpreendentemente essas informações circulam rapidamente, coisa que não
acontecia no século XIX e XX. Segundo o depoente EH (2014), com o advento de
tecnologias como o aparelho celular muitas pessoas cronometram as corridas e
transmitem essas informações para proprietários de outras parcerias, fazendo com
que o tempo dos animais não se torne mais segredo. Alguns fatores de extrema
importância para as carreiras, que eram o desafio e a incerteza, tiveram aspectos
modificados com o advento de novas tecnologias.
As parcerias funcionam como redes de apoio. Os animais das hípicas
frequentam as corridas nas canchas de fora e, em seguida, o penqueiro10 convida os
animais das hípicas de fora para a carreira na cancha da casa. Dessa forma ocorre
uma troca entre as hípicas e canchas da região.
As carreiras são atadas dentro desse sistema de parcerias, não é frequente
atar carreiras com supostos desafetos, mesmo que para provar superioridade ou
fazer alguma provocação. Como a corrida representa uma série de valores
fundamentais para essa sociedade, parte-se do pressuposto de que não se faz um
contrato com pessoas nas quais não se confia. Esse mesmo sistema se sustenta no
que diz respeito às apostas, tema que será tratado no capítulo seguinte.
Além das provocações feitas na ocasião da corrida, os registros de brigas
também eram frequentes. Os frequentadores não se sentem muito confortáveis ao
falar dessas situações, mas se sabe que muito sangue já correu na areia das
canchas de carreiras. Canton (2003, p. 40), ao tratar das hípicas existentes na
região do município de Arvorezinha, relata que muitas “[...] peleias e mortes
aconteceram próximo à cancha, e peleadores morreram por simples razões e brigas
banais”.
Tradicional na vestimenta do gaúcho, a faca na guaiaca pode ter sido um
agravante para a ocorrência de brigas que levaram à morte, pois com os ânimos
exaltados muitos não tinham receio em puxá-la, como se dizia. Para manter a
segurança durante esses eventos fazia-se necessário um tipo de policiamento.
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Penqueiro é o organizador da carreira, ele é o responsável por convidar os proprietários de animais para a corrida.
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O avô do depoente EA (2014) atuava como subdelegado na região onde se
localiza o atual município de Marques de Souza e, segundo a narrativa do depoente
em questão, fazia o policiamento em eventos como as carreiras da região. Essa
atividade é mostrada na imagem das primeiras décadas do século XX (FIGURA 7).
As carreiras movimentavam parte da comunidade, conforme relato do mesmo
depoente, e havia sempre um grande número de observadores vindos de vários
municípios da região do Vale do Taquari. Eram realizadas em média três grandes
carreiras por ano.
Figura 7 – Dois parelheiros montados por seus jóqueis. O terceiro homem à
esquerda era Henrique Britzki, que atuava como subdelegado acompanhando as
carreiras da região
Fonte: Acervo da família Erny Wommer [s.d.].
Na Figura 7 pode ser comprovada a presença nas carreiras de outro grupo
étnico, além dos imigrantes. Aparecem à esquerda da fotografia dois homens
negros, aparentemente fardados, que provavelmente compunham o destacamento
incumbido de promover a segurança do evento. A circulação dos diferentes grupos
étnicos pelas carreiras ilustra como as corridas tornaram-se um espaço de interação
social, sem que houvesse perda da identidade. “Se um grupo mantém sua
identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre a existência
de critérios para determinação do pertencimento [...]” (BARTH, [1969] 2000 p. 34).
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Segundo relato do EA, as brigas durante as carreiras eram frequentes,
acabando até em morte, conforme demonstra seu depoimento:
Todas as carreiras tinham briga, toda vez bagunça, eles queriam matar ele antes já [...] e ele se salvou embaixo do pessoal. De pura fumaça, eles não viram ele mais [...] o outro cavalo ganhou por dois luz e ele ficava duvidando, duvidando e foram lá pra dizer que eles perderam e ele já jogou a faca contra o meu avô, o vô se abaixou e atirou dentro do ombro dele, ele queria bem matar ele, e o vô pegou a faca e acertou ele bem no coração (EA, 25/10/2013, p. 7).
Assim como nas regiões de campanha, pudemos observar que também na
região do Vale do Taquari as carreiras em cancha reta foram e ainda são uma
prática cultural histórica que configura algumas características dessas sociedades.
Ou seja, as corridas não movimentavam apenas os indivíduos que participavam
diretamente da sua realização, tais como os proprietários de animais, compositores,
jóqueis, juízes e apostadores já elencamos, mas todo o contexto social que as
cerca, introduzindo e espelhando através dessa prática cultural uma série de
relações sociais e valores. Estes podem ser percebidos na sociabilidade entre os
indivíduos, virilidade, importância da palavra de um homem, honra, status social,
papéis a serem desempenhados por gênero, entre outros.
Podemos estabelecer algumas relações a respeito das práticas das quais os
imigrantes do vale se apropriaram a partir da necessidade que os acontecimentos
políticos do século XX lhes impuseram. O panorama formado pós-Segunda Guerra
Mundial tornou o germanismo uma ameaça, dando início ao chamado
abrasileiramento das organizações esportivas e associações. Algumas práticas de
origem germânica como o tiro ao alvo, o bolão e a ginástica foram alvo da política
nacionalizadora, conforme temos:
O Decreto-Lei nº 383, de 18 de abril de 1938, além de estabelecer uma imigração dirigida, proibiu estrangeiros residentes no Brasil de exercerem atividades políticas. As autoridades julgavam que as associações também eram locais onde os teuto-brasileiros discutiam política (KILPP; ASSMANN; MAZO, 2012, p. 81).
Os descendentes de imigrantes da região do Vale do Taquari, principalmente
os teuto-brasileiros, apoiaram-se em práticas tradicionais dos gaúchos primitivos
para reafirmar a sua brasilidade. Com isso podemos compreender a pouca inserção
dos elementos das culturas dos estados nacionais na prática das corridas em
cancha reta. O vocabulário é um aspecto exemplar dessa análise, porque mesmo
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que os grupos de imigrantes tenham mantido seus dialetos de origem, não inseriram
nenhum novo vocábulo para as carreiras, tanto que até os dias atuais os termos
próprios usados pelos carreiristas são os mesmos, independentemente em que
região do Rio Grande do Sul elas ocorram.
A fronteira étnica, especificamente para as corridas em cancha reta, pelo que
pudemos constatar, não se mostrou uma fronteira para difusão desta prática e
costume no Rio Grande do Sul. Neste sentido, recorremos ao estudo de Barth
([1969] 2000), que ressalta que a apropriação de práticas culturais de um grupo
étnico por outro não significa uma negação da identidade étnica do primeiro em
relação ao segundo, ou vice-versa, conforme segue:
O mais importante é reconhecer que uma drástica redução das diferenças culturais entre os grupos étnicos não se correlaciona de maneira simples com uma redução na relevância das identidades étnicas em termos organizacionais ou com uma ruptura dos processos de manutenção de fronteiras (BARTH, [1969] 2000, p. 59).
O cenário da nova terra, apresentado aos imigrantes europeus em sua
chegada no Rio Grande do Sul, reforçou traços da sua identidade étnica mesmo que
distantes geograficamente de sua terra natal, o que fez com que formassem
associações esportivas, mantivessem tradições, dialetos linguísticos, cultura e
gastronomia ao mesmo tempo em que se inseriam em um panorama cultural já
estabelecido em que as corridas de cavalos em cancha reta já faziam parte.
3.3 As relações de gênero
Nesse cenário emergem com força as contradições nas relações de gênero.
Os papéis desempenhados por homens e mulheres são delimitados por meio de
padrões de uma sociedade regida por regras e normas patriarcais e hierarquizadas.
Segundo Adelman (2006), estamos passando por uma “cultura da transição”
na qual estabelecer relações dicotômicas entre homens e mulheres é uma tarefa
conflituosa, porém ainda ocorre, ditando quais esportes e práticas são masculinos
ou femininos. O avanço das mulheres no campo dos esportes é um fenômeno
amplamente reconhecido. A referida autora em seu estudo sobre as mulheres
amazonas destaca:
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O outro grupo, a das amazonas do hipismo clássico, trata-se evidentemente de um grupo de atletas que praticam um esporte de elite e que sustentam vínculos mais tênues com o grande complexo esporte. [...] Desde uma perspectiva de gênero, é um campo esportivo que permite testar algumas ideias sobre práticas esportivas e corporais como espaços de transgressão (ADELMAN, 2006, p. 15).
A carreira sempre foi uma prática predominantemente masculina, onde as
funções de compositor e jóquei eram desempenhadas por homens. No turfe e em
outros esportes característicos de hipódromos, as mulheres passaram a ganhar um
espaço crescente, em função da luta feminina pelos direitos iguais, pela quebra de
preconceitos e por meio de transformações graduais que estavam ocorrendo em
países desenvolvidos. Muitos hábitos e costumes foram modificados e o sexo
feminino passou a ocupar novas posições na sociedade. Na década de 1930 “a
prática da equitação, portanto, a exemplo do que já acontecia em São Paulo, admitia
a participação das mulheres em Porto Alegre” (SCHPUN apud MAZO; PEREIRA;
SILVA, 2011, p. 295).
Possivelmente as capitais, por se tratarem de cidades maiores e com
influência dos acontecimentos que estavam acontecendo nos grandes centros
mundiais, foram atingidas mais diretamente por essas mudanças na participação
feminina em esportes envolvendo o cavalo. Outro fator decisivo para a penetração
feminina no cenário do turfe era o glamour que os hipódromos representavam, pois
eram espaços frequentados por elites, enquanto a cancha reta era considerada uma
prática mais interiorana e com frequentadores de diversas classes sociais.
Essas mudanças pouco atingiram o interior do estado, onde as canchas retas
definiam as práticas de corrida equestre. A exemplo disso, no Vale do Taquari as
mulheres não desempenharam as funções de jóquei e compositor, ficando esses
papéis restritos aos descendentes do sexo masculino (DIÁRIO DE CAMPO 8, 2014).
Pode-se inferir que, mesmo não desempenhando diretamente as funções
específicas de preparo dos animais de corrida e da condução dos mesmos, as
mulheres que cresceram em um ambiente onde essa prática era comum possuíam
tanto conhecimento sobre o assunto quanto os homens da família. Era comum,
desde muito jovens, algumas mulheres acompanharem os pais ou irmãos na
realização dessas atividades e assim frequentarem as corridas na mesma
proporção.
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Nas apostas de carreira as mulheres participavam diretamente, como ilustra o
relato do EH ao falar de uma lembrança da época de infância quando foi a uma
carreira na localidade vizinha.
Tem mulher que joga, quase a mesma coisa, que nem os homem, criança também. [...] Aquela vez tinha um cavalo, fomos em três em cima do cavalo, fomo lá, aquela vez foi um azar, perdemo nada, a minha professora perdeu anel, e o relógio e não sei mais o que, jogavam tudo, se invocavam lá e jogavam (EH, 30/03/2014, p. 4).
No interior a sociedade manteve por mais tempo vestígios do modelo
patriarcal no qual cabiam às mulheres as funções relacionadas ao trabalho
doméstico. Nesse modelo de divisão de tarefas, a participação feminina nas canchas
do Vale do Taquari ficará restrita a atividades como o preparo da alimentação. Será
função das mulheres preparar e servir o almoço e em seguida cuidar da limpeza. A
presença feminina mostrou-se ausente nessas tarefas em apenas uma das canchas
pesquisadas, a saber, na Hípica do Pacheco, em Teutônia.
As canchas retas são estruturas familiares, portanto acabam estendendo as
divisões de tarefas existentes nos próprios lares, ou seja, estabelecem uma espécie
de organização onde algumas tarefas eram tradicionalmente feitas por homens e
outras tarefas eram desempenhadas pelas mulheres.
Sobre a importância da figura feminina na estrutura social formada a partir da
chegada dos imigrantes alemães, Stormowski (2007, p. 47) salienta que a “[...]
manutenção dos hábitos e dos costumes alemães dependia das mulheres, as quais
através do serviço doméstico ofereciam um conforto difícil de ser mantido sem a
presença feminina”. Segundo a autora, a necessidade fez com que as mulheres
imigrantes alemãs e italianas assumissem funções que não eram tradicionalmente
desempenhadas por elas nas suas nações de origem e, com isso, era comum ver
mulheres trabalhando na roça ao lado de seus maridos (STORMOWSKI, 2007).
Na região de colonização predominante açoriana, observa-se que a atuação
feminina, no contexto envolvendo as corridas de cancha reta, é mais reduzida se
comparada às áreas de colonização alemã e italiana. Nessa região, mesmo no
preparo da alimentação, a presença feminina é rara. Sendo o almoço churrasco feito
em galpão ou ao ar livre, sem acompanhamentos, a atividade de assar a carne é
tradicionalmente desempenhada pelos homens. Segundo narrativa do EJ (2014, p.
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3), ao tratar da presença feminina na cancha de seu pai no município de Taquari,
informa que “eram bem poucas, não passava de 5%”. A Figura 8 retrata um dia de
corrida na cancha da família Porto na década de 1960, e nela não são identificadas
representantes do sexo feminino.
Figura 8 – Carreira na cancha do Sr. Eduardo Porto
Fonte: Acervo da família Porto [s.d.].
A influência do pensamento positivista, que teve grande alcance no Rio
Grande do Sul, também reforçou a submissão feminina: “segundo o ideário
positivista, ao homem cabia o trabalho e o sustento financeiro da casa; à mulher,
respeitar ao pai e ao marido, cuidar da educação dos filhos e do lar” (PEDRO, 2002,
p. 304).
A atuação feminina nos trilhos da corrida de cancha reta apresentou-se quase
nula, porém no entorno dos mesmos as mulheres desempenharam papéis
fundamentais para a manutenção dessa prática cultural. Nos retratos das corridas
elas figuram no pano de fundo, reflexo de uma sociedade que se formou a partir de
valores em que o protagonismo foi predominantemente masculino.
Dessa forma, as carreiras construíram um cenário singular e ao mesmo
tempo ilustrativo das relações sociais, de gênero e de poder existentes na região,
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bem como da relação entre homens e cavalos, personagens tão apreciados pela
cultura e historiografia gaúcha.
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4 CANCHA RETA: O JOGO E A LEI NO VALE DO TAQUARI
Os jogos que envolvem apostas e a lei costumam entrar em conflito. As
carreiras em cancha reta tinham como característica principal seu sistema de jogos e
apostas que, sendo uma parte fundamental do carreiramento, foram alvo de uma
série de legislações criadas ao longo do século XX que tinham por objetivo limitar
cada vez mais essa prática.
As corridas em cancha reta eram mobilizadas em grande medida pelo
envolvimento de seus frequentadores no sistema de apostas, direto ou indireto. O
jogo está fortemente ligado a essa atividade cultural amplamente difundida no Rio
Grande do Sul.
Neste capítulo, tomando o Rio Grande do Sul como contexto, abordaremos os
jogos que foram desenvolvidos no entorno das canchas do Vale do Taquari, o
sistema de apostas nas corridas e a legislação que trata sobre o tema.
4.1 A carreira e o jogo
A vitória no jogo constitui uma motivação humana. Os jogos de apostas, no
cenário pesquisado, configuram-se como uma forma de obter status social, lucro
financeiro e privilégios. Historicamente as carreiras constituíram um espaço onde as
apostas ocupavam protagonismo importante dos atores envolvidos em cada grupo
social.
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Utilizaremos como categoria de análise para os cenários das corridas em
cancha reta o conceito de “jogo profundo” de Bentham. Clifford Geertz (1978, p. 299)
foi quem se apropriou do conceito do referido autor para seu estudo sobre as rinhas
de galo balinesas em que o jogo se mostrava absorvente e envolvia profundos
significados de valores simbólicos, conforme segue:
Num jogo profundo genuíno, isso acontece com ambas as partes. Eles estão ambos mergulhados até a cabeça. Chegando juntos em busca de prazer, eles entram numa relação que trarão aos participantes, considerados coletivamente, mais dor do que prazer (GEERTZ, 1978, p. 300).
Esse envolvimento no jogo contraria as lógicas ocidentais, pois a importância
da aposta não está apenas na quantia envolvida, mas também nas questões da
natureza humana, como afirma Geertz (1978, p. 300), para quem nos “[...] jogos
profundos, onde as somas de dinheiro são elevadas, está em jogo muito mais do
que o simples lucro material: o saber, a estima, a honra, a dignidade, o respeito”. O
envolvimento dos apostadores se dá como em um jogo de atuação em que a
provocação ganha ares de intimidação, brinca-se com os mais conflituosos
sentimentos humanos, como honra e coragem, situações que também identificamos
entre os grupos sociais envolvidos nas carreiras em cancha reta.
De acordo com as narrativas de Nicolau Dreys, viajante que viveu no Brasil
entre 1817 e 1843 e percorreu a Província do Rio Grande do Sul, “joga o gaúcho
tudo o que possui - dinheiro, cavalo, armas [...] e sai às vezes inteiramente ou quase
nu” (DREYS, 1980, p. 122). O relato do viajante traça um perfil do habitante do sul
em que se destaca o gosto pelo jogo.
Corroborando essas afirmações, paralelamente às apostas em carreiras
podemos apontar o desenvolvimento de uma série de modalidades de jogos de
azar11. No Vale do Taquari desenvolveram-se diversos desses jogos, alguns trazidos
de outras regiões, que ganharam, de imediato, muitos adeptos entre os habitantes
do vale. Sobre isto temos:
[o jogo constitui] uma deriva da rotina doméstica, da disciplina do trabalho, das normas do cotidiano, da miséria das emoções no modo dominante de produção da subjetividade. Na longa história do tédio, fluxos descontínuos de acaso operam como linhas de fuga na busca da excitação e da
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Entendemos como jogos de azar aqueles que estão submetidos à sorte, em que a perícia não agrega nenhuma vantagem (BENATTE, 2002).
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experiência da intensidade. O jogo da desterritorialização possibilita um lugar-outro (heterotopia) e um tempo-outro (heterocronia), afirmativos do acaso no mundo da vida. A invenção de um espaço-tempo outro na intensidade do jogo implica uma relação de si com o de fora; uma relação de si com a exterioridade de uma potência cega: o acaso (BENATTE, 2002, p. 4).
As sensações trazidas pelo jogo compensariam de alguma forma a ausência
de excitação na vida fora dele. É uma das vias utilizadas pela sociedade para
enfrentar com êxito o processo de civilização. No início do século XX crescem as
críticas aos aficionados pelos jogos de azar e, na visão da sociedade moralista, o
jogo passa a ser uma atividade improdutiva e irracional, contrária à ideia de
progresso e desenvolvimento que se queria propagar, portanto era necessária a
elaboração de leis para coibir esta prática (BENATTE, 2002).
No Vale do Taquari, jogos deste tipo, apesar de seu rótulo de ilegalidade,
eram realizados no entorno das canchas retas, principalmente antes das carreiras
principais. Ilustra a situação o Jogo do Dadinho, realizado antigamente na Hípica
Reckziegel, no município de Paverama:
Antigamente nós aqui tinha o jogo do dadinho, é um copo com umas pedras de dado, o dadinho mesmo, com três pedra dentro do copo de couro, pano em cima e todo mundo aposta ali, e o número que sai paga né. [...] a mesa do dadinho que eu falo, existia o dadinho e os Sete baiano também, era o mesmo jogo, só que era um pano numerado com o 7 no meio, quem jogava no 7, era com duas pedra, se uma pedra desse 6 e a outra desse 1 dava 7, quem jogava no 7 ganhava três vezes o valor, eles chamavam de Sete baiano aquilo ali. Então aquilo era muita vantagem numa cancha de carreira, eles botavam três, quatro mesa, tu alugava espaço, então tu faturava naquilo ali, dinheiro limpo que dava, então hoje tu não pode botar mais porque é proibido, muito fiscalizado, então não se usa mais (EE, 24/02/2014, p. 7).
Nesses jogos a mesa fica com uma porcentagem das apostas, o que fornecia
um lucro considerável para o dono da banca, ou seja, para aquele que organizava o
jogo. Constata-se que não apenas as apostas nas corridas envolviam dinheiro, mas
também uma série de jogos paralelos que eram realizados no entorno das canchas.
Outra modalidade de jogo de azar feito em carreiras era o Jogo do Dedal, “[...] do
dedal, aquele dedal que as mulheres usam pra costurar, põe na mão e põe uma
bolinha de isopor, depois tem que saber onde é que tá a bolinha em três dedais”
(EE, 24/02/2014, p. 7).
Um dos jogos paralelos às carreiras mais conhecido e estudado pelos
folcloristas do Rio Grande do Sul é o Jogo do Osso. No Vale do Taquari há registros
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desse jogo nas áreas de colonização açoriana e de seus descendentes, sendo que
nas regiões de colonização alemã e italiana e seus descendentes o jogo não ganhou
muitos adeptos.
O Jogo do Osso, assim como os demais jogos ditos de azar, não depende de
perícia ou conhecimento do jogador, apenas da sorte ou acaso. Se o osso do garrão
do boi, conforme já nos referimos, ficar com o lado maior para cima, ganha-se; se for
o lado menor, perde-se; se ele ficar deitado, o jogo prossegue (GOLIN, 1999). A
cada jogada deposita-se uma nova quantia na mão do juiz, em algumas
modalidades os montantes de dinheiro são jogados no chão, e o vencedor recolhe
seu prêmio. Por tratar-se de um jogo simples, que pode ser realizado em
praticamente qualquer lugar, era muito frequente também na região de colonização
açoriana do Vale do Taquari.
Na região de colonização predominantemente italiana e de seus
descendentes prevaleciam os jogos de cartas nos galpões ou à sombra das árvores
ao longo das canchas (EH, 2014). Isso ilustra como a apropriação de uma prática
cultural antiga da província, como a carreira, agregou uma tradição trazida pelos
italianos de suas terras de origem, os jogos de carta. Da mesma forma, podemos
destacar a associação das canchas de carreiras às canchas de bocha - muitas
canchas de carreira têm em sua proximidade canchas de bocha, tradição difundida
pelos imigrantes italianos que ganhou adeptos nos descendentes de outras etnias,
principalmente entre os alemães (DIÁRIO DE CAMPO 8, 2014).
Nesse contexto teremos diferentes grupos étnicos se relacionando em um
mesmo espaço geográfico, no caso do Vale do Taquari. Esse contato entre grupos
étnicos diferentes não comprometeu as fronteiras culturais existentes, pois os
grupos já possuíam uma identidade étnica bem construída. Conclui-se que, mesmo
realizando atividades e jogos típicos de outros grupos étnicos, não houve conflito
com a identidade étnica existente, ou seja, os elementos novos foram agregados e
ressignificados pelos parâmetros culturais de cada etnia. Descendentes de
açorianos, alemães e italianos, independentemente da prática que passaram a
exercer nestes jogos, continuaram se reconhecendo como tais.
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É importante destacar que houve dois projetos de manutenção e construção
de identidade que se confrontaram no início do século XX. O primeiro previa uma
ligação com os estados nacionais de origem dos imigrantes e a manutenção de sua
cultura, principalmente entre os imigrantes alemães. As associações constituíram
uma forma de manutenção do germanismo (KILPP; ASSMANN; MAZO, 2012). Este
projeto representava os interesses dos grupos de imigrantes e de seus países de
origem, mantendo presente o vínculo com a pátria por meio da preservação da
língua, das tradições, das atividades culturais. O segundo projeto pregava um
abrasileiramento dos grupos de imigrantes e descendentes e a formação de uma
cultura nacional. Este projeto representava os interesses do governo brasileiro. Essa
situação provocou algumas atualizações culturais e apropriações de práticas de
outros grupos, tornando mais evidentes singularidades regionais. Tratando de
contatos interétnicos entre grupos asiáticos e sobre a manutenção ou mudanças de
identidade étnica temos o seguinte:
Haverá variações entre membros, alguns mostrando muitas das características próprias ao grupo e outros, poucas. Especialmente nos casos em que há mudanças nas identidades das pessoas, isso cria ambiguidades, pois nesses casos o pertencimento étnico é tanto uma questão de origem quanto de identidade atual (BARTH, [1969] 2000, p. 54).
Caberia ainda um estudo aprofundado sobre como cada grupo étnico dá
significado ao jogo de acordo com a sua cultura. De forma geral, os seres humanos
projetam no jogo elementos de sua identidade, uma teatralização da organização
social, e assim há possibilidade de adquirir determinado status almejado na
sociedade. Ou seja, no jogo, assim como na arte, identificamos elementos da vida
social.
Entretanto, através de outro desses paradoxos que perseguem a estética, ao lado dos sentimentos pintados e dos atos inconsequentes, e porque essa subjetividade não existe propriamente até que seja organizada dessa forma, as formas de arte originam e regeneram a própria subjetividade que elas se propõem a existir. [...] É dessa forma, colorindo a experiência com a luz que elas projetam, em vez de qualquer efeito material que possam ter, que as artes desempenham seu papel, como artes, na vida social (GEERTZ, 1978 p. 319).
As corridas em cancha reta e as outras modalidades de jogos realizadas
podem ter contribuído para que essas práticas culturais de cunho esportivo tenham
sido vistas pejorativamente por muito tempo. Tal percepção, em nosso ponto de
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vista, justifica o receio que alguns depoentes, num primeiro momento, demonstraram
em suas entrevistas ao falar dos jogos e das apostas.
A mentalidade contábil do mercado capitalista, associada ao energetismo voltado para a produção e reprodução do valor, (in)formou historicamente toda uma moral economicista: que as receitas superem as despesas. Que os benefícios superem os custos; que a produção supere a destruição. Essa moral, evidentemente, não deixa espaço para o excesso, a dissipação, a pura perda representada pelo gasto improdutivo. Daí a sui generis condenação do jogo, entre outras práticas culturais arquetípicas. O jogo é antieconômico porque canaliza a energia para descargas fora do domínio da (re)produção. Esse dispêndio gratuito aparece como um atentado contra os imperativos do capital (BENATTE, 2002, p. 12, grifo do autor).
O interesse pelos jogos e pelas apostas foi um dos fatores decisivos para o
envolvimento dos diferentes grupos socioeconômicos nas carreiras. Observa-se que
pessoas de diferentes níveis econômicos frequentavam esses espaços.
Contrariando certa racionalidade, aqueles de menor poder aquisitivo eram os que
faziam as apostas mais altas (DIÁRIO DE CAMPO 8, 2014). Analisando esse fato
sob a perspectiva do “jogo profundo”, apresentada anteriormente, podemos
constatar que, na tentativa de buscar um status social mais privilegiado, alguns
homens abriam mão do pouco que tinham, não se preocupando com as
consequências de perder no jogo, pois esta se mostrava uma das únicas formas de
obter determinado status no grupo social.
O cenário do jogo e das apostas está repleto de simbolismos que retratam a
organização das sociedades. Nesses espaços os seres humanos externam suas
representações e vivenciam práticas da sociedade na qual se inserem com o
objetivo de obter dos seus pares respeito e admiração.
O terreno comum dos historiadores culturais pode ser descrito como a preocupação com o simbólico e suas interpretações. Símbolos, conscientes ou não, podem ser encontrados em todos os lugares, da arte à vida cotidiana, mas a abordagem do passado em termos de simbolismo é apenas uma entre outras (BURKE, 2008, p. 10).
Compreender os símbolos que permeiam os jogos e as corridas de cavalo na
região do Vale do Taquari exige perceber que esses espaços são representações da
vida humana. Portanto, o que se almeja na vitória na cancha é o mesmo que se
projeta, grosso modo, para a vida. Assim sendo, vitória em uma corrida de cavalo,
em uma aposta ou em um jogo adquire um caráter simbólico de significativa
relevância aos frequentadores.
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4.2 O sistema de apostas
As apostas de carreiras são divididas em duas categorias, as convencionadas
pelo contrato e as apostas por fora. Na primeira categoria os proprietários dos
animais apostam entre si, e essas apostas costumam envolver grandes quantias de
dinheiro, acima do valor de mercado dos próprios cavalos. Em vista disto era feito
um contrato em que constava a data da corrida, o valor do depósito12, as condições
(metragem da cancha, peso dos jóqueis) e o valor da aposta (EG, 2014). Esses
contratos eram escritos à mão pelos proprietários de animais. Infelizmente durante a
pesquisa não consegui localizar nenhum contrato antigo pois, segundo os
depoentes, logo após as corridas os mesmos eram descartados, eram muito simples
feitos em uma folha de caderno e manuscritos (EI, 2014).
Na segunda categoria, as apostas podem ser feitas por qualquer pessoa que
desejar. Tradicionalmente as apostas são depositadas em dinheiro na mão de uma
pessoa íntegra e de confiança, escolhida pelos envolvidos na aposta. Dizia-se
“parada morta” quando a aposta não podia mais ser desfeita (FREITAS apud
MEYER, 1975). Em nossa pesquisa não identificamos na região do Vale do Taquari
a prática de apostas em “campo aberto” a qual, segundo Golin (1999), caracterizava-
se pelo fato dos apostadores colocarem o dinheiro no chão e o vencedor juntava.
As apostas nas corridas eram feitas em dinheiro, raros os casos em que
apostavam animais, como um leitão, por exemplo. De acordo com a historiografia
que trata do tema, nas carreiras primitivas as apostam envolviam todo o tipo de bem
material como rebanhos e estâncias (PEREIRA; MAZO; LYRA, 2010a). A respeito
do grande envolvimento nas apostas, Freitas (apud MEYER, 1975, p. 64) salienta
que algumas pessoas, “[...] não tendo mais dinheiro, apostavam, numa espécie de
alucinação, gado, o cavalo da montaria, objetos de uso, tudo do que poderiam
dispor, mostrando ao opositor a sua fé inabalável no pingo de sua simpatia”.
Nesse período as provocações também no Vale do Taquari eram levadas até
as últimas consequências, sendo comum homens andarem armados com facas e
facões. Em alguns casos, a honra foi lavada com sangue. As brigas também eram
motivadas por desentendimentos sobre apostas e trapaças. No galpão da Hípica
12
Multa para o que, que no dia da corrida, não cumpri-lo (FREITAS apud MEYER, 1975).
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Reckziegel, em Paverama, fundada em 1910, encontram-se pintados na parede os
ditos: “Proibido permanecer armado”. A Hípica Reckziegel é a mais antiga ainda em
funcionamento no Vale do Taquari e o referido dito é resquício de quando as brigas
eram frequentes (DIÁRIO DE CAMPO 3, 2014).
Principalmente nos torneios, onde correm pencas13, há um sistema
diferenciado de apostas, chamado de Arremate ou Jogo da Pedra. Não há referência
na bibliografia sobre regulamento do Arremate - é um sistema de apostas primitivo,
feito desde o século XIX e que se mantém em muitas canchas na atualidade
(DIÁRIO DE CAMPO 7, 2014).
O Arremate é coordenado por uma pessoa que recebe o título de
arrematador. Os donos de canchas costumavam trazer arrematadores de outros
municípios que possuíam experiência na realização do Jogo da Pedra. Os valores
apostados no Jogo da Pedra variavam muito, de acordo com a carreira. Se era uma
carreira boa, com grandes chances, as apostas eram maiores. Ressalta-se,
entretanto, que de região para região também há variações:
Pra lá de Soledade é 500, 500, 500, 500 [reais], fecha a pedra, seis animal, três mil reais, 20% pra hípica. Aqui não, nós é 100, 200. [...] Os donos dos animais entre eles, na hora que amarram a carreira, tem a obrigação de jogar no primeiro arremate, aí faz duzentos reais no primeiro arremate e aí depois deixa o público jogar (EG, 30/03/2014, p. 6).
O dono do animal que está com a carreira atada tem a obrigação de participar
do Arremate e o público em geral pode fazer as suas apostas na sequência (EG,
2014). Geralmente o Arremate é feito em um local mais elevado, de onde o
arrematador fica fazendo as provocações para novas apostas, como acontece em
um leilão, o que pode ser observado na fotografia da década de 1980 (FIGURA 9). A
carreira deve acontecer no horário marcado, o arremate inicia mais cedo para que
os interessados façam suas apostas, habitualmente após o infrene, que é uma
espécie de desfile dos animais da corrida (EC, 2014).
13
Quando os parelheiros eram mais de dois, a corrida chamava-se penca (FREITAS apud MEYER, 1975).
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Figura 9 – Jogo da pedra ou Arremate em carreira na cancha de Linha Clara
Fonte: Acervo de Lino Schneider [s.d.].
As apostas no Jogo da Pedra não são do mesmo valor, cada apostador pode
fazer um lance no valor que preferir para o animal de sua escolha, ou no caso de
penca, para a combinação da sua escolha. Compra o arremate aquele que fizer o
lance mais alto. Enquanto houver manifestações de interesse nas apostas são feitos
novos arremates, ou seja, uma única corrida pode render vários jogos. A cada jogo
feito a hípica fica com uma porcentagem do valor apostado (DIÁRIO DE CAMPO 5,
2014).
As apostas são registradas em um quadro negro que ilustra todas as
combinações possíveis de vencedores das corridas. Por exemplo, se houverem
quatro animais para a corrida, serão corridas duas carreiras (as canchas possuem
apenas dois ou três trilhos, portanto não há corridas de mais de três animais).
Chamaremos os primeiros corredores de A e B, e os segundos de 1 e 2. O quadro
de apostas apresentará as seguintes possibilidades: A1, A2, B1 e B2. Os
apostadores escolhem a dupla que lhes parece promissora e fazem suas apostas.
Recebem um comprovante de suas apostas - um pedaço de papel com o nome do
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cavalo e o valor. Atualmente o sistema é o mesmo, mas os apostadores recebem um
comprovante como mostra a imagem (FIGURA 10). Observa-se que a tecnologia
provocou algumas mudanças na forma de realização das apostas, pois atualmente
utilizam comprovantes personalizados impressos em gráficas. Essas mudanças,
porém, não alteraram a estrutura fundamental do sistema.
Figura 10 – Comprovante de aposta do Jogo da Pedra ou Arremate entregue ao
apostador
Fonte: Acervo da família Canton [s.d.].
Aqueles que apostam nos azarões fazem apostas de menor valor. O cavalo
azarão é aquele que não é o favorito, ou seja, demonstra poucas chances de
vencer. As apostas em azarões são importantes, pois o arremate só pode ser
fechado depois de todas as combinações terem um apostador. Como nas carreiras
são muito comuns vários truques, muitas vezes os azarões acabam vencendo a
disputa e rendendo aos apostadores uma quantia muito superior ao valor
empregado na aposta.
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Figura 11 – Explicação sobre Arremate em uma hípica
Fonte: Da autora (2014).
O Jogo da Pedra ou Arremate também é feito em uma modalidade mais
simples, onde não se aposta em uma combinação de vencedores, mas apenas em
um único animal. Sobre esta questão um depoente descreve o seguinte:
[...] primeira oferta quem faz? Aí o cara lá levanta a mão. - Quanto? - 50 reais. - Qual é o animal? - Animal número 3. Aí joga lá 3, e bota lá 3 - 50 pila. - Quero mais jogo, mais jogo, falta mais jogo, quem quer jogar? Aí o cara levanta a mão lá mais 40. - Qual é o animal? - Número 2. Até que fecha essa rodada, essa rodada quer dizer aqueles seis [cavalos que participam da corrida] e todos tem um jogador, aí soma em baixo isso dá 400 pila e soma, e escreve lá, [...] aí depois se esse número se o número três ganha, aí eles vão vê lá, número três quem jogou, aí ele ganha 400 pila, isso dá um dividendo bom, como se diz é melhor que jogar eu e tu vamos fazer um jogo, nós tamo do lado da cancha eu pego o número três e tu pega o número quatro aí nós fizemos uma aposta, 50 pila, eu ganho só R$ 50 teu, mas lá com R$ 50 eu posso ganhar 400 pila (EB, 11/02/2014, p. 13).
Um arremate de penca pode chegar a 15 mil reais nas carreiras da região do
Vale do Taquari, na Hípica do Mangueirão, no município de Venâncio Aires. Esta
hípica é uma das maiores do estado e as apostas são altas. Muitos proprietários de
cavalos de carreira, do Vale do Taquari e região, competem em hípicas de fora,
como Venâncio Aires, Carazinho, Cachoeira do Sul, entre outras (EF, 2014).
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Por envolver somas muito altas de dinheiro, as carreiras passaram a ser uma
atividade elitista do ponto de vista econômico. A especialização dos personagens e
a qualificação cada vez maior dos animais de corrida criou um circuito de alto nível
de competição (DIÁRIO DE CAMPO 6, 2014). O desenvolvimento da atividade
turfística fez com que surgissem hípicas onde o investimento financeiro é muito alto,
porém nas áreas rurais as canchas retas continuam com um caráter altamente
popular, recebendo apostas em valores mais baixos, oportunizando a participação
de pessoas de diferentes níveis socioeconômicos (EF, 2014).
A respeito, ainda, do perfil dos apostadores, podemos inferir que a maioria
deles são homens, como ilustram as imagens (FIGURA 12). A idade de grande parte
dos apostadores é intermediária, não há grande participação de jovens e nem de
idosos (DIÁRIO DE CAMPO 1; DIÁRIO DE CAMPO 4; DIÁRIO DE CAMPO 5, 2014).
As apostas constituem uma autoafirmação de maturidade social, ou seja, o
indivíduo, ao apostar, comprova que está apto a participar dessa representação,
para ocupar um lugar de prestígio na sociedade, e também que possui renda
financeira própria.
Figura 12 – Jogo da Pedra ou Arremate sendo organizado antes da carreira em
Linha Clara
Fonte: Acervo de Lino Schneider [s.d.].
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O aspecto financeiro não desempenhará papel primordial para os
apostadores. Mesmo com as perdas financeiras nas apostas, os frequentadores das
carreiras não conseguiam se distanciar dessa atividade, envolvendo-se cada vez
mais nesse meio:
Para Huizinga, o elemento de tensão desempenha no jogo um papel especialmente importante: “Tensão significa incerteza, acaso”. [...] O jogo é ‘tenso’, como se costuma dizer. [...] Esta tensão chega ao extremo nos jogos de azar e nas competições esportivas. Para os inveterados, o ganho da emoção – forma de reciprocidade do acaso – suplanta inclusive as perdas materiais (BENATTE, 2002, p. 7).
O sistema de apostas sofreu poucas mudanças de uma região para outra no
Vale do Taquari, principalmente por constituir o mesmo grupo de frequentadores
entre as hípicas e canchas da região. Dessa forma observamos as mesmas regras
gerais e os mesmos vocabulários típicos de carreira, independentemente da região
ter predominância de descendentes de açorianos, de alemães ou de italianos.
Mesmo não havendo um regulamento escrito sobre as condições das apostas,
essas regras são partilhadas pelos membros do grupo, e é nesse cenário que seus
membros buscam encontrar sua identidade. É o que Geertz (1978) chama de
acontecimento humano pragmático.
As carreiras constituem um conjunto de símbolos e significados
compartilhados por um grupo de pessoas ou seja, há a construção dos significados
simbólicos que parte do conhecimento compartilhado.
[...] uma vez que o significado dos símbolos repousa no fato de que eles são compartilhados e por isso comunicáveis entre os membros de um grupo pequeno ou grande: no primeiro momento, o pensamento é organizado de acordo com as estruturas simbólicas públicas à mão e somente depois disso, ele se torna privado (LEVI, 1992 p. 147).
Nas corridas em cancha reta os símbolos são compartilhados por meio de
uma rede de significados da qual cada indivíduo faz parte e na qual desempenha um
papel específico.
4.3 A questão da legalidade
A lei mais antiga do Rio Grande do Sul a tratar das corridas de cavalo é do
município de Uruguaiana, do final do século XIX, precisamente do ano de 1897. A
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“Lei de Carreiras” foi criada sob a justificativa de evitar desordens e obrigar as partes
contratantes a regras fixas e determinadas (RILLO, 1975). A referida lei não previa
com muitos detalhes os moldes nos quais deveriam ser realizadas as competições,
proporcionando grande liberdade aos diferentes esportes equestres.
Ao analisar os artigos da “Lei de Carreiras”, datada de 1897 do município de
Uruguaiana e da “Lei de Santiago”, adotada na região das Missões e parte da
Fronteira, datada de 1914, percebemos que há poucas diferenças entre o que
propõem as referidas leis e as regras das carreiras da região do Vale do Taquari, o
que indica que a região do Vale apoiou-se no sistema de corridas já utilizado tanto
na regiões das Missões como da Fronteira do Rio Grande do Sul14. A respeito da
legalidade das corridas, a “Lei de Carreiras” de Uruguaiana destaca apenas o
pagamento de um imposto para licença dos cavalos, conforme artigo 22: “Art. 22 -
Dentro do município só poderão correr cavalos com prévia licença da Intendência,
sendo esta, nos distritos de campanha, concedida pelos respectivos subintendentes,
mediante o pagamento de imposto correspondente” (RILLO, 1975, p. 100).
Acredita-se que na região do Vale do Taquari as licenças eram concedidas da
mesma forma, mediante o pagamento de um imposto. De acordo com o relato do ED
(2014), seu pai, na década de 1950, era proprietário de uma cancha reta em
Cabriúva, interior de Paverama, e pagava um imposto para o funcionamento da
mesma. Esse sistema deve ter vigorado até a Lei nº 4.096, de 1962, que dispunha
sobre a taxa a que ficam sujeitas as entidades que exploram apostas sobre corridas
de cavalos, da qual falaremos mais adiante.
Nas primeiras décadas do século XX houve uma preocupação com a
manutenção das raças cavalares segundo critérios de pureza das raças de origem.
Em 1918 foi publicada a obra “O cavalo crioulo: problema de defesa nacional” onde
Riet alertava para os futuros problemas da cruza do cavalo crioulo com outras raças
que pudessem corromper as características tão apreciadas do referido animal. Com
o objetivo de incentivar a manutenção da raça crioula foram criados prêmios para as
sociedades hípicas que promovessem competições envolvendo esses animais.
14
As regiões denominadas como região das Missões e Região de Fronteira localizam-se respectivamente nas regiões noroeste e sudoeste do estado do Rio Grande do Sul.
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Só poderão distribuir os premios instituídos na capital da Republica as sociedades que organizarem provas classicas ou grandes premios destinados a animaes nacionaes com a dotação total minima de 60 contos aos vencedores em primeiro lugar, mantendo os programmas de todas as suas reuniões ordinarias ou extraordinarias, pelo menos dois pareos destinados a animaes nacionaes [...] (RIET, 1918, p. 197).
Houve, portanto, uma política nacional de incentivo à prática das corridas de
cavalo, tanto em hipódromos como também em sociedades de carreira, englobando
dessa forma as pequenas canchas retas existentes no interior do estado do Rio
Grande do Sul (RIET, 1918). A legalidade das corridas de cavalo manteve-se
durante as décadas seguintes, fato que podemos constatar a partir da Lei 2.820 que
regulamentava as apostas em corridas de cavalo em 1956, conforme segue:
Parágrafo único. As subvenções previstas neste artigo destinam-se ao estímulo da criação e emprêgo do cavalo nacional nas lides militares, nos serviços de campo e nos desportos hípicos e ao custeio de obras e serviços de assistência social, como complemento às atividades que, no mesmo sentido, desenvolvem os Jóqueis Clubes e Sociedades de Carreiras (BRASIL. Lei nº 2.820, de 10/07/1956, texto digital).
A mesma lei previa que fosse pago um imposto no valor de 10% sobre os
prêmios distribuídos aos proprietários de animais. Observa-se que havia uma
preocupação com o desenvolvimento do cavalo nacional, que no Rio Grande do Sul
era representado pelo cavalo crioulo.
A Lei de 1962 mantém em seus artigos a preocupação com a preservação do
puro sangue de carreira nacional, porém limita as atividades de apostas aos
hipódromos que apresentarem planta baixa, prova da propriedade dos terrenos e
cópia dos estatutos devidamente registrados. A Lei nº 4.096 ainda estabelece os
termos nos quais deverão funcionar os sistemas de apostas:
3º a destinar aos criadores dos animais nacionais vencedores, a importância correspondente a 10% (dez por cento), no mínimo, dos prêmios do primeiro e segundo lugares, em todos os páreos, inclusive o clássicos e os grandes prêmios, além de 3% (três por cento), também no mínimo, ao criador do animal vencedor calculados sôbre o montante das apostas feitas ao mesmo animal, para o primeiro lugar, igualmente em todos os páreos (BRASIL. Lei nº 4.096, de 18/07/1962, texto digital).
Dessa forma as canchas retas, por não se adequarem a essa
regulamentação, passaram a funcionar na ilegalidade e os jogos e as apostas
efetuados nesses espaços considerados pela lei ilícitos. Por estarem rotuladas pela
ilegalidade, há poucos registros escritos e documentos oficiais sobre essas canchas
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e seus regulamentos. Por este motivo foi fundamental para a metodologia desta
pesquisa utilizar história oral.
[...] à multiplicação dos objetos que podem interessar à história, produzida pela história oral, implica indiretamente aquilo que eu chamaria de uma sensibilidade epistemológica específica, aguçada. [...] E na medida em que, através da história oral, a crítica das fontes torna-se imperiosa e aumenta a exigência técnica e metodológica, acredito que somos levados a perder, além da ingenuidade positivista, a ambição e as condições de possibilidade de uma história vista como ciência de síntese para todas as outras ciências humanas e sociais (POLLAK, 1992, p. 8).
Ao tratar as informações obtidas por meio das entrevistas, é fundamental ter
ciência de que o tema está arraigado a uma visão marginalizada. Por meio das
legislações que tornaram as carreiras ilegais, seus frequentadores passaram a ser
considerados pessoas à margem da lei. Dessa forma, em suas falas, os
entrevistados deram grande ênfase à carreira como uma atividade cultural que não
prejudica a vida social, que não leva ao vício, que não destrói famílias. Essa
negação vem ao encontro do estereótipo criado na sociedade a respeito das
carreiras de cavalo. A partir do esquecimento que a história oficial delegou às
carreiras a memória mostra-se como construção espontânea, a “[...] passagem da
memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade para
revitalização de sua própria história. O dever de memória faz de cada um o
historiador de si mesmo” (NORA, 1993, p. 17).
Durante a pesquisa localizamos um estatuto das corridas em cancha reta. Ele
foi redigido no ano de 1984 e trata das condições de carreiras na Hípica Beira Rio,
no município de Arvorezinha, que ainda se encontra em funcionamento. Registrado
sob o título de “Código de corridas de cavalo” (ANEXO A), o estatuto apresenta
muitas semelhanças com um dos documentos mais antigos que tratam das
condições das corridas em cancha reta, a “Lei de Santiago”, “conhecida e adotada
na região das Missões e parte da Fronteira, com suas regras fundamentais
transmitidas oralmente de geração a geração” (RILLO, 1975, p. 97).
Nesta análise constatamos que, apesar das singularidades geográficas,
étnicas e culturais das diferentes regiões do Rio Grande do Sul, a prática das
corridas em cancha reta manteve, nas diferentes regiões, a mesma configuração
básica de realização, assim como o mesmo vocabulário específico.
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As referidas leis tratam, por exemplo, do sistema de largada dos animais, que
pode ocorrer de duas formas: Largada de Jardeio, ou Partida, e Largada de Tampa,
ou Caixa. Na primeira forma os cavalos eram alinhados na cancha e ao sinal do juiz
de largada iniciavam o percurso, e o juiz de largada validava ou não a corrida. A
segunda forma é a mais utilizada, os animais são colocados dentro das caixas
(FIGURA 13) e as tampas ou portas são fechadas. Ao sinal do juiz de largada as
tampas abrem e os animais partem para a corrida. Quando os animais ficam
inquietos nas caixas são realizadas as Largadas de Jardeio.
Figura 13 – Caixas onde ocorre a largada dos animais
Fonte: Da autora (2014).
Os sistemas de largada dos animais modificaram-se com o passar do tempo.
Segundo a narrativa de um dos depoentes, ainda antes das portas, existia a largada
de pano:
[...] uma cortina, e o pano é fechado e os cavalo ficam lá atrás, isso, o pai quando eu era pequeninho, tinha 7 anos, 8, o pai mandou alguma carreira dessa, puxa uma molinha aí elas abrem, aí o pano ia pra cima, aí como as vezes ficava cavalo meio enrolado lá nos pano lá, aí inventaram a fita, era uma fitinha só na frente do cavalo, depois da fita veio as porta. Hoje é melhor, entra na caixa os cavalo fica quietinho lá, puxa a tampa (ED, 18/02/2014, p. 5).
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A última lei que legaliza os hipódromos e entidades turfísticas é recente, do
ano de 2002, e visa classificar as entidades turfísticas em hipódromos de volta
fechada e cancha reta. De acordo com a referida lei as entidades turfísticas
precisam atender às seguintes condições:
Art. 11. Não serão classificadas Entidades Turfísticas os Hipódromos os quais não apresentarem as seguintes condições mínimas: I - terreno próprio; II - pistas com as respectivas cercas e pisos; III - casas de apostas para as diversas modalidades; IV – “paddock” com 6 (seis) boxes no mínimo; V - sala de pesagem dos profissionais; VI - sanitários para o público e para os profissionais; VII - assistência veterinária durante as corridas; VIII - assistência médica durante as corridas; IX - sistema de apregoação de rateios; X - partidor automático; XI - serviço de alto-falantes; XII - arquibancada coberta; XIII - serviço de antidoping próprio ou em convênio. (BRASIL. Instrução Normativa nº 13/2002, de 27/12/2002, texto digital).
As canchas pesquisadas no Vale do Taquari não atendem às especificações
e aos moldes descritos pela lei, e acreditamos que algumas das exigências legais
desvirtuam as características básicas da carreira, fazendo com que essa prática
cultural perca sua singularidade e a tradição que a mantém no Rio Grande do Sul há
mais de um século.
No corrente ano de 2014 foi aprovada e sancionada a Lei nº 14.459 que
declara como bem integrante do patrimônio histórico e cultural do Estado do Rio
Grande do Sul as carreiras de cavalos em cancha reta (ANEXO B). Configurando
um Patrimônio Histórico do Rio Grande do Sul na ilegalidade pela legislação vigente,
as carreiras em cancha reta estão percorrendo um caminho ainda longo de
reconhecimento como atividade cultural símbolo do estado. Em 15 de abril de 2014
foi sancionada mais uma lei com o objetivo de preservar as corridas em cancha reta
- a Lei nº 14.525 instituiu as carreiras de cavalos em cancha reta como modalidade
de esporte equestre símbolo do Estado do Rio Grande do Sul (ANEXO C).
Constata-se que a legislação patrimonial vem lançando seu olhar sobre as
carreiras em cancha reta, mas isso não ocorre de forma coordenada com a
legislação que trata das entidades turfísticas, portanto temos um patrimônio histórico
que ainda carrega o rótulo da ilegalidade.
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A dicotomia entre a legislação oficial e a cultura da cancha reta elucida como
os atores da sociedade se percebem distantes da história, como se a sua tradição
não fosse digna de ser escrita. Nora (1993) diz que a memória se mostra sempre
suspeita para a história, pois ela é “afetiva e mágica, a memória não se acomoda em
detalhes que a confrontam, ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas,
globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas” (NORA, 1993, p. 9).
As carreiras não podem ser desassociadas do jogo, pois sua organização
básica gira em torno do sistema de apostas. Esses sistemas não são unânimes nas
canchas pesquisadas. Na porção norte do Vale do Taquari, onde há predominância
de descendentes de imigrantes italianos, é realizado o Jogo do Arremate, com a
ausência dos outros jogos de azar anteriormente descritos. Já na porção sul, onde
há predominância de descendentes de imigrantes açorianos, as apostas ocorrem
com base no sistema do arremate e há ocorrência de outros jogos (jogo do osso e
jogo do dadinho). Na porção centro, onde há predominância de descendentes de
imigrantes alemães, o sistema é o mesmo da porção norte, com exceção da cancha
de Marques de Souza, onde não é realizado o Jogo do Arremate. As apostas são
depositadas na mão de uma terceira pessoa que entrega a quantia ao vencedor da
aposta (DIÁRIO DE CAMPO 8, 2014).
De acordo com a abordagem étnica que nos propomos na pesquisa,
lançamos um olhar sobre a prática das corridas de cavalo a partir da descendência
dos grupos pesquisados e suas áreas de ocupação. Cabe salientar que, mais de um
século após a chegada dos grupos de imigrantes, as descendências dos indivíduos
entrevistados não traduzem a presença de uma única etnia, até porque também há
descendentes das relações interétnicas entre indígenas, afrodescendentes,
portugueses, espanhóis, açorianos, alemães e italianos. Da mesma forma,
utilizamos as porções territoriais como referência, mas não nos engessamos em
suas fronteiras geográficas. Um exemplo disso é a presença de uma cancha de
descendentes de açorianos na região de colonização predominantemente alemã,
que foi pesquisada de acordo com as suas especificidades.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O uso do cavalo para as mais diversas finalidades na história humana é um
campo de pesquisa que ainda oferece muitas possibilidades àqueles que por essa
temática se interessarem. Em termos de Brasil há pouca historiografia tratando da
importância social, econômica, política e cultural do cavalo, conforme segue:
Na busca por uma identidade moderna, o inconsciente coletivo brasileiro “esquece”, com frequência, o seu arrojado passado equestre. É natural, faz parte do processo de crescer. Mas a saga da formação equestre do Brasil é tão, ou mais, aventurosa quanto as histórias romanceadas da conquista do oeste Americano. O que falta na história do Brasil não são cavalos – é memória (RINK, 2008, p. 395).
A historiografia gaúcha tratou do cavalo com mais protagonismo,
referenciando frequentemente sua importância para o desenvolvimento da economia
pastoril, seu uso bélico nas regiões fronteiriças e, principalmente, seu protagonismo
para o desenvolvimento de uma cultura rio-grandense. O cavalo esteve diretamente
ligado a grande parte das atividades cotidianas no Rio Grande do Sul e, em
decorrência, as “[...] distâncias eram medidas pela velocidade de carreira dos
animais” (GOULART, 1964, p. 129).
A relação entre o gaúcho e seu pingo foi muito romanceada pela literatura
com a construção da imagem do amigo inseparável. Mas a lida diária no trabalho do
campo aproximou esses dois personagens, fazendo com que surgisse uma
pluralidade de tradições apoiadas no uso do cavalo.
As carreiras em cancha reta, diversão típica dos gaúchos das regiões de
fronteira (GOLIN, 1999), encontraram nos imigrantes recém-estabelecidos no Vale
do Taquari mais adeptos. Essa prática cultural que possui uma organização própria
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desenvolveu-se entre os imigrantes conservando o formato típico que tinha nas
outras partes do estado, mantendo inclusive, os vocábulos e termos específicos de
carreira.
A apropriação de práticas culturais, como a carreira, por parte dos imigrantes
europeus e seus descendentes, foi motivada por dois fatores primordiais, a
existência de esportes equestres em seus estados nacionais de origem e a
influência de uma política de abrasileiramento. Entre os imigrantes de origem alemã
e seus descendentes essa campanha nacionalista (1937-1945) foi sentida com mais
força, devido à ideia que se tinha do “perigo alemão” (SEYFERTH, 1997). Sob a
influência do abrasileiramento forçado, muitos imigrantes passaram a participar com
mais frequência de atividades consideradas típicas e tradicionais, adotando também
os trajes típicos de gaúcho, como bota e bombacha.
Os diferentes grupos étnicos que se estabeleceram na região que compõe o
Vale do Taquari, açorianos, alemães e italianos e seus descendentes, reproduziram
em proporções semelhantes a tradição das canchas retas nos diferentes municípios
da região, aspecto comprovado a partir do levantamento da localização das
canchas, formulando um mapa que não fica restrito a um único espaço geográfico
do Vale do Taquari. Esse dado nos leva à conclusão de que não coube somente a
uma etnia a identificação com as corridas em cancha reta, sendo que diferentes
grupos étnicos passaram a realizar as carreiras.
Cada grupo agregou às carreiras características culturais, como a prática de
outros jogos paralelamente às corridas de cavalo, como o jogo da bocha, jogo de
cartas e os jogos de azar. A interação entre os frequentadores das canchas pode
justificar a mínima diferença no cardápio, que na maioria dos casos consiste em
churrasco ao ar livre, no estilo piquenique.
A tradição de atar carreiras se manteve desde o século XIX até a atualidade.
O mesmo não ocorreu com o turfe. Os dois prados (Prado Estrelense e Prado
Taquaryense), onde se praticava esse esporte, foram desativados nas primeiras
décadas do século XX e não foram encontrados registros de pistas elípticas ou
circulares na região do Vale do Taquari. Em Porto Alegre, onde o turfe se manteve
como forma principal de corrida, observa-se o movimento inverso - o fechamento
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das pequenas canchas de carreira e a construção dos hipódromos (PEREIRA,
2012). Na região do Vale do Taquari, as carreiras não constituíram associações
esportivas nem entidades, o que contribui para sua manutenção no formato privado.
A cancha reta correspondia à estrutura rural das cidades do Vale do Taquari,
tornando-se a atividade equestre de maior influência entre seus habitantes.
Constatou-se que esta tradição adquiriu características de hereditariedade,
sendo os seus participantes descendentes de pessoas que participavam dessa
atividade há várias gerações. Observou-se nos relatos a ênfase que se dava à
história familiar nas corridas de cancha reta, ressaltando a importância do pai, do
avô e até dos antepassados mais distantes sempre terem gostado de carreira. A
Hípica Reckziegel, a mais antiga em funcionamento da região do Vale do Taquari,
desde 1910, muito bem ilustra essa situação.
A quantidade pouco expressiva de fontes documentais que encontramos
durante a pesquisa nos possibilita inferir que isso se dá principalmente em função da
ilegalidade a que as canchas foram submetidas por meio da legislação federal.
Conseguimos localizar um estatuto de corridas em cancha reta que confirma as
condições e regras descritas pelos entrevistados em seus depoimentos. O que nos
leva a concluir que o sistema de regras foi o mesmo nas várias canchas e hípicas do
Vale do Taquari. Essa semelhança provavelmente se dá em função da circulação
que havia dos carreiristas nas canchas, aplicando assim as mesmas regras em
todas elas.
Os depoimentos foram fontes primordiais e a história oral a metodologia mais
adequada para o desenvolvimento da pesquisa. Houve a necessidade de conseguir
uma aproximação e conquistar a confiança dos depoentes para que adquirissem
segurança para compartilhar as suas vivências pessoais. A história oral é uma
metodologia já consolidada e se baseia em critérios específicos.
O primeiro critério, ao meu ver, é reconhecer que contar a própria vida nada tem de natural. Se você não estiver numa situação social de justificação ou de construção de você próprio, como é o caso de um artista ou de um político, é estranho. Uma pessoa a quem nunca ninguém perguntou quem ela é, de repente ser solicitada a relatar como foi a sua vida, tem muita dificuldade para entender esse súbito interesse (POLLAK, 1992, p. 13).
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Nos relatos dos depoentes ficou clara a ênfase dada às vitórias nas corridas,
houve poucas menções a carreiras perdidas e, nesses casos, apenas para dizer que
haviam sido sabotados. Observa-se o que Pollak chama de característica seletiva da
memória quando diz “A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica
registrado” (POLLAK, 1992, p. 4). As narrativas também ilustraram memórias vividas
por tabela (POLLAK, 1992) quando os depoentes relatavam histórias nas quais não
tiveram participação direta, mas as relatavam como se lá estivessem.
As carreiras mostraram-se um espaço propício para a observação dos valores
sociais, relações de poder e de gênero. Circulam por esse espaço indivíduos dos
mais variados níveis socioeconômicos, profissões e origem étnica, tornando-se um
espaço de sociabilidade da tradição campeira de provar quem tem o cavalo mais
veloz.
A pluralidade cultural da região tomada como referência nesse estudo baseia-
se na diversidade étnica dos grupos que nela se estabeleceram. Para Barth ([1969]
2000, p. 25), “uma vez que cultura nada mais é do que uma maneira de descrever o
comportamento humano, segue-se disso que há grupos delimitados de pessoas, ou
seja, unidades étnicas que correspondem a cada cultura”. Sendo assim, cada grupo
étnico trouxe consigo uma considerável bagagem cultural, bagagem essa que não
impediu que os mesmos passassem a praticar essa atividade já tradicional no Rio
Grande do Sul desde o século XIX (SAINT-HILAIRE, 1987).
A atuação feminina se mostrou fundamental para a manutenção da tradição à
medida que as esposas e filhas ocuparam papéis importantes na organização, nos
preparativos, na alimentação e na recepção do público que vinha prestigiar o evento.
A lei que integrou ao Patrimônio Histórico do Rio Grande do Sul a corrida em
cancha reta não atingiu os participantes desta pesquisa, que afirmaram não ter
conhecimento nenhum sobre a referida legislação. A questão da legalidade é uma
das maiores barreiras para a continuidade das canchas retas, que encontram na lei
muitos empecilhos para sua manutenção. As canchas visitadas no decorrer desta
pesquisa não possuem nenhuma forma de registro oficial. Para os dias de corrida os
proprietários retiram uma licença para evento com a Brigada Militar, que fica
responsável também pelo policiamento (DIÁRIO DE CAMPO 6, 2014).
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A possibilidade de estudos que abordem as carreiras é uma necessidade,
visto que esse patrimônio do folclore gaúcho recebeu poucos olhares acadêmicos
até a atualidade. Mostra-se interessante a possibilidade de traçar um comparativo
entre as corridas em cancha reta nas regiões de imigração com as regiões de
fronteira, analisando o sistema de apostas e jogos, regras, vocabulário, estrutura das
canchas e preparo dos animais.
As diferenças entre os grupos étnicos pesquisados, açorianos, alemães e
italianos, reafirmam a existência das fronteiras entre os grupos étnicos, porém as
semelhanças na realização das corridas em cancha reta apontam para o que Barth
([1969] 2000) chama de contato social entre pessoas de diferentes culturas. Conclui-
se que as carreiras de cancha reta na região do Vale do Taquari constituíram-se um
ambiente de contato social entre os distintos grupos, de propagação e de
reatualização das suas culturas.
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REFERÊNCIAS
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EB – Entrevistado B: depoimento [11 fev. 2014, 20 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. EC – Entrevistado C: depoimento [11 fev. 2014, 8 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. ED – Entrevistado D: depoimento [18 fev. 2014, 8 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. EE – Entrevistado E: depoimento [24 fev. 2014, 12 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. EF – Entrevistado F: depoimento [15 mar. 2014, 10 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. EG – Entrevistado G: depoimento [30 mar. 2014, 13 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. EH – Entrevistado H: depoimento [30 mar. 2014, 9 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. EI – Entrevistado I: depoimento [30 mar. 2014, 9 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. EJ – Entrevistado J: depoimento [12 abr. 2014, 8 p.]. Entrevistador: Emanuele Amanda Scherer. Lajeado (RS): s.e., 2014. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida a Emanuele Amanda Scherer. FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Coord.). Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002. FERRI, Gino. A História de Encantado em Fotografias. Encantado: Ed. São Miguel, 2000. GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. GIL, Antônio C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. GOLIN, Tau. A ideologia do gauchismo. Porto Alegre: Tchê, 1983.
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APÊNDICE A – Roteiro semi-estruturado de entrevista com participantes de
carreiras
Tema: Carreiras: Corridas de cavalo em cancha reta no Vale do Taquari
1) Identificação do entrevistado (nome, idade, profissão, onde nasceu...).
2) Qual seu envolvimento nas corridas (desde quando frequenta, lembrança das
primeiras corridas que presenciou...)?
3) Quem eram os personagens das corridas em cancha reta?
4) Quem eram os grupos sociais que atuaram no cenário das corridas (relações de
gênero e de poder)?
5) O senhor percebe mudanças na forma de realização das carreiras comparando
como é feita hoje e como era antigamente?
6) Qual era a localização das canchas? Quais municípios que possuíam canchas no
Vale do Taquari?
7) Haviam regulamentos das corridas (escrito, oral, existência de contratos e
multas)?
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8) Quais as repercussões/desdobramentos que as canchas/corridas representavam?
9) Como era a alimentação, segurança, estrutura das corridas?
10) Que tipo de relações socioculturais se estabeleciam nesse espaço?
11) Quais as motivações para a realização das carreiras?
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APÊNDICE B – Roteiro semi-estruturado de entrevista com donos de cancha de
carreira
1) Identificação do entrevistado (nome, idade, profissão, onde nasceu...).
2) Qual o envolvimento da sua família com as carreiras?
3) Desde que período são proprietários de cancha de carreira?
4) Quais as razões para manter essa tradição?
5) Quem eram os personagens das corridas em cancha reta?
6) Quem eram os grupos sociais que atuaram no cenário das corridas (relações de
gênero e de poder)?
7) O senhor percebe mudanças na forma de realização das carreiras comparando
como é feita hoje e como era antigamente?
8) Qual era a localização das canchas? Quais municípios que possuíam canchas no
Vale do Taquari?
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9) Haviam regulamentos das corridas (escrito, oral, existência de contratos e
multas)?
10) Quais as repercussões/desdobramentos que as canchas/corridas
representavam?
11) Como era a alimentação, segurança, estrutura das corridas?
12) Que tipo de relações socioculturais se estabeleciam nesse espaço?
12) Quais as motivações para a realização das carreiras?
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APÊNCIDE C – Roteiro semi-estruturado de entrevista com mulheres que
frequentavam as carreiras
1) Identificação da entrevistada (nome, idade, profissão, onde nasceu...).
2) Qual seu envolvimento nas corridas (desde quando frequenta, lembrança das
primeiras corridas que presenciou...)?
3) Como a senhora percebe a participação das mulheres nas carreiras?
4) Havia uma delimitação de quais eram as atividades que poderiam ser
desempenhadas por um homem e quais poderiam ser desempenhadas pelas
mulheres?
5) Quais as repercussões/desdobramentos que as canchas/corridas representavam?
6) Como era a alimentação, segurança, estrutura das corridas?
7) Que tipo de relações socioculturais se estabeleciam nesse espaço?
8) Quais as motivações para ir assistir a uma carreira?
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APÊNDICE D – Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE)
A pesquisa com a temática “CARREIRAS: corridas de cavalo em cancha reta no Vale
do Taquari” está sendo realizada como atividade integrante para o Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC), do Curso de História do Centro Universitário Univates, e tem como objetivo
analisar historicamente como as carreiras passaram a fazer parte da tradição cultural do
Vale do Taquari. A coleta de dados será feita mediante a realização de entrevistas, de
acordo com o objetivo especificado acima.
Pelo presente Termo de Consentimento Livre Esclarecido declaro como
entrevistado(a) a concordância em participar desta pesquisa e uma possível continuidade da
mesma, após ser informado de forma clara e detalhada da justificativa e dos propósitos do
projeto, bem como dos procedimentos relacionados ao levantamento dos dados. A
participação dar-se-á através de informações que serão fornecidas no momento das visitas,
previamente agendadas, por meio de entrevistas semiestruturadas que serão gravadas,
registros fotográficos e diários de campo.
Estou ciente de que o único possível desconforto será o tempo que disponibilizarei
para a realização do levantamento dos dados e que poderei solicitar esclarecimentos antes
e durante o curso da pesquisa, tendo a liberdade de recusar-me a participar ou de retirar o
meu consentimento a qualquer momento.
Minha participação é feita por ato voluntário, o que me deixa ciente de que a
pesquisa não me trará qualquer apoio financeiro, dano ou despesa e que as informações
contidas nas entrevistas e os resultados do estudo poderão ser utilizados para fins de
publicação e divulgação em eventos e revistas científicas, tendo a garantia de sigilo que
assegure a privacidade.
Este termo será assinado em duas vias, sendo que uma ficará com o(a)
entrevistado(a) e a outra com o pesquisador.
O responsável pela pesquisa é a aluna do Curso de História Emanuele Amanda
Scherer, acadêmica do Curso de História da Univates (fone 51 80493491), orientado pelo
professor Dr. Luís Fernando da Silva Laroque – professor do Curso de História da Univates -
(fone 51 3714 7000 Ramal 5348).
Local
Data: ___/____/____
............................................... ..................................................
Nome Nome
Assinatura do Entrevistador Assinatura do(a) Entrevistado(a)
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ANEXOS
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ANEXO A – Código de Corridas de Cavalos
Fonte: Acervo da Família Canton, 1984.
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ANEXO B – Lei nº 14.459
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ANEXO C – Lei nº 14.525