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7° Congresso de Pesquisa & Desenvolvimento em Design Com design, além do design: o design gráfico com preocupações sociais With Design, Beyond the Design: social graphic design Miyashiro, Rafael Tadashi; Designer gráfico, mestrando Mestrado em Educação, Artes e História da Cultura Universidade Mackenzie [email protected] Resumo Este artigo se propõe a refletir sobre a relação entre o design gráfico e a sociedade, a partir de alguns exemplos de indivíduos e grupos que praticam e/ou praticaram o design gráfico com preocupações sociais, dos anos 60 até a atualidade. São também levantadas as possíveis causas da apolitização do designer a partir do contexto histórico e social. Nas conclusões são apresentadas algumas questões que visam estimular a formação de designers ativos, que exercem a cidadania e a estendem aos outros. Palavras Chave: design gráfico social, cidadania, responsabilidade social Abstract This article aims to reflect on graphic design and its relationship to society, through the practice of a few graphic designers whose work is related to social change, from the 60´s to nowadays. Possible causes of graphic design’s current social apathy are discussed too. At the conclusions a few questions are raised, aiming to stimulate graphic designers who will exercise good citizenship. Keywords: social graphic design, citizenship, social responsibility

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Com design, além do design: o design gráfico com preocupações sociais

With Design, Beyond the Design: social graphic design

Miyashiro, Rafael Tadashi; Designer gráfico, mestrandoMestrado em Educação, Artes e História da CulturaUniversidade [email protected]

Resumo

Este artigo se propõe a refletir sobre a relação entre o design gráfico e a sociedade, a partir de alguns exemplos de indivíduos e grupos que praticam e/ou praticaram o design gráfico com preocupações sociais, dos anos 60 até a atualidade. São também levantadas as possíveis causas da apolitização do designer a partir do contexto histórico e social.Nas conclusões são apresentadas algumas questões que visam estimular a formação de designers ativos, que exercem a cidadania e a estendem aos outros.

Palavras Chave: design gráfico social, cidadania, responsabilidade social

Abstract

This article aims to reflect on graphic design and its relationship to society, through the practice of a few graphic designers whose work is related to social change, from the 60´s to nowadays. Possible causes of graphic design’s current social apathy are discussed too. At the conclusions a few questions are raised, aiming to stimulate graphic designers who will exercise good citizenship. Keywords: social graphic design, citizenship, social responsibility

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Introdução1

Os anos 60 e 70 foram anos de contestações sociais variadas, muitas das quais moldaram o comportamento e a política do mundo contemporâneo. Diversos movimentos e organizações que lutavam por mudanças sociais e/ou políticas descobriram no design gráfico um aliado para expressar seu desejo por mudanças; tal aliança se estende até hoje: as demonstrações contra a invasão norte-americana no Iraque em 2003, por exemplo, organizadas por ONG´s diversas, foram repletas de faixas e cartazes de soluções gráficas variadas, muitas das quais reproduzidas com uma tiragem expressiva.

Apesar dessa consolidação do design gráfico no ativismo social, a atuação do designer frente a questões sociais é vista, em geral, como apática, indiferente e alienada. O consumismo se alastra em todos os segmentos da sociedade e o design gráfico, com suas propostas sedutoras de branding, apresenta-se como uma poderosa ferramenta para criar expectativas, necessidades e desejos.

Este artigo se propõe a refletir sobre a relação entre o design gráfico e a sociedade2, a partir de alguns exemplos de indivíduos e grupos que praticam e/ou praticaram o design gráfico com preocupações sociais, dos anos 60 até a atualidade. São também levantadas as possíveis causas da apolitização do designer a partir do contexto histórico e social.

Nas conclusões são apresentadas alguns pontos para que a preocupação social esteja mais presente no exercício da profissão, estimulando a formação de designers ativos, que exercem a cidadania e a estendem aos outros.

A luta continua! – o Atelier PopulaireOs anos 60 e 70 foram anos de grandes mudanças e questionamentos na

política e na vida da sociedade. Diversos movimentos explodiram quase que simultaneamente ao redor do mundo e fizeram da contestação sua principal bandeira, com o objetivo de transformação social: o feminismo e as questões de gênero, como a liberdade sexual; a luta por igualdade étnica; a ecologia como bandeira política; e as mudanças na estrutura familiar e no comportamento são algumas das questões que ajudaram a moldar o mundo tal como o conhecemos hoje.

Para o designer gráfico, “os hábitos profissionais do trabalho foram desafiados e diversificados mais pelos fatores culturais e políticos que pelas pressões de mudanças técnicas. As reações à Guerra do Vietnã (1964-75); o protesto social, registrado pelos eventos em maio de 68, em Paris; a revolução Cubana; a cultura de massa e a música pop; e o uso de drogas alucinatórias todas encontraram expressão gráfica” (Hollis, 1994).

Muitas organizações e movimentos que lutavam por mudanças sociais nesse período encontraram no design gráfico uma poderosa ferramenta para contestar a sociedade e exigir mudanças (McQuiston, 1995). Ao mesmo tempo, o design gráfico “oficial” se consolidava no mundo corporativo com o estabelecimento de cânones e práticas, ligadas ao “estilo internacional”.

O Atelier Populaire é um dos exemplos do segmento do design gráfico

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“militante” e faz parte do imaginário de muitos que relacionam política e design até hoje. Além do seu trabalho gráfico, duas particularidades também o destacam: a formação eclética do Atelier, composta por estudantes, artistas e trabalhadores, e a sua localização, dentro da Escola de Belas Artes de Paris. A atuação do grupo foi uma resposta à situação social em que se encontrava a França: o mês de maio de 1968 foi o estopim de uma onda de descontentamentos, iniciadas alguns anos antes, e que culminou em fortes protestos contra valores ligados à gerações anteriores, à situação educacional (reforma nas universidades) e às condições de trabalho. Estudantes e operários organizaram passeatas, fizeram barricadas, tomaram universidades, tudo como uma forma de protesto ao establishment:

“Os pôsteres produzidos pelo Atelier Populaire são armas a serviço da luta e são parte inseparável dela. Seu lugar correto é nos centros do conflito, isto é, nas ruas e nas paredes das fábricas. Usá-los para motivos decorativos, mostrá-los em lugares burgueses da cultura ou considerá-los como objeto de interesse estético é depreciar tanto sua função quanto seu efeito. Isto é porque o Atelier se recusa a pô-los a venda [...]. É por isso que estes trabalhos não devem ser considerados como um resultado final da experiência, mas como um estímulo para suscitar, através do contato com as massas, novos níveis de ação, tanto no plano cultural quanto político” (Atelier Populaire).

Os resultados de maio de 1968 foram variados. No plano político, houve uma reação conservadora, demonstrada a princípio por uma passeata a favor do General Charles De Gaulle, que reuniu cerca de 800 mil em Paris, e confirmada com a vitória das dos gaulistas nas eleições convocadas para junho daquele ano (muito embora o general não tenha permanecido por muito tempo no poder). No plano sócio-cultural houve ganhos, como a reforma universitária e uma maior apropriação das liberdades individuais.

Em contraponto à politização dos anos 60 e 70, onde o ativismo social se expandiu e ramificou-se em diversas causas, uma nova forma de subjetividade ganharia força nos anos 80. O coletivo, o interesse pelo outro, seria ofuscado pelo individualismo, uma das características da “sociedade narcísica”, conforme Lasch (Verdaguer, 2001). Além disso, o design também enfrentaria uma série de mudanças e questionamentos que transformaria a sua abrangência, prática e conceito como até então eram conhecidos.

O Design revisitadoOs anos 80 foram marcados pela evolução dos micro-processadores,

que tornou os computadores menores e mais acessíveis. Alguns designers, como Zuzana Licko e Rudy Vanderlans, começavam a desvendar as reais possibilidades que os computadores Macintosh, lançados pela Apple no início desta década, proporcionariam ao design gráfico. De fato haveria mudanças técnicas que reduziriam o processo de produção e impressão, e o simplificariam (extinguindo classes profissionais especializadas inteiras), tornando-o mais barato, mas que também atribuiriam novas responsabilidades aos designers.

Ao mesmo tempo, uma nova ordem estética surgiu e tomou força ao

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longo dos anos 90. Na verdade foram várias tendências, que desafiavam o estilo “moderno” então dominante, e por isso mesmo foi chamado de “design pós-moderno”. A forma, o conteúdo, a tipografia, o certo e o errado, o design “feio” e o “bonito”, tudo foi questionado, repensado, reordenado.

A centralização na busca pelo “novo”, em termos estético-formais, dominou grande parte da discussão de designers, das revistas especializadas e do corpo estudantil/docente nos anos 903. Ao mesmo tempo, diz Poynor (2000), na imprensa especializada, em palestras de designers conhecidos, e mesmo em muitas áreas da educação do design, aprendia-se e reforçava-se, acima de tudo, o uso comercial do design.

A percepção de que o design se dedicava cegamente a favor do consumo e do mercado levou à publicação atualizada do manifesto First Things First, texto originalmente lançado em 1964 por Ken Garland:

“Muitos de nós estamos cada vez mais desconfortáveis com essa visão de design. Designers que devotam seus esforços primordialmente na propaganda, no marketing e no desenvolvimento de marcas estão apoiando, e implicitamente endossando, um ambiente mental tão saturado de mensagens comerciais que está mudando o modo que os cidadãos-consumidores falam, pensam, sentem, respondem e interagem [...]. Nós propomos [...] uma mudança de mentalidade que se afaste do marketing do produto e busque a exploração e a produção de um novo tipo de significado. O consumismo segue solto. Ele deve ser desafiado por outras perspectivas, expressas em parte através das linguagens visuais e dos recursos do design” (First Things First 2000, 1999). 4

Neutralidade e ApatiaDesde que se estabelecera no mundo corporativo décadas atrás, alguns

conceitos predominaram no ensino e na prática do design, defendendo uma abordagem “neutra” e profissional. Por tais termos, subentendia-se deixar de lado quaisquers abordagens pessoais. A docente do Illinois Institute of Technology’s Institute of Design, e também designer, Katherine McCoy, mostra-se cética quanto a esta abordagem:

“A implicação da palavra profissional é o indicativo do problema aqui. Quão freqüentemente escutamos, ‘Aja como um profissional’, ou ‘Eu sou um profissional, posso cuidar disso’. Ser um profissional significa pôr de lado as reações pessoais independente da situação e seguir em frente. Prostitutas, praticantes da ‘mais antiga profissão do mundo’, devem manter um extremo de fria objetividade, sobre a mais íntima das atividades humanas, disciplinando suas reações para dar um produto a seus clientes consistente e imparcial”. (McCoy, 1997).

Assim, a idéia de que o designer deveria responder incondicionalmente ao cliente, ajudou a criar, junto com o já comentado quadro de mudanças pelas quais o design gráfico passou desde a década de 80, uma mentalidade que, em geral, cristalizou uma atuação mais ativa do designer frente à realidade que o circunda – que inclui também, além do cliente, o seu

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público, o mundo e seus problemas.Por outro lado também há fatores maiores que ultrapassam o domínio

do design. As mudanças históricas do século passado, que culminaram na crise dos valores tradicionais, geraram diferentes modos de comportamento por parte da sociedade.

O sociólogo Gilles Lipovetsky (1997) descreve um deles:“Após a agitação política e cultural dos anos 60, que podia parecer

ainda um investimento de massa da coisa pública, é uma desafecção generalizada que ostensivamente se afirma no social, tendo por corolário o refluir dos interesses no sentido de preocupações puramente pessoais e isto independentemente da crise econômica. A despolitização e a dessindicalização ganham proporções nunca antes atingidas, a esperança revolucionária e a contestação estudantil desapareceram, a contra-cultura esgota-se, raras são as causas ainda capazes de galvanizarem a longo prazo as energias [...] Viver o presente, apenas no presente, já não em função do passado e do futuro, é esta ‘perda do sentido da continuidade histórica’ (C.N., p. 30), esta erosão do sentimento de pertença a uma ‘sucessão de gerações enraizadas no passado e prolongando-se no futuro’ que, segundo Christopher Lasch, caracteriza e engendra a sociedade narcísica. Hoje vivemos para nós próprios, sem nos preocupar-nos com as nossas tradições nem com a nossa posteridade: o sentido histórico sofre a mesma deserção que os valores e as instituições sociais”.5

Maria Eugenia Verdaguer (2001) contrapõe, em seu artigo “Betinho e o poder de uma utopia”, duas subjetividades contemporâneas: uma ligada à sociedade narcísica, descrita acima; e a outra, a que ela identifica de “romântica”. Ambas frutos de um mesmo contexto social, mas diferentes quanto ao modo de lidar com a alteridade, com a questão do outro. Na primeira, uma vez que a sociedade é vista como instável, há uma perda de confiança no futuro, e o “eu” se contrai em si mesmo, como uma defesa. Na segunda, o indivíduo rompe este esse estado primeiro e, munindo-se daquilo que Giddens chama de desenvolvimento da “reflexividade social”, “filtra as informações que lhe servem de guia e define suas ações no nível doméstico, comunitário, econômico e político, buscando novas propostas de sociabilidade e o resgate dos laços sociais” (ibidem).

É nessa segunda forma de pensar que identificamos a atuação de alguns indivíduos e grupos ligados à comunicação visual no mundo contemporâneo. Se nos anos 60 e 70 o trabalho gráfico “político” se concentrou principalmente em ONG´s, na atualidade ele se diversifica na atuação, na produção e no próprio modo de pensar o design.

Outros RumosUm dos designers mais reconhecidos por seu lado politizado no mundo

contemporâneo é Jonathan Barnbrook, da Inglaterra. Seu campo de trabalho é amplo. Inclui livros, identidade corporativa, filmes, fontes e editorial. É nesses dois últimos que o design de Barnbrook mais se destaca.

A série “9 de setembro” foi feita logo após o atentado que resultou na queda das torres do World Trade Center, em Nova York, em 2001, e foi publicada em várias revistas. Numa das páginas, o desenho de um avião

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segue em direção às duas torres, estilizadas como códigos de barras. A mensagem é clara. A ilustração vai ao centro de uma questão importante num momento delicado: o capitalismo e os deslocamentos (econômicos, sociais, globais) que ele provoca.

Essa clareza de Barnbrook, que reflete uma decisão de fazer do design um instrumento de contestação social, começou com uma forma peculiar de olhar o mundo:

“[...] Quando eu era mais jovem, eu me sentia mal pela influência cultural americana que parecia infiltrar minha cultura. Sabemos que todas as culturas são influenciadas pelas outras, mas parecia que essa cultura de massa americana não tinha consideração pela minha própria, só queria achatá-la. Eu queria voltar à idéia do que era único de onde eu vinha. Isso era expresso de modos diferentes – um amor pela música britânica pop, onde as pessoas cantavam sobre lugares e acontecimentos que eu entendia. Outra coisa era fazer algo bem simples, como andar ao redor de uma área e olhar o ambiente – tentar entender a atmosfera histórica e emocional de onde eu tinha nascido” (Barnbrook, 2002).

Muito do seu trabalho comercial inclui multinacionais, como Sony Music e Honda, o que pode significar uma grande contradição para um combatente do capitalismo selvagem. Barnbrook confessa que no início tinha dúvidas quanto a aceitar ou não certos clientes. Mas depois resolveu seu conflito: “Se você está dentro da indústria e enfatiza a aquelas pessoas o desconforto que você sente com algumas das coisas que estão acontecendo então isto pode ter mais impacto do que simplesmente lavar suas mãos” (Barnbrook, 2003). Além disso, com o dinheiro vindo desses clientes, Barnbrook investe em projetos pessoais e nas fontes Vírus6. Mesmo assim, o designer cita alguns clientes indesejáveis, como a Nike (apesar de já ter realizado trabalhos para a companhia no passado) e o MacDonald´s.

Para alguns designers o veto a certos tipos de clientes permanece como condição essencial para trabalhar. Na Argentina, os designers Anabella Salem e Gabriel Mateu fundaram em 1992 o escritório �El fantasma de Heredia� que trabalha exclusivamente com projetos de cunho político, cultural e social. Seu trabalho com pôsteres é conhecido mundialmente, tendo sido premiado no exterior várias vezes. Na Holanda, nos anos 80, os designers do Wild Plakken, Lies Ros e Rob Schröder, levaram às últimas conseqüências sua opção por clientes não-corporativos: só realizavam trabalhos pro-bono (que não visam lucro ou que tem uma remuneração simbólica) nas causas que acreditavam. Schröder, por exemplo, vivia ilegalmente no escritório do Wild Plakken, enquanto Ros alugava um pequeno apartamento.

Barnbrook e as duplas mencionadas destacam-se tanto por seus trabalhos pessoais quanto pelos profissionais: mas enquanto Wild Plakken e “El fantasma de Heredia” tem nos pôsteres seu principal meio de comunicação, Barnbrook vai além dele, destacando-se também com suas fontes e no design de revistas7.

A fonte feita por Teal Triggs, Liz McQuiston e Siân Cook, Pussy Galore (Poynor, 2003; Farias, 2003), questiona os diferentes modos de

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como as mulheres têm sido tratadas na linguagem escrita e falada, em 4 níveis: apoderamento das mulheres, estereótipos ruins, escolhas pessoais e linguagem sexual/vulgar. Entre as referências, estão “buceta”, “mãe”, “dona de casa”, “loira burra”, e “sexo frágil”. A interação entre os diferentes níveis e entre a própria escrita, que pode ser aleatória, propõe a exploração de novos significados no contexto das palavras/desenhos a cada letra digitada.

Taku Satoh apresenta um outro tipo de reflexão com seu trabalho, mais preocupada com o meio ambiente e a relação com a sociedade. Em seu trabalho para o redesign de uma embalagem de um whisky japonês, Satoh propôs a reutilização da garrafa para outros fins: uma rolha acompanha o produto para ser utilizada depois que a bebida acaba, e a embalagem gráfica é facilmente removível com sabão; significa, simbolicamente, uma reapropriação e uma desvinculação à identidade da marca, ainda que parcial, em favor de uma sociedade que tem que lidar com o problema do lixo e do consumo excessivo:

“[...] a produção de massa não pode ser simplesmente negada, pois possibilita a eficiente distribuição das necessidades diárias de muitas pessoas. Rejeitá-la agora implica em dificultar a vida cotidiana do povo. Não sou totalmente a favor da sociedade moderna que prega a produção-de-massa, mas se não enfrentarmos o problema não haverá futuro melhor.” (Satoh, 2001).

Existe ainda um outro caminho que, longe dos domínios do design gráfico “institucionalizado”, tem se infiltrado na paisagem urbana, em cidades do mundo todo, provocando discussões sobre o espaço público e sua utilização: o sticker. Numa definição bastante simplista, são ilustrações feitas em papel adesivo8, pregadas ao longo de vias públicas, em lixo, postes e paredes. Os temas são os mais variados: alguns são claramente políticos, como os stickers adesivados em São Paulo no dia do “Buy Nothing Day”, em 2003, estimulando o não-consumo nesse dia. Outros dialogam com a paisagem urbana, e parecem ser mais uma intervenção estética, que visa captar o olhar do passante.

De qualquer forma, o sticker por si só já é um objeto de resistência ao excesso de publicidade na cidade e à utilização do espaço público. Numa cidade como São Paulo, distante da ordem e da limpeza das cidades européias, esta resistência fica ainda mais gritante, ainda que se possa confundir com a paisagem urbana visual:

“Não acho certo que o espaço urbano seja destinado apenas a agências de publicidade, empresas e políticos. A única coisa permitida por lei é anúncio. Está errado, o espaço público é de todos”, diz Stephan Doitschinoff, conhecido como “o Calma”, atuante na cidade de São Paulo. (Macedo, 2004).

ConclusõesOs designers e grupos citados formam um breve painel e mostram

a diversidade da atuação do design gráfico com preocupações sociais e políticas. Há o trabalho gráfico desenvolvido dentro das Ong´s, como o do Wild Plakken; outros, como os de Barnbrook e Taku Satoh, se inserem

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diretamente no sistema capitalista, mas mantêm uma postura/atuação crítica; e existe por fim aqueles que se encontram à margem desse sistema, como os que produzem os stickers. Todos eles, é importante frisar, são acompanhados de tensões dentro de cada contexto, que são resolvidas através de uma reflexão dialética por parte de seus praticantes.

Os exemplos também ampliam o conceito do “design gráfico social”, termo mais conhecido do que no presente artigo denominamos “design gráfico com preocupações sociais”, comumente associado a trabalhos em Ong´s e pôsteres, para uma prática maior. Podemos dizer que ele envolve os trabalhos gráficos nas suas mais diversas expressões (fontes, cartazes, embalagens, etc), de diversas naturezas (remunerados, trabalho pessoal), e que possuem uma preocupação social/política/ambiental específica; ainda inclue toda reflexão que envolve o processo do fazer e do pensar design, em questões diretamente relacionadas à ética, ao meio ambiente, à política e à sociedade.

Essa prática, no entanto, parece estar limitada a um pequeno número de pessoas e grupos que a fizeram e a fazem a partir de reflexões próprias, surgidas em diferentes contextos sócio-econômico e culturais, em contraponto a uma maioria que continua exercendo seu papel sem maiores preocupações - e constrangimentos - na sociedade. Nessa perspectiva, não há dúvidas de que o ensino no design tem uma grande responsabilidade para fomentar uma visão mais crítica do designer.

Na literatura sobre a formação do docente existe uma discussão sobre a expansão do significado da palavra “conhecimento” e sua implicação no significado e na prática da docência. O saber passa a se preocupar não apenas de conhecimentos eruditos, mas também “da formação do cidadão nas diversas instâncias em que a cidadania se materializa: democrática, social, solidária, igualitária, intercultural e ambiental” (Mizukami, Realli et alli, 2003). Essa visão ultrapassa a simples transmissão de conteúdo, e estimula uma formação reflexiva, que leva ao exercício da cidadania.

Alguns profissionais ligados à educação do design parecem ter idéias semelhantes: “O que tenho mais em mente é estimular um conjunto de cidadãos ativos, informados, participantes preocupados com a sociedade e que são designers gráficos. Devemos parar de ensinar nossos alunos inadvertidamente a ignorar suas convicções e a serem servos passivos da economia.” , diz a professora e designer Katherine McCoy (1997).

Também é necessário que pensemos o design gráfico com preocupações sociais dentro do contexto brasileiro. Muito das condições citadas no “First Things First 2000” não se aplicam diretamente à nossa sociedade. Publicado em algumas revistas especializadas brasileiras, o manifesto foi ignorado pelo público, e num certo sentido, pelos próprios editores, por não fomentar uma discussão maior, como se a simples publicação do texto desencadeasse uma revolução na prática e no pensar design.

Falar de consumismo desenfreado pode ser uma realidade concreta numa rica cidade européia, mas no Brasil pouquíssimos têm acesso ao consumo de bens de luxo ou supérfluos9. Nossa realidade está mais próxima da favela, da violência e do acesso deficiente à saúde e à educação, que do consumo de poucos numa boutique de luxo como a Daslu.

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Retomando o conceito do designer/cidadão, talvez um dos exemplos mais preciosos dentro da história brasileira do design seja a atuação de Aloísio Magalhães. Nascido em Recife, artista plástico, designer gráfico e formado em direito, ele é bastante conhecido no meio gráfico por sua importante contribuição na história do design gráfico (foi um dos fundadores da ESDI e designer de várias marcas brasileiras, entre elas a Petrobrás). Aloísio passou a atuar no design, pois via nele possibilidades de transformação social maiores que as proporcionadas pelas artes plásticas. Seu caminho para a política foi natural. No entanto pouco se enfatiza a sua atuação política no período da ditadura e da abertura. Magalhães envolveu-se diretamente em questões da cultura brasileira, como a educação e o patrimônio cultural, sendo inclusive secretário da cultura em 1981 no Ministério da Educação e Cultura. Trabalhar para um governo em plena ditadura, e ao mesmo tempo, procurar fazê-lo em benefício do povo, significou muitas vezes uma reflexão dialética diante da complexidade das questões. Reflexão sempre acompanhada de ações concretas na sua atuação.

[Resposta de Aloísio Magalhães à pergunta: O senhor não estará sendo muito utópico?]

Muito utópico, e isso não me ofende. Nada que tenha um significado mais profundo deixa de ter certo aspecto utópico. Ele estimula a perseguição. É próprio do utópico você não atingi-lo, mas, se não for em busca dele, se você não quiser sair do convencional, aí então o marasmo será inevitável. (Magalhães, 1997)

Aloísio Magalhães constitui um exemplo de um designer-cidadão. Transcendeu o papel de mediador entre clientes e o público com seu trabalho de design, para ser um ativista concreto das questões que se apresentavam, e ainda se apresentam hoje, urgentes de solução na sociedade brasileira.

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.html. Acesso em 20/01/2006. (Footnotes)1 Agradeço à Dra. Belkis Trench, que coordenou o Projeto Ondas, no qual fui bolsista TT3-FAPESP entre 2002 e 2004, com quem aprendi muito sobre o universo da pesquisa.2 O termo “design gráfico social” freqüentemente é usado para designar trabalhos com preocupação social/política, o que é um pouco redundante, uma vez que todo trabalho se depara, essencialmente, com o campo político e social. 3 Não se deve esquecer também que foi nessa década que o designer foi elevado à condição de celebridade, da qual David Carson é o principal representante.4 O manifesto foi assinado por profissionais da área bastante reconhecidos internacionalmente, como Jonathan Barnbrook, Katherine McCoy, Tibor Kalman, Zuzana Licko e Erik Spikerman, e reimpresso e traduzido por diversas revistas ao redor do mundo no ano 2000.5 No Brasil, não é difícil associar a esta questão a regulamentação da profissão de designer gráfico, que, apesar de há anos chancelada pelo primeiro curso superior de desenho industrial na ESDI, em 1962, ainda hoje patina em seu reconhecimento. 6 Alguns nomes das fontes de Barnbrook são “homenagens”: Bastard, Nixon e Drone.7 No projeto da revista Design, da Coréia do Sul, Barnbrook fez severas críticas ao regime ditatorial na Coréia do Norte; Na Adbusters, também realizou o número especial “Designer´s Anarchy issue”.8 A produção do sticker é bastante variada: de ilustrações coladas em papel Contact à impressões de serigrafia em papel adesivo.9 Mesmo nos Estados Unidos, houve críticas questionando o conceito do consumismo como algo negativo (MacDonald, 2000).