Carro Dos Milagres

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O CARRO DOS MILAGRES O PRECIPICIO Me alembro como se fosse hoje. Meu pai montava o Precipcio e caminhava poucos metros minha frente rumo ao Juquiri. Era um cavalo fogoso o senhor pensa garanho cioso, preto, retinto, pelo lustroso, pescoo fino e pajurebas crinas que tinham a mesma dana da canarana batida pelo vento. Assim ele ia...

Meu pai s montava aquele cavalo pra evitar que ficasse folgado demais. Sempre ele dizia: cavalo folgado, cria maranha de jogador. Mas o Precipcio como pai-dgua, era s mesmo pra reproduzir. Tinha que dar conta daquele enorme lote de guas e poltras que ele sozinho guiava pelos campos. Campo varja, no vero, s tem mesmo uma sendinha estreita deixada pelos prprios animais. O resto capim alto, capim fechado, canarana braba e puro murizal. Assim mesmo havia pedaos que at a sendinha desaparecia de vez: ficava s mesmo o espao entre ns. Nessas horas o silencio alargava: meu pai era quase inimigo de falar. s vezes, levava horas e horas, essas caminhadas ele na frente e eu atrs. Eu achava que no havia melhor momento pra nossa conversa. Mas s pensava: falar, quem disse? Bastava olhar a figura esticada na sela, que o silncio dele, atalhava no caminho, toda a minha fora de pensamento. A o silncio criava aqueles tantos mundos entre dois homens de parelhas juntas. Entre dois homens emparelhados no campo, sempre o silncio aumenta por demais. O espao vago, nem me atrevia a quebrar tamanha majestade. Isto era um trato antigo de sangue e crena. Trato sem escrita e sem palavras vindo dos tempos de curumim. Quando eu s podia andar em garupa de cavalo, assim mesmo, sem falar e sem chorar. Fora dos nossos pensamentos, havia s a mata ao longe, formando a linha do horizonte ou cortando bruscamente a entrada dum igap. Mas o campo sempre continuava. Depois da mata, depois duma baixa, depois dum igarap, o campo sempre continuava.

Geralmente a nica palavra que meu pai me dirigia era uma ordem: grita, Miguel! A ento, meu pensamento voava. Punha o dedo no ouvido e comeava a vaquejada. Conto misturado: grito-meio-toada, querendo por-fora ser cano. Eu sabia que o gado todo escutava dentro da mata o som da minha voz. Tomara que o senhor visse a tarde de vero! Meu pai silencioso ia na frente e eu atrs. Eu cantava mas ento sem destino. O gado ouvia mas porque o vento levava a vaquejada. Com-pouco, ao longe, eu vi o gado sair. Os magotes tomavam o rumo do rodei que comeava a aparecer. A tarde nessa hora, j tinha uma revolta triste que se entranhava nas cores do entardecer. O ar tambm asfixiava a gente com tanta calmaria. S o cu com umas poucas nuvens esgaradas, estava limpo, claro e azul. Grita, Miguel! talvez meu pai gostasse de ouvir gritar. Vaquejada sem destino o senhor pensa para o campo, para o gado, pra ele mesmo e para o cu. O gado das Ciganas que era o mais certo de rodeio, me ouvia e punha logo a cara de fora. Mas eu continuava a cantar. Isto eu acho que meu pai apreciava.

Quando chegamos na malhada, quase todo o gado estava l. Meu pai, silencioso,

examinava as rezes. Precipcio, irrequieto, no parava um s instante. Era at um despropsito: me dava ate uma cuira ver o cavalo fogoso. Se fosse eu, j tinha dado uma sova de muxinga naquele cavalo maranhento.

Na falta de conversa eu sempre dizia coisas pra o gado. Como no me atrevia a quebrar o silncio do velho, falava comigo mesmo. Essa malhada grande ta redonda, com-pouco vai parir. Tirava sal da garupa do cavalo e jogava no barro pro gado que se amontoava em torno de mim. No vai deixar o teu filho na mata, bicha danada. Meu pai tambm jogava sal para os animais.

Pai, ta faltando o lote do Jaburuzinho.

Na certa a filha da

O livro O Carro dos Milagres, de Benedicto Wilfred Monteiro (1924-2008) uma coletnea de narrativas publicada em 1975, durante os Anos de chumbo (Ditadura Militar), de censura cultura escrita. Premiada pela Academia Paraense de Letras, a presente coletnea contm relatos de um caboclo que vem da brenha das matas amaznica contar suas histrias, memrias, culturas e saberes. Das sete narrativas, importante enfocar aquela que contm o mesmo ttulo do livro: O Carro dos Milagres. Ainda que inserida num livro de contos, a primeira narrativa O Carro dos Milagres enquadra-se na categoria de novela, porque o enredo dela no trata de um nico assunto, mas sim de vrios e com muitos personagens; alm disso, cabe-lhe o patamar de novel pelo fato de ter menor extenso do que o romance. Todavia, no interesse trabalhar o aspecto do subgnero narrativo, mas sim tratar do contedo e da estrutura narrativa da referida obra. A novela O Carro dos Milagres apresenta a experincia do caboclo Miguel dos Santos Prazeres (embora esse nome no aparea nesse texto, pode-se dizer que ele subentendido de acordo com o conjunto da coletnea) no Crio de Nazar em Belm/PA. Primeiramente, nota-se o dilogo entre dois caboclos (Personagem-narrador e o Compadre) que vieram acompanhar o Crio, sendo que Miguel tem o interesse de pagar uma promessa que a sua me fez a Nossa Senhora de Nazar do Retiro (ou do Desterro) quando o rapaz encontrava-se em situao de perigo com sua canoa nas guas do Maraj. A me velha prometera a Santa que se seu filho fosse resguardo do temporal ele haveria de levar um barco a vela de miriti durante a procisso. O personagem-narrador (Miguel) descreve, de forma maravilhosa, os detalhes da procisso que est assistindo pela primeira vez, volta-se ao passado de suas lembranas para contar suas sagas de canoeiro no Igarap da Mata do Catauari com o Compadre, um amigo que o

acompanha no Crio e numa beberagem com cachaa de Abaet, enquanto aguardam no nascer do dia a sada do Crio no Largo da S (atual Praa Dom Frei Caetano Brando). Depois de muitos goles de bebida, os dois caboclos resolvem segui a procisso, sendo que Miguel tinha o objetivo de achar o Carro dos Milagres e depositar a sua promessa (o barco a vela). Miguel avista o Carro, descreve a lenda portuguesa contida na iconografia do Carro (o milagre de Nossa Senhora de Nazar a Dom Fuas Roupinho no sculo XII). Mas o caboclo encontra inmeras dificuldades para pagar sua promessa: primeiro perde o companheiro de cachaa, o compadre; depois esbarra com o barquinho num balo de gs que dispersa a promessa no meio dos romeiros. Miguel, bbedo e perdido na multido, acaba chegando a Baslica-Santurio de Nazar. Ali o caboclo fica maravilhado com as impresses artsticas da Igreja e nela se deixa estar at as altas da madrugada. Ao chegar na garagem, Miguel, com uma vela na mo, encontrar o Carro do Milagres e se detm olhando as promessas contidas na barca. E exatamente a a histria se complica: O rapaz surpreendido por beatas que, maliciosamente, o acusam de incendirio e de ladro. J raia um novo dia e elas chamam o padre e a polcia para deter o suposto meliante. O caboclo levado preso para a delegacia e ali descreve a presena dos detentos de vrios lugares do pas e do exterior e as mincias horrveis daquele crcere. Depois, avista outro Compadre, viciado em soltar bales de gs, que faz procurao por seu filho perdido e possivelmente morto na procisso. Miguel observa e relata o equivoco sobre a morte do filho desse Companheiro, achavam que o filho era um rapaz que morreu na exploso de um compressor de balo que estourou na procisso. Mas, logo resolvida essa histria quando encontra o filho do Companheiro que ficou bebendo quando seu pai lhe ordenara comprar tais bales coloridos, os mesmos que foram descuidados e soltos pelo filho, os mesmo que levaram a promessa do Miguel, o qual desfecha a histria prestando depoimento polcia. * Por Marcel Franco, escritor, professor, jornalista, licenciado pleno em Letras/Portugus (UEPA) e mestrando em Cincias da Religio (UEPA). [email protected] Estrutura da Narrativa Personagens: Principais: Narrador (com o nome subentendido Miguel dos Santos Prazeres) redondo/complexo/antagnico; Compadre de cachaa redondo/complexo; Compadre que perdeu o filho linear/plano. Secundrios: Me velha (genitora do narrador) linear/ plana; Beatas redondas/complexas; Comissrio (policial) linear/plano;

Comadre (que perdeu o filho) linear/plana; Filho (dos Compadres) redondo/complexo Tempo Tempo cronolgico dois dias seguidos, desde a madrugada do Crio at tarde do dia seguinte: trs horas da tarde; Tempo histrico o milagre de Nossa Senhora de Nazar a Dom Fuas Roupinho no sculo XII; Tempo psicolgico feed back: lembrana do naufrgio do barco, das sagas pelos igaraps como o compadre de cachaa. Espao Espao fsico: Largo da S (atual praa Dom Frei Caetano Brando), catedral da S bairro da Cidade Velha, ruas do cortejo do crio, Largo de Nazar (atual Praa Santurio), BaslicaSanturio de Nazar, sacristia e garagem da Baslica, cadeia. Espao psicolgico: Baa do Maraj, Igarap das Matas do Catauari. Ambientao Contexto social, histrico, religioso, familiar. Enredo Linear e a-linear (intercalado com memrias, feed backs) Foco-narrativo Narrador em primeira pessoa Discurso Direto e indireto livre Clmax Reencontro do filho (dos compadres) embriagado, o qual diziam que estava morto e o mesmo que soltou os bales coloridos que se engataram na promessa do Miguel. Fonte: benedictomonteiro.blogspot.com

ServioA obra O Carro de Milagres pode ser encontrada em edies da CEJUP e editora Amaznia. A editora CEJUP fica na Travessa Alenquer, 99-B, entre Dr. Assis e Dr. Malcher Cidade Velha. Fone: 3222-6995. J a editora Amaznia fica na Alm. Wandenkolk 1003 (altos), entre Antnio Barreto e Diogo Mia Umarizal. Fone: 3230-2205.