Cev Rio Relatorio Final

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    Comissão da Verdade do RioRelatório

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    Comissão da Verdade do RioRelatório

     Álvaro Machado CaldasEny Raimundo Moreira 

    Geraldo Cândido da Silva João Ricardo Wanderley Dornelles

    Rosa Maria Cardoso da Cunha  Vera Ligia Huebra Neto Saavedra Durão

    dezembro | 2015

    © 2015 Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio)Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada afonte.

    COMISSÃO DA VERDADE DO RIO

     Álvaro Machado CaldasEny Raimundo MoreiraGeraldo Cândido da SilvaJoão Ricardo Wanderley DornellesRosa Maria Cardoso da Cunha Vera Ligia Huebra Neto Saavedra Durão

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 

    R585r

    Rio de Janeiro (Estado). Comissão da Verdade do Rio.

    Relatório / Comissão da Verdade do Rio. –  Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015.456 p.

    ISBN 978-85-67728-02-5

    1. Ditadura militar –  Rio de Janeiro 2. Violação de direitos humanos. 3. Relatório final.Título.

    CDD 323.81044

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    AGRADECIMENTOS Ao longo de suas atividades, de maio de 2013 até dezembro de 2015,

    a Comissão da Verdade do Rio contou com a colaboração de diver-sas instituições, grupos e indivíduos que auxiliaram e contribuíramna busca pela verdade. Agradecemos em especial aos atingidos pelaviolência de estado; familiares de mortos e desaparecidos; coletivose comitês populares por memória, verdade e justiça; instituições dedefesa e promoção de direitos humanos; sindicatos; universidades;escolas; Comissão Nacional da Verdade; comissões estaduais, muni-cipais e setoriais da verdade; arquivos públicos; instituições legisla-tivas, executivas e judiciárias. À Ordem dos Advogados do Brasil eà Caixa de Assistência do Advogado do Rio de Janeiro agradecemospelo apoio e pela estrutura fundamentais para o funcionamento daComissão. A CEV-Rio reconhece que as parcerias rmadas foramimprescindíveis tanto para alcançar os resultados apresentadosneste relatório, quanto para a promoção de um processo p articipati-vo, transparente e democrático no curso de seus trabalhos.

    COMISSÃO DA VERDADE DO RIO

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    EXPEDIENTE

    Por designação do governo estadual, a Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) foi integrada por sete membros.Da posse, em 8 de maio de 2013, até a apresentação deste Relatório Final, em 10 de dezembro de 2015, perma-neceram Álvaro Machado Caldas; Eny Raimundo Moreira; Geraldo Cândido da Silva e João Ricardo WanderleyDornelles. Designados para a composição inicial, mas desligados antes da conclusão dos trabalhos, os membros

    Marcello Augusto Diniz Cerqueira (exonerado em 8 de julho de 2014), Wadih Nemer Damous Filho (renunciouem 15 de maio de 2015) e Nadine Monteiro Borges (se desligou em 5 de agosto de 2015). Rosa Maria Cardosoda Cunha e Vera Ligia Huebra Neto Saavedra Durão assumiram, respectivamente, em 2 de junho de 2015 e 7de agosto de 2015, tendo permanecido até o nal. Sob a coordenação de seus membros titulares, os trabalhos daCEV-Rio foram desenvolvidos por um grupo de assessores e pesquisadores, constituído por servidores públicosnomeados para a Comissão ou cedidos de outros órgãos da administração pública. Também integraram a equi-pe pesquisadores contemplados pelo edital nº38/2013 do Programa “Apoio ao estudo de temas relacionados aodireito à memória, à verdade e à justiça relativas a violações de direitos humanos no período de 1946 a 1988”,da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), e pesquisa-dores colaboradores que ampliaram o escopo das pesquisas desenvolvidas. A todos eles, a CEV-Rio expressao reconhecimento pelo apoio dispensado. Fundamental também para o resultado dos trabalhos desenvolvidosfoi a colaboração das comissões da verdade municipais e setoriais instaladas por todo o Estado, com as quais aCEV-Rio celebrou acordos de cooperação técnica. A equipe da CEV-Rio encontra-se listada a seguir:

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    Coordenadores das pesquisas FAPERJ:  Angela Moreira; Daniela Silva Fontoura de Barcellos; JoséMaría Gómez; Leonilde Servolo de Medeiros; Marcos Luiz Bretas; Ozanan Vicente Carrara; Vanessa Oli-veira Batista Berner

    Pesquisadores FAPERJ:  Abner Sótenos; Adriana de Jesus Garcia Pinto; Adriana Ramos Costa; Ale- jandra Luisa Magalhães Estevez; Alexandre Bernardino Costa; Alexandre Miguel França; Aline BorghoffMaia; Aline Melo; Alline Schllarlcher; Américo Freire; Ana Carolina Antão; Ana Carolina Reginatto; AnaClaudia Diogo Tavares; Ana Lectícia Félix Angelotti; Ana Lima Kallás; Ana Luiza Ramos; Ana Maria Costa; Annagesse Feitosa; Ana Paula Poll; Ana Vasconcelos Ottoni; André Rocha Carneiro; Andrea Salameia Bru-xel; Andrea Schettini; Andrea Streva; Angelo Eduardo Duarte de Oliveira; Antonio Sidekum; Ayra GuedesGarrido; Beatriz Rodrigues Neves da Costa; Bernardo de Paola Bortolotti Faria; Bethânia Assy; Bianca Ca-

    sais Machado Guimarães; Carolina Arieira Rosas; Carolina Genovez Parreira; Carolina Gonçalves Alves;Caroline Proner; Christiane Itabaiana Martins Romêo; Daniel Chedier Maurell; Delma Pessanha Neves;Diana Stephan; Dulce Pandol; Edgard Bedê; Eduardo Neville Raposo Gameiro Torres; Eleonora MesquitaCeia; Elisandra Galvão; Elizabeth Linhares; Ellen Mendonça; Erick Sobral Diniz; Fábio Malini de Lima;Fabrício Teló; Fernanda Cerny Lucas Corrêa; Fernanda F. Pradal; Fernanda Raquel Abreu Silva; FernandoFilipo Vinciguerra Leite da Silva; Gabriel Bastos; Gabriel Bernardo Corrêa; Gabriela Naves Freitas; Gus-tavo das Neves Bezerra; Iby Montenegro de Silva; Isabella Maio; Jean Sales Rodrigues; Jéssica Moreira;Jorge Luis Rocha; José Luiz Niemeyer dos Santos Filho; Juliana Neuenschwander Magalhães; KatiússiaFreire Rodrigues; Larissa da Veiga Martins; Lucas de Abreu Gava; Lenilson Naveira; Letícia Ferreira;Lígia Nonato dos Santos; Lior Zalis; Lorena Lucas Regattieri; Lucas Teixeira Petitdemange; Lúcia Mariade Assis; Luciana Boiteux; Luciana Gomes; Luciana Heymann; Luciana Lombardo; Luiz Edmundo Mora-es; Lusmarina Campos Garcia; Manuel Eugenio Gándara Carballido; Marco Antonio dos Santos Teixeira;Marco Aurélio Vannucchi; Maria Clara d e Almeida Leal; Maria Izabel Varella; Maria Paula Miller Duarte;Mariana Graciotti; Mariana Macedo Fernandes da Silva; Mariana Trotta Delalanna Quintans; Marilda Vilela Iamamoto; Mariana Caldas Pinto Ferreira; Marina do Rosário Silva; Miriam Pires; Natacha Nicaise;

    Natália Fonseca Lopes; Natália Guindani; Natasha Gomes; Ninna de Araújo Carneiro Lima; Patrícia Su-nah; Paulo Fontes; Priscila Cabral Almeida; Rafael José Abreu de Lima; Rafaela Domingos Pereira; RafaelaRupp; Raphael Jonathas de Lima; Rayanne Medeiros; Rayssa Duarte da Silva; Ricardo Azevedo; RicardoBraga; Roberta Maria Gomes; Rodrigo Penutt da Cruz; Rodrigo Torrero; Rogério Barros Sganzerla; Simo-ne Cuber Araújo Pinto; Tatiana Silva Fontoura de Barcellos; Tatiane González Barbosa; Thiago da SilvaPacheco; Vanessa Matheus Cavalcante; Verena Alberti; Vicente Arruda Câmara Rodrigues; Vinicius Silva

    Pesquisadores colaboradores: Demian Melo; James Green; João Areas; Juliana Oakim; Marco M. Pes-tana; Marcos Arruda; Pedro Henrique Pedreira Campos; Natacha Nicaise; Renan Quinalha; Thula Rafaelade Oliveira Pires

    Secretaria Executiva: Virna Virgínia Plastino

     Assessoria: Ana Carolina da Cunha Borges Antão; Ana Carolina Grangeia Cardoso; Andrea Bandeira deMello Schettini; Antonio Henrique Lago; Caroline Cunha Faria; Denise Assis; Diego Moreira Maggi; Fabiode Almeida Cascardo; Lucas Pedretti Lima; Marcelo José Cruz Auler; N atália Cindra Fonseca; Pedro Anto-nio Sarno Bomm; Vítor de Lima Guimarães

     Assessoria de Comunicação: Renata de Sequeira Sigarro

     Assessoria Administrativa: Fernanda Pires Gonçalves Lira; Marta Regina Pinto Pinheiro

    Estagiários: Ana Carolina da Silva Feliciano; Julia Araújo Ferreira da Silva; Juliano de Souza OliveiraPatiu; Rebeca Síntique Nunes da Silveira

    Estagiários Voluntários:  Ana Luiza Ramos Fernandes; Angelo Remedio Neto; Bárbara Rodrigues doEspírito Santo; Cairo de Souza Barbosa; Frederico Boghossian Torres; Isadora Libório de Andrade Oliveira;Maria Paula Gomes Werneck

    Design Gráfco: Marcelo Santos de Oliveira

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    PARTE IV

    A ESTRUTURA DO ESTADO DITATORIAL ............................................................................................................ 259

    Capítulo 17 – A CONSTRUÇÃO DA ESTRUTURA DE INFORMAÇÕES ..........................................................................................................................................260 

    Capítulo 18 - A ESTRUTURA JURÍDICA DA REPRESSÃO ...................................................................................................................................................................275 

    Capítulo 19 - LOCAIS DE PRISÃO E TORTURA ...................................................................................................................................................................................284 

    1. DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES DE INFORMAÇÕES - CENTRO DE OPERAÇÕES DE DEFESA INTERNA ( DOI -CODI  ) ......288

    2. DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL ( DOPS/GB )  ........................................................................................................................297 

    3. CASA DA MORT E DE PETR ÓPO LIS .................................................................................................................................................................................303 

    4. 1º BATALHÃO DE INFANTARIA BLINDADA DO EXÉRCITO ( BIB )  .....................................................................................................................310 

    5. 1ª COM PANH IA D E PO LÍC IA D O EX ÉRCI TO D A VILA MIL ITAR .......................................................................................................................318

    6. HOS PITA L CEN TRA L DO EXÉ RCITO ..............................................................................................................................................................................323 

    7. BAS E AÉR EA DO GAL EÃO ....................................................................................................................................................................................................328

    8. INSTITUTO PENAL CÂNDIDO MENDES ( PRESÍDIO ILHA GRANDE  )  .............................................................................................................331

    9. COMP LEXO PENI TEN CIÁ RIO FRE I CANE CA .............................................................................................................................................................335 

    10. INST ITU TO PENA L TALAVE RA BRU CE .......................................................................................................................................................................338

    11. ESTÁ DIO CAIO MART INS ..................................................................................................................................................................................................342

    12. BAS E NAVA L DA ILH A DAS FLOR ES ............................................................................................................................................................................345 

    13. DEPARTAMENTO AUTÔNOMO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - D OPS/ RJ ...................348

    14. FORTA LEZ A DE SAN TA CRU Z .........................................................................................................................................................................................350 

    15. CEN TRO DE ARM AMEN TO DA MAR INHA .................................................................................................................................................................353 

    16. NAVIOS -PRISÃO ....................................................................................................................................................................................................................356

    17. YPIR ANG A FUT EBO L CLU BE ...........................................................................................................................................................................................359 

    18. ANT IGA DEL EGA CIA DA POL ÍCIA CIV IL DE MACA É ............................................................................................................................................36119. INV ERNA DA DE OLAR IA ....................................................................................................................................................................................................363 

    20. CASA DE SÃO CONRADO...................................................................................................................................................................................................368

    21. SÍTIO NÃO-IDE NTI FIC ADO DE SÃO JOÃ O DE MERI TI .....................................................................................................................................370 

    PARTE V

    AUTORIA DAS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS ........................................................................ 375

    Capítulo 20 – AUTORES DAS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS SEGUNDO A CEV-RIO .................................................................................376

    Capítulo 21 - RELAÇÃO DE AUTORES DE GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS .....................................................................................................388

    PARTE VI

    O QUE RESTA DA DITADURA ...............................................................................................................................423

    Capítulo 22 - O LEGADO DO TRAUMA NAS GERAÇÕES QUE SE SEGUIRAM .............................................................................................................................424 

    Capítulo 23 - A REPETIÇÃO DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS .....................................................................................................................................431

    Capítulo 24 – CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES ...........................................................................................................................................................................440 

    CONC LUS ÕES ................................................................................................................................................................................................................................440 

    RECO MEND AÇÕE S ......................................................................................................................................................................................................................442

    SumárioAGRADECIMENTOS ................................................................................................................................................... 7

    EXPEDIENTE ............................................................................................................................................................... 9

    APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................................................... 15

    PARTE I

    A COMISSÃO DA VERDADE DO RIO ...................................................................................................................... 17

    Capítulo 1 - AS LUTAS SOCIAIS E OS ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA

    COMISSÃO DA VERDADE DO RIO .............. ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... .......... 19 

    Capítulo 2 - O MANDATO LEGAL E AS ATIVIDADES DA COMISSÃO DA VERDADE DO RIO .............. ............... .............. ............... ............... ............... ............. 34 

    PARTE II

    O GOLPE DE 1964 E A DITADURA ..........................................................................................................................51

    Capítulo 3 - ANTECEDENT ES E O GOLPE ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... .......... 52

    Capítulo 4 - A DITADURA COMO IMPLEMENTAÇÃO DE UM MODELO DE DESENVOLVIMENTO ............... .............. ............... ............... ............... ............... ...6 2

    PARTE III

    VIOLÊNCIA E TERROR DO ESTADO ....................................................................................................................... 75

    Capítulo 5 - CONFLITOS E REPRESSÃO NO CAMPO ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ..... 76

    Capítulo 6 - REPRESSÃO AOS TRABALHA DORES NA CIDADE ............. ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ..... 96

    Capítulo 7 - MILITARES PERSEGUIDOS ................................................................................................................................................................................................108

    Capítulo 8 - A DITADURA NAS FAVELAS CARIOCAS .........................................................................................................................................................................116

    Capítulo 9 - COLORINDO MEMÓRIAS: DITADURA MILITAR E RACISMO ...................................................................................................................................125 

    Capítulo 10 - MULHERES NA LUTA CONTRA A DITADURA: O TERROR DO ESTADO E A VIOLÊNCIA SEXUAL .............. ............... ............... ............... ...13 7 

    Capítulo 11 - HOMOSSEXUAL IDADES, REPRESSÃO E RESISTÊNCIA DURANTE A DITADURA ... ............... ............... ............... ............... ............... ............. 149 Capítulo 12 - VOZES DESPERTADAS ......................................................................................................................................................................................................160 

    Capítulo 13 - INVENTÁRIO DE CICATRIZES .........................................................................................................................................................................................168

    MÁRIO ALVES.................................................................................................................................................................................................................................170 

     JOS É ROB ERTO S PIEG NER ......................................................................................................................................................................................................177 

     JORG E LE AL G ONÇA LVES P ERE IRA ....................................................................................................................................................................................180 

    RUB ENS PAIVA ..............................................................................................................................................................................................................................183 

    MAR ILE NA V ILLA S B OAS PIN TO E MÁRI O D E SO UZA PRATA ..............................................................................................................................191

    STU ART EDG ARD ANG EL JON ES ..........................................................................................................................................................................................195 

    RAU L AMA RO NIN FERR EIRA ................................................................................................................................................................................................201

    HONESTINO MONTEIRO GUIMARÃES..............................................................................................................................................................................209 

    FER NAN DO SAN TA CRUZ E EDU ARD O COL LIE R .......................................................................................................................................................213 

    Capítulo 14 - CHACINAS ...........................................................................................................................................................................................................................216

    Capítulo 15 - ATENTADOS À BOMBA .....................................................................................................................................................................................................225 

    Capítulo 16 - MORTOS E DESAPARECIDOS ............. ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............... ............. 242

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    APRESENTAÇÃOvante pois reconta a história da barbárie e violência do passado, conectando esta violência com suas formasremanescentes.

     As Comissões da Verdade beneciam a sociedade quando funcionam com outras instituições que compõema Justiça de Transição. Isto signica que Comissões reclamam a judicialização das violações que revelam e

    exigem que suas verdades sejam rearmadas como verdade judicial. Elas fazem parte de um processo no qualse interpenetram os direitos à memória, à verdade, à justiça e à reparação. O caminho a seguir é memória everdade, mais justiça e reparação.

    No Brasil, após o golpe de 1964, demoramos 50 anos para criar Comissões da Verdade. Tivemos não somenteuma distensão gradual da ditadura pelos militares no poder, mas também uma reconstrução gradual da demo-cracia pelos que zeram a transição. As vozes das vítimas foram abafadas por um longo período para que nãodenunciassem, entre outras questões, a participação dos civis na ditadura, inclusive daqueles que conduziama transição. O silenciamento dos atingidos atrasou a luta pela verdade e, em especial, por justiça.

    Em seu funcionamento, a CEV-Rio investigou questões de natureza teórica, histórica e factual, com ênfasenas graves violações de direitos humanos, na identicação de seus autores e na exposição de seus cenários ecircunstâncias. Pôs em relevo o depoimento das vítimas e as políticas repressivas impostas a um conjunto degrupos e atores sociais. Realizou suas atividades em constante relação com as vítimas e com a sociedade civil.

     Apresenta-se aqui o resultado dos trabalhos da Comissão da Verdade do Rio, com a esperança de que este re-latório represente um passo relevante na construção do Nunca Mais.

     Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2015

     ÁLVARO MACHADO CALDAS ENY RAIMUNDO MOREIRA

    GERALDO CÂNDIDO DA SILVA JOÃO RICARDO WANDERLEY DORNELLES

     ROSA MARIA CARDOSO DA CUNHAVERA LIGIA HUEBRA NETO SAAVEDRA DURÃO

    Comissões da Verdade são instituições que garantem às vítimas de graves violações de direitos hu-manos, em grande parte crimes de lesa-humanidade, o direito de tornarem públicas as atrocidadesque sofreram e de identicarem seus algozes. Permitem que familiares de pessoas atingidas possamsaber o que ocorreu com seus entes queridos. Possibilitam à sociedade conhecer o contexto histórico eos motivos que determinaram o exercício da violência, inscrita em seu corpo social.

     A satisfação destes direitos, por si só, já constituiria legitimação suciente para a criação de mais deuma centena de Comissões da Verdade em todo o mundo, desde o início da década de 70. Mas, sobre-tudo, cabe a elas um papel político e educacional de grande valor para a democracia. Benéco não sópara os que sobreviveram aos fatos, mas especialmente para as novas gerações: o papel de reescrevera história, contada até então de forma deturpada pelos que excutaram as violações. Uma históriamentirosa e omissa, indigna de gurar nos livros e na memória de qualquer país. Dessa forma, afunção fundamental das Comissões da Verdade excede o reconhecimento de direitos individuais e co-letivos. Elas ampliam o movimento pela democratização das sociedades em que vivemos. Radicalizameste movimento pela exposição da voz e da dor das vítimas.

     A pauta do que se d esigna como Justiça de Transição, integrada por concretizações do direito à me-mória, à verdade, à reparação e à justiça, na qual se inserem as Comissões da Verdade, certamentenão assegura a completa democratização da sociedade. Mas as instituições da democracia represen-

    tativa, como é entendida no mundo ocidental, também não as asseguram. A construção - contínua einterminável - da democracia requer diferentes implementos e variadas lutas. Exige a possibilidadede participação de todos, da coexistência de diferentes propostas e partidos, da implementação de di-reitos sócioeconômicos e da garantia dos direitos dos grupos oprimidos por questões étnicas, raciais,religiosas e de gênero. Nesta construção, a atuação das Comissões da Verdade é extremamente rele-

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    PARTE IA COMISSÃO DAVERDADE DO RIO

    Foto: Bruno Marins

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    são apenas algumas das marcas da ditadura quepersistem no nosso cotidiano. Espera-se que suaspáginas possam ajudar a fortalecer as lutas políti-cas que, ainda hoje, enfrentam o legado autoritáriodo regime militar, abrindo caminho para o avançoda democracia.

    Capítulo 1 - AS LUTAS SOCIAIS E OSANTECEDENTES HISTÓRICOS DACOMISSÃO DA VERDADE DO RIO

     As lutas por memória, verdade e justiça no Riode Janeiro e no Brasil começaram muito antes dacriação da CEV-Rio. Os trabalhos da Comissão be-neciaram-se dos esforços anteriores em registrare esclarecer as violações de direitos humanos per-petradas no passado recente. Destacam-se algumasiniciativas promovidas pelas vítimas, familiares eorganizações de direitos humanos, e por instânciasdo Estado brasileiro que, após pressão de movimen-tos sociais, passaram a reconhecer torturas, assas-sinatos e desaparecimentos forçados praticados poragentes estatais.

    Da luta dos familiares às Diretas Já

     A resistência à ditadura militar teve início nos pri-meiros dias do golpe de 1964 e assumiu, ao longodos 21 anos do regime de exceção, as mais variadasformas. Contudo, foi somente a partir de meados dadécada de setenta que movimentos, grupos, associa-ções e indivíduos passaram a se organizar em tornoda luta por verdade, memória e justiça dos crimespraticados pela ditadura, objetivando esclarecer asreais circunstâncias das prisões ilegais, torturas,desaparecimentos forçados e assassinatos; apurar aresponsabilidade dos agentes estatais envolvidos naprática destes crimes; e preservar a memória desses

    fatos para que as milhares de pessoas vitimadas nãofossem esquecidas. Passados mais de 30 anos do mdo regime militar, estas lutas continuam em curso ese tornam cada vez mais necessárias para a compre-ensão da relação entre a violência do passado e a dopresente.

     A partir dos anos setenta, presos políticos, militan-tes exilados, familiares de mortos e desaparecidos,advogados, jornalistas, religiosos, intelectuais, ar-tistas, sindicalistas, estudantes, camponeses, entre

    muitos outros brasileiros e brasileiras desaaram arecusa do governo em admitir a prática de gravesviolações de direitos humanos. O cerceamento de in-formações e a difusão do medo não impediram queas famílias dos atingidos pelo terror de Estado semobilizassem para denunciar os crimes praticadoscontra seus entes queridos. Missas, cartas endere-çadas às autoridades e campanhas internacionaisforam algumas das formas de resistência exercidas,fundamentais para tornar públicas as atrocidadescometidas nos centros de prisão e tortura. Foramemblemáticas as missas realizadas na Catedral daSé, em São Paulo, organizadas em homenagem àmorte de alguns militantes, como a de Luiz Eduardo

    da Rocha Merlino em 1971, de Alexandre VanucchiLeme em 1973 e de Vladmir Herzog em 1975, quecontaram com a presença de milhares de pessoas.

    Também expressivas foram as cartas e telegramasenviados por familiares aos presidentes ditadores eàs autoridades militares, cobrando informações so-bre a morte ou o desaparecimento de algum parenteou companheiro. Um exemplo é a carta endereçadaa um general não identicado na qual Mariana La-nari, mãe de Raul Amaro Nin Ferreira, cobra expli-cações sobre a morte do lho:

     A Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) foi criadapela lei 6.335/2012 para esclarecer as graves viola-ções de direitos humanos praticadas pelo Estado, noperíodo entre 1946 e 1988, contribuindo para efeti-var o direito à memória e à verdade histórica. Iniciouseus trabalhos em 8 de março de 2013, concluindo-osem 13 de novembro de 2015. Ao longo d e dois anos eoito meses, a CEV-Rio dedicou-se ao esclarecimentode casos de prisão ilegal, tortura, morte, desapare-cimento forçado e ocultação de cadáver, ocorridos noestado do Rio de Janeiro, especialmente a partir do

    golpe de 1964, e procurou identicar as estruturas,os locais e as instituições relacionadas às s istemáti-cas violações de direitos humanos.

     A instalação da CEV-Rio representa um importan-te passo no longo caminho de produção da memóriae de construção da verdade sobre a ditadura mili-tar brasileira. Este percurso tem sido trilhado comos incansáveis esforços de ex-presos e perseguidospolíticos, de familiares de mortos e desaparecidose de uma juventude militante que tomou para si aluta por memória, verdade e justiça em nosso país. A CEV-Rio é, portanto, o resultado de lutas sociaisanteriores e de movimentos de resistência que, até

    hoje, buscam superar o legado de violência deixadopela ditadura.

    O presente relatório presta homenagem aos homense mulheres que ousaram lutar por uma sociedademais justa e igualitária e que, por conta de seus ide-ais e atuações políticas, foram perseguidos, presos,torturados e mortos pelo Estado brasileiro; que arris-caram suas vidas denunciando as torturas sofridasem dependências militares e centros clandestinos deprisão; que seguem buscando os restos mortais deseus lhos, lhas, irmãos, irmãs, sobrinhos, amigose companheiros; e que, nos últimos trinta anos, não

    mediram esforços para exigir do Estado brasileiro anecessária investigação, responsabilização e repara-ção dos crimes perpetrados no passado.

     A homenagem estende-se, também, a todas as ví-timas da ditadura esquecidas pela história ocial:os indígenas presos, torturados, mortos e expulsosde suas terras ancestrais; os moradores de favelas,violentamente removidos de suas casas por conta d epolíticas urbanas excludentes; as mulheres humi-lhadas, violentadas e discriminadas; gays, lésbicas,

    bissexuais, travestis, transexuais e transgênerossubmetidos a forte censura e violenta repressão porforças policiais; homens e mulheres negros que, de-vido à cor de sua p ele e às denúncias contra o racis-mo foram monitorados e perseguidos pelos órgãosrepressivos; camponeses que tiveram suas vidas esuas terras usurpadas pelos interesses dos grandeslatifundiários, apoiados pelos governos militares; etodos os trabalhadores e trabalhadoras, submetidosa arrocho salarial, exibilização das legislações tra-balhistas e mecanismos de concentração de renda,impostos pelo projeto econômico de cunho empresa-rial-militar, implementado com o golpe de 1964.

    Este relatório procura documentar as violações dedireitos humanos cometidas durante a ditadura,conferindo centralidade à memória das vítimas edos grupos sociais atingidos pela violência estatal.Denuncia ainda as continuidades de um passadoque se atualiza constantemente no presente e evi-dencia os obstáculos para a efetivação do NuncaMais. As recentes intervenções das Forças Armadasno espaço urbano, a implementação de políticas desegurança pública guiadas pela lógica de combaterum “inimigo interno”, a criminalização dos movi-mentos sociais e o monopólio dos grandes grupos decomunicação, entre uma série de outras questões,

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    de tortura no período de dezembro de 1968 a julhode 1972.

     A Comissão Interamericana de Direito Humanos,por sua vez, recebeu, entre 1969 e 1977, ao menos 77denúncias de violações de direitos humanos contra oBrasil4, apesar de o país ainda não ser, à época, sig-natário da Convenção Americana sobre Direitos Hu-manos (ou Pacto de São José da Costa Rica). Destas,somente 20 foram aceitas como casos concretos, dosquais apenas um não se referia à prática de tortura,

    desaparecimento forçado, prisão arbitrária e assas-sinato5. O primeiro caso em que a CIDH decidiu queo Estado era responsável pelas violações de direitoshumanos alegadas, publicado em 1973, foi o do lídersindical Olavo Hansen, preso, torturado e assassi-nado no interior do DOPS de São Paulo. O governo,contudo, negou-se a investigar o crime. Em regra, alitigância jurídica exercida no plano internacional,apesar da pouca repercussão, contribuía para geraralgum nível de constrangimento moral e políticopara o Estado brasileiro.

     A partir de meados da década de setenta, estrutu-rou-se a Comissão de Familiares de Mortos e De-saparecidos Políticos (CFMDP), após uma série deencontros e reuniões entre familiares de vítimas daditadura, ocorridos na Comissão Justiça e Paz, emSão Paulo, e nos escritórios dos advogados dos mi-litantes, como o de Modesto da Silveira, no Rio deJaneiro. A luta das famílias desenvolveu-se, desdeo início, em torno da coleta de informações e de or-ganização de dossiês de militantes presos, mortosou desaparecidos. Em conjunto com advogados, po-

    4. Somente entre 1969 e 1970 foram enviadas 40 petições versando sobre vio-lações de direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro. Ver: Informesanuais da CIDH. Disponíveis em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/anu-ales.asp.5. SANTOS, Cecília MecDowell. Memória na Justiça: A mobilização dos di-reitos humanos e a construção da memória da ditadura no Brasil. In: RevistaCrítica de Ciências Sociais. n. 88, 2010.

    líticos de oposição e presos e presas políticas, os fa-miliares tiveram importância central na luta pelaanistia, intensicada a partir de 1974, com a “dis-tensão política” do governo do General Geisel. Em1975, teve início, em São Paulo, o Movimento Femi-nino pela Anistia (MFA), idealizado por TerezinhaZerbine (esposa de um militar cassado), e posterior-mente difundido por todo o país.

    De início organizado por mulheres, o movimentopela anistia ganhou força em diversos setores da

    sociedade brasileira e passou a mobilizar gruposcomo movimento estudantil, Movimento Democráti-co Brasileiro - MDB (partido de oposição consentidaao governo militar), setores progressistas da IgrejaCatólica e de prossionais liberais. O ano de 1977marcou a retomada das manifestações públicas emdefesa das liberdades democráticas nas principaiscapitais do país. Com a palavra de ordem “Libertemnosso presos! Agora, já!”, estudantes protestavamcontra a prisão e tortura de presos políticos e, comoutros setores da sociedade, criaram os “ComitêsPrimeiro de Maio pela Anistia”, que abriram cami-nho para uma campanha nacional pela anistia6.

    Posteriormente, em fevereiro 1978, foi criado, noRio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia(CBA), integrado por advogados, familiares, ami-gos de presos e exilados políticos e ex-presos políti-cos recém-libertos, contando com representação emdiversos estados e em outros países. Reivindicandouma anistia ampla, geral e irrestrita, os CBAs pro-curaram reorganizar os movimentos sociais pelaredemocratização e popularizar a bandeira de lutaem torno, entre outras questões, do esclarecimentodas torturas, mortes e desaparecimentos, da liber-

    6. ARAUJO, Maria Paula. Uma história oral da anistia no Brasil: Memória,Testemunho e Superação: In: MONTENEGRO, A.; RODEGHERO, C.; ARAUJO,M. Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil. p. 53-96.

    “ Justamente hoje, 12 de Novembro, completam-se 3 mesesda morte de meu filho mais velho, engenheiro Raul Amaro

     Nin Ferreira que trabalhava, a convite, junto ao gabinete do

     Ministro da Indústria e do Comér cio. Tinha 27 anos e foi pre-

     so por acaso, numa batida da polícia na rua, ao voltar de

     uma festa, na madrugada de 1. de Agôsto; no dia 12 de Agôsto

     morreu no Hospital Central do Exército. Não morreu de morte

     natural, mas foi assassinado: seu corpo conservava marcas de

     sevícia, suas coxas formavam um hematoma inteiriço... Quem

     é o responsável por sua morte? ( …) Quem o supliciou afinal?

    (…) Subscrevo-me como uma mãe brasileira, profundamenteatingida, decepcionada e angustiada1 .”

     À época, algumas ações judiciais2  foram ajuizadasna esfera cível por familiares com o intuito de res-ponsabilizar o Estado brasileiro pelas torturas eassassinatos e obter informações sobre as circuns-tâncias da morte de militantes e o destino de seuscorpos. A via judicial, contudo, apresentou muitasdiculdades para as famílias, frente à excessiva de-mora do Poder Judiciário, à falta de acesso à infor-mação e às constantes negativas apresentadas peloEstado, que se recusava a reconhecer os crimes deseus agentes. Duas exceções merecem destaque: asentença, proferida pelo juiz federal Márcio José deMoraes, da 7ª Vara da Justiça Federal de São Paulo,em 27 de outubro de 1978, na vigência do governo doGeneral Ernesto Geisel, responsabilizando a UniãoFederal pela prisão e morte de Vladmir Herzog no

    1. Documento disponível em: FERREIRA, Felipe Nin; FERREIRA, Raul Nin;ZELIC, Marcelo. Raul Amaro Nin Ferreira: Relatório. Rio de Janeiro:Ed. PUC--Rio, 2014. p. 31-32.2. Entre as ações judiciais ajuizadas à época, destacam-se: ação cível pro-posta por Elizabeth Chalupa Soares, viúva de Manoel Raimundo Soares em1973; ação cível proposta em 1979 por Mariana Lanari Ferreira, mãe de Raul

     Amaro Nin Ferreira, morto após ser torturado no DOI-CODI/RJ e no HCE;ação cível proposta em 1979 por Dilma Borges Vieira, esposa de Mário Alvesde Souza Vieira; ação cível proposta em 1983 por Felícia Soares, esposa deRuy Frazão Soares, militante do PCB desaparecido em 1974. (TELES, Jana-ína de Almeida Teles. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e aluta por “verdade e justiça”no Brasil. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladmir(org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo,2010. p. 253-298).

    interior do DOI-CODI do II Exército e a decisão doJuiz Jorge Fracquer Scartezini, da 5ª Vara da Justi-ça Federal paulista, proferida em 1980, culpando oEstado Brasileiro pela prisão ilegal, tortura e mortedo operário Manoel Fiel Filho, na sede do DOI-CO-DI de São Paulo, em 1976.

    Em razão da violenta repressão e da censura quecaracterizaram os anos setenta, as denúncias con-tra a ditadura ganharam maior visibilidade quandoconseguiram ultrapassar as fronteiras nacionais.

    Foram determinantes, nesse contexto, a atuação demilitantes exilados e banidos do país. Em 1969, porexemplo, Miguel Arraes, ex-governador de Pernam-buco, criou a Frente Brasileira de Informações, co-nhecida como “Front”, boletim mensal que circulavaem vários países, denunciando as ações dos gover-nos militares. Já em 1971 foi divulgado o documen-tário  Brazil: a report on torture, com depoimentosde ex-presos políticos, exilados no Chile após seremlibertados no sequestro do embaixador suíço no Bra-sil, no qual relatavam torturas sofridas, a condiçãode exilados e defendiam a necessidade de se dar con-tinuidade à luta política no Brasil.

     Ainda no plano internacional, destacaram-se as de-núncias promovidas por entidades de direitos hu-manos, como a Anistia Internacional e a ComissãoInteramericana de Direito Humanos (CIDH), órgãoda Organização dos Estados Americanos (OEA).Desde o nal dos anos 1960, a Anistia Internacionalpromoveu campanhas em defesa dos presos políticose divulgou torturas e assassinatos praticados peloregime militar e publicou em 1972 o relatório Reporton Allegations of Torture in Brazil3   (Acusações deTortura no Brasil), no qual analisou as denúncias

    3. ANISTIA INTERNACIONAL. Reports on allegation fo torture in Brazil. Lon-dres: Amnesty International Publication, 1972.

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    como Leonel Brizola, Miguel Arraes e Luis CarlosPrestes, não foram contempladas. Tais mudançaspossibilitaram a libertação de alguns presos políti-cos e o retorno de militantes ao país, mas estavamlonge de encerrar a luta pela anistia. Como relataGeraldo Cândido, sindicalista engajado na luta con-tra a ditadura:

    “ Nós fizemos muitas passeatas, era s empre nos finai s datarde. Essa época eu já estava no metrô, já tinha direito

     sindical, e trabalhava no centr o da c idade. Ainda não est a-

     va lib erado não, que ainda não tinha o sindicato. Tinha aassociação, mas eu trabalhava ali no centro, na Presidente

    Vargas, quando saia, cinco horas, eu vinha para as manifes-

    tações pela anistia. A polícia vinha e dissolvia a manifesta-

     ção pela anistia na base do cassetete e da bo mba de gás. Na

    Cinelândia, a gente ia, às vezes saia em passeata, ia até na

     Assembleia Legislativa, fazia a chamada dos mortos, com a

     PM no nosso encalço.Você i magina só, já em 1979. Pela anis-

    tia, a nossa luta é para garantir o retorno dos companhei-

     ros, uma lei para b eneficiar os que estavam no e xílio, e os

    aqui no Brasil que foram presos, enfim 8 .”

    Em 1979, eram muitos projetos de anistia que esta-vam em discussão no Congresso Nacional. A princi-pal divergência consistia na abrangência de quemtinha direito a ela. O projeto vitorioso, que selou ocontrole dos militares no processo de transição de-mocrática brasileiro, previa uma anistia de caráterparcial e “recíproca”: beneciou parcialmente os opo-sitores do regime e irrestritamente os torturadores9. Proposto pelo presidente, General João Batista Fi-gueiredo, o projeto resultou na lei 6.683, sancionada

    8. Entrevista com Geraldo Cândido em 7 de abril de 2015. Projeto de Pesqui-sa: Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de polí-ticas públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditaduramilitar. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.9. TELES, Janaína de Almeida. Disputas pela Interpretação da Lei de

     Anistia de 1979. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/ search?q=cache:yq2gjcbStvIJ:www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/ar-ticle/viewFile/18/15+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=safari.

    em 2 de agosto de 1979, sendo “concedida anistia atodos quantos, no período compreendido entre 02 desetembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, comete-ram crimes políticos ou conexo com estes”.

    Contrariando reivindicações dos CBAs e dos setoresprogressistas da sociedade, a lei excluiu da anis-tia todos os condenados pelos chamados “crimes desangue” (terrorismo, assalto, sequestro e atentadopessoal) e criou a gura do “crime conexo”, compre-endido como “crimes de qualquer natureza relacio-

    nados com crimes políticos ou praticados com moti-vação política”10. Isto terminou beneciando agentesestatais perpetradores das torturas, assassinatos edesaparecimentos forçados. Na interpretação con-servadora da lei, crimes praticados por policiais oumilitares caram imunes à jurisdição penal. A Leide Anistia foi recebida como uma vitória parcialpelos movimentos sociais. Nas palavras de SuzanaLisboa, ex-integrante da Comissão Especial sobreMortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP):

    “ Desde o primeiro momento a gente denunciou que aquelalei era parcial, era restrita, que os torturadores não estavam

    anistiados. Porque se excetuavam dos crimes conexos aqueles

    que tinham sido condenados pelos chamados crimes de san-

     gue, então os nossos, que estavam presos, co ndenados pelo cri-

     me de sangue, também não podiam... também teriam que ser

    anistiados. Eles não foram. Muitos ficaram na cadeia, saíram

     um ano depois, saíram em liberdade condicional, e m função

    da reformulação da Lei de Segurança Nacional que atenuou

    as penas; então, anistia parcial, restrita, não trouxe de volta

    os desaparecidos, não voltaram nem na forma de um atestado

    de óbito. Isso era uma frase que a gente dizia. Os desapareci-

    dos não voltaram nem na forma de um atestado de óbito11 .”

    10. Artigo 1º, § 1º da L ei 6.683 de 1979.11. Entrevista com Suzana Lisboa em 15 de outubro de 2014. Projeto de Pes-quisa: Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de po-líticas públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditaduramilitar. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.

    tação dos presos políticos, da devolução dos restosmortais das vítimas desaparecidas, da revogaçãoda Lei de Segurança Nacional e da responsabiliza-ção dos agentes estatais envolvidos em violações dedireitos humanos7.

     A luta pela anistia foi encampada, no nal da dé-cada de setenta, por presos políticos, que, de den-tro dos presídios, manifestaram-se em repúdio aoprojeto de anistia parcial, então defendida pelo go-verno militar. Em verdade, na condição de vítimas,

    sobreviventes e testemunhas de graves violações dedireitos humanos, os presos políticos já travavam,há pelo menos quinze anos, uma dura luta d e resis-tência dentro dos cárceres, nem sempre levada aoconhecimento da população. Representativos dessaluta foram o abaixo-assinado, conhecido como “Ba-gulhão”, rmado por 35 presos políticos de São Pau-lo, enviado ao presidente do Conselho Federal daOAB, relatando violações de direitos; o “Documentosobre a Justiça Militar”, no qual 26 presos políticosdo Rio de Janeiro analisavam o papel da JustiçaMilitar na legitimação da tortura, dirigido à OABem 1976; e o manifesto “Nosso Testemunho”, comrelatos individuais e coletivos de tortura, assinadopor presos políticos do Complexo Frei Caneca, noRio de Janeiro, em 1979.

     As greves de fome também constituíam importantesformas de resistência. Ganhou destaque a Greve Na-cional de Fome, realizada em prol da anistia, iniciadaem 22 de julho de 1979, no Presídio Milton Dias Mo-reira, no Complexo Frei Caneca. A ação, que durou 32dias, obteve a adesão de mais de 50 presos políticos,detidos em diferentes locais do país, e alcançou amplarepercussão nas mídias nacionais e internacionais.

    7. Ver: Programa Mínimo de ação do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA).Disponível em: http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/upload/documentos/101.pdf.

    No nal da década de setenta, o grito pela anistiaampla, geral e irrestrita tomava as ruas, as univer-sidades, os jornais, os sindicatos, os presídios e osmovimentos sociais, que unidos exigiam a volta dademocracia e a restituição dos direitos civis e políti-cos. Fruto da pressão social, em outubro de 1978, o AI-5 foi revogado, restituindo-se o direito ao habeascorpus e, em dezembro, a Lei de Segurança Nacionalfoi reformada, de modo a extinguir a pena de morte ede prisão perpétua, a diminuir a pena d e alguns doscrimes nela previstos e a determinar o recolhimen-to dos presos políticos em local diverso do destinadoaos presos comuns, passando a reconhecer a exis-tência de presos políticos no Brasil. Outra importan-te conquista foi a revogação, em dezembro de 1978,do decreto de banimento de 126 exilados. Contudo,pessoas consideradas “indesejáveis” pelos militares,

    Presos políticos no pátio do Presídio Frei Caneca. Em pé: Paulo Roberto Jabur, Gilney Viana, Carlos Alberto Sales, Jesus Parede Soto, Jorge Santos

    Odria, Jorge Raymundo, Antonio Mattos e Perly Cipriano. Sentados:Paulo Henrique Lins, Alex Polari, Nelson Rodrigues, Manoel Henrique

    Pereira, José Rezende e Helio da Silva.Crédito: Acervo Exposição Fotográca 30 anos de luta pela anistia no

    Brasil da Comissão de Anistia

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    No início da década de 1980, a sociedade brasileirareconquistava seus espaços políticos. Às denúnciasdos familiares e ex-presos somavam-se as múltiplaslutas pela redemocratização do país. Surgiam novosmovimentos e se reconstruíam antigas pautas, comoas organizações de favelas e de bairros, as comis-sões de saúde, o movimento de mulheres, de negros,contra a carestia e o movimento estudantil. Naquelecontexto, contudo, o protagonismo na retomada dasmanifestações públicas foi assumido pelos traba-lhadores. Em maio de 1978, metalúrgicos do ABC

    paulista iniciaram a primeira greve do país após aedição do AI-5. Entre 1979 e 1980, o movimento gre-vista espalhou-se pelo país. Com o m do bipartida-rismo em 1980 foi fundado o Partido dos Trabalha-dores (PT), acompanhado da criação de importantesentidades sindicais13.

    Em 1984, milhões de pessoas exigiram a volta daseleições diretas para Presidente da República nacampanha “Diretas Já”. Em 2 de março do ano ante-rior, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB)apresentou ao Congresso Nacional a emenda cons-titucional que restabeleceria o voto popular diretopara Presidente na eleição do ano seguinte. Os comí-cios em prol da emenda levaram multidões às ruasde Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte, Goiânia. NoRio, foi realizada manifestação em 10 de abril de1984, quando a Av. Presidente Vargas foi tomada porum milhão de pessoas que levavam cartazes e f aixasem favor das eleições diretas e do m da ditadura.

     A maior mobilização de rua não conseguiu, contudo,garantir a aprovação da emenda Dante de Olivei-ra no Congresso. Em 1984, foram eleitos pelo co-légio eleitoral Tancredo Neves e José Sarney, para

    13. SANTANA, Marco Aurélio. Trabalhadores, sindicatos e regime militar noBrasil. In: PINHHEIRO, Silton. (org.) O que resta da transição. 1ª Ed. SãoPaulo: Boitempo, 2014. pp. 189-191.

    presidente e vice-presidente da República, respec-tivamente. A escolha marcou um processo de “ne-gociação pelo alto para a sucessão presidencial”14 eevidenciou a intenção dos setores militares e conser-vadores de manter a transição democrática sob con-trole. Com a morte de Tancredo Neves antes mesmode tomar posse, José Sarney assumiu a presidência.Em 1985, foi convocada Assembléia Nacional Cons-tituinte que, instalada em 1º de fevereiro de 1987,promulgou dia 20 de outubro de 1988 a nova Cons-tituição Federal.

    Da redemocratização à instituição daComissão Nacional da Verdade

    Com a posse de José Sarney no início de 1985, dava--se por encerrado o período da ditadura militar. Ape-sar do retorno à ordem constitucional democrática,o acerto de contas com o passado estava longe dese concretizar. Em 1985, foi fundado, no Rio, o Gru-po Tortura Nunca Mais (GTNM), integrado por ex--presos e perseguidos políticos, familiares, estudan-tes e militantes de direitos humanos. Desde então, oGTNM tem se destacado na luta pela investigação,responsabilização e reparação dos crimes praticadospela ditadura.

    O ano de 1985 f oi um marco na história democráticacom a publicação do livro Brasil: Nunca Mais. Ini-ciado em 1979, e desenvolvido pelo Conselho Mun-dial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo,o projeto visava documentar as violações de direi-tos humanos praticadas durante a ditadura, tendocomo fonte os processos judiciais de presos políticosque transitaram na Justiça Militar de abril de 1964a março de 1979. Ao nal, com o esforço de advo-

    14. NERY, Vanderlei. Diretas Já: mobilização de massas com direção burgue-sa. In: PINHHEIRO, Silton. (org.) O que resta da transição. 1ª Ed. São Paulo:Boitempo, 2014. p. 260.

     A comemoração também não se estendeu às famí-lias dos mortos e desaparecidos políticos. Para elas,a única alternativa oferecida foi um “atestado deparadeiro ignorado” ou de “morte presumida”, noscasos de vítimas desaparecidas, sem que implicassequalquer esclarecimento por parte do Estado. Maria Amélia Teles, integrante da CFMDP, expressa a de-cepção vivenciada pelos familiares:

    “ E os desaparecidos? Porque todo mundo voltou. Todo mun-do voltou, mas os desaparecidos... Cadê notícia? (…) Aí, nos

    anos 1980, quando termina a anistia, nós ficamos sozinhos e nós fomos proc urar articular com a América Latina, co m es-

     ses outros familiares. E esses o utros familiares, principalmen-

    te da Argentina, é que nos ensinaram esse negócio de verdade

     e justiça nos anos 1980. (…) Então a gente foi pautado p elas

    duas palavrinhas, verdade e justiça. (…). Nem com atestado

    de óbito nós recebemos noticia dos desaparecidos. Nenhum

    atestado de óbito. Essa declaração de ausência era ridícula.

     Ridícula, uma desconsideração muito grande com os familia-

     res e resolvia muito pouco 12 .”

    Nos anos posteriores, a luta por verdade e justi-ça foi fortalecida pelos testemunhos de ex-presose perseguidos políticos, agora em liberdade. Emagosto de 1979, foram localizados, pela primeiravez e ainda sob a vigência da ditadura militar, osrestos mortais de um desaparecido político. Suza-na Lisbôa conseguiu encontrar os restos mortais deseu companheiro, Luis Eurico Tejera Lisbôa, en-terrado com nome falso no Cemitério Dom Bosco,em Perus, São Paulo. Por sua vez, em setembro domesmo ano, a única sobrevivente da Casa da Mor-te, Inês Etienne Romeu, entregou ao Conselho Fe-deral da OAB uma denúncia por escrito, na qual

    12. Entrevista com Maria Amélia de Almeida Teles em 28 de abril de 2015.Projeto de Pesquisa: Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação erecepção de políticas públicas relativas à violação de direitos humanos du-rante a ditadura militar. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.

    tornava pública a existência do centro clandestinode prisão e tortura, montado pelo Exército brasilei-ro na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro. Em 3 defevereiro de 1981, Inês conseguiu identicar a casaque serviu de aparelho para a repressão.

    Importante ação dos familiares, no nal de 1979, foia organização de um dossiê relatando os crimes pra-ticados pela ditadura, apresentado no II Congressopela Anistia, em Salvador, ampliado e editado pela Assembléia Legislativa do Rio de Grande do Sul em

    1984, contemplando o caso de 339 vítimas fatais daditadura, dos quais 144 permaneciam desapareci-das. Em 1980, familiares organizaram a primeiracaravana de busca dos restos mortais dos desapa-recidos da Guerrilha do Araguaia, contando com oapoio da Igreja Católica.

    Frente ao silêncio e à impunidade, p romovidos pelaLei de Anistia, em fevereiro de 1982, vinte e dois fa-miliares de desaparecidos da Guerrilha do Araguaiarecorreram ao Poder Judiciário a m de localizar osrestos mortais e obter informações sobre a operaçãorealizada pelo Exército. O processo durou mais de20 anos, tendo transitado em julgado somente emdezembro de 2007. Apesar da decisão favorável aosfamiliares, que determinou a abertura dos arquivosrelativos à Guerrilha do Araguaia, o Estado brasi-leiro não localizou ou identicou os corpos dos mi -litantes. Após a sentença, o governo chegou a insti-tuir comissões com a nalidade de realizar buscasna região, mas não houve resultado conclusivo. AsForças Armadas continuam negando a existência dedocumentos sobre a Guerrilha. Nesse período, fami-liares conseguiram localizar em 1991 duas ossadasno Cemitério de Xambioá (TO). Uma foi identicadaem 1996 como sendo de Maria Lucia Petit, militantedo PCdoB, morta na guerrilha.

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    Janeiro, até então sob guarda da Polícia Federal,foram recolhidos ao Arquivo Público do Estado doRio de Janeiro (APERJ). Nesse conjunto documen-tal, encontrava-se o acervo das polícias políticas queatuaram no âmbito federal e estadual, tanto no Riode Janeiro quanto no então estado da Guanabara.Houve denúncias de destruição e ocultação de docu-mentos, especialmente daqueles relativos aos mili-tantes desaparecidos17.

    No ano seguinte, a CFMDP fundou o Instituto de

    Estudo sobre a violência de Estado e em 1995 p ubli-cou o Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos apartir de 1964, resultado da sistematização de pes-quisas feitas nos arquivos do Instituto Médico Legal(IML) de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Pernam-buco, nos arquivos das Polícias Políticas de Pernam-buco, do Paraná, da Paraíba, de São Paulo e do Riode Janeiro, nos arquivos do Instituto de Criminalís-tica Carlos Éboli e no projeto Brasil: Nunca Mais.

    Munidos desta documentação e frente aos testemu-nhos de ex-presos políticos, familiares apresenta-ram denúncias ao Conselho Regional de Medicinado Rio de Janeiro (Cremerj), exigindo a cassação doregistro de médicos que colaboraram com a ditaduraemitindo laudos falsos (omitiam a prática de torturaou a causa da morte) ou prestando assistência du-rante sessões de tortura. Os processos instauradosno Cremerj resultaram na cassação dos registros de Amílcar Lobo, José Lino Coutinho de França Neto(Dr. Coutinho), Rubens Pedro Macuco Janini e Ri-cardo Fayad18.

    17. LOMBARDO, Luciana. Nos arquivos da polícia política: Reflexões sobreuma experiência de pesquisa do DOPS do Rio de Janeiro. In.: Revista Acervo,Rio de Janeiro. Jan-junho 2014, p. 264.18. Os quatro nomes citados estão incluídos na listagem de autores de gra-

     ves violações de direitos humanos apresentada pela CNV. BRASIL. ComissãoNacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Volumes I, p. 877, 907,923, 926.

    Também em 1993, a CFMDP organizou um encontrocom vistas à elaboração de projeto de lei que tratasseda questão dos mortos e desaparecidos políticos. Oentão presidente Itamar Franco não deu andamentoà iniciativa. No ano seguinte, de disputa eleitoral,familiares apresentaram uma carta compromisso,assinada pelos dois principais candidatos à Presi-dência da República: Fernando Henrique Cardoso eLuís Inácio Lula da Silva.

    Diante do comprometimento rmado na carta e da

    forte pressão da sociedade civil, Fernando Henri-que, vitorioso na eleição, aprovou, em 4 de dezembrode 1995, a lei 9.140, que deu o pontapé inicial noprocesso de reconhecimento pelo Estado brasileirodas graves violações de direitos humanos pratica-das por seus agentes durante a ditadura. A lei crioua Comissão Especial sobre Mortos e DesaparecidosPolíticos (CEMDP), previu a possibilidade de inde-nização pecuniária aos familiares e apresentou umalista de 136 nomes de desaparecidos políticos auto-maticamente reconhecidos pelo Estado.

    No contexto de amadurecimento democrático, aCIDH realizou, pela primeira vez, em 1995, visitain loco no Brasil. Em seu relatório sobre a situaçãodos direitos humanos no país, identicou, dentre osprincipais problemas: a administração da justiça, aexistência de grupos de extermínio, a discrimina-ção racial, a violência policial e sua impunidade, aprática da tortura como meio de investigação, o sis-tema penitenciário e a competência dos tribunaismilitares para julgar delitos comuns cometidos porpoliciais estaduais19. Ficava evidente que a ditadu-ra passara, mas suas sequelas se faziam cada vezmais aparentes.

    19. CIDH. Informe sobre a situação dos Direitos Humanos no Brasil. 1995.Disponível em: http://cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/Introducion.htm.

    gados de presos políticos, foram obtidas cópias de707 processos completos e dezenas de outros incom-pletos, ultrapassando 1 milhão de páginas. O pro- jeto tornou-se referência na agenda da Justiça deTransição brasileira, contribuindo para preservar asinformações sobre graves violações de direitos hu-manos. Em 2011, foi lançado o Brasil: Nunca Maisdigital, por meio do qual é possível acessar todo oacervo digitalizado.

    Outra vitória foi conquistada no nal de 1985: a

    aprovação da Emenda Constitucional nº26, que ex-pandia a anistia aos servidores civis da Adminis-tração direta e indireta, bem como a militares quehaviam sido punidos por atos de exceção. A medi-da beneciou 164 sindicalistas destituídos de seusmandatos, incluindo Luís Inácio Lula da Silva. Aslacunas da Lei de Anistia foram posteriormente ob- jeto de intenso debate d urante a Assembléia Cons-tituinte. Ao nal, o artigo 8ª do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias (ADCT), único dis-positivo da CF/88 a tratar da anistia, rearmou odireito à promoção, estabelecido na Emenda Cons-titucional 26/85, estendendo-o a trabalhadores dosetor privado. Deniu também, pela primeira vez,a possibilidade de reparação econômica ao anistia-do político, ainda que restrita aos casos de aero-nautas prejudicados por portarias expedidas peloMinistério da Aeronáutica, e ampliou o alcancetemporal do benefício15.

     Ao longo da década de noventa, uma pluralidade deações foi realizada no campo da memória, verdadee justiça. Foi localizada em 1990 a vala clandesti-na de Perus, no Cemitério de Dom Bosco, em São

    15. MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suasconsequências - um estudo do caso brasileiro. Dissertação apresentada aocurso de pós-graduação em Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2003, p.119.

    Paulo, onde militantes políticos assassinados peladitadura foram enterrados com nomes falsos. Ape-sar de os familiares saberem de sua existência des-de 1979, a vala só foi encontrada durante uma in-vestigação realizada pelo repórter Caco Barcellos.Logo após a descoberta, a prefeita Luiza Erundina(PT) criou a Comissão Especial de Investigação dasOssadas de Perus, composta por familiares e mi-litantes, e a Câmara Municipal de São Paulo ins-taurou uma CPI para investigar as irregularidadespraticadas no enterro das vítimas. Tanto a Comis-

    são quanto a CPI estenderam seus trabalhos paraos demais cemitérios da capital e cidades vizinhas.Com o nal do mandato de Erundina, a partir de1993, nenhum informe ocial sobre a investigaçãodas ossadas foi divulgado16.

    No Rio de Janeiro, em setembro de 1991, o GTNMobteve apoio técnico para exumar 2.100 ossadas deuma vala comum, localizada no Cemitério Ricardode Albuquerque, na qual militantes políticos haviamsido enterrados como indigentes, entre 1971 e 1974.Contudo, devido à falta de nanciamento, a equipetécnica encerrou seus trabalhos dois anos depois eas ossadas foram encaminhadas para o HospitalGeral de Bonsucesso. À época, foram também loca-lizados outros dois cemitérios (da Cacuia e de SantaCruz) que receberam corpos de militantes mortosdurante a ditadura. Mais recentemente, no dia 11de novembro de 2011, foi inaugurado o Memorial doCemitério Ricardo de Albuquerque, no qual constamos nomes de 14 militantes assassinados.

    Em 1992, após pressões de movimentos sociais, osacervos das polícias políticas sediadas no Rio de

    16. BRASIL. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.IEVE Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado; Org. Crimeia Schmi-dt et al..Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). 2 ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 26.

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    pela violência de Estado22.

    Em dezembro de 2001, foi criada a Comissão Es-pecial de Reparação do Rio de Janeiro, através dalei estadual 3.744, regulamentada pelo Decreto nº.31.995/2002. A Comissão iniciou seu funcionamen-to somente em 2004 e teve por objetivo promovera reparação de pessoas detidas sob acusação de te-rem participado de atividades políticas entre 1964 e1979 ou tenham cado sob guarda dos órgãos públi-cos no Estado do Rio. Recebeu, durante o prazo de

    90 dias, 1.114 pedidos de indenização de ex-presos eperseguidos políticos. Depois de intensa mobilizaçãoe pressão da sociedade civil, a Comissão nalizouseus trabalhos em abril de 2013, com a apreciaçãode todos os requerimentos, dos quais 917 foram de-feridos, 190 indeferidos e 7 arquivados23. Apesar deconcluída a análise dos casos, nem todos os pedidosde reparação aprovados foram pagos pelo Governodo Estado. Atualmente, grupos da sociedade civillutam pela criação de uma nova Comissão Especialde Reparação em razão da persistência da demandapor reparação no Rio de Janeiro e da existência depleitos que não foram apresentados no prazo de en-cerramento da Comissão.

    Uma das principais lacunas do processo de redemo-cratização brasileiro consistiu na falta de acesso aosdocumentos produzidos pela ditadura. A manuten-ção do segredo sobre a repressão política foi regranos governos democráticos instaurados após o mda ditadura. Em 2005, por iniciativa de familiares,ex-presos e perseguidos políticos, estudantes e pro-fessores universitários foi criado, em São Paulo, oMovimento Desarquivando o Brasil. Uma série de

    22. SIGMUND FREUD ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA [coedição]. Clínicasdo testemunho: reparação psíquica e construção de memórias. Porto Alegre:Criação Humana, 2014.23. Ver: http://www.rj.gov.br/web/seasdh/exibeconteudo?article-id=1857470.

    manifestações foi realizada com o objetivo de promo-ver o direito à verdade e de revogar a lei 1.111/2005,sancionada pelo presidente Luís Inácio Lula daSilva. De acordo com a referida norma, o sigilo dedocumentos era considerado “imprescindível à segu-rança da sociedade e do Estado” e a consulta públicapoderia car indenidamente vedada, deixando adecisão para uma comissão formada exclusivamentepor membros do Poder Executivo24.

    Pressionado pelos movimentos sociais, e após re-

    comendação feita em 2005 pelo Comitê de DireitosHumanos da ONU, segundo a qual o Brasil deve-ria tornar públicos todos os documentos relevan-tes sobre abusos de direitos humanos, o presidenteLula assinou o decreto 5.548 de 18 de novembro de2005. No mês seguinte, a ministra-chefe da CasaCivil, Dilma Rousseff, anunciou a transferênciada documentação relativa ao período da ditaduramilitar, então sob poder da Agência Brasileira deInteligência, para o Arquivo Nacional (AN). Foramtransportados arquivos do Serviço Nacional de In-formações, do Conselho de Segurança Nacional eda Comissão Geral de Investigações do Ministérioda Justiça. De 2006 até 2012, outros 40 acervos fo-ram reunidos no AN25.

    Em dezembro de 2009, a 11ª Conferência Nacionalde Direitos Humanos reuniu em Brasilia 1.200 de-legados, convocados pela Secretaria Especial de Di-reitos Humanos para revisar o Programa Nacionalde Direitos Humanos (PNDH), cuja primeira ediçãohavia sido publicada em 1996 e a segunda em 2002. Aprovado, o PNDH 3 promoveu avanço ao estabele-

    24. BRASIL. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.IEVE Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado; Org. Crimeia Schmi-dt et al..Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). 2 ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 43.25. ISHAQ, Vivien; FRANCO, Pablo; SOUSA, Teresa. A escrita da repressão eda subversão 1964-1985. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. p.11.

    Nesse mesmo ano, cansados de esperar por umaprovidência do Poder Judiciário brasileiro, familia-res de 22 desaparecidos da Guerrilha do Araguaiadecidiram denunciar o caso à CIDH. Formuladapelo Centro pela Justiça e Direito Internacional(CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, ecom a participação da CFMDP e do GTNM como co--peticionários, a denúncia buscava a responsabiliza-ção do Estado brasileiro frente às graves violaçõesde direitos humanos perpetradas no contexto daguerrilha. O Brasil raticara a Convenção America-

    na sobre Direitos Humanos em 1992 e reconheceraa jurisdição contenciosa da Corte Interamericana deDireitos Humanos em 1998. O caso Gomes Lund eoutros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, após trâ-mite perante a CIDH, foi encaminhado em 2009 àCorte Interamericana.

    Em 1996, a CEMDP iniciou seus trabalhos buscan-do promover o reconhecimento e a reparação pecu-niária de pessoas que, em razão da participação ematividades políticas, de 2 de setembro de 1961 a 16de agosto de 1979, foram mortas ou desapareceramem dependências policiais, militares ou assemelha-das, por causas não naturais ou em situações decustódia estatal. Após pressão dos familiares em2002 o prazo da lei foi extendido até 5 de outubrode 1988 e em 2004 ampliou-se a competência daCEMDP para casos de mortes em decorrência derepressão policial em manifestações públicas ouconitos armados com o poder público.

    No nal de 2006, a CEMDP encerrou a primeiraetapa de trabalho que consistiu na análise, inves-tigação e julgamento de 480 pedidos de reparação ereconhecimento, dos quais 136 casos já constavamcomo reconhecidos. Em seu relatório nal, intitula-

    do  Direito à verdade e à memória20, publicado em2007, a CEMDP reconheceu 362 casos de mortos edesaparecidos. Atualmente vinculada à Secretariade Direitos Humanos da Presidência da República,a CEMDP desenvolve ações de busca, localização eidenticação de restos mortais de pessoas desapare-cidas na Guerrilha do Araguaia, integrando o Grupode Trabalho Araguaia, coordenado pela Secretariade Direitos Humanos da Presidência da República,Ministério da Justiça e Ministério da Defesa.

    É preciso destacar a importância do ano de 2001para a implementação de políticas públicas de re-paração, tanto no nível nacional quanto estadual.Em agosto foi criada a Comissão de Anistia, no âm-bito do Ministério da Justiça, composta por 26 con-selheiros, em maioria da sociedade civil, com a na -lidade de reparar moral e economicamente pessoasque tiveram atividades prossionais e estudantisprejudicadas por motivação política, de 1946 até1988. Até setembro de 2014, haviam sido apresen-tados aproximadamente 74.000 requerimentos, dosquais 62.000 foram apreciados e, destes, 35.000 fo-ram deferidos21. Desde 2007, com a gestão de Paulo Abrão, a Comissão passou a promover não somentea reparação pecuniária das vítimas e de seus fami-liares, como também políticas públicas de memó-ria e de educação em direitos humanos, dentre asquais: as Caravanas da Anistia, que consistem emsessões públicas itinerantes de apreciação de re-querimentos de anistia política acompanhadas poratividades educativas e culturais, e o Projeto Clíni-cas do Testemunho, responsável pela formação denúcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados

    20. BRASIL. COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOSPOLÍTICOS. Direito à Memória e à Verdade. Secretaria Especial de DireitosHumanos: Brasília, 2007.21. Arquivo CNV, 08802.007896/2014-38: Ofício nº 323/2014/CA da Comissãode Anistia/MJ, em resposta ao Ofício nº 628/2014 da CNV, p. 3.

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    Em cumprimento às resoluções da Corte Intera-mericana foi criado em março de 2012, no Minis-tério Público Federal (MPF), o Grupo de TrabalhoJustiça de Transição, com o objetivo de oferecerapoio jurídico e operacional aos Procuradores daRepública na investigação e persecução penal dasgraves violações de direitos humanos cometidas noperíodo ditatorial. De 2008 até o presente, foraminiciadas treze ações penais versando sobre delitosde sequestro qualicado ou ocultação de cadáverpraticados por agentes da repressão28. A posição do

    Poder Judiciário frente a essas ações tem sido, con-tudo, pouco satisfatória. As decisões não respeitamos preceitos do Direito Internacional dos DireitosHumanos e variam de juiz para juiz. O processo judicial impõe às vítimas e familiares ritual buro-crático desgastante e pouco ecaz. Nas palavras damilitante Maria Amélia Teles,

    “O Poder Judiciário, ele exige da vítima, do sobrevivente,tudo. Ele suga tudo. Ele quer que você dê detalhes, que você dê

    a vírgula, que você dê o documento, que você dê a hora. Então,

     é muito desgastante, exaustiv o. Você fica louca de tanta coisa.

     Então, só isso já é um preço . Um preço muito alto que v ocê

     paga para ter justiça 29 .”

     As lutas dos familiares e militantes de direitos hu-manos, a judicialização de casos relativos ao períododitatorial, a aprovação do PNDH 3 e a publicaçãoda sentença da Corte Interamericana possibilita-ram um cenário político favorável à instituição deuma Comissão Nacional da Verdade (CNV). Por ato

    28. BRASIL. Ministério Público Federal. Grupo de trabalho justiça de tran-sição: atividades de persecução penal desenvolvidas pelo Ministério Públi-co Federal: 2011-2013. Coordenação e organização de Raquel Elias FerreiraDodge. Brasília: MPF/2ª CCR, 2014. Ver também: MPF. Atuação do grupo detrabalho Justiça de Transição. Disponível em: http://www.prrj.mpf.mp.br/ins-titucional/crimes-da-ditadura/atuacao-1.29. Entrevista com Maria Amélia Teles em 28/04/2015. Projeto de Pesquisa:

     Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de políticaspúblicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura militar.CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.

    presidencial de 13 de janeiro de 2010, foi instituídoo grupo de trabalho responsável por elaborar o ante-projeto de lei para a criação da CNV. Encaminhadoao Congresso Nacional em maio, o projeto resultouna lei 12.528, sancionada pela presidenta DilmaRousseff, em 18 de novembro de 2011.

     A CNV iniciou seus trabalhos em 16 de maio de2012, com a posse de seus membros, e os concluiuem 10 de dezembro de 2014, com a publicação deseu Relatório Final. Teve por objetivo analisar e

    esclarecer violações de direitos humanos pratica-das pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, bus-cando consolidar o direito à memória e à verdadehistórica. A CNV representou um avanço para aconsolidação da Justiça de Transição no país: am-pliou o debate sobre a temática da ditadura, facili-tou o acesso a documentos e pesquisas; promoveua oitiva de centenas de vítimas e testemunhas e odepoimento de agentes públicos e reconheceu o-cialmente, pela primeira vez, 377 agentes estatais,militares e civis responsáveis pelas torturas, as-sassinatos e desaparecimentos forçados. Além deser a terceira comissão do mundo a indicar nomi-nalmente os autores das graves violações, a CNVdefendeu a não aplicação dos dispositivos legais

    de anistia aos militares responsáveis pelos crimesde lesa-humanidade e apresentou um conjunto derecomendações pertinentes à democratização dasForças Armadas e da sociedade brasileira.

    Das demandas sociais à criação daComissão da Verdade do Rio

     As lutas e demandas sociais que se espalharam pelopaís desde o nal da ditadura militar tiveram ree-xo no estado do Rio de Janeiro. Merece destaque aatuação, a partir de 2011, do Coletivo RJ Memória,

    cer como um de seus sete eixos orientadores o “Di-reito à memória e à verdade”, no qual recomendou--se a criação de uma Comissão Nacional da Verdade,com a tarefa de examinar as violações de direitoshumanos praticadas por agentes estatais no contex-to da repressão política da ditadura.

    Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal(STF) examinou a Arguição de Preceito Fundamen-tal (ADPF) nº 153 proposta pelo Conselho Federalda OAB dois anos antes. A ação visava questionar

    a compatibilidade da Lei de Anistia com a Consti-tuição Federal de 1988, de modo a invalidar a in-terpretação da lei que outorga anistia a agentes es-tatais, acusados, entre outros crimes, pela práticade tortura, homicídio, desaparecimento forçado eestupro. Por sete votos a dois, o STF posicionou-secontrariamente à revisão da Lei de Anistia, indode encontro às demandas dos movimentos sociaise à normativa e jurisprudência internacionais emmatéria de direitos humanos.

    Passados oito meses da referida decisão, foi publica-da a sentença da Corte Interamericana de DireitosHumanos no caso Gomes Lund e outros (Guerri-lha do Araguaia) vs. Brasil, cujo conteúdo contras-

    tou frontalmente com o entendimento adotado peloSTF. A s entença internacional constituiu um marcoimportante. Pela primeira vez, o Brasil foi interna-cionalmente condenado pela prática de graves vio-lações de direitos humanos durante a ditadura. Nasentença, a Corte Interamericana declarou que o Es-tado brasileiro foi responsável pelo desaparecimen-to forçado dos militantes da Guerrilha do Araguaiae obrigou o Brasil a localizar o paradeiro das vítimasdesaparecidas, identicar seus restos mortais e con-duzir investigações criminais sobre os fatos.

     A Corte ainda armou que a Lei de Anistia de 1979carece de efeitos jurídicos e não deve continuar re-presentando um obstáculo para a investigação epunição dos responsáveis por graves violações. Apedido dos peticionários, a Corte considerou a ne-cessidade de criação de uma comissão da verdadecomo mecanismo fundamental para a apuração doscrimes cometidos no passado26. Victória Grabois, in-tegrante do GTNM e familiar de desaparecidos naGuerrilha, arma a necessidade de que o governocumpra a sentença:

    “ Nós já estamos em 2015, já faz cinco anos, e muito poucodessa sentença foi cumprida (…) O Brasil assinou o Pacto de

     San José da Costa Rica, Fernando Henrique Cardoso assinou

     esse pacto em 1998. Se o Brasil pertence à OEA, ele te m que

     seguir o Pacto de San José da Costa Rica e acatar a decisão da

    Corte. O importante dessa decisão da Corte Interamericana

     não se refere só ao Araguaia, mas a cerca de q uinhentos bra-

     sileiros que são mor tos e desapare cidos políticos. E também

    aqueles que foram torturados têm direito, novamente, de indi-

     ciar os seus algozes 27  .”

    Considerando a sentença da Corte Interamericana,a OAB interpôs recurso, que ainda espera julgamen-to, no âmbito da ADPF nº 153, pleiteando que o STF

    se manifeste acerca da decisão internacional. Nessemesmo sentido, em maio de 2014, o Partido Socialis-mo Liberdade promoveu a ADPF nº 320, com a qualpretende que o STF reconheça o efeito vinculativoda decisão da Corte Interamericana para impedir aaplicação da Lei de Anistia em casos de graves viola-ções de direitos humanos por agentes públicos.

    26. CORTE IDH. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Bra-sil. Sentença de 24 de novembro de 2010.27. Entrevista com Victória Grabois em 13/03/2015. Projeto de Pesquisa: Ar-queologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de políticaspúblicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura militar.CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.

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    mória vinculado a políticas de direitos humanos ede cultura. Ao longo de 2014, um conjunto de ativi-dades políticas e culturais foi organizado em frenteao local, desde exposição de fotos, grafti, apresen -tações de dança e de peças teatrais, rodas de capo-eira e de samba e projeções de documentários, até apromoção de debates sobre a destinação do edifício. Apesar da intensa mobilização, as reivindicaçõesainda não foram atendidas pelo Governo do Estado.

     As campanhas, mobilizações, escrachos e interven-

    ções artísticas por memória, verdade e justiça con-tribuíram para dar forma ao atual cenário políticodo Rio de Janeiro composto por uma pluralidade demovimentos, grupos, entidades, partidos políticos,associações, ONGs, coletivos e sindicatos que de-batem as mais diversas pautas da agenda pública,dentre elas a temática da Justiça de Transição e dolegado da ditadura militar no estado.

    Como resultado desta mobilização da sociedade,em 27 de setembro de 2011, foi apresentado na As-sembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro(ALERJ) o Projeto de Lei nº 889-A/11, primeiro nopaís a dispor sobre a criação de uma comissão daverdade em âmbito estadual. Os deputados Gilber-

    to Palmares (PT), Graça Matos (PMDB), Luiz Paulo(PSDB) e Paulo Ramos (então PDT) apresentarama primeira versão do texto que viria a instituir aCEV-Rio. O processo legislativo para a aprovação doprojeto levou 1 ano e 20 dias para conclusão, já queuma parcela signicativa dos deputados, contráriaa criação de uma Comissão da Verdade, reiterada-mente obstruía as votações. O projeto foi aprovado,em plenário, em 24 de outubro de 2012, dando ori-gem a lei 6.335 que instituiu a CEV-Rio.

    Em 8 de maio de 2013, os membros da CEV-Rio

    (Wadih Damous, Nadine Borges, Geraldo Cândi-do, Marcelo Cerqueira, Eny Moreira, João RicardoDornelles e Álvaro Caldas) tomaram posse na sededa OAB/RJ, com a presença do então governadorSérgio Cabral, da ministra de Direitos de Humanosda Secretaria de Direitos Humanos da Presidênciada República Maria do Rosario, de ex-presos po-líticos, de familiares de mortos e desaparecidos emilitantes de direitos humanos, dando início aostrabalhos da Comissão.

     Verdade e Justiça, determinante para a criação daCEV-Rio. O grupo é parte de um processo nacionalmais amplo, de formação da Rede Brasil Memória, Verdade e Justiça, estimulada pela Secretaria Espe-cial de Direitos Humanos da Presidência da Repú-blica e composta por comitês (ou coletivos) da socie-dade civil disseminados pelos diferentes estados dopaís. O Coletivo RJ estruturou-se em torno de qua-tro objetivos centrais: a criação de uma comissão daverdade autônoma e independente, a abertura dosacervos documentais produzidos no período da dita-

    dura militar, o cumprimento integral da sentença daCorte Interamericana e o resgate da memória e daverdade sobre a história da resistência à ditadura30.Também foi importante a criação em 2012 da Articu-lação Estadual pela Memória, Verdade e Justiça doRio de Janeiro, composta por uma série de organiza-ções da sociedade civil, como movimentos estudantis(Centros Acadêmicos e Diretórios de Estudantes),movimentos da juventude (como o Levante Popularda Juventude) e movimentos e organizações popula-res, cujo objetivo comum era fortalecer e unicar aslutas nesse campo31.

     Ainda nesse contexto, setores da sociedade civil cria-ram as suas próprias comissões de verdade, dando

    contornos peculiares à Justiça de Transição brasi-leira. Comissões setoriais, sindicais e universitáriasmultiplicaram-se pelo país, de modo a descentrali-zar e potencializar a construção da verdade. Maisrecentemente, em dezembro de 2014, foi lançado, noRio de Janeiro, o Grupo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça com o propósito de debater os efei-tos transgeracionais da violência de Estado e cobrar

    30. Ver: http://coletivorj.blogspot.com.br/p/sobre_27.html31. INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIÃO (ISER). I Relatório Semestralde Acompanhamento da Comissão Nacional da Verdade (maio a novembrode 2012). Rio de Janeiro, 2012, p. 41. Disponível em: http://www.iser.org.br/ 

     website/wp-content/uploads/2013/11/I-Relatório-Semestral-de-Acompanha-mento-CNV-ISER-2012.pdf.

    do Estado a devida reparação.

    Frente à consolidação de redes de mobilização nocampo da memória, verdade e justiça, chamam aten-ção formas de ação política direta, empreendidas poratores da sociedade civil. Representativos dessasações foram os escrachos (ou esculachos) realizadosa partir de 2012. Inspirados na experiência argenti-na, e realizados por grupos de jovens, os escrachossão manifestações pacícas e simbólicas que visamdenunciar e expor publicamente perpetradores das

    violações de direitos humanos. No Rio de Janeiro,a Articulação Estadual pela Memória, Verdade eJustiça realizou em 2012 o escracho do ex-diretordo DOI-CODI, General José Antônio Nogueira Be-lham, dos militares e ex-torturadores Dulene AleixoGarcez dos Reis e Lício Augusto Ribeiro Maciel e daestátua do Marechal Castelo Branco, na praia doLeme. Victória Grabois, militante do GTNM, relatauma dessas experiências:

    “ A gente fez um escracho na frente da casa do Lício [Ma- ciel], es se que matou o André [Grabois], meu irmão. (…) E

    os vizinhos de classe média alta falam assim: “Mas tem tortu-

     rador no meu prédio ?” Eu falei: “Tem”. “Eu vou prestar aten-

     ção nele agora”, ela disse. Uma mulher: “Que vergonha. Um

    torturador que mora no meu prédio!” Eu falei: “Pois é. No seu

     prédio mo ra um torturador”. Is so é muito bom. E ele ficava

    atrás da janela. Disse que ele não morava mais lá. Mas ele

    apareceu. Nós vimos ele atrás das cortinas. Muito bom 32 .”

    Também emblemática foi a Campanha “OcupaDOPS: ocupar a memória para não esquecer a nossahistória” lançada em fevereiro de 2014, que tem porobjetivo transformar o prédio do Departamento deOrdem Política e Social (DOPS) em centro de me-

    32. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alto Comissariado das NaçõesUnidas para Direitos Humanos. Rule of law tools for pos-conflict states: truthcommissions. Nova York e Genebra: 2006.

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    seus objetivos; colaborar com todas as instâncias doPoder Público para a apuração de violações de direi-tos humanos; recomendar adoção de medidas e polí-ticas para prevenir futuras violações; promover, combase nos informes obtidos, a reconstrução históricados casos de graves violações de direitos humanosocorridos no passado, colaborando para a prestaçãode assistência às vítimas.

     A legislação atribuiu à CEV-Rio a competência dereceber testemunhos, informações, dados e docu-

    mentos que lhe fossem encaminhados, asseguradaa não identicação do detentor ou depoente; requi -sitar informações, dados e documentos de órgãos eentidades do Poder Público, ainda que em qualquergrau de sigilo; convocar, para entrevistas ou tes-temunhos, pessoas que pudessem guardar relaçãocom fatos e circunstâncias examinados; determinara realização de perícias e diligências para coleta ourecuperação de informações, documentos e dados;promover audiências públicas; requisitar proteçãoaos órgãos públicos para qualquer pessoa que seencontre em situação de ameaça em razão de co-laboração com a CEV-Rio; promover parcerias comórgãos