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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA UNICURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM DIREITO EMPRESARIAL E CIDADANIA LUIZA HELENA GONÇALVES A TUTELA DO DIREITO DE EMPRESA A PARTIR DO PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO CURITIBA 2018

CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA UNICURITIBA PROGRAMA DE … · Aos funcionários da secretaria do Mestrado, que na pessoa da estimada Josilene agradeço por toda ajuda ao longo desses

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  • CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA – UNICURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU

    MESTRADO EM DIREITO EMPRESARIAL E CIDADANIA

    LUIZA HELENA GONÇALVES

    A TUTELA DO DIREITO DE EMPRESA A PARTIR DO PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO

    CURITIBA 2018

  • LUIZA HELENA GONÇALVES

    A TUTELA DO DIREITO DE EMPRESA A PARTIR DO PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO

    Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Direito do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba. Orientador: Prof. Doutor Fernando Gustavo Knoerr. Coorientador: Prof. Doutor Francisco Cardozo Oliveira.

    CURITIBA 2018

  • LUIZA HELENA GONÇALVES

    Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito do Centro Universitário Curitiba, pela banca examinadora formada pelos

    professores:

    ______________________________________________________

    Orientador: Prof. Dr. Fernando Gustavo Knoerr

    _____________________________________________________

    Coorientador e Membro Interno: Prof. Dr. Francisco Cardozo Oliveira

    ___________________________________________________

    Membro Externo: Prof. Dra. Andreza Cristina Baggio

    Curitiba, 18 de junho de 2018.

  • Dedico este trabalho à minha família. Para vocês o melhor de mim, sempre.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Professor Fernando, a quem admiro desde a graduação

    por sua incomparável erudição, agradeço pelos encaminhamentos essenciais à

    realização deste trabalho.

    Ao meu coorientador Professor Francisco, pela atenção e conhecimento

    dignos dos grandes mestres.

    À Prof. Andreza Baggio, pela honra de ter aceitado o convite de compor minha

    banca e me agraciar com suas valiosas contribuições.

    À incansável coordenadora Prof. Viviane, cuja sabedoria ultrapassa em muito

    os ensinamentos do direito e nos alcança na própria grandeza da vida.

    Aos funcionários da secretaria do Mestrado, que na pessoa da estimada

    Josilene agradeço por toda ajuda ao longo desses dois anos.

    Aos amigos que o mestrado me trouxe, em especial ao Roberto Kosop, pela

    nobreza de mesmo tão jovem nos brindar com sua inteligência; ao Ulisses, pelos

    felizes momentos de descontração; ao duplamente “Dr. Miguel”, pelo elevado

    raciocínio jurídico e pelas preciosas prescrições médicas; à Fernanda, pelo

    companheirismo e incentivo nos momentos de cansaço; e ao Roberto Siquinel, grande

    amigo e parceiro profissional, a quem tenho como referência na condição de

    advogado e docente.

    À minha família, meu esteio. A começar por meus pais Clara e Edson, sem os

    quais este momento não seria possível. Obrigada por terem me ensinando a

    importância de uma boa formação, e, acima de tudo, os valores de uma existência

    honesta e digna.

    Às minhas saudosas avós Luiza e Helena, de quem herdei não apenas os

    nomes, mas a obrigação diária de honrar a tenacidade e a fortaleza de suas

    existências.

    À minha irmã Érika, que se transformou em grande exemplo de dedicação

    profissional e competência acadêmica. Ao meu cunhado Paulo, pelas risadas

    providenciais nos átimos de esmorecimento. Ao meu amado sobrinho Lorenzo,

    constante luz em meu caminho e a quem rendo meu amor incondicional.

    Aos queridos amigos da vida (e para toda vida): Noemia, por seu carinho e

    cuidado constantes; Eros, por ser um dos maiores incentivadores desta minha jornada

    no mestrado; Alexandre e Rafaela, pelo presente de apadrinhar o pequeno Otávio.

  • À Nossa Senhora Aparecida, minha grande companheira na trajetória da vida.

    Por fim, ao meu marido, Geison, mencionado por último na esperança de que

    pudesse encontrar palavras que expressem meu amor, minha admiração e meu

    respeito. Em vão.

  • Se se quiser indicar instituição social que, pela sua influência, dinamismo e poder de transformação, sirva de elemento explicativo e definidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável: essa instituição é a empresa. Fábio Konder Comparato (1995, p. 3)

  • RESUMO

    A presente dissertação tem como objetivo analisar a tutela jurídica da empresa de maneira a conformá-la a uma normatividade por princípios. Como fenômeno derivado da natural evolução das relações comerciais, é possível afirmar que a empresa alcançou o status de instituição conformadora da civilização contemporânea. Diante dessa relevância assumida pela empresa, compete ao direito conferir-lhe uma disciplina eficaz (e completa), na qual apenas a garantia da livre iniciativa não se mostra suficiente. São necessários instrumentos direcionados à manutenção da empresa, visando, inclusive, a plena realização dos princípios positivados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 no âmbito da ordem econômica nacional. Com o propósito de discutir o alcance hermenêutico de um direito de empresa vocacionado pela preservação, busca-se realizar a compreensão da empresa sob a lógica dos princípios que tratam da ordem econômica constitucional em superação às tentativas infraconstitucionais de definição legal da empresa. A intenção é demonstrar que apesar do direito preocupar-se em conceituar a empresa sua salvaguarda ultrapassa modelos aprioristicamente delimitados, haja vista a dinâmica e a multiplicidade de desdobramentos que realiza no contexto social em que inserida. Por esse motivo, adota-se a noção de empresa como atividade, deslocando o problema do direito de empresa do campo conceitual para a sua efetiva tutela a partir dos efeitos jurídicos que produz. Por fim, para a empresa que desempenha seu papel e concretiza as finalidades representativas de sua importância como fenômeno social, busca-se consolidar a natureza principiológica da preservação como fundamento de continuidade da atividade empresarial. Para tanto, o método aplicado é o dedutivo, mediante levantamento bibliográfico e uma leitura analítico-crítica sobre os pontos mais relevantes que compõem o tema. Palavras-chave: Conceito de Empresa. Atividade Empresarial. Ordem Econômica. Princípios. Princípio da Preservação.

  • RIASSUNTO

    Lo scopo di questa dissertazione è quello di analizzare la protezione legale dell'azienda per conformarla a una normatività basata su principi. Come fenomeno derivato dalla naturale evoluzione delle relazioni commerciali, è possibile affermare che l'azienda ha raggiunto lo status di un fenomeno modellante della civiltà contemporanea. Davanti a questa importanza assunta dall'azienda, è doveroso al diritto attribuirle una disciplina efficace (e completa), in cui solo la garanzia di libera iniziativa non è sufficiente. Sono necessari strumenti mirati al mantenimento dell'azienda, mirando alla piena realizzazione dei valori affermati dalla Costituzione della Repubblica Federativa del Brasile del 1988 nell'ambito dell'ordinamento economico nazionale. Con lo scopo di discutere la portata ermeneutica di un diritto dell’impresa orientato alla conservazione, si cerca di realizzare la comprensione dell’impresa secondo la logica dei principi che trattano dell'ordine economico costituzionale per superare i tentativi infraconstituzionali di definizione legale dell'azienda. L'intenzione è quella di dimostrare che nonostante la preoccupazione del diritto di concettualizzare l'azienda la sua salvaguardia oltrepassa i modelli delimitati, davanti le dinamiche e la molteplicità di snodamenti che produce nel contesto sociale in cui è inserita. Per questa ragione, si è deciso di adottare la nozione di azienda come attività, spostando il problema del diritto dell'azienda dal campo concettuale ad una protezione efficace dagli effetti giuridici che produce. Infine, per l'azienda che svolge il suo ruolo e soddisfa gli scopi rappresentativi della sua importanza come fenomeno sociale, si cerca di consolidare il principio della conservazione come base della continuità aziendale. Per questo, il metodo applicato è deduttivo, attraverso uno studio bibliografico e una lettura analitico-critica sui punti più rilevanti che compongono il tema. Parole-chiave: Concetto di Impresa. Attività Aziendale. Ordine Economico. Principi. Principio di Conservazione.

  • LISTA DE SIGLAS

    PL – Projeto de Lei.

    PLS – Projeto de Lei do Senado.

    IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

    DIEESE – Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos.

    IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

    PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

    SPC – Serviço de Proteção ao Crédito.

  • SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................11

    2 OS CONTORNOS DO CONCEITO JURÍDICO DE EMPRESA..............................14

    2.1 A INFLUÊNCIA DA TEORIA DA EMPRESA NO DIREITO BRASILEIRO.............18

    2.2 A EMPRESA A PARTIR DA DEFINIÇÃO DE EMPRESÁRIO NO CÓDIGO CIVIL

    DE 2002......................................................................................................................22

    2.3 A EMPRESA NOS PROJETOS DE LEI Nº 1572/2011 E Nº 487/2013..................25

    2.4 ENTRE A TEORIA JURÍDICA E O FENÔMENO SOCIOECONÔMICO: A

    ATIVIDADE EMPRESARIAL......................................................................................29

    3 O PROTAGONISMO DA EMPRESA NO ÂMBITO DA ORDEM ECONÔMICA

    CONSTITUCIONAL...................................................................................................37

    3.1 AS FINALIDADES SOCIAIS E ECONÔMICAS CONCRETIZADAS PELA

    EMPRESA..................................................................................................................41

    3.2 A RELAÇÃO ENTRE O LUCRO E A GARANTIA DO BEM COMUM...................47

    3.3 OS REFLEXOS DA ATIVIDADE EMPRESARIAL NA ECONOMIA......................54

    3.4 A EMPRESA E O DESENVOLVIMENTO.............................................................60

    4 O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO COMO SUBSTRATO À EFETIVA TUTELA DA

    EMPRESA..................................................................................................................66

    4.1 A PRESERVAÇÃO DA EMPRESA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

    IMPLÍCITO..................................................................................................................73

    4.2 A MANUTENÇÃO DA EMPRESA SOB A ÓTICA DA ORDEM ECONÔMICA

    CONSTITUCIONAL....................................................................................................77

    4.3 O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO E O DIREITO À EMPRESA..........................80

    4.4 ANÁLISE HERMENÊUTICA: O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO APLICADO À

    EFETIVIDADE DO DIREITO DE EMPRESA ..............................................................82

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................91

    6 REFERÊNCIAS.......................................................................................................93

  • 11

    1 INTRODUÇÃO

    A empresa é sem sombra de dúvidas força motriz da sociedade atual. Não

    apenas porque produz e faz circular bens ou serviços. Ela também cumpre um papel

    essencial ao interesse coletivo.

    Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e

    os princípios positivados na chamada ordem econômica nacional, a empresa alcançou

    o patamar de instrumento conformador da existência digna e da justiça social. Assim,

    a intrínseca relação entre o capital e a sociedade fez com que a empresa conquistasse

    inarredável interesse público. Passaram a conviver persecução do lucro e função

    social.

    Diante disso, ao direito não foi possível manter-se alheio. Foi necessário trazer

    ao seu âmbito de estudo essa realidade tão significativa. Mas, por certo, essa

    transição não ocorreu sem dificuldades. Mesmo após tantos anos de consolidação da

    empresa nos cenários econômico e social o direito ainda encontra dificuldades para

    discipliná-la. Afinal, como dar conta de um fenômeno com tantos impactos no mundo

    jurídico, cujos círculos de interação com a sociedade são cada vez mais significativos,

    abrangendo tantos interesses e finalidades?

    Diante desse cenário é que surge a proposta do presente trabalho, que é o de

    verificar o alcance de um direito de empresa compatível com a normatividade por

    princípios. De forma específica o objetivo é o de verificar a possibilidade de uma

    análise hermenêutica da tutela da empresa voltada à preservação da atividade

    empresarial. Como problema da pesquisa busca-se avaliar o seguinte ponto: em que

    medida o princípio da preservação assegura a tutela efetiva da empresa?

    Para tanto, convencionou-se dividir o trabalho em três capítulos. No primeiro,

    serão abordados os contornos do conceito jurídico de empresa e as influências

    recebidas no Brasil da Teoria da Empresa de origem italiana, culminando com a

    inserção do capítulo “Do Direito de Empresa” no Código Civil de 2002. De modo geral,

    pretende-se demonstrar que na busca por um conceito próprio de empresa, o direito,

    muitas vezes, deixa de cuidar do que é mais relevante: os inúmeros desdobramentos

    e o inequívoco dinamismo da empresa. Adota-se, como marco teórico, Tullio Ascarelli

    e sua compreensão de empresa como atividade com finalidade social, buscando com

    isso o seu estudo de forma mais ampla e global, maximizando sua concepção em

    razão da relevância dos efeitos que produz no contexto em que inserida.

  • 12

    Em seguida, tomando como marco legal a Constituição Federal de 1988, e a

    chamada ordem econômica, serão abordados os princípios e finalidades positivados

    pela Constituição e que possuem como personagem central de realização justamente

    a empresa. Sob a ótica da funcionalização da propriedade aplicada aos bens de

    produção, o intuito é demonstrar que no contexto da ordem econômica constitucional

    passou a empresa a compatibilizar os seus interesses próprios (sobretudo o de lucro)

    com interesses coletivos (pleno emprego, existência digna, justiça social, redução de

    desigualdades, entre outros). Com isso, e com base na teoria do desenvolvimento

    como liberdade de Amartya Sen, pretende-se demonstrar que a empresa se tornou o

    principal vetor de desenvolvimento não só quantitativo (financeiro), mas também

    qualitativo (efetivo crescimento econômico e social), já que por intermédio da atividade

    empresarial é que se concretiza a expansão de liberdades individuais.

    Por fim, o terceiro capítulo tratará da abordagem principiológica a respeito da

    empresa como caminho à conclusão pretendida de que após a vigência da

    Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 veio à tona não somente a

    relevância dos princípios no contexto da normatividade jurídica como igualmente a

    importância de inúmeros desses princípios à própria compreensão e tutela da

    empresa. Como ancoragem teórica será utilizada a ideia da completude dos princípios

    no sistema de normas e seu papel de otimização a partir das obras de Ronald Dworkin

    e Robert Alexy.

    Com a intenção de atingir a diretriz fundante da presente pesquisa, o capítulo

    final busca concluir pela aplicação do princípio da preservação à noção de empresa,

    de maneira a garantir um tratamento jurídico destinado à sua efetiva tutela e, com

    isso, permitir que permaneça como protagonista na realização dos objetivos

    pretendidos pela ordem econômica constitucional. Para tanto, destaca-se a figura da

    ponderação dos princípios, e em especial os que incidem no contexto da empresa,

    valendo-se da preservação como instrumento de interpretação e adequação

    hermenêutica.

    A relevância do tema indicado e a resposta que dele se espera no tocante à

    plena salvaguarda da atividade empresarial encontra identidade direta com o

    programa de mestrado que tem por enfoque o Direito Empresarial e a Cidadania, em

    perfeita consonância com os benefícios da atividade produtiva e o cenário jurídico e

    econômico atual, cada vez mais vocacionado à atividade empresarial.

  • 13

    Ainda, com a finalidade de delimitar a temática proposta, cumpre destacar que

    o presente trabalho terá por enfoque a atividade empresarial realizada pela iniciativa

    privada, por meio de paradigmas do direito que tratam da empresa sob a ótica da

    atividade desenvolvida pelo empresário (pessoa física ou sociedade empresária)

    tendo por marcos temporal e regulatório a Constituição Federal de 1988 e o Código

    Civil de 2002.

    Por essa razão, não se realizará uma evolução histórica da empresa,

    tampouco serão abordadas questões como a eventual autonomia do direito

    empresarial (como ramo próprio do direito destinado ao estudo e ao trato da empresa).

    Parte-se do pressuposto de que com o advento do Código Civil de 2002 consolidou-

    se no Brasil a Teoria da Empresa, herdada da legislação italiana datada de 1942, e

    com ela um instituto autônomo passível de salvaguarda pelo direito: a empresa.

    É nesse contexto que recai o ponto de partida da pesquisa que tentará

    demonstrar a necessidade de uma visão hermenêutica destinada à uma efetiva tutela

    do direito de empresa tendo por substrato a relevância de sua manutenção, sobretudo

    para fins de garantir uma estabilização das inúmeras relações jurídicas realizadas a

    partir da empresa. Isso será possível, como se almeja demonstrar, valendo-se de uma

    leitura principiológica sobre o tema, sendo esse o instrumento oportuno para que a

    estrutura jurídica crie condições que permitam a previsibilidade e a continuidade da

    atividade empresarial.

    O meio a ser desenvolvido para esse fim será o de uma abordagem teórica,

    com levantamento bibliográfico e leitura analítico-crítica sobre o tema. Utilizando-se

    do método dedutivo, pretende-se abrir o campo do conhecimento jurídico e do próprio

    direito valendo-se de uma vertente principiológica da empresa, a qual, sob o viés da

    sua preservação, deve ser mantida plenamente apta a realizar as finalidades

    constitucionais a que se condiciona em sua concretude dinâmica e complexa.

  • 14

    2 OS CONTORNOS DO CONCEITO JURÍDICO DE EMPRESA

    Em que pese a empresa há muito ser uma realidade sedimentada - tanto do

    ponto de vista econômico quanto social - no direito o seu estudo invariavelmente

    esbarra nas inúmeras tentativas por uma definição legal.

    Este é um dos motivos pelos quais “a empresa continua sendo um fenômeno

    desafiante para o Direito, não obstante já tenham decorridos tantos anos desde o seu

    primeiro aparecimento na legislação” (BULGARELLI, 1980, p. 1).

    Resultado da natural evolução das relações comerciais1, a empresa foi alçada

    ao patamar de verdadeiro desafio teórico no âmbito jurídico devido sua natureza

    eminentemente econômica e da qual se faz muito difícil se desvencilhar2. Talvez por

    isso a tarefa de transportar a empresa para o campo do direito concentrou-se na busca

    por uma definição capaz de unir (ou transladar) os aspectos econômicos e impingir

    em um único enunciado todos os reflexos e relações que se concretizam no contexto

    da empresa.

    No entanto, a terminologia jurídica se mostra muitas vezes insuficiente ao

    propósito de realizar uma efetiva disciplina da empresa. Na pretensão de encontrar

    um conceito exclusivo, o direito acaba deflagrando uma espécie de diminuição da

    importância da empresa como fenômeno fático legitimador de direitos (DANTAS,

    1998, p. 38).

    1 Cabe destacar que o marco temporal do presente trabalho é o Código Civil Italiano de 1942, responsável pela introdução da chamada Teoria da Empresa (posteriormente acolhida pelo Código Civil brasileiro de 2002), que tem por objeto principal de estudo a empresa já identificada e consolidada tanto no aspecto prático quanto teórico. Por essa razão, não foi realizada uma evolução histórica do direito até o surgimento da empresa. Entretanto, apenas como referência a uma leitura mais situada sobre o tema, cumpre indicar que a expansão da economia no século XIX, promovida pelo liberalismo e acentuada pela Revolução Industrial, fez com que o critério subjetivo até então existente, representado pela figura do comerciante, fosse absorvido pela realidade objetiva dos chamados atos do comércio. Esses, por sua vez, cederam gradativamente lugar à empresa. Considerando que as transformações econômicas ocorridas na sociedade refletem seus efeitos no direito, as transformações operadas pela Revolução Industrial tornaram a empresa instituto de grande destaque, merecendo a atenção dos juristas e ensejando um estudo jurídico mais detalhado. Tal cenário se consolida em 1942, com o Codice Civile italiano, responsável, como já dito, por inaugurar a chamada Teoria da Empresa (SASSO, 2005, p. 27-28). 2 Segundo Waldirio Bulgarelli os juristas buscaram formular o conceito de empresa valendo-se de vários elementos colhidos das definições dadas pelos economistas (1997, p. 21). Com isso, é possível dizer que incluir no campo do direito o fenômeno da empresa não significa desconsiderar os elementos econômicos que, porventura, irão compor o respectivo conceito jurídico, mas sim aceitá-los como indissociáveis, tendo por pressuposto, no entanto, que tais fundamentos econômicos irão assumir menor ou maior importância conforme o ramo do direito que estiver sob análise e do qual as relações analisadas fazem parte (DANTAS, 1998, p. 39). Por fim, “a visão realista do mundo contemporâneo considera que não há mais como distinguir o econômico social, pois ambos os interesses se encontram, se interpenetram e se compatibilizam na empresa, núcleo central da produção e da criação da riqueza” (WALD, 2005, p. 8).

  • 15

    Na verdade, os operadores do direito ao tratarem da empresa como uma

    estrutura econômica e tentarem amoldá-la a um formato jurídico acabam furtando-se

    do instituto como um todo, em sua completude (SZTAJN, 2010, p. 117). Cabe lembrar

    que:

    Um conceito não é algo criado ou construído fora de contexto. Como a sociedade, ele é fruto de um processo de desenvolvimento histórico em constante marcha, informado, em cada passo, pelos pressupostos do período e da realidade experimentada (CAMPOS; ARDISSON, 2012, p. 86).

    Por essa razão, nesta primeira parte do trabalho, o qual se convencionou

    chamar de “Contornos do conceito jurídico de empresa”, busca-se analisar o problema

    de pesquisa a partir de uma superação linear conceitual.

    Independente de eventual correção, desacerto ou incompletude do conceito

    jurídico de empresa, o objetivo é demonstrar que a efetiva tutela do direito de empresa

    talvez implique no transbordamento do plano conceitual, para se atingir a real

    importância que a empresa desempenha na atual conjuntura socioeconômica e

    considerando sua relevante fixação social, no intento de, ao final, viabilizar a análise

    hermenêutica da empresa a partir da normatividade principiológica voltada à

    preservação.

    Nesse caminho intenciona-se verificar que muitos dos esforços envidados na

    formulação de um conceito legal de empresa acabaram deixando de legitimar o seu

    tratamento jurídico de forma ideal, desconsiderando a intersubjetividade de suas

    relações, a complexidade de obrigações por ela assumidas, os interesses múltiplos

    que em torna dela se realizam, bem como o dinamismo como atividade irradiadora de

    efeitos não só econômicos, mas também sociais3.

    Considerando o direito um fenômeno social e histórico, a análise de um

    respectivo fenômeno jurídico, tal como a empresa, deve ponderar suas

    particularidades fáticas, pois “a pretensa universalidade do conceito dificulta a

    compreensão da importância dos valores na constituição da juridicidade” (OLIVEIRA,

    2006, p. 1).

    3 Sendo que por social “entende-se tudo aquilo que se atrela aos interesses de uma coletividade, atendendo-os, e, porquanto, os aspectos econômico e político, envolvem-se a eles, surtindo seus efeitos” (FAGUNDES, 2003, p. 258).

  • 16

    Por isso, ao mencionar direito de empresa não se está a condensar a

    compreensão do tema sob as vertentes da simples formação ou extinção do instituto,

    mas sim avaliar a manutenção de sua essencialidade, em conformação aos tantos

    deveres e obrigações atribuídos pelo próprio ordenamento jurídico à empresa.

    Nesse viés, aliás, surge a possibilidade de se referir a um direito de empresa

    mais amplo do que aquele já positivado, sobretudo porque o conceito jurídico de

    empresa não pode ser inferido do próprio conceito legal, tomado de forma apartada,

    excluído de um contexto, sob pena de se olvidar aquilo que “surge no processo de

    concretização, na relação entre os elementos do conceito e os valores da realidade

    fática que constituem o substrato conceitual” (OLIVEIRA, 2006, p. 77-78).

    Sem olvidar a episteme4 mais adequada sobre a empresa, dentro do que se

    convencionou denominar direito de empresa, verificar-se-á que o termo pode ser

    utilizado em variadas situações, ainda que na lógica das interpretações derivadas da

    definição legal. Todavia sua relevância, de forma a compatibilizar-se com a aludida (e

    pretendida) preservação, deverá ser atrelada à atividade econômica desenvolvida em

    uma realidade social.

    Em que pese a miríade de definições de empresa encontradas no direito, que

    na sua grande maioria, inclusive, são repetitivas, este capítulo inicial pretende

    demonstrar que a tutela da empresa precisa romper as barreiras do conceito legal,

    indo além da (im)precisão dos termos utilizados para tanto.

    A análise da empresa importa na conexão entre os seus aspectos jurídicos e

    a sua magnitude fática, em contraposição a um determinado conceito, de caráter

    limitado (SASSO, 2005, p. 29).

    E, com esse caminho, ou seja, de tratar de aspectos, desdobramentos, ou

    efeitos jurídicos da empresa de maneira ampla, tendo por enfoque a sua concretude

    no contexto social (e aqui já cabe adiantar a relevância dos princípios como

    instrumentos validadores de uma carga normativa atrelada a essa figura

    fenomenológica da empresa) espera-se indicar que o emprego inadequado do termo

    pode refletir na concepção de empresa universalizada e, com isso, no tratamento

    deficitário do tema (MIRANDA, 2009, p. 4).

    É preciso pontuar que o trabalho não pretende redefinir a empresa ou

    reformular os conceitos já existentes. Antes disso, procura avaliar os elementos que

    4 Na linha do que venha a ser a “construção de um alicerce que privilegie o olhar do todo ao invés do olhar da soma das partes” (LOOSE; SOUZA-LIMA, 2013, p. 65).

  • 17

    compõem a cognição legal de empresa por meio de uma perspectiva condicionada

    pelo fenômeno institucional que surgiu para dar conta das relações de mercado5 e

    que, por esse motivo, precisa receber do direito um tratamento mais amplo

    direcionado à sua preservação, valendo-se de instrumentos normativos que visem a

    estabilização das relações jurídicas formadas em torno da empresa, como condição

    de segurança da própria estrutura jurídica que se desenvolve a partir da empresa.

    Para atingir esse objetivo reputa-se cabível, até mesmo para satisfazer a

    finalidade crítico-analítica da pesquisa, posicionar algumas vertentes da conceituação

    da empresa no panorama do direito brasileiro, bem como suas principais influências.

    Ao falar em contornos do conceito jurídico de empresa a intenção é verificar

    que a tutela da empresa não precisa se amoldar (ou se acomodar) na definição

    estritamente legal alheia à realidade fática (e todo contexto normativo) a que está

    atrelada, mesmo já tendo garantido uma posição tão relevante que ao direito se tornou

    impossível se furtar ao seu impacto (BULGARELLI, 1997, p. 14).

    Como reforço ao fundamento desse trabalho, que é o de admitir a tutela da

    empresa vocacionada à sua manutenção e tendo por substrato a leitura principiológica

    do tema, serão consideradas algumas questões acerca da Teoria da Empresa, sua

    introdução no direito brasileiro, os tratamentos dados pela legislação vigente à

    empresa, bem como alguns Projetos de Lei em andamento, os quais têm por objeto

    propor uma nova disciplina jurídica da empresa.

    Ao final deste primeiro capítulo, adota-se a noção de empresa como atividade,

    com base na perspectiva concreta do instituto atrelado à sua fixação social, no fito de

    viabilizar uma visão mais efetiva “sob o ângulo da totalidade”6, ou seja, de forma não

    estanque ou desassociada da realidade em que inserida (COUTO E SILVA, 2006, p.

    20).

    Para além do trato jurídico puramente conceitual torna-se oportuna a

    concepção de empresa que atenda de maneira satisfatória sua abrangência

    fenomenológica, sobretudo diante da necessidade de conciliar as garantias legais

    atreladas aos inúmeros interesses (e finalidades) que gravitam ao redor dela.

    5 Como um fenômeno de diferentes dimensões, com reflexos nos planos econômico, social, político e jurídico (FORGIONI, 2016, p. 135). 6 A ponto de Fábio Tokars dizer que “a empresa, em sua totalidade, é objeto de estudo da ciência da Administração de Empresas, e não do Direito” (2007, p. 22).

  • 18

    2.1 A INFLUÊNCIA DA TEORIA DA EMPRESA NO DIREITO BRASILEIRO

    A partir do século XIX a atuação do comerciante, até então personagem

    principal nas relações de troca e circulação de riquezas, foi sendo superada, muito

    devido à própria dinâmica dessas relações7. Tal realidade culminou no Codice Civile

    italiano, de 1942, com a Teoria da Empresa8 e a consolidação da empresa como o

    principal instrumento de produção e circulação de bens e serviços (COELHO, 2017,

    p. 35-37).

    Alfredo de Assis Gonçalves Neto destaca que “não ocorreu uma simples

    alteração terminológica”, mas sim uma verdadeira mudança de conteúdo a partir da

    disciplina da empresa (2007, p. 66). Surge a figura do empresário totalmente

    desatrelado à do comerciante, assim como a concepção de empresa assumindo o

    patamar de “organização típica da moderna economia”, em substituição ao comércio

    (FORGIONI, 2016, p. 44).

    Por isso, “independentemente das motivações mais diretas ou particulares, a

    verdade é que a empresa, porque passou a dominar a economia moderna, teria

    fatalmente, mais cedo ou mais tarde, que encontrar um lugar no Direito”

    (BULGARELLI, 1997, p. 20).

    No Brasil, uma das primeiras incursões legislativas sobre o estudo da empresa

    se deu com a Lei nº 4.137 de 1962 (atualmente revogada), que ao disciplinar o abuso

    do poder econômico dizia expressamente no texto do seu artigo 6º que por empresa

    deveria ser entendida a organização de natureza civil ou mercantil implementada por

    pessoa física ou jurídica e destinada à exploração de qualquer atividade com fins

    lucrativos (REQUIÃO, 2000, p. 58)9.

    7 Como forma de sintetizar esse salto histórico (e jurídico) Waldiro Bulgarelli relata que o comerciante foi substituído pelo empresário e, com isso, o ato de comércio isolado cedeu lugar à sequência de atos praticados pelo empresário (1998, p. 67). 8 Newton de Lucca lembra que a empresa não surgiu como objeto de análise pelo direito somente com a edição do Código Civil de 1942. Antes disso, o Código Comercial francês (1808) já havia se aproximado da empresa, assim como vários doutrinadores (principalmente os comercialistas) já haviam se dedicado ao tema. Todavia, destaca o autor, os “juristas italianos foram, inquestionavelmente, os que mais se detiveram ao estudo da empresa” (2009, p. 316-317). Na mesma linha, Ana Lucia Alves da Costa Arduin recorda que a trajetória da empresa no plano jurídico encontra no direito francês “as primeiras tentativas de submetê-la a uma regulação específica”, mas que a “elucidação quanto ao sentido que a empresa econômica deveria ter para o Direito somente aconteceu após a entrada em vigor do Código Civil Italiano datado de 1942” (2013, p. 54). 9 Em 1994, a Lei nº 4.137 de 1962 foi substituído pela Lei nº 8.884, a qual, por sua vez, foi revogada pela Lei nº 12.529 de 2011, que em várias passagens utiliza o termo empresa, mas sem defini-la (BRASIL, 2011).

  • 19

    Em que pese outros instrumentos normativos terem resvalado a legitimação

    da empresa, foi em 2002 que ela alcançou o patamar de instituto definitivamente

    incorporado pelo sistema jurídico brasileiro. Isso ocorreu em sede do então

    promulgado Código Civil, cujo Livro II foi intitulado “Do Direito de Empresa”.

    Com notória influência do Código Civil italiano de 1942, o Código Civil de 2002

    se filiou à Teoria da Empresa, encontrando nos princípios do texto peninsular os seus

    fundamentos (SALLES, 2010, p. 1241-1242).

    Superando, ainda que tardiamente, o já obsoleto estudo do comércio10, o

    Código Civil de 2002 unificou as relações tanto de natureza civil quanto comercial. Em

    breves linhas:

    A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, inaugurou o novo Código Civil brasileiro, revogando expressamente a primeira parte do Código Comercial (Lei nº 556, de 25 de junho de 1850), unificando o Direito Privado, abarcando obrigações e contratos de direito civil e comercial. A novel lei, também, sepulta a teoria dos atos de comércio, prestigiando, dessa sorte, uma nova teoria, a teoria da empresa. Nesse particular, introduz o Livro II - Do Direito de Empresa dos arts. 966 ao 1.195 (MARCATO, 2008, p. 80).

    Nesse contexto, exsurge o artigo 966 do Código Civil, que trata da atividade

    econômica organizada, exercida de forma profissional e voltada à produção ou à

    circulação de bens ou serviços (FERNANDEZ; RUSSI, 2008, p. 61). Tudo isso sob o

    comando do empresário.

    Portanto, da transição marcada pelo esvaziamento da disciplina do

    comerciante (aquele que intermediava bens levando-os dos produtores até os que

    deles necessitavam), chega-se à consolidação da atividade econômica centralizada

    na figura do empresário.

    Ou como coloca Alfredo de Assis Gonçalves Neto, ao tratar dessa passagem

    histórica e jurídica:

    Diferentemente do comerciante, que era inicialmente identificado no papel de intermediário da corrente circulatória (excluídos o primeiro e o ultimo de seus anéis), o empresário vem conceituado de modo mais abrangente, como

    10 Cumpre destacar que a Teoria da Empresa foi consagrada na Itália como um novo sistema de regulação das atividades econômicas diante da necessidade de revisão dos conceitos até então utilizados, sobretudo pela defasagem dos chamados atos do comércio que não mais davam conta de todas as relações travadas no âmbito comercial e não mais representavam a realidade social de produção e circulação de bens e serviços (ARAUJO, 2008, p. 20).

  • 20

    partícipe de todo o fluxo da circulação de riquezas, desde a produção até o último dos atos em que aquela se desdobra (2007, p. 67).

    O direito brasileiro, ao filiar-se ao sistema italiano, acabou por aderir ao

    conceito jurídico que não trata da empresa em si, mas sim da prática (ou profissão)

    desempenhada pelo empresário. Restou convencionado que os atos do empresário é

    que seriam capazes de gerar direitos e obrigações, sendo esse o conteúdo que

    determinaria e delimitaria o estudo da empresa.

    Em comentários a essa nova disciplina da empresa, mesmo em fase anterior

    à promulgação do Código Civil de 2002, Waldirio Bulgarelli expõe como uma das

    maiores contribuições da teoria jurídica da empresa a de assegurar uma concepção

    de empresa no campo do direito fixando-a como “atividade econômica organizada”

    (1997, p. 100).

    Já para Fábio Ulhoa Coelho, caberia extrair do modelo italiano (copiado pelo

    Brasil), a noção de regular exercício da atividade econômica, com a elaboração de um

    tratamento jurídico acerca da empresa atrelado a conceitos operacionais (2017, p.

    29). Isso explicaria porque, mesmo com a edição do Código Civil de 2002, o Brasil

    passou a contar com o conceito legal de empresário, não de empresa.

    De modo geral pode-se dizer que a Teoria da Empresa:

    [...] passa a abranger toda a organização dos meios de produção, serviços e do próprio ato de comercializar, além de uma correta organização do capital, bem como do trabalho. À luz das considerações acima expostas, percebe-se que o termo empresa é mais amplo e por isso teve condições de adaptar-se às inovações e realidades mercadológicas (SANTIAGO; MEDEIROS, 2017, p. 109).

    Se de um lado é possível destacar aspectos positivos no Código Civil de 2002,

    principalmente ao adaptar o ordenamento jurídico às mudanças ocorridas nas

    estruturas econômicas e, com isso, adotar a Teoria da Empresa, de outro podem ser

    identificadas limitações, já que assim o fez em caráter nitidamente subjetivo, focado

    no sujeito que pratica a atividade econômica (e não na atividade em si).

    Logo, “apesar da referência ao termo empresa, o Código apresenta uma

    disciplina jurídica ainda voltada para a centralidade do sujeito, fazendo com que a

    noção de atividade fique em segundo plano” (NEGRI, 2017, p. 58).

  • 21

    Por esse motivo, a legislação brasileira teria deixado de evoluir por não

    realizar adequada adaptação, mormente quando já sedimentada significativa

    discussão sobre o tema, haja vista que desde a legislação italiana de 1942 até o

    código civilista brasileiro muito já havia sido debatido acerca da empresa

    (FERNANDEZ; RUSSI, 2008, p. 61).

    Essa adaptação, aliás, já poderia ter como fundamento, inclusive, os

    princípios estabelecidos na ordem econômica constitucional (em plena validade

    quando da vigência do Código Civil de 2002).

    Diante desse breve panorama sobre a introdução da Teoria da Empresa no

    Brasil, e seguindo a pretendida análise crítica acerca da sua adoção pelo Código Civil,

    em que pese o possível avanço legal pela adoção da expressão Direito de Empresa

    (e sua tentativa de definição), na verdade, ainda não se pode falar em efetivo

    tratamento jurídico da empresa, principalmente no que tange à ineficiência do texto

    em relação ao dinamismo das atividades empresariais, bem como em resguardar suas

    necessidades mais atuais, afastar as lacunas existentes (boa parte delas oriundas da

    tentativa em transpor elementos econômicos para o campo do direito), e, por fim,

    solucionar de maneira mais adequada os conflitos e desdobramentos derivados do

    contexto da empresa (LUCCA, 2004, p. 46).

    Nesse sentido, Rachel Sztajn entende que:

    Tivesse optado por dispor sobre empresa vinculando-se a atividades econômicas em geral, destinada à criação e circulação da riqueza, fonte de produção de novas riquezas e utilidades, ter-se-ia aproximado das discussões atuais, oferecendo aos operadores do direito pontos de apoio mais seguros (2010, p. 134-135).

    Esse é o motivo pelo qual, trazendo à discussão o conceito jurídico de

    empresa inspirado na Teoria da Empresa de origem italiana (adotada pelo Código

    Civil de 2002), chega-se à proposta de aperfeiçoamento da tutela do direito de

    empresa com base na normatividade principiológica capaz de abarcar toda a sua

    complexidade, a qual vai muito além dos elementos constantes da definição legal.

  • 22

    2.2 A EMPRESA A PARTIR DA DEFINIÇÃO DE EMPRESÁRIO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

    Na essência da Teoria da Empresa está a figura do empresário como titular

    da atividade econômica organizada. Seguindo essa premissa, e como já visto no

    tópico anterior, o Código Civil de 2002 não definiu empresa, mas sim a figura do

    empresário, atribuindo ao artigo 966 a mesma redação dada pelo artigo 2.082 do

    Código Civil italiano, talvez porque já “ciente das dificuldades em definir a empresa”,

    o legislador “preferiu definir o empresário repetindo literalmente a conceituação do

    Código peninsular” (ALMEIDA, 2010, p. 81).

    Pela leitura do artigo 966, é empresário aquele que desenvolve atividade

    econômica de maneira organizada, utilizando dos meios de produção para o fim de

    realizar a circulação de bens ou serviços11. No Brasil, portanto, a empresa não surgiu

    como instituto independente e com carga normativa própria, mas sim por meio da

    definição de empresário, aos moldes do que encontrado no Código Civil italiano12. Por

    essa razão, é possível afirmar que “é o empresário (elemento) e não a empresa (todo)

    quem é expressamente” mencionado no Código Civil de 2002 (TOKARS, 2007, p. 25).

    De qualquer forma, do texto do artigo 966 é possível extrair três fatores que

    complementam a concepção de empresa, quais sejam: o da atividade econômica

    (pois atividade não econômica, não será empresa); o da organização, por se tratar de

    atividade realizada com a utilização de um conjunto de bens e com a colaboração de

    uma equipe de pessoas com o objetivo de produzir riquezas (produtos ou serviços);

    e, por fim, o do caráter profissional, enquanto exercício constante e normal de uma

    atividade (MIRANDA, 2009, p. 6). Com base nessas considerações chega-se à

    conclusão de que:

    [...] à semelhança do modelo italiano, o Código Civil brasileiro prende-se à figura do empresário, individual e social, sujeito de direitos e obrigações resultantes do exercício da empresa (perfil subjetivo), ao estabelecimento, ou seja, ao complexo de bens organizados pelo empresário para o exercício de sua atividade empreendedora (perfil objetivo), e à atividade econômica

    11 “Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (BRASIL, 2002). 12 Conforme artigo 2.082 do Codice Civile que define o empresário, e não a empresa, ao dizer que “É empresário quem exercita profissionalmente atividade econômica organizada para o fim da produção ou troca de bens ou de serviços” (ITÁLIA, 1942, p. 197, tradução nossa).

  • 23

    organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços exercida profissionalmente pelo empresário (perfil funcional) (SOUZA, 2008, p. 171)13.

    Pela leitura do artigo 966 do Código Civil, portanto, a caracterização do

    empresário é composta por vários elementos (atividade econômica, profissionalidade,

    organização, produção ou circulação de bens e serviços), que devem estar presentes

    de forma simultânea para caracterizar o exercício de uma atividade empresarial

    (MARCATO, 2008, p. 84-85). O texto do Código diz quem é empresário. Por

    interpretação extensiva, a empresa é fruto da prática desenvolvida por ele. Esse é o

    contexto em que se dá a compreensão da empresa no sistema legal brasileiro.

    A forma como lançada a noção jurídica de empresa, ou seja, por extração do

    conceito de empresário, acaba revelando a essência de cunho privatístico e subjetivo,

    tendo por vetor o agente capaz de conduzir os fatores de produção, de forma

    organizada e profissional, e apto a gerar riquezas, mas de forma isolada, sem

    considerar a relação com o contexto em que se encontra, sem:

    Debruçar-se sobre sua interação com outros agentes econômicos, sobre suas relações, sobre os condicionamentos que sofre durante sua ação – isto é, considerar a empresa no mercado – volta-a “para fora”, em direção à realidade. Repise-se: o exame centrado no empresário “fecha” o espectro de análise, dobrando a empresa sobre si mesma [...] (FORGIONI, 2016, p. 72).

    Essa noção subjetiva de empresa deixa de considerar que este mesmo

    agente condutor da atividade produtiva, ou seja, o empresário, deve estar atento aos

    anseios da coletividade na qual a empresa se encontra inserido, os quais, por sua vez,

    não se restringem a simples fruição de bens e serviços produzidos ou disponibilizados

    (MARCATO, 2008, p. 84).

    13 Essa noção de perfis deriva do conceito poliédrico de empresa criado por Alberto Asquini, em uma tentativa de adaptar a noção econômica da empresa ao direito e, com isso, suprir a falta de definição no Código Civil italiano (BULGARELLI, 1997, p. 22). Segundo Asquini a empresa seria um fenômeno multifacetado e a sua compreensão legal poderia assumir várias vertentes de acordo com o perfil em apreço, ou com o componente econômico com o qual esse perfil estaria relacionado (1943, p. 1, tradução nossa). Na teoria de Alberto Asquini a empresa teria quatro grandes perfis: subjetivo, funcional, patrimonial e corporativo. No perfil subjetivo a empresa é o empresário, responsável pela organização e assunção dos riscos inerentes à atividade. No perfil funcional tem-se a empresa identificada pela atividade em si. O aspecto patrimonial (ou objetivo) corresponde ao conjunto de bens necessários ao desenvolvimento da atividade. Por fim, no viés corporativo, tem-se a ideia de instituição, na medida em que a empresa reúne pessoas – empresários, trabalhadores, destinatários dos bens ou serviços – com propósitos comuns (COELHO, 2017, p. 38).

  • 24

    Para Rosario Nicolò entender a empresa como direito subjetivo, a partir da

    noção de empresário, significaria deixar de lado aspectos institucionais da empresa e

    suas dimensões que extrapolam a estrita esfera do indivíduo que a exerce (2011, p.

    177).

    Tullio Ascarelli vai além e defende que, no contexto do Código Civil italiano

    (tomado pelo Brasil como inspiração), sequer se poderia aceitar que a lei quisera dar

    um conceito de empresa, pois, com certeza, ele seria diferente daquele lançado no

    artigo 2.082 (1955, p. 254, tradução nossa)14.

    É preciso destacar que a visão jurídica de empresa a partir do conceito de

    empresário encontra limitação em outra questão de grande relevância: o empresário

    não é imprescindível, sendo, aliás, plenamente possível a existência de empresas

    sem a figura do empresário (FORGIONI, 2016, p. 91-92).

    Isso se deve ao fato de que, como instituição que possui sistema próprio de

    funcionamento, a empresa existe sem um caráter personalíssimo. Para que a

    empresa perdure basta que ela represente um “organismo econômico, como entidade

    objetiva, que em qualquer modo se autonomiza com respeito ao seu criador”

    (FERNANDEZ; RUSSI, 2008, p. 84).

    Na mesma linha, cabe salientar que “a empresa interessa ao mundo jurídico,

    impactando-o independentemente de seus titulares; há situações em que a mera

    existência da atividade gera a composição de suportes fáticos e produz

    consequências jurídicas” (FORGIONI, 2016, p. 92).

    Com base nessas orientações é possível concluir que o conceito de

    empresário adotado pelo Código Civil de 2002 não atinge o objetivo de tratar da

    empresa em sua completude, o que gera certa insegurança em função de uma

    distribuição incompatível de direitos e deveres (FERNANDEZ; RUSSI, 2008, p. 85).

    Logo, a noção jurídica limitada à figura do empresário não serve à devida

    tutela do direito de empresa, haja vista que esta, “independente da figura dos seus

    donos, assumiu o papel de agente produtor de direitos e obrigações” (OLIVEIRA,

    1999, p. 118).

    A compreensão de empresa a partir da definição legal de empresário, por

    certo, encontra-se obsoleta, tendo em conta que “a repetição ou transposição da

    doutrina italiana relativamente ao empresário e à empresa que se seguiu ao codice

    14 “Egualmente non mi sembra che la normativa del codice postuli un concetto di impresa (che sarebbe così indubbiamente diverso da quello dell’art. 2082)”.

  • 25

    de 1942, visando-se a delimitar o conceito de empresário, é limitada, ultrapassada”

    (SZTAJN, 2006, p. 193). Entretanto, por ainda vigorar no atual cenário jurídico

    brasileiro é que se inclui o debate acerca de possíveis delimitações dessa definição,

    como fundamento inicial à linha mestra do presente trabalho.

    Com tal aporte teórico busca-se fundamentar uma superação dos meandros

    conceituais a caminho de um direito de empresa compatível com a normatividade por

    princípios, sobretudo em razão das finalidades entabuladas pela Constituição Federal

    de 1988 no contexto da ordem econômica15.

    2.3 A EMPRESA NOS PROJETOS DE LEI Nº 1572/2011 E Nº 487/2013

    Em um apontamento de atualidade deste primeiro capítulo, cuja abordagem

    ocupa-se das tentativas legais em situar a empresa no campo jurídico, cabe destacar

    que estão em andamento dois Projetos de Lei que buscam resgatar um código próprio

    que trate de forma mais detida as relações derivadas da empresa16. Nesse sentido

    estão o Projeto de Lei nº 1572 de 2011, que tramita na Câmara dos Deputados

    (BRASIL, 2011), bem como o Projeto de Lei do Senado nº 487 de 2013 (BRASIL,

    2013).

    As redações de ambos os projetos são próximas, em alguns tópicos, inclusive,

    coincidentes, entretanto, não se pretende realizar uma verificação mais detalhada

    acerca do conteúdo dos referidos Projetos de Lei. O intuito aqui restringe-se em tecer

    algumas considerações naquilo que os projetos se afinam com a proposta principal

    do presente trabalho: a tutela da empresa por meio da leitura principiológica em

    superação aos possíveis limites jurídicos conceituais.

    15 Como nota introdutória sobre a ordem econômica constitucional e os princípios por ela disciplinados aplicáveis ao tratamento jurídico da empresa, importa dizer que “desde a edição da Constituição de 1988, o direito brasileiro tem passado por uma mudança de paradigma, em que a argumentação por meio de princípios ganha centralidade e importância” (CÂNDIDO, 2013, p. 131). Daí porque “nesta linha de pensamento, estando o Direito Comercial, ainda que em partes, previsto no Código Civil, evidentemente há que se concluir que também a esse ramo do Direito, hoje renovado, e conhecido como Direito Empresarial, há que se aplicar os princípios constitucionais [...]. Portanto, mesmo que se entenda pela autonomia do Direito Empresarial em face do Direito Civil, não se olvide a vertente constitucional daquele hoje renovado ramo do Direito, que fundamenta todo o exercício da atividade comercial” (BAGGIO, 2014, p. 66). 16 Lembrando que o Código Civil de 2002 realizou a unificação legislativa do direito das obrigações incluindo nesta seara a matéria comercial, sob a denominação “Do Direito de Empresa”. A mencionada codificação civilista foi inspirada na experiência (já sem sentido nos dias de hoje, conforme se expõe neste capítulo inicial) do direito italiano (COELHO, 2011, p. 8).

  • 26

    Em ambos os projetos verifica-se a disposição do legislador em disciplinar e

    organizar a empresa utilizando os princípios, inclusive os positivando. Para Arnoldo

    Wald, trata-se de uma atualização do direito de empresa em harmonia com a atual

    realidade normativa, já que “decorridos mais de quarenta anos da elaboração do

    anteprojeto que convolou, em 2002, no Código Civil, parece ter chegado o momento

    de uma revisão legislativa” (2013, p. 22).

    Sobretudo porque, segundo Arnoldo Wald:

    [...] houve, no mundo inteiro, nesse período, uma aceleração do ritmo da história, cuja velocidade, que progredia em proporções aritméticas, passou a se desenvolver em proporções geométricas. Já se disse, aliás, que o século XXI se caracteriza pela velocidade, em todos os campos, com incontestáveis reflexos no direito (2013, p. 22-23).

    E nesse ponto é preciso relembrar que quando da promulgação do Código

    Civil de 2002, ocasião em que foi introduzido no sistema legal brasileiro a Teoria da

    Empresa, já vigorava relativa carga principiológica aplicável à compreensão de

    inúmeros institutos relacionados diretamente com a atividade empresarial, tendo em

    vista os princípios inseridos no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição da

    República Federativa do Brasil, datada de 1988, mormente em relação à ordem

    econômica (cujo principal personagem, como será visto, é justamente a empresa).

    O efeito imediato foi que “a partir das conquistas decorrentes da Constituição

    Federal de 1988, no Direito como um todo, aparece uma necessidade de adequar a

    ordem jurídica a uma noção principiológica” (OPUSZKA, 2009, p. 135). Justapondo

    essa realidade ao PL 1.572 e ao PLS 487, Newton de Lucca ressalva que um possível

    novo regime normativo da empresa e que reconheça a importância dos princípios

    mostra-se indispensável (2015, p. 66).

    Com base nesse raciocínio, Fábio Ulhoa Coelho expõe que os Projetos de Lei

    em apreço, cujos conteúdos deflagram a tentativa de regular com mais diligência a

    empresa, teriam suas motivações naquilo que o autor convencionou chamar de

    “resgate de valores esgarçados”, pois no constante embate entre preceitos extraídos

    dos mais diversos ramos jurídicos, tais como, direito ambiental, tributário, civil,

    trabalhista, consumidor, entre outros, os quais, invariavelmente, entrelaçam-se no

    contexto da empresa, não são raras as situações em que os valores oriundos de

    outras searas jurídicas acabam se sobrepondo àqueles que poderiam (e deveriam)

  • 27

    cuidar de forma mais adequada da empresa, o que resulta em derrotas diuturnas

    enfrentadas pelos interesses da empresa (COELHO, 2011, p. 7).

    Por isso, a possibilidade de um novo marco legislativo para a regulação da

    empresa sistematizado a partir de princípios serviria ao propósito de:

    [...] criar não somente um significativo momento de profunda reflexão da comunidade jurídica sobre os valores nele encetados, como também proporcionaria a renovação da produção doutrinária e jurisprudencial, com a superação de muitos conceitos velhos e anacrônicos e arejamento dos que ainda têm operacionalidade (COELHO, 2011, p. 8).

    Além dos Projetos de Lei em análise admitirem a legitimação expressa no que

    tange à aplicabilidade de princípios à tutela da empresa17, também demonstram certo

    cuidado na redação ao tratarem da empresa desvinculada da figura do empresário

    (superando, neste aspecto, o texto vigente no Código Civil).

    Em que pese ainda persistir um ranço legislativo pela busca de um conceito

    jurídico de empresa, há que se visualizar nos aludidos Projetos de Lei a preocupação

    em se construir uma noção de empresa propriamente dita, como atividade em si, e

    desassociada da figura do empresário 18.

    Cássio Cavalli adverte que os Projetos, ao fixarem como fundamento central

    a compreensão de empresa, acabam impondo “como tarefa primeira ao intérprete

    perscrutar o quanto se entende por empresa”, em abandono ao eixo subjetivo do atual

    Código Civil (2015, p. 87).

    Ao comentar a viabilidade das propostas de reformulação legislativa por meio

    dos mencionados Projetos de Lei, Fábio Ulhoa Coelho lembra que eles possuem

    opositores, sobretudo daqueles que “têm visões diferentes da do projetista

    relativamente à maneira mais apropriada de o direito brasileiro dispor sobre a matéria

    empresarial” (2015, p. 253).

    Porém, em que pese existirem diversas críticas em relação aos mencionados

    Projetos de Lei, eles possuem pertinência naquilo que é possível considerar como

    17 A exemplo do artigo 4º do PL 1572/2011 que prevê: “São princípios gerais informadores das disposições deste Código: I – Liberdade de iniciativa; II – Liberdade de competição; e III – Função social da empresa” (BRASIL, 2011). Da mesma forma o artigo 4º da PLS 487/2013 ao estipular que “São normas do direito comercial: I – os princípios e regras da Constituição Federal aplicáveis; [...] III – os princípios expressamente enunciados neste Código ou na lei comercial” (BRASIL, 2013). 18 Nesse sentido estão os textos dos artigos 2º de ambos os projetos, PL 1572/2011 e PLS 487/2013, os quais são idênticos ao determinarem que “Empresa é a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços” (BRASIL, 2011) (BRASIL, 2013).

  • 28

    uma tentativa de “modernização e racionalização da legislação empresarial”

    (BARBARESCO, 2017, p. 246).

    Por esse motivo, dada o tratamento da empresa pela via principiológica, isto

    é, com aporte em princípios diretamente relacionados com o direito de empresa, tecer

    alguns comentários, ainda que em caráter informativo, sobre os Projetos de Lei,

    coaduna-se com o objetivo geral do presente trabalho19.

    Cabe observar que os Projetos têm por fundamento tanto a adequação teórica

    desses princípios (garantindo que eles se amoldem à atual realidade empresarial)

    quanto a pertinência do ponto de vista prático, permitindo que a empresa

    juridicamente considerada não esteja em desalinho com a empresa concreta (TIMM,

    2013, p. 89-91).

    Na opinião de Ives Gandra da Silva Martins e Fábio Ulhoa Coelho, um novel

    código tem sua relevância na afirmação de valores que giram em torno da economia,

    dos anseios da sociedade e em conformação ao texto constitucional, deixando claro,

    portanto, a possibilidade de adoção de princípios na tutela da empresa (2016).

    Para manter uma coerência com o problema de pesquisa proposto, que é o

    de afastar o direito de empresa do panorama estritamente conceitual, aproximando-o

    de uma leitura principiológica, a justificativa dos Projetos de Lei em andamento estaria

    na tentativa de instrumentalização e efetivação de princípios relacionadas ao direito

    de empresa.

    De modo geral, pode-se afirmar que, mantidos à parte eventuais avanços ou

    retrocessos na elaboração e (provável) promulgação de mais um código, tais Projetos

    de Lei caminham ao encontro da linha mestra do presente trabalho: fomentar a

    discussão sobre o trato jurídico da empresa a partir dos princípios a ela aplicados, em

    especial o da preservação.

    19 Que é justamente o de avaliar uma tutela mais efetiva da empresa pela perspectiva dos princípios a ela aplicados.

  • 29

    2.4 ENTRE A TEORIA JURÍDICA E O FENÔMENO SOCIOECONÔMICO: A ATIVIDADE EMPRESARIAL

    Diante do desenvolvimento natural das relações comerciais, a empresa surge

    como uma realidade exponencial do ponto de vista tanto econômico quanto social,

    cabendo ao direito, de alguma forma, regular esse fenômeno.

    No contexto brasileiro, a principal referência normativa quando se fala em

    tutela do direito de empresa, está no Código Civil de 2002 que, inspirado pela Teoria

    da Empresa (de origem italiana), ancorou-se em uma vertente conceitual com a

    definição dos elementos identificadores daquele que vive e desenvolve a empresa, ou

    seja, o empresário20.

    Portanto, da concepção de empresário, como o sujeito responsável pela

    organização dos fatores de produção destinados à circulação de bens ou serviços, é

    que se extrai a noção jurídica de empresa21. A forma encontrada pelo legislador, ao

    tentar elaborar normas que dessem conta da empresa, foi por meio de uma definição

    legal, utilizando-se do viés subjetivo com a figura do empresário, tal como se observa

    dos já apontados artigos 2.082 do Código Civil italiano e 966 do Código Civil brasileiro.

    Noutra ponta, das diversas leituras doutrinárias sobre o tema, a maioria das

    tentativas de se atribuir à empresa um conceito jurídico desaguam na enfadonha

    repetição de ideias como as de organização, profissionalidade, economicidade (capital

    e lucro) e trabalho, todos elementos dirigidos pelo empresário.

    Essa postura encontrada pelo direito, em posicionar o trato jurídico da

    empresa dentro de um plano estritamente conceitual, deflagra uma espécie de

    limitação à tutela da empresa, sobretudo porque, ao fincar a noção de empresa em

    um caráter eminentemente subjetivo, atrelado ao conteúdo de empresário, o direito

    esbarra em incompletude por obliterar que o fenômeno empresa deveria, na verdade,

    ser tratado “não apenas como um fato qualificador de um sujeito, mas como um

    complexo de direitos e deveres” (NICOLÒ, 2011, p. 159). Mormente diante da falta de

    elementos que marcam o entendimento mais atual de atividade, de organização como

    20 Compreendido como o titular da empresa, podendo ser individual, pessoa física, ou coletivo, sociedade (ALMEIDA, 2010, p. 81). 21 Rodrigo Xavier Leonardo, ao comentar o artigo 966 do Código Civil de 2002, entende que “tal como no Código Civil Italiano, o dispositivo não define o que vem a ser empresa. Esta definição, porém, pode ser facilmente alcançada por um raciocínio elíptico a partir da noção de empreendedor”, aqui mencionado como sinônimo de empresário (2004, p. 228).

  • 30

    um tipo institucional, com o uso de todas as formas úteis “para descrever o fenômeno

    por vários ângulos de possível observação” (NICOLÒ, 2011, p. 167).

    Ao falar em contornos do conceito jurídico da empresa, busca-se demonstrar

    que o direito acabou relativizando a real importância e volatizando a efetiva tutela da

    empresa, sobretudo no contexto das finalidades e princípios constitucionais que são

    por ela realizados, já que um conceito legal de empresa “quase nada serviria ao

    homem de negócios e mesmo ao jurista que enxergasse além da janela de seu

    gabinete” (FORGIONI, 2016, p. 91).

    Daí porque, o direito de empresa precisa ir muito além da organização de

    fatores de produção comandados pelo empresário para atingir o patamar institucional

    (ou fenomenológico) atrelado à noção de atividade (ARAUJO, 2008, p. 23). Com isso,

    o eixo central da tutela da empresa seria o de atividade, que serviria a melhor

    adequação jurídica no intuito de que “antes mesmo de se chegar à essência da

    definição de empresário” se atinja o “conceito de atividade empresarial” (FAGUNDES,

    2003, p. 255).

    Sergio Marcos Carvalho de Ávila Negri escreve que:

    A desvinculação do fenômeno empresarial da referência subjetiva do titular abstrato depende do reconhecimento do valor unitário e autônomo da atividade enquanto categoria jurídica. Para tanto, mostra-se necessária a superação do modelo que a retrata de forma fragmentada, com a adoção de uma nova perspectiva que seja capaz de descrevê-la ressaltando o seu aspecto funcional. Com efeito, quando a noção de atividade é conduzida, enquanto categoria unitária, ao núcleo do processo de descrição da empresa, procura-se conferir destaque a ideia de que, ao contrário da simples soma de atos, trata-se de um conjunto que se mostra organizado em função de determinado resultado. A principal característica da atividade como modelo de sistematização da disciplina da empresa está nesse aspecto funcional, o qual permite uma consideração jurídica global que transcende a análise pontual de cada ato ou negócio (2017, p. 61)22.

    O relevo da empresa sob esse prisma encontra justificativa no fato de que ela

    nasce justamente com o início da atividade, ao passo em que desparecendo a

    atividade igualmente não há mais que se falar em empresa (REQUIÃO, 2000, p. 59).

    Tal entendimento possui respaldo nas muitas situações em que a empresa se

    22 O referido autor complementa seu posicionamento dizendo que “no lugar de se construir um modelo de ação em função de um centro subjetivo, seria preciso conceber o sujeito abstrato em função da atividade” (NEGRI, 2017, p. 62).

  • 31

    transforma em um “centro de imputação de direitos, deveres e obrigações,

    independentemente do empresário” (FORGIONI, 2016, p. 91).

    Arnoldo Wald sustenta que a empresa como atividade atinge condição de

    entidade social (2005, p. 6). A empresa não apenas “é”, ela “age”, “atua”, não tem

    limitação em uma ideia internalizada, considerada nela própria. A empresa se dá por

    intermédio de transações, em uma realidade que não se resume a bens de produção23

    ou a atitudes do empresário, mas sim a um feixe de relações pelas quais “a empresa

    cristaliza-se em sua atividade de interagir” (FORGIONI, 2016, p. 94).

    Nesse sentido, aliás, a noção de empresa como atividade se aproxima da

    própria estrutura das relações contratuais, como complexo de deveres, direitos,

    interesses e obrigações capazes de retratarem um organismo social. Assim como as

    relações jurídicas contratuais são compreendidas como “totalidade, realmente

    orgânica”, considerando os inúmeros vínculos “como uma ordem de cooperação,

    formadora de uma unidade que não se esgota na soma dos elementos que a

    compõem” a empresa também o é (COUTO E SILVA, 2006, p. 19).

    Afinal, a empresa é fonte dos mais variados tipos de contratos, já que “é

    preciso adquirir insumos, distribuir produtos, associar-se para viabilizar o

    desenvolvimento de novas tecnologias, a abertura de mercados”, de forma que seu

    desenvolvimento “exige que se estabeleçam relações com terceiros” (FORGIONI,

    2016, p. 94).

    Pensando a empresa como atividade24, a partir de uma visão mais concreta e

    fenomênica com nítida finalidade social, sua análise adquire sentido “diverso do que

    assumiria se se tratasse de pura soma de suas partes, de um compósito de direitos,

    deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções” sem qualquer relação com os

    desdobramentos que produz e os interesses que realiza no contexto em que inserida

    (COUTO E SILVA, 2006, p. 20).

    23 Bens de produção, também denominados de “capital instrumental, são os que se aplicam na produção de outros bens ou rendas, como as ferramentas, máquinas, fábricas, estradas de ferro, docas, navios, matérias-primas, a terra, imóveis não destinados à moradia do proprietário mas à produção de rendas. Estes bens não são consumidos, são utilizados para a geração de outros ou de rendas” (SILVA, 2005, p. 813). 24 Ao se admitir a concepção de empresa como atividade, e associando à de obrigação como processo - essa última admitida com suporte teórico na obra de Clóvis V. do Couto e Silva -, a ideia é a de que tanto o contrato como a empresa devem ser tutelados pelo direito “como um todo”, incluindo as finalidades a que se propõem, em uma complexidade de fatores que ultrapassa quaisquer visões reducionistas que tenham por objeto apenas uma (ou algumas) de suas vertentes (2006, p. 19).

  • 32

    E nesse paralelo entre a empresa como atividade, que se destina à um fim

    social, e os contratos Judith Martins-Costa expõe que:

    Em relação à livre iniciativa econômica a liberdade de contratar é instrumental, isto é, para assegurar o exercício de atividade econômica, garantem-se os meios necessários àquele exercício. Como todo meio, a liberdade de contratar não existe “em si”, mas “para algo”, isto é, está permanentemente polarizada e conformada para os fins a que se destina. (2005, p. 45).

    Se da mesma maneira que nos contratos25 “o conjunto não fosse algo de

    ‘orgânico’, diverso dos elementos ou das partes que o formam” de modo que a falta

    de uma dessas partes pudesse alterar sua estrutura, mas não o vínculo em si, o

    mesmo pode-se dizer da empresa como atividade, pois ainda que ausente o

    empresário, a empresa, em si, não despareceria (COUTO E SILVA, 2006, p. 20). Esse

    entendimento, para fins de discutir a tutela efetiva do direito de empresa, revela-se

    muito mais apropriado.

    Nesse contexto, ganham destaque as lições de Tullio Ascarelli, para quem a

    empresa não deve restringir-se a uma derivação do conceito de empresário (e aqui

    reside a crítica pontual ao inequívoco limite da noção jurídica de empresa vigente no

    ordenamento jurídico brasileiro), já que é:

    [...] a natureza (e o exercício) da atividade a que qualifica ao empresário (e não, pelo contrário, a condição do sujeito a que depois qualifica a atividade) e nesta prioridade da atividade exercida aos fins da qualificação do sujeito pode ficar de relevo a persistência de um elemento objetivo, como critério de aplicabilidade da disciplina especial ditada precisamente para a atividade [...] (2007, p. 178).

    O enfoque dado por Tullio Ascarelli, a partir da noção de atividade

    empresarial, não elimina elementos como a organização, a profissionalidade, a

    25 Incluem-se aqui as relações contratuais firmadas pela própria dinâmica da empresa, uma vez que, como bem defende Paula A. Forgioni, a visão da empresa que desconsidere o feixe de contratos que dela deriva seria limitada por não atribuir “o devido destaque ao indispensável perfil contratual do ente produtivo e muito menos ao fato de que a empresa somente existe porque inserida no mercado” (2016, p. 96). Isso significa que a “empresa deve produzir para uma coletividade, disposta ou que já se encontre inserida no contexto do mercado” (MARCATO, 2008, p. 81).

  • 33

    economicidade e, por óbvio, a própria figura do empresário26. Mas vai além e atribui à

    empresa uma importância social ao afirmar que:

    O art. 2.082 não se refere simplesmente – já notamos – à uma atividade e à uma atividade autônoma, mas à uma atividade econômica, dirigida à produção ou à troca de bens ou serviços, organizada, exercida profissionalmente. Ao fazer recurso aos mencionados termos, o Código os considera na sua corrente valoração social [...] (ASCARELLI, 2003, p. 203).

    E conclui que “atividade não significa ato, a não ser uma série de atos”, os

    quais devem ser “coordenáveis entre si para uma finalidade comum”27, com propósito

    não só econômico, fruto da produção ou distribuição de bens e serviços, mas também

    com vistas a atender os anseios e necessidades do meio social no qual a empresa se

    encontra (ASCARELLI, 2007, p. 179)28.

    Para Mario Ghidini, a tutela da empresa, a partir da percepção de atividade

    confere o propósito duplo de sustentá-la e ajudá-la em seu crescimento, em sua

    expansão, para o fim de dirigi-la em harmonia com o interesse geral (1950, p. 18,

    tradução nossa)29. Essa concepção de empresa exige uma “mensuração concreta das

    implicações socioeconômicas da atividade empresarial” que não pode se manter

    alheia à “magnitude do interesse público em jogo” (OLIVEIRA, 2007, p. 116).

    Diante disso, a tutela da empresa a partir da noção de atividade, é apta a

    considerar os efeitos que ela produz em uma conjuntura de natureza coletiva, ou,

    como já destacado, em meio a uma totalidade orgânica. A atividade reflete seu

    propósito por intermédio de um pensamento que vê na empresa o interesse mediador

    entre o público e o privado (ASCARELLI, 1955, p. 96, tradução nossa)30.

    26 Quando admite que se trata da primeira característica definida no artigo 2.082 “como aquele que exerce a atividade” e, em seguida, destacando as demais características da atividade qualificada como econômica, organizada, com o fim de produção ou intercâmbio de bens e serviços, de forma profissional pelo empresário. Por fim, ao mencionar que o conceito de empresário invariavelmente “vincula-se com a importância geral assumida pela atividade” (ASCARELLI, 2007, p. 178-179). 27 De igual forma acontece na obrigação como processo com “as várias fases que surgem no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência” (COUTO E SILVA, 2006, p. 20). 28 A empresa, portanto, seria a própria atividade empresarial, ou seja, a força do movimento rotacional que implica a atividade empresarial dirigida a um fim (OLIVEIRA, 2003, p. 16). 29 “Il legislatore ha disciplinato l’impresa (l’attività dell’impreditore) in vista di uno scopo pratico duplice. I) Da un lato allo scopo di sostenerla e aiutarla nel suo sorgere e nella sua espansione; II) Dall’altro lato allo scopo di indirizzarne l’attività in armonia con l’interesse generale”. 30 “[...] una generale concezione funzionale che ravvisa in quello dell'impresa un interesse quasi intermedio tra il pubblico e il privato”.

  • 34

    Entender a empresa como atividade de valor social encontra arrimo na própria

    realidade jurídica, naquilo que Miguel Reale define “fato ou fenômeno social” na

    medida em que “não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela”,

    sendo uma das principais características do direito dar conta dessa realidade jurídica

    na medida da sua “sociabilidade, a sua qualidade de ser social” (2004, p. 2)31.

    Para Gustavo Tepedino, “compreender o direito como um fenômeno social

    significa vê-lo como fruto da interação do dado normativo com as demandas sociais”

    (2012, p. 17). Essa é umas das principais razões pelas quais a noção de empresa

    precisa ultrapassar a abstração teórica (OLIVEIRA, 2006, p. 1).

    Com base nisso, a empresa, como atividade, permite ao direito orientar sua

    carga normativa à salvaguarda de todos os desdobramentos e efeitos jurídicos que

    ela provoca, cuja abrangência vai além dos elementos (subjetivos ou objetivos) que a

    integram.

    Por certo que a empresa, mesmo na posição de atividade, não deixa de ser

    uma exploração econômica organizada pelo empresário. Mas como dinamismo de

    criação, distribuição e circulação de riquezas direcionado à realização de finalidades

    sociais, a empresa passa a ser compreendida em um patamar muito mais amplo32.

    Nesse sentido, aliás, Waldirio Bulgarelli explica que “da atividade exercida

    efetivamente, e considerada de fato, resulta a irrelevância da vontade do sujeito, não

    só em relação às consequências legais, mas também no que tange a sua

    subsistência” (1997, p. 119).

    Entender a empresa como atividade de inequívoco interesse social torna

    possível perfilar o papel do direito e verificar se o tratamento por ele dispensado tem

    se preocupado em garantir a continuidade ou apenas fragilizado ainda mais a

    existência da empresa (DANTAS, 1998, p. 35-36)33.

    Para Rachel Sztajn, há notório descompasso entre o desejável e o positivado,

    mormente quando confrontados os objetivos da ordem econômica constitucional e a

    31 Oportuno reforçar que a empresa se revela no plano da atividade justamente porque se desenvolve como realidade sócio jurídica (REALE, 2004, p. 2). Sob esse prisma é que o direito deve cuidar da empresa, já que o direito “é um nível da realidade social” (GRAU, 2017, p. 160). 32 Nesse sentido, por exemplo, Ana Barbara Costa Teixeira defende que “na realidade econômico-social, a Empresa é uma instituição, um relevante agente social” (2010, p. 165). 33 Considerando que no contexto da ordem econômica constitucional o ordenamento jurídico brasileiro atribuiu à empresa o papel de protagonista na realização de inúmeros interesses econômicos e sociais (como se verá no decorrer deste trabalho), tal circunstância impactou sobremaneira na própria manutenção da dinâmica empresarial, o que justifica um trato mais cuidadoso pelo direito (OLIVEIRA; GONÇALVES, 2017, p. 31).

  • 35

    concepção de empresa extraída do Código Civil. Na visão da autora, o engessamento

    da esfera privada que impregna a noção de empresa no ambiente civilista vai em

    direção oposta a certos princípios constitucionais, de modo, inclusive, a diminuir a

    utilidade social desempenhada pela atividade empresarial (2005, p. 74).

    Daí porque conceber a empresa como atividade com aporte de inequívoco

    interesse social é a que melhor atende a proposta do presente trabalho, justamente

    porque justifica a perspectiva de uma salvaguarda da empresa a partir da invocação

    de princípios, o que permite deflagrar a pertinência do estudo da preservação atrelada

    à funcionalidade por meio de um ajuste valorativo afora dos anseios da própria

    empresa para englobar outros tantos interesses que se realizam ao redor de sua

    existência (BULGARELLI, 1997, p. 32-41).

    E, nesse sentido, Marçal Justen Filho expõe que:

    A expressão empresa não se refere a conceito meramente pensado, cuja existência se põe no plano das ideias. O vocábulo empresa é utilizado para indicar fenômeno nascido, desenvolvido e existente no plano da convivência social (objeto cultural). Não se trata de objetos naturais ou ideais. Sua existência é produzida pela atividade humana, como instrumento da realização de certos valores (1998, p. 112).

    Cuidar da empresa, tendo como fundamento o fato dela ser atividade exercida

    para uma finalidade social, para satisfazer necessidades outras que não apenas

    aquelas limitadas à produção de bens ou serviços, é dizer que a tutela da empresa

    não deve ser confundida com a tutela do sujeito que a exerce, nem com a do complexo

    de bens por meio dos quais ela é praticada, fatores que representam realidades

    distintas (TOMAZETE, 2014, p. 39-41).

    No esteio interpretativo que se busca consolidar no presente trabalho, em

    superação a uma visão estanque e segmentada da empresa pela via conceitual, ela

    passa a ser compreendida como atividade a partir da confluência entre a realidade

    social e o ordenamento jurídico, por representar “a um só tempo, resultado e

    justificativa da tutela das relações empresariais” (SCHREIBER; KONDER, 2016, p.

    21).

    Por esse ângulo, novamente ganha destaque a ideia de atividade

    desenvolvida sob o manto da utilidade social tal como defendida por Tullio Ascarelli

  • 36

    (1955, p. 97)34. O entendimento do mencionado autor vai ao encontro da espinha

    dorsal dessa pesquisa, ou seja, a tutela efetiva do direito de empresa a partir da

    normatividade por princípios e, com isso, o viés hermenêutico com enfoque na

    preservação da atividade, prescinde a compreensão de empresa que ultrapasse a

    versão puramente conceitual dada pelo direito35, a exemplo do que ocorre no Código

    Civil.

    Ao se verificar que a passagem do fenômeno socioeconômico da empresa

    para o plano do direito ensejou uma série de discussões acerca de sua definição

    jurídica, a ponto de Fábio Konder Comparato afirmar que “o labor intelectual do jurista

    tem-se limitado, pouco mais ou menos, à tradicional discussão de conceitos, visando

    a encaixar o fenômeno da empresa no mundo fechado de suas categorias” (1995, p.

    4), vê-se que a empresa deve ultrapassar esse “mundo fechado” do conceito,

    alcançando o mundo real, onde se realiza e produz efeitos, de maneira a justificar o

    tratamento como atividade, capaz de lhe permitir uma leitura principiológica36.

    Por esse viés, a empresa:

    [...] relaciona-se com vários campos do conhecimento: Economia, Política, Direito. Dentro do Direito, por sua vez, interage com o Direito Empresarial, com o Direito do Consumidor, o Direito Tributário, o Direito Trabalhista e o Direito Económico. Não é possível mais se pensar numa atividade tão abrangente sem essa perspectiva plural. As abordagens unidisciplinares revelam-se inadequadas e incapazes de responderem às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa (MELO, 2005, p. 288).

    Considerando a importância dos efeitos produzidos pela empresa e das

    relações derivadas do seu exercício como atividade, a discussão prosseguirá no

    estudo de alguns dos princípios abrigados pela Constituição Federal de 1988, sendo

    eles relevantes para a organização e exploração da empresa.

    O intuito é demonstrar como a partir desses princípios pode-se chegar à tutela

    da empresa direcionada para sua preservação.

    34 Para Tullio Ascarelli a empresa “non può svolgersi in contrasto con l’utilità sociale” (1955, p. 97). 35 De forma análoga Maria Helena Diniz destaca a dificuldade de se conceituar o próprio direito “devido a impossibilidade de se conseguir um conceito universalmente aceito, que abranja de modo satisfatório toda a gama de elementos heterogêneos” que necessariamente o compõem (2012, p. 19). 36 Daí porque inicialmente foram delineados os contornos do conceito jurídico de empresa com a intenção de deflagrar os possíveis limites da tutela do direito, fruto de um descompasso entre a rigidez formal e a amplitude e a complexidade dinâmicas da empresa.

  • 37

    3 O PROTAGONISMO DA EMPRESA NO ÂMBITO DA ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL

    Ao tratar das dificuldades enfrentadas pelo direito na busca por um conceito

    jurídico de empresa, sobretudo pela tentativa de enquadrá-la em suas categorias

    rígidas37, pretende-se apontar a existência de uma possível limitação no tocante à

    adequada (e efetiva) tutela da empresa. Essa limitação se revela ainda mais delineada

    sob o espectro dos princípios constitucionais aplicáveis ao direito de empresa e, em

    razão disso, o protagonismo que ela alcança no plano da realização dos interesses

    associados à ordem econômica constitucional.

    Por essa razão, considerar a empresa a partir de sua essência como atividade

    é propor sua análise a partir dos vários interesses que ela concretiza, os quais vão

    muito além daqueles relacionados à feição estritamente subjetiva, atrelados à figura

    do empresário, ou dos elementos puramente econômicos, identificados pelos fatores

    organizados a produção e circulação de riquezas e a obtenção de lucro.

    Para um tratamento mais concreto da empresa no vasto campo do direito, é

    preciso que ela seja avaliada desde sua dinâmica, sua multiplicidade de

    desdobramentos e sua significativa relevância socioeconômica, em um exercício de

    afinação entre o panorama constitucional e o próprio desenvolvimento da atividade

    empresarial. Tal perspectiva possibilita a abordagem da empresa a partir de uma

    normatividade por princípios.

    A pertinência de conduzir o estudo nesse sentido está nas orientações

    firmadas pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a regulação

    da chamada ordem econômica e financeira, pela qual foram inseridos no ordenamento

    jurídico brasileiro princípios gerais que regem a atividade econômica.

    De modo geral, trouxe a Constituição Federal uma série de princípios que

    passaram a permear a concepção de empresa (como atividade que, por natureza, é

    econômica), cujo desempenho, como já mencionado, deixou de se importar apenas

    com a produção e circulação de serviços ou produtos destinados a atender as

    37 Ana Bárbara Costa Teixeira destaca que a dificuldade do Direito em enquadrar a empresa em suas rígidas categorias muito advém da própria complexidade que a empresa representa, sobretudo diante dos inúmeros atos e efeitos que reflete em diferentes searas jurídicas, como, por exemplo, nas relações patrimoniais, trabalhistas, consumeristas, relações com outras empresas e com a própria sociedade (2010, p. 164).

  • 38

    necessidades do mercado38, para assumir inúmeras outras finalidades de cunho

    eminentemente social, tais como valorização do trabalho humano, existência

    digna, justiça social, defesa do