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CARTOGRAFIAS JUVENIS: TECENDO IDENTIDADES NEGRAS PERIFÉRICAS NO TERRITÓRIO DAS AULAS DE HISTÓRIA STEFENSON, Eleonora Abad ANDRADE, Everardo Paiva Resumo: O presente artigo foi construído no âmbito da pesquisa de doutoramento em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, e tem como objetivo apresentar um recorte de sua empiria sobre os processos de produção de sentidos agenciados por um jovem discente do Ensino Médio de uma escola pública do Rio de Janeiro ao currículo de História no contexto da lei 10639/03. Esta investigação caracteriza-se como uma pesquisa intervenção construída a partir de procedimentos da pesquisa cartográfica. Entendemos que esta aposta teórico-metodológica nos permite compreender os processos de subjetivação dos sujeitos envolvidos na pesquisa, pesquisadores e pesquisado. Para a construção desta análise dialogaremos com as produções de DELEUZE, GATTARI (2011) e KASTRUP, PASSOS (2015) e TEDESCO (2014). Palavras-chave:pesquisa intervenção; método cartográfico; currículo de história; lei nº 10.639/2003.

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CARTOGRAFIAS JUVENIS: TECENDO IDENTIDADES NEGRAS PERIFÉRICAS

NO TERRITÓRIO DAS AULAS DE HISTÓRIA

STEFENSON, Eleonora Abad

ANDRADE, Everardo Paiva

Resumo: O presente artigo foi construído no âmbito da pesquisa de doutoramento em

desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal

Fluminense, e tem como objetivo apresentar um recorte de sua empiria sobre os processos

de produção de sentidos agenciados por um jovem discente do Ensino Médio de uma escola

pública do Rio de Janeiro ao currículo de História no contexto da lei 10639/03. Esta

investigação caracteriza-se como uma pesquisa intervenção construída a partir de

procedimentos da pesquisa cartográfica. Entendemos que esta aposta teórico-metodológica

nos permite compreender os processos de subjetivação dos sujeitos envolvidos na pesquisa,

pesquisadores e pesquisado. Para a construção desta análise dialogaremos com as

produções de DELEUZE, GATTARI (2011) e KASTRUP, PASSOS (2015) e TEDESCO

(2014).

Palavras-chave:pesquisa intervenção; método cartográfico; currículo de história; lei nº

10.639/2003.

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CARTOGRAFIAS JUVENIS: TECENDO IDENTIDADES NEGRAS PERIFÉRICAS

NO TERRITÓRIO DAS AULAS DE HISTÓRIA

STEFENSON, Eleonora Abad [email protected]

ANDRADE, Everardo Paiva [email protected]

A produção de conhecimento não encontra fundamentos

num sujeito cognitivo prévio nem num suposto mundo dado.

(Passos, Kastrup e Escóssia, 2015, p. 13.)

Mas eu vou falar do que é liberdade para eles? Como? Se eu

mesmo não sei o que é liberdade!

(Palavras do Fill, anotadas no Diário de Campo)

Acordamos que na aula de hoje cada um traria uma reflexão

sobre liberdade para compartilhar com a turma.

(Do Diário de Campo da Profª Eleonora.)

Tracejando as primeiras linhas do nosso mapa: apresentação da pesquisa

Como investigar uma política educacional que pretende enfrentar o racismo epistemológico

que marca a estrutura curricular brasileira a partir das redes de saberes produzidas e vivenciadas por

professores e jovens alunos do Ensino Médioda Rede Estadual do Rio de Janeiro nas aulas de

História? Eis a pergunta que anima e orienta nossas primeiras pistas ensaiadas no presente trabalho.

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Consideramos inegável a importância que o debate em torno das identidades culturais, e

mais especificamente das identidades étnico-raciais,vem assumindo recentemente no Brasil e, por

conseguinte, se refletindo nas atuais políticas públicas que visam o reconhecimento e a valorização

da população negra brasileira.

A demanda dos movimentos sociais negros pelo reconhecimento e valorização da história e

cultura afro-brasileira e africana vem se traduzindo em uma série de políticas, dentre as quais, para

fins desse trabalho, destacamos a elaboração da lei nº 10.639, sancionada em 2003 e suas

respectivas diretrizes curriculares.

Atenta às demandas que emergem deste cenário de identidades antes silenciadas, a

academia, com claro destaque ao campo da Educação, vem se debruçando sobre a temática das

relações étnico-raciais dedicando substantiva atenção tanto à perspectiva curricularquanto à

formação docente. Autores como Candau (2014), Costa e Gabriel (2010), entre outros, colaboram

de maneira significativa para a construção destas reflexões.

Por outro lado, não se constata semelhante acúmulo de reflexões acerca de outros aspectos e

sujeitos centrais que tensionam para a constituição destas demandas identitárias que se impõem no

espaço escolar. Em certo sentido, outros sujeitos deste processo seguem silenciados pela produção

acadêmica que, atenta à experiência docente, não vem dedicando igual atenção a vivência discente

destes processos no espaço escolar. Tal fato acaba não somente por invisibilizar outras narrativas

que cruzam esses caminhos, como também as formas “outras” de se narrar nessas disputas

identitárias que, se de fato atravessam os muros da escola, ainda não parecem conseguir derrubar a

porta da sala dos professores na produção acadêmica.

Nessa direção, os pesquisadores Monteiro e Penna (2011) nos apontam a possibilidade de

pensarmos o saber histórico escolar enquanto um espaço profícuo para a construção de diálogos

interculturais em função da sua própria especificidade epistemológica de profundas relações com

outros saberes sociais – um saber de fronteira (p.191).

As transformações sentidas na sala de aula nos oferecem pistas sobre esta multiplicidade de

sentidos negociados e disputados no que tange às histórias e culturas negras pelos jovens

estudantes. As diversas formas de (se) narrar neste processo nos apontam para possibilidades de

leituras políticas sobre as suas realidades e sobre o mundo.

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Atentos a esta característica da pesquisa, enquanto espaço de cruzamentos de diferentes

saberes, como é a pesquisa em Educação e, em especial a pesquisa a ser construída no interior da

escola com os seus atores (os estudantes), neste território comum ao pesquisador e aos pesquisados,

buscamos na metodologia da pesquisa-intervenção, mais especificamente, na pesquisa cartográfica

(PASSOS, KASTRUP e TEDESCO, 2014) as pistas que orientam nosso percurso investigativo.

Neste sentido, nos debruçaremos neste texto como pesquisadores-cartógrafos sobre as

produçõesde um dos nossos pesquisados durante o primeiro bimestre nas aulas de História: Fill1,

um jovem estudante do segundo ano do Ensino Médio, morador do Complexo do Viradouro, em

Niterói.

Pesquisamos, portanto, com o Fill, buscando compreender esse conhecimento histórico

escolar que se constrói “no entre”, no transbordamento. Um conhecimento que não é arborescente,

é rizomático (DELEUZE e GUATTARI, 2011) e, neste sentido, atravessado por múltiplas vozes,

velocidades e temporalidades. Como aposta a cartografia, os processos que delinearam o pesquisar

são de fato os nossos objetos de análise.

Defender que toda pesquisa é intervenção exige do cartógrafo um

mergulho no plano da experiência, lá onde conhecer e fazer se tornam

inseparáveis, impedindo qualquer pretensão à neutralidade ou mesmo

suposição de um sujeito e de um objeto cognoscentes prévios à relação

que os liga. Lançados num plano implicacional, os termos da relação de

produção de conhecimento, mais do que articulados, aí se constituem.

(PASSOS e BARROS, 2015, p.31).

Tecendo o rizoma da Pesquisa Cartográfica

Antes de adentrarmos em nossa análise, faz-se necessário situar as escolhas teórico-

metodológicas que orientam este trabalho em seu campo mais amplo: o da pesquisa em

Educação. Neste sentido, recorreremos às reflexões de Tardif (2000) acerca das diferentes

tradições teóricas e intelectuais nas quais as produções sobre saberes docentes estão

1Para fins de esclarecimento, ao longo da pesquisa os pesquisados nos informam como querem ser

identificados. Entendemos o processo de se nomear como parte importante do processo de subjetivação

que pretendemos investigar.

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inseridas para evidenciarmos as correntes de ideias que mobilizamos e os diálogos que

travamos em nosso pesquisar. Evidenciar as redes deste rizoma é também cartografar, uma

vez que “cada um de nós era vários, já era muita gente. (...) Não somos mais nós mesmos.

Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados”(GUATTARI e

DELEUZE,2011,p.17).

Em sua produção, Tardif (2000) realiza um esforço de mapear e categorizar as

principais concepções teóricas que influenciam a pesquisa sobre saberes docentes, em

especial na América do Norte, onde observa uma parte significativa das atuais pesquisas

nas ciências da educação. Embora o autor esteja se debruçando de maneira mais especifica

sobre as pesquisas acerca dos saberes dos professores, entendemos ser possível nos

apropriarmos de sua análise para nos situarmos em um quadro teórico mais amplo da

pesquisa em Educação.

Neste exercício inicial de tracejar os contornos teóricos de nossa pesquisa,

recuperamos as “tradições de inspiração psicológica”(TARDIF, 2000) que ao longo do

século XX foram muito significativas nas pesquisas em Educação, contribuindo para

abordagens sobre o ensino a partir de perspectivas subjetivistas, voltadas paras as

experiências individuais dos sujeitos envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem e,

em especial, para a fenomenologia.

Para essa tradição de pesquisa, o pensamento humano não se limita à

relação cognitiva entre “o sujeito e o objeto”que caracteriza o

conhecimento científico ou empírico em sentido amplo. O pensamento

compromete a pessoa inteira, sua história e sua vivência. O pensamento

humano é sempre o pensamento não de um sujeito cognitivo, mas de um

“ser-em-situação” ou de um Dasein, isto é, de um ser que se relaciona

com o mundo segundo o ponto de vista fundamental da intencionalidade,

da significação, e que pertence a uma cultura, a tradições, a uma história,

a partir das quais ele compreende e aborda as coisas do ponto de vista

geral da compreensão e da interpretação. O mundo (por exemplo, uma

sala de aula) é visto aqui como um tecido mutante e vivo, em termos de

significados, no qual a pessoa se encontra totalmente imersa e ao qual ela

se reporta em suas atividades de compreensão (p.14).

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Como nos aponta Tardif (2000), a pesquisa que dialoga com as tradições da

investigação fenomenológica propõe uma compreensão dos processos de subjetivação dos

sujeitos nela envolvidos, inclusive do próprio pesquisador, entendido com parte deste

“tecido mutante e vivo” que é o plano da pesquisa. Ou seja, trata-se de uma escolha teórico-

metodológica em que não é possível pensar em uma realidade prévia à própria pesquisa,

pronta para ser apreendida pelo pesquisador, mas sim em um processo de pesquisa que

produz esta realidade através dos entrecruzamentos de redes de vivencias e experiências

que se dão em um plano comum, em um território a ser cartografado pelos envolvidos no

pesquisar. Segundo esta perspectiva, toda pesquisa é, portanto, uma intervenção (PASSOS

e BARROS, 2015,p.30).

Neste sentido, nossa aposta metodológica de pesquisa intervenção baseia-se,

inicialmente, nos debates realizados por Passos, Kastrup, Escóssia (2015) e Tedesco

(2014), pesquisadores vinculados ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal

Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que em suas

recentes produções intituladas “Pistas do método da cartografia” volumes 1 e 2, tiveram

como objetivo"pesquisar processos de produção de subjetividades apoiados nas produções

de Deleuze e Guattari” (PASSOS, KASTRUP e ESCÓSSIA,2015,p.9).

Segundo as pistas organizadas pelos autores, a pesquisa cartográfica se constrói a

partir de um plano comum compartilhado por todos os envolvidos nela. Um território cujos

contornos e rumos são permanentemente negociados por pesquisador e pesquisados sendo,

portanto, equivocada a própria ideia de método, cuja etimologia da palavra (méta =

reflexão, raciocínio, verdade e hódos = caminho, direção) sugere que os caminhos da

investigação são predeterminados pelo pesquisador antes mesmo de sua imersão no plano

da pesquisa. A pesquisa cartográfica propõe, neste sentido, uma reversão hódos-méta, ou

seja, que no processo de pesquisar é que serão negociados os seus caminhos, assim como

será neste caminhar comum que as reflexões serão tecidas.

A cartografia como método de pesquisa-intervenção pressupõe uma

orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo prescritivo,

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por regras já prontas, nem objetivos previamente estabelecidos. No

entanto, não se trata de uma ação sem direção, já que a cartografia reverte

o sentido tradicional de método sem abrir mão da orientação do percurso

da pesquisa. O desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional

de método – não mais um caminhar para alcançar metas prefixadas (méta-

hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas. A

reversão, então, afirma um hódos-méta. A diretriz cartográfica se faz por

pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os

efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador

e seus resultados (PASSOS e BARROS, 2015,p.17).

Cartografar, nesse sentido, significa seguir as pistas e no percurso, na caminhada, calibrar

as metas e avaliar permanentemente os efeitos da própria caminhada sobre o processo inteiro: o

objeto, pesquisadores/pesquisados e os resultados que vão sendo produzidos. Trata-se, portanto, o

cartografar, talvez menos de fixar objetivos e avançar em sua direção do que de adotar uma

orientação de pesquisa que se renova na própria ação de pesquisar.

Dentre as diversas pistas da investigação cartográfica apresentadas pelos autores,

destacaremos, para fins deste texto, a construção do diário de campo ou caderno de

anotações que, segundo os autores, compõem uma das mais importantes práticas de um

pesquisador-cartógrafo uma vez que permite “um retorno à experiência do campo, para que

possa entãofalar de dentro da experiência e não de fora, ou seja, sobre a experiência.”

(BARROS e KASTRUP, 2015,p.71) Este exercício, como aponta as pesquisadoras, não

pode assumir um caráter burocrático ou formal, mas deve permitir ao pesquisador reviver

as experiências do campo e atentar para o não dito, para o sentido e compartilhado, seja

através dos diálogos recuperados ou mesmo dos silêncios testemunhados.

Há uma prática preciosa para a cartografia que é a escrita e/ou o desenho

em um diário de campo ou caderno de anotações. Os cadernos são como

os hipomnemata, que Michel Foucault (1992) discute ao apresentar as

práticas de si dos gregos. Com o objetivo administrativo de reunir o logos

fragmentado, os hipomnemata “constituíam uma memória material das

coisas lidas, ouvidas ou pensadas. (...)Formavam também uma matéria

prima de tratados mais sistemáticos” (p.135).Podemos dizer que para a

cartografia essas anotações colaboram na produção de dados de uma

pesquisa e têm a função de transformar observações em frases captadas na

experiência de campo em conhecimento e modos de fazer. Há

transformação de experiência em conhecimento e de conhecimento em

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experiência, numa circularidade aberta ao tempo que passa. Há

coprodução.(p.70).

Nos debruçaremos, no momento seguinte, sobre anotações do nosso diário de

campo assim como sobre as próprias produções construídas por Fill ao longo do bimestre.

Nossa análise se constituirá, portanto, neste entre-lugar, neste encontro entre os

pesquisadores-cartógrafos e o pesquisado, entre Eleonora e Everardo e Fill.

Nossas primeiras pistas

Atividade sobre a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e sobre A Declaração de

Independência do Haiti (1804) – Turma 2002, Abril de 2017

A atividade de hoje foi construída a partir das provocações dos

estudantes do segundo ano:

- Mais uma vez a Revolução Francesa?! Os franceses estudam tanto

o Brasil também, professora? (Douglas)

Tivemos então uma conversa sobre o que é currículo, como ele é

construído.Suas narrativas excessivamente eurocentradas...

Ensaiamos uma analise do nosso currículo da rede estadual do Rio

de Janeiro e a partir daí negociamos uma atividade sobre os sentidos

de liberdade que percebíamos em dois movimentos revolucionários

do mesmo período: o francês e o haitiano.

- Mas eu vou falar do que é liberdade para eles? Como? Se eu

mesmo não sei o que é liberdade! (Fill)

A turma toda concordou com a colocação e questionaram por que

não falariam sobre o que eles entendem por liberdade, por direitos.

Acordamos que na aula de hoje cada um traria uma reflexão sobre

liberdade para compartilhar com a turma. Estava ansiosa para saber

o que cada um iria apresentar após nosso último encontro.

Comecei a aula perguntando quem gostaria de apresentar a sua

reflexão. Percebi um burburinho no final da sala

- O Fill fez uma rima, ele pode apresentar? (Gabriel)

Fill se levanta e se dirige para a frente da turma. Ele inicia sua

apresentação. Um silêncio se instaura. A cada palavra a sua voz

aumenta, sua expressão se transforma, sua dor, sua revolta

transborda...

Todos na sala compartilham sua emoção. Eu compartilho sua

emoção...

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Com a palavra: Fill.

Falo de coisas que muitos não querem falar,

Do tipo, vagas das faculdades públicas,

Ocupadas por estudantes de escolas particular.

Enquanto isso, escolas públicas de greve,

Preto, pobre não se forma (vocês sabem que isso procede)

Nós corremos perigo, até crianças sabem que fizeram lambança

Preto, pobre, preso, encarcerado,

Branco, rico, autuado, aprendizado, com direito a fiança.

Essa é sua Pátria Amada do Brasil.

(...)

E se eu protesto, muitos até me chamam de louco,

O problema é que não querem ver

Que o Brasil é de muitos,

Mas os direitos são pra poucos!”

Revisitar estas anotações é também reviver estes momentos narrados. É dar novos

sentidos a estas experiências e elucidar os primeiros fios que tecem esta pesquisa...

Percebemos agora seu princípio, embora seu percurso ainda esteja sendo (re) desenhado.

Nesta atividade na aula de História, fomos surpreendidos em diversos momentos

por questões não previamente estabelecidas, fomos obrigados a negociar novos rumos e os

limites de nossa proposta, assim como os próprios sentidos atribuídos pelos estudantes à

História, enquanto disciplina escolar. Por que em uma aula de História não se pode rimar?

O que pode e o que não pode em uma aula de História? Por que não falar das minhas

vivências?

Conjuntamente com estas questões, outras de ordem identitária também emergem e

nos levam a novas negociações, novos tensionamentos. Quais os sentidos sobre ser negro,

ser pobre, ser favelado, estudar em uma escola pública, são construídos na fala de Fill?

Para nos auxiliar em nossas primeiras análises, recorreremos às reflexões de Gabriel

(2010) sobre a própria conjuntura de crise paradigmática na qual a escola e a própria

disciplina escolar História estão inseridas. Crise da razão moderna. Tempos de transição,

nos quais emergem demandas por outras histórias, ou seja, outras verdades antes

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silenciadas nas narrativas constitutivas do projeto de modernidade. Tempos de escola “sob

suspeita”:

Tempos de escola “sob suspeita”, em que a questão da produção dos

saberes escolares nos remete diretamente às problemáticas da verdade, da

racionalidade e da objetividade do conhecimento no processo de

legitimação dos conteúdos considerados válidos de serem ensinados e

aprendidos. Tempos em que se evidenciam os mecanismos de poder,

socialmente construídos, que entram em jogo na estratificação e

distribuição desses conteúdos curricularizados, tanto no que dizem

respeito à regulação do acesso ao conhecimento historicamente

acumulado como das formas possíveis de se relacionar com o mesmo

(p.214).

Neste sentido, percebemos em nossos registros do diário de campo a especificidade

desta conjuntura de crise/transição da modernidade, tanto que no diz respeito a suas

permanências, às representações enunciadas pelos alunos acerca da disciplina de História e

sobre a organização do espaço da sala de aula, remetendo a uma estrutura escolar fabril,

onde as carteiras enfileiradas representam a ordem rígida deste espaço, onde cores e

desenhos não têm vez. Por outro lado, percebemos também em outras falas a emergência de

demandas identitarias antes silenciadas, demandas por se reconhecer na História, por se

narrar e, neste exercício narrativo, constituir-se sujeito histórico.

Para compreendemos estas demandas identitárias que emergem na sala aula,

retomaremos a própria idéia de Rizoma, ao atentarmos para as diversas vozes/discursos que

ecoam junto às falas dos estudantes. Discursos oriundos de movimentos sociais que

tensionam as estruturas modernas dos Estados Nacionais e reposicionam a cultura no centro

dos debates políticos na contemporaneidade produzindo, inclusive, políticas curriculares

como a Lei 10639/03 que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro

brasileira e Africana na educação básica.

Uma das características fundamentais das questões multiculturais é

exatamente o fato de estarem atravessadas pelo acadêmico e o social, a

produção de conhecimentos, a militância e as políticas públicas. Convém

ter sempre presente que o multiculturalismo não nasceu nas universidades

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e no âmbito acadêmico em geral. São as lutas dos grupos sociais

discriminados e excluídos, dos movimentos sociais, especialmente os

referidos às questões étnicas e, entre eles, de modo particularmente

significativo entre nós, os referidos às identidades negras, que constituem

o lócus de produção do multiculturalismo (CANDAU,2010, p.18)

Como nos aponta Candau (2010), a reflexão sobre a emergência dos movimentos

multiculturais perpassa pela própria elucidação das redes que os constituem, ou seja, dos

múltiplos sujeitos que compõem estes rizomas: os estudantes da turma 1001, a

pesquisadora, os movimentos sociais, a escola e a academia.

Estarmos atentos às redes que se entrecruzam no plano da pesquisa constitui-se em

mais uma importante pista da pesquisa cartográfica, pois redimensiona as escalas da

investigação na qual o global e o local se encontram conferindo sentidos e materialidade as

políticas curriculares que se apresentam no chão da escola.

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