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i JAIRO PERIN SILVEIRA COM QUANTAS FLAUTAS SE FAZ UMA CANÇÃO?: Reflexões e práticas nas aulas de música do ensino fundamental CAMPINAS 2014

COM QUANTAS FLAUTAS SE FAZ UMA CANÇÃO? · 2018-08-26 · vii RESUMO No mundo em que vivemos, percebemos aumentar, a cada dia, a quantidade de sons em todos os ambientes e muitas

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JAIRO PERIN SILVEIRA

COM QUANTAS FLAUTAS SE FAZ UMA CANÇÃO?:

Reflexões e práticas nas aulas de música do ensino fundamental

CAMPINAS

2014

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RESUMO

No mundo em que vivemos, percebemos aumentar, a cada dia, a quantidade de

sons em todos os ambientes e muitas vezes, esses sons característicos, nem sempre são

saudáveis. A audição é um dos sentidos que tem sido muito estimulada nos dias atuais,

porém, não se trata de um escuta voltada para uma percepção de mundo, mas ao contrário,

uma escuta que é quase como um anestésico para a poluição sonora que tem se

estabelecido. Diante disso, é possível pensar uma educação musical que possa atuar através

da criação levando em consideração diferentes sonoridades e um novo fazer musical. O

presente trabalho apresenta o relato de duas experiências realizadas com alunos do Ensino

Fundamental I na disciplina de Educação Musical – Ecos da Floresta: suíte em quatro

movimentos para Orquestra de Papel e Festa de São João -, onde é apresentada uma

abordagem de aprendizagem significativa que objetiva convidar os alunos a buscarem, de

forma lúdica, experiências e informações musicais, que os levem a adquirir novos

conhecimentos e habilidades artísticas, enquanto participam de um projeto de cunho

fortemente interdisciplinar. A primeira experiência se baseia nos preceitos da Ecologia

Acústica, um termo cunhado por Murray Schafer e os modelos de improvisação proposto

por Koellreutter. Trata-se de uma atividade educacional que gera artificialmente o

correspondente a uma paisagem sonora de uma floresta tropical – explorando o

desenvolvimento cronológico de sua formação, sua deterioração e da sua reconstituição.

Foram utilizados como matéria prima sonora, ruídos feitos com diferentes tipos de papel.

Nesta proposta de criação artística, com elementos da música tonal e pós-tonal – nas

fronteiras entre o som, o silêncio e o ruído – focou-se o desenvolvimento de uma ação

interdisciplinar que promova o desenvolvimento individual e a evolução social dos alunos.

A segunda experiência, além de propor uma investigação sobre os diversos modos de

perceber, compreender e realizar as músicas, busca uma reflexão sobre como a preparação

de um ambiente propício à aprendizagem é tão importante quanto os conteúdos e

consequentemente, os novos papéis que cabem ao professor desempenhar nesta outra

situação: os diálogos entre culturas. Isto inclui, dentre várias atitudes, considerar a

possibilidade de diferentes formas de participação dos alunos nos eventos musicais

propostos em aula. Trafego pelas áreas da educação musical e da etnomusicologia para

compreender outras formas de concepção e mesmo de relação significativa com as músicas

geradas pelas manifestações populares brasileiras. A partir, então, dos conceitos de “música

participativa”, proporcionar uma experiência estética baseada no fazer artístico e na

interpretação de músicas que envolvem a voz, o gesto e a técnica instrumental. O exemplo

do ator brincante, do mestre popular, pode servir como parâmetro de revisão do papel do

professor de música em sala de aula. A partir da ideia de experiências multiculturais, buscar

formas criativas capazes de envolver os alunos em práticas musicais que sejam

significativas para eles. Propor, então, uma ação educativa interdisciplinar pautada numa

arte expressiva, auxiliadora na construção de valores sociais.

Palavras-chave: educação musical; etnomusicologia; improvisação.

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ABSTRACT

In the world we live in, we notice more and more, the increase of sound in all

the environment and many times, they are not considered good for your health. Currently,

the sense of hearing has been stimulated a great deal, however, not in the aspect of listening

directed to the perception of the world around us, but the kind seen almost as an anesthetic

against noise pollution. According to this, we could consider a type of music learning to

work through creativity dealing with new sounds and a new “music creation”. This work

lists two experiments performed on grade school students in the Music Learning subject –

Ecos da Floresta (Forest Echos): suíte in four movements for the Orquestra de Papel (Paper

Orchestra) and Festa de São João –, in which a crucial learning approach that focuses on

helping students to find, in a playful way, experiences and music information that will

allow them to acquire know-how and artistic skills while taking part of a multitask project.

The first experiment is based on the Acoustic Ecology perception, a terminology coined by

Murray Schafer as well as the improvisation models proposed by Koellreutter. This is a

learning activity that creates artificially something similar to a noise soundscape from a

tropical Forest – exploring the chronological development of its creating, deterioration and

reconstruction. As the raw material, sound and noise were created with different kinds of

paper. In the proposed artistic creation, using elements from tonal and post tonal – in the

border between sound, silence and noise – the focus was on developing a multitask action

that would promote the individual development as well as the social evolution of students.

The second experiment, in addition to the proposition to investigate the several methods of

perception, understanding and play the music, deals with a reflection on how to prepare a

suitable environment for learning which is as important as the content and consequently,

the new roles of teachers in other aspects, i.e., dialogue between cultures. This also

includes, among other attitudes, considering different ways from the students to participate

in musical events that are proposed during classes. In addition it suggests going through

music classes and ethnomusicology to understand other manners of conception as well as

the important relationship with the music originating from popular manifestations in Brazil.

Based on the “participative music”, it should provide an esthetic experience based on the

artistic performance and the interpretation of music that involve voice, gestures and musical

techniques. The role of a playful actor, the popular teacher, can be used as a parameter to

review the role of the music teacher during classes. Based on the multicultural experiences,

they are creative methods able to involve students to perform music that mean something to

them. Therefore, it proposes multitask learning aspects guided by expressive art to help

build social values.

Key words: music education; ethnomusicology; improvisation.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................1

2 ALICERCES PARA PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

NO ENSINO FUNDAMENTAL........................................................................................15

2.1 O ENSINO DE MÚSICA COMO UM POCESSO “ABERTO”..............................15

2.2 O MÚSICO E EDUCADOR KOELLREUTTER.....................................................17

2.2.1 O Movimento Música Viva: Um Projeto de Difusão Cultural..................................20

2.2.2 Koellreutter: Uma Proposta “Aberta” de Educação Musical....................................23

2.2.2.1 Sociedade, cultura e educação...................................................................................25

2.2.2.2 Arte funcional............................................................................................................28

2.2.2.3 O ambiente criativo na sala de aula e o ensino pré-figurativo..................................29

2.3 MURAY SCHAFER: UMA EDUCAÇÃO PARA OS SONS.................................33

2.3.1 Limpeza de Ouvidos..................................................................................................36

2.3.2 Paisagem Sonora.......................................................................................................37

2.3.2.1 Aspectos da paisagem sonora....................................................................................38

2.3.3 Ecologia Acústica......................................................................................................40

2.3.4 Afinação do Mundo...................................................................................................42

2.3.5 Educação Musical ou Educação Sonora?..................................................................45

2.4 MÚSICA PARTICIPATIVA: EDUCAÇÃO MUSICAL INCLUSIVA..................54

2.4.1 Fazer Musical: Espontaneidade e Responsabilidade.................................................54

2.4.2 Professor ou Um Ator Brincante?.............................................................................63

2.4.3 Passeando por Outras Culturas..................................................................................65

3 RELATO DE EXPERIÊNCIA: AÇÃO PEDAGÓGICA A PARTIR

DE UMA PROPOSTA PARTICIPATIVA.......................................................................69

3.1 EXERCÍCIOS PRELIMINARES.............................................................................70

3.1.1 Inventando Instrumentos musicais artesanais (matemática e medidas)....................71

3.1.2 Instrumental Baschet.................................................................................................73

3.1.3 Barth Hopkins............................................................................................................75

3.1.4 Grupo Uakti (som do vento)......................................................................................77

3.1.5 Philip Glass................................................................................................................81

3.1.6 Fernando Sardo..........................................................................................................81

3.2 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO..................................................................83

3.3 MODELOS DE IMPROVISAÇÃO: UMA ABORDAGEM TEÓRICA.................89

3.4 O AMBIENTE COMPUTACIONAL PURE DATA (PD).......................................92

3.5 DO PAPEL AO PD...................................................................................................93

3.6 MEMORIAL DESCRITIVO....................................................................................94

3.7 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES...........................................................................110

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4 FESTA DE SÃO JOÃO........................................................................................113

4.1 DESCRIÇÃO DA FESTA DE SÃO JOÃO -

ENSINO PRÉ-FIGURATIVO............................................................................................115

4.1.1 Festa.........................................................................................................................116

4.1.2 Festas Indígenas......................................................................................................118

4.1.3. Festa do Solstício de Inverno: a Festa de São João.................................................118

4.1.4 Simbologia...............................................................................................................122

4.1.5 Música.....................................................................................................................126

4.2 A FESTA DE SÃO JOÃO NA SALA DE AULA..................................................128

4.2.1 Procedimentos Metodológicos................................................................................128

4.2.2 Memorial Descritivo................................................................................................130

4.2.2.1 1ª etapa: escalas e ritmos.........................................................................................130

4.2.2.2 1ª etapa: escuta dos ambientes.................................................................................140

4.2.2.3 2ª etapa: etnografia da festa de São João: preparação da peça musical...................144

4.2.2.3.1 1ª parte..............................................................................................................144

4.2.2.3.2 2ª parte..............................................................................................................147

4.2.2.3.3 3ª parte..............................................................................................................153

4.2.2.3.4 4ª parte..............................................................................................................159

4.2.2.4 3ª etapa: processo de colagem...............................................................................165

4.2.3 Algumas Considerações........................................................................................171

5. OUVIR O MUNDO E PODER PARTICIPAR

DESTA GRANDE MÚSICA: CONCLUSÃO................................................................177

6. REFERÊNCIAS..................................................................................................189

7. ANEXOS..............................................................................................................195

Anexo 1 - Frevo Vassourinhas.........................................................................195

Anexo 2 - Festa de São João............................................................................197

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À memória de Ricardo Porto Alves,

que além de um grande amigo, foi um

autêntico Brincante.

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AGRADECIMENTOS

À Rosana Brandão, Beatriz Silveira e Luca Silveira, pelo estímulo, paciência e

compreensão não só no período de elaboração deste trabalho, mas em todos os momentos.

Aos alunos do Colégio Educap. Sem eles este trabalho não teria acontecido.

A todos os meus alunos, crianças e adultos, que com sua curiosidade, me

inspiram a ir cada vez mais longe.

À José Coelho Silveira e Jurandyr Silveira, meus professores de berço.

À Sérgio Nunes Faria, pelas inúmeras horas dedicadas à reflexões e ações

educativas e a quem também dedico este trabalho.

Ao meu orientador, Jorge Schroeder, por sua participação ativa e

disponibilidade em todos os momentos desta pesquisa.

À Tuti Fornari, pelo apoio nas implementações em PD e pela parceria em

diversas produções acadêmicas.

Ao colégio Educap pela liberdade de atuação e confiança depositada em meu

trabalho com as crianças.

À família Augusto Brandão, sempre presente nos momentos importantes da

minha vida.

Aos meus amigos Edgar Alan, Ruy Sousa Dias, José Luiz da Rocha e Jurandyr

Silveira Jr., que, sem dúvida nenhuma, se pudessem, estariam aqui para comemorar este

dia.

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1 INTRODUÇÃO

O mundo ocidental, a partir do século XVII, passou por uma grande mudança

em decorrência do surgimento do pensamento cartesiano que iria “nortear a tradição

epistemológica ocidental” (FONTERRADA, 2005, p. 40). Foram grandes mudanças no

campo da ciência que se refletiram, também, no campo das artes. Na música, em particular,

surgiram novos caminhos no âmbito da composição, isto é, “as teorias apresentadas

compartilham os mesmos modos de apreensão do mundo e sofrem influência de seu tempo

e espaço” (FONTERRADA, 2005, p. 47). O novo modelo de composição refletiu os

valores da época, dentre eles: medida matemática do tempo; hegemonia da melodia

acompanhada propondo uma nova forma de escuta, isto é, uma escuta linear, melódica e

temática; estrutura formal clara; valorização de elementos de repetição. Estamos falando da

música tonal que, segundo definiu Wisnik, é “uma música que produz a impressão de um

movimento progressivo, de um caminhar que vai evoluindo para novas regiões, onde cada

tensão (continuamente reposta) se constrói buscando o horizonte de sua resolução”

(WISNIK, 1989, p. 105), isto é, um movimento cadencial1 de tensão e repouso. Pode-se

dizer que, nesse período, o ser humano procedia de “maneira cartesiana” e todos esses

modos de organização “são sintomáticos do período que inaugura o modo de pensar

científico, baseado na reflexão e experiência” (FONTERRADA, 2005, p. 47).

Do século XVII até a metade do século XIX é possível perceber um domínio

completo da tonalidade na música ocidental: a escala diatônica2 como modelo de

organização sonora. “No período romântico, principalmente, na segunda metade do século

XIX, as vias resolutivas tornam-se mais sinuosas, tortuosas, mediatas” (WISNIK, 1989, p.

1 A tonalidade redimensiona o espaço da escala diatônica segundo uma hierarquia funcional baseada na

triangulação entre o primeiro grau (tônica), quarto grau (subdominante) e o quinto grau (dominante) da escala resolvendo as tensões colocadas pelas dominantes através de um movimento repousante em direção à tônica. A este movimento denomina-se cadência. Os acordes formados sobre cada nota da escala permite à harmonia articular toda a série melódica tonal, subordinando todos os sons à lógica do encadeamento (WISNIK, 1989). 2 Trata-se de uma escala composta de sete notas contendo cinco tons e dois semitons criando um jogo de polarização entre a tônica e suas quintas.

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119). A escala tonal de sete notas move-se para outras regiões harmônicas (modulação3) o

que permite um maior número de possibilidades combinatórias, mas ainda assim, dentro do

sistema tonal.

A partir do século XVIII, época em que começam a aparecer os primeiros

textos relacionados à educação musical, é possível perceber uma metodologia de ensino

ligada a esse pensamento cartesiano; um modelo de educação, segundo definiu Fonterrada

(2005), “linear, direcional e causal”. Daí em diante, sempre que os pensadores e estudiosos

se referiram à educação musical, esta ideia de linearidade esteve sempre presente: “trilham-

se caminhos, alcançam-se objetivos e elegem-se estratégias” (FONTERRADA, 2005). E

este procedimento, de um modelo de educação musical ligada ao pensamento cartesiano,

complementa a autora, se refletirá diretamente sobre as formas de composição da época.

No campo da música erudita europeia, no início do século XX, surge uma nova

estética composicional quando a necessidade de “superação do sistema tonal e do tempo

linear” leva os compositores a buscar novas sonoridades através, dentre outros recursos, de

novas organizações formais e estruturais, de descontinuidades, multiplicidade de linhas,

expansão e aglutinação de tempos e formas, e que vem alterar de maneira drástica um

panorama musical que excluía o ruído da composição musical, como pôde ser observado na

música de Stravinski, Schoenberg, Satie e Varése entre outros. Nesse sentido, segundo

Wisnik, que considerou essa época como uma reviravolta nesse “campo sonoro filtrado de

ruídos”, “a ecologia sonora do mundo moderno está alterada, ruído e silêncio entrarão com

inevitável violência no templo leigo do som, a redoma da representação tonal em que se

constituía o concerto” (WISNIK, 1989, p. 39). Muitos outros tipos de sons, a partir desse

momento, passam a fazer parte da linguagem musical que, incorporados à composição,

tornam-se elementos de renovação dessa linguagem, qual seja, a música tonal erudita

europeia do século XIX.

Dentro desse novo contexto de uma nova poética musical, baseado, entre outros

procedimentos, na prática exploratória, ainda, segundo Wisnik, a utilização do ruído como

3 Na música tonal, refere-se ao deslocamento temporário da tônica, o centro de referência harmônica do

sistema, de uma altura (tonalidade) à outra através de relações de tensão e repouso num processo musical contínuo.

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material composicional se manifesta de dois modos: no primeiro, o ruído é a “própria

textura interna à linguagem musical” e atua de modo a interferir sobre o sistema tonal que

já vinha se transformando através das alterações rítmicas e harmônicas, da quebra da

métrica do compasso, do uso de dissonâncias, alterações timbrísticas e de texturas e por

consequência a quebra da hegemonia da linha melódica4; no segundo, o aparecimento de

ruídos externos que simbolizam os “índices do habitat urbano-industrial" com o qual nos

habituamos.

Esse método exploratório, característico da nova música do século XX, vai

refletir-se diretamente na educação musical no que diz respeito a ideias de inovação e à

criação de técnicas alternativas ao modelo de ensino tradicional, este último que se

estabeleceu e se voltava exclusivamente para os princípios da música tonal nos moldes

eruditos europeus. O final do século XIX foi marcado por profundas transformações no

campo intelectual, social e científico e essas transformações manifestaram-se nas artes. A

nova visão de espaço e tempo determinada pela física vai interferir diretamente nas noções

de espaço, forma e tonalidade5 nas artes.

Einstein, com sua teoria da relatividade, nega o espaço e o tempo absolutos e os

considera mutuamente dependentes. As propostas artísticas do mesmo período

manifestam idêntica preocupação e relativizam essas noções, dissolvendo o

tempo e o espaço e reavaliando os princípios geométricos da perspectiva

(FONTERRADA, 2005, p. 81).

Enquanto as artes de um modo geral se preocuparam com a questão do espaço6,

4 Melodia é uma série de notas musicais dispostas em sucessão, num determinado padrão rítmico, para formar uma unidade identificável. A melodia é um fenômeno humano que remonta à pré-história; em suas origens, serviram-lhe de modelo a linguagem, o canto dos pássaros, bem como o choro e as brincadeiras infantis. [...] O conceito de melodia varia bastante entre diferentes culturas, mas a maioria delas apresenta padrões estabelecidos, de organização de motivos e de cadenciamento final [...] Na música tonal europeia, desde a época dos travadores medievais, passando pelos compositores de canções do final do Renascimento e os compositores operísticos do bel canto, a melodia sempre teve importância capital, e assim permaneceu particularmente nos períodos clássico e romântico, tanto na música instrumental quanto vocal (SADIE, 1994, p. 592). 5 Termo aplicado mais comumente ao sistema utilizado na música erudita ocidental do século XVII ao XX.

Nesse sistema, diz-se que a música tem uma determinada tonalidade quando as notas predominantemente utilizadas formam uma escala maior ou menor; a tonalidade é a da tônica, ou nota final dessa escala, e é maior ou menor segundo as alturas das notas que a escala abrange (SADIE, 1994, p. 953). 6 Na pintura, o impressionismo explorou a dissolução do espaço geométrico.

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a música se comprometeu a quebrar com o sistema tonal maior/menor e com os princípios

de organização rítmica que vinham, até aqui, direcionando a composição musical. Como

reflexo dessas transformações artísticas e científicas que ocorreram, surge uma série de

músicos comprometidos com o ensino de música, a partir desses novos princípios e

recursos utilizados nas criações musicais do século XX. Vários deles foram responsáveis

por criar propostas e abordagens para a educação musical a partir desse novo panorama que

se estabelecia, isto é, uma proposta de educação musical que se dava na prática, na qual a

criança iniciava os seus estudos de música diretamente no instrumento, sem a necessidade

de uma preparação teórica. Essas propostas foram denominadas posteriormente como

“métodos ativos” e dentre os autores dessas propostas inovadoras para o período estão:

Émile-Jacques Dalcroze, Edgar Willems, Zoltán Kodály, Carl Orff e Shinichi Suzuki. Com

a exceção de Suzuki – que, embora seja de origem japonesa, e viveu durante muitos anos na

Alemanha -, todos os outros nomeados eram de origem europeia.

Dos métodos ativos, o mais importante a ressaltar sobre o que diziam os seus

autores, era a importância da experiência prática da criança com o instrumento dentro do

processo de aprendizado musical. Esse encontro da criança com a música, segundo seus

autores se dá através da vivência musical. Cada método possui a sua particularidade:

enquanto o de Kodály enfatiza o cantar em grupo e a capacidade de leitura e escrita, os de

Orff e Dalcroze dão preferência à expressão, criação e integração das linguagens artísticas,

não se preocupando em fixar procedimentos de leitura ou técnicas instrumentais avançadas.

Suzuki, por outro lado, já se interessou pelo desenvolvimento da técnica instrumental e, por

sua vez, Willems deu ênfase ao desenvolvimento da audição cuidando, através da prática

auditiva, dos aspectos físicos da escuta.

Porém, do ponto de vista da utilização do repertório, as cinco propostas se

concentram na música clássica ocidental e no folclore. Isto significa que, embora

contemporâneos e alguns até praticantes de uma poética composicional alinhada aos

procedimentos da vanguarda, “o material musical utilizado nas aulas de música continua a

ser mais tradicional do que inovador” (FONTERRADA, 2005, p. 164).

Já em meados da década de 1950, surge na Europa e na América do Norte uma

nova geração de educadores musicais que se interessa por adotar procedimentos que

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permitissem à criança ou ao adulto se tornarem mais aptos a “ouvir e/ou fazer música”.

Trata-se de uma metodologia que requer um melhor conhecimento do ser humano e que

permitiu a construção de propostas que facilitam a assimilação de conceitos básicos e

introduzem o aluno mais diretamente na prática musical. Esta época coincide com as

pesquisas de Pierre Schaeffer na Radiotélevision Française (música concreta) e as

experiências de música eletrônica em Friburgo. Esse novo movimento musical interessa-se

pelo “som” como matéria prima e a sua transformação através da gravação e da

manipulação de fitas magnéticas por meio eletrônico. Os educadores musicais desse

período passam então a adotar os mesmos procedimentos dos compositores de vanguarda,

só que em sala de aula, acreditando nas possibilidades de assimilação, por parte dos alunos,

de procedimentos utilizados pelos compositores contemporâneos. Valorizavam “a criação,

a escuta ativa, a ênfase no som e suas características evitando a reprodução vocal e

instrumental do que denominam música do passado” (FONTERRADA, 2005, p. 165).

Preocupavam-se com as múltiplas possibilidades de experimentação apoiadas na estética

contemporânea.

Entre esses educadores encontram-se Georg Self, John Paynter, Murray Schafer

e Boris Porena. Em particular, as atividades que Schafer propõe podem ser executadas

dentro ou fora da sala de aula, com grupos de qualquer faixa etária e com ênfase no som

ambiental. Suas ideias de educação musical têm o objetivo de possibilitar uma escuta ativa

e reflexiva sobre os ambientes sonoros nas quais estamos imersos. Estas ideias ganham

adeptos, mas também entram em choque direto com uma ala mais conservadora, menos

pela importância que imprime à escuta – vários educadores musicais do século XX dão a

mesma ênfase -, e mais pela pouca importância que confere ao ensino da teoria musical.

Embora considere que o professor de música deve ser um especialista em sua área, ele vai

mais longe quando, em um dos capítulos de seu livro “O ouvido pensante”, ressalta a

importância da presença de compositores em sala de aula. Conforme bem observa Marisa

Fonterrada, “é importante valorizar o músico educador no aspecto pedagógico e

multidisciplinar, mas, ao mesmo tempo, espera-se que ele seja tão competente

musicalmente quanto o instrumentista, cantor, regente ou compositor” (2005, p. 258). No

âmbito da educação musical, a preocupação de Schafer não é tanto com o ensino

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sistemático de música - que visa a formação de instrumentistas -, mas sim com “o despertar

de uma nova maneira de ser e estar no mundo, caracterizada pela mudança de consciência”

(FONTERRADA, 2005, 180). Ele acredita “mais na qualidade da audição, na relação

equilibrada entre homem e ambiente, e no estímulo à capacidade criativa do que em teorias

da aprendizagem musical e métodos pedagógicos” (FONTERRADA, 2005, p. 178).

No Brasil, ao mesmo tempo em que Mário de Andrade defendia os princípios

nacionalistas e Villa-Lobos punha em prática o canto orfeônico, Koellreutter foi o

responsável por trazer ideias “frescas”, que refletiam a nova postura diante da arte

contemporânea, abrindo um novo campo para a pesquisa e para a experimentação

(FONTERRADA, 2005). Pensando em uma arte funcional, Koellreutter se voltou para a

recuperação de uma utilidade pedagógica ou ambiental para a música. “Sob sua orientação,

as propostas para o ensino de música no Brasil ganharam nova dimensão, com ênfase no

aprofundamento das questões musicais e no desenvolvimento de processos criativos”

(FONTERRADA, 2005, p. 199). Embora em âmbito restrito, - “Levando-se em conta as

dimensões do país, ver-se-á que era pequeno o âmbito dessa atuação, tanto em escolas de

música e conservatórios quanto na educação geral” (FONTERRADA, 2005, p. 199) - suas

experiências pedagógicas resultaram em oficinas de música com enfoque para a criação

musical e estudos do som. Como observa Fonterrada (2005, p. 199-200), Koellreutter tinha,

[...] uma capacidade enorme de enxergar e sentir as modificações pelas quais o

mundo passa e do mesmo modo que antecipou a importância da vanguarda,

anteviu a era da informação, o advento das mídias e o papel da música popular na

cultura brasileira, numa época em que dificilmente se encontrava um músico de

formação clássica aderindo a essas questões (FONTERRADA, 2005, p.199-200).

Um questionador do valor da educação musical no sistema de ensino,

Koellreutter esteve sempre atento às questões que deveriam modificar a maneira de encarar

a educação musical; procurou, como professor, incentivar seus alunos a ampliar a

capacidade de escuta, de improvisação e de criação ao mesmo tempo em que acreditava que

a formação do músico se dava também através da ampliação de sua cultura musical, isto é,

conhecendo tanto os mestres do passado quanto os mais atuais. Atualmente, no Brasil, em

decorrência das mudanças que vêm ocorrendo em todas as áreas do conhecimento, continua

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7

necessário que haja uma reformulação no campo da educação musical no sentido de atender

tanto aos profissionais da área quanto os que recebem o seu benefício. Retomando

Fonterrada:

[...] muito do que existe em educação musical não se apresenta, na verdade, como

musical ou artístico, mas, antes, como um conjunto de atividades lúdicas7 que se

servem da música como forma de lazer e entretenimento para os alunos e a

comunidade, sem sequer tocar na ideia de música como forma de conhecimento.

(FONTERRADA, 2005, p. 11-12).

O referencial que se estabeleceu em termos de repertório entre alunos,

professores e comunidade, é quase único: são aqueles impostos pelos meios de

comunicação e que atendem aos anseios da indústria cultural. Isto porque, no decorrer dos

anos, “aconteceram profundas modificações na sociedade, que se abriu para o lazer e o

entretenimento ofertados pelos meios de comunicação de massa” (FONTERRADA, 2005,

p. 13). Este cenário mostra o afastamento da “população escolar” da prática musical como

atividade pedagógica.

Concomitantemente ao que foi dito, soma-se o fato de que com a “Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 5692/71, que extinguiu a disciplina de

educação musical do sistema educacional brasileiro, substituindo-a pela atividade da

educação artística” (FONTERRADA, 2005, p. 201), o educador musical acabou se

afastando da escola. Como consequência, foi possível inferir alguns problemas com relação

à prática da educação musical: “o professor da escola não sabe mais cantar ou tocar um

instrumento. Hábitos de escuta e prática musical foram abandonados e já não fazem parte

da vida escolar” (FONTERRADA, 2005, p. 13).

Há, sem dúvida, uma série de atividades que o professor não especialista na

área de educação musical pode desenvolver com a sua classe com o objetivo de estimular o

gosto pela música, seja cantando ou tocando algum instrumento, sem que para isso, seja

necessário o domínio da leitura, da escrita ou de uma técnica instrumental ou vocal

apuradas. É possível também, por exemplo, que ele crie na classe o interesse pela escuta

ambiental e experimentação com objetos sonoros, mas estas atividades não deveriam se

7 É importante salientar que o termo “lúdico” aqui citado por Fonterrada refere-se aos jogos e brincadeiras

comumente utilizadas nas aulas de educação musical nas escolas e que não têm como objetivo, a formação musical do aluno. Um sentido bem diferente do termo “lúdico” utilizado por Huizinga em Homo Ludens.

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8

caracterizar como educação musical estrita. Para isso, observa Fonterrada, é necessária a

presença de um professor especialista, pois será ele o responsável por direcionar o processo

educativo, seja ele “a leitura musical, a formação de grupos instrumentais e vocais ou

experimentações sonoras seguidas de criação” e complementa dizendo que “os projetos

interdisciplinares podem e devem ser incentivados, mas eles só terão qualidade se duas

coisas se conjugarem: a competência do professor e o aprofundamento na área”

(FONTERRADA, 2005, p. 257).

Embora dentro das comunidades acadêmicas seja possível perceber a influência

de diversas “tendências educacionais e teorias de aprendizagem musicais”, pois este é o

local onde cada vez mais alunos e professores se mostram dispostos a uma prática

educacional voltada para descobertas e experimentações,

[...] contraditoriamente, nas escolas de educação geral, a situação é de ausência

quase total da música [...] Apesar de um corpo de profissionais dedicar-se ao

estudo e à pesquisa em educação musical, ainda não houve modificações

profundas. A distância entre o que estudiosos e pesquisadores do tema

recomendam e sua implantação efetiva é grande, porque a ação governamental é

morosa (FONTERRADA, 2005, p. 204).

Esta questão colocada por Fonterrada ainda permanece atual, como pode ser

constatado em artigo de Luiz Ricardo Silva Queiroz8, onde o autor apresenta reflexões a

partir da trajetória histórica do ensino de música no âmbito da legislação nacional e a atual

conjuntura política da educação musical na escola a partir da alteração da LDB 9.394/1996,

realizada pela lei 11.769/2008. Ele diz:

[...] colocarmos os conteúdos de música dentro das aulas de arte, implica uma

redução simplista da área, em termos de conhecimentos específicos, habilidades

técnicas e inserção cultural [...] é preciso que os profissionais da área tenham a

convicção de que é necessário o estabelecimento de um conjunto de ações,

reflexões e discussões que possam apontar caminhos “ideais” e “reais” para a

música na escola [...] Os entraves políticos e burocráticos são grandes, como

também são grandes os problemas internos da área no que tange à preparação de

8Revista da ABEM (Associação Brasileira de Educação Musical) de número 29, v. 20, 2012. Disponível em:

<http://www.abemeducacaomusical.com.br/revistas/revistaabem/index.php/revistaabem/article/view/ 88/73>. Acesso em: 15/01/2014.

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profissionais capazes de defender, discutir, argumentar e atuar consistentemente

na educação musical escolar (QUEIROZ, 2012, p. 35).

*

* *

Dentro desta perspectiva, ou seja, a de uma escuta do ambiente sonoro, é

tentativa desta pesquisa apresentar às crianças outro referencial de escuta e do fazer

musical, com o objetivo de aproximá-las de outros ambientes que não aquele silencioso e

severo das salas de concerto, tão comum para os alunos de educação musical (por ser o

mais difundido e ainda hoje considerado por muitos dentro da escola como a única forma

de cultura musical que se intitula de “alto nível”): “uma música que evita também o ruído

que está nela recalcado e sublimado” (WISNIK, 1989, p. 38). Este ambiente - onde se

executa a “música tonal moderna, especialmente a música consagrada como clássica”

(WISNIK, 1989, p. 38) – e se utiliza a notação musical tradicional para ser aprendida e

executada, favorece uma prática excludente de grande parcela dos alunos que não têm

familiaridade com a notação musical, o que muitas vezes, é exigido como condição sine

qua non para a prática instrumental em sala de aula. E este pensamento excludente,

segundo Wisnik, se faz presente nesta música, que ao excluir o ruído, está excluindo

também uma camada da sociedade impedida de comungar do mesmo ambiente. Ele diz:

A inviolabilidade da partitura escrita, o horror ao erro, o uso exclusivo de

instrumentos melódicos afinados, o silêncio exigido à plateia, tudo faz ouvir a

música erudita tradicional como representação do drama sonoro das alturas

melódico-harmônicas no interior de uma câmara de silêncio de onde o ruído

estaria idealmente excluído (o teatro de concerto burguês veio a ser essa câmara

de representação). A representação depende da possibilidade de encenar um

universo de sentido dentro de uma moldura visível, uma caixa de verossimilhança

que tem que ser, no caso da música, separada da plateia pagante e margeada de

silêncio. A entrada (franca) do ruído nesse concerto criaria um contínuo entre a

cena sonora e o mundo externo, que ameaçaria a representação e faria periclitar o

cosmo socialmente localizado em que ela se pratica (o mundo burguês), onde se encena, através do movimento recorrente de tensão e repouso, articulado pelas

cadências tonais, a admissão de conflito com a condição de ser harmonicamente

resolvido (WISNIK, 1989, p. 38-39).

A vida moderna, principalmente nas grandes cidades, tem se caracterizado pelo

barulho excessivo proporcionado pelas máquinas, sistemas de comunicação e transporte.

“O alastramento do mundo mecânico e artificial cria paisagens sonoras das quais o ruído se

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torna elemento integrante incontornável, impregnando as texturas musicais” (WISNIK,

1989, p. 42). Associado ao que foi dito, por outro lado, percebemos crescer o número de

meios de produção e reprodução sonora, desde o antigo gramofone, a vitrola e a fita

magnética até os dias de hoje onde assistimos aos grandes aparatos tecnológicos como os

editores e gravadores digitais de áudio. “O meio sonoro não é mais simplesmente acústico,

mas eletroacústico”. Wisnik segue com a sua interpretação de que, no decorrer do século

XX, a música erudita atingiu uma multiplicidade de alternativas e “expectativas de

caminhos que não se abriram concretamente” e entrando no campo da música popular,

complementa dizendo que elas “continuaram a fazer os seus sons, que se misturaram em

democráticas mixagens e assumiram lugares singulares na modernidade” (WISNIK, 1989,

p. 50). Cita o exemplo da música europeia que se juntou à música africana e como resultado

desse hibridismo, é possível perceber os vários estilos populares que se firmaram dentro do

panorama musical do século XX. “A música tornou-se sincrônica e simultânea”. Ao

analisar a música de “alto repertório” e a atual música de massa, além do fato de elas

atuarem em faixas sociais diferentes, elas possuem uma característica marcante que é a de

ir em direção e experiências de tempo opostas: “uma contesta o tom e o pulso, outra repete

o tom e o pulso”. Ele diz ainda que se essa polarização produz toda espécie de extremos, o

“meio é a mixagem: nunca foi tão fluida a passagem entre músicas ‘eruditas’ e ‘populares’

e nesse caso, não está se referindo à média medíocre, mas àquele meio-campo que há entre

os meios tons e as mutações” (WISNIK, 1989, p. 196). As sonoridades dos mais variados

repertórios se fundem levadas pelo “trânsito das mercadorias e pelo traço polimorfo da sua

base social e cultural”, isto é, pela troca de sinais. O jazz fundindo-se à música minimalista,

ou o blues com a sua harmonia modal.

Assim, nesse emaranhado de sons e “simultaneidades” que se tornou o século

XX, a proposta de uma educação musical voltada para a escuta do ambiente sonoro e o uso

de procedimentos exploratórios através do exercício da composição e da improvisação

junto a um grupo de crianças, vai além da proposta de sensibilizar o aluno para uma poética

composicional que lida com novas sonoridades, (embora eu considere tal trabalho de suma

importância). O que se busca aqui é o exercício da escuta de uma forma consciente não

somente do ponto de vista musical, mas também social. Ao escutar o ambiente e refletir

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sobre o tipo de som que se ouve e como pode ser a sociedade que produz esses sons, pode

ser possível a construção de valores sociais através de uma prática musical criativa.

Uma prática musical criativa e participativa que lança mão do recurso da

exploração de competências diversas - quanto mais diversificadas forem as funções

exercidas dentro do grupo, mais chances de se obter sucesso nesta prática-; a partir de uma

escuta ativa sobre o ambiente sonoro que nos cerca e por fim, a importância do professor

para o ambiente musical, que se forma dentro da sala de aula, ao exercer um papel de

animador, sendo também um “especialista” capaz de tocar, cantar, improvisar e compor

com o objetivo de sempre manter o fluxo musical seja ele métrico ou amétrico, tonal ou não

tonal.

*

* *

Esta dissertação se constitui de duas partes: uma parte que envolveu o estudo

teórico (crítico-conceitual) e outra que englobou duas atividades de escuta e composição

musical junto a dois grupos distintos de crianças, sendo um, de18 crianças, com faixa etária

entre 06 e 10 anos e outro, com 28 crianças, com faixa etária entre 06 e 09 anos. Ambos,

formado por alunos do Ensino Fundamental I de uma escola particular da cidade de

Campinas. O ato de imergirmos no ambiente sonoro e de buscarmos referências sonoras em

outras fontes, como as literárias, por exemplo, permitiu que os exercícios de criação e as

reflexões teóricas acontecessem ao mesmo tempo, isto é, em vários momentos do projeto,

ora a música nos levava ao estudo teórico e em outros momentos, a abordagem teórica nos

inspirava a compor.

No segundo capítulo, apresento a ideia das “oficinas de música”, uma

metodologia de educação musical que tem a figura de John Paynter como um de seus

representantes, para, em seguida, discorrer sobre as propostas educacionais de dois

compositores: Murray Schafer (Paisagem Sonora e Ecologia Acústica) e Hans-Joachim

Koellreutter (arte funcional) e no final, apresentar os conceitos de “música participativa” e

“ator brincante”, sendo o primeiro termo cunhado por Thomas Turino e, o segundo,

utilizado por Oswaldo Barroso. Este capítulo ofereceu os subsídios necessários para as

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ações pedagógicas que foram realizadas com os alunos e relatadas nos capítulos três e

quatro.

No terceiro capítulo procurei relatar, o mais detalhadamente possível, o

processo vivenciado pelas crianças a partir da proposta de gerar artificialmente o

correspondente a uma paisagem sonora de uma floresta tropical com instrumentos

confeccionados a partir do papel. O capítulo apresenta três textos, sendo o primeiro, sobre

os exercícios preliminares que foram utilizados com os alunos antes da prática

composicional apresentando uma descrição de sites que oferecem condições de

interatividade para a realização dos exercícios de escuta e manipulação de instrumentos

musicais virtuais; o segundo, sobre os modelos de improvisação propostos por Koellreutter

e o terceiro sobre o ambiente computacional PD, utilizado na performance da peça, para,

em seguida, apresentar o modo como os alunos desenvolveram suas atividades de escuta e

composição.

O quarto capítulo, refere-se ao relato de uma experiência pedagógica realizada

com alunos e que consistiu na composição de uma trilha sonora intitulada Festa de São

João. Neste capítulo, apresento, na primeira parte, uma descrição das festas juninas –

origem, a apropriação brasileira, transformações da festa rural para a festa urbana,

simbologia, sons característicos, etc.- que serviram como fonte de pesquisa para a

construção de paisagens sonoras que seriam utilizadas na gravação. Na segunda parte,

apresento e descrevo o processo de criação desenvolvido pelos alunos na composição da

trilha sonora: uma peça que mescla a música tonal, interpretada por instrumentos

convencionais, associada ao processo de colagem das paisagens sonoras produzidas e

captadas na forma de áudio pelos alunos que, depois manipularam essas amostras em

editores de áudio.

E por fim, o último capítulo que se apresenta como uma conclusão onde eu

apresento a ideia da escuta do ambiente sonoro, no mundo atual que, ao ser introduzido no

campo da educação musical, pode tornar-se uma grande fonte de informação no que diz

respeito à poluição ambiental. Acrescento a essa ideia, o conceito de Ecologia Social

proposto por Felix Guatarri, que chama a atenção para os desequilíbrios na natureza

provocados pelo homem. Ao trazer essas questões para o campo da educação musical,

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compartilho com os compositores e educadores, Koellreutter e Schafer, a ideia de que é

necessária uma educação “viva” que seja adequada à sua época e contexto, de modo que a

música possa ser um instrumento de educação, possibilitando uma formação crítica através

de uma visão estética de mundo. Abrir o currículo a experiências, a experimentações e

permitir acontecimentos que liberem o devir e estimulem a produção de outras formas de

conhecimentos em aprendizagens que considerem o afeto como mobilizador de desejos e de

novas percepções de educação.

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2 ALICERCES PARA PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO

FUNDAMENTAL

2.1 O ensino de música como um processo “aberto”

O termo “processo aberto” para o ensino de música pode gerar muitas dúvidas e

talvez a primeira delas seja a que questiona se este modelo de ensino-aprendizagem não

pode gerar um processo de educação musical onde o aluno faz o que quer sem que se

espere dele, atingir um objetivo. Contudo, antes de tentar responder a esta questão, é

importante refletir sobre qual a razão do ensino de música, e no caso dessa dissertação, na

escola de educação geral? Proporcionar ao aluno uma educação musical que privilegia a

formação instrumental com instrumentos tradicionais e enfoque na reprodução de peças,

geralmente tonais associadas ao conhecimento da teoria musical e história da música? Ou

propor atividades que leva em consideração outros aspectos musicais, tais como lidar com

fontes sonoras, construção de instrumentos alternativos, contato com outros sistemas que

não o tonal? Ou, ainda, um ensino de música que, ao mesmo tempo em que procura

desenvolver uma vivência com instrumentos musicais, também permite a interação com

outras áreas do conhecimento, como artes plásticas, ciências, história, geografia, etc. dentro

de um contexto multidisciplinar?

Os chamados métodos ativos já propõem uma metodologia de ensino musical

que promove o aprendizado da música pela prática, seja ela através do corpo, da voz, ou

executando um instrumento musical, e o aprendizado da teoria musical se faz na prática,

como consequência do conhecimento técnico instrumental. Já as “oficinas de música”,

também consideradas um método ativo, por outro lado, se apoiam em um ensino de música

que permite uma interação entre as diversas disciplinas da grade curricular das escolas. O

seu estudo se faz através da prática, seja ela a composição, improvisação ou interpretação

musical. Nesse modelo os alunos questionam, procuram soluções para os problemas

abordados e preocupam-se com os resultados. David Sawyer em seu livro Vibrations, no

capítulo referente à música e educação afirma que:

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Um programa de ensino que não dependa de um conjunto de informações pré-

estabelecidas, mas sim da inventividade e imaginação que cada indivíduo traz

para a sala de aula é o que caracteriza as mudanças que começamos a ver na

educação musical; em particular nas correntes que dão uma ênfase exagerada na

instrução (o conhecimento adquirido; o uso de técnicas aceitas na música

reconhecida como música) e para uma nova visão educacional de música para a

maioria. (Sawyer, 1977, p. 98).

Várias são as conotações para o termo “oficina de música”, mas em sua maioria

estão relacionadas ao fazer musical espontâneo ou à música erudita contemporânea. “É o

momento que o aluno tem para exercitar sua criatividade, descobrindo, experimentando e

organizando sons” (CUNHA apud FERNANDES, 1997, p. 84). Trata-se de “uma

metodologia pedagógica baseada na ação direta do aluno; de caráter exploratório e criativo”

(FERNANDES, 1997, p.82). Para Antunes, “é uma metodologia adotada junto ao

educando, de modo que ele cresça intelectualmente interligado ao crescimento da cultura de

sua época” (ANTUNES apud FERNANDES, 1997, p. 82-83). Com relação aos objetivos a

serem alcançados, diversos autores consideram “a sensibilização como um dos objetivos

mais importantes das oficinas” (FERNANDES, 1997, p. 87). “Sensibilizar o indivíduo para

a música, para o som, para o ritmo” (CONDE apud FERNANDES, 1997, p. 87). Segundo

Albuquerque, em entrevista citada a Fernandes,

A oficina utiliza a composição coletiva, com o fim de socializar e desenvolver a

memória sensorial como um todo, não só a auditiva. Por isso, tem como objetivo,

integrar as linguagens artísticas (ALBUQUERQUE apud FERNANDES, 1997, p.

88).

Experimentar, a concepção de um “processo aberto”, pode significar uma

viagem a um território desconhecido; o resultado não precisa ser conhecido de antemão.

Lidar com uma metodologia de ensino desta natureza em sala de aula é uma tarefa difícil,

mas pode ser uma experiência imensamente gratificante para ambos, aluno e professor,

dependendo da forma como for conduzida.

Existem alguns compositores – especialmente os do século XX – que alargaram

o âmbito da música através da construção de novos aparelhos para a sua produção. Com o

advento dos meios eletrônicos, a utilização de aparelhos digitais como forma de produção e

registro sonoro, e a incorporação do ruído à composição musical, o material sonoro

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utilizado pelos compositores foi ampliado. Como resultado desta transformação, a nossa

percepção musical vem se alterando no decorrer do tempo e, por consequência

provavelmente também, a nossa visão de música.

A ação pedagógica que relato nos capítulos três e quatro se baseia nas ações

propostas pelas “oficinas de música” e tem como pilares de sustentação os modelos de

improvisação, proposto por Koellreutter; a construção de paisagens sonoras, termo utilizado

por Murray Schafer e o conceito de música participativa, denominação dada por Thomas

Turino a partir de estudos sobre a música popular do Zimbabwe.

Nas próximas seções, faço uma descrição detalhada sobre cada um desses

tópicos, além de expressar um pouco da biografia de cada autor.

2.2 O músico e educador Koellreutter

Ao falar em “processo aberto” no ensino de música, vale salientar a importância

da figura de Hans – Joachim Koellreutter dentro do cenário da educação musical no Brasil.

Mais do que um instrumentista, Koellreutter foi um educador musical, compositor, regente

e pensador que se dedicou à educação no sentido mais abrangente que o termo permite, e à

função social do músico na sociedade (KATER9). Foi responsável direto pela iniciação e

formação musical de diversos nomes, que mais tarde, vieram a ser consagrados no meio

musical brasileiro, entre eles Cláudio Santoro, Edino Krieger e Guerra Peixe. Koellreutter

não publicou livros didáticos nem tampouco sistematizou uma metodologia de ensino, mas

proferiu diversas palestras pelo mundo, assim como ministrou e organizou diversos cursos

livres em conservatórios e universidades de música do Brasil e do exterior. Assim, antes de

tecermos mais considerações a respeito da didática musical desenvolvida por Koellreutter,

farei algumas considerações sobre a sua biografia. Todas as informações apresentadas nesta

seção e também nas seguintes, referentes ao autor, foram obtidas a partir de transcrições de

palestras, apresentações em aulas inaugurais, publicações em revistas especializadas e

9 KATER, C. H. J. Koellreutter: Música e Educação em movimento. Cadernos de Estudo: Educação

Musical nº 6. Disponível em: <http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em 09 out. 2012.

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manuscritos datilografados do próprio autor. Estes textos estão contidos no site da Atravez -

Associação Artístico-Cultural10

, na seção “publicações”, Cadernos de Estudo – Educação

Musical.

Hans-Joachim Koellreutter nasceu em 1915 em Freiburg, Alemanha, realizou o

curso de flauta, composição e direção de coro na Staatliche Akademiche Hochschule fur

Musik, frequentou cursos e conferências sobre composição moderna com Paul Hindemith.

Realizou turnês por diversos países da Europa, tendo tocado também com Darius Milhaud.

Chegou ao Rio de Janeiro em 16 de novembro de 1937 e em 1938, realizou o seu primeiro

recital no Brasil no Conservatório Mineiro de Música, em Belo Horizonte. Nesta mesma

instituição, ministrou um curso de interpretação musical. Em 11 de junho de 1939, realizou

o primeiro concerto do movimento Música Viva – movimento criado por ele cuja origem

encontra-se em um movimento de mesmo nome, criado na Europa, por seu professor e

mestre, o regente Hermann Scherchen. Este movimento, criado por Koellreutter, reuniu

vários músicos brasileiros contribuindo decisivamente para o estabelecimento do que se

chamou a segunda geração nacionalista. Através desse movimento, estabeleceu-se uma

nova concepção e função social da música associada às novas conquistas europeias no

campo das artes, da música, das ciências exatas e humanas, além de uma nova dinâmica

cultural após vinte anos do acontecimento da Semana de Arte Moderna de 22. Segundo

Kater11

, embora em formato bem diferente, a atuação de Koellreutter no campo da

educação musical pode ser comparada à de Villa-Lobos, no sentido de que, guardadas as

devidas proporções, ambos foram capazes de aglutinar músicos, artistas e professores em

torno de ideias e projetos. Kater argumenta que, embora Villa-Lobos não tenha sido um

educador ou pedagogo no “sentido rigoroso dado ao termo”, a sua contribuição deu-se mais

10

Uma entidade sem fins lucrativos criada na cidade de São Paulo em 18 de outubro de 1985 por um grupo de pessoas interessadas em contribuir para a melhoria de vida através da Arte, Cultura e Educação. Em 2000 obteve o certificado de Utilidade Pública da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e em 16 de setembro de 2005 tornou-se uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). Seu principal objetivo é favorecer o desenvolvimento do ser humano e sua integração no coletivo por meio de um trabalho socioeducativo baseado na arte e na cultura. Uma de suas particularidades nesse sentido é a concepção, aplicação e difusão de propostas norteadas pelas seguintes orientações: 1) arte como criação e produto em contínuo processo; 2) expressão como recurso pedagógico de amplas proporções; 3) criação enquanto expressão de estados de consciência. 11 KATER, C. O programa radiofônico Música Viva. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 4/5. Disponível em: <http://www.atravez.org.br/ceem_4_5/programa_radio.htm>. Acesso em: 09 out. 2012.

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na dinamização do fazer e no dinamismo das realizações do que na elaboração,

desenvolvimento e pesquisa de processos típicos de ensino/aprendizagem. Neste sentido ele

pode ser definido como um animador musical “que trouxe para o coletivo a sua

potencialidade inventiva”. Koellreutter foi diferente, mas fez algo semelhante. Através da

criação do Movimento Música Viva, ele pôde contribuir para a geração de um dinamismo

cultural próprio e intenso. O movimento Música Viva perdurou por doze anos e, durante

essa fase, envolveu uma enorme gama de atividades, entre elas: séries de audições,

concertos e recitais; publicação de boletins e partituras; realização de cursos, conferências e

programas radiofônicos. Mesmo dedicado à realização de concertos e recitais, o foco das

atividades era o de um projeto didático-pedagógico, aliás, um traço marcante na

personalidade de Koellreutter que, entre outras iniciativas, participou da criação do Cercle

de Musique Contemporaine, na Europa; fundou a Escola Livre de São Paulo, os Festivais

de Música de Teresópolis e os Seminários de Música da Bahia, entre outras atividades. Um

movimento com a “marca inconfundível de alguém que exteriorizou a compreensão de si e

do mundo, que procurou sempre o debate de ideias e buscou contribuir para a ampliação

das fronteiras do conhecido” (KATER12

).

Koellreutter foi também professor no Conservatório Brasileiro de Música, no

Rio de Janeiro. Em 1944, por divergências quanto a sua postura como pedagogo musical

em referência a estrutura curricular vigente no Conservatório Brasileiro de Música, é

levado a uma situação de ruptura com o Diretor Oscar Lorenzo Fernandes, causando o seu

desligamento definitivo do conservatório. Estudou saxofone e começou a tocar nas noites

cariocas. “Levou o jazz e a música popular para a escola de música sempre instigando,

provocando, ensinando e estimulando o pensar” (BRITO, 2001, p. 26).

Pode-se perceber nos escritos originais publicados por Koellreutter, um esforço

no sentido de apreender uma nova realidade que nos é apresentada e ao olhar para o mundo,

procurar transformar esse mundo e também a própria visão que se tem dele. Seu olhar de

pedagogo musical esteve voltado para os jovens, pois “a eles pertence o futuro e são eles

12

KATER, C. H. J. Koellreutter: Música e Educação em movimento. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 6. Disponível em: <http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em 09 out. 2012.

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20

que construirão o novo mundo” (KOELLREUTTER apud KATER13

). A visão de

Koellreutter sempre esteve voltada para o presente dentro de um processo que visa o futuro.

Fazia duras críticas à questão “da presença do passado no contemporâneo” e salientava o

“risco” e a “experimentação” como elementos essenciais da atividade artística. Para

Koellreutter, “o passado é um meio e um recurso, de maneira nenhuma um dever. O futuro

é” (KOELLREUTTER14

). Exceto o período em que passou no exterior, Koellreutter nunca

abandonou a tarefa de formar e orientar alunos em seus cursos independentes de

composição, análise e estética musical. Escreveu diversos textos, compôs obras, ministrou

cursos e proferiu palestras por todo o país. Procurou atender o indivíduo, mas sempre

visando o coletivo, o social. A sua visão era voltada para a humanidade. Questionou a

figura do “músico gênio”, esta figura do passado alheia à sociedade e em seus textos se

preocupou em ressaltar “a figura do músico e seu trabalho numa sociedade em constante

movimento, alargando perspectivas e campo funcional de maneira a participar efetivamente

da construção de seu tempo e melhor servir ao humano” (KATER15

).

2.2.1 O movimento Música Viva: um projeto de difusão cultural

A difusão de obras musicais, nacionais e internacionais, principalmente

contemporâneas, foi o meio encontrado por Koellreutter para se criar uma consciência

renovadora no ambiente musical brasileiro que, segundo Kater, “andava relativamente

constrangida”. A série radiofônica dos programas “Música Viva” era, dentre as diversas

iniciativas do movimento comandado pelo professor Koellreutter, a que melhor ilustrava a

originalidade da sua proposta educativa. A série de programas era semanal. O seu início foi

em maio de 1944 e as atividades foram encerradas em 1952. Os programas eram

13 Ibidem. 14

KOELLREUTTER, H. J. O ensino da música num mundo modificado. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 6. Disponível em: <http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em 10 out. 2012. 15 KATER, C. H. J. Koellreutter: Música e Educação em movimento. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 6. Disponível em: <http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em 09 out. 2012.

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transmitidos de forma alternada: apresentações ao vivo e gravações. Em seu programa

inaugural foram apresentadas exclusivamente obras brasileiras de compositores

contemporâneos: Guerra Peixe, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro e Villa-Lobos. No

segundo programa, foi ao ar a execução da obra Pierrot Lunaire, de A. Schoenberg em

versão com o texto integral. Mesmo o “Música Viva” sendo um movimento voltado para a

música contemporânea, foram transmitidos programas dedicados a várias outras épocas,

como, por exemplo, toda uma série de programas sobre “Música Antiga” e o ciclo

“Antologia de Estilos Musicais” voltado ao Gótico, à Renascença e ao Barroco. Ao mesmo

tempo, atribuía-se grande importância à música do século XX, como nas séries “Obras

primas da música contemporânea”, “Música do nosso tempo” e “Música contemporânea ao

alcance de todos”. A produção desses programas fazia parte de uma estratégia de se criar

uma formação musical ampla para o público leigo, através do acesso mais fácil a obras

contemporâneas. Dentro desta proposta mais geral de se criar uma mentalidade mais aberta

para os vários estilos musicais para o público leigo, foram levadas ao ar as “audições

especiais”, dedicadas a compositores específicos como Manuel de Falla, Hindemith,

Stravinsky e Bartok, entre outros, assim como transmissões de estreias mundiais, nacionais

ou regionais desde obras do período correspondente a Idade Média até a

contemporaneidade e também as obras dos compositores que faziam parte do movimento.

Assim como o próprio movimento, as transmissões radiofônicas tinham um

forte apelo didático e era comum a produção de programas interativos onde a participação

dos ouvintes se dava através de pedidos de audição de obras específicas e respostas a

perguntas que eram enviadas por cartas. Ocorriam também apresentações que simulavam

uma relação mestre/discípulo ou professor/aluno como, por exemplo, uma aula dos

princípios básicos da composição dodecafônica contendo ilustrações ao piano, ou ainda,

como na série “A música contemporânea ao alcance de todos”, momentos em que acontecia

o diálogo entre o professor e o ouvinte no qual, ao abordar as tendências da música

contemporânea, são focalizados assuntos pouco difundidos na época como atonalismo e

politonalismo.

Além dos programas destinados a um público adulto, houve a figura da Dona

Gení (Gení Marcondes – pianista e pedagoga, foi a única musicista, dentro do movimento,

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a figurar com regularidade nos anúncios referentes a cursos e conferências relativos à

educação musical)16

, responsável por uma série intitulada “Apreciação Musical” na qual,

em forma de diálogo entre a personagem e uma ou mais crianças, abordava os temas

importantes da música como: forma, estrutura, estilos e compositores de vários períodos da

história. Em outro, denominado “O mundo em(da) música”, destinado ao público infanto-

juvenil, tratava, de forma coloquial, sobre vários temas, entre eles os “Novos

instrumentos”. Havia ainda outros programas que ofereciam noticiário com informações a

respeito da agenda de conferências e cursos proferidos por compositores, estreias, notícias

de falecimento, etc.

Essa versatilidade na programação das transmissões radiofônicas - que na

época, era um meio de comunicação de ponta -, produzidas pelo “Música Viva”, demonstra

a intenção do movimento de atingir um público formado por todas as idades e através de

um modelo de programação interativa e ter a possibilidade de formar um público mais

participativo da vida cultural nacional. Esse comprometimento didático-pedagógico que se

podia notar nos formatos dos programas radiofônicos, tinha por objetivo tornar acessível e

compreensível, para o grande público, as características estéticas e criativas da produção

artística contemporânea, visando um enriquecimento cultural.

No mundo todo, no pós-segunda guerra mundial, o momento político é

efervescente e os membros do movimento “Música Viva” cada vez mais contestam o apego

ao passado. Textos revolucionários do movimento começam a aparecer nos roteiros

radiofônicos. Em um programa levado ao ar em 1946, a sua abertura foi feita com uma

reivindicação veemente por uma nova era, por um mundo novo, por uma arte do futuro e

contra o academicismo hegemônico. O processo de transformação política se reflete no

grupo e no último número da revista17

, é publicado a decisão do “Música Viva” de

16 KATER, C. O programa radiofônico Música Viva. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 4/5. Disponível em:<http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em: 09 out. 2012. 17 A primeira edição da série dos boletins Música Viva foi lançada em 1940. Veiculava um balanço detalhado das atividades realizadas pelo grupo, entre textos de autores diversos, enfocava temas da atualidade, problemáticas da música contemporânea brasileira e trazia, como suplemento, uma composição musical. Em 1941, é lançado o Boletim Música Viva nº 10/11, que encerra a primeira fase dessa série de publicações (retomada com outro formato e editorial apenas em 1946). Em 1947, com a retomada do boletim Música Viva, em seu nº 12, é publicado o “Manifesto 1946” ou “Declaração de Princípios” – A música traduzindo

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organizar-se em sociedade transformando-se em “Seção Brasileira da Federação

Internacional de Compositores e Musicólogos Progressistas”. Neste momento, alguns

participantes do movimento, como Cláudio Santoro, Guerra Peixe e Eunice Katunda

perdem a identificação ideológica e estética com os princípios de Koellreutter e o grupo se

dissolve.

Apesar de se atribuir a Koellreutter a responsabilidade quase que individual

pelo movimento Música Viva, é sabido que um movimento cultural com essa pretensão e

dessa magnitude não poderia ser obra de uma só pessoa. Koellreutter foi, sem dúvida, um

animador, orientador e motivador desse movimento, mas não o único participante e, por

isso mesmo, a participação de vários músicos permitiu vários desdobramentos e derivações.

O “Música Viva” foi o resultado de uma ação conjunta de pessoas em prol de uma causa

comum: difundir uma consciência modernizadora que procura e aceita o novo.

2.2.2 Koellreutter: uma proposta “aberta” de educação musical

O alicerce do espírito artístico é o ambiente. Um ambiente que possa acender no

aluno a chama da conquista de novos terrenos do saber e de novos valores da

conduta humana. O princípio vital, a alma desse ambiente é o espírito criador. O

espírito que sempre se renova, sempre rejuvenesce e nunca se detém. Pois, num

mundo em que tudo flui, é o que não se renova um empecilho, um obstáculo. Sem

o espírito criador, não há arte, não há educação. É esta uma verdade que os educadores tão facilmente esquecem (KOELLREUTTER18).

ideias e sentimentos na linguagem dos sons é um meio de expressão; portanto produto da vida social [...] Música é vida. Música é movimento [...]. Em 1947, já fora do país, Cláudio Santoro participa do II Congresso Internacional de Compositores e Críticos Musicais, realizado em Praga de 20 a 29 de Maio de 1948. Do seu contato direto com os músicos progressistas, passa a compartilhar dos ideais do realismo socialista. As “Resoluções” e o “Apelo” elaborados nesse congresso são editados e publicados no boletim Música Viva nº 16 – boletim que encerra a série de publicações. Koellreutter e Santoro entram em um processo de polarização de divergências ideológicas e o grupo se dissolve. Disponível em: http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/revista-textos-do-brasil/portugues/revista12-mat13.pdf Acesso em: 15 jan. 2014. 18 KOELLREUTTER, H. J. O espírito criador e o ensino pré-figurativo. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 6. Disponível em: < http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em: 10 out. 2012.

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O músico e educador Koellreutter, através de suas palestras, cursos livres e

textos que escreveu, sempre procurou questionar a aplicação de conceitos “definitivos e

estáticos” pelos professores nos processos de ensino-aprendizagem pois, para ele, trata-se

de um fator que nos leva a abafar com o “espírito criativo”. Na sua concepção de educação,

a aquisição de conhecimento se dá principalmente pelo caráter da experimentação e da

criação, sendo a improvisação, um elemento capaz de proporcionar ao aluno essa

capacidade. Para ele, uma educação “aberta” seria aquela capaz de transformar aquilo que

já está estabelecido pois, caso contrário, o professor, ao aplicar simplesmente os métodos

prontos, estaria apenas transmitindo informações. Informações estas que nos deixam

estáticos perante o mundo, pois que exigem apenas o seu reconhecimento; ficamos, de certa

forma, incapazes de transformar a informação em ação.

Seguindo a ideia de uma educação aberta e libertária, defendida por

Koellreutter, é preciso por em prática um processo que não estivesse dissociado da nossa

vida cotidiana e nem tampouco preso apenas a questões estritamente musicais, pois ele via

a educação musical dentro de um projeto maior da construção de um novo modelo

educacional calcado na formação do indivíduo como um todo, e que o estimulasse a exercer

o seu direito de cidadania integrado à vida social e, por consequência, à vida cultural e ao

meio ambiente. Uma educação musical que, além da prática instrumental em si, fosse capaz

de possibilitar, através de uma visão estética do mundo, a formação de um pensamento

crítico em relação a este mundo.

Essas ações pedagógicas poderiam ser um fator preponderante para uma

mudança de mentalidade no que diz respeito à ocupação e utilização do espaço físico.

Koellreutter almejava uma educação musical dentro de uma prática pedagógica que

envolvesse, além de uma prática musical, um enfoque para uma educação humanizadora e

conscientizadora (BRITO, 2001), isto é, uma prática pedagógica que envolvesse, além da

prática musical, um enfoque para outras potências do ensino de música.

Ao considerar que a educação musical não deveria ser tratada na escola apenas

como um ensino de música seja ela teórica ou prática, e sim como um trabalho que envolve

um objetivo maior que é o de uma prática educacional cultural e interdisciplinar que

transita por outras áreas do conhecimento atrelada aos aspectos sociais, ambientais,

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políticos e econômicos da sociedade, faz-se necessário, tomando como base o pensamento

de Koellreutter, abrir um parêntese e discorrer sobre o que pensa o educador a respeito da

cultura e da educação no terceiro mundo.

2.2.2.1 Sociedade, cultura e educação

O animal se adapta a seu meio ambiente. Incapaz de transformá-lo de maneira

ordenada, planejada, ele deve sempre se adaptar às circunstâncias, desenvolvendo

atividades que o auxiliem a sobreviver aqui e agora. Mas o homem não [...] ele

procura transformá-lo, modificá-lo, construí-lo. Faz com que o meio se adapte a ele [...] imprime um sentido às suas ações. Visa o futuro: planeja, pensa, e então

age, construindo o que imaginou. Enfim, um mundo também simbólico. Esta é a

diferença radical entre homem e animal: a consciência reflexiva, simbólica

(DUARTE JÚNIOR, 1994, p. 19).

Entende-se, assim, por cultura a necessidade que o homem tem de libertar-se da

natureza e, lançando mão de várias atividades como o cultivo e a domesticação, torná-la útil

aos seus interesses individuais e sociais. Essas atitudes, geralmente, estão associadas a uma

reação criativa ou produtiva diante de dificuldades, perigos e aflições

(KOELLREUTTER19

). Koellreutter coloca que esta necessidade de transformar o meio

ambiente para melhor adaptar-se a ele gera a cultura que, por sua vez, está relacionada a

uma complexa rede de atividades que estão interligadas; atividades estas que podem ser

materiais, sociais ou intelectuais e não devem ser tomadas como atitudes independentes ou

isoladas. Para o autor, entende-se por cultura “a totalidade dos esforços e dos empenhos

dos homens, dos seus objetivos de vida, de suas necessidades e interesses sociais”

(KOELLREUTTER20

). Desse modo, quaisquer alterações no modo de vida do homem

trazem alterações em sua vida cultural e, por consequência, modificações em sua maneira

de expressar-se artisticamente, inclusive na música.

Na nossa sociedade moderna, dos séculos XX e início do século XXI, podemos

assistir a profundas transformações técnico-científicas, gerando uma nova configuração de

19

KOELLREUTTER, H. J. Educação e música no terceiro mundo: função, problemas e possibilidades. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 1. Disponível em: <http://www.atravez.org.br/ceem_1/terceiro_mundo.htm>. Acesso em: 15 out. 2012. 20 Ibidem.

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atitudes do homem em relação ao meio social onde vive e em relação ao meio ambiente;

atitudes essas que ainda se encontram em um processo de transformação, afastando os

processos de interação e ação daqueles cultivados pelo ponto de vista mais tradicional.

Esses novos hábitos, que aos poucos vão se afirmando na vida cotidiana atual, são capazes

de alterar o modo como percebemos o mundo e a nós mesmos. Koellreutter acreditava que

o conceito que temos de cultura nesta nossa época atual - dentro de num mundo globalizado

como o nosso - não poderia ser o mesmo conceito criado por uma burguesia do século XIX.

Além disso, para ele, cultura e sociedade não podem estar separados, isto é, a cultura é um

reflexo direto de um pensamento social global. A cultura deve ser entendida como o

conjunto “de tudo o que pertence ao ambiente secundário”, ou seja, o conjunto de ações,

invenções, criações realizadas pelo homem e que não pertencem à natureza. Pode-se dizer

que o ambiente secundário é o conjunto de ferramentas que o homem utiliza para viver

socialmente. Ele complementa que a cultura está totalmente integrada à vida social. Na

visão do autor, o conceito de cultura:

[...] abrange - além do complexo de costumes e valores tradicionais, espirituais e

intelectuais, ou seja, música, teatro, literatura, artes visuais e cinema, etc. – todas as

intenções e normas criadas pelo homem, individual e socialmente, o complexo de

padrões de comportamento e organização, sindicatos, instituições de previdência

social, hospitais e escolas (KOELLREUTTER21).

Ao olhar para o Terceiro Mundo, Koellreutter afirma que teremos como

consequência de um aumento drástico da população causado por uma grande explosão

demográfica, associada à falta de um planejamento social, econômico e educacional, a

produção de uma cultura de massa, isto é,

[...] culturas de uma sociedade constituída por uma pluralidade de indivíduos,

cuja consciência do “eu” e cujo sentimento de responsabilidade individual vêm sendo reduzidos ao mínimo, uma sociedade sem consciência de unidade e de

tradição, no pensar e no atuar (KOELLREUTTER22).

21 KOELLREUTTER, H. J. Educação e música no terceiro mundo: função, problemas e possibilidades. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 1. Disponível em: <http://www.atravez.org.br/ceem_1/terceiro_mundo.htm>. Acesso em: 15 out. 2012. 22 Ibidem.

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Os países do Terceiro Mundo estão passando por um processo de

reconfiguração dos valores humanos, pela criação de uma nova temporalidade da vida

cotidiana e pelo aumento da interdependência dos fenômenos sociais. Na opinião de

Koellreutter, é necessário que o artista tenha como objetivo primordial conservar os valores

culturais de seu povo com uma consciência que lhe permita excluir o “nacionalismo estreito

e mesquinho” e, simultaneamente, incorporar valores externos, mas que fazem parte da

cultura universal. Além disso, será impossível não levar em consideração a nova realidade

científica trazida pelo desenvolvimento tecnológico que vimos acontecer neste último

século, e os novos valores que esta tecnologia nos apresenta, pois o Terceiro Mundo

também faz parte desta realidade científica e tecnológica. Porém, se a nossa postura diante

dessa nova tecnologia for no sentido de contribuir com valores e objetivos próprios e não

apenas em sermos consumidores finais desses produtos, aí sim os valores humanos de nossa

cultura poderão ser preservados.

Não é possível prever quais valores serão integrados à nova realidade social,

isto dependerá dos ideais e objetivos que os seres humanos colocarem para o futuro. No

entanto, é certo “que o futuro fundirá valores culturais de todos os povos em um jogo

dinâmico” (KOELLREUTTER23

).

Por isso, Koellreutter acredita que o objetivo da educação não deva ser o de

adaptar o jovem a uma ordem pré-determinada, fazendo com que assimile conceitos que o

coloquem cada vez mais dentro desta ordem. Ao contrário, se faz necessária uma educação

que o ajude a interagir com um mundo em constante transformação e que dê a ele a

consciência e as ferramentas necessárias para construir um futuro melhor para si e para os

seus descendentes. Porém, uma mudança no ensino e na educação não se realiza apenas

com o aumento no número de salas de aula, contratação de professores ou compra de

equipamentos, como computadores, televisores e carteias. É necessária, na visão do autor,

uma nova definição dos objetivos da educação; uma mudança radical no conteúdo dos

programas visando uma atualização nos conceitos, ideias, formas de avaliação e atuação

pedagógica. Uma mudança de enfoque que atenda ao questionamento crítico do sistema

atual e não somente à sua reprodução. Uma educação que atenta “ao despertar e ao

23 ibidem.

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desenvolvimento da criatividade, à conscientização das descobertas científicas e dos

fenômenos sociais que marcam a nossa época, e não à adaptação e à assimilação das coisas

do passado” (KOELLREUTTER24

).

Do exposto acima, sob a ótica do autor, somente a transformação da arte em

uma arte funcional que seja capaz de se aplicar a outras áreas do conhecimento que não a

artística, - o que ele denomina de arte utilitária - poderá ser capaz de colaborar no sentido

de sairmos da crise cultural que se estabelece em países em transição.

2.2.2.2 Arte funcional

Quando Koellreutter se refere a uma educação através de uma arte funcional,

não está se dirigindo ao ensino de música que prepara o músico profissional, mas à

educação formativa como um todo, isto é, a outras áreas do conhecimento que podem ser

reforçadas através da educação musical. Entende-se que a arte funcional aparece quando a

arte se converte “em um fator de estética e humanização do processo civilizador em todos

os seus aspectos” (KOELLREUTTER25

). Ele acreditava que o ensino da música como arte

aplicada em atividades que estão fora do âmbito musical, mas que tivessem uma

funcionalidade dentro da sociedade – como, por exemplo, o meio ambiente ou atividades

musicais na área do trabalho, comércio e indústria - seria capaz de contribuir para a

conscientização do homem e para o seu desenvolvimento social. Para ele, esta interação

entre arte e vida poderia humanizar certas funções da atividade moderna através de uma

comunicação estética. A utilização da arte como um meio de educação permitiria, através

da sua integração à sociedade, a formação de um ambiente humanizado, tornando-se um

fator central dessa nova sociedade que, integrada à arte, venceria a sua alienação social e

sobreviveria à sua crise atual. Assim como a percepção auditiva e visual, a capacidade de

discernimento e análise pode ser desenvolvida por um treinamento racional e científico, o

contato humano, por exemplo, pode ser desenvolvido pela improvisação em grupos tão

importantes na música hoje em dia. A educação musical seria um meio de intensificar a

24 ibidem. 25 ibidem.

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comunicação interpessoal e estimular a criatividade. Segundo Koellreutter,

No tocante à música, ou melhor, à educação através de atividades musicais, a

mais importante implicação desta tese na sociedade moderna, é a tarefa de

despertar a mente dos jovens, a consciência da interdependência de sentimento e

racionalidade, de tecnologia e estética (KOELLREUTTER26).

Além disso, nas palavras de Koellreutter, a atividade musical pode ajudar no

desenvolvimento da autodisciplina, concentração, subordinação de interesses pessoais em

favor dos interesses do grupo, autocrítica e criatividade, além de, segundo ele, contribuir

para que o aluno sinta-se mais confiante, desinibido e livre de preconceitos.

Koellreutter, em sua trajetória como pensador e educador, trouxe outra visão

para o ensino de música, indo além da ideia de apenas oferecer uma formação técnico-

musical para o aluno. Ele ressaltou a importância de um ensino personalizado, criativo, que

respeite a individualidade do aluno sem que se perca de vista a necessidade do trabalho em

grupo; uma educação focada na criatividade, no debate e que valorize a experimentação;

um processo ensino-aprendizagem interdisciplinar no qual a música pode ser um fator

agregador de diversas áreas do conhecimento e possa atender, ao mesmo tempo, as

necessidades do indivíduo e da sociedade; uma educação que esteja com o olhar voltado

para os valores do presente, pois no passado, eram outros os problemas e anseios pela qual

passava a sociedade.

2.2.2.3 O ambiente criativo na sala de aula e o ensino pré-figurativo

Já foi dito anteriormente algo sobre a importância da criação de um ambiente

propício, em sala de aula, capaz de despertar no aluno o interesse pela procura e descoberta

de novos conhecimentos, tanto no campo do saber quanto no dos valores humanos.

Segundo Koellreutter, o que desencadeia este ambiente é o espírito criador. “Sem o espírito

26 ibidem.

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criador não há arte, não há educação” (KOELLREUTTER27

). Um dos fatores que pode

fazer com que a educação torne-se eficaz, segundo o autor, reside na inquietude do

professor em sempre instigar os alunos a procurem novos problemas, pois num mundo em

constante transformação, como o que estamos vivendo, as perguntas têm mais importância

dos que as respostas. Quando um professor simplesmente “despeja” informações para os

alunos, espera-se que sejam ouvintes e passivos, mas quando o professor atua como um

animador, o que se tem como resposta são alunos que pesquisam e questionam. Em uma

escola moderna, a informação não deve ser simplesmente transmitida aos alunos de uma

maneira mecânica, baseada em princípios estanques mas sim, informações adquiridas como

consequência de um trabalho conjunto entre professor e alunos, onde este deixa de ser

aquela figura que detém o conhecimento e passa a fazer parte do debate que se estabelece

diante das situações vividas em sala de aula, criando relações entre as áreas do

conhecimento. Koellreutter propõe que o aluno, mais do que o conhecimento dos fatos,

tome consciência das relações entre as coisas. Segundo o autor, “nenhuma atividade

intelectual pode ser isolada” e por isso, dentro de um processo de ensino-aprendizagem é

fundamental a conscientização dessas relações e a verdadeira problemática que se

estabelece a partir delas e coloca a importância que há, para os alunos, de não se deixarem

levar apenas pela curiosidade, mas por um real interesse que os leve a um posicionamento

crítico diante da vida.

Seguindo um caminho inverso ao de uma educação tradicional que se apoia na

rotina, na determinação de valores absolutos e na elaboração de programas pré-

estabelecidos, que oferece um treinamento mecânico para o aluno e não a formação de uma

consciência crítica de mundo, Koellreutter propõe um método de ensino que ofereça o

conhecimento como um todo - o homem, a sociedade e o meio ambiente. A este modelo de

educação, Koellreuter denominou de ensino pré-figurativo.

27 KOELLREUTTER, H. J. O espírito criador e o ensino pré-figurativo. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 6. Disponível em: < http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em: 10 out. 2012.

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Entendo por ensino pré-figurativo um método de delinear antecipadamente o que,

provavelmente, sucederá no futuro, ou seja, figurar imaginando. Entendo por

ensino pré-figurativo um método de delinear aquilo que ainda não existe, mas que

há de existir, ou pode existir ou se receia que exista. Este método de ensino,

naturalmente, não rejeita os métodos tradicionais, mas sim, os complementa. O

caminho é a ampliação, o alargamento do ensino tradicional pelo ensino pré-

figurativo (KOELLREUTTER28).

Ao comentar o texto de Koellreuter, O espírito criador e ensino pré-figurativo,

José Gabriel Marques Fonseca, busca a origem do termo figurativo nas artes e relaciona

com o que ele considera a questão crucial no método de ensino proposto por Koellreutter.

Figurativo é um termo próprio do domínio das artes plásticas e diz respeito a uma

forma de “manifestação artística, comum a diferentes épocas, culturas e correntes estéticas, e que se manifesta pela preocupação de representar formas acabadas da

natureza” (Aurélio). Numa pintura figurativa, por exemplo, o pintor procura

representar algo perceptivamente pré-estabelecido – ele pinta uma montanha,

uma casa, um animal, etc. Por outro lado, numa obra não figurativa, o pintor

sugere, circunscreve, delineia, mas não “afirma” formas pré-estabelecidas.

Tomando por empréstimo esse sentido, Koellreutter propõe um ensino artístico

pré-figurativo, aberto, livre de pré-concepções, onde atue o espírito criador

(FONSECA, J. G. M.29).

Através do ensino pré-figurativo, Koellreutter entende que o conteúdo

programático dos cursos de educação artística oferecidos atualmente nas escolas deva

sofrer uma reestruturação no sentido de favorecer o “questionamento crítico do mundo

existente e não a sua reprodução”; que busque uma conscientização de um modo de vida

presente e não a assimilação dos valores do passado; que o ensino das artes não seja

transmitido de forma independente, e sim que se procure – alunos e professores – pelas

relações entre os assuntos abordados. Koellreutter entende a necessidade do homem em

especializar-se, mas em sua concepção, é fundamental que tivesse também “o

conhecimento do todo e a compreensão das inter-relações existentes entre as coisas, entre

os homens e suas atividades” (KOELLREUTTER30

). Mas ressalta que esse “todo” que

procuramos não está em nenhum currículo ou programa pré-estabelecido. Na verdade, ele

se encontra “nas tensões permanentes que sempre se renovam”.

28

ibidem. 29 ibidem. 30 ibidem.

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32

Portanto, as mudanças necessárias na educação, segundo o autor, dentro de um

programa pré-figurativo pedem:

1) Que as culturas não-ocidentais tanto quanto as originárias, aborígenes ainda

existentes neste planeta e, naturalmente, também no Brasil, sejam levadas em

conta tanto quanto a ocidental;

2) Que as artes e a estética, em particular, como reflexão sobre o ato criador

encontrem lugar tão eminente quanto o das ciências das disciplinas

tecnológicas;

3) Que a prospectiva como reflexão sobre os fins, os valores e o sentido de futuro em vias de nascer, e como tomada de consciência de nossas

responsabilidades – temática mais importante do ensino pré-figurativo –,

ocupe espaço tão amplo quanto o do passado (KOELLREUTTER31).

A partir do contato com civilizações não ocidentais ou originárias, sob a ótica

do autor, é possível estabelecer um diálogo entre culturas e, dessa forma, buscar outros

pontos de vista que não o olhar ocidental, que de certa forma rege o nosso comportamento

atual. Da mesma forma, buscar uma mudança de postura cultural no que se estabeleceu

como ciências e artes, situando estas duas dentro de uma área mais ampla,

[...] na qual nossas relações com a natureza não são apenas manipulação ou de conquista, mas de amor e participação: uma abordagem em que o relacionamento

de um com o outro e com a sociedade não é o de um individualismo, mas de

comunidade, onde nossas ligações com o futuro não são definidas por uma

simples extrapolação de presente ou passado, mas por ruptura, superação e

transcendência (KOELLREUTTER32).

Para Koellreutter, o ensino pré-figurativo pode estimular o homem a refletir

sobre o seu comportamento perante o mundo, através de um questionamento e um

posicionamento crítico sobre o mundo e a sociedade. Não se trata de prever o futuro, mas

de inventar novos projetos para o mundo futuro através de uma educação permanente do

homem que é capaz de se reciclar constantemente, seja ele professor, aluno ou cidadão.

Deixar florescer o espírito criador é poder criar um “movimento de tensões” que leva a

indagações e por consequência a ações efetivas. O espírito criador “duvida, procura,

investiga e pesquisa”.

31 ibidem. 32 ibidem.

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33

A aquisição de conhecimento e o reconhecimento das tradições são importantes

e, na visão de Koellreutter, têm o seu lugar dentro da escola sendo elementos fundamentais

para a formação da vida intelectual. Porém, é necessário manter um espírito, que além de

criador, seja questionador. As dúvidas são a grande possibilidade de aprofundamento em

questões que envolvem o conhecimento como um todo. É importante o diálogo que se

estabelece entre professores e alunos a fim de objetivar os conteúdos e experiências vividas

e apreendidas. Dentro de um pensamento sobre o que seja uma escola moderna,

Koellreutter espera que as soluções dos problemas não sejam “mecanicamente fornecidas

ao aluno, mas sim que resultem de um trabalho comum de todos que dele participam”. Para

Koellreutter, o espírito criador,

[...] deve ter suas raízes na tradição, nos tempos passados, em mundos estranhos

portanto, mas ele jamais deve isolar-se e afastar-se do presente real. Assim ele

despertará forças para elucidar o presente e para contribuir resolutamente para a

construção do futuro da humanidade (KOELLREUTTER33).

2.3 Murray Schafer: uma educação para os sons

Murray Schafer iniciou seus estudos de música ainda criança, com a mãe, no

piano, mas o seu real interesse era pelas artes plásticas. Por este motivo só frequentou uma

escola de música especializada na adolescência, onde obteve o único diploma que possui:

licenciatura em música. Além da música e das artes plásticas, se envolveu com a literatura.

No conservatório, em Toronto, estudou piano, composição e cravo. Nessa mesma época,

porém, fora do conservatório, começa a frequentar o círculo que se reunia com Marshall

McLuhan, uma das mais significativas influências que recebeu em seu desenvolvimento

intelectual, numa espécie de educação informal. Diante disso, tentou seguir seus estudos na

Faculdade de Música da Universidade de Toronto, mas pouco tempo depois, foi expulso

por ser considerado um aluno de comportamento “insultante”. Em 1956, viaja para a

Europa onde permanece por seis anos. Durante sua estada na Áustria, frequentou a

Universidade de Viena e estudou, dentro do curso de literatura alemã, a poesia dos

33 ibidem.

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34

Minnesingers34

. Nesta mesma época, interessa-se pela escola de Bauhaus, em particular,

por Paul Klee. “Todas essas influências vão se fazer presentes na obra de Schafer, tanto em

seu conceito de design da ‘paisagem sonora’ e de ‘Jardins de sons’ quanto em muitas de

suas composições e ensaios” (FONTERRADA, 2004, p. 35). Morou na França e na Itália e

em seguida, viajou para o Leste Europeu, onde teve contato com a música e o pensamento

político de região; ficou fascinado pelo folclore, bem diferente do europeu, mas

decepcionou-se com a postura do Estado em transformar a produção musical em

instrumento político. Após alguns anos, chega à Inglaterra para estudar música

contemporânea com Peter Racine Fricker, discípulo de Matyas Seiber. Uma forma de

composição bem diferente do que era praticada no Canadá. Além do estudo de composição,

Schafer encontra-se com Ezra Pound, o que considera uma das mais gratificantes

experiências pelas quais passou. Tiveram várias conversas onde se falava muito sobre a

música árabe – assunto de grande interesse para os dois por causa de seus ritmos e melodias

não harmonizadas – e ouvia-o declamar. Schafer reconhece em Pound uma de suas mais

fortes influências. Diz Schafer que tomou como suas, as grandes preocupações de Pound:

“a integração poesia/música, o interesse pela música oriental, por línguas estrangeiras e

pela busca de sonoridades” (FONTERRADA, 2004, p. 37).

Em 1962, Schafer retornou ao Canadá e começou a trabalhar no Centro de

Música Canadense35

como catalogador de livros e partituras. Nessa mesma época,

envolveu-se em um projeto importante para a cidade e que durou cerca de cinco anos, de

1962 a 1967. Tratava-se do “Concerto dos Dez Séculos”- um projeto que tinha como

objetivo promover e divulgar obras musicais que jamais haviam sido executadas no

Canadá. Este projeto se propunha a apresentar peças significativas da história da música,

desde a Idade Média até a época contemporânea, passando por diferentes estilos de jazz e

obras de compositores canadenses. Procurava-se propositalmente reunir em um mesmo

34

Minnesingers foram cantores medievais das regiões de línguas provençal e francesa; o nome significa “cantores do amor”, mas celebravam também o heroísmo e a natureza (SCHOLES apud FONTERRADA, 2004, p. 35). 35

Centro responsável pela publicação, gravação e divulgação da música canadense, com escritório em Toronto, Montreal e Vancouver. São bem equipados, dotados de considerável acervo de livros, partituras, revistas, discos, fitas e gravações digitais de autores canadenses. Atua também como centro de pesquisa e propicia incentivo cultural, promovendo concertos e apresentações musicais de artistas canadenses, sejam eles consagrados ou estreantes (FONTERRADA, 2004, p. 37).

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35

programa música muito recente a música muito antiga, como por exemplo, Pierrot Lunar

de Arnold Schoenberg [século XX] e a Messe Notre Damne de Machaut [século XII]. Em

1963, recebe um convite para trabalhar como artista residente, na The Memorial University

em St. John, New Foundland, e lá, organizou atividades artísticas com músicos e

estudantes. Mesmo estando distante de Toronto, continuou a colaborar com a série

“Concerto dos Dez Séculos”, escrevendo notas de concerto e auxiliando na sua

organização.

Em St. John, a preocupação de Schafer, era “descobrir” um repertório

incomum, incluindo peças medievais. Schafer pensava que as pessoas apreciavam músicas

de qualidade se a elas fosse dada a oportunidade de conhecê-la. Durante todo esse período,

Schafer nunca deixou de compor, demonstrando um controle absoluto nas técnicas de

composição de vanguarda. Porém, o seu interesse, neste período esteve focado na

exploração do canto: seus vários modos de cantar, efeitos vocais como assobios e apitos, e

a associação entre música, linguagem e dança projetado para veiculação na mídia

televisiva.

Em 1965, Schafer foi contratado pela Universidade de Simon Fraser em

Vancouver, Canadá, para integrar a equipe que fora montada pelo Centro de Estudos de

Comunicação e Artes, um departamento experimental que tinha como objetivo integrar as

artes e as ciências, onde atuou por dez anos. A Universidade de Simon Fraser se propunha a

realizar propostas consideradas revolucionárias em relação ao ensino, diferentes dos

métodos empregados por outras universidades. Ali, o compositor se deparou com a total

liberdade de ação para experimentar suas ideias sobre educação e integração de linguagens,

além dos recursos necessários para a instalação de um estúdio de música eletrônica –

Estúdio de Pesquisas Sonoras do Departamento de Comunicação da Universidade Simon

Fraser. Foi neste período que Schafer experimentou pela primeira vez a rotina diária do

magistério e elaborou seus livretos36

sobre educação musical.

Durante o período em que esteve na universidade, Schafer demonstrou interesse

pelo estudo do ambiente sonoro: questões ligadas ao ruído ambiental e a relação entre o ser

36 Mais tarde, estes livretos passaram a ser capítulos do seu livro O ouvido pensante.

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36

humano e seu ambiente. Dedicando-se ao estudo comparativo da paisagem sonora

(sondscape), em 1971 nasceu o Projeto Paisagem Sonora Mundial, que:

[...] desde então se tem realizado um grande número de pesquisas nacionais e

internacionais relacionadas com a percepção auditiva, o simbolismo sonoro, a

poluição sonora, etc., tentando unir as artes e as ciências dos estudos sonoros para

o desenvolvimento da interdisciplinar Planejamento Acústico (SCHAFER, 2001,

p. 366-367).

2.3.1 Limpeza de ouvidos

No curso de comunicação da Universidade de Simon Fraser, em Vancouver,

segundo relata Schafer, o ruído era abordado de um ponto de vista negativo e sempre

relacionado a aspectos legais ou de saúde pública. Os alunos, por sua vez, se mostravam

desinteressados, pois achavam que não cabia a eles a resolução desses problemas

(FONTERRADA, 2004). Schafer foi convidado a dar um curso de música para os alunos

do primeiro ano do curso “Estudos da Comunicação”, o qual denominou de “Limpeza de

ouvidos”, “um programa sistemático para treinar os ouvidos a escutarem de maneira mais

discriminada os sons, em especial os do ambiente” (SCHAFER, 2001, p. 365). Para

Schafer, “antes do treinamento auditivo é preciso reconhecer a necessidade de limpá-los”

(SCHAFER, 1991, p. 67). O curso tinha como premissas básicas: 1) abrir os ouvidos; 2)

levar os alunos a notar os sons que nunca haviam percebido anteriormente; 3) ouvir os sons

do ambiente e os sons que os próprios alunos injetavam nesse ambiente; 4) sugerir maneiras

de modificar e melhorar o ambiente acústico; 5) educar estudantes em ecologia acústica.

Segundo o educador Schafer, é necessário, a todo professor, levar em

consideração a capacidade de reação do ser humano. Ninguém é capaz de aprender música

tendo uma postura estática perante ela. Para o educador Schafer,

[...] uma pessoa só consegue aprender a respeito de som produzindo som; a

respeito de música, produzindo música. Todas as nossas investigações sonoras

devem ser testadas empiricamente, através dos sons produzidos por nós mesmos e

do exame desses resultados. É óbvio que não se pode reunir sempre uma

orquestra sinfônica numa sala de aula para sentir as sensações desejadas;

precisamos contar com o que está disponível (SCHAFER, 1991, p. 68).

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37

Ainda segundo o autor, o contato real com o som musical, sendo este refinado

ou não, é mais importante para nós do que qualquer aula onde o conteúdo programático se

baseia na audição, isto porque, o som que produzimos é nosso. Schafer ressalta a

importância das atividades de improvisação e criatividade como algo capaz de fazer com

que os alunos aprendam sobre as dimensões e formas dos objetos sonoros de uma maneira

muito prática (SCHAFER, 1991).

No curso “Limpeza de ouvidos”, Murray Schafer propôs uma série de

exercícios para improvisação que sempre aconteciam ao final de uma palestra sobre

determinado tema e com o intuito de testar validade do que foi discutido. Entre os temas

abordados estão: ruído, silêncio, som, timbre, amplitude, melodia, textura e ritmo.

2.3.2 A Paisagem Sonora

A paisagem sonora do mundo está mudando. O homem moderno começa a habitar um mundo que tem um ambiente acústico radicalmente diverso de

qualquer outro que tenha conhecido até aqui. Esses novos sons, que diferem em

qualidade e intensidade daqueles do passado, têm alertado muitos pesquisadores

quanto aos perigos de uma difusão indiscriminada e imperialista de sons, em

maior quantidade e volume, em cada reduto da vida humana. A poluição sonora é

hoje um problema mundial. Pode-se dizer que em todo o mundo a paisagem

sonora atingiu o ápice da vulgaridade em nosso tempo, e muitos especialistas têm

predito a surdez universal como a última consequência desse fenômeno, a menos

que o problema venha a ser rapidamente controlado (SCHAFER, 2001, p. 17).

O termo soundscape (paisagem sonora) foi cunhado por Schafer e refere-se às

pesquisas que incluem qualquer campo de estudos acústicos. O termo pode-se referir a uma

composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico. Este

estudo pode ser feito isolando determinado ambiente acústico para que sirva como campo

de estudo, assim como estudar as características de determinada paisagem sonora.

Os primeiros estudos da paisagem sonora tiveram início a partir do projeto

Paisagem Sonora Mundial, no ano de 1969, com pesquisas que envolveram o estudo sobre

a paisagem sonora de Vancouver, com gravações dos diversos sons da cidade; uma

pesquisa sobre a realidade sonora do Canadá, realizada durante uma série de gravações por

todo o país e o estudo da paisagem sonora europeia com pesquisas realizadas em oito

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países. Estes estudos foram registrados em três livros e em dez programas de rádio. Schafer

tinha como objetivo estudar, interdisciplinarmente, os diversos ambientes acústicos

contrastantes e os efeitos que poderiam gerar sobre a sociedade; sugerir maneiras de

transformar e melhorar ambientes acústicos através da educação baseada na ecologia

acústica, de maneira a preparar estudantes, pesquisadores e a sociedade como um todo,

assim como fazer o registro de relatos que possam servir, no futuro, como guia de estudo

(FONTERRADA, 2004).

Mas o estudo da paisagem sonora, para Schafer, não é algo que se possa

analisar com facilidade. Para ele, “não existe nada em sonografia que corresponda à

impressão instantânea que a fotografia consegue criar” (SCHAFER, 2001, p. 23), isto é, a

paisagem sonora consiste em “eventos ouvidos e não em objetos vistos” (ibidem). O

registro sonoro encontra-se em desvantagem em relação ao registro fotográfico. Ele cita

como exemplo o fato de, em uma determinada área, ser possível saber exatamente quantos

edifícios foram construídos ou o crescimento da população em uma década, mas não é

possível saber a respeito do nível de ruído. Desse modo, mesmo usando técnicas avançadas

de gravação, para embasarmos as perspectivas históricas devemos recorrer a relatos de

testemunhas auditivas, à literatura e aos registros históricos.

2.3.2.1 Aspectos da paisagem sonora

Quando se analisa uma paisagem sonora, é importante, segundo Schafer, que se

descubram os seus aspectos significativos, isto é, os sons que são importantes pela sua

individualidade, quantidade e predominância. Schafer categorizou os temas da paisagem

sonora através da distinção entre sons fundamentais, sinais e marcas sonoras. No sistema

tonal, o termo “fundamental” refere-se à nota que identifica a tonalidade de uma

determinada composição. Já os sons fundamentais de uma paisagem sonora são aqueles

criados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, animais; os sinais são

aqueles sons que se destacam; ouvidos conscientemente como, por exemplo, sinos, apitos,

buzinas e sirenes. E por último e não menos importante, as marcas sonoras que se refere ao

som produzido pela comunidade, que seja único e que possua qualidades que o torne

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39

significativo. Segundo Schafer, uma vez identificada uma marca sonora, esta deve ser

preservada por ser responsável por tornar única a vida acústica da comunidade (SCHAFER,

2001).

Indo um pouco mais além, dentro das categorias explicitadas acima, Murray

Schafer procurou classificar as paisagens sonoras com o objetivo de descobrir

similaridades, contrastes e modelos. Justificou a classificação como uma técnica de análise

que conduziria “à melhoria da percepção, do julgamento e da invenção” (SCHAFER, 2001,

p. 189). Desta forma, apesar de considerar limitações existentes ao listar essas

classificações separadamente, o autor criou um sistema de catalogação dos sons no sentido

de torná-la útil para tratar dos vários aspectos da paisagem sonora. Segundo Schafer, os

sons podem ser classificados de várias maneiras:

a) Classificação de acordo com características físicas: uma análise pormenorizada de

objetos sonoros no sentido de compreender os sons tanto como eventos quanto

como objetos. Produziu um gráfico que levava em consideração a distância

estimada do objeto (m), intensidade estimada do som original (decibéis), som

ouvido distintamente ou indistintamente, textura do objeto sonoro (hi-fi ou lo-fi)37

,

ocorrência isolada ou repetida e fatores ambientais como pouca ou nenhuma

reverberação, eco, vibração, etc. Além disso, propõe uma análise dos parâmetros do

som: duração, frequência e dinâmica; e dos seus componentes: ataque, corpo e

queda.

b) Classificação de acordo com aspectos referenciais: uma estrutura que permite

estudar as funções e o significado dos sons. Segundo Schafer, a maior parte dos

sons ambientais é produzida por objetos conhecidos, porém nenhum som possui um

significado objetivo, uma vez que o observador terá atitudes culturais em relação a

ele. Foi proposta a criação de um catálogo de descrições de sons obtidos em

documentos literários, antropológicos e históricos, pois, segundo o autor, a única

37

Hi-Fi é abreviação de alta fidelidade (high fidelity) – uma razão sinal/ruído favorável. Aplicado aos estudos da paisagem sonora, trata-se de um ambiente onde os sons podem ser ouvidos claramente, sem estarem amontoados ou mascarados. Lo-Fi é abreviação de baixa fidelidade (Low fidelity) – uma razão sinal/ruído desfavorável. Aplicado aos estudos da paisagem sonora, trata-se de um ambiente em que os sinais se amontoam, tendo como resultado o mascaramento ou a falta de clareza. (SCHAFER, 2001, p. 365).

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maneira de se obter registros de paisagens sonoras do passado é através do relato de

“testemunhas auditivas” que estavam em determinado lugar. Nesta categoria

encontram-se: 1) sons naturais – oceanos, mares, vento, pássaros, primavera, etc.; 2)

sons humanos – da voz, do corpo, do vestuário; 3) sons e sociedade – paisagens

sonoras rurais, paisagens sonoras da cidade, paisagens sonoras domésticas,

cerimônias e festivais, etc.; 4) sons mecânicos – máquinas de transporte,

equipamentos industriais, equipamentos de construção e demolição, ferramentas

mecânicas, etc.; 5) quietude e silêncio; 6) sons indicadores – sinos e gongos,

buzinas, fábricas, relógios, telefones, indicadores de ocorrências futuras.

É importante, no final do catálogo que foi montado, indicar se o relator demonstrou

uma atitude particular para com os sons observados, isto é, quais as considerações

dadas pelo observados a respeito de sua relação para com esses sons (SCHAFER,

2001).

c) Classificação quanto a qualidades estéticas (emocionais ou afetivas): embora este

tipo de classificação seja considerado muito difícil por seu caráter extremamente

subjetivo, Schafer coloca que considerando a estética em sua forma mais simples,

podemos relacioná-la ao contraste entre o “belo e o feio”. Segundo ele, um bom

início seria as pessoas catalogarem os seus sons favoritos e os menos apreciados;

sons agradáveis ou perturbadores para indivíduos de diferentes culturas. Assim,

considerando o simbolismo do som, esses catálogos teriam enorme valia no sentido

de promover futuros projetos de paisagem sonora. Poderiam dar uma indicação

sobre até que ponto uma lei antirruído pode refletir o desejo da opinião pública.

2.3.3 Ecologia acústica

Ao desenvolver uma pesquisa sistemática a respeito do som ambiental dentro

do projeto Paisagem Sonora Mundial, Schafer reuniu um importante grupo de

pesquisadores, na década de 1970, em que o objetivo maior era o de medir os níveis de

ruído em diferentes partes do Canadá e da Europa, estudar suas características, analisar

como esses ruídos podem afetar a saúde e verificar a legislação sobre a questão do ruído

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ambiental em vários desses países. Essas novas questões no campo dos estudos sônicos

abriram caminhos para novas pesquisas no sentido de entender o mundo por critérios

sonoros e ressaltar a baixa qualidade do ambiente sonoro o qual estávamos expostos. Como

consequência dessas pesquisas, uma conscientização quanto à necessidade de melhoria da

capacidade auditiva resultando na escolha, por parte da sociedade, dos sons que deveriam

compor a paisagem sonora (FONTERRADA, 2004). Schafer propunha, através desse novo

campo de estudo que se formava uma união das disciplinas ligadas à ciência e à acústica. O

resultado do que ele chamava de “interdisciplinas” seria o desenvolvimento da ecologia

acústica e do projeto acústico. Para Schafer, “ecologia é o estudo da relação entre os

organismos vivos e seu ambiente. A ecologia é, assim, o estudo dos sons em relação à vida

e à sociedade” (SCHAFER, 2001, p. 287) e este estudo não pode ser realizado em

laboratório. “Só poderá ser desenvolvido se forem considerados, no próprio local, os efeitos

do ambiente acústico sobre as criaturas que ali vivem” (SCHAFER, 2001, p. 287). Este

conceito de projeto acústico, segundo o autor, não deveria ser uma tarefa apenas para

engenheiros acústicos, mas uma mobilização de toda a sociedade, isto é, em suas palavras,

uma tarefa para todos: profissionais, amadores e jovens e principalmente aos compositores,

que andam distantes da sociedade, mas que têm um importante papel a cumprir. Em sua

opinião, os compositores são os “arquitetos do som”. A esse respeito, coloca Schafer que:

[...] eles têm a maior experiência em planejar efeitos destinados a provocar

respostas específicas nos ouvintes, e os melhores dentre eles são mestres em

modular o fluxo desses efeitos para oferecer experiências complexas e variadas,

que alguns filósofos têm descrito como uma metáfora para a própria experiência

de vida (SCHAFER, 2001, p. 288).

Ecologia acústica, também conhecida como ecologia sonora, é interdisciplinar

e, como tal, possibilita agregar questões advindas de outras áreas do conhecimento como

ciências, matemática, história, geografia, etc. Além disso, a ecologia acústica propõe uma

forma alternativa para a atividade da escuta, levando-se em consideração as relações entre o

homem e seu ambiente sônico – o que compõe a sua paisagem sonora – e trazendo a

atenção para os desequilíbrios dinâmicos dessas relações.

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2.3.4 A afinação do mundo

Todas as pesquisas realizadas dentro do Projeto Paisagem Sonora Mundial,

relativas à ecologia acústica foram reunidas em um livro, publicado em 1977, como o nome

de The Tuning of the World38

. A intenção de Schafer, com a publicação deste livro, era de

que as pesquisas realizadas servissem de orientação para pesquisas futuras. Nas palavras de

Fonterrada, tradutora da versão brasileira, “o livro é o mais completo estudo existente a

respeito da paisagem sonora e enfatiza seu caráter interdisciplinar” (FONTERRADA, 2004,

p. 42).

O livro está dividido em quatro partes principais e um interlúdio, mais um

epílogo, um glossário com termos relativos à paisagem sonora e dois apêndices contendo

referências à notação sonora e pesquisa de preferências sonoras.

A primeira parte recebeu o nome de “As primeiras paisagens sonoras”. O autor,

lançando mão de pesquisas realizadas através da mitologia, da poesia e de fontes históricas,

como Tolstoi, Pound, Homero, Virgílio, Goethe entre outros, descreve: 1) a paisagem

sonora natural: o mar, a transformação da água, o vento; 2) Os sons da vida: o canto dos

pássaros, os insetos, o som das criaturas das águas, os sons dos animais, o homem faz ecoar

a paisagem sonora na fala e na música; 3) a paisagem sonora rural: os sons pastoris, os sons

de caça, sons da fazenda, ruídos da paisagem sonora rural; 4) Do vilarejo à cidade: o som

do tempo (o sino da igreja e o relógio mecânico), sons da noite e do dia, o cavalo e a

carroça, gritos de rua.

Na segunda parte, denominada “A paisagem sonora pós-industrial”, o autor

analisa o quanto a Revolução Industrial e, posteriormente, a Revolução Elétrica exerceram

influência na transformação do ambiente sonoro passando de um ambiente hi-fi, isto é, um

ambiente onde os sons podem ser ouvidos claramente, sem estarem amontoados, para um

ambiente lo-fi – um ambiente oposto ao anterior, onde os sons se amontoam e como

resultado, a falta de definição ou clareza.

Em “Música, paisagem sonora e mudanças na percepção”, o interlúdio, Schafer

examina pormenorizadamente as relações entre música e paisagem sonora. Ele entende que

38 Na tradução brasileira, feita por Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, A afinação do mundo.

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“a música forma o melhor registro permanente de sons do passado. Assim, ela será útil

como guia das modificações nos hábitos e nas percepções auditivas” (SCHAFER, 2001, p.

151). Considera que a influência do ambiente sonoro na música tem sido pouco explorada.

Para ele, os historiadores e analistas concentram-se mais em mostrar como os compositores

buscam inspiração para suas composições na imaginação ou em outras formas de músicas,

mas o autor pondera que, pelo fato dos compositores viverem em um mundo real, “os sons

e os ritmos de diversas épocas e culturas têm influenciado o seu trabalho, tanto consciente

quanto inconscientemente” (SCHAFER, 2001, p. 151). Cita a música absoluta e

programática como duas espécies distintas. Enquanto na primeira, os compositores

“modelam paisagens sonoras ideais na mente” (a sonata, o quarteto e a sinfonia), na

segunda, a música programática, o compositor “imita ou representa alguns elementos

existentes em seu ambiente - riachos murmurantes, o som da roca fiando, o galopar de

cavalos podem ser facilmente encontrados na produção musical” (FONTERRADA, 2004,

p. 44). No interlúdio, Schafer traça alguns paralelos entre a imitação consciente da

paisagem sonora na música, dentro das salas de concerto e as imitações da natureza, na

pintura, criadas para serem exibidas em espaços não naturais. Como janelas que levam os

espectadores a diferentes cenários.

Uma galeria de arte é uma sala com mil avenidas de partida, de modo que

havendo entrado, esquece-se a porta para o mundo real e se é obrigado a seguir

explorando. Do mesmo modo, uma peça descritiva de música transforma as paredes das salas de concerto em janelas abertas para o campo. Por meio dessa

vitrina metafórica, transpomos os confinamentos da cidade para ir em direção à

paysage livre mais distante (SCHAFER, 2001, p. 152).

O autor segue refletindo sobre outros elementos sonoros que entraram na

música de concerto. Ele cita, por exemplo, o canto dos pássaros e a trompa de caça como

um reflexo da paisagem sonora pastoril e dos jardins medievais; o crescimento das

orquestras refletindo “as mais espessas densidades da vida urbana”. Posiciona-se a respeito

de música em relação ao ambiente – as reações, as interações, o amplificador como

substituto da orquestra, etc.

Em seguida, a terceira parte, “Análise”, o autor pesquisa o som quanto a sua

notação, classificação, percepção, morfologia e simbolismo. O autor se refere às “mudanças

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perceptivas nos hábitos da audição” buscando relações entre os termos utilizados na

percepção visual e na percepção auditiva. Deste estudo, empregou três termos que são: a

figura, que corresponde ao sinal ou marca sonora; o fundo corresponde aos sons do

ambiente à sua volta e o campo, lugar onde todos os sons ocorrem, a paisagem sonora.

Empregou o termo morfologia - o estudo das formas e estruturas - para estudar as formas

sonoras que se modificam no tempo e no espaço; para usar técnicas morfológicas e estudar

a evolução do som, isto é, como os parâmetros físicos do som foram alterados no decorrer

do tempo ou como diferentes sociedades utilizam diferentes sons funcionais para o mesmo

fim, como, por exemplo, os apitos das fábricas (SCHAFER, 2001). Em “simbolismo”, o

autor analisa como os sons, para o pesquisador, não devem ser investigados apenas como

eventos acústicos abstratos, mas como signos, sinais e símbolos acústicos. Como exemplo,

temos os sons da água, que segundo o autor,

[...] de todos os sons, a água, o elemento original da vida, tem o mais esplêndido simbolismo [...] a chuva, um riacho, uma fonte, um rio, uma cachoeira, o mar,

cada qual produz seu som único, mas todos compartilham um rico simbolismo.

Eles falam de limpeza, de purificação, refrigério e renovação (SCHAFER, 2001,

p. 250).

Continua citando o simbolismo presente nos sons do vento, da madeira, do sino,

etc. e este simbolismo, mesmo associado a arquétipos, na visão do autor, vem sofrendo

modificações lentas e regulares. Ele diz que:

[...] o homem moderno tem procurado escapar tanto do vento quanto do mar,

enclausurando-se em ambientes artificiais. E, do mesmo modo que tem procurado

controlar o mar em sua fonte, ele busca domesticar o vento no aparelho de ar

condicionado, pois os sistemas de ventilação dos modernos edifícios nada mais

são do que técnicas para fazer o vento soprar na direção correta e com força mais

adequada (SCHAFER, 2001, p. 252).

Prossegue concluindo que tais alterações modificam o simbolismo dessas

paisagens. Ainda nesta parte do livro, Schafer estuda a presença do ruído na linguagem;

chama a atenção para a questão do ruído com relação aos seus riscos, à poluição sonora;

analisa a rapidez com que aumenta o nível do ruído ambiental e qual a reação da sociedade

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a este respeito; e, por fim, faz uma análise da legislação antirruído que alguns países vêm

adotando.

A quarta parte, “Em direção ao projeto acústico”, está dividida em “audição”,

“a comunidade acústica”, “ritmo e tempo na paisagem sonora”, “o projeto acústico”, “o

jardim sonoro” e “silêncio”. Nesta seção, o autor se refere à ecologia acústica e ao projeto

acústico, salientando a importância que os profissionais ligados à acústica têm junto às

questões ambientais e ressaltando o caráter positivo, na vida cotidiana, da atuação desses

novos profissionais. Procura discutir soluções para a questão da poluição sonora, da

melhora na qualidade de vida auditiva e o desenvolvimento da sensibilidade estética que

acarretará, como consequência, a busca por um ambiente sonoro mais saudável. Chama a

atenção para os desequilíbrios entre o homem e seu ambiente sônico e sugere ações para a

construção de uma nova sociedade preocupada com a questão ambiental mediante o

desenvolvimento da acuidade auditiva, uma nova sociedade que aprenda a ouvir e a avaliar

quais os sons desagradáveis ou destrutivos.

2.3.5 Educação musical ou educação sonora?

Segundo Fonterrada em seu livro O Lobo no Labirinto, a primeira vez que

Schafer defendeu ideias sobre educação musical foi em 1962 durante um encontro com

professores de escolas secundárias em Toronto. Schafer dizia ser necessário dar prioridade

ao desenvolvimento de habilidades auditivas em detrimento do ensino de teoria da música.

Quanto ao repertório adotado nas escolas, se posicionava no sentido de que a criança tinha

capacidade para apreciar tanto a música do passado quanto a de vanguarda e, portanto, ela

deveria ter o contato com peças de boa qualidade, de várias épocas e estilos. Nessa ocasião,

ocorreu um projeto chamado “John Adaskin”, sob o patrocínio do Centro de Música

Canadense, no qual foram estudadas as relações entre o compositor contemporâneo e a

música nas escolas com o objetivo de “estimular os estudantes a desenvolver habilidades

criativas e motivar compositores a escrever música para crianças e adolescentes”

(FONTERRADA, 2004, p. 50). Geralmente, estes encontros eram de debates e conversas

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com os jovens antes de se iniciarem as atividades musicais. Desta experiência, Schafer

escreveu o seu primeiro livreto sobre educação, “O compositor na sala de aula” e que mais

tarde viria a ser um capítulo do seu livro sobre esta temática (que irei comentar em

seguida).

Após esta experiência, outras vieram e, observando os alunos nas escolas,

Schafer pôde perceber que os alunos raramente eram estimulados a realizar algo criativo; a

educação musical se baseava principalmente na prática de leitura e memorização. Ainda

que nunca tivesse tido uma experiência rotineira em sala de aula, fora alguns projetos da

qual participou, Schafer, em contato com os alunos, procurava desenvolver suas ideias na

área de educação musical com propostas que estimulavam os alunos a buscarem respostas

aos seus questionamentos, favorecendo o diálogo e a discussão em substituição ao

treinamento mecânico e às regras rígidas.

Entre as décadas de 1960 e 1970, Schafer publicou uma série de cinco livretos,

que mais tarde seriam reunidos por ele em um único volume intitulado The Thinking Ear,

que no Brasil, com tradução de Marisa Trench de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva

e Maria Lúcia Pascoal, recebeu o título de O Ouvido Pensante. O livro está dividido em seis

capítulos, cada um deles dedicado a um tema específico. O primeiro, “O Compositor na

sala de aula” basicamente trata da criatividade que, segundo Schafer “talvez seja o assunto

mais negligenciado do Ocidente” (SCHAFER, 1991). Em formato de relatos de

experiências sobre esses encontros, neste capítulo são abordados temas como estilos

musicais preferidos e o que é música. Na parte prática, são elaboradas propostas de criação

coletiva a partir das quais surgiam várias questões a serem discutidas posteriormente.

Exceto uma experiência relatada que ocorreu com alunos do Ensino Fundamental I, as

outras experiências foram realizadas com alunos com idades entre treze e dezessete anos.

O segundo capítulo “Limpeza dos ouvidos” (já descrito na seção 2.31 deste

trabalho), expande os conceitos tradicionais de treinamento auditivo, de modo a preparar o

aluno para o ambiente acústico como um todo (SCHAFER, 1991). Em “A nova paisagem

sonora”, o terceiro capítulo do livro, a aula de música agrega outras áreas de estudo como a

Geografia, Sociologia, Comunicação e Assuntos Públicos. Segundo o autor, é essencial que

comecemos a ouvir mais cuidadosa e criticamente a nova paisagem sonora do mundo

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moderno e continua dizendo sobre a importância da limpeza dos ouvidos ao contrário do

entorpecimento de ouvidos (SCHAFER, 1991); Schafer acredita que podemos melhorar a

paisagem sonora esteticamente e este é um assunto que deveria interessar a todos os

professores contemporâneos.

O título do quarto capítulo “Quando as palavras cantam” foi dado a Schafer por

um aluno de seis anos que, quando lhe pedido para definir poesia, respondeu: “Poesia é

quando as palavras cantam”. Esta parte “investiga o meio caminho entre música e palavras,

uma área que tanto os compositores contemporâneos como os poetas “concretistas” estão

nos revelando (SCHAFER, 1991). Este capítulo, com forte influência “pelas experiências

poéticas do concretismo, do dadaísmo e dos Sound Poets, que encaram a palavra como

objeto sonoro” (FONTERRADA, 2004, p. 53), é voltado para a exploração da voz humana

em todas as suas formas possíveis: canto, fala, gritos, onomatopeias, pregões, sussurros,

declamações, etc., “sempre de um modo vivo e enfático, pouco a pouco vencendo uma

inibição após outra para encontrar a personalidade de cada impressão vocal individual”

(SCHAFER, 1991, p. 207).

Segundo Schafer, os pesquisadores observaram que há muito mais modulação

colorida nas vozes dos povos primitivos do que nas nossas; na Idade Média, a leitura em

voz alta, nos fazia “sentir a forma das palavras com a língua”; na Renascença, todos

cantavam da mesma forma com fazem hoje, as culturas primitivas e Schafaer cita uma

analogia entre a máquina de costura e o canto na modernidade feita por McLuhan: “do

mesmo modo como a máquina de costura ... criou a longa linha reta nas roupas ... o linotipo

achatou o estilo vocal humano” (McLuhan apud SCHAFER, 1991, p. 207-208).

Os exercícios apresentados neste capítulo não são aqueles que geralmente

podemos observar no ensino do canto. São exercícios que buscam novas formas de

expressão e utilizam práticas existentes em outras culturas; outros ainda procuram estimular

a imaginação auditiva realizando tarefas do tipo: a) impressão vocal: sente-se em silêncio,

atentamente. Feche os olhos, ouça, num instante você será preenchido por um som

inestimável; b) melisma: o som mais agudo que for capaz; um som rítmico repetido – um

som arrítmico – agora, subitamente um mais leve – gradualmente, module para o mais

engraçado. Outros exercícios estimulam a relação entre gráficos e sons, isto é procurava

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fazer com que os alunos executassem com a voz formas já desenhadas ou que desenhassem

algumas formas para depois executá-las.

Demonstrando uma preocupação com a ecologia sonora, já descrita

anteriormente, Schafer propôs exercícios que ele chamou de “concertos sonoros” onde os

alunos se dirigiam a uma floresta ou para a beira d’água, faziam experimentações com a

voz e em seguida criavam uma composição baseada nos sons da natureza e utilizando como

único recurso a voz. O objetivo era fazer “imitações de forma tão convincente quanto

possível. Todos devem participar e a peça deve ter alguma organização formal”

(SCHAFER, 1991, p. 212). A proposta neste exercício é a de representar, com o corpo e

com a voz, uma paisagem ou fenômeno natural. Schafer propõe um exercício que ilustra

bem o que é um concerto sonoro:

Uma paisagem sonora é um conjunto de sons ouvidos num determinado

lugar. Uma crônica sonora é um conjunto de sons ouvidos em sequência

temporal. Tente contar um conto de fadas bem conhecido, uma história

bíblica ou uma história dos noticiários correntes, sem palavras, apenas por

meio de efeitos sonoros. As outras pessoas podem adivinhar que história

você está contando? (SCHAFER, 1991, p. 214).

Sob a influência da literatura, principalmente do contato com Ezra Pound e com

a poesia contemporânea, o som da palavra, neste capítulo, é tratado como um objeto

sonoro. Schafer analisa, por exemplo, o som da palavra trovão encontrado em Finnegans

Wake, de James Joyce, um som como ele mesmo diz, que deve ser sentido na garganta

quando recitado. Schafer procura similaridades entre o som das palavras e o fenômeno às

quais elas se referem e trabalha bastante com onomatopeias. Segundo Schafer, as línguas

estrangeiras também são música, quando o ouvinte não compreende nada do seu

significado e cita como exemplo o poema Merz, do dadaísta Kurt Schiwitters. Para Schafer

“quando a fala se torna canção, o significado verbal deve morrer” (SCHAFER, 1991, p.

240).

Considerando o canto coral uma forma de expressarmos a palavra em conjunto,

ainda nesse capítulo Schafer trabalha com as texturas corais dizendo que, quando apenas

uma coisa é dita ou cantada, temos o gesto – “um único evento, o solo, o específico, o

perceptível”. Ao passo que, quando muitas coisas são cantadas ou ditas, temos a textura –

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“o agregado, o generalizado, o efeito salpicado, a imprecisa democracia das ações

conflitantes” (SCHAFER, 1991). Para o autor, a textura não é a soma de sons individuais,

mas a diferenças entre esses sons, e classifica algumas categorias de texturas: caos,

combustão, confusões, tumultuosissimamente, constelações, nuvens, placas, contornos. O

que ele considera nessas composições é o contraponto em espécie, isto é “a combinação de

linhas melódicas que se movem em diferentes direções e em tempos diferentes”

(SCHAFER, 1991, p. 255).

O quinto capítulo, que recebeu o título de “Um rinoceronte na sala de aula”, faz

referência à postura do professor nas aulas de música, explora questões em torno do fazer

musical criativo em contraponto aos currículos previamente organizados e que privilegiam

o que ele chamou de “especialização da velocidade digital em um instrumento”; demonstra

preocupação com um ensino de música que se amplia para encontrar as outras artes; propõe

questões como o porquê do ensino da música e o que deve ser ensinado; faz críticas ao

ensino da notação musical como é feito atualmente, através de exercícios “silenciosos”,

considerado por ele um código extremamente complicado e difícil de ser apreendido. O

autor, ao mesmo tempo em que faz críticas a alguns kits educacionais para as aulas de

música, propõe um kit para educação musical destinado à melhoria da audição e por último,

na seção “Partindo para novas direções”, questiona a necessidade de uma nova percepção

auditiva condizente com uma nova época.

Não foi intenção de Schafer ao escrever “O ouvido pensante”, criar um

“método” de ensino de música. O que ele fez foi escrever uma série de ensaios a fim de

fundamentar suas próprias ações. Ações essas que foram desenvolvidas nas experiências

realizadas diretamente com os alunos. Apesar das críticas aos professores mais

conservadores focados no ensino da leitura musical e da aquisição da técnica instrumental -

este posicionamento já se mostra explícito no título do capítulo quando ele considera este

tipo de professor como um “paquiderme lento e refratário às influências dos jovens com

quem convive” (FONTERRADA, 2004, p.55) -, Murray Schafer se mostra otimista com

relação à educação musical quando afirma que, em suas viagens e palestras, pôde encontrar

trabalhos que denotavam novos caminhos e ele mesmo havia aprendido muito com eles.

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Pôde perceber também que a profissão de educador tem revelado maior sintonia para

mudanças quando diz que,

Hoje temos uma considerável iluminação, de modo que algumas cintilações

transpuseram mesmo as instituições educacionais, e há agora algumas escolas de

treinamento, onde estão sendo usados métodos mais novos. Todas as pessoas

mencionadas possuem algo em comum: experimentaram colocar o fazer musical

criativo no centro dos currículos (SCHAFER, 1991, p. 278).

O fato do autor se considerar um professor ocasional, uma vez que nunca teve a

experiência com grupo de crianças com aulas regulares em escolas de educação básica ou

conservatórios – e este fato lhe rendeu diversas críticas – não o impediu de formular ideias

sobre educação musical. Ele diz:

Entrei em sala de aula e trabalhei com jovens porque gosto de fazer isso sempre

que o tempo me permite. À medida que avanço, minha filosofia de educação

musical muda. Tentei evitar que se tornasse um método alternativo capaz de me aborrecer. O que é ensinado provavelmente importa menos que o espírito com

que é comunicado e recebido. Observei grupos que executavam, até bem,

horrendas peças de música, testemunhei o entusiasmo que lá havia, deixei-os sem

pensamentos doentios, apenas preferindo essas experiências às do outro tipo, em

que uma música bonita é destruída, retalhada, por um professor de faces

contraídas, acompanhadas de mau-humor (SCHAFER, 1991, p. 282).

Para Schafer, a educação não se faz através da relação conservadora professor-

aluno onde o professor tem todas as respostas, e os alunos, a cabeça vazia, mas por uma

relação que se estabelece entre aprendizes, isto é,

[...] o professor pode criar uma situação com uma pergunta ou colocar um

problema; depois disso, seu papel de professor termina. Poderá continuar a

participar do ato de descobertas, porém não mais como professor, não mais como

a pessoa que sempre sabe a resposta (SCHAFER, 1991, p. 286).

O importante na educação é que o professor instigue os alunos a desenvolver

um assunto ou um tema que ele propôs ou que foi proposto pelo grupo como consequência

das discussões que acontecem em sala de aula e nesse sentido, a aula passa a ser um

momento de muitas descobertas. Muito dessas descobertas se deve ao tipo de pergunta que

se faz, como ele próprio exemplifica: “1) o silêncio é ilusório: procure encontrá-lo; 2)

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procure um som que passe por você, de sudoeste para nordeste; 3) coloque um som em

profundo ambiente de silêncio, etc.” (SCHAFER, 1991, p 287).

Embora acredite que não deva existir a tradicional relação professor-aluno,

Schafer admite que o professor, como uma pessoa mais velha dentro do grupo é diferente

dos alunos por ser uma pessoa mais experiente, isto é, “um rinoceronte na sala de aula, mas

isso não significa que ele deva ser coberto com uma couraça blindada. O professor precisa

permanecer uma criança (grande), sensível, vulnerável e aberto a mudanças” (SCHAFER,

1998, p. 282). Schafer salienta que a descoberta da música deve preceder o estudo da

técnica instrumental ou da leitura de notas, pois, do seu ponto de vista, o momento ideal

para o estudo do instrumento ou da teoria musical é quando o aluno sente a sua

necessidade.

Ele prossegue se justificando sobre os erros que possa ter cometido afirmando

que, em todo trabalho experimental, há a possibilidade do erro, uma vez que a experiência,

quando bem sucedida, deixa de ser uma experiência. “Se o objetivo da arte é crescer,

precisamos viver perigosamente; essa é a razão porque digo a meus alunos que os seus

erros são mais úteis que os seus sucessos, pois um erro provoca mais pensamentos e

autocrítica” (SCHAFER, 1991, p. 282). Em alguns de seus relatos, nos mostra um pouco do

que ele quer dizer com as expressões “processo de experimentação” e “fazer criativo”. Leva

os alunos a uma sala com instrumentos musicais e no primeiro encontro, propõe aos alunos

que conheçam os instrumentos musicais. Como ele próprio relata: “Descobriram o tempo

de reverberação do vibrafone?” ou “quantas matizes de som podem ser produzidas pelo

“tam-tam”, usando baquetas e vassourinhas diferentes?”. Quando os alunos se encontram

familiarizados com os instrumentos, iniciam-se as sessões de improvisação e composição.

Alguns alunos preferem escrever a peça em notação e isso não será um problema. Aos

poucos o professor vai fixando algumas regras que conduzam os alunos ao objetivo final:

“vocês têm um som. Componham com ele. Tudo o que peço é que vocês não se aborreçam”

(SCHAFER, 1991, p. 287-288).

Esta série de palestras, viagens e encontros com crianças, adolescentes,

universitários e professores, fez com que Schafer levantasse quatro questões, que ele

considerou básicas, e que não poderiam estar ausentes de qualquer discussão a respeito de

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música e educação. São elas: “por que ensinar música? O que deve ser ensinado? Como

deve ser ensinado? Quem deve ensinar?”. Ele não faz questão de respostas prontas e

precisas, ao contrário, aponta para várias possibilidades de interpretação. Cita a dificuldade

em garantir um espaço para as aulas de música no sistema público de educação em muitos

países e mesmo quando há este espaço no currículo, geralmente não se sabe o porquê dela

estar lá. Recorda como a música ocupava um lugar de supremacia no Império Chinês na

qual “acreditava-se que onde a música florescia, tudo ia bem, com a cultura, a moralidade e

o próprio reino” (SCHAFER, 1991, p. 294) ou então responde simplesmente que a “música

existe porque nos eleva, transportando-nos de um estado vegetativo para uma vida

vibrante” (SCHAFER, 1991, p. 294).

Diz ele ainda que a prática musical pode trazer benefícios à criança, como a

coordenação motora dos ritmos do corpo. Ou seja, a música pode estar sincronizada com

diversos ritmos cíclicos tanto da natureza quanto do corpo, mas para isso, esta música deve

ser imaginativa, “uma música na qual mente e corpo se unam em ações de autodisciplina e

descoberta” (SCHAFER, 1991, p. 295). E como deveria ser esta música imaginativa que se

ensina? Em suas palavras, o mais importante é construir um repertório de grande

abrangência seja ele constituído de peças que refletem as nossas experiências musicais

passadas, como a música ocidental do passado, assim como recuperar as tradições

esquecidas – “para que a retaguarda também possa ser um fator de crescimento da arte”

(SCHAFER, 1991, p. 299); a música de outras culturas até como uma forma de “colocar a

nossa em uma perspectiva adequada”; a apreciação da música contemporânea deve ser

também praticada. Mas o principal, nas palavras de Schafer, é que os alunos façam a sua

própria música e ao professor, cabe o papel de, cuidadosamente, perceber quando e como

interferir. Os exercícios de audição não precisam estar relacionados apenas àquelas

composições que encontramos nas salas de concerto.

Um solfejo pode ser trabalhado a partir da quaisquer sons disponíveis no meio

ambiente. O importante é que esses sons não devem ser apenas ouvidos, mas

analisados e julgados. Se, por exemplo, estivermos ouvindo o murmurar de folhas ao vento e passar uma escavadeira, o professor não deve perder a oportunidade de

apontá-la como um exemplo de má orquestração; do mesmo modo que, na música

clássica, se faz uma viola lutar contra os tímpanos (SCHAFER, 1991, p. 299).

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Refletindo sobre as questões levantadas, Schafer coloca que a educação deveria

ser dirigida à experiência e à descoberta. O professor deveria ser mais um observador

consciente do que um condutor dos conteúdos. Em um trabalho criativo, segundo o autor,

não há respostas conhecidas. Ao colocar questões, o professor trabalha os problemas junto

com a classe sem interferir no processo criativo ou nos resultados.

E a última questão, quem deveria ensinar música? Schafer acredita que a

música tradicional deva ser ensinada exclusivamente por profissionais, pois sendo a música

uma disciplina complexa, tanto a teoria quanto a prática instrumental, quem ensina deve ser

qualificado para a função. Da mesma maneira, exemplifica ele, uma pessoa que frequenta

apenas um curso de verão em física, não poderia exercer a função de professor de física em

uma escola e porque com a música poderia ser diferente? Schafer rejeita a ideia de um

professor polivalente para o curso de instrumento embora, ele mesmo afirme que esta possa

ser uma alternativa para as regiões menos populosas do país.

Porém, ao se tratar de educação musical, não se está falando apenas do ensino

instrumental tradicional – que na visão do autor, somente o aluno altamente qualificado e

com aptidões musicais deveria ser estimulado a enfrentar o extenso programa que o curso

exige - e aí, Schafer vê uma nova possibilidade ao se contratar professores, que apesar do

amor pela profissão, não possuíssem as qualificações necessárias referentes ao professor

tradicional. As suas limitações, na visão do autor, poderiam ser úteis na descoberta de

novas técnicas e abordagens. Ele sugere uma alternativa especial: tentar, em pouco tempo

disponível, descobrir tudo a respeito do som – “sua condição física, sua psicologia, a

emoção de produzi-lo na garganta, ou de encontra-lo no ar, fora de nós mesmos”

(SCHAFER, 1991, p. 305). Talvez essa ação não seja um ensino de música como se

conhece, mas pode ser um instrumento que conscientize os alunos a combater “os detritos

de sons acumulados em nosso ambiente. Isto não seria ótimo? Não seria talvez mais

positivo do que mais uma insípida interpretação de Mozart?” (SCHAFER, 1991, p. 305).

Mesmo praticando uma aula de música que privilegiasse o fazer musical, a

experimentação, a improvisação e a composição, Schafer se incomodava com o fato de, na

escola, as disciplinas de artes serem ministradas separadamente. Embora considerasse

importante separar os sentidos como uma maneira de desenvolver “acuidades específicas e

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uma apreciação disciplinada”, uma prolongada separação dos sentidos, para ele, resultaria

em uma fragmentação da experiência e por isso insistia em um currículo onde houvesse

uma forma de arte múltipla, que fosse possível uma síntese das artes. Ele exemplifica essa

questão da seguinte maneira:

Para a criança de cinco anos, arte é vida e vida é arte. A experiência para ela é um

fluido caleidoscópio e sinestésico. Observem crianças brincando e tentem delimitar suas atividades pelas categorias das formas de arte conhecidas.

Impossível. Porém, assim que essas crianças entram na escola, arte torna-se arte e

vida torna-se vida. Aí elas vão descobrir que “música” é algo que acontece

durante uma pequena porção de tempo às quintas-feiras pela manhã enquanto às

sextas-feiras à tarde outra pequena porção chamada “pintura” (SCHAFER, 1991,

290).

Desse modo, Schafer, mesmo admitindo não ter uma filosofia de educação em

particular, sugeriu que poderia ser abolido o estudo das artes nos primeiros anos da escola e

em seu lugar, uma disciplina mais abrangente que ele denominou de “estudos dos meios”

ou “estudo em sensibilidade e expressão” que incluiria todas as artes juntas e por

consequência, nenhuma das artes tradicionais. Em alguns momentos, isolar as artes

individualmente, com o objetivo de desenvolver acuidades sensoriais específicas e quando

fossem “limpadas as lentes da percepção”, retornar a uma “obra de arte total”. Ou seja, ele

propõe uma arte focada em multimeios. Para o autor, aqueles profissionais que estão

envolvidos em qualquer tipo de educação musical devem estar atentos ao “colapso das

especializações” e ao crescimento do interesse nos “empreendimentos interdisciplinares”,

pois para ele, no século XX, as artes têm se mostrado “suscetíveis à fusão e à interação”.

2.4 Música participativa: educação musical inclusiva

2.4.1 Fazer musical: espontaneidade e responsabilidade

Por que o estudo de música em sala de aula, às vezes, nos dá a sensação de ser

cansativo e improdutivo? Por que, à vezes, parece tão difícil preparar com os alunos, uma apresentação musical em datas específicas dentro do calendário

escolar? Por que, à vezes, parece tão fácil e gostoso cantar ou tocar um

instrumento? (Diário de bordo).

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Quando assistimos a uma apresentação de caráter popular e coletivo em que os

participantes39

se expressam com uma grande naturalidade no fazer musical, nos dá a

impressão de que aqueles gestos apresentados, seja ao tocar, cantar ou dançar são fáceis e

por consequência, prazerosos. Neste tipo de manifestação popular mais tradicional,

percebe-se uma alegria de quem a está fazendo e esta alegria contagia o público que se

sente também convidado a participar. Mesmo que alguns participantes realizem execuções

com alto grau de dificuldade, ao mesmo tempo há espaço para que todos possam participar

ativamente. A sensação que se tem é a de uma grande brincadeira, quando na verdade,

trata-se de um fazer artístico muito sério. Por outro lado, há situações fora deste âmbito

mais tradicional em que, mesmo com o grupo estando bem ensaiado, este não consegue

passar a mesma sensação descrita acima. Oswaldo Barroso, após assistir alguns grupos

para-folclóricos de Fortaleza, que se apresentavam em comemoração ao Dia do Folclore,

teve a oportunidade de presenciar uma apresentação do Boi Ideal40

e fez o seguinte

comentário: “Apesar do apuro nos figurinos e adereços dos grupos para-folclóricos, assim

como das coreografias bem ensaiadas, a apresentação do Boi Ideal destacou-se das demais

pela força e vivacidade de sua performance41

” (BARROSO, 2004, p. 68). Esta sensação,

narrada pelo autor, pode se dar tanto em manifestações populares quanto em recitais de

música em salas dos conservatórios, apresentações de ballet e apresentações de alunos do

ensino fundamental. Mas porque isto ocorre? Barroso fez esta pergunta a si mesmo e

respondeu da seguinte maneira:

O que havia naquela apresentação que estava ausente nas outras? À primeira

vista, havia um quê de imprevisto e imprevisível, que fazia daquela uma

apresentação única. Embora o Boi Ideal apresentasse figuras e quadros já

conhecidos do folclore [...] tudo o que ali acontecia era como se fosse pela

primeira vez, tal a verdade que os brincantes passavam. Em contraste, os grupos

39 O termo participantes foi usado por se tratar de músicos geralmente amadores que têm outra profissão. Em alguns casos, músicos que exercem esta atividade uma vez por ano, em festivais de folclore como, por exemplo, o Festival de Olímpia (SP). 40

Proveniente da cidade de Sobral, município do interior cearense, o Boi Ideal é um grupo folclórico de Bumba-meu-boi (uma espécie de auto que agrega música - instrumental, vocal -, dança e teatro. 41 O termo performance, refere-se a atuação de um artista, seja tocando, cantando, dançando, atuando ou se expressando corporalmente. Barroso não criou um conceito. Ele empregou algo que já havia sido dito por vários teóricos da performance como Paul Zhumtor, Richard Schechner e até mesmo por etnomusicólogos como John Blacking.

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para-folclóricos [...] pareciam repetir coreografias ensaiadas [...] (BARROSO,

2004, p. 68).

Traçando um paralelo entre o relato descrito acima pelo autor e o que acontece

com as aulas de música em várias escolas do ensino fundamental, que têm como função

primordial, a de preparar os alunos para as apresentações do calendário escolar, este é um

tipo de atividade que traz grande tensão e desequilíbrio para o grupo envolvido, uma vez

que o professor se sente obrigado a corresponder aos anseios da escola no que diz respeito à

disciplina dos alunos: uma boa performance que os alunos estejam afinados e tocando

“direitinho” e no momento certo. Do ponto de vista dos alunos, o que poderia ser uma

atividade prazerosa, em razão da necessidade de tudo estar devidamente pronto em um

prazo muito curto42

, os ensaios tornam-se estressantes e confusos; os alunos acabam não

tendo tempo de assimilar o que estão fazendo e o trabalho se resume a ensaio de

coreografia e notas musicais escritas na pauta. Será que não é possível estabelecer um fluxo

musical em sala de aula sobre os temas mais variados possíveis e, por consequência, uma

apresentação na escola que não seja algo isolado das aulas de música, mas sim uma

transposição do fazer musical da sala de aula para um espaço mais amplo? Por que não

estimular os alunos a um fazer musical natural, expressivo e criativo?

Várias são as culturas no mundo e o fazer musical de cada povo se mostra de

maneiras diversas, muitas vezes até contrastantes. Em Música Prática, 1977, Roland

Barthes, busca uma classificação através do contraste que há entre “a música que é para

tocar e a música que é para ouvir” 43

(tradução minha) (BARTHES apud Turino, 2005, p.

47). Thomas Turino, pensando nos diversos campos musicais que se definem pelas “metas,

relações de papeis e processo de produção” em sua construção, vê três modos diferentes de

atividade musical: “música participativa” que tem como objetivo a busca de uma

sonoridade máxima através da participação cinestésica de todos os presentes, não havendo

uma distinção clara entre o artista e o público; a “música para apresentação ou de concerto”

que tem como característica a preocupação com a preparação musical e onde é grande a

42

Nas escolas de ensino fundamental, geralmente a carga horária semanal para a disciplina de educação musical é de uma hora/aula – 50 minutos. 43 “music that is for playing” and “music that is for listening”.

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diferenciação entre artista/público que é mediado pelo palco e “música gravada” tanto ao

vivo quanto de estúdio, onde a mediação artista/público se dá através de mídias (TURINO,

2005). Dos modos citados acima, me fixarei na música participativa como uma

possibilidade de se trabalhar aulas coletivas de musicalização para alunos do ensino infantil

e fundamental levando em conta a singularidade de cada um e procurando ampliar a escuta

e a prática musical.

Segundo Turino, é objetivo fundamental da “música participativa”, convidar o

maior número de participantes e o sucesso da apresentação, é determinado por quanto

maior for esse número. É um processo orientado para atender as necessidades dos

participantes, objetivos e desejos no momento de da atividade artística. Diz o autor:

[...] eu uso o termo “participativo” no sentido mais específico e restrito da

contribuição ativa para o som e movimento de um grupo de participantes durante

todo o evento através da dança ou expressão corporal, cantando e realizando

vocalizes, batendo palmas ou tocando um instrumento. A “música participativa” é

definida e moldada estilisticamente com objetivo fundamental de convidar o

maior número de participantes possível, e o sucesso de um evento é julgado pela

quantidade de participação grupo. Em contextos onde há elevados níveis de participação, há pouca ou nenhuma distinção entre os músicos e a plateia – há

apenas participantes e participantes em potencial. No entanto, eventos

participativos podem, e devem, permitir tipos diferentes de papéis (ex.,

instrumentalistas, dançarinos) e níveis de especialização. A “música

participativa” visa o fluxo musical. A música é formatada para atender às

necessidades, objetivos e desejos dos participantes no momento, bem como

facilitar a sua participação44 (tradução minha) (TURINO, 2005p. 48).

Cria-se uma dinâmica dentro do grupo que leva a uma organização que não seja

imposta, mas necessária para que a performance tenha êxito e entende-se por êxito quando

o fluxo musical é mantido.

44 I use the term participation in the specific, more restricted sense of actively contributing to the sound and motion of a group performance event through dancing and gestures, singing and other types of vocalizing, clapping or playing an instrument. Participatory music is defined and shaped stylistically by the fundamental goal of inviting the fullest participation possible, and the success of an occasion is judged primarily by the amount of participation realized. In heightened participatory contexts, there is little or no distinction between performers and audience – there are only participants and potential participants. Nonetheless, participatory events may, and should, allow for different types of roles (e. g., instrumentalists, dancers) and levels of specialization. Participatory music tends to be process-oriented. Musical sound is shaped to fit participant needs, goals, and desires in the moment as well as to facilitate participation.

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Um dos objetivos do ensino de música nas escolas, mais do que visar a

formação de músicos, objetivo difícil de ser alcançado pela escola comum, poderia ser o de

propiciar ao aluno o contato com uma variedade de gêneros musicais que geralmente não é

encontrado com facilidade na programação das rádios e TVs. Uma ação pedagógica, neste

sentido, poderia ajudar os alunos a ampliar suas vivências musicais através da valorização

de diferentes práticas artísticas adotadas pelas mais variadas culturas. “A identificação de

cada gênero musical, cada família de instrumentos musicais, sua origem étnica e regional

favorece o processo ensino-aprendizagem” (ARTAXO, 2008, p. 45). Através do estudo de

ritmos, melodias e organização sonora dos povos, é possível perceber que a música se

transforma conforme o momento da história de cada povo. Segundo Maura Penna, “cada

grupo social seleciona, num determinado momento histórico, aqueles que são o seu material

musical, estabelecendo o modo de articular e organizar esses sons” (PENNA, 2010, p. 22).

Travar contato com os variados “tipos de música” permite que nos familiarizemos com eles

para que passem a fazer parte de nossa vivência. Esta vivência musical, que também é

social, possibilita um olhar mais abrangente para a diversidade cultural encontrada tanto no

Brasil quanto no mundo; vivenciar uma música é poder compreendê-la. “[...] justamente

porque o fazer parte de nossa vivência permite que nós nos familiarizemos com os seus

princípios de organização sonora, o que torna uma música significativa para nós” (PENNA,

2010, p. 23).

O trabalho com musicalização infantil na escola é um poderoso instrumento que

desenvolve, além da sensibilidade à música, fatores como: concentração, memória,

coordenação motora, socialização, percepção auditiva e senso de organização. Segundo

Snyders, ao se referir às atividades de escutar e fazer música em conjunto:

[...] trata-se de coletivos que, ao mesmo tempo, perseguem um objetivo musical e

o projeto de se constituir como um grupo solidário [...] estruturas e regras se

criam pouco a pouco e estabelecem, assim sua validade; em resumo, há uma

diversidade que tende à unidade, na qual cada parte acha apoio nas outras e se

fortalece com as outras (SNYDERS, 1994, p. 88).

É um instrumento que pode levar o aluno a uma reflexão do mundo em que

vive e do mundo que quer para si. Segundo Mário de Andrade “A Arte embora não seja útil

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praticamente falando, é necessária porque é inerente ao homem e porque é conhecimento”

(ANDRADE, 1995, p. 28) e ele prossegue dizendo que a arte “não tem uma necessidade

imediata”, mas possui “uma necessidade mediata que se revela quando consideramos esse

conhecimento virtual que ela nos dá duma realidade psicológica ou física da vida”

(ANDRADE, 1995, p. 29-30). Através de uma vivência musical prazerosa é possível fazer

da escola um ambiente agradável. Segundo Snyders, “a alegria escolar a ser vivida no

momento presente é a alegria da cultura, a alegria da cultura mais elaborada, a cultura das

obras-primas (entende-se por obra prima uma arte legítima, seja ela erudita, popular ou

folclórica)” (SNYDERS, 1994, p.16). É importante a participação ativa de cada um dentro

do processo de aprendizagem, mesmo que neste processo, o professor se depare com alunos

em diferentes níveis de desenvolvimento cognitivo, psicomotor e sócio afetivo, pois todos

têm a possibilidade de se desenvolver musicalmente.

Deste modo, introduzir atividades musicais a partir das experiências com

música participativa, pode ser uma excelente ferramenta para implementar dinâmicas

desenvolvidas em sala de aula, mantendo o interesse e a curiosidade do aluno para além do

contato com outras culturas. Segundo Thomas Turino em Nationalists, Cosmopolitans, and

Popular Music in Zimbabwe,

A minimização das distinções músico/plateia em eventos participativos não

sugere que não haja diferentes papéis e graus de especialização dentro do grupo.

Na verdade, as tradições participativas mais bem sucedidas são precisamente aquelas que permitem diferentes níveis de especialização e que se adequam a

interesses distintos (ex., canto, desempenho instrumental, dança) 45

(tradução

minha) (TURINO, 2005, p. 52).

Mas como agrupar essas diferenças dentro da sala de aula? Cada aluno traz para

a aula de música as mais diversas experiências, adquiridas através de contatos familiares,

encontros religiosos, meios de comunicação, frequência com que vai a apresentações

musicais e, desta forma, as expectativas e o desenvolvimento musical de cada um deles não

são homogêneos. Há aqueles alunos que já trazem consigo uma familiaridade com certos

45 The downplaying of performer/audience distinctions in participatory events does not imply that there are not different roles and degrees of specialization within the group. In fact, the most successful participatory traditions are precisely those that allow for different levels of specialization and that suit distinct interests (e. g. singing, instrumental performance, dancing).

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instrumentos musicais, ou com o canto, e que não se interessam por linhas melódicas e

sequências rítmicas que não exijam maiores habilidades técnicas para serem executadas.

Por outro lado, um repertório que exija uma experiência musical prévia para ser executado

não atende às necessidades de alunos que não tiveram a oportunidade de um contato prévio

com a linguagem musical, com instrumentos ou com o canto. De que forma então, atender

os anseios de uma turma de alunos heterogênea?

Assim como acontece na música do Zimbabwe, dentro de uma sala de aula,

encontramos um grupo de alunos bastante heterogêneo, e estas diferenças poderiam ser

levadas em conta ao se propor uma determinada atividade. Dever-se-ia levar em

consideração a idade dos participantes, a habilidade em executar os diversos instrumentos

que o professor tem em mãos (flauta doce, instrumentos de banda rítmica, vibrafones, voz,

etc.) e o interesse dos alunos pelo tipo de música que é apresentado. Deveria ser uma

preocupação do professor, criar um ambiente agradável e com atividades variadas como

canto, execução de instrumentos e dança, e dentro dessa variedade de expressões artísticas,

procurar estabelecer diferentes níveis de participação e desta forma garantir o bem estar de

todos os alunos com relação às expectativas que estes demonstrem frente às atividades a

serem desenvolvidas nas aulas. Sobre este assunto, Luís Ricardo Queiroz diz que,

[...] é preciso, também, ter consciência de que, no contexto das escolas, a

brincadeira e o prazer que podem envolver uma atividade dessa natureza são

requisitos, muitas vezes, fundamentais para que o professor obtenha sucesso na sua proposta educativa (QUEIROZ, 2009, p.65).

Mas por que o estudo de música em sala de aula, às vezes, nos dá a sensação de

ser cansativo e improdutivo? Talvez por insistir em cometer o equívoco de padronizar um

conjunto de habilidades, o que é difícil devido às diferenças individuais que os alunos

apresentam. É necessário reconhecer essas diferenças. Ao preparar-se para uma

apresentação de sua classe, o professor pode cair no erro da escolha de uma peça muito

difícil para a maioria dos alunos ou uma peça que seja muito fácil para outros, criando

assim uma sensação de frustração ou de desinteresse. Segundo a cultura da música Shona, a

realização de uma peça com vários níveis de especialidade faz com que a população seja

capaz de cantar, dançar e bater palmas; atividades tão valorizadas como a realização de

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padrões complexos. As pessoas menos especializadas podem fazer a pulsação básica com

palmas ou dançar passos simples, ou ainda fazer os vocais junto com os outros. Os mais

habilidosos (especialistas46

) têm a responsabilidade de realizarem solos bem elaborados que

inspirarão os demais nos acompanhamentos e variações. Se um bom instrumentista de

mbira deu o seu melhor, mas os outros não aderiram, o concerto foi um fracasso. A música

é a soma total de todos os participantes. A responsabilidade do especialista (músico com

mais habilidade) é cumprir um papel musical a tal ponto que inspira os outros a

participarem. Permite uma compreensão clara da estética como parte de um amplo sistema

de ética participativa (TURINO, 2005).

Segundo Turino,

Tradições participativas bem desenvolvidas oferecem níveis categorizados de

especialização que podem manter as pessoas comprometidas à medida que vão

desenvolvendo progressivamente as suas habilidades ao longo do tempo. Tocar a

mbira47 ou lamelofone exige um alto nível de conhecimento especializado,

experiência e habilidade, assim como vários estilos rítmicos. O canto e dança de

níveis mais avançados também são funções mais especializadas. Já, tocar hosho

(cabaça ou chocalhos de lata), que acompanha a maioria das músicas indígenas Shona, requer um nível médio de especialização, assim como alguns cantos e

danças também de nível intermediário [...] Do lado menos especializado, as

pessoas podem simplesmente bater palmas no estilo básico ou fazer alguns

movimentos de dança e canto juntamente com outros48 (tradução minha)

(TURINO, 1005, p. 52-53).

46 Para Turino, o “profissional” é aquele músico que exerce uma atividade remunerada, independente de sua habilidade ser ou não especializada (professional to refer strictly to in come generating activity, whether or not specialized skill is required). Já, o “especialista”, se refere às habilidades e conhecimentos especializados, quer o dinheiro esteja ou não envolvido. (specialist to refer to special skills and knowledge, whether or not money is involved). 47 Mbira do Zimbabwe é um instrumento de percussão tradicional do povo Shona. É constituído de 22 a 28 chaves de metal montadas em um tampo de madeira e, normalmente, colocado dentro de um grande ressonador (cabaça). Podem receber outros nomes como: kalimba e lamelofone. Disponível em: http://www.mbira.org/index.htm. Acesso em 18 out. 2013. 48

Well-developed participatory traditions offer graded levels of specialization that can keep people engaged as the progressively develop more skills over time. mbira and other lamellophone performance requires a good deal of specialized knowledge, experience, and skill, as do various drumming styles. Advanced singing and dancing are also specialized roles. The playing of hosho (gourd or tin-can rattles), which accompany most indigenous Shona music occupies a middle-ground of specialization, as do average singing and dancing skills […] At the least specialized end, people may simply clap the basic pulse or do simple dance movements and vocal parts along with others.

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Um dos aspectos a se considerar, quando se trata de criar um ambiente seguro

em sala de aula, é a questão do bem estar, da confortabilidade que o aluno sente ao tocar

uma música. Lançar mão de células rítmicas que dialogam com outras células em uma

superposição de linhas rítmicas pode ser uma maneira de criar um ambiente musical

espontâneo; podem ser de fácil assimilação pelos alunos e sem a necessidade do uso da

leitura musical. Segundo Beinecke,

As músicas ouvidas no cotidiano pelas crianças, muitas vezes, apresentam

complexidades rítmicas e melódicas que seriam consideradas muito difíceis para

os alunos, pelo fato de que eles não seriam capazes de ler partituras

convencionais destas músicas. Entretanto, o repertório não precisa estar limitado

àquilo que os alunos podem ler. Quando eles conhecem a música, a leitura de

partitura não é necessária, sendo possível explorar outros elementos presentes nas

músicas (BEINEKE, 2003, p. 89).

Tocar de ouvido pode ser uma atividade muito mais próxima da realidade do

aluno do que o estudo de uma partitura musical e, portanto, incentivar os alunos a tocarem

de ouvido pode ajudar no sentido de criar uma naturalidade e uma fluência musical

maiores. Mac Pherson, ao comentar sobre a importância em tocar de ouvido, diz que:

As atividades auditivas e criativas, como tocar música de ouvido e improvisar, devem ser encorajadas desde os estágios iniciais do desenvolvimento musical e

talvez os professores subestimem o valor dessas habilidades no desenvolvimento

total de um músico (McPERSON apud BEINEKE, 2003, p. 89).

O aluno é capaz de se inserir na linguagem musical através da oralidade e

talvez, futuros conhecimentos teóricos, farão muito mais sentido do que se estudados antes

do fazer musical (BEINEKE, 2003).

Desta forma, o professor, ao escolher um repertório a ser desenvolvido em sala

de aula, poderia escolher padrões rítmicos bem definidos e que se repetem, criar as

variações rítmicas, melódicas e timbrísticas necessárias para atender a todos os

participantes e também procurar utilizar o corpo tanto no tocar quanto no dançar. Esta

preocupação com o corpo é muito importante, pois através da prática constante de variadas

competências técnicas dá-se, nas palavras de Connerton, a formação do hábito. Segundo o

autor, este conceito significa que:

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[...] se adquiriu um sentido incorporado de como fazê-lo. Significa dominar uma

série de competências, possuir um conhecimento habitual, uma recordação no

corpo [...] Portanto, seguindo este raciocínio, chega-se à constatação de que um

comportamento “autêntico” ou “natural” [...] é um comportamento performático

habitual, isto é, construído como um hábito (CONNERTON apud BARROSO,

2004, p. 70).

E prossegue dizendo que a incorporação de um hábito se dá através “de uma

atividade praticada continuamente, de competências técnicas cujo exercício diminui a

atenção consciente com que realizamos nossos atos” (CONNERTON apud BARROSO,

2004, p. 71). A partir da formação do hábito, pode ser possível tocar um instrumento ou

executar um passo de dança de uma forma quase automática e, por mais complexo que seja

o movimento ou o ritmo executado, acaba incorporado na memória corporal do aluno, se

tornando para ele, uma manobra de fácil execução. Barroso complementa dizendo que:

Nos hábitos executamos uma complexidade de movimentos musculares de uma

forma quase automática, com um mínimo de energia física e mental, de maneira quase involuntária, numa sequência de atos que seguem fluentemente

(BARROSO, 2004, p. 71).

2.4.2. Professor ou um ator brincante?

Brincante não é um título. Brincante está mais ligado a um pensamento, a uma

maneira de ver o mundo e se colocar diante das coisas. (Rosane Almeida –

Instituto Brincante – SP)

Outro aspecto importante a salientar nesta relação ensino-aprendizagem -

quando nos aprofundamos no estudo de como outras culturas menos conhecidas49

por nós

transmitem, de geração a geração, a sua produção musical - é o papel desempenhado pelo

professor que, assim como acontece na cultura popular com os mestres, tem a função de ser

o grande motivador das atividades desenvolvidas em grupo. No caso dos mestres ou do ator

brincante, estes exercem a liderança dentro das manifestações artísticas, e do professor, a

liderança é exercida em sala de aula. Proponho neste capítulo, uma investigação de quais

seriam estas qualificações e habilidades necessárias para a formação de um “professor

49

Como, por exemplo, as culturas indígenas. Segundo Rafael Bastos, “com a fértil floração de trabalhos realizados para os jovens etnomusicólogos [...] as músicas das sociedades indígenas podem vir logo a deixar de estar entre as mais desconhecidas do planeta” (BASTOS, 2004, p. 06).

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brincante” e a partir de uma experiência vivenciada dentro de culturas populares, que o

professor possa coordenar as atividades propostas em sala de aula sob uma perspectiva do

ator brincante. Segundo Barroso,

Mais do que apresentar ou do que representar, o termo brincar parece melhor

adequado para designar o fazer do ator brincante […] e aqui se usa o termo

brincar como uma brincadeira infantil coletiva, na qual os brincantes, a partir de

um acordo sobre uma estrutura, vivem uma outra vida, uma vida de faz-de-conta,

improvisando livremente (BARROSO, 2004, p. 84-85).

Ao adotar uma postura semelhante à do mestre popular, o professor torna-se um

elemento de inspiração dentro da performance artística e é capaz de manter o controle sem,

contudo, ser autoritário.

São os mestres que detêm a memória do conjunto da sua brincadeira. Funciona

como um diretor teatral, mas como encenador em cena. A saúde do brinquedo

depende da saúde do mestre. A integração do grupo depende de sua iniciativa, de sua capacidade de aglutinação assim como o ritmo da brincadeira (BARROSO,

2004, p. 86).

O aprendizado musical através da imitação e do contato é mais comum no

aprendizado tradicional, mas, além disso, o professor deve ter a preocupação de concentrar

diversas habilidades necessárias à interpretação das atividades e deve estar atento para a

criação de uma atmosfera lúdica dentro da sala de aula, através da incorporação de um

personagem ou de uma lenda que leve os alunos para um mundo de fantasia, fora da

realidade cotidiana. Anne Almeida, ao se referir aos aspectos cognitivos envolvidos na

preparação de uma performance musical diz,

Uma aula com características lúdicas não precisa ter jogos ou brinquedos. O que

traz ludicidade para a sala de aula é muito mais uma "atitude" lúdica do educador

e dos educandos. Assumir essa postura implica sensibilidade, envolvimento, uma

mudança interna, e não apenas externa, implica não somente uma mudança

cognitiva, mas, principalmente, uma mudança afetiva. A ludicidade exige uma

predisposição interna, o que não se adquire apenas com a aquisição de conceitos,

de conhecimentos, embora estes sejam muito importantes. Uma fundamentação

teórica consistente dá o suporte necessário ao professor para o entendimento dos porquês de seu trabalho. Trata-se de ir um pouco mais longe ou, talvez melhor

dizendo, um pouco mais fundo. Trata-se de formar novas atitudes (ALMEIDA,

2008, p. 1).

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2.4.3. Passeando por outras culturas

A pesquisa com sonoridades provenientes dos mais variados tipos de materiais,

a curiosidade por instrumentos de diversas culturas e a diversidade timbrística, possibilitam

também uma vivência de variadas estruturas musicais. Berenice de Almeida, em seu livro

“Outras terras outros sons”, sugere como prática instrumental:

Proporcione uma exploração sonora a algum jardim, praça ou parque próximo,

onde tenha muito verde, para eles ouvirem os sons dos pássaros, pegar pedrinhas

[...] tente reproduzir o som de um grupo indígena, com instrumentos feitos com

materiais provenientes da natureza (ALMEIDA, 2002, p. 66).

Pensando que o ser humano sempre utilizou materiais próximos a ele para

construir seus instrumentos e realizar sua música, e sendo esta música uma representação

da sua maneira própria de enxergar o mundo, é possível dizer que o timbre - além das

escalas, células rítmicas e sequências harmônicas - é sem dúvida também responsável pela

característica dessa música que representa a sua visão de mundo, sua cultura. Para a

musicologia Kamayurá, ihu é quando “duas coisas quaisquer entram em contato através de

movimento” (BASTOS, 1999, p. 129) provocando uma corrente sonora. Portanto a noção

de ihu, para os índios Kamayurá, corresponde ao que nós chamamos de som e o seu

conhecimento acústico se baseia na pesquisa das características deste fenômeno ihu (som);

também na “investigação dos instrumentos que geram o dito fenômeno” (BASTOS, 1999,

p. 130).

Após o reconhecimento do ihu, esta corrente sonora, de acordo com critérios

acústicos, se divide em uma “corrente sonora qualquer” ou em “linguagem” e que

corresponde a dois tipos básicos de mensagens: “mensagens humanas” (ñe’eng) e “não

humanas” (2ihu). “Observe-se que enquanto ñe’eng, “linguagem”, é discurso que veicula

pensamento, coisa só de gente, 2ihu vai se colocar como a expressão dos seres, animados

ou não” (BASTOS, 1999, p. 133). Uma corrente sonora qualquer pode ser “a voz de

qualquer animal, todo amassar de folhas, qualquer soprar de vento, etc.” (BASTOS, 1999,

p. 133) e é formada, segundo Bastos, por três dimensões, a saber: tamanho (altura), que

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corresponde a grave/agudo como sendo grande/pequeno; força (intensidade), que

corresponde ao fraco e forte como conhecemos; origem (timbre), este constituído de três

subdimensões, sendo estas o processo de geração sonora (bater, chocalhar, emitir voz,

amassar, partir, roçar e arrastar), consistência (dura/mole) e densidade (concentrada/difusa)

(BASTOS, 1999, p. 134).

Desta forma, uma matriz sonora produzida na cultura Kamayurá, por exemplo,

pode ser assim descrita: “3ñe’eng: “corrente sonora qualquer”, “pequena” ou “grande”;

“fraca” ou “forte”; originada por “emitir voz”; “dura” ou “mole”; “concentrada” ou

“difusa” (BASTOS, 1999, p. 135)50

.

Através da etnomusicologia, pode ser possível entrar em contato com culturas

que adotam ou não o sistema tonal ocidental como forma de produção musical, e além de

interpretar uma parte de sua produção cultural, é possível também conhecer e aplicar a

relação ensino-aprendizagem que se estabelece dentro dessas culturas; a forma como

passam adiante a sua produção artística. Patricia Campbell, etnomusicóloga e educadora

musical, usa o termo pedagogia world music ou o estudo das culturas musicais do mundo,

para denominar esta aproximação entre as áreas de etnomusicologia e educação musical.

Para ela, é objeto da pedagogia world music ir além das questões “o quê” “porquê” e

questionar o “como”. Propõe uma série de atividades e comportamentos que envolvem

processos de aprendizagem em diversas culturas. Diz ela,

A pedagogia world music se interessa por como a música é ensinada/transmitida e

recebida/aprendida dentro dessas culturas, e a melhor forma como esses

processos, que incluem aspectos significativos das culturas, podem ser

preservados ou pelo menos parcialmente conservados em salas de aula e salas de

ensaios. Os que trabalham para o desenvolvimento dessa pedagogia estudam o

comportamento musical dessas culturas, e chegaram à conclusão de que a música

pode ser melhor compreendida através da experiência com o modo pelo qual é

ensinada e aprendida51 (tradução minha)(CAMPBELL, 2004, p. 26).

50

Em “Ecos da Floresta” (atividade com alunos do Ensino Fundamental do colégio Educap de Campinas), passamos por esta experiência de composições sonoras a partir da constituição do som na cultura Kamaiyrá e seguimos adiante, trabalhando o gesto dos animais. Falarei mais sobre o assunto no capítulo V. 51

World music pedagogy concerns itself with how music is taught/transmitted and received/learned within these cultures, and how best the processes that are included in significant always within these cultures can be preserved or at least partially retained in classrooms and rehearsal halls. Those working to evolve this pedagogy have studied music with cultures-bearers, and have come to know that music can best be understood through experience with the manner in which it is taught and learned

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De acordo com Campbell, aqueles educadores que aplicam essa pedagogia e se

identificam com ela, não buscam apenas reproduzir a música de outra cultura, mas ter a

consciência de que existem outras formas de aprender e ensinar música, como: outros tipos

de notação, técnicas de aprendizado oral, improvisação e outras formas de aprendizado

encontradas dentro de tradições particulares (CAMPBELL, 2004).

A partir da ideia de “experiências multiculturais”, já que concebemos a música

como uma produção cultural, é possível buscar formas criativas capazes de envolver os

alunos em práticas musicais que sejam mais significativas para eles. Como, por exemplo,

aprender uma música ou um pequeno trecho musical totalmente “de ouvido”. Segundo

Campbell, pode ser uma boa dinâmica para a sala de aula, buscar as estratégias que são

necessárias para este tipo de aprendizado, e após esta experiência, discutir as situações em

que é melhor aprender música através da notação ou por oralidade e, quais os “prós” e os

“contras” em realizar uma ou outra atividade (CAMPBELL, 2004).

Ao trafegar pelas áreas da educação musical e da etnomusicologia, pode-se,

junto aos alunos, proporcionar uma compreensão de outras formas de concepção e mesmo

de relação significativa com as músicas geradas por outras culturas, além de ser capaz de

reconhecer, nas diferentes práticas artísticas, diferentes valores culturais e sociais. Além

disso, o professor pode traçar um paralelo entre os diferentes processos pedagógicos que

ocorrem dentro de sociedades diversas, tendo em mente que, para uma pedagogia musical

que se orienta por uma diversidade de hábitos e costumes, é importante manter uma postura

que seja aberta para as múltiplas manifestações musicais que ocorrem no mundo; perceber

a utilidade e o significado cultural da música seja ela instrumental ou vocal e, com isso,

contribuir no sentido de promover uma expansão global do repertório de musical praticado

em sala de aula (CAMPBELL, 2004). Ao interpretar, seja cantando, dançando ou tocando

um instrumento, uma música apresentada por uma sociedade atual, mas que mantém uma

tradição antiga ou diferente da nossa, pode dar-nos a sensação de uma cultura distante no

tempo e no espaço, mas ao contrário disto, ela está ao nosso lado e vivendo no mesmo

tempo.

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3 RELATO DE EXPERIÊNCIA – AÇÃO PEDAGÓGICA A PARTIR DE UMA

PROPOSTA PARTICIPATIVA

Este capítulo refere-se a um relato de uma experiência realizada com alunos do

Ensino Fundamental I na disciplina de Educação Musical, onde é apresentada uma nova

abordagem de aprendizagem significativa que objetiva convidar os alunos a buscarem, de

forma lúdica, experiências e informações musicais, que os levem a adquirir novos

conhecimentos e habilidades artísticas, enquanto participam de um projeto de cunho

fortemente interdisciplinar.

A proposta foi a de uma atividade artística que envolveu um projeto de

composição musical utilizando o papel como matéria prima para a confecção dos

instrumentos musicais utilizados na peça. Esta peça recebeu o nome de “Ecos da floresta:

suíte em quatro movimentos para orquestra de papel”.

Participaram deste projeto, 18 alunos do Ensino Fundamental I, cuja faixa etária

na época da realização de tal atividade era entre 06 e 11 anos no período de agosto a

novembro de 2011. Esta atividade contou ao todo com 20 aulas, sendo duas aulas semanais

de 50 minutos cada. Os estudantes que participaram do projeto eram de uma escola

particular situada na cidade de Campinas, em São Paulo, alunos de 1º a 5º ano do Colégio

Educap.

A turma era heterogênea, formada por alunos do Período Integral52

e por serem

de anos diferentes, era necessário um discurso mais abrangente e que não fosse uma

linguagem muito difícil para os menores ou muito infantil para os maiores. O recurso

utilizado foi o uso do datashow, visitas a sites na internet e pesquisas com gravação (coleta

de amostras sonoras). Mais adiante, foi utilizado o Power Point para montagem de um

audio visual com o discurso desenvolvido no projeto. O relato de seu desenvolvimento será

detalhado a seguir.

52 Período Integral era o nome dado para os alunos que ficavam o dia todo na escola. Em um dos períodos, cursavam o ensino básico e no outro período, ficavam na escola e tinham aulas de música, defesa pessoal, natação e reforço escolar. Como já frequentavam aulas de música no ensino básico, o conteúdo de música do Período Integral era dedicado ao desenvolvimento de projetos de música específicos.

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3.1 Exercícios preliminares

A música contemporânea, atonal ou minimalista, exige uma escuta

diferenciada daquela exigida por uma peça tonal, tanto em termos de sonoridade, quanto

em sua forma e, por isso mesmo, antes de eu tentar elaborar, com os meus alunos, um tipo

de música que não se ouve comumente em rádios, televisão e até mesmo em salas de

concerto, foi necessário que fizéssemos uma preparação com a turma no sentido de buscar

referências musicais que fornecesse algum suporte para entender, e até mesmo “acostumar

o ouvido”, com essa nova sonoridade. Não tínhamos muito tempo, uma vez que os nossos

encontros eram semanais e com duração de apenas cinquenta minutos por encontro e, além

disso, dispúnhamos de vinte encontros para que o projeto se realizasse. Portanto, o que

considerei como exercícios preliminares, na verdade foram acontecendo ao mesmo tempo

em que lidávamos com os exercícios de improvisação proposto por Koellreutter, já

apontando para uma realização final.

O material utilizado para realizarmos os exercícios preliminares foi totalmente

apresentado para os alunos através de visitas em sites previamente escolhidos por mim.

Optei por esta alternativa, pois, ao apresentar peças contemporâneas ou de outras culturas –

este é um assunto que geralmente pode causar uma reação de estranheza na turma-, queria

passar uma impressão positiva para os alunos; algo que estimulasse a sua criatividade e

deste modo, entretidos com a interatividade que os sites apresentavam, o efeito de

estranheza, causado pela música “diferente” se dissiparia, e os alunos, ao jogar com a tela

do computador, iriam aos poucos se acostumando com as sonoridades. Na época, não

dispúnhamos de aparelhos multimídia em sala de aula e por esse motivo, precisamos nos

deslocar para a sala de vídeo do colégio. É uma sala escura, equipada com data show, telão

e um bom equipamento para reprodução de áudio. Esse deslocamento, da sala de aula para

a sala de vídeo, causou um estado de animosidade no grupo e o ambiente se tornou propício

para as experiências virtuais – o escuro, as cores, as sonoridades – tudo contribuiu para

aguçar a curiosidade da turma. A linguagem virtual é algo que eles têm tido muito contato

e percebo, como professor, que quando utilizo material didático em multimídia, a

aproximação deles com o assunto é muito maior. Como estávamos falando sobre uma

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música “pouco escutada”, o uso da interatividade com a tela do computador pôde garantir

uma empatia dos alunos com sonoridades pouco exploradas. O resultado dos exercícios

preliminares foi acima do esperado, isto é, os alunos participaram ativamente dos exercícios

e aos poucos, o que era um som ou uma música estranha, passou a fazer parte do nosso

cotidiano.

3.1.1. Inventando instrumentos musicais artesanais (matemática e medidas) 53

Trata-se de um site com propostas de atividades musicais. Dentre as várias

atividades que o site oferece, visitamos primeiramente a atividade denominada “Viagem de

campo virtual”. Nesta página Phil Tulga aborda três assuntos:

a) Tambores rítmicos astecas: apresenta uma breve descrição dos instrumentos e a

representação gráfica de sua música trançando um paralelo com a notação musical

tradicional; propõe recriações rítmicas e vocalizes com sílabas da língua asteca;

apresenta vários exemplos em áudio e escrita (asteca e tradicional) de padrões

rítmicos para serem executados em sala de aula.

b) Tambores nas escolas de Gana: mostra uma das maneiras como os estudantes

ganenses “praticam” seus estudos culturais na escola; a página é interativa –

clicando sobre a pele do tambor na foto de uma criança ganense, é possível tocar o

instrumento; traz ainda exemplos em áudio com padrões rítmicos e sua transcrição

em notação musical tradicional.

c) Tambores do Congo: contém uma explicação detalhada de que maneira se tocar o

tambor; um tambor virtual para ser tocado no computador; curiosidades sobre a

língua do Congo e propostas de atividades em grupo.

A segunda página a ser visitada foi “projetos de instrumentos caseiros”. Este

site, além de apresentar as medidas necessárias para a construção de instrumentos

musicais artesanais valendo-se da série harmônica, mostra, através de “gifs

animadas”, os harmônicos vibrando em uma corda, em um tubo de extremidade

53 TULGA, Phil: music through the curriculum. Disponível em: <http://www.philtulga.com/HomemadeMusic.html>. Acesso em: 05 jun. 2011

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aberta e outro de extremidade fechada. É possível ainda, participar de atividades que

envolvem experiências sonoras interativas, isto é, os alunos, através do mouse do

computador, podem tocar instrumentos virtuais, como didgeritubes, carrilhão, flauta

pan, tubos melódicos e xilofones com garrafas. Cada instrumento virtual está em

uma página do site contendo informações referentes a medidas, material e uma

receita “passo a passo” para que o aluno tenha condições de construir o seu próprio

instrumento.

Figura 1 – carrilhão Figura 2 - medidas dos tubos

Figura 3 - tessitura do carrilhão Figura 4 - xilofone de garrafas –

e escala pentatônica alturas e medidas

Fonte: http://www.philtulga.com/HomemadeMusic.html.

.

O site traz, ainda, um “jogo de composição” composto de padrões rítmicos para

até seis instrumentos de percussão. Ao clicar nos cubos, o aluno monta o seu próprio

padrão ligando ou desligando as linhas e utilizando as cores azul (som grave), vermelha

(agudo) e amarela (pausa). Em compasso quaternário, os cubos, em forma de diagrama,

representam cada tempo do compasso e estão combinados quatro a quatro, formando cada

grupo um compasso de quatro tempos.

Figura 5 - Unifix cube drum machine – jogo

interativo de composição musical.

Fonte: http://www.philtulga.com/HomemadeMusic.html.

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Eles não imaginavam que era possível tocar instrumentos pela tela do

computador – ver, ao tocar o xilofone de garrafas, a água vibrando dentro da garrafa foi

uma experiência muito agradável, assim como as ondas sonoras vibrando dentro do tubo-.

Ao mesmo tempo em que experimentávamos sonoridades diferentes, também tocávamos

tambores com as crianças de Gana, brincávamos com palavras em outras línguas e

montávamos padrões rítmicos com “levadas” do rock e do pop. Nos encontros seguintes,

teríamos contato com outras sonoridades e outros tipos de instrumentos e por consequência,

outras músicas. Percebi, já nesse primeiro encontro, que os alunos estavam interessados no

que mais poderia acontecer. Criamos um ambiente de música participativa, onde todos

tocaram, viram, ouviram e discutiram o que haviam experimentado.

Com esta interatividade, foi possível, através de uma prática musical lúdica,

introduzir os alunos ao tema “confecção de instrumentos”. Utilizando as “gifs animadas” de

instrumentos musicais, foi possível estimular os alunos para que, posteriormente, pudessem

adentrar no universo da luteria, assim como prepará-los para outros tipos de música que não

estavam acostumados.

No encontro seguinte, ouvimos o instrumental Baschet. A sala estava

completamente escura, não víamos nada, apenas ouvíamos. Vários alunos associaram

aqueles sons à trilha sonora de filmes de terror, mas não se intimidaram, ao contrário,

quando mostrei a eles, no telão, os instrumentos responsáveis pelos sons que ouviram,

todos quiseram tocar um pouco. Digo tocar, porque o site, além de apresentar os

instrumentos, sobre a sua figura, é possível, com o mouse do computador, tocá-los também.

3.1.2 Instrumental Baschet54

Instrumental Baschet é o nome dado a um conjunto de estruturas sonoras

desenvolvidas principalmente para a educação musical infantil. O Instrumental Baschet foi

concebido no final da década de 1970 pelos irmãos Baschet, dois artistas franceses. Entre as

54 VALENTINE, Vicent. L’instrumentarium Baschet: sons, couleurs, formes, movement et musicothérapie. Disponível em: <http://www.er.uqam.ca/nobel/baschet/index.html>. Acesso em: 16 jun. 2011.

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suas preocupações estão: a pesquisa estética na área sonora; a consciência da função social

da arte, incluindo a participação do público e; a aplicação desses conceitos em diferentes

áreas tais como artes plásticas, música, educação, ação social e terapia. Semelhante à ideia

de Carl Orff, que nos anos 30, redimensionou instrumentos que inicialmente se destinavam

a adultos para o uso das crianças, a pedagogia Baschet tem o foco na expressão espontânea,

na criatividade da criança com abertura às diferentes culturas musicais e em uma arte

interdisciplinar.

As estruturas sonoras foram desenvolvidas com base em critérios relacionados à

facilidade de execução – através da estrutura anatômica dos instrumentos projetados com o

objetivo de permitir uma posição confortável para o executante, assim como a possibilidade

de produzir sons significativos desde o primeiro contato – e à variedade de timbres. A

concepção de sonoridade produzida por esses instrumentos parte de um princípio acústico

simples que permite a propagação no ar dos sons internos dos metais, produzindo um

timbre diferenciado e que funcionam como verdadeiros sintetizadores acústicos. São barras

e placas de metal acopladas a grandes cones com a função de ressonadores; outros objetos

como molas e cordas de piano podem ser utilizados. Um dos objetivos, ao manusear este

tipo de instrumento, é produzir sonoridades com ressonâncias modernas, comuns na música

contemporânea e que não foram exploradas na fabricação de instrumentos convencionais.

As estruturas Baschet apresentam um leque muito rico de sons, muitas vezes

surpreendentes, algumas vezes divertidos, que vão do mais curto ao mais longo, do mais

fino ao mais espesso, do mais pesado ao mais leve, do mais claro ao mais escuro, do mais

liso ao mais rugoso, do mais forte ao mais fraco, do mais agudo ao mais grave.

Figura 6 - Instrumental Baschet:

conjunto dos instrumentos

Fonte: http://www.er.uqam.ca/nobel/baschet/index.html.

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As estruturas Baschet estão ligadas a uma estética musical de vanguarda

erudita, em que cada um dos parâmetros do som (altura, duração, intensidade e timbre) é

tratado de forma igualitária. A função principal dessas estruturas, além da sua relação

interdisciplinar, abordada acima, não é a produção de notas e melodias, mas sons e timbres

contrastantes.

Figura 7 - La grille: instrumento de percussão Figura 8 - L’arc: instrumento de corda

Fonte: http://www.er.uqam.ca/nobel/baschet/index.html.

3.1.3 Barth Hopkins55

Possui título universitário em folclore e mitologia com especialização em

etnomusicologia pela Universidade de Havard e educação musical pela Universidade do

Estado de São Francisco. No final da década de 70 e início dos anos 80 exerceu a função de

professor de música para o ensino médio em escolas públicas e privadas lecionando as

disciplinas de canto coral e prática instrumental. Lecionou em Kingston, Jamaica onde,

além de lecionar, pesquisou e escreveu sobre o renascimento da música sacra jamaicana e

realizou pesquisas de campo sobre a música infantil jamaicana.

De 1985 a 1999, foi editor da revista trimestral “Instrumentos Musicais

Experimentais” servindo como um recurso essencial em um campo pouco explorado, mas

que vinha se tornando vivo e crescente. Desde 1994 vem escrevendo livros sobre

instrumentos musicais e sua construção, além de Cds que mostram o trabalho inovador na

construção de instrumentos em várias partes do mundo como sinos de vento, aerofones e

marimbas. Ele também construiu vários instrumentos musicais experimentais. Entre eles, os

55 HOPKIN, Bart: musician and instrument designer. Disponível em: <http://windworld.com/bart/>. Acesso em: 23 jun. 2011.

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tubos corrugados ramificados, cítaras harmônicas como a Harpa Trillium e muitos outros

instrumentos difíceis até mesmo de serem categorizados.

Figura 9 - Harpa Trillium56

Figura 10 - Corrugahorn ramificado57

Figura 11 - Roda de Savart58

Figura 12 - Zing Floresta59

Fonte: http://windworld.com/bart/.

Desde 1974 atua como compositor, arranjador e intérprete em diversos estilos

musicais. Além de tocar e construir instrumentos, o seu interesse está voltado

principalmente para os instrumentos incomuns de várias partes do mundo.

Neste site, na página “instrumentos inventados”, consta uma relação com todos

os instrumentos que ele confeccionou: de corda, sopro e percussão, além de várias

56 Harpa Trillium é um instrumento de corda, unidas três a três, colocadas em posição vertical e divididas em dois segmentos: o inferior e o superior. Toca-se no segmento inferior (cordas baixas); o segmento superior é utilizado para que o músico, através da pressão dos dedos, crie efeitos de vibrato. Este instrumento permite que se toque melodias convencionais. 57 Corrugahorn ramificado é um instrumento de sopro confeccionado com tubos corrugados. Um único bocal chega até uma câmara de ar com vários tubos corrugados. O músico sopra o bocal fechando as extremidades dos tubos com os dedos. Ao abrir o tubo, este soa. Tocando forte ou fraco, é possível conseguir sons com alturas diferentes. Com três ou quatro tubos pode-se conseguir uma escala completa. 58

Roda de Savart consiste em trinta discos de madeira de diferentes diâmetros presos a um eixo movido a motor. À medida que o eixo gira, o músico toca com uma palheta especial raspando a borda do disco. A palheta está presa a um tipo de copo de isopor responsável em projetar o som para o ambiente. Ouvir amostra de áudio em anexo. No clipe de áudio, a Roda de Savart é acompanhada por uma banda de rock. 59 Zing Floresta é feito de hastes de bronze retorcidas (representam as Zing árvores) estão colocadas em câmaras de ressonância. Ao bater nas árvores Zing com uma baqueta leve de metal, o som produzido é uma mistura de frequências inarmônicas muito altas. Tampando ou não os orifícios das câmaras de ressonância, muda-se a frequência. Ouvir amostra de áudio em anexo.

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esculturas sonoras60

. O site não é interativo no sentido de poder tocar os instrumentos

virtuais, mas possui imagens e exemplos de áudios de todos os instrumentos. A

peculiaridade do site fica a cargo dos instrumentos “diferentes” dos tradicionais e as

esculturas sonoras, estas pouco conhecidas pelos alunos. Mais tarde, no site de Fernando

Sardo, veríamos praças e jardins sonoros.

3.1.4 Grupo Uakti61

(som do vento)

Este exercício preliminar, diferentemente dos outros, teve início com a

apreciação musical da obra “Águas da Amazônia”, um Cd com composições de Philip

Glass e execução do grupo Uakti para um balé interpretado pelo grupo Corpo. Tratava-se

de uma música modal e de caráter minimalista62

. Durante a primeira audição da peça, os

alunos se mostraram impacientes e relataram não terem gostado do que acabaram de ouvir.

Em seguida, distribuí pequenos instrumentos de percussão - dos mais variados tipos e

oriundos de várias culturas -, além de xilofones, metalofones, tubos de papelão e garrafas

de vidro vazias. Após explorarem livremente a sonoridade de cada instrumento, voltamos a

ouvir o Cd, mas agora, tocando junto com o grupo Uakti. Percebi que foi estabelecida uma

relação entre os alunos e a música que ouvíamos. A partir daí, a aceitação da classe pela

obra foi imediata, os alunos pediram para ouvir e tocar mais vezes nos encontros seguintes.

O grupo surgiu em 1978 com o propósito de dar som e vida aos instrumentos

que Marco Antônio Guimarães, diretor musical do grupo, começou a construir quando

60 Esculturas ou plásticas sonoras, nas palavras de Marco Scarassatti é a transformação do instrumento para a escultura num “conjunto de significações impulsionadas pela hibridização de forma-cor-som” (SCARASSATTI, 2008, p. 78) ou ainda “objetos plásticos de interatividade sonora em que o executante é quem primeiro encerra a sua significação para, depois, torná-la novamente, aberta para outro executante, que não precisa necessariamente de um sólido conhecimento musical para interagir com a obra” (SCARASSATTI, 2008, p. 84 – 85). 61 UAKTI. Disponível em: <www.uakti.com.br>. Acesso em: 25 jul. 2011. 62

“Palavra aplicada desde o início dos anos 70 a várias práticas de composição utilizadas desde o início dos anos 60 (quando eram geralmente conhecidas como “música sistemática”), cujas características – harmonia estática, ritmos e repetição padronizados – buscam reduzir radicalmente a gama de elementos compositivos. (...) Entre os principais compositores de música minimalista incluem-se Steve Reich e Philip Glass. (...) As origens do minimalismo podem remontar até a música de Satie, as primeiras obras de Cage, e também à música de Bali, da África negra e da Índia”. (SADIE, 1994, p. 607).

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estudava na Universidade Federal da Bahia – UFBA. Foi aluno de Walter Smetack,

violoncelista e compositor, nascido em Zurique, na Suíça, em 1913 e que também aprendeu

luteria tradicional durante todo o seu estudo musical (SCARASSATTI, 2008). Smetack

chegou ao Brasil em 1937, contratado pela Orquestra da rádio Farroupilha, em Porto

Alegre. Em 1957, foi convidado pelo maestro e compositor Hans Joachim Koellreutter e

por Ernest Widmer para lecionar composição e violoncelo nos Seminários de Música na

Universidade Federal da Bahia, espaço responsável por reunir e introduzir a música

contemporânea no Pós-Guerra (SCARASSATTI, 2008).

Segundo Helza Cameu, estudiosa da música indígena brasileira, o nome

Uakti deriva de uma lenda indígena dos índios Tukano do Alto Rio Negro. Diz a lenda,

referente ao herói Uakti, que ele violava e pervertia as mulheres e por isso, foi capturado.

Era um monstro de formas humanas tendo o corpo aberto em buracos. O vento, ao

atravessar-lhe o corpo produzia sons soturnos e lúgubres. Uakti foi morto e sepultado e no

lugar onde o enterraram, nasceram três palmeiras altas, que passaram a guardar o grande

espírito de Uakti. Desde então os instrumentos de Uakti são feitos do caule dessa madeira e

o timbre dos instrumentos corresponde aos sons tirados pelo vento (CAMEU, 1977).

Em 1980, o grupo Uakti realizou sua primeira apresentação pública no Museu

de arte da Pampulha, Belo Horizonte – MG. Em trinta e três anos de atividade, o grupo

Uakti vem desenvolvendo um trabalho inédito e inovador na área da música instrumental,

com amplo reconhecimento nacional e internacional. O grupo possui diversos Cds gravados

e trabalhou com artistas consagrados, entre eles Philip Glass, além de composições de

trilhas sonoras para balé e filmes de longa-metragem. O grupo confecciona os seus próprios

instrumentos a partir de materiais do cotidiano: tubos de PVC, metais, pedras, borrachas,

cabaças e água. Para o Uakti, tudo se transforma em som. Segundo Marco Antônio

Guimarães, “O som tem textura. Tem densidade e volume. O som tem forma, imagem e

cor. O som mágico do Uakti. Um som que atinge todos os sentimentos” (GIMARÃES63

).

A classificação básica dos instrumentos confeccionados pelo grupo foi derivado

do sistema publicado em 1914 por Erich von Hornbostel e Curt Sacs. Nesse sistema, os

63 GUIMARÃES, Marco Antônio. Disponível em: < http://www.uakti.com.br> acesso em: 25 jul. 2012.

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instrumentos são categorizados de acordo com a forma pela qual o som é produzido ew se

classificam como:

a) aerofônicos: instrumentos nos quais o som é produzido pela vibração do ar;

exemplos:

Figura 13 - Pan inclinado64

Figura 14 - Flautas Uakti65

b) eletromecânicos: possuem corda e são tocados mecanicamente ou por corrente

elétrica;

Figura 15 - Torre66

Figura 16 - Violões giratórios67

Fonte: http://www.uakti.com.br.

c) idiofônicos: instrumentos feitos de materiais naturalmente sonoros, sendo o seu som

produzido de diferentes formas;

64 Pan inclinado é um instrumento de percussão semelhante a flauta grega de pan, em escala muito maior e utilizando PVC como matéria prima. Para sua performance são utilizadas baquetas de espuma de alta densidade. 65 Flautas Uakti baseiam-se em algumas flautas de Smetack, que eram flautas duplas e triplas. A sua riqueza timbrística decorre da grande variedade de harmônicos, das apogiaturas e a obtenção de diferentes texturas. 66

Torre é um instrumento tocado por dois instrumentistas, o primeiro gira o arco de pua movendo o instrumento em torno do seu próprio eixo. O segundo, com um arco especial de crina, promove a fricção de suas cordas. 67

Violões giratórios consiste em uma corda de nylon fixada no eixo do motor de um toca disco. Ao acionar o motor elétrico, a corda gira e tocará tangencialmente de um a quatro violões. Eles estão posicionados de forma invertida e suas cordas em contato com a corda de nylon.

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Figura 17 - marimba de vidro68

Figura 18 - tambor d’água69

d) membrafônicos: instrumentos nos quais o som é produzido pela vibração de uma

membrana;

Figura 19 - Trilobita70

Figura 20 - tambores acoplados71

e) cordofônicos: instrumentos nos quais o som é produzido pela vibração de cordas.

Figura 21 - Chori-Smetano72

Figura 22 - Planetário73

Fonte: http://www.uakti.com.br.

68 Marimba de vidro é um instrumento de característica mais tradicional, com a extraordinária qualidade sonora do vidro, sua riqueza em harmônicos e prolongada ressonância proporciona um grande potencial expressivo. Este instrumento é o que caracteriza o som do grupo Uakti. 69 Tambor d’água é um instrumento original dos índios da Guatemala, constituído pela percussão de uma meia-cabaça sobre uma superfície de água. Possui três frequências bem definidas: grave, médio e agudo. 70

Trilobita é um instrumento temperado baseado em tambores, formado por 10 tubos de PVC de tamanhos variados que se encaixam em orifícios no tampo de uma mesa. Às extremidades superiores de cada tubo é esticada uma pele de cabra normalmente tocada com os dedos ou com baquetas. 71 Tambores acoplados é o nome dado para três tambores de tamanhos diferentes em uma mesma estrutura de madeira. O tambor maior foi feito com parte de uma cabaça com a abertura maior recoberta com pele de animal. Os dois tambores menores, feitos em PVC e uma das extremidades também recobertas com pele de animal.

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3.1.5 Philip Glass

Um dos fundadores do minimalismo, ao lado de Steve Reich, mantem um

interesse por padrões rítmicos recorrentes. Criou obras baseadas na repetição de motivos

simples, que muitos achavam hipnotizantes. Suas obras minimalistas no período de 1965 a

1968 são “experimentais e exploratórias”. Tornou-se conhecido devido a sua vasta

produção artística, o gosto por trabalhar com artistas de diferentes mídias – entre eles o

grupo brasileiro Uakti – e o âmbito cada vez mais emocional e lírico de sua música. Utiliza

como matéria prima para suas composições o que ele mesmo denomina de “coisas

corriqueiras” como sequências e cadências em contraposição às rigorosas técnicas seriais

de Stockhaunsen, tão usadas na época. Conheceu o músico indiano Ravi Shankar e também

o percussionista Alla Rakha o que fez com que ele reforçasse o seu estilo hipnótico e

repetitivo. Suas obras têm se destinado em sua grande maioria ao teatro. Compôs várias

óperas, entre elas: Satyagraha (1980) e Aknaten (1984). Um dos mais populares

compositores eruditos dos EUA, Philip Glass tem se apresentado como intérprete em

música de jazz e rock.

3.1.6 Fernando Sardo74

Fernando Sardo é compositor, multi-instrumentista, luthier, artista plástico e

arte-educador. Realiza pesquisas na área de música e constrói instrumentos musicais de

sopro, cordas e percussão de diversas culturas e épocas desde 1981. Natural de São Paulo,

teve contato com as músicas da cultura japonesa, árabe, africana, europeia, latino-

americana e indígena-brasileira. Desse contato, surgiu a grande variedade de instrumentos

que construiu e estudou promovendo uma integração entre música e artes plásticas, uma das

72

O Chori-Smetano é constituído de uma cabaça onde foram feitos três orifícios para a saída do som. Nela foi fixado um cabo de machado e em sua extremidade, duas cravelhas de contrabaixo elétrico. Para tocar, utiliza-se o arco. 73

A principal característica do Planetário é a pureza de seu som no registro grave bem como sua ressonância de longa duração. É normalmente tocado com os dedos polegares e indicadores por meio de pinçamento. As cordas são de látex. 74 SARDO, Fernando. Uma viagem pelo mundo da música. Disponível em: <http://www.fernandosardo.com.br/portugues/esculturassonoras> Acesso em 28 jul. 2011.

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características mais marcantes de seu trabalho. Além da criação e invenção de instrumentos

musicais, produz esculturas sonoras, instalações sonoras, obras sonoras para espaços

públicos e parques sonoros. Segundo o próprio construtor, Esculturas sonoras são “obras

plásticas musicais construídas artesanalmente que proporcionam ao público a apreciação

visual, aliada a interação artística e lúdica, por meio de fontes sonoras timbrísticas e

melódicas” (SARDO75

) e sobre espaços públicos, o autor define como,

[...] locais abertos onde foram instalados esculturas sonoras, instrumentos

musicais de grandes proporções, parques sonoros e instalações sonoras

proporcionando interatividade e oferecendo convívio com a música e as artes

visuais, naturalmente sugerindo lazer e recreação. Estão localizados em espaços

públicos e privados como parques públicos, escolas e instituições. Por meio deles

são notados ganhos expressivos na educação musical, estímulo à criatividade e

aprendizado nas áreas de luteria, ciências, artes e ecologia (SARDO)76

.

Como luthier, trabalha com diversas matérias primas orgânicas, tais como,

cabaça, bambu, madeira e com as matérias primas sintéticas, entre elas metais, plástico,

vidro, borracha, papel e sucatas.

Construiu mais de 160 diferentes instrumentos musicais e estruturas sonoras

que foram usadas em composições em apresentações musicais, trilhas sonoras para

espetáculos de dança, teatro, cinema e televisão. Entre as instalações constam o “Parque

Lúdico Musical”, “Vagão Sonoro Ambiental”, “Esculturas Sonoras Científicas”, “Sons

Recicláveis”, entre outros. Procura, através de suas produções, difundir o espírito

investigativo, criativo, crítico e reflexivo.

Foi professor de luteria no curso de graduação em música da Universidade

Federal de São Carlos. Nos seus cursos, seu foco é estimular a criatividade na construção

de instrumentos musicais com o uso de matérias primas alternativas, tornar essa prática

mais acessível e incentivar a educação ambiental relacionando arte e ecologia, além de

incentivar a criação e a composição musical, pois, segundo ele próprio, nesta prática se

descobre uma grande variedade de sonoridades e de possibilidades musicais. Em seus

75 Ibidem. 76 Ibidem.

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trabalhos, procura estimular a prática musical e o desenvolvimento da criatividade de forma

lúdica, relacionando arte, etnias e ecologia.

Figura 23 - instalações sonoras Figura 24 - Vagão sonoro ambiental

Fonte: http://www.fernandosardo.com.br/portugues/esculturassonoras.

3.2 Procedimento metodológico

Com base na fundamentação baseada em Koellreutter e Schafer, foi elaborada

com os alunos do Período Integral do colégio Educap, durante um período de dois meses e

meio, com duas aulas semanais de cinquenta minutos, totalizando vinte aulas, uma

dinâmica que culminou na composição de uma peça instrumental intitulada “Ecos da

Floresta – Suíte em quatro movimentos para Orquestra de Papel”, que envolveu o manuseio

de instrumentos musicais confeccionados integralmente a partir do papel como material

físico e criou-se a paisagem sonora de uma floresta tropical.

A ideia deste projeto, o de compor uma peça instrumental utilizando

instrumentos confeccionados a partir do papel, se deu por conta de uma discussão com os

alunos, cuja motivação foi a comemoração do Dia Mundial da Água, ocorrida no dia vinte e

dois de março. Naquela ocasião, discutimos bastante sobre o uso consciente da água

evitando o seu desperdício. Chegamos à conclusão de que, economizar água, não se

restringe apenas a “fechar torneiras” ou tomar banhos mais curtos - embora essas iniciativas

sejam muito importantes -, mas também a reciclagem do papel é um fator que ajuda na

diminuição do consumo, uma vez que a indústria consume muito menos água ao produzir o

papel a partir do papel do que se fosse realizar todo o processo de fabricação desde o início.

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Naquele momento, achamos interessante compormos uma peça utilizando o papel como

uma maneira de trazer a discussão para a sociedade.

Ao longo da peça, a paisagem sonora evoluiu de modo a retratar a floresta em

sua formação, deterioração (pela ação irresponsável do ser-humano) e reconstituição (pela

conscientização ambientalista). O material utilizado no projeto foi, em parte, fornecido pela

escola, os alunos trouxeram papeis de casa e eu contribuí com os tubos de papelão.

Através do projeto “Ecos da Floresta”, procurei fazer com que cada aluno

adquirisse conhecimentos e práticas de improvisação musical, através do desenvolvimento

da percepção musical, desenvolvimento de habilidades técnicas no manuseio dos

instrumentos confeccionados dentro de uma ação interdisciplinar que pudesse promover o

desenvolvimento individual e um senso de responsabilidade social dos alunos. Esta

atividade primou pelo método da descoberta espontânea e por se tratar de uma experiência

baseada num modelo aberto de criação musical, o que tendeu a instigar os alunos a

elaborarem um planejamento (envolvendo a escolha das atividades e de materiais) e a

delimitação de um contexto que fizesse sentido para os alunos participantes. Procurei

inseri-los em conteúdos que mantivessem alguma ligação com as suas vivências. Houve

uma preocupação constante, de minha parte, de que, o que fosse transmitido correspondesse

às suas expectativas. Mais do que um conteúdo, era importante não se perder de vista o

contexto do que estávamos fazendo.

A intenção neste projeto foi de sempre acolher as preocupações dos alunos;

preocupar-se em ajudar nas suas experiências vividas, manter sempre uma relação do

assunto abordado com perguntas que eles faziam a si mesmos (SNYDERS, 1994). Minha

preocupação foi em transmitir o contemporâneo, isto é, um assunto atual e que fizesse parte

de seus cotidianos, “e não uma cultura que cai sobre eles sem os atingir, sem mesmo que

eles sintam alegria em atingi-la” (SNYDERS, 1994, p. 191). É possível entender este

planejamento como uma espécie de roteiro que serviu de apoio para as aulas. Estas

deveriam envolver as etapas desenvolvidas, mas sem se tornarem um modelo fechado. Este

planejamento existiu, mas não foi rígido. Ao contrário, manteve-se flexível e adaptável,

respeitando às demandas do grupo, e servindo às imposições do momento (CZEKO apud

FERNANDES, 1997). Entende-se como imposições do momento que deveríamos seguir

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alguns caminhos dentro de uma certa ordem, para que não nos perdêssemos, como por

exemplo, ao experimentar sonoridades com o papel, não haviam regras, mas a atividade se

restringia somente a isso. Quando a atividade era de agrupar os tipos de papel por timbres

para montarmos as famílias da orquestra, não mais fazíamos experiências com o papel,

apenas a separação por grupos e assim por diante em todas as etapas.

A atividade abrangeu o contato com diferentes estilos e maneiras de se produzir

música, graças às visitas em sites na internet, pesquisa de materiais, escolha e discussão

sobre quais tipos de sonoridades seriam procuradas e desenvolvidas, mas também incluiu

discussões a respeito de sustentabilidade e a composição musical em si. Concomitante com

a prática apontada acima, procurei colocar para os alunos ouvirem diversos exemplos

musicais que fossem diferentes do que eles estavam acostumados, num exercício de

apreciação musical.

O Projeto “Ecos da Floresta” foi basicamente dividido em três etapas. Como

primeira etapa do projeto, foram distribuídos diferentes tipos de papéis pela sala de aula. A

partir daí, os alunos iniciaram uma experiência tátil e auditiva, ao manusearem os diferentes

papéis apresentados. Os alunos ordenaram e organizaram estes papéis, de acordo com seus

sons característicos. Foram utilizados papéis de diferentes qualidades e características, tais

como: o papel-seda, as folhas de jornal, o papel-alumínio, o celofane, o papel-manteiga, a

lixa, o cartão, as caixas e tubos de papelão, de vários tamanhos e espessuras. Com este

material em mãos, foram realizadas diversas experiências acústicas, tais como as

relacionadas à propagação e à ressonância do som no interior de tubos (também utilizados

como moduladores de voz), explorando as relações entre sons graves e agudos, e da relação

entre o comprimento desses tubos e suas respectivas sonoridades. Concomitante ao

manuseio do papel iniciou-se uma discussão sobre economia sustentável e do modo como o

ser-humano pode interferir no meio ambiente. Nas palavras de Duarte Júnior, “O animal

reage às mudanças do meio; o homem age, mudando o meio” (DUARTE JÚNIOR, 1988,

p.25).

Na segunda etapa, foi possível desenvolver técnicas para a produção de sons

distintos, através de diferentes gestos, tais como: amarrotar, amassar, esfregar, bater, rasgar,

estourar (sacos de papel), tamborilar e soprar (como membrana, produzindo um som mais

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definido tonalmente). Foram coletadas amostras sonoras através de registros em áudio e

depois, ao ouvi-las, os alunos escolheram aquelas que fariam parte da Orquestra de Papel.

Através do contato com esses objetos sonoros, foi possível torná-los verdadeiros

instrumentos musicais, dispondo-os segundo suas relações de timbre e intensidade, e,

consequentemente, pudemos promover a transformação dessa prosódia sonora numa forma

rudimentar de linguagem, uma vez que papéis tornaram-se instrumentos musicais, e os

alunos passaram a se expressar através desses novos meios acústicos.

A terceira etapa iniciou-se com a composição da suíte e a divisão dos

instrumentos em grupos correspondendo a naipes orquestrais, com funções específicas, para

que cada aluno-músico escolhesse seu instrumento no desenvolvimento da peça. Definida

a sequência da peça, iniciaram-se os ensaios. A paisagem sonora foi sendo construída na

medida em que uma história ia sendo elaborada coletivamente pelos alunos, tomada como

base estrutural a narrativa para a peça. Nesta terceira etapa, os alunos, a partir do material

coletado na primeira etapa, participaram, sob a minha orientação, da montagem em power

point de uma seção audiovisual que serviu de prólogo à apresentação da peça – como uma

espécie de “introdução multimídia” à execução da peça. A duração foi de aproximadamente

16 minutos e mais o prólogo, com cinco minutos e trinta segundos aproximadamente.

Reuniu elementos da música concreta, da tonal, bem como da música eletrônica, através do

uso do PD (conforme será descrito na seção 3.5. e 3.6).

Faço a seguir um relato dos encontros de forma resumida e em forma de tópicos

que serão, mais tarde, apresentados com mais detalhes.

1º encontro: diálogo com os alunos sobre o momento atual em que vivemos:

discussão sobre economia sustentável e de como o homem pode interferir no meio

ambiente; visita a um site de confecção de instrumentos artesanais no qual se encontravam

atividades interativas com instrumentos virtuais77

; proposta de pesquisa sobre o assunto

para o próximo encontro.

2º encontro: experiências musicais tendo como referência o site exposto na aula

anterior; mostra e discussão sobre o material pesquisado pelos alunos; distribuição de

77 3.2. Exercícios Preliminares - item 3.2.1

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vários tipos de papéis pela sala de aula; experiência tátil e auditiva dos alunos ao

manusearem os diferentes tipos de papéis apresentados.

3º e 4º encontros: experiência tátil e auditiva dos alunos ao manusearem os

diferentes tipos de papéis apresentados; apreciação musical de peças contemporâneas não

tonais (Instrumental Baschet78

).

5º encontro: experiência tátil e auditiva dos alunos com tubos e caixas de

papelão; percepção de diferentes alturas com tubos e caixas de tamanhos variados;

percepção das diferenças de texturas entre as características do som proveniente dos papéis

e dos tubos e caixas de papelão; contato com instrumentos artesanais muito diferentes dos

instrumentos tradicionais através da visita ao site de Barth Hopkins79

.

6º encontro: retomada do diálogo ocorrido no primeiro encontro – economia

sustentável e como o homem pode intervir no ambiente onde vive; busca de uma ligação

entre o tema proposto e a experiência com papel; apreciação musical: peças minimalistas

com o grupo Uakti e Philip Glass80

; audição de algumas faixas do Cd Águas da Amazônia,

1999; busca de similaridades entre o Cd e os tubos de papelão.

7º encontro: experiências com tubos organizados por acordes; apreciação

musical: peças minimalistas com o grupo Uakti e Philip Glass81

; audição de algumas faixas

do Cd Águas da Amazônia, 1999; busca de similaridades entre o Cd e os tubos de papelão.

8º encontro: retorno ao papel; sistematização das várias possibilidades de tocar

o papel: amassar, raspar, soprar, rasgar, etc.; escuta e visualização de conjuntos

instrumentais; percepção de diferentes naipes, texturas e densidades; coleta de amostras

sonoras dos sons obtidos a partir do manuseio do papel.

9º encontro: coleta de amostras sonoras dos sons obtidos a partir do manuseio

do papel; discussão sobre densidade e timbre a partir da escuta da gravação; apresentação

de várias possibilidades para formação de conjuntos musicais.

78 3.2. Exercícios Preliminares – item 3.2.2 79

3.2. Exercícios Preliminares – item 3.2.3 80 3.2 Exercícios Preliminares – item 3.2.4 e item 3.2.5 81 3.2 Exercícios Preliminares – item 3.2.4 e item 3.2.5

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10º encontro: como expressarmos a nossa opinião sobre sustentabilidade através

da composição de uma peça musical utilizando apenas o papel como instrumento musical;

início da construção da suíte “Ecos da Floresta”; apreciação musical: Fernando Sardo82

.

11º encontro: criação da paisagem sonora de uma floresta intacta, sem a

presença do homem; música amétrica (desprovida de pulso ou ritmo) – 1º movimento.

12º encontro: continuação da atividade do encontro anterior; gravação e análise

dos sons obtidos no 1º movimento; posicionamento dos alunos num palco (simulado na sala

de aula).

13º encontro: criação de uma paisagem sonora que representasse a presença do

ser humano convivendo em harmonia com o meio ambiente; células rítmicas, pulsação e

acordes produzidos com os tubos de papelão - 2º movimento.

14º encontro: continuação da atividade do encontro anterior; gravação e análise

dos sons obtidos no 2º movimento; posicionamento dos alunos num palco (simulado na sala

de aula).

15º encontro: criação de uma paisagem sonora representando o

desenvolvimento que destrói (revoada); pesquisa de sons mais ásperos e mais fortes

acompanhada de uma procura por movimentos mais duros; gravação dos sons produzidos;

os sons produzidos pelo ser humano abafam o som da natureza - 3º movimento.

16º encontro: retomada do 2º movimento acrescido dos sons das máquinas;

equilíbrio sonoro entre os sons opostos: natureza e máquina – 4º movimento; início da

produção de uma apresentação em Power Point como prólogo para a suíte “Orquestra de

Papel”.

17º encontro: ensaio do 4º movimento; continuação da montagem da

apresentação em Power Point como prólogo para a suíte “Orquestra de Papel”.

18º encontro: finalização da apresentação em Power Point.

19º encontro: ensaio geral; participação dos alunos como instrumentistas de

uma orquestra; montagem do palco; escolha dos instrumentos e distribuição dos mesmos

pela sala de aula; como guardar os instrumentos para o transporte.

82 Exercícios Preliminares – item 3.2.6

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20º encontro: ensaio geral; montagem do palco; execução da peça; arrumação

da sala de aula com os alunos guardando os instrumentos.

3.3 Modelos de improvisação: uma abordagem teórica

A partir de agora, irei aprofundar um pouco mais alguns princípios

educacionais e musicais que estiveram apoiando o projeto descrito. Porém, antes do relato

da experiência com improvisação realizada com os alunos, no que diz respeito à elaboração

da peça “Ecos da Floresta”, se faz necessário discorrer sobre o que venha a ser um modelo

de improvisação sugerido por Koellreutter e apresentar alguns exercícios que serviram

como preparação para o projeto e iniciação a uma estética musical contemporânea, estética

a qual a peça desenvolvida está vinculada.

Descrição teórica baseada em técnica de Koellreutter.

Uma nova imagem do mundo, resultante das descobertas da ciência moderna em nosso século, requer sérias transformações dos conceitos da estética tradicional da

música, ou seja, o repertório dos signos sonoros, sintaxe, codificação, estrutura,

forma e estilo (BRITO, 2001, p. 91).

Esses conceitos são tão básicos para a análise e a descrição da produção artística

em nosso tempo que sua modificação impõe a transformação de todo o

referencial da teoria musical, modificação que atinge também o ensino da música

(Id. Idbi.).

A partir da segunda metade do século XX, surgem movimentos sociais,

culturais, políticos e filosóficos que contribuíram para uma mudança de visão em relação ao

pensamento racionalista e suas doutrinas, principalmente o positivismo e o mecanicismo, e

que durante séculos, orientaram a nossa cultura e estética, principalmente a musical. Esses

novos movimentos e entre eles, o sistêmico, ajudou a criar um novo paradigma na forma de

observação e entendimento do mundo ao não negar a realidade científica, mas agregar

outros parâmetros necessários ao desenvolvimento humano, tais como a subjetividade das

artes e as diversas tradições espirituais. Segundo Koellreutter,

Esses movimentos, forçosamente, levam à emergência de uma nova visão da

realidade, exigindo uma mudança fundamental de nossos pensamentos,

percepções e valores, em geral, e na música, em particular [...] O mito dos valores

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absolutos desde já desapareceu. A cada artista cabe decidir, a partir de hoje, que

caminho escolher (KOELLREUTTER apud BRITO, 2001, p. 91-92).

Levando-se em conta o ritmo com que vêm ainda ocorrendo essas

transformações na sociedade e refletindo diretamente sobre uma possível nova forma de se

fazer música, os modelos de improvisação podem ser uma ótima ferramenta para a

educação musical, uma vez que, de uma maneira espontânea, os alunos se organizam para

construir uma composição que envolve não só os elementos musicais estruturais, como

também a imagem e o movimento corporal. Os modelos de improvisação, propostos por

Koellreutter, são capazes de inserir o aluno em um ambiente musical diferente do que é

apresentado mesmo hoje em dia nas escolas. “Como “detonadores de questionamentos”, os

modelos de improvisação estimulam o grupo a refletir e construir seu conhecimento em

música” (KATER apud BRITO, 2001, p. 92). São também capazes de estimular, no aluno,

em minha opinião, a necessidade de uma visão crítica do momento que se quer improvisar,

ou seja, do que se quer representar com o improviso (sua significação). Além disso,

permitem contextualizar o resultado sonoro dentro de uma práxis que requer uma reflexão,

e não somente o aspecto técnico quantitativo. Improvisar é uma forma de adquirir um

conhecimento pré-significativo como bem definiu Koellreutter. Indo de encontro a este

pensamento, Carlos Kater diz o seguinte sobre os modelos de improvisação:

Os modelos de improvisação estimulam o grupo a refletir e construir seu

conhecimento em música. Em vez de abordar conhecimento e experiência

musical apenas quantitativo (preciso, objetivo, medido – altura e duração, por

exemplo), a proposta de Koellreutter valoriza sobremaneira os aspectos

qualitativos (imprecisos, subjetivos, sensíveis – intensidade e agógica, por

exemplo) em contextos expressivos e, sobretudo, musicais (KATER apud

BRITO, 2001, p. 92).

Ao planejar e organizar atividades utilizando os modelos de improvisação,

Koellreutter sugere que se observem alguns pontos: faixa etária, qualidades humanas e

qualidades musicais, materiais e agentes, disposição do grupo no espaço, exercícios

preliminares, procedimentos de improvisação, critérios para crítica e avaliação.

Dentro desse conceito, que considero também muito próximo da proposta da

música participativa (que irei abordar em seguida), é possível trabalhar a educação musical

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com turmas variadas, isto é, crianças em idade escolar diferentes, chegando até a trabalhar

com adolescentes e adultos dentro de um mesmo espaço. A ideia tradicional da aplicação

dos elementos constituintes da música (tais como pulso, fórmulas de compasso, notação de

altura e duração do som, etc.), não se torna uma condição essencial, embora possa ser usada

desde que a ocasião e o interesse dos alunos permita.

A necessidade de organizar signos geradores de formas, de pesquisar e

experimentar materiais sonoros, a vivência do silêncio e das características do

som, da relação entre a duração da improvisação e o interesse provocado no

ouvinte [...] de um novo conceito de tempo, dentre outros aspectos, podem ser trabalhados por meio da improvisação em contextos que devem valorizar também

a reflexão sobre o fazer (KOELLREUTTER apud BRITO, 2001, p. 92).

A prática da improvisação é uma ferramenta importante para o educador

musical que está preocupado em ampliar a dimensão que a música pode ocupar no

ambiente escolar. Uma prática que envolve, além de elementos estruturais da música, a

abordagem de conceitos estéticos. Para Koellreutter, “a música é arte que se serve de um

sistema de signos sonoros, ou, seja, linguagem como meio de expressão” (BRITO, 2001, p.

92).

Em “Ecos da Floresta”, foi possível – a partir do modelo de improvisação

“Projeto Papel”, proposto por Koellreutter e apresentado por Teca Alencar Brito (BRITO,

2001, p. 117-121), - que os alunos pudessem compreender elementos estruturais musicais

através de uma vivência musical e não por uma aula expositiva de conteúdo teórico. Os

elementos estruturais abordados foram: a pulsação, ritmos métricos e amétricos, conceitos

de melodia e de sons puros. Seguindo o modelo de improvisação proposto por Koellreutter,

ao criar a peça “Ecos da Floresta”, houve a preocupação em integrar os elementos musicais

estruturais dentro de um ambiente lúdico que favorecesse a sua compreensão e

conscientização (BRITO, 2001). Para Teca Alencar Brito, esse tipo de vivência musical

promove:

[...] a criação de variações, a exploração de timbres, intensidades, densidades,

andamentos, dentre outros elementos. Sua realização estimula, ao mesmo tempo,

a concentração, a autodisciplina, o relacionamento entre os integrantes do grupo,

as capacidades de dialogar, interagir e criar (BRITO, 2001, p. 93).

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Os modelos de improvisação, na própria visão de Koellreutter, não devem ser

utilizados de maneira idêntica ao apresentado por ele, mas adaptados ou criados novos

modelos de acordo com a faixa etária, número de alunos e adequando-os à realidade e

interesse de cada classe. Para a suíte “Ecos da floresta”, sem esquecer os aspectos humanos

envolvidos (solidariedade, auto-organização, disciplina, disponibilidade), o modelo de

improvisação escolhido foi o projeto papel83

que trabalha com a questão dos gestos e

modos de ação para a produção de sons e com a forma (BRITO, 2001). Esta ação pode ser

capaz de ampliar “os recursos materiais a serem utilizados no trabalho de educação musical

com a transformação do papel em matéria prima para o fazer musical” (BRITO, 2001, p.

117). Através do modelo de improvisação Projeto Papel, foi possível introduzir o conceito

de timbre e forma musical e mostrar aos alunos que é possível produzir música com os mais

variados tipos de material, desde que operemos a transformação de objetos sonoros a

instrumentos musicais criando um ambiente musical e significativo a partir do material

papel.

3.4 O ambiente computacional Pure Data (PD)

O Pure Data, ou PD (www.puredata.info), é um ambiente de programação

computacional visual; uma ferramenta gráfica de programação em tempo real de algoritmos

para a análise, processamento e síntese de dados de áudio, vídeo e controle. PD foi

originalmente desenvolvida por Miller Puckette, mas, por se tratar de um projeto

computacional de código livre, uma nova versão de PD (PD-extended) passou a ser

desenvolvida por uma comunidade de programadores voluntários. Este pode ser baixado e

instalado gratuitamente na web-site acima citado. Segundo Puckette, PD foi inicialmente

criado para explorar modos para permitir que dados possam ser tratados de maneira mais

83

Projeto Papel é o nome de um modelo de improvisação. Koellreutter criou uma série de atividades para a educação musical a qual denominou modelos de improvisação. Trata-se de uma atividade totalmente baseada na livre improvisação, isto é, a partir de um tema, escolhe-se materiais diversos e se constrói um jogo que se pode realizar de várias maneiras: alternando papéis, comentando, discutindo e sempre visando o maior grau de qualidade musical. Segundo o autor, estes modelos ou jogos de improvisação, são responsáveis pela ampliação do conceito e da vivência do tempo da música. Vários são os modelos propostos por ele, dentre os quais: O palhaço, Solo fantasia, Fla-flu, Loja de relógios, etc., e cada um deles propõe uma atividade relacionada a um aspecto estrutural da música. (BRITO, 2001).

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aberta, facilitando o acesso e a interligação entre aplicações de áudio, controle (ex.: MIDI),

e vídeo (animações gráficas, imagens e filmes). Por ser um ambiente de programação

visual, o PD é estruturado na forma de um gráfico de fluxo, onde retângulos representam

unidades processuais e suas conexões, a direção do fluxo informacional. Conforme definido

por Porres, o PD “[...] não faz nada, quem faz é você, que escreve algo com ele” (Porres,

2010, p. 1). Para saber mais a respeito do PD existem diversos artigos publicados por Miller

Puckette, entre eles, “Pure Data: Another Integrated Computer Music Environment”

(1997), onde são descritos aspectos do seu desenvolvimento inicial, e também o “New

Public-Domain Realizations of Standard Pieces for Instruments and Live Electronics”, um

ótimo artigo relatando aplicações práticas do programa. (BARKL, 2009, p.19).

Através do PD criamos diversos algoritmos de geração de objetos sonoros e

visuais que foram utilizados para compor a paisagem sonora gerada durante a prática

realizada ao aplicar-se o modelo de improvisação. O resultado artístico é descrito a seguir,

na próxima seção.

Figura 25 - Implementação das imagens que pertencem ao 3º movimento.

Fonte: imagem do programa PD-Extended.

3.5 Do papel ao PD

Em conjunção com o trabalho desenvolvido com os alunos, durante a

preparação e montagem da suíte “Ecos da floresta”, foram desenvolvidos e utilizados

algoritmos computacionais implementados em PD. Estes são chamados de patches e foram

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criados com a finalidade de promover uma ambiência multimodal (visual e acústica) e

interativa, ao trabalho da suíte, que reforçasse e complementasse a proposta artística, assim

como possibilitar a interatividade dos alunos com a música eletrônica, através da

programação em PD, onde controles virtuais (na tela do computador) serviam para

controlar dinamicamente a geração da paisagem sonora, (agora “eletro-acústico-visual”),

contendo a síntese de imagens sensíveis ao som, conforme explicado abaixo, no memorial

descritivo.

Figura 26 - implementação das imagens que

pertencem ao 1º movimento.

Fonte: imagem do programa PD-Extended.

3.6 Memorial descritivo

1º encontro

Sem que os alunos soubessem que mais adiante iria propor a eles um projeto

musical que não envolveria a utilização de instrumentos convencionais como xilofones,

metalofones ou instrumentos de banda rítmica, assim como o uso da notação musical

tradicional – recursos esses já utilizados no primeiro semestre –, a aula foi dividia em dois

momentos. Num primeiro momento, iniciei um diálogo sobre o uso indevido da água, isto

é, a forma como desperdiçamos água em quase tudo o que fazemos no nosso cotidiano

desde banhos demorados, lavagem de calçadas e automóveis até o quanto se gasta de água

para produzir o papel em uma indústria. Ressaltei a importância da reciclagem do papel

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como forma de economia de água, pois dessa forma, o processo de produção do papel, na

indústria, além de menos oneroso do que se fosse iniciado desde o primeiro estágio de

produção, permitiria um menor consumo de água. Do consumo de água, passamos ao tema

“consumo” de uma forma geral: a necessidade do homem em consumir bens e serviços e se

esse consumo, de certa forma, é o responsável pela degradação do planeta. Os alunos

expuseram suas opiniões. Alguns, (principalmente os mais velhos), já tinham aprendido

sobre este assunto nas aulas de ciências, enquanto que outros se mostraram motivados a

levar o assunto adiante propondo uma pesquisa: eles se comprometeram a trazer imagens e

textos extraídos da internet e de livros para que pudéssemos ter mais elementos para

formarmos a nossa opinião, o que foi feito durante as aulas seguintes.

No segundo momento da aula, os alunos visitaram um site sobre construção de

instrumentos artesanais. Neste site, além da proposta de construção, havia instrumentos

virtuais em que era possível uma interatividade e os alunos, através do mouse do

computador tocavam os vários instrumentos apresentados. Foi possível perceber as relações

de tamanhos de tubos (diâmetro, comprimento e largura) e alturas correspondentes; foi

possível perceber também os diferentes timbres que surgiam dependendo do material e do

tipo de instrumento (sopro, corda ou percussão).

2º encontro

O segundo encontro foi dividido em três momentos. No primeiro momento

procurei atender as expectativas dos alunos com relação ao manuseio dos instrumentos

musicais apresentados na aula anterior. Todos se mostraram ansiosos por conhecer e

experimentar os vários modelos de instrumentos que o site propunha. Então tocamos e

entoamos alguns sons.

O segundo momento manteve relação direta com o encontro do dia anterior.

Alguns alunos apresentaram o resultado de suas pesquisas e puderam se expressar

verbalmente sobre o conteúdo da pesquisa que envolveu o uso racional dos recursos

hídricos, fontes de energia e desenvolvimento sustentável. A maioria dos alunos ficou

bastante interessada em propor ideias que pudessem melhorar as condições do planeta;

falou-se sobre a falta de água em algumas regiões do Brasil, enquanto que em outras, onde

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havia água em abundância, o assunto não era relevante e a população fazia um mau uso da

água; a poluição também foi considerada pelos alunos um tema importante. Eles se

manifestaram sobre a importância de ações que levassem a população a refletir sobre o

consumo excessivo e a questão da escassez dos recursos naturais do planeta.

O terceiro momento do encontro foi de ordem prática. Já que estávamos falando

em papel, de uma forma que surpreendesse os alunos, peguei duas caixas de papelão

contendo, em seu interior, diversos tipos de papel, e joguei-os no chão da sala de aula. A

minha atitude surpreendeu os alunos e estes, ficaram sem ação – os alunos não estão muito

acostumados a fazer o que quiser dentro da sala de aula-; não sabiam o que fazer e foi então

que eu disse a eles que poderiam experimentar os papéis, o que não aconteceu. Os alunos

não sabiam como experimentá-los. Disse a eles que fizessem uma experiência tátil e

auditiva; que manuseassem os diferentes papéis apresentados, seja esfregando, rasgando,

amarrotando, batendo, amassando e soprando. Os alunos ficaram por alguns momentos,

inertes, sem reação. Assim, eu mesmo iniciei a pesquisa de forma a servir de referência,

eles iniciaram em seguida. A partir daí, eles se sentiram à vontade para realizarem, cada

qual, a sua pesquisa. Eram papéis de diferentes qualidades, como seda, jornal, alumínio,

celofane, manteiga, lixa, cartão, etc. Concomitantemente ao manuseio do papel, retomei

com eles a discussão sobre economia sustentável e de como o homem pode interferir no

meio ambiente. “O animal reage às mudanças do meio; o homem age, mudando o meio”

(DUARTE JR, 1988, p.25).

Figura 27 - experiência tátil e auditiva com papel e discussão

sobre sustentabilidade.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

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3º encontro

No terceiro encontro, continuamos com as experiências sonoras com papel.

Desta vez, eram os próprios alunos que, ao entrarem na sala de aula, pegavam as caixas de

papelão onde ficavam armazenados os papéis e iniciavam a sua pesquisa. No decorrer da

aula fiz uma indagação sobre, se era possível fazermos música com aquele material. Como

primeira resposta, os alunos afirmaram que não, pois como tinham experiência com o

teclado, violão, xilofones e marimbas, achavam que não conseguiriam produzir melodias.

Neste momento, achei apropriado apresentar aos alunos um tipo de composição que não se

utilizava de melodias ou padrões rítmicos. Mostrei um site com o Instrumental Baschet.

Neste site, além de visualizar os instrumentos criados, era possível tocá-los virtualmente e

experimentar um tipo de música pouco ou nada comum para os alunos. A primeira

impressão dos alunos foi de estranhamento embora as imagens do site provocassem

também uma curiosidade. Alguns deles se manifestaram dizendo que aquele som parecia

com música de filme de terror; outros associaram a sons do espaço. Após o contato com o

Instrumental Baschet, propus a eles que tentassem reproduzir com os papéis, o que ouviam,

mesmo sendo materiais bem diferentes; aos poucos, eles foram percebendo que era possível

encontrar analogias entre o que ouviam e o que experimentavam. Não procurei produzir

uma peça musical, mas fazê-los entender que podemos ter uma variedade muito grande de

músicas. Comentei sobre a possibilidade de procurarmos imitar sons da natureza, como

fizeram as civilizações mais antigas e até mesmo sociedades atuais, como é o caso das

tribos indígenas84

.

Do contato desses objetos sonoros e a audição de peças contemporâneas, os

alunos puderam perceber que simples papéis poderiam se tornar verdadeiros instrumentos

musicais dispondo-os segundo suas relações de timbres e intensidades. Consequentemente

pudemos trabalhar a transformação desses sons em linguagem, uma vez que o papel tornou-

se um instrumento musical e os alunos puderam se expressar através desses novos

instrumentos.

84 Já tínhamos ouvido várias peças de índios brasileiros no Cd que acompanha o livro “Outras terras, outros sons”.

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Figura 28 - diálogo musical utilizando diversos tipos de papel.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

4º encontro

Entrar na sala de aula, ir direto para as caixas de papelão onde estavam

guardados os papéis e espalhá-los pela sala tornou-se uma rotina que continuou por todo o

tempo em que o projeto foi desenvolvido. Fez parte do planejamento que os alunos se

organizassem na pesquisa por sonoridades; que tivessem autonomia para saciar a sua

curiosidade e que após a atividade, fossem capazes de deixar a sala pronta para outras aulas

que não estivessem participando do projeto.

Mais experiências foram feitas, mas agora, os alunos procuravam estabelecer

uma organização muito mais próxima de um discurso musical; vários deles procuravam

manusear o papel em grupo, isto é, tentando estabelecer perguntas e respostas como, por

exemplo: um aluno soprava um papel de bala imitando um pássaro, ao que o outro

respondia batendo em uma caixa de papelão como se fosse um pica-pau. Propus a eles que

pensassem em uma dinâmica que demostrasse a distância entre as aves. Outro grupo tentou

representar uma manhã de brisa que aos poucos ia chegando um vento forte seguido de um

grande temporal (esta paisagem já havia sido sentida uma vez na classe quando

presenciamos o céu ficando escuro e chegando um forte temporal – a sala de aula fica no

terceiro andar e possui três janelas grandes, o que possibilita uma visão do horizonte sem a

interferência de prédios). Estes elementos foram, mais tarde, utilizados no roteiro da peça

“Ecos da Floresta”.

Nos quinze minutos finais da aula, ouvimos um pouco mais do Instrumental

Baschet. Além de apreciar o som, procuramos interagir, manuseando o papel, junto com o

som do site.

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5º encontro

Iniciamos os quinto encontro visitando um site de experiências musicais e

construção de instrumentos. Os alunos já estavam mais acostumados com essas pesquisas e

não sentiam o estranhamento percebido no início do projeto; agora olhavam as novidades

musicais com mais curiosidade e tentando estabelecer uma relação entre o que viam e a

prática que estavam experimentando; puderam perceber que há muitas possibilidades de se

fazer música. Alguns deles comentaram que fizeram algumas experiências em casa, mas

que houve um estranhamento da família, o que de pronto eles tentaram explicar que se

tratava de uma forma diferente de composição musical. A maioria dos familiares não

entendeu a proposta, mas para estes alunos, um tipo de composição assim já era comum e

perfeitamente possível.

Com relação à experiência tátil e auditiva, houve uma novidade: a apresentação

de tubos de vários tamanhos e calibres. De minha parte, não disse nada, mas os alunos logo

perceberam as diferenças de altura entre os tubos e relacionaram ao primeiro site que

viram, pois ali eram mostrados instrumentos como a flauta pan e os vibrafones com

garrafas. Fizeram experiências em dupla, utilizando os tubos e os papéis; experimentaram

ouvir o som dos papeis através dos tubos. Com este material em mãos, foram realizadas

diversas experiências acústicas, tais como as relacionadas à propagação e à ressonância do

som no interior de tubos (também utilizados como moduladores de voz), explorando as

relações entre sons graves e agudos, e da relação entre o comprimento desses tubos e suas

respectivas sonoridades. Com a apresentação dos tubos, o diálogo musical estabelecido no

encontro anterior foi interrompido em detrimento das novas experiências feitas a partir dos

tubos de papelão.

Figura 29 - pesquisando tubos e papel.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

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6º encontro

O sexto encontro iniciou-se com uma retomada da questão da sustentabilidade;

novas imagens que ilustrassem o tema foram pesquisadas com os alunos em sala de aula

(essas imagens foram armazenadas e seriam aproveitadas posteriormente na produção de

um vídeo que seria incluído como introdução da peça).

Em seguida, foi apresentado aos alunos, o Cd Águas da Amazônia, de 1999, do

grupo Uakti com a participação de Philip Glass. Após a audição, uma visita ao site do

grupo para que os alunos tivessem contato com os instrumentos fabricados por eles e que

tinham a ver com os tubos que estávamos experimentando.

Figura 30 - tubos de diversos tamanhos e os papeis.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

7º encontro

Fora do horário das aulas, cortei diversos tubos de forma a conseguir

sonoridades de tríades maiores a partir do I, IV e V graus da escala maior. Quando os

alunos chegaram, comecei a tocar os tubos e logo eles se interessaram em tocar também. A

sonoridade lhes pareceu bastante similar àquela ouvida na aula anterior; comentei sobre

padrões rítmicos e melódicos que poderíamos conseguir executando os tubos e buscando

nos aproximarmos da sonoridade da música minimalista, isto é criando pequenas células e

repetindo-as; cada três alunos formavam um acorde e a minha função foi de regê-los e

assim, criarmos a nossa “música minimalista”. Essa experiência proporcionou aos alunos a

certeza de que a construção de instrumentos musicais artesanais poderia se aplicar também

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à música tonal. A experiência musical tonal com os tubos se mostrou bastante prazerosa e

nos ajudou a entender e nos familiarizar com a música minimalista.

Figura 31 - tubos organizados por tríades maiores;

música minimalista.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap..

8º encontro

A partir do oitavo encontro, as experiências deixaram de ser espontâneas e

aleatórias e passaram a ter um sentido mais exato no que diz respeito ao desenvolvimento

de uma técnica instrumental para a produção do som enquanto instrumento musical para se

construir uma composição artística. Foi possível desenvolver técnicas para a produção de

sons distintos, através de diferentes gestos, tais como: amarrotar, amassar, esfregar, bater,

rasgar, estourar (sacos de papel), tamborilar e soprar (como membrana, produzindo um som

tonal). Foram coletadas amostras sonoras através de gravações e depois, ao ouvi-las, os

alunos escolheram aquelas que mais lhe agradaram e que poderiam ser usadas em uma peça

musical. Através do contato com esses objetos sonoros, foi possível torná-los verdadeiros

instrumentos musicais, dispondo-os segundo suas relações de timbre e intensidade e

consequentemente a transformação dessa prosódia sonora numa forma rudimentar de

linguagem, uma vez que papéis tornaram-se instrumentos musicais e os alunos passaram a

se expressar através desses novos meios acústicos.

9º encontro

O nono encontro foi uma continuação do encontro anterior com a coleta e

análise de mais amostras sonoras a partir da variação nas formas de tocar o papel. Em

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seguida, foi apresentado aos alunos, via imagens coletadas no Google, diversas formações

instrumentais de modo a servir de referência para uma possível formação de conjuntos a

partir das experiências sonoras feitas com os papéis.

A partir das formações visualizadas e das gravações realizadas em sala de aula,

foi possível estabelecer um diálogo entre os alunos sobre o porquê da distribuição dos

instrumentos no palco; foi analisada, principalmente, a questão do volume emitido pelos

instrumentos e a sua disposição no palco como forma de manter um equilíbrio de

sonoridades. Uma questão colocada pelos alunos foi que “uma coisa é estarmos em uma

sala experimentando os sons do papel e outra coisa é estarmos apresentando uma peça

musical. Será que a forma como estamos dispostos no palco provoca uma diferença na

forma como a plateia sente a música e a intenção dos músicos?” A resposta dos alunos foi

de que é necessário uma postura de quem toca para que o público entenda que o que eles

estão fazendo é música.

Figura 32 - alunos organizados para uma apresentação musical.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

10º encontro

Este encontro foi um divisor de águas dentro do projeto uma vez que, neste

momento, começamos a pensar em uma forma de nos expressarmos através de uma

experiência estética. Propus aos alunos que montássemos uma peça musical utilizando toda

a experiência adquirida no manuseio do papel somada aos conhecimentos adquiridos sobre

as diversas formações de conjuntos que pudemos observar em nossas pesquisas na internet.

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Este procedimento - a pesquisa com papéis, imagens e textos a respeito de sustentabilidade

- associado a uma prática musical, teve um caráter participativo e não excludente, uma vez

que foi propiciado aos alunos a possibilidade de produzirem som e por consequência,

música, sem estarem amarrados a uma notação musical e sem a necessidade de um

conhecimento prévio de técnicas instrumentais. Àqueles alunos que conheciam um pouco

da notação musical europeia, foi possível se expressarem musicalmente utilizando seus

conhecimentos a respeito, principalmente na experiência com tubos onde foram executados

acordes e células rítmicas. Porém, os alunos que nunca tiveram contato com notação

musical, não se sentiram inibidos em produzir os efeitos sonoros e entenderam que a

música não é formada apenas por melodia, harmonia e ritmo; outras possibilidades podem

acontecer, tais como densidade e textura, por exemplo.

Visitamos o site de Fernando Sardo85

e pudemos constatar uma grande

variedade de possibilidades de chamarmos a atenção para o tema que queríamos destacar.

Ao serem questionados sobre a possibilidade da montagem de uma peça musical, os alunos

disseram se sentir capacitados para a realização do projeto. A seguir, relato mais

explicitamente a construção da peça.

Ecos da Floresta: Suíte em quatro movimentos para orquestra de papel.

11º encontro

1º movimento: Biodiversidade

Ideias-chave: Floresta intacta, sem a ocupação do homem: paisagem sonora

com ausência de pulso, ritmo ou qualquer outra forma musical que contenha elementos

melódicos ou harmônicos; presença de ruídos que constituem sons de animais e da

natureza.

Os alunos, distribuídos pela sala de aula, cada qual com os seus instrumentos,

improvisaram seguindo o roteiro: a) o amanhecer – sons esparsos de animais; uma brisa

balança levemente as folhas das árvores; aos poucos, mais animais emitem seus sons – a

floresta acorda; b) iminência da tempestade - o vento aumenta de intensidade; sons de

85 Seção 3.2.6

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trovões ao longe; os animais silenciam-se em busca de abrigo; c) a grande tempestade -

ausência de sons de animais; sons fortes de chuva e trovão; d) o sol reaparece – sons de

animais (lixa – animais rastejando, tubos percutidos – pica-paus em árvores, papel soprado

– canto dos pássaros, etc.).

Os sons produzidos nessa seção foram gravados e posteriormente utilizados de

forma reversa, no decorrer da apresentação. Como ambientação visual, foi utilizado um

patch capaz de misturar uma imagem atual a uma imagem anterior, criando assim uma

espécie de névoa. Este efeito é controlado por comandos deslizantes (sliders) que permitem

o controle dinâmico da variação de texturas e contrastes. Desta forma, o cenário projetado

dialogava com os sons produzidos pelos alunos, dando uma ideia de movimento, da

fluência entre o dia e a noite. Durante o primeiro movimento da suíte, aparece no telão uma

imagem dos alunos, captadas em tempo real pelo patch e transformada manualmente

durante o tempo da performance, através dos sliders.

Figura 33- suíte Ecos da Floresta: 1º movimento – o amanhecer.

Fonte: Apresentação na Prefeitura da Unicamp. Fotografado por Valéria Chinaglia.

12º encontro

Refizemos o ensaio anterior procurando sistematizar os sons produzidos;

fizemos as marcações de palco; gravamos e analisamos os sons para que pudéssemos ter

uma melhor ideia de quais efeitos utilizaríamos na peça. Os sons escolhidos seriam, mais

tarde, editados para que fossem utilizados no terceiro movimento.

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Figura 34 - suíte Ecos da Floresta: 1º movimento – a grande tempestade

Fonte: Apresentação na Prefeitura da Unicamp. Fotografado por Valéria Chinaglia.

13º encontro

2º movimento: A presença humana

Ideias-chave: Os sons produzidos pelo homem não são mais fortes do que os

sons da natureza.

Para representar a ocupação humana na floresta, foi realizada a inserção de

motivos rítmicos e melódicos através de instrumentos confeccionados a partir de tubos de

papelão. Previamente, eu separei os tubos divididos em tríades e os alunos, agrupados três a

três, criaram ostinatos86

em cima dos acordes de I, IV e V graus da escala maior

(minimalismo). Estes sons, associados ao som da floresta nos davam a nítida impressão da

ocupação humana, pois ali se ouvia um “pensamento lógico racional” representado pelo

sistema tonal e pela presença do ritmo ao mesmo tempo em que se ouvia o som da floresta.

Os alunos responsáveis pela execução dos tubos foram os mais velhos, com idade entre 9 e

11 anos; estavam familiarizados com este tipo de música, pois já haviam trabalhado com

metalofones, xilofones e flauta doce. A principal preocupação dos instrumentistas, neste

movimento, era de que os sons tonais não poderiam se sobrepor aos sons da natureza.

Trabalhamos muito a dinâmica desses instrumentos; houve muita dificuldade em

encontrarmos o toque ideal para que os tubos ressoassem com uma qualidade sonora ideal.

86 Termo que se refere à repetição de um padrão musical por muitas vezes sucessivas. No caso aqui, houve um ostinato harmônico. (SADIE, 1994, p. 687).

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Uma nova ambientação visual foi criada por um segundo patch, sobrepondo-se

à imagem anterior: surgem figuras geométricas translúcidas (bi e tridimensionais), em cores

quentes, realizando movimentos de rotação e translação, mas que não escondem a imagem

projetada do primeiro movimento da peça. Tais figuras geométricas representam a presença

do ser-humano transformando o ambiente natural, sem agredi-lo, mas, ao contrário,

convivendo em harmonia com este.

Figura 35 - suíte Ecos da Floresta: 2º movimento - a presença humana.

Figuras geométricas translúcidas não escondem a floresta.

Fonte: Apresentação na Prefeitura da Unicamp. Fotografado por Valéria Chinaglia.

14º encontro

Da mesma forma como ocorreu com a preparação do 1º movimento, o 2º

movimento foi realizado em dois ensaios. O primeiro, seguindo o modelo de improvisação,

de caráter totalmente aberto; no segundo, a ideia era gravar os sons produzidos no primeiro

ensaio e, após uma analise, sistematizá-los e criar uma sequência que pudesse ser

memorizada e refeita de forma a manter um discurso musical coerente. Novamente os sons

escolhidos foram armazenados e editados para que fossem utilizados no 3º movimento, pois

a nossa ideia era utilizar estes sons, que se tornaram elétricos, por meio de caixas acústicas

e assim, criarmos também um momento de música eletrônica.

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15º encontro

3º movimento: Desenvolvimento não sustentável

Ideia-chave: A paisagem sonora que se estabeleceu foi o som produzido pela

orquestra de papel associado a um som de característica eletrônica; o caráter mecânico

que se sobrepõe ao som acústico.

Neste momento da suíte se sobrepõe aos sons da natureza e também às

melodias que simbolizam a presença humana, uma sonoridade áspera e forte conotando as

máquinas que invadem a floresta.

Precisávamos, neste momento, criar um evento musical que fosse impactante

para o público. Já vínhamos trabalhando nas imagens que usaríamos no power point e a que

mais nos chamou a atenção foi uma serra elétrica; o seu som era muito forte e para alguns

alunos, amedrontador. Começamos a pensar que, dentro de uma atmosfera de convivência

harmônica, o som mecânico de uma serra elétrica causaria um susto muito grande nos

habitantes daquele ecossistema. Desta forma, criamos como efeito para esta ideia, um

estampido forte do bater de um tubo em uma caixa de papelão, o que causaria uma revoada

de pássaros; os gestos seguiriam a ideia do susto; todos os alunos se movimentariam

rapidamente pelo palco e novamente um novo estrondo e outra revoada e outro estrondo e

outra revoada – esse era o início do terceiro movimento. A partir daí, os sons tornaram-se

pesados, com batidas que lembravam o ritmo das máquinas sobre os sons das melodias

humanas e dos efeitos da floresta.

Foi implementado um patch que cria um círculo branco e opaco no telão. Este é

sensível aos sons executados no palco e que, quanto mais forte é o som produzido, maior a

dimensão que a figura adquire, chegando mesmo a atingir toda a dimensão da tela e

encobrindo as formas geométricas transparentes que estavam em movimento e que

representam a presença humana em harmonia. Durante os dois primeiros movimentos,

foram gravadas amostras de áudio com a duração de 30 segundos cada. Neste momento o

som armazenado foi reproduzido no ambiente em sua forma reversa (de trás para frente).

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Figura 36 - suíte Ecos da Floresta: 3º movimento – desenvolvimento

não sustentável. O círculo branco é sensível ao som

que encobre as formas geométricas.

Fonte: Apresentação na Prefeitura da Unicamp. Fotografado por Valéria Chinaglia.

16º encontro

4º movimento: O desenvolvimento sustentável

Ideias-chave: O som produzido pelo homem volta a se equilibrar com os sons

da natureza.

Este último ato representa a reconstituição da floresta e a retomada de

consciência por um desenvolvimento sustentável, de uma convivência harmônica entre

humano e meio-ambiente selvagem.

Procuramos uma sonoridade que envolvesse os timbres que representam as

máquinas, os sons da floresta e as melodias produzidas pelo homem de forma que nenhuma

sonoridade se sobrepusesse às outras. Como já vínhamos sistematizando esses sons nos

movimentos anteriores, a conclusão do 4º movimento se deu de uma forma mais rápida.

Assim como ocorre no discurso musical, há uma retomada das imagens produzidas

anteriormente e o círculo branco se fecha e desaparece.

Achamos que seria interessante se produzíssemos um áudio visual que fosse

uma espécie de relato do assunto abordado em sala de aula e que servisse como um prólogo

da suíte para que o público, principalmente os alunos da plateia, tivesse uma referência

sobre a peça. Já havíamos coletado muitas imagens na internet; seria necessário a

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composição de uma trilha sonora. Apresentei aos alunos o software livre atmosphere lite.

Trata-se de um programa que contém vários sons de animais (diurnos e noturnos) e também

sons da natureza como trovões, vento, chuva, etc. Através do mouse do computador é

possível ligar ou desligar esses sons. Fizemos várias experiências e gravamos a trilha

sonora que representava a floresta, utilizando outro software livre, o audacity.

17º encontro

Ensaiamos novamente o 4º movimento da suíte e logo em seguida, passamos

para a montagem da trilha sonora para o áudio visual. Utilizamos o Cd que acompanha o

livro “Outras terras, outros sons” e escolhemos uma canção indígena para representar a

presença do homem em convivência harmônica com o meio ambiente. Gravamos esta

canção no audacity e agregamos à trilha sonora. Em seguida, pesquisamos em sites de

efeitos especiais. O primeiro que procuramos foi o de uma serra elétrica, pois já havíamos

selecionado esta imagem para o áudio visual e depois, vários outros sons que denotassem

destruição e novamente, utilizando o audacity, agregamos à nossa trilha sonora.

Figura 37 e 38 - imagens do áudio visual feito em Power Point:

prólogo para Ecos da Floresta

Fonte: Imagens extraídas da apresentação em Power Point por Jairo Silveira.

18º encontro

Este encontro foi reservado para finalizarmos a apresentação em Power Point.

Já vínhamos montando a trilha e agora era necessário colocarmos uma ordem nas imagens

escolhidas e sincronizarmos o tempo da trilha sonora. Achei interessante utilizarmos uma

aula inteira para que os alunos pudessem acompanhar o processo de edição, assim como

para entenderem que é possível realizar uma composição utilizando e editando os sons pré-

MAS NEM

SEMPRE

É ISSO O QUE

ACONTECE

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gravados, sejam eles amostras sonoras coletadas pelos próprios alunos, efeitos sonoros ou

músicas de Cd; foi possível experimentar uma composição musical que trabalhava com

colagem. Os alunos ficaram satisfeitos com a experiência, pois conseguiram concretizar um

discurso musical sem o uso de instrumentos ou mesmo da voz.

19º e 20º encontro

Os dois últimos encontros foram planejados de modo que os alunos pudessem

passar pela experiência de ensaio geral e refletir sobre a importância da auto-organização

dentro de um projeto musical no qual estão envolvidas várias pessoas com idades

diferentes, de formação musical e ideias diferentes, mas nem por isso essas diferenças

impedem que haja uma ação em comum no sentido da concretização do projeto. Foram

feitos dois ensaios gerais com marcação dos pontos principais que determinavam a

mudança dos movimentos da suíte. Os instrumentos já vinham sendo armazenados dentro

das próprias caixas de papelão que eram usadas na peça e os alunos, ao chegarem para a

aula, já pegavam, cada qual com os seus instrumentos (cada músico executava mais de um

instrumento) e se posicionavam na sala. Ao final do ensaio, guardávamos todos os

instrumentos de modo que, no próximo ensaio, já estivesse tudo organizado.

Depois de várias experiências e marcações, os alunos estavam bastante seguros

do que fariam na apresentação que aconteceu no Anfiteatro da Prefeitura do Campus da

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Tanto as imagens quanto o áudio foram

manipulados durante a apresentação por mim, através de um notebook, assim como o

desenvolvimento dos patches no PD.

3.7. Algumas Considerações

Este trabalho apresentou um processo de ação pedagógica voltada à

sensibilização artística dos alunos participantes através da criação artística de paisagens

sonoras mediadas por aparato tecnológico. Estas eram também voltadas a promover a

conscientização ambiental e sustentável dos alunos participantes. Através da criação da

paisagem sonora, a atividade aqui proposta envolveu o desenvolvimento de um novo

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gestual dos participantes da Orquestra de Papel. Também inclui a criação de modelos

computacionais voltados para as manifestações artísticas multimodais e para o

desenvolvimento das habilidades necessárias para a organização de uma técnica

instrumental baseada nos conceitos estéticos construídos a partir das experiências que

ocorreram dentro da sala de aula, durante os encontros das oficinas musicais. Outras

possibilidades de ação pedagógica poderão vir a ser exploradas no futuro, a partir da

dinâmica aqui apresentada. Com isso, o exercício da escuta e da prática da música

contemporânea poderá ser desenvolvido através da articulação de um compêndio de

conceitos que fomentem a fluência musical, atreladas a uma certa lógica discursiva como

mostrei no exemplo do projeto acima descrito.

Este trabalho com os alunos propôs uma aprendizagem significativa e

participativa que levou os alunos participantes a buscarem mais experiências, informações,

e a adquirirem novos conhecimentos e habilidades. Por se tratar de uma música que foi

construída sem o recurso da notação musical tradicional, foi possível criar um ambiente

musical participativo e não excludente, pois para que o aluno participasse do projeto, não

era necessário nenhum conhecimento prévio musical. Ao contrário, era necessário que ele

estivesse se sentindo à vontade e estimulado para a realização musical; que estivesse

sensibilizado pelo assunto abordado e que este assunto fizesse parte de seu cotidiano e,

ainda, que pudesse se expressar com maior liberdade e espontaneidade. Sobre esta questão,

Duarte Júnior diz que “uma educação que apenas pretenda transmitir significados que estão

distantes da vida concreta dos educandos, não produz aprendizagem alguma. É necessário

que os conceitos (símbolos) estejam em conexão com as experiências dos indivíduos”

(DUARTE JÚNIOR, 1994, p. 25). Nesta proposta de um fazer artístico que une a imagem à

elementos da música tonal, pós-tonal, do som, do silêncio e do ruído, nos preocupamos em

desenvolver uma ação interdisciplinar que promovesse o desenvolvimento individual, bem

como a evolução social do aluno.

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4 FESTA DE SÃO JOÃO

O conceito de música participativa, neste projeto, não significa a participação

de todos os alunos numa mesma função, executando algum instrumento musical, por

exemplo; embora isto seja possível, desde que haja um interesse coletivo e unânime. Ao

contrário disto, música participativa, neste trabalho, tem o sentido da participação de todos

os alunos dentro de um contexto estético mais amplo no qual a música é uma parte

importante da ação pedagógica, mas não é exclusiva. Esta ação educativa tem como

finalidades últimas a preservação e o estudo do folclore brasileiro; a conservação e o

resgate da cultura brasileira e; a expectativa de que o aluno adquira familiaridade com

diversos estilos musicais, assim como que ele se sinta à vontade para experimentar um

fazer musical criativo. É de fundamental importância, neste caso, que os alunos estejam

inseridos tranquilamente dentro de um ambiente musical. Eles podem participar tocando

instrumentos ou cantando; interpretando sons ambientes através da construção de paisagens

sonoras; podem atuar como pesquisadores trazendo informações relevantes para os colegas

de classe no que diz respeito à temática da peça; podem registrar momentos do ensaio;

podem ainda gravar e editar eventos sonoros coletados durante os ensaios e que serão

utilizados na montagem final da peça ou ainda organizar a disposição dos instrumentos

musicais que serão utilizados dentro da sala de aula durante os ensaios. O importante é que,

independentemente da função que os alunos exerçam dentro do projeto, eles sintam prazer e

vejam utilidade em contribuir para a realização de uma construção coletiva e, ao sentirem-

se úteis, estejam dispostos para adquirir novos conhecimentos.

De caráter interdisciplinar, o objetivo do projeto é envolver os alunos dentro de

um ambiente musical para que eles possam vivenciar vários aspectos musicais considerados

importantes do ponto de vista da educação musical, entre eles a pesquisa dos sons do

ambiente a ser recriado e as várias possibilidades de reprodução desses sons; um contato

com a composição e a improvisação no que diz respeito à estruturação da peça, aspectos

rítmicos, melódicos e harmônicos e como estes aspectos se organizam dentro de uma

composição musical; os significados geográfico, histórico e cultural de uma festa junina,

assim como a simbologia dos elementos que perduram até hoje, tais como a fogueira, o

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mastro, o balão, as bandeiras, etc. Por se tratar de uma atividade que se baseia no conceito

de música participativa, quanto mais funções acontecerem dentro do grupo melhor será

para o resultado final. Para interpretar esta música foram utilizados os seguintes

instrumentos: flauta doce, metalofone, xilofone, cajon87

, triângulo, claves, caxixi, pandeiro

sem pele, ganzá, chocalho, reco-reco, flauta-êmbulo e voz.

Figura 39 - flauta doce Figura 40 - metalofone Figura 41 - xilofone

Figura 42 - cajon Figura 43 - flauta êmbolo Figura 44 - pandeiro

Figura 45 - ganzá, chocalho, caxixi Figura 46 - triângulo, reco-reco, claves

Fonte: fotografias dos instrumentos de banda rítmica por Jairo Silveira.

O interesse pelo tema “festa junina” ocorreu devido a esta festa ser uma das

mais importantes do colégio, mas não havia uma ação educativa que colocasse os alunos a

87 O Cajon é um paralelepípedo feito de madeira. Encostado à parte de trás da tampa, na qual se toca, há um ou dois bordões (cordas graves da guitarra) que formam uma esteira (snare) semelhante a uma caixa de rufo dando uma sonoridade que vai do agudo brilhante ao grave profundo. De origem peruana, é muito utilizado na música flamenca.

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par de toda a história que há por trás de uma festa junina. Lúcia Helena Rangel discorre

muito bem sobre esta questão quando diz que:

As festas juninas são comemoradas em todo o país e representam uma das mais

ricas manifestações culturais brasileiras. No entanto, na mesma medida em que

essas tradições culturais permanecem, apesar das profundas mudanças estruturais

do Brasil – que em pouco mais de meio século passou de eminentemente rural à

condição de urbano -, começam a se esgarçar na memória das novas gerações de

brasileiros as origens desses festejos. As crianças continuam dançando a

quadrilha no mês de junho, porém não conhecem mais a história da festa e de seus santos, o significado de seus rituais, as letras das músicas mais tradicionais

(RANGEL, 2002, p. iv).

A peça intitulada Festa de São João tinha como elementos de composição a

construção da paisagem sonora de uma festa de São João: os sons dos vendedores, dos

pedidos de prenda, das rezas, dos fogos de artifício e das barracas de comida que se fundem

ao som da música que vem do alto falante e do palco (esta música seria interpretada pelos

alunos). Iniciei o processo comentando com os alunos sobre a funcionalidade da música

dentro de uma festa junina. Esta música não foi feita para ser apenas ouvida, como o que

acontece em uma sala de concerto, mas ela é parte de uma paisagem onde entram diversos

outros elementos e o ruído faz parte dessa paisagem. A música executada em uma festa

popular não pode ser vista tal como uma música de concerto. Não haveria sentido algum,

por exemplo, interromper a festa para que o público assistisse a um número musical. Esta

música acontece simultaneamente aos sons das pessoas, dos jogos, da reza. Não existe uma

organização dos sons que estão dentro da festa. E foi com essa percepção que nos

propusemos a executar a peça Festa de São João.

4.1 Descrição da Festa de São João – ensino pré-figurativo

Para realizarmos uma peça com o tema de festas juninas, se fez necessário

buscar referências sobre o assunto, uma vez que os alunos tinham como referência mais

próxima a festa junina do colégio e esta não representa exatamente uma festa junina com

toda a sua simbologia. O ponto de partida foi a origem das festas de um modo geral e, a

partir disso, focamos nossa atenção na festa de São João.

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4.1.1 Festa

Dentre as manifestações da vida social nos agrupamentos humanos podemos destacar a festa, cujo aparecimento data das mais remotas eras, certamente

quando o homo faber, deixando de ser mero coletor de alimentos, praticante da

técnica de subsistência da catança, passou a produzi-los, plantando. Há na aurora

das festas aquela preocupação mágica de agradecer a natureza ou suplicar para

que elas, entidades supraterrenas ou divindades, não permitam as pragas, danos

ou malefícios nas plantações, praticando, portanto ritos protetivos e produtivos

(ARAÚJO, 1973, p. 11).

As festas não estão relacionadas somente com os modos de produção, mas com

as forças produtivas da sociedade de um modo geral: produção, distribuição e consumo.

Além disso, elas se mostram uma eficiente forma de coesão grupal, alimentando o ato

solidário e aumentando os laços entre os grupos familiares. Por estarem em consonância

com os ciclos agrícolas, tornaram-se periódicas, transformando-se em uma função

comemorativa.

As festas, segundo Alceu Araújo em seu livro Cultura Popular Brasileira,

tiveram uma origem comum: uma forma de culto a uma divindade realizada em

determinados tempos e locais desde o início da civilização. A elas, no decorrer do tempo,

foram agregados elementos como a comida, os padroeiros, as entidades sobrenaturais, a

música, o baile, a procissão, a reza, etc. Após o evento do cristianismo, a Igreja Católica

começou a participar ativamente da elaboração de um calendário de festividades, formando

o ano eclesiástico, isto é, determinando certos dias para o culto divino. Estes podem ser

fixos ou móveis.

Mesmo as festas tendo se modificado no decorrer do tempo, é importante

lembrar que, por se tratarem de festas ligadas ao modo de produção dos grupos sociais

caracteristicamente rurais, sofreram diretamente a influência dos solstícios, uma vez que

estas datas sempre marcaram o início de plantações e colheitas desde os tempos mais

remotos da humanidade. Segundo Araújo,

Não resta dúvida do poder que existe nos solstícios de congregar ou dispersar os membros de um grupamento humano, principalmente aqueles que

vivem no meio rural, o qual colocam o homem em contato mais direto com a

paisagem local. Há portanto maior relação entre os solstícios e festas (ARAÚJO,

1973, p. 12).

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O mês de junho, tempo de solstício de verão (quando se tem o dia mais longo

do ano) no Hemisfério Norte, era a época do ano em que diversos povos, entre eles os do

Egito, Grécia, Síria e Babilônia, faziam rituais de invocação de fertilidade para estimular o

crescimento da vegetação – a preparação do terreno, o plantio e a colheita. O cultivo de

raízes e legumes, juntamente com a caça, a pesca e a coleta, representa o conjunto das

atividades produtivas que tornaram possível a adaptação da espécie humana em todas as

regiões do planeta, mas foi a produção de grãos e a criação de animais que ampliaram essa

capacidade de adaptação.

Com o cultivo da terra pelos seres humanos, surgiram os rituais de invocação da

fertilidade para ajudar o crescimento das plantas e proporcionar uma boa colheita. Na

Grécia, Adônis era considerado o espírito dos cereais. Entre os rituais mais expressivos,

estão os jardins de Adônis – na primavera, as mulheres plantavam vasos com sementes de

cereais e vários tipos de flores. Com o calor do sol, as plantas cresciam e, como não tinham

raízes, murchavam ao final de oito dias e então eram lançadas ao mar. Um aspecto

importante que demonstra a aproximação do mito de Adônis com a Festa de São João, é o

costume de tomar banho de rio ou de mar na noite da véspera de São João, assim como o

costume de plantar pequenas árvores em frente às casas e pendurar objetos e alimentos,

como o ritual dos jardins de Adônis. Também permanece, desde os tempos antigos, o

costume de acender fogueiras e tochas, que devem livrar as plantas e colheitas dos espíritos

maus que podem impedir a fertilidade - lenda de Tamuz, Babilônia (RANGEL, 2002).

Segundo Araújo, no Brasil as festas estão divididas entre festas do ciclo de

inverno e do ciclo de verão. As festas do solstício de inverno, no Estado de São Paulo,

atraem mais o interesse da população rural como é o caso da festa de São João e da festa do

Divino. Já as festas do solstício de verão, devido a forte influência de novos elementos

como a árvore de Natal e Papai Noel, estão se tornando mais urbanas. Tanto a festa de

Natal quanto a de carnaval atraem muito mais as populações urbanas ao passo que as de

São João e do Divino, atraem as populações rurais (ARAÚJO, 1973). Embora as festas de

padroeiros estejam, nas grandes cidades, sendo descaracterizadas, em muitas festas,

principalmente em cidades menores, “pode-se ainda encontrar as manifestações tradicionais

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que se poderiam chamar a ‘parte folclórica’ dessas comemorações tal qual a cortada-de-

mastro, a puxada e fincada” (ARAÙJO, 1973, p. 13).

4.1.2 Festas indígenas

Em Portugal, no período colonial, as festas de São João eram muito

comemoradas em junho. Há relatos de alguns cronistas que, desde a chegada dos

portugueses ao Brasil, os jesuítas ascendiam fogueiras e tochas em junho exercendo grande

fascínio sobre os índios. O período de junho a setembro é a época da seca em muitas

regiões do Brasil, quando os rios estão baixos e o solo pronto para enfrentar o plantio.

Praticava-se a técnica da coivara, isto é, queimavam-se as ramagens para limpar o terreno e

a seguir começar o plantio. Os roçados do ano anterior estavam repletos de mandioca, cará,

inhame, batata-doce, banana, abóbora, abacaxi, e se encontravam em período de consumo.

Uma série ritual, que dura todo o período, inclui um conjunto variado de festas realizadas

pelas comunidades indígenas que incluem danças, cantos, rezas e muita fartura de comida.

Deve-se agradecer a abundância, reforçar os laços de parentesco (as festas são uma ótima

ocasião para alianças matrimoniais), rezar forte para que os espíritos malignos não

impeçam a fertilidade. O ato de atear fogo para limpar o mato, além de fertilizar o solo,

serve principalmente para afastar esses espíritos malignos.

Rangel, em seu livro Festas juninas, festas de São João: origens, tradições e

história, afirma que:

Houve, portanto, certa coincidência entre o propósito católico de atrair os índios

ao convívio missionário catequético e as práticas rituais indígenas, simbolizadas

pelas fogueiras de São João. Talvez seja por causa disso que os festejos juninos

tenham tomado as proporções e a importância que adquiriram no calendário das

festas brasileiras (RANGEL, 2002, p.22).

4.1.3 Festa do Solstício de inverno – Festa de São João

A festa de São João é a principal festa do solstício de inverno realizada em todo

o território brasileiro (por estar o Brasil no Hemisfério Sul, o ciclo está invertido em relação

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ao Hemisfério Norte). “Festa profundamente humana, carrega consigo, vários elementos da

arqueocivilização” (ARAÚJO. 1973, p. 18). Trata-se de um ritual pagão que foi transferido

para o catolicismo romano que, em vez de condenar, deu-lhe um santo padroeiro - São João

-, que teria nascido em 24 de junho, dia do solstício. Antes mesmo de Jesus, João Batista já

pregava às margens do Rio Jordão. Foi ele o responsável pela instituição do batismo, isto é,

a prática de purificação através da imersão na água.

São João ocupa um papel de destaque nas festas. A partir do seu nome, foi dado

o nome ao mês - mês de São João - e é em sua homenagem que se chamam “joaninas” as

festas realizadas durante este mês. Segundo Frei Vicente do Salvador, já no ano de 1603 os

índios participavam dos festejos portugueses, em especial os de São João, por causa das

fogueiras e capelas. São João é muito querido por todos, que festejam o seu dia com fogos

de artifício, tiros e balões coloridos, além dos banhos coletivos de madrugada. São João,

segundo a tradição, adormece no seu dia, pois se estivesse acordado vendo o clarão das

fogueiras que são acesas para homenageá-lo não resistiria o desejo de descer do céu:

desceria à Terra e ela correria o risco de incendiar-se (RANGEL, 2002).

Se São João soubesse

Quando era o seu dia

Descia do céu à Terra

Com prazer e alegria

Acorda João!

Acorda João!

João está dormindo

Não acorda não! (CASCUDO, 2001, p. 298)

Enquanto os demais santos são apresentados nas iconografias como adultos,

“São João Batista – o precursor, figura como menino e tem, ao contrário dos outros, a sua

festa realizada em noite que antecede o seu dia” (ARAÚJO, 1973, p. 18).

Na maioria das regiões brasileiras estão presentes os fogos de artifício,

fogueira, muita comida, bebida e danças típicas de cada localidade. No Nordeste, por

exemplo, enfeitam-se sítios, fazendas e ruas com bandeirolas coloridas. Prepara-se a lenha

para a fogueira onde serão assados os alimentos como a batata-doce, mandioca, cebola do

reino e milho. Em volta dela sentam-se os familiares de sangue e de fogueira. O formato da

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fogueira varia de lugar para lugar: ela pode ser quadrada, piramidal, empilhada. Quanto

mais alta, maior o prestígio de quem a armou. Além dos alimentos assados na fogueira é

comum encontrar pé-de-moleque, pipoca, biscoito, pamonha e canjica.

Os balões levam os pedidos para o santo. Quando a fogueira começa a queimar,

o mastro, que recebeu a bandeira do santo homenageado, já se encontra preparado.

São João adormeceu

no colo de sua tia.

Se meu São João soubesse

quando era o seu dia,

descia do céu na terra

com bandeira de alegria (CASCUDO, 2001, p. 299).

Depois do levantamento do mastro, tem início a queima de fogos, soltam-se

busca-pés e bombinhas. A cerimônia de batismo simbólico de São João Batista faz parte da

tradição da festa, mesmo que ela tenha deixado de ser praticada em alguns lugares hoje em

dia. Os devotos se dirigem ao rio cantando durante o percurso:

Vamos, vamos

tocar a marchar

n’água de São João

vamos nos lavar (RANGEL, 2002, p. 58)

Depois do banho coletivo, todos voltam para o terreiro cantando:

N’água de São João me lavei

Toda mazela que tinha deixei! (RANGEL, 2002, p. 58)

Ou ainda trazem na cabeça grinaldas de folhagens:

capelinha de melão

é de São João.

é de cravo é de rosa

é de manjericão (CASCUDO, 2001, p. 111)

A cerimônia de banho varia de uma região para a outra. No Mato Grosso, não

são as pessoas que se banham, mas as imagens do santo. Na região Norte, o banho de

cheiro faz parte das tradições juninas, com a preparação do banho se iniciando alguns dias

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antes da festa. Trevos, ervas e cipós são pisados, raízes e paus são ralados dentro de uma

bacia com água e depois guardados em garrafas até o momento do banho. Chegando a hora

da cerimônia, os devotos lavam e esfregam o corpo com esses ingredientes. Acredita-se que

o banho tenha o poder mágico de trazer muita felicidade.

As músicas e as danças, assim como as comidas e bebidas, variam de região

para região. No Amazonas, por exemplo, dança-se a polca, schottisch, quadrilha, valsa; no

Pará, um grupo de foliões mascarados, acompanhados de uma banda de música, percorre as

ruas; no Nordeste, o forró, o coco, sambas e marchas (ARAÚJO, 1973). Em torno das

fogueiras, é possível se tirar a sorte e prever o futuro. Grupos de adultos e crianças de

ambos os sexos, de mãos dadas, brincam saltando a fogueira e cantando uma música “que

põe no corpo da gente uma vontade insopitável de dançar, de bailar, pois seu ritmo é

convidativo” (ARAÚJO, 1973, p. 19). No nordeste, o grupo de foliões que acompanha a

procissão de São João é a Capela, no Sul é o Rancho.

Além do caráter comemorativo e votivo, as festas de São João desempenham

um importante papel nas relações sociais da comunidade através da relação de compadrio,

isto é, um ato de reforço aos laços de solidariedade, uma forma de demonstrar cordialidade

através da escolha do compadre. “Verdadeira instituição, paralela à da família, chegando às

vezes a entrelaçar um número bem maior de membros através do parentesco pelo coração

do que pelo sangue” (ARAÚJO, 1973, p. 21).

Desde o período colonial até meados do século XX, a maioria da população vivia

no campo (até 1950, 70% da população brasileira vivia na zona rural; hoje, mais

de 70% vive nas cidades). As relações familiares eram complementadas pelo

compadrio, que serviam para integrar outras pessoas à família, estreitando os

laços entre vizinhos e patrões e empregados. Até mesmo os escravos poderiam

ser apadrinhados pelos senhores de terra (RANGEL, 2002, p. 22).

Havia duas formas principais de tornar-se compadre e comadre, padrinho e

madrinha: uma, pelo batismo; a outra, por meio da fogueira. Por esse motivo, ainda hoje se

diz, principalmente no Nordeste que há dois tipos de compadre: o da fogueira e o da igreja.

Nas festas de São João, principalmente os homens, fazem um juramento e a seguir, saltam

em cruz três vezes a fogueira. “Ao saltar a fogueira revivem, sem saber, um ritual de

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origem celta” (ARAÚJO, 1973, p. 21). Os laços de compadrio eram muito importantes,

pois os padrinhos podiam substituir os pais na ausência ou na morte destes.

Hoje as festas juninas possuem uma identidade própria. De acordo com a região

do país, variam os tipos de dança, indumentária e comida. A tônica é a fogueira, o

foguetório, o milho, o mastro e as rezas dos santos. No nordeste sertanejo, o São João é

comemorado nos sítios, nas paróquias, nos arraiais, nas casas e nas cidades. Caruaru, em

Pernambuco, e Campina Grande na Paraíba, são as cidades que mais atraem gente curiosa

em conhecer as maiores festas de São João do mundo. Caruaru criou uma cidade

cenográfica, a Vila Forró, que é a réplica de uma cidade típica do sertão, com casas

coloridas de arquitetura simples habitadas pela rainha do milho, pela rezadeira, pela

rendeira e pela parteira. Ali há também correio, posto bancário, delegacia, igreja,

restaurante, etc. Campina Grande construiu um Forródromo que recebe todos os anos

milhões de pessoas. Acontecem apresentações de forró pé de serra, quadrilhas, cantores,

bandas e desfiles de jegues. O público participa de jogos e brincadeiras e saboreia as

comidas típicas vendidas nas barracas.

No Sudeste, a tradição caipira caracteriza-se pelas festas realizadas em terreiros

rurais, onde estão presentes os elementos típicos dos três santos de junho – Santo Antônio,

São Pedro e São João. Mas elas também se espalharam pelas cidades e hoje as festas

juninas acontecem, principalmente, em escolas, clubes e bairros.

Os jogos também fazem parte das atividades que acontecem nas festas de junho

e podem ser classificados como jogos de barraca e jogos de terreiro. Destes, poucas

mudanças foram verificadas. Podem-se citar alguns exemplos de jogos que permanecem até

hoje nas festas que acontecem nas áreas urbanas como: corrida de saci, corrida de três pés,

ovo na colher, catar amendoim. O jogo Pau de Sebo, talvez seja o mais popular, porém não

é visto com frequência nas festas juninas em áreas urbanas. Os jogos de barraca, também

não se modificaram e são muito comuns em festas juninas e quermesses, tais como: acertar

o alvo, jogo de argolas, pescaria, tiro ao alvo e toca do coelho.

4.1.4 Simbologia

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A festa de São João, assim como, outras festas de caráter popular, com origem

desde os povos da Antiguidade, possuem uma gama enorme de símbolos que de certa

forma moldam os valores de uma sociedade e se mantiveram presentes através dos anos.

Conhecendo um pouco mais a fundo sobre as festas de São João, foi possível, junto à

classe, elencar diversos símbolos da festa que de certo modo já eram conhecidos pelos

nomes através de canções, imagens e da própria festa do colégio, porém o seu significado

tradicional era desconhecido para a totalidade dos alunos.

a) O mastro

O mastro é símbolo da fecundação vegetal. No topo do mastro fica a bandeira

do santo padroeiro da festa, símbolo de sua presença durante a festividade. A crença

popular é de que o mastro tem o poder de sinalizar, dependendo do lado para onde virar a

bandeira que está em seu topo, muita prosperidade ou morte. A preparação do mastro, até a

ocasião do seu erguimento, é parte essencial das festas em homenagem aos santos juninos,

principalmente São João. O mastro recebe um tratamento especial desde a escolha da

madeira. O tronco da árvore deve ser o mais reto possível e deve ser cortado em uma sexta-

feira de Lua Minguante por três pessoas, que antes de derrubá-lo, devem rezar o Pai Nosso.

No momento em que a árvore é derrubada e cai no chão, esses homens, em sinal de

respeito, devem tirar o chapéu e evitar cuspir naquele local (RANGEL, 2002). Luís da

Câmara Cascudo, em seu Dicionário do folclore brasileiro, explica detalhadamente a

simbologia do mastro e sua relação de sincretismo entre o culto pagão e a homenagem ao

santo.

O Mastro de São João é erguido diante da igreja com música, canto e foguetes ao

iniciar-se a festividade votiva [...] Sobrevive o costume de levantar uma árvore

pelos três santos de junho e pendurar-lhe frutos, flores e enfeites de papel ao som dos cantos [...] A intenção proclamada é que a terra dará melhores e mais

abundantes frutos [...] Essas árvores e mastros votivos são reminiscências dos

cultos agrários, homenagens propiciatórias às forças vivas da fecundação das

sementes [...] Entre os indígenas do Brasil colonial havia tradição semelhante, de

acordo com Claude d’Abbeville88 em História da missão dos Padres Capuchinhos

na Ilha do Maranhão. Sempre que o mastro estiver com oferendas, frutos, flores e

fitas, reviverá um vestígio do culto da vegetação (CASCUDO, 2001, p. 371, 372).

88 tradução de Sérgio Milliet, Martins, São Paulo, 1945

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b) Fogueira, balões e fogos de artifício

O brilho da fogueira, o colorido dos balões e das bandeiras, a variedade de

cores e sons dos fogos de artifício ou, como dizem, o foguetório, fazem da festa de São

João num ritual de dança e alegria. A fogueira é acesa depois do por do sol. Pode ser antes

ou depois da reza, mas nunca após a meia noite. Geralmente é o dono da casa que acende a

fogueira e a sua armação varia de lugar para lugar; pode ser quadrada, piramidal, cônica ou

empilhada. A fogueira mais alta dá prestígio ao armador (ARAÚJO, 1973). É comum

acender uma fogueira à porta de cada casa para lembrar a fogueira que Santa Isabel

acendeu para avisar Nossa Senhora do nascimento do seu filho (RANGEL, 2002). “Junto às

fogueiras, soltam os balões que sobem levando um recado para o santo, por isso é bom

fazer um pedido quando está subindo. Caso se queime, o pedido não será atendido”

(ARAÚJO, 1973, p. 20). Os fogos de artifício explodem por todo o território nacional em

noite de São João. “Este apelo da arqueocivilização, do paganismo, é reforçado pelo ritmo

da vida agrária, embora haja desencontro de estações” (ARAÚJO, 1973, p. 20).

c) Saltar fogueira

A prática de saltar fogueira é um ritual que atende as práticas pagãs, religiosas e

superstições. Desde tempos muito remotos, as populações do campo, ao festejar a

proximidade das colheitas, “faziam os sacrifícios para afastar os demônios da esterilidade,

as pestes dos cereais, as estiagens, etc.” (CASCUDO, 2001, p. 298). Toda a Europa

conheceu essa tradição de acender fogueiras - as danças ao redor do fogo, os saltos sobre as

chamas, todas as alegrias do convívio e dos anúncios de meses abundantes-. Os cultos

agrícolas, na Europa, incluíam centenas de cerimônias das fogueiras votivas e festas

propiciatórias em junho-julho. Na península Ibérica, o culto a São João é um dos mais

conhecidos e populares. Esta forma de devoção foi trazida ao Brasil pelos portugueses.

Segundo Fernão Cardim, os indígenas ficaram seduzidos de imediato, conforme relato de

1583:

Três festas celebram estes índios, com grande alegria, aplauso e gosto particular. A primeira é a das fogueiras de São João, porque suas aldeias ardem em fogos, e

para saltarem as fogueiras, não os estorva a roupa, ainda que algumas vezes

chamusquem o couro (CASCUDO, 2001, p. 299).

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Ainda, segundo o Dicionário do folclore brasileiro, o estudioso do folclore da

região norte-mineira do vale do rio São Francisco, Saul Alves Martins, diz que há uma

persistência religiosa, ligada à fogueira joanina: “saltar fogueira, cerimônia religiosa

celebrada pelo caipira-barranqueiro, na noite de 23 de junho, e que consiste em rodar a

fogueira de São João toda a família sob a direção do chefe, suplicando favores ao santo”

(CASCUDO, 2001, p. 613).

Há também situações onde saltar a fogueira está relacionada a adivinhações e

previsões de união entre pessoas.

Pular fogueira na noite de São João é um ato que costumam praticar os

pretendentes a namorado, afilhado, compadre e até marido e mulher. Mas ao

saltar, o interessado deve dizer uns versinhos: São João disse, São João

confirmou. Que você haverá de ser meu [...] que Jesus confirmou (CASCUDO,

2001, p. 613).

d) adivinhações

São João é festejado com muita alegria e carrega a figura de um deus amável e

dionisíaco, com farta alimentação, músicas, danças, bebidas. A noite em que se comemora

o seu dia é marcada por uma série de adivinhações sobre os mais variados temas como por

exemplo: adivinhações para casamento, prognóstico para o futuro, anúncios de morte.

O Barão de Studart reuniu uma série de adivinhações feitas na noite de São

João. Entre elas,

1) Em noite de São João, passa-se um ramo de manjericão na fogueira e atira-se

sobre o telhado; se na manhã seguinte o manjericão ainda está verde, o casamento é com moço e se murcha, é com velho [...]

2) [...] Em noite de São João, duas agulhas postas numa bacia d’água indicam

casamento se as agulhas se juntarem (CASCUDO, 2001, p. 298-299).

Segundo Luís Câmara Cascudo, “a ligação do santo com os cultos agrários,

visível pela insistência no desabrochar das flores, reverdecimento das folhas, acresce a ideia

de matrimônio, de união carnal” (CASCUDO, 2001, p. 300). O “enverdecimento” vegetal,

desde a época de Cristo, ocorre sempre como símbolo da existência humana. Nas árvores

que representam os heróis, nos contos populares, quando há o “emurchecimento”, significa

que o representado está morto ou em perigo de morte (CASCUDO, 2001).

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e) Capela

É o nome que se dá aos grupos de foliões dos festejos populares são-joanescos,

ornados de capelas de folhagens, a caminho do milagroso banho e, de volta, em animadoras

passeatas. Os seus cânticos obedecem sempre a estes tradicionais versos de estribilho

(CASCUDO, 2001):

Capelinha de melão

É de São João

É de cravo, é de rosa

É de manjericão

São João está dormindo

Não me ouve não

Acordai, acordai,

Acordai João.

O nome comum e mais popular no Sul do Brasil é rancho, significando “grupo

festivo com instrumentos musicais. Esses ranchos percorriam as residências amigas,

cantando e sendo recepcionados com refeições típicas” (CASCUDO, 2001, p 111).

4.1.5 Música

Falar sobre a música brasileira é falar sobre uma música híbrida, que vem se

misturando no decorrer do tempo, desde os tempos da colonização. Segundo Araújo, em

Cultura Popular Brasileira, a música e o canto tiveram um papel fundamental dentro da

obra catequética no Brasil, cujo povoamento se deu na época do barroco, época das grandes

festas da Igreja, “razão pela qual as festas de grande pompa foram aqui usadas para se

impor aos povos do Novo Mundo à religião católica romana” (ARAÚJO, 1973, p. 117).

A utilização da música como instrumento de dominação de uma nova cultura já

era uma prática comum na Europa, antes de 1500. Como diz Araújo.

Na Europa a Igreja já havia obtido grandes vitórias sobre a arqueocivilização, sobre o folclore pagão, substituindo-o, transformando suas datas de festas

relacionadas com solstícios pelas do hagiológico católico romano, batizando-as

com nomes cristãos (ARAÚJO, 1973, p. 117).

No Brasil, a Igreja Católica Romana destruiu o folclore ameríndio e o substitui

pelo folclore católico, o que, nas palavras de Araújo, seria um folclore artificial. Os Jesuítas

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tinham um interesse particular pelas gerações mais novas. Os colégios foram criados

basicamente com o intuito de tirar as crianças da convivência com os pajés, com os mais

velhos e desse modo excluí-las da civilização tradicional ameríndia. Para atraí-las, os

jesuítas lançaram mão da música e do canto (ARAÚJO, 1973).

No que diz respeito às músicas tradicionais juninas, Rangel cita que as músicas

típicas das festas juninas podem ser apenas cantadas ou também dançadas. Até hoje muitas

são compostas, especialmente pelos nordestinos, e formam o repertório de forró que se

transformou em baile realizado não apenas no período junino. Na região Sudeste, as

músicas juninas mais conhecidas são:

- cai, cai, balão;

- capelinha de melão (João de Barro/Adalberto Ribeiro);

- Pedro, Antônio e João (Benedito Lacerda/Oswaldo Santiago);

- Isto é lá com Santo Antônio (Lamartine Babo);

- Chegou a hora da fogueira (Lamartine Babo);

- Sonho de Papel (Carlos Braga/Alberto Ribeiro) (RANGEL, 2002).

Atualmente, a festa junina nas áreas urbanas, tem se descaracterizado em

decorrência de uma série de fatores, como por exemplo: o perigo dos balões e fogos de

artifício, assim como a dificuldade para armar grandes fogueiras, uma vez que as festas

juninas, nas cidades, são realizadas principalmente em escolas, clubes e paróquias das

igrejas. Além disso, pode-se notar uma mudança nas músicas executadas: além de

geralmente serem mecânicas e não ao vivo, são utilizadas as músicas que estão tocando nas

mídias em geral como a música sertaneja, o funk, etc., e as tradicionais músicas juninas,

quando executadas, aparecem modificadas, com arranjos e instrumentação que não o

tradicional. Segundo José Jorge de Carvalho em seu texto “O lugar da cultura tradicional na

sociedade moderna”, deixa claro a sua preocupação com a desaparição do folclore.

[...] provocada e acelerada cada dia pela industrialização e pelo desenvolvimento

dos meios modernos de comunicação. O perigo principal da sua desaparição seria

a perda de identidade dos povos americanos na medida em que o folclore é definido como elemento básico constitutivo da cultura de nossos povos

(CARVALHO, 1992, p. 24).

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Araújo levanta outra questão importante no que diz respeito às transformações

encontradas nas festas juninas nas cidades e se coloca muito bem sobre esta questão quando

diz que:

Nas áreas rurais brasileiras a festa de São João “se apresenta com as mesmas

características, porém, na cidade grande há um anacronismo, há um falseamento,

um arremedo grotesco da alegria sadia que pervade o sertão, por isso os clubes se

enchem de imitadores fantasiados de caipira. Há porém uma razão sociológica

para que nas grandes cidades urbes se apresentem assim fantasiados na festa

joanina – é que esta festa tem a imantação telúrica, pagã, que na cidade atrai o

Carnaval (ARAÚJO, 1973, p. 20).

4.2 A festa de São João na sala de aula

4.2.1. Procedimentos metodológicos

O projeto Festa de São João consistiu na composição de uma peça musical tonal

associada à construção de uma paisagem sonora relacionada ao tema, e envolveu um grupo

de 28 crianças com faixa etária entre seis e nove anos. Desse grupo, dezesseis eram alunos

do 3º ano B do Ensino Fundamental I do Colégio Educap de Campinas, que tinha como um

dos conteúdos curriculares o estudo da flauta doce soprano. Os outros doze alunos

frequentavam o período integral na mesma instituição de ensino. Estes alunos do período

integral, além das aulas regulares de educação musical em seus respectivos anos, tinham

uma aula a mais por semana, sendo esta mais específica para desenvolvimento de projetos

na área de música. Tanto os alunos do 3º ano quanto os alunos do período integral,

participaram de todas as etapas do projeto, porém, ao 3º ano foi dada maior ênfase para o

estudo da flauta doce, xilofone, metalofone e percussão. A eles cabia a responsabilidade de

formar o “rancho” ou “capela” da festa e interpretarem a peça musical, enquanto que os

alunos do período integral tinham como função criar as paisagens sonoras que seriam

inseridas na composição. Fora essas diferenças, as outras etapas do projeto – tais como a

pesquisa sobre festas populares e em particular a de São João, assim como a aprendizagem

com editores de áudio - foram as mesmas para os dois grupos. O projeto aconteceu no

período de abril a junho de 2013, totalizando 12 aulas para a turma do período integral e 13

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aulas para os alunos do 3º ano. O projeto foi dividido em três etapas, sendo que todas elas

foram desenvolvidas dentro da sala de aula.

A primeira etapa constituiu-se, para o Período Integral, em “abrir os ouvidos”

para os sons do ambiente e perceber os contrastes que ocorrem entre ambientes distintos,

realizar exercícios de criação de sons para uma canção e ouvir músicas características de

festas populares brasileiras. Optamos por registros de campo, isto é, ouvir a música sendo

executada em meio aos ruídos da festa89

. Para o 3º ano, a primeira etapa envolveu o estudo

da flauta doce soprano, metalofone, xilofone e percussões diversas entre elas, o cajon.

Iniciamos com uma peça indígena constituída de uma escala pentatônica, o que tornou fácil

para os alunos a memorização das teclas e posições na flauta doce, além da facilidade

encontrada ao “tirar a música de ouvido”. Em seguida, participamos de experiências

sonoras com de peças características de festas populares, como o frevo e o baião. Como

esses alunos eram iniciantes nos instrumentos citados acima, fiz um arranjo de Vassourinha

com poucas notas para a flauta doce e marimbas no sentido de garantir um fluxo musical e

com isso atrair a atenção dos alunos. A mim cabia a função de especialista que, segundo

Turino, é o músico mais experiente que garante o fluxo musical tocando as partes mais

difíceis da peça. Conseguimos, dessa forma, articular um diálogo musical, através do qual

os alunos respondiam o fraseado que eu executava. Esta primeira etapa, para o período

integral, ocorreu no mês de abril, totalizando quatro encontros, e, para o 3º ano, nas quatro

primeiras aulas de abril (o mês de abril teve cinco terças feiras – dia das aulas do 3º ano).

A segunda etapa envolveu o estudo etnográfico das festas de São João que

acontecem pelo país. O estudo se deu através de aulas expositivas ministradas por mim,

pesquisas de áudio e imagens na internet e depoimentos meus e dos alunos que tiveram

contato com alguma festa junina. Escolhi a canção Noite de São João, de Kleiton e Kledir

para iniciarmos as aulas da segunda etapa. Trata-se de uma canção descritiva a respeito do

tema que nos remeteu a vários elementos e símbolos que vínhamos trabalhando

89

Como não tínhamos a possibilidade de nos deslocarmos até onde aconteciam as festas, a nossa pesquisa de campo se deu através de gravações de áudio ao vivo e vídeos coletados na internet coletados por amadores que frequentaram tais festas. Discutimos sobre o significado do que seria uma pesquisa de campo e entre o material apresentado, assistimos um projeto do grupo A Barca, que refizeram o trajeto de Villa-Lobos em sua pesquisa pelo Brasil (O Turista Aprendiz); vimos também um pouco do trabalho de Mário de Andrade em Danças Dramáticas do Brasil.

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teoricamente. Todos os dias, começávamos a aula tocando a canção junto com o playback.

Paralelamente à interpretação da canção e o estudo etnográfico, o Período Integral, à

medida que ia tomando conhecimento do assunto, ia construindo a paisagem sonora da

festa. Já o 3º ano, iniciou o estudo da peça instrumental “Festa de São João” – peça

composta por mim com elementos rítmicos e melódicos já familiares aos alunos. A segunda

etapa ocorreu durante o mês de maio para o Período Integral e a última aula do mês de abril

e as aulas de maio para o 3º ano.

A terceira etapa, constituída de quatro encontros semanais para as duas turmas,

ocorreu no mês de junho – a festa junina do colégio aconteceu no dia 23 de junho – e foram

dedicadas à aprendizagem dos editores audacity e sonar e que ocorreram na própria sala de

aula através da utilização de um notebook, um Datashow e uma caixa de som amplificada.

Realizamos também regravações de alguns áudios, reorganização do palco para gravação

da peça instrumental e, como ponto culminante do projeto, a escuta da peça Festa de São

João.

4.2.2 Memorial descritivo

4.2.2.1 1ª etapa: escalas e ritmos

3º ano

Esta etapa do projeto ocorreu no mês de abril de 2013, totalizando cinco

encontros. As aulas eram de 50 minutos e, como fazia parte do currículo regular desses

alunos, o estudo da flauta-doce e da notação musical, ficou decidido que o terceiro ano

seria, dentro da festa de São João, o “rancho” ou “capela”, isto é, um grupo festivo com

instrumentos musicais; isto porque, esses alunos já haviam iniciado o estudo da flauta doce

desde o início do ano e estavam muito motivados com a aquisição do novo instrumento. Já

aqueles alunos da classe que não estavam muito interessados no estudo da flauta-doce,

optaram pelos xilofones, metalofones e instrumentos de percussão diversos, entre eles, o

mais cobiçado, o Cajon. Em todas as aulas, no início, tocávamos um pouco de flauta doce.

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Em algumas aulas, dedicávamos mais tempo e em outras, menos; dependia do ânimo geral

da classe. Geralmente, eu tocava algum acompanhamento no teclado que tínhamos na sala

de aula e os alunos, individualmente, improvisavam com as posições que conheciam – sol3,

lá3 e sí3 – ou em grupo de três ou quatro alunos, executavam alguma melodia que eu

escrevia na lousa. Havia momentos em que os alunos compunham alguma melodia e todos

tocávamos, mas em grupos pequenos, devido ao som estridente resultante de todas as

flautas tocando juntas. No decorrer do mês, iniciamos as posições de dó4 e ré4.

1º encontro

O primeiro encontro foi dedicado, quase que totalmente, à experimentação dos

vários instrumentos que tínhamos em mãos na sala de aula. Os alunos exploraram os

conceitos de altura (grave, médio e agudo) e duração do som utilizando o xilofone,

metalofone, agogô, Cajon e instrumentos combinados com alturas diferentes como, por

exemplo, tambor e pandeiro, caxixi produzindo dois sons, par de maracas, alguns tubos e

papelão de tamanhos diferentes, etc. O objetivo desta etapa era que os alunos adquirissem

familiaridade com alguns instrumentos; desenvolvessem a capacidade de concentração e

memória; adquirissem noções práticas de fraseado, compasso e formassem uma opinião

sobre o sentido e a necessidade do uso de uma notação musical. Foi trabalhada também a

improvisação: através do uso do teclado em modo fingered, os alunos se revezavam no

instrumento, faziam uma base rítmico-harmônica, que favorecia um fluxo musical

constante e inspirava os alunos a improvisar melodias, principalmente nos metalofones e

xilofones. Foi-lhes passada a ideia de “cifra” musical, mas de uma maneira bem

simplificada, em que o aluno, visualizava a letra “C”, por exemplo, e localizava a nota dó

no lado esquerdo do teclado. E assim o fizemos com a “cifra” para “F” e para “G”.

Escolhíamos um ritmo qualquer e, desse modo, criávamos uma sequência rítmico-

harmônica em compasso binário, ternário e quaternário. Com a flauta-doce, os alunos

tocavam apenas as notas sol, lá e si, mas nem por isso deixavam de exercitar o improviso.

Fizemos uso de uma partitura para aqueles alunos que não se sentiam à vontade para

improvisar, mas que gostariam de tocar e, assim, participar do conjunto. Eram círculos

vazios ou preenchidos e dispostos em alturas diferentes como mostra a figura abaixo.

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Som curto

Som longo

Figura 45 - notação musical para a prática de improvisação.

Isto foi suficiente para que toda a classe se sentisse à vontade para participar da

atividade; cada aluno teve a liberdade de escolher o instrumento ou os instrumentos que

demonstrasse interesse. O problema maior foi que todos queriam tocar o teclado. Para que

isso ocorresse de forma organizada foi preciso criar uma fila, ficando da seguinte forma: os

alunos, um de cada vez, se revezavam no teclado para harmonizar. Enquanto isso, os

outros, que não estavam tocando o teclado, improvisavam cada qual em seu instrumento.

Deu certo e aula foi bastante participativa.

2º encontro:

No encontro anterior, além dos exercícios de improvisação, muitos alunos, que

já frequentam aulas de instrumentos em escolas de música, ou aqueles que têm

instrumentistas na família, apresentaram canções, principalmente folclóricas, como “cai, cai

balão”, “marcha soldado”, “o partorzinho” e o tema do 4º movimento da nona sinfonia de

Beethoven – peça muito utilizada pelos alunos que iniciam o estudo em algum instrumento

musical, como a flauta-doce ou teclado.

Dando continuidade à pesquisa de timbres através da exploração dos

instrumentos que tínhamos em sala de aula e à prática da técnica instrumental, da leitura e

de improvisação, neste segundo encontro, optei por apresentar aos alunos uma música

indígena. Pensei em explorar este tipo de música porque foge dos padrões de música

trabalhada em sala de aula. Ela contém elementos que, para o projeto, seriam essenciais.

Segundo Berenice Almeida e Magda Pucci no livro Outras Terra, Outros Sons:

A música indígena contém em sua estrutura, a presença de um pulso marcado

sistematicamente, geralmente realizado com os pés e maracás, dando um caráter

hipnótico à música;

A forma cíclica: melodias que se repetem durante muito tempo, criando um estado

de transe durante os rituais;

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O modalismo: as melodias não possuem a referência tonal-harmônico característica

da música ocidental europeia (ALMEIDA & PUCCI, 2002, p. 53).

Ao trabalhar com um tipo de música não muito comum em sala de aula, nem

nos veículos de comunicação, seria possível instigar os alunos à curiosidade pelo novo,

pelo diferente. Em se tratando de uma música que utiliza o corpo para ser interpretada,

serviria como um laboratório que nos colocaria dentro de um ambiente de sons, ruídos e

movimento e não somente a execução de um instrumento musical.

Além disso, a música dos índios, ainda segundo Berenice Almeida, “é

totalmente integrada à vida em sociedade, fazendo parte de todos os rituais, sejam eles uma

colheita, um rito de iniciação ou de cura [...]” (ALMEIDA & PUCCI, 2002, p. 52). O que

estava procurando passar aos alunos era a ideia de uma composição que não contivesse

apenas elementos exclusivamente musicais, mas uma música que carregassem consigo toda

uma simbologia, um modo de vida, e que pedisse uma postura mais corporal, assim como

uma predisposição para produzir sons do cotidiano e ruídos. Tínhamos em mãos chocalhos

e flautas – instrumentos muito utilizados neste tipo de música. Como exercício de corpo, a

música indígena funcionou muito bem uma vez que a percussão tem a função não só de

marcar o ritmo, mas determinar alguns passos que podem ser feitos em um grande círculo.

Trabalhamos com caxixis, chocalhos e cabo de vassoura e criamos algumas danças, sempre

feitas em círculo. É bom destacar aqui, que as danças indígenas,

[...] possuem um sentido ritualístico que as diferencia completamente daquilo que

entendemos como coreografia de balé ou passos de dança de salão. Em geral, as

danças dos índios celebram momentos importantes da comunidade, como a

colheita, a caça, os rituais de passagem [...] Em geral, as danças possuem um caráter coletivo e circular e são binárias (ALMEIDA & PUCCI, 2002, p. 57).

Por se tratar de povos da floresta, os alunos se animaram em agregar grunhidos

e sons característicos da flora e da fauna enquanto cantávamos e dançávamos. Falamos

sobre rituais, instrumentos, localização geográfica e o cenário onde acontecia esta música.

A música escolhida foi Nhamandu, uma canção para o sol, cantada pelas

crianças Guarani. Escolhi esta peça porque, das canções apresentadas no Cd que

acompanha o livro, esta me pareceu ser a de mais fácil assimilação devido ao seu perfil

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rítmico-melódico que estava mais próximo das melodias que nós conhecíamos. E também,

além dos instrumentos tipicamente indígenas, havia o violão sendo tocado em cordas soltas

e me pareceu uma ótima oportunidade para introduzir este instrumento no conjunto e gerar

uma discussão entre os alunos: se o violão, por estar sendo usado pelos índios, poderia ser

considerado um instrumento indígena. Os alunos chegaram à conclusão de que isso não era

possível; tratava-se de um sincretismo que ocorreu a partir do contato com o homem

branco, assim como o que viríamos a conversar quando falássemos sobre a influência dos

portugueses ao introduzir entre os índios a festa de São João.

Sobre a estrutura de Nhamandu, a música era composta de cinco notas (ré3 –

sol3 – lá3 – si3 – ré4); os alunos aprenderam a melodia utilizando os xilofones, metalofones

e a flauta doce (os alunos que conheciam apenas sol – lá e si, agora puderam experimentar

outras posições). Aproveitei que a classe estava envolvida com a nova música e escrevi as

notas na partitura tradicional, como a conhecemos – pauta com cinco linhas e clave de sol -;

ouvindo a gravação, pudemos perceber que os maracás marcavam o pulso enquanto a voz

(rãn) era para ser cantada no contratempo. A música podia ser sentida em 2/4 ou ¾ -

optamos por interpretá-la em compasso binário, pois desse modo, a dança que estávamos

fazendo acontecia com mais naturalidade. Escrevi na lousa as notas que compunham a

melodia e alguns alunos se sentiram mais à vontade lendo, outros tocando “de ouvido”.

Terminamos a atividade com todos os alunos executando alguma função dentro

da música, seja tocando flauta, marimbas, percussão, cantando, dançando ou criando efeitos

sonoros com o corpo. Alguns alunos insistiram que era fundamental o som da floresta para

dar “um clima” na música.

3º encontro

Assim como os índios costumam celebrar momentos importantes de suas vidas

nas aldeias, os habitantes, principalmente das áreas rurais do Brasil, mas no caso de

algumas festas, também os habitantes da área urbana, mantêm vivas as suas tradições e os

seus costumes. Iniciamos o terceiro encontro destacando uma festa popular do Brasil muito

conhecida de todos: o carnaval. Perguntei aos alunos se conheciam o carnaval e a maioria

deles já tinha visto pela televisão o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Alguns

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também conheciam os bailes de clubes que aconteciam na cidade de Campinas. Propus aos

alunos que fizéssemos uma rápida pesquisa sobre o frevo e a festa de carnaval de Olinda.

Ficamos sabendo que o frevo se tratava de uma dança e música do Nordeste brasileiro. A

parte dançada é folclórica, mas a música, geralmente tem autor identificado, embora

existam frevos folclóricos criados pela orquestra típica do Nordeste, que é chamada de

zabumba. A banda de frevos, no Recife da década de 50, apresentava-se com instrumentos

de palheta: requinta90

, dois clarinetes, dois saxofones; instrumentos de bocal: de quatro a

cinco trompetes, de sete a dez trombones, quatro tubas; e instrumentos de percussão: caixa,

bumbo e pratos. O frevo pode ser instrumental ou vocal. É o gênero musical característico

do carnaval de Pernambuco.

Figura 48 - clarinete Figura 49 – saxofones

Figura 50 - trompete Figura 51 - trombone de pisto Figura 52 - trombone de vara

Figura 53 - tuba Figura 54 - sousafone

90 Instrumento de sopro que corresponde a uma clarineta em Mi bemol.

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Figura 55 - caixa Figura 56 - bumbo Figura 57 – pratos

Fonte: imagens extraídas de sites genéricos da internet a partir de pesquisa no Google Images.

A partir dessas informações, iniciamos um trabalho de apreciação musical para

que tivéssemos mais referências a respeito do assunto tratado. Utilizamos como fonte de

pesquisa audiovisual alguns vídeos capturados do youtube. Para a captura destes vídeos

lançamos mão do software aTubeCacher91

e dessa forma foi possível fazer uma edição do

material baixado para que não perdêssemos tempo com o carregamento do vídeo na internet

ou até mesmo, nos casos em que os vídeos fossem muito longos, a perda de tempo causada

pela procura dos trechos mais importantes.

O primeiro vídeo que assistimos foi com a Banda de Música do 2º BIL do

Exército Brasileiro que nos permitiu ver e ouvir os instrumentos de sopro que compõem

uma banda de frevos do Recife citados anteriormente. Durante a nossa pesquisa, pudemos

perceber que o frevo tinha uma variação muito grande, tanto com relação à música e à

dança como também à instrumentação e disposição dos músicos dependendo do espaço

onde é realizado. Para ilustrar esta informação, assistimos uma apresentação didática da

Spok Frevo Orquestra92

onde o maestro Spock apresentava para uma plateia as várias

modalidades de frevo com exemplos executados pelos músicos da sua orquestra. Disse o

maestro que, por volta de 1930, o estudioso, pianista, teatrólogo e compositor Waldemar de

91 software livre que permite a captura de vídeos de sites sociais como o youtube, myspace. Suporta um

grande número de formatos e pode ser baixado livremente na internet. É 100% freeware. http://atube-

catcher.dsnetwb.com/video/ 92 A Spok Frevo Orquestra é uma orquestra de palco com influências jazzísticas que busca nas raízes

folclóricas do frevo de rua que, segundo o seu maestro e arranjador Spok, servem de inspiração para

composições que envolvem improvisação.

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Oliveira classificou o frevo em três modalidades. Segue abaixo trechos extraídos da fala do

maestro Spock:

a) Frevo de rua: é aquele executado unicamente pela orquestra. É um frevo

exclusivamente instrumental. Esta categoria encontra-se subdividida em:

1) frevo coqueiro: frevo instrumental com destaque para trompetes e

trombones. Por tocarem notas muito agudas, levam o nome de coqueiro.

Exemplo de um frevo coqueiro: Relembrando o Norte, de Severino

Araújo93

.

2) frevo ventania: destaque para as palhetas da orquestra (saxofones). Dizem

que quando essa melodia acontece, as palhetas estão num verdadeiro

temporal. Exemplo de um frevo ventania: Mexe com tudo, de mestre

Levino Ferreira94

.

3) frevo abafo: quando vem uma orquestra puxando um clube em uma rua ou

ladeira e encontra outra orquestra, o maestro pede para que os músicos

puxem um frevo abafo com a finalidade de abafar a outra orquestra.

Algumas de suas características são: um frevo de melodia simples, não

exige virtuosismo, as notas, geralmente são no registro médio para não

cansar o executante e a afinação deixa de ter importância. É um frevo para

ser tocado em uma dinâmica muito forte. Exemplo de um frevo abafo:

Cabelo de fogo, de Maestro Nunes95

.

b) Frevo canção: é executado pela mesma orquestra do frevo de rua, inclusive com os

mesmos arranjos, a mesma pressão (sic), porém tem um cantor ou uma cantora à

frente. Exemplo de um frevo canção: Canção (frevo) nº 2, de Antônio Maria e

interpretada na voz de Almir Rouche96

.

c) Frevo de Bloco: é aquele executado por uma orquestra de pau e corda, no caso

violões, cavaquinhos, bandolins, flautas e é cantado por um coro feminino. No

exemplo que assistimos, o grupo era composto também por saxofones, trompetes e

93 http://www.youtube.com/watch?v=m4Xq7yC9zMg. 94

http://www.youtube.com/watch?v=WCSuKS-WQNc 95 http://www.youtube.com/watch?v=8ArcCmH2Sic&hd=1 96 http://www.youtube.com/watch?v=PsyEnYLmnUw#t=59&hd=1

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rabeca. Exemplo de um frevo de bloco: De chapéu de sol aberto, de Capiba

interpretado pelo bloco lírico Quero Mais97

.

Em seguida, assistimos a três vídeos com orquestras de frevo de rua, o Arrastão

2012 da T. C. Ceroula de Olinda98

, Orquestra de Frevo do Recife99

e 24º desfile dos

bonecos de Olinda100

. Foi possível ver a multidão participando da festa e alguns desfiles de

blocos com seus bonecos tradicionais. Dos três vídeos apresentados, em dois deles, o frevo

que estava sendo executado era Vassourinhas, de autoria de Matias da Rocha e Joana

Batista Ramos101

.

Este encontro foi basicamente assistindo vídeos e conversando sobre o carnaval

de Olinda e o frevo pernambucano. No final, toquei na flauta doce o frevo Vassourinhas102

para os alunos com a perspectiva de montarmos, no encontro seguinte, uma orquestra de

frevo com os instrumentos que tínhamos à mão e ensaiarmos para executar o frevo

Vassourinhas. A preocupação dos alunos foi no sentido de não conseguirem tocar a melodia

da música, no que de imediato, lhes disse para não se preocuparem, pois escreveria um

arranjo mais fácil para eles e caberia a mim a responsabilidade de executar a melodia

principal.

4º encontro

Neste encontro, quando as crianças chegaram, a sala já estava preparada para o

ensaio da orquestra de frevos, com os instrumentos dispostos por naipes: xilofones,

metalofones, Cajon, caxixi e pandeiro. Iríamos começar a ensaiar Vassourinhas - um frevo

bastante rápido e de caráter muito bem humorado e que os alunos já conheciam do encontro

anterior – isto animou a classe. Vassourinhas é frevo que possui parte A e B. Criei, na

97 http://www.youtube.com/watch?v=5bkT6Gao0M4 98 Arrastão 2012 da T. C. Ceroula de Olinda. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=J0nQCMJRjfY>. Acesso em: 07/04/2013 99 Orquestra de frevo do Recife. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=U6pd1_PZMFo&hd=1>. Acesso em 07/04/2013 100 24º desfile dos bonecos de Olinda – carnaval 2011. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=l3MOIdVIJgA&hd=1>. Acesso em 08/04/2013 101 Este frevo foi composto em 1909 e vendido por 3 mil réis ao Clube Vassourinhas em 1910. É um frevo

representativo do carnaval de Pernambuco. 102 http://www.youtube.com/watch?v=ckAQ2SOWjqg

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flauta doce, frases musicais como respostas para a melodia principal103

. Este frevo permitia

estas respostas, pois a frase principal era de dois compassos e havia uma espera de outros

dois compassos e a resposta, em colcheias, se encaixava perfeitamente. Na primeira parte,

eram respostas rítmicas e na segunda parte, realizavam uma harmonização da melodia

através do uso de notas longas e que surtiam um efeito especial. As frases para flauta doce

foram divididas em duas vozes, ajudando a diminuir a estridência provocada pelo som de

muitas flautas tocando ao mesmo tempo. O fraseado era simples e previsível e era

composto basicamente de colcheias. A ideia não era criar um arranjo que exigisse muita

técnica dos executantes, mas que os animassem a continuar com o estudo da flauta doce.

Os metalofones e xilofones faziam parte da seção rítmica e tinham como função

tocar os acordes da composição. A figura rítmica utilizada foi a mínima. Foram escritas

notas e cifra, embora nem todos os alunos tocassem por leitura. A maioria deles preferiu

“sentir” a música e fazer as mudanças de acorde de acordo com o que estavam sentindo. O

mais importante era que os instrumentistas percebessem o ritmo harmônico da peça. Com

relação à percussão, seria muito difícil, para os alunos, tocarem o ritmo original do frevo e

desta forma, escrevi um ritmo em semínimas e colcheias para facilitar a execução.

A mim, coube o papel de especialista, que nas palavras de Turino, é o

encarregado de executar as partes mais difíceis da peça e assim, garantir o fluxo musical,

ficando sob minha responsabilidade, a melodia principal. Ora tocava a flauta doce e em

outros momentos, cantava a melodia e fazia o ritmo do frevo na caixa. Os alunos gostaram

muito deste instrumento e devido à grande demanda por tocá-lo, fizemos um revezamento

entre eles. O ritmo é difícil e não deu muito certo com a nossa orquestra de frevo, mas

valeu pela experiência e pela motivação que esta ação causou. Utilizando um teclado,

gravei um acompanhamento de frevo com o timbre de piano e dessa forma, foi possível

ensaiarmos com muito entusiasmo.

O resultado foi excelente, pois os alunos se sentiram “verdadeiros músicos”.

Executaram as flautas, marimbas e percussões. E mesmo tocando apenas células rítmicas,

como se tratavam de respostas à melodia principal ou acompanhamento, sentiram-se

executando a música como um todo, pois a melodia e o acompanhamento de piano

103 Ver partitura em anexo.

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garantiram o fluxo musical. A música foi compreendida e as flautas tinham um destaque

dentro da composição.

5º encontro

Este encontro foi o último referente ao estudo do frevo. Basicamente

repetimos a atividade do encontro anterior. O que houve de diferente foi que para este

encontro, a sala se encontrava vazia, com os instrumentos guardados nas estantes. Pedi aos

alunos que organizassem o espaço para o ensaio, o que foi feito sem nenhum problema,

pois todos estavam dispostos a ensaiar. Fizemos um rodízio dos instrumentos com exceção

da flauta doce, que era de uso pessoal. Apesar de ser disciplina obrigatória para o terceiro

ano, nem todos os alunos se interessavam pela flauta-doce e por isso, tocar este instrumento

não era uma obrigação. Os alunos tinham liberdade para tocar outros instrumentos. Houve

rodízio de alunos entre xilofones, metalofones e cajons. Alguns alunos, principalmente as

meninas, se interessaram por dançar o frevo e tiveram total liberdade para isso.

Foi com muito entusiasmo, por parte dos alunos, que encerramos o nosso 5º

encontro e que era uma preparação para a próxima etapa, isto é, a montagem da peça Festa

de São João. Senti que os alunos estavam abertos para novidades e curiosos por novos

temas e isto facilitaria muito o trabalho de composição, pois quando o aluno demonstra

interesse, basta o professor estar animado e incentivá-lo que o projeto terá sucesso. Essa era

a minha expectativa no momento.

4.2.2.2 1ª etapa: escuta dos ambientes

Período Integral

Esta primeira etapa do projeto ocorreu no mês de abril de 2013 e foi constituída

de quatro encontros com a duração de 50 minutos cada, os quais relato detalhadamente

abaixo.

1º encontro

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Falar sobre paisagem sonora com alunos que nunca passaram por uma

experiência deste tipo, e que talvez não estivessem acostumadas com atividades musicais

que trabalham com a criação, mas sem o recurso da notação musical ou da música tonal,

num primeiro momento, me pareceu inviável, pois poderia se tornar um processo

improdutivo: os alunos poderiam não entender o que estava sendo pedido. Desta forma,

optei por apresentar uma canção que sugerisse vários sons que poderiam ser realizados

durante a execução da peça. A canção escolhida foi “O Pato” de Vinícius de Moraes,

Toquinho e Paulo Soledade, gravado no disco A Arca de Noé, de 1980 – gravadora Philips.

A letra da canção sugere vários sons onomatopaicos, tanto de animais quanto de ações

como, por exemplo, cair, pular, levar coice, quebrar tigela, engasgar, etc. O exercício foi

proposto da seguinte maneira: enquanto eu interpretava a canção acompanhada pelo violão,

as crianças elaboravam eventos sonoros que eram colocados nos intervalos entre os versos,

sugerindo as ações que a letra da canção dizia. Dividimos a classe em grupos e cada grupo

fez a sua interpretação. Gravamos as várias versões e ouvimos em seguida. As crianças, no

início, sentiram-se um pouco presas, mas aos poucos foram se soltando e buscando novas

alternativas e testaram diversas possibilidades de trilha sonora; usaram instrumentos que

tínhamos à disposição na sala de aula e também lançaram mão de sons corporais.

A oficina de criação se mostrou eficaz, uma vez que os alunos se divertiram

bastante sem perder o foco da ação que era criar uma trilha sonora. Houve o envolvimento

de todos e ficou a sugestão para que eles continuassem com esta atividade durante a semana

procurando por outras canções que permitissem ou sugerissem a montagem de uma trilha

sonora.

2º encontro

Iniciamos o segundo encontro interpretando e montando a trilha sonora de

“Bate o Monjolo” – canção extraída do Cd Pandalelê, brinquedos cantados do Grupo

Palavra Cantada - e “Sabiá na gaiola” – canção de Hervê Cordovil que ficou conhecida na

voz de Carmélia Alves. Tanto uma como a outra eram canções já utilizadas em sala de aula.

As crianças se envolveram com a pesquisa de sonoridades e mostraram-se bem à vontade

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para desenvolver uma trilha sonora para as canções. Não houve intervenção de minha parte

e ao final da apresentação dos resultados partimos para uma nova atividade.

A nova atividade que propus foi no sentido de dirigirmos a nossa escuta para o

ambiente na qual estávamos imersos – os sons da escola. A sala de aula fica no terceiro

andar e possui três janelas bem amplas que estão voltadas para a copa das árvores (já é

cotidiano dos alunos, ficarem na janela esperando pelos pássaros que geralmente aparecem,

não sei se por coincidência ou não, mas isto acontece com mais frequência quando estamos

tocando flauta-doce. Lá embaixo fica a entrada do estacionamento, ao lado de um parque,

onde as crianças costumam brincar e, mais ao fundo, a quadra poliesportiva. Portanto, um

ambiente formado por uma grande variedade de sons.

Ouvimos atentamente os sons do ambiente e, em seguida, anotamos na lousa.

Partimos então para a análise desses sons e percebemos grandes contrastes entre eles, como

por exemplo, sons de pássaros, sons de automóveis, bolas de basquete, vento soprando nas

árvores, crianças brincando no parque, etc. Pudemos perceber várias características dos

sons que ouvíamos, tais como textura e profundidade; observamos de onde vinha o som, a

localização de sua fonte sonora, e tentamos calcular a sua distância.

Neste momento da aula, foi apresentada a ideia de contraste; pudemos perceber

que os sons que ouvíamos eram híbridos, isto é, vinham de fontes sonoras distintas. Ao

mesmo tempo em que encontrávamos sons da cidade, podíamos ouvir sons do campo. Para

os alunos, a ideia de contraste se resumia em cidade e floresta.

O tempo da aula se esgotou e ficou a proposta, para o próximo encontro, de que

eu traria um material com sons da floresta e música feita pelos povos da floresta.

3º encontro

Neste encontro, as crianças, ao chegarem, se depararam com sons pouco

peculiares para o local. Tratava-se de um Cd que acompanha o livro Era uma vez... uma

pessoa que ouvia muito bem, de Carlos Kater. Este livro “conta a história de alguém em

passeio no interior de uma grande mata, em plena natureza, cercada de animais e dos sons

que eles fazem quando cantam e conversam entre si” (KATER, p. 7, 2011). Segundo Kater,

a proposta é estimular a escuta de maneira lúdica e agradável. O livro oferece uma série de

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jogos de percepção, exercícios de reconhecimento e de memória, tanto dos animais, como

os sons que resultam de nossa imaginação.

Praticamos alguns exercícios e participamos de um jogo chamado “Canta

bichinho” que consistia em uma criança, de olhos fechados, adivinhar qual era o animal e

de onde vinha o som que um aluno imitava em determinado local da sala de aula. Os

exercícios foram muito bem aceitos pelos alunos que se revezavam para descobrir a origem

da fonte sonora.

Em seguida, utilizando o Cd que acompanha o livro Outras terras, outros sons,

os alunos ouviram canções feitas pelos povos da floresta, a música indígena. Ouvimos o seu

canto e os seus instrumentos. Utilizando xilofones, metalofones, caxixis e alguns cabos de

vassoura, tocamos, cantamos e dançamos a canção “Nhamandu”, um canto dos índios

Guarani, do Morro da Saudade. E foi desta forma que encerramos o nosso terceiro

encontro.

4º encontro

O quarto encontro foi reservado para que os alunos começassem a ter uma

referência do que são festas populares. Chamar a atenção para o cenário musical que se

estabelece nessas festas, isto é, a música que ouvimos não é uma peça de concerto, onde o

público se mantém em silêncio, como os exemplos que temos quando vamos ao teatro e que

é tão exigido em apresentações escolares. Na verdade, a minha intenção era de que os

alunos ouvissem o forró tradicional “pé de serra”, a música de quadrilha e que também

ouvissem o som das ruas, da festa, das pessoas que dançam, cantam, conversam, comem e

se divertem. Fiz uma pesquisa no youtube e selecionei alguns vídeos de festa junina com

sons de forró e outros vídeos de carnaval com sons de frevo. Usei um programa que pode

ser baixado livremente na internet e que se chama aTubeCacher e salvei os vídeos em meu

laptop; assim não teria problemas com o sinal da internet (apesar de ter sinal na sala de

música, ele é instável e nem sempre tem uma boa velocidade). Os alunos puderam ver as

cores das bandeiras, indumentárias, danças e os instrumentos musicais tradicionais de cada

estilo de música apresentado e ouvir estes ritmos. Além disso, utilizamos um mapa do

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Brasil e os alunos puderam localizar as regiões e cidades onde estas festas acontecem com

mais intensidade.

Após assistirmos a imagens de festas populares, ouvimos o frevo Vassourinhas

de autoria de Matias da Rocha e Joana Batista Ramos104

e alguns forrós de Luiz Gonzaga,

entre eles a conhecida canção Asa Branca. Os alunos já a conheciam e gostaram muito de

ouvi-la novamente e analisar a sua letra.

Encerramos o nosso quarto encontro ao som do frevo e do forró. A partir do

próximo encontro, começaremos uma nova etapa: faremos uma etnografia da festa de São

João buscando a interligação entre as disciplinas de artes plásticas, música, geografia e

história e começaremos a construir a nossa paisagem sonora.

4.2.2.3 2ª etapa: etnografia da Festa de São João/preparação da peça musical

Esta segunda etapa do projeto teve seu início na primeira semana de maio e

seguiria por mais três encontros com a duração de 50 minutos cada encontro, totalizando

quatro encontros durante todo o mês. Os encontros desta etapa foram divididos em três

partes, sendo que a primeira e segunda parte foram apresentadas de maneira semelhante

para as duas turmas. Já na terceira parte, o 3º ano esteve mais envolvido com a preparação

da seção tonal da peça Festa de São João, enquanto que o período integral se envolveu com

a construção da paisagem sonora da festa.

Relato a seguir as três partes da segunda etapa do projeto. Para a primeira e

segunda parte, faço um único relato para as duas turmas e, a terceira parte, divido em 3º ano

e Período Integral.

4.2.2.3.1 1ª parte

3º ano e Período Integral

104 Este frevo foi composto em 1909 e vendido por três mil réis ao Clube Vassourinhas em 1910. É um frevo

representativo do carnaval de Pernambuco.

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Os primeiros dez minutos de dois encontros foram reservados para tocarmos a

canção noite de São João105

. Trata-se de uma canção descritiva sobre festa de São João.

Kleiton e Kledir é o nome de dois compositores do Rio Grande do Sul. Uma dupla que fez

muito sucesso na década de 80. Compõem música popular brasileira, mas com um forte

sotaque rio-grandense. Suas músicas fazem alusão à cultura gaúcha tanto por conter

expressões diferentes oriundas daquela região como também, por agregar elementos do

folclore gaúcho. A letra da canção Noite de São João descreve as lembranças dos autores

em uma festa junina.

Era noite de São João

E eu saía com meu irmão

De bigode de rolha

E chapéu novo em folha

Brim Coringa e Alpargata

Toda noite de São João

Eu sonhava em pegar na mão

De uma prenda bonita

De vestido de chita E Maria Chiquinha

Soltando foguete (tchê)

Pulando fogueira (há)

Era noite de São João

Toda noite de São João

A quermesse era um festão

Bandeirinhas no arame

De papel celofane

Pau sebo e de fita

Era noite de São João

E depois de comer pinhão

Vinha pé-de-moleque

Puxa-puxa e um pileque

De caninha ou de quentão

Soltando foguete (tchê)

Pulando fogueira (há)

Era noite de São João

Era noite de São João Cordeona com violão

Esquentavam as moça

E eu nesse bate-coxa

Não podia me segurar

105 Canção da dupla Kleiton e Kledir; Cd Deu pra Ti, lançado no ano de 2001.

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Toda noite de São João

Eu voava que nem balão

Namorava as estrelas

Que são primas terceiras

E afilhadas de São João

Soltando foguete (tchê)

Pulando fogueira (há)

Era noite de São João

Iniciamos o nosso encontro acompanhando a canção com instrumentos de

banda rítmica. Não havia partitura e nem tampouco divisão dos instrumentos por naipes. Os

alunos escolhiam cada qual, o instrumento de sua preferência. A atividade era livre, porém

com uma ressalva: tocar com suavidade para que o volume produzido pela banda não fosse

mais forte do que a canção. Em seguida, ficávamos em semicírculo e começávamos a tocar.

A mim cabia a regência do grupo o que na verdade, era mais uma organização para que

todos os alunos não tocassem ao mesmo tempo. O ato de tocar com liberdade, numa forma

de improvisação livre, além de estimular o fazer musical criativo, dava tranquilidade para

que os alunos ouvissem e entendessem a letra da canção. Como a peça tem a duração de

quaro minutos e trinta segundos, foi possível, no primeiro encontro, ouvir e tocar duas

vezes a canção.

Esta canção foi muito oportuna para o nosso estudo sobre festas juninas, pois ao

ouvi-la, as perguntas foram aparecendo espontaneamente no decorrer das aulas, uma vez

que várias palavras e expressões não eram comuns para os alunos106

. Por ser uma letra

descritiva, os alunos tiveram a possibilidade de imaginar uma festa de São João. Enquanto

ouvíamos e tocávamos a canção, fomos formando uma ideia do cenário da festa.

No encontro seguinte, executamos a música três vezes, intercalada com um

diálogo sobre as palavras incomuns. Neste segundo encontro, outros alunos assumiram a

regência e eu passei a tocar violão junto com os alunos da banda.

Esta 1ª parte serviu como uma espécie de ponte para a 2ª parte desta nova etapa,

isto é, conhecermos com mais detalhes a simbologia e características de uma festa de São

106 As palavras consideradas incomuns pelos alunos aparecem grifadas na letra da canção.

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João. Ao final desta etapa, os alunos desenharam na lousa, o que eles achavam ser uma

festa junina como mostra a figura 2 abaixo.

Figura 58 - Representação de uma festa de São João

representada na lousa pelos alunos do período integral.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

4.2.2.3.2 2ª parte

3º ano e Período Integral

A segunda parte envolveu uma pesquisa mais detalhada sobre a cultura das

festas populares, mais especificamente a festa de São João e também procuramos traçar um

paralelo com as festas que os alunos já tinham participado. Para a maioria deles, a festa

junina da escola era a que mais conheciam.

Toda a teoria apresentada para os alunos já foi descrita na seção 4.1 com a

diferença de que, para eles, as informações eram transmitidas de forma lúdica. As

adivinhações, as simpatias, os rituais, toda a simbologia da festa e as histórias foram

contadas dentro do espírito da oralidade. - A história que meu avô contou para o meu pai,

que contou para mim e que agora eu conto para vocês -. Este era o espírito das aulas

expositivas. Durante esta 2ª parte, com a duração aproximada de quinze minutos nos dois

primeiros encontros entre vinte e vinte e cinco minutos nos dois encontros seguintes, os

alunos foram construindo imagens de uma festa junina e também foram conhecendo as

regiões do Brasil onde essas festas aconteciam com mais frequência e não tinham perdido

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as suas características. Durante os quatro encontros, pesquisamos fotos, áudios e vídeos na

internet e apreciamos este material em sala de aula com o auxílio de um notebook.

A cada encontro, assistíamos a um vídeo e ouvíamos alguma música,

principalmente o forró.

1º encontro

Neste primeiro encontro, assistimos a um vídeo de quatro minutos que

documentava a Feira e a Festa de São João de Caruaru107

, produzido pela TV Cidade Verde

de São João das Cidades, PI. O vídeo inicia relatando aspectos geográficos da cidade de

Caruaru, população, localização, etc. Aproveitamos para fazermos uma pesquisa sobre a

localização diretamente no mapa.

Figura 59 – estudando geografia

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

A matéria da reportagem falava da importância da cidade como a Capital do

Forró e que possui a maior feira livre do mundo. Vimos a feira livre e a preparação da Festa

de São João. A trilha sonora da reportagem era ao som de uma banda de pífanos e o forró

de Luís Gonzaga. Uma parte do vídeo se referiu à tradição das comidas gigantes como o

maior bolo de milho, o maior bolo de macaxeira e a maior pipoca, o que demonstra a

importância da comida nas tradições populares.

107 veja os preparativos para a festa junina da capital do forró: Caruaru. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=pTkz8ABouUY&hd=1>. Acesso em 20 abr. 2013

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Segundo o vídeo, tanto em Caruaru quanto em Campina Grande, há uma

preocupação com a estética. “Por todo lado há cenários interativos e o próprio público se

transforma em divulgador do evento espalhando fotos pelo mundo todo através da internet”

(transcrito a partir do vídeo que assistimos). Pesquisamos imagens da internet que

pudessem mostrar um pouco mais do que era este cenário e achamos duas fotos que

representaram muito bem a dimensão desta festa popular.

Figura 60 - Festa de São João – Caruaru, PE. Figura 61 - montagem da festa de

São João – Vila Forró

Fonte: imagens extraídas de sites genéricos da internet a partir de pesquisa no Google Images.

Através deste vídeo foi possível levantar questões com os alunos sobre a

importância da culinária, das artes plásticas (cenário), da música e da dança dentro das

festas populares. Vários alunos lembraram que no colégio, as festas eram semelhantes, pois

havia a música das caixas de som, as barracas de comida e a quadrilha. Repararam que a

escola era preparada com bandeiras coloridas, embora em dimensões bem menores do que a

festa de São João de Caruaru. Outros alunos disseram que, embora houvesse música, as do

colégio eram bem diferentes do que ouvimos no vídeo. No colégio, a música que mais se

ouvia era a sertaneja e não havia músicos tocando ao vivo. Quanto à dança, havia as

apresentações das classes e principalmente a quadrilha. Em linhas gerais, eles acharam as

festas parecidas.

Os alunos, ao ouvirem uma banda de pífano que fazia parte da trilha sonora do

vídeo, sentiram a necessidade de verem como era uma banda deste tipo. Entramos na

internet e colocamos no campo de pesquisa “banda de pífanos de caruaru”. Apareceram

vários endereços com imagens, vídeos e áudios. Acessamos um vídeo com a apresentação

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de uma peça instrumental da Banda de Pífanos de Caruaru, gravada no espaço da Corte pela

entrega da Comenda da Ordem do Mérito Cultural 2006 do Ministério da Cultura (Brasília

– DF)108

. Os alunos puderam ver a formação da banda e falamos sobre a zabumba, prato,

tarol e pífano. Possuíamos, na sala de aula, uma caixa (tarol), dois pares de pratos

(pequenos, de banda rítmica), pequenos tambores de banda rítmica e utilizei a flauta doce

no lugar do pífano. Tocamos livremente tentando nos aproximar um pouco da sonoridade

que acabáramos de ouvir. Ficou combinado que, para o próximo encontro, ouviríamos mais

um pouco de Banda de Pífanos.

2º encontro

Iniciamos o segundo encontro ouvindo uma canção da mesma Banda de Pífanos

de Caruaru intitulada Tudo isso é São João, do Cd de mesmo nome, lançado pela gravadora

Trama em 1999109

. Transcrevi a letra da música na lousa, analisamos o seu conteúdo e

comparamos com o que já sabíamos a respeito da festa de São João. Ouvimos os

instrumentos de percussão fazendo o acompanhamento do pífano. Foi possível perceber

que, nesta música, o pífano tinha como função a introdução e pequenas respostas

intercaladas com a melodia e quando havia o canto, o pífano tinha a função de dobrar com a

melodia. Segue abaixo a letra de Tudo isso é São João.

São João é fogueira queimando no chão

São João é foguete subindo ao céu

São João é folguedo de roda em roda

Em um fogaréu

São João é foguete subindo no ar São João é quadrilha pra gente dançar

Finalmente São João é a festa do mundo

Melhor que há

Enquanto a gente fica acompanhado

Com alguém de lado a quem se quer bem

Tudo é bonito, tudo é alegria se amanhece o dia

assim no chém nhém nhém

108

apresentação no palco de uma banda de pífanos. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=wr2E7g3C3IA&hd=1>. Acesso em 07/08 maio 2013 109 Tudo isso é São João. Gravadora Trama (1999). Disponível em :

<http://www.youtube.com/watch?v=3CaYy_yqPyc&hd=1>. Acesso em: 14/15 maio 2013.

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151

3º encontro

Neste encontro, quando as crianças chegaram, o notebook já estava preparado

com dois vídeos sobre bandas de pífano do sertão. Assistimos aos vídeos da banda de

pífanos Os Ambrósios de Arapiraca, Alagoas – AL110

e a banda de pífanos do Sr. Wlisses

de São José do Belmonte, PE111

.

Eram peças instrumentais, mas o que mais causou a estranheza por parte dos

alunos foi que essas bandas eram compostas por músicos bem mais velhos, no caso da

banda do Sr. Wlisses e também as suas roupas pouco comuns. Um aluno comentou que se

parecia com as roupas de Lampião. Outros alunos não o conheciam e este aluno nos

explicou um pouco sobre este personagem da nossa história. Comentei que diziam que a

Banda de Pífanos de Caruaru chegou a tocar para o bando de Lampião ao que todos ficaram

curiosos e ficaram de pesquisar à respeito.

Mostrei para os alunos um livro/apostila chamado Pifercussão112

. Segundo

Heráclito Dornelles, autor do livro, tem como objetivo entre outros,

[...] possibilitar a mútua troca de saberes entre mestres e aprendizes através da

prática cultural de Bandas de Pífano, fazendo uso da etnopedagogia para uma

educação musical e cultural mais dinâmica, baseada na oralidade,

conscientizando os envolvidos das pluralidades musicais presentes na cultura nordestina (DORNELLES, 2011, p. 43).

Além disso, “valorizar o conhecimento dos mestres, através de aulas e/ou

encontros, a fim de enfatizar sua importância e acentuar sua autoestima” (Ibidem, p. 43).

Foi oportuno, neste momento, comentar sobre os mestres de cultura, pois os

alunos acabaram de assistir a dois vídeos que mostravam senhores senis se apresentando.

Fato pouco comum, hoje em dia, na indústria cultural.

Este livro foi muito útil para o projeto uma vez que traz informações variadas

como: um breve histórico das bandas de pífano do Nordeste brasileiro agregado a um rico

material fotográfico; as posições da boca e dos dedos no instrumento; exercícios práticos 110 Banda de pífano os ambrósios – Arapiraca, AL. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=-P9i1fRKuQA&hd=1>. Acesso em 12 maio 2013. 111 Banda de pífanos do sr. Wlisses - São José do Belmonte, PE. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=1D6RhV4rm6I&hd=1>. Acesso em: 10 maio 2013 112 DORNELLES, Heráclito. Pifercussão – A Música de Pífanos e Percussão do Nordeste Brasileiro. João

Pessoa – PB: Ed: do autor, 2011. 2ª ed. 100 p.

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com notas grafadas na pauta e fotos das posições; fotos de instrumentos de percussão

tradicionais da Banda de Pífano; uma série de padrões rítmicos grafados para estudo do

pífano; transcrições de estudo de campo (estas transcrições estimularam a curiosidade dos

alunos que quiseram saber o que vem a ser um estudo de campo), um Cd de

acompanhamento e um pífano construído em PVC que o autor ensina a construí-lo através

de fotografias no estilo passo a passo. Os alunos ficaram muito interessados e isso os

estimulou, principalmente os alunos do 3º ano, a estudar a flauta, mas com a intenção de no

futuro, construírem seus próprios pífanos.

4º encontro

Neste encontro assistimos a um vídeo de três minutos intitulado Festas Juninas

no Nordeste do Brasil113

, produzido pela TV Gazeta para o Jornal da gazeta. O vídeo

evidenciava as comidas típicas e o forró; mostrava uma banda tradicional de forró com

sanfona, triângulo e zabumba; lembrava as fogueiras montadas em frente às casas para

homenagear o santo; as relações de compadrio, concursos de quadrilha e evidenciava a

rivalidade entre paraibanos e pernambucanos por quem tinha a maior festa de São João, se

Caruaru ou Campina Grande e novamente recorremos ao mapa para nos localizarmos.

Além dos vídeos, áudios e fotos apresentados, todos os nossos encontros

continham também um pouco das histórias, principalmente da população rural, que

envolviam a festa de São João: o canto, as adivinhações, as simpatias e superstições, a reza,

os balões e os fogos de artifício, o banho noturno e o batismo, a fogueira, a dança, o ritual

do mastro, desde como encontra-lo até a sua “fincada” ao chão, a capela e o rancho. Todas

essas informações passadas aos alunos favoreceu o interesse deles em construir uma trilha

sonora que simbolizasse a festa de São João. Aos alunos do 3º ano, por fazer parte da grade

curricular o estudo da flauta doce, a ênfase maior foi dada para as formações instrumentais

e o ritmo do forró, embora todos os alunos tivessem contato com todo o material

pesquisado. Já, para os alunos do período integral, coube a responsabilidade de criar uma

113 Festas juninas no nordeste do Brasil. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=m96lU6aUm00&hd=1>. Acesso em: 28/29 maio 2013.

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ambiência de festa junina: os seus sons característicos. Todo o processo da 2ª etapa, que foi

dividida em três partes, aconteceu simultaneamente. Durante as aulas, o tempo era dividido

entre a pesquisa e a produção a construção das paisagens sonoras e o ensaio da peça.

4.2.2.3.3 3ª parte

A terceira parte desta segunda etapa envolveu o estudo e a execução da peça

Festa de São João para os alunos do 3º ano e a construção de uma paisagem sonora relativa

à festa de São João, para os alunos do Período Integral. A duração aproximada desta

atividade foi de trinta minutos por encontro num total de quatro encontros durante o mês de

maio.

3º ano

A peça instrumental Festa de São João foi composta dentro das características

de uma música folclórica conforme descrito por Araújo em seu livro Cultura Popular

Brasileira, e que define esta música como uma música que é aceita pelo povo porque “se

afinou espontaneamente com o seu sentir, pensar, agir e reagir (...). Essa música deriva de

processos técnicos formadores muito simples (...). Transmite-se por meios práticos e orais”

(ARAÚJO, 1973, p. 119). É uma música que pode ser considerada como curta podendo ter

oito, dez, doze ou dezesseis compassos. No caso, a nossa música era composta de mais

compassos, porém com repetições.

Ela é constituída de duas partes, A e B com introdução e ponte entre as

partes114

. A harmonia é simples, em tonalidade de Dó maior e compreende as tríades de Dó

maior (I), Fá maior (IV) e a tétrade de Sol maior com sétima menor (V7). A estrutura da

peça foi construída em cima de um jogo de pergunta e resposta entre flautas, xilofones e

metalofones. A seção rítmica é feita por caxixi, claves, triângulo e cajon. A introdução

contém quatro compassos e a parte A, 10 compassos com repetição totalizando 20

compassos. A fórmula de compasso, tanto da introdução quanto da parte A é quaternário e

a tonalidade está em Dó maior. O padrão rítmico utilizado foi o ritmo regional de Folia de

114 Ver partitura em anexo.

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Reis115

e é formado por semínimas e colcheias. As notas utilizadas para os instrumentos

melódicos foram: sol3-lá3-si3-dó4-ré4, para flauta 1 e ré3-mi3-fá3-sol3-lá3, para flauta 2;

os xilofones dobravam com as flautas e os metalofones tocavam sol3-lá3-si3-dó4 e faziam

resposta à melodia.

A parte B é precedida de uma ponte responsável por definir o novo ritmo e

também possibilitar a troca de instrumentos por alguns alunos – de caxixi para triângulo.

Trata-se de um baião sincopado116

em compasso binário com base em semínima pontuada,

colcheia e semicolcheia. A ponte contém oito compassos e a parte B contém 20 compassos

sem repetição. A melodia da parte B, executada nas flautas 1 e 2 e nos xilofones é a mesma

da parte A com a diferença de estar com o ritmo sincopado; a resposta dos metalofones

sofreu modificação.

É uma peça instrumental com elementos simples e fáceis de serem apreendidos

oralmente, embora tenha disponibilizado a partitura para todos os alunos. Neste trabalho, o

mais importante é que os alunos se sentissem à vontade. Em uma classe, alguns alunos

nunca tiveram contato com instrumentos musicais e outros já frequentavam escolas de

música. O que poderia ser uma pouco mais difícil para eles era memorizar a estrutura da

peça, isto é introdução, parte A (com repetição), ponte e parte B sem repetição.

Os alunos sentiram necessidade de uma regência enquanto executavam a

música e por esse motivo, o violão (foi utilizado um timbre de violão no teclado) foi

colocado após a gravação feita pelos alunos.

1º encontro

Iniciamos este primeiro encontro tocando a parte A. Primeiramente, lembramos

as posições das notas sol3 e la3 na flauta doce. Fizemos vários exercícios com notas longas

e breves e quando todos estavam familiarizados com estas posições, executamos a primeira

parte da peça. Em seguida, pegamos os xilofones e tocamos a mesma melodia da flauta.

Para que ficasse mais fácil localizar a posição das notas, tiramos as barras que não fossem

115

Segundo registro encontrado no livro de Renato de Sá – 211 levadas rítmicas: para violão e outros

instrumentos, página 30. 116 Segundo registro encontrado no livro de Renato de Sá – 211 levadas rítmicas: para violão e outros

instrumentos, página 25.

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utilizadas. O próximo passo foi aprendermos a resposta da melodia com os metalofones.

Seguimos o mesmo critério usado para os xilofones, isto é, excluímos as barras que não

fossem utilizadas.

O ritmo das claves e caxixis eram na verdade, marcações do pulso; eles

tocavam alternadamente, sendo que as duas primeiras semínimas do compasso eram

executadas pelas claves e a resposta, também em semínima, executada pelo caxixi. Os

alunos do 3º ano tinham conhecimento do que os alunos do Período Integral estavam

fazendo e nesta primeira parte, a ideia era de um som mais leve e esparso, uma vez que a

festa ainda não havia começado. A ideia era tocar como se quiséssemos representar o dia

amanhecendo. Já havíamos tocado com o playback de Noite de São João, de Kleiton e

Kledir e estávamos preparados para fazer uma música mais calma, leve e tranquila e que

pudesse servir de prólogo para a festa que seria representada pelo ritmo do baião sincopado.

Este, sim, seria mais denso e com mais volume.

Ao final do encontro, estávamos tocando a parte A, porém os compassos 13 e

14, ainda não eram de domínio do grupo. Foi acrescentada uma rítmica diferente e também

as notas si3 e dó4 e como o processo de aprendizagem se baseou na oralidade, os alunos

sentiram dificuldade com essa mudança em relação ao início da seção. Resolveríamos isso

no próximo encontro.

2º encontro

Neste segundo encontro, que correspondia aos últimos trinta minutos de aula,

sugeri aos alunos que eles mesmos pegassem os instrumentos e os colocassem no centro da

sala de aula e que nos próximos encontros, se encarregassem dessa função sem que eu

precisasse tomar a iniciativa. O que foi feito com muito prazer. Percebi que os alunos se

sentiam mais estimulados para os ensaios, quando era dada a eles a oportunidade de se

organizarem. Esta conduta criava uma rotina prazerosa para os alunos; eles eram

responsáveis pela colocação das cadeiras, pela organização dos instrumentos por naipe e

por retirar as barras dos xilofones e metalofones.

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Figura 62 - Alunos do 3º ano organizando a sala para o ensaio da peça “Festa de São João”.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Após a organização da sala, os alunos se preparavam para o ensaio. Mesmo

utilizando uma pedagogia baseada na oralidade, escrevia a partitura na lousa,

principalmente para aqueles alunos que já eram familiarizados com a leitura musical.

Figura 63 - Sala montada para o ensaio da

peça Festa de São João

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Logo que terminamos com a preparação da sala, iniciamos o ensaio.

Começamos pelos compassos 13 e 14 da parte A – uma convenção rítmica (caxixi, clave e

metalofone) acompanhada de uma sequência descendente em graus conjuntos (flautas e

xilofone). Repetimos várias vezes esta convenção e quando todos estavam seguros e

tocando com naturalidade, unimos os dois trechos. A princípio, esta ligação não se deu

dentro de um fluxo musical natural, mas disse à eles que, se tocássemos várias vezes,

conseguiríamos deixa-la de uma maneira muito natural.

Eu utilizo em sala de aula, um teclado PSR Yamaha que possui uma função

para gravar. A fim de verificarmos se conseguíamos tocar sem interrupções ou erros, gravei

a sequência de violão com os quatro compassos iniciais e o grupo tocou, sob a minha

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regência e ouvindo o playback. Além de testarmos como estava a nossa performance, o fato

de ter um instrumento de harmonia motivou mais ainda os alunos. Era como se eles

sentissem que a música que estávamos ensaiando era parecida com a música que eles

ouviam fora da escola. Um deles comentou: “agora sim estamos fazendo música de

verdade”. Coloquei o teclado na posição fingered e os alunos puderam experimentar tocar

o teclado, uma vez que ao tocar a nota dó ouviam o acorde de Dó maior e assim

sucessivamente com os acordes de Fá e Sol7. Comentei rapidamente sobre cifra e de uma

maneira muito superficial, associei a posição da nota no teclado à posição da cifra sobre a

partitura. Todos queriam tocar e como só podíamos ter um de cada vez. Os alunos então, se

revezavam e não se importavam em repetir a Parte A várias vezes, pois era única maneira

de todos tocarem o teclado. Com isso, ensaiamos muito a parte A da peça. Gravamos a

Parte A no MP3 Player e salvamos os arquivo de áudio na pasta do notebook.

3º encontro

O terceiro encontro foi dedicado totalmente ao estudo do baião sincopado, que

era o ritmo da parte B. Os alunos conheciam Luís Gonzaga, através da canção Asa Branca.

Alguns já sabiam tocar a melodia na flauta, outros sabiam cantá-la. Propus a eles que

cantássemos e tocássemos a música, o que foi feito naturalmente. Em seguida, iniciamos o

estudo da técnica de abafar o som do triângulo. Este estudo deu muito certo, pois os alunos

se mostraram muito motivados a desenvolver uma nova técnica; é como se eles subissem

um degrau no seu estágio de aprendizagem, pois agora, aquele triângulo, sempre tratado

como bandinha rítmica, tornou-se um “instrumento de verdade” e exigia uma técnica

especial para ser executado. Já tínhamos visto um vídeo na segunda parte desta etapa onde

ouvimos o baião Feira de Caruaru, de Luís Gonzaga. Esta canção fala de tudo que há na

Feira de Caruaru para vender e os alunos ficaram impressionados com a variedade de

comidas e objetos. A maioria desses nomes era incomum para nós; outros eram

pronunciados com forte sotaque ou até mesmo falados de uma forma errada. Conversamos

um pouco a respeito das diferenças existentes tanto com relação á língua e sotaque,

tradições e costumes num país tão grande quanto o nosso e continuamos com o estudo do

baião. Tocamos o triângulo junto com a música Feira de Caruaru.

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Em seguida, foi a vez de praticarmos o cajon. Iniciei tocando o baião sincopado

no que os alunos iam aprendendo por imitação. Enquanto eu tocava eles olhavam. Como

temos três cajons na sala de aula, passamos a tocar juntos. Eu tocava mantendo o fluxo

musical e dois alunos por vez me acompanhavam. Enquanto isso, os que não estavam

tocando cajon pegaram o triângulo, alguns ficaram olhando e esperando a sua vez para

tocar e outros pegaram outros instrumentos de percussão para tocar conosco.

Neste encontro não me preocupei com a melodia das flautas, xilofones e

metalofones, pois as notas eram as mesmas e não haveria problema em encaixá-las no ritmo

do baião. A nossa atividade nesta aula se resumiu a tocarmos com o áudio de Feira de

Caruaru e Asa Branca. Ora eu utilizava o teclado, ora o violão. Tínhamos três cajons e

quatro triângulos; os alunos se revezavam e os que não estavam com esses instrumentos

tocavam outros instrumentos de percussão como pandeiro, tambores e chocalhos.

4º encontro

Neste último encontro da segunda etapa, fizemos como de costume: montamos

a sala com os instrumentos que utilizaríamos. Nos três encontros anteriores os alunos

tinham a liberdade para experimentar todos os instrumentos, mas agora, por ser o último

ensaio, era necessário que cada aluno escolhesse apenas um, pois estávamos dentro de um

processo de ensaio geral como preparação para a gravação final que faríamos nos próximos

encontros.

Após a escolha dos instrumentos, a nossa atividade primeira foi encaixar a

melodia das flautas e xilofones, que agora era sincopada ao ritmo do baião executado pelo

cajon e triângulo. Como exercício preliminar, fizemos o jogo do telefone com toque. O

jogo consistia em formarmos duas filas, uma ao lado da outra. O professor executa uma

célula rítmica no ombro do último aluno da fila, mas sem que se escute o som, apenas pelo

tato. O aluno percebe o ritmo pela sensibilidade do toque e passa adiante até o primeiro da

fila que deve mostrar o ritmo que sentiu através do canto ou batendo palmas.

Este jogo serviu para adquirirmos familiaridade com a síncope de uma maneira

divertida e envolveu uma certa competitividade entre as duas filas.

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Após o jogo, começamos o nosso ensaio geral. Tocamos com o auxílio do

teclado, outras vezes somente percussão, outras vezes, somente flautas e assim por diante.

A maior dificuldade encontrada pelos alunos foi a passagem da parte A para a parte B em

decorrência da mudança do ritmo. Expliquei que isto era uma coisa difícil de fazer, mas que

conseguiríamos durante a gravação.

Estávamos prontos para a próxima etapa. Percebi que o ato de gravar tanto em

vídeo quanto em áudio é um elemento que ajuda muito na participação de todos os alunos.

Eles se mostram muito interessados em registrar as suas atividades e vários deles

perguntaram se colocaríamos no Youtube. Disse a eles que poderíamos pensar no assunto,

mas que no site do colégio, não haveria problema algum.

Com isso, a turma do terceiro ano encerrou a segunda etapa do projeto Festa de

São João. Ao término do processo um aluno comentou: “Professor, esta música é gostosa

de tocar e de ouvir”.

4.2.2.3.4 4ª parte

Período Integral

Os quatro encontros dessa quarta parte foram reservados para a construção da

paisagem sonora de uma festa de São João. Esta atividade ocorreu de forma simultânea à

teoria apresentada na seção 4.2.2.3.2. À medida que tínhamos contato com a simbologia das

festas juninas e íamos conhecendo um pouco mais das suas tradições, criávamos os seus

sons característicos.

Segui os modelos de improvisação propostos por Koellreutter. O exercício da

improvisação, segundo o próprio autor, pode favorecer a compreensão e conscientização

dos vários elementos que se encontram envolvidos numa festa de São João integrando esses

elementos num ambiente lúdico além de promover a noção de estrutura e forma musical,

exploração de timbres, intensidades, densidades e andamentos entre outros elementos

(BRITO, 2001). Este tipo de ação pedagógica também pode contribuir no sentido de criar

um ambiente musical propício para a representação dos eventos relacionados à festa. Este

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modelo não deve ser considerado como “uma fórmula fechada a ser seguido cegamente,

mas sim como ponto de partida para o desenrolar de um fazer musical consciente, crítico,

analítico e criativo” (BRITO, 2001, p. 93). Dentro dessa ação de construir a paisagem

sonora da festa de São João seguindo os modelos de improvisação propostos por

Koellreutter, procurei revezar, como sugere o autor, as atividades de improvisação, audição

e movimento corporal.

Para gravar os sons da improvisação foi utilizado um MP3 Player Sansung e o

programa audacity. Depois, este material era arquivado em uma pasta no notebook. Ao

final da atividade, ouvíamos e fazíamos as nossas considerações a respeito dos áudios. Por

várias vezes, regravamos a paisagem sonora de acordo com a nossa análise. Tanto o

registro em áudio quanto as imagens foram feitas pelos alunos; para as fotos, utilizaram o

meu celular. Como vários alunos demonstraram interesse em fazer os registros, eles se

revezavam a cada aula nesta função.

Para iniciarmos esta atividade, seria ideal um exercício de improvisação com

algum evento relacionado à festa junina da qual os alunos tivessem bastante conhecimento

e familiaridade. Um aluno se referiu à festa junina da própria escola, pois se tratava de um

dos eventos mais importantes do ano para o colégio e quase todos participavam. A festa

sempre acontece no sábado e na sexta-feira, quando os alunos ainda estão em horário de

aula, começam os preparativos para a festa: operários descarregando brinquedos e ferragens

das barracas, professores e funcionários decorando a escola com bandeiras coloridas, teste

nos equipamentos de som, etc. Sugeri que recriássemos os sons da montagem da festa. A

princípio, os alunos se mostraram um pouco tímidos em realizar a atividade, mas aos

poucos foram escolhendo objetos e instrumentos nas estantes e foram se soltando. Eu agi,

principalmente no início da atividade, como um diretor de cena – criava algumas falas para

direcionar os trabalhos. Em um dado momento, uma aluna disse: “Professor, eu entendi o

que estamos fazendo: estamos construindo um cenário, mas este é com som”.

Tanto eu quanto os alunos achamos uma ótima definição para o que estávamos

fazendo. A partir desta colocação, passamos a chamar cada quadro que estávamos

montando de cena. Estas cenas eram montadas a partir de um roteiro que foi elaborado

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através das informações que tínhamos a respeito de cada tema. A seguir faço o relato por

cena do que se sucedeu nos quatro encontros.

Cena 1: o mastro de São João

O dia está amanhecendo e três homens entram na mata à procura da árvore com

o tronco mais reto possível. É sexta-feira de Lua Minguante. Antes de derrubá-lo, devem

rezar um Pai Nosso. No momento em que a árvore cai no chão, os homens devem tirar o

chapéu e evitar cuspir naquele local. Este tronco será levado para o local da festa e será

preparado para o dia de São João. No topo do mastro ficará a bandeira do santo, símbolo de

sua presença na festa. O amanhecer, os sons da mata e o corte da árvore são sons

característicos dessa paisagem. Entoamos a canção capelinha de melão enquanto

caminhávamos: Capelinha de melão/É de São João/É de cravo é de rosa/É de

manjericão/São João está dormindo/Não me ouve não/Acordai, acordai/Acordai João.

Figura 64 - Alunos do Período Integral recriando

a paisagem sonora de uma floresta

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Cena 2: preparativos para a grande festa

É véspera de São João e os preparativos para festa são muitos: montagem das

barracas de jogos e de comidas, preparação da fogueira, amarração das bandeiras coloridas,

montagem do palco onde se apresentam as capelas. Para que tudo fique pronto será

necessário um trabalho em equipe com uma boa dose de organização. Os alunos

escolheram cada qual a sua função e experimentaram os sons que caracterizam a montagem

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da festa. Eles dialogam entre si e incorporam o ambiente de cooperação mútua que a tarefa

exige.

Figura 65 - Alunos do Período Integral criando

os sons dos preparativos da festa.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Cena 3: O levantamento do mastro de São João

É noite de São João, a fogueira já foi preparada e está pronta para ser acesa;

logo mais, os devotos irão pulá-la, mas antes disso, acontece o ritual de levantamento do

mastro e os festeiros comemoram soltando fogos de artifício. Diz a tradição que São João

adormece no seu dia, pois se estivesse acordado, ao ver o clarão das fogueiras que são

acesas para homenageá-lo, desceria à Terra e ela correria o risco de incendiar-se.

Somado aos sons de fogos de artifício, os alunos entoam uma quadra: Se São

João soubesse/Quando era o seu dia/Descia do céu à Terra/Com prazer e alegria/Acorda

João!/Acorda João!/João está dormindo/Não acorda não!

Figura 66 - Alunos do Período Integral entoando

uma quadra de São João.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

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Cena 4: O banho coletivo

É chegado o momento de reviver a prática da purificação através da imersão na

água, o batismo simbólico. Todos se dirigem às margens do rio para a cerimônia do banho.

Enquanto caminham, os devotos entoam a canção: Vamos, vamos/Tocar a marchar/N’água

de São João/Vamos nos lavar.

Após o banho coletivo, todos retornam para o terreiro cantando: N’água de São

João me lavei/Toda mazela que tinha deixei!

Os sons referentes às cenas 2, 3 e 4 fazem parte da parte A da peça Festa de São

João. Todo o áudio armazenado será utilizado mais tarde num processo de colagem sobre a

peça que os alunos do 3º ano gravaram.

Figura 67 - Construção dos sons que compõem o Figura 68 - Alunos se movimentam e entoam o

banho coletivo. canto da purificação.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Cena 5: A grande Festa de São João

Passados todos os preparativos e os rituais que antecedem a festa de São João é

chegado o momento da dança, da cantoria, da comida e dos jogos de barraca. O ritmo que

determina este momento da festa é o baião sincopado – parte B da peça Festa de São João,

executada pelo 3º ano. A festa está muito animada e a movimentação de pessoas é intensa.

Tudo acontece ao mesmo tempo.

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Figura 69 - Alunos criando o ambiente da festa de São João:

cavalos e passos das pessoas.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

.

Figura 70 - Alunos escolhendo instrumentos para

construir o ambiente tumultuado da festa.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Os festeiros soltam balões e fazem pedidos a São João ao som dos vendedores

de comida e dos animadores de barracas chamando o público para participar dos jogos e

provarem os doces e salgados. São João é sempre comemorado com fartura de alimentos.

Figura 71 - Alunos criando o ambiente da festa de

São João: vendedores e animadores de barracas.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

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Enquanto os balões vão subindo, por todos os cantos é possível ouvir os

pedidos para São João: Soltei um pedido dentro de um balão/Querido São João dai

proteção. Ao mesmo tempo, os alunos interpretam a canção Sonho de Papel: Um balão vai

subindo/Vem caindo a garoa/O céu é tão lindo/A noite é tão boa/São João, São João/

Acende a fogueira do meu coração.

Figura 72 - Alunos entoando os pedidos para São João

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Quase no fim da festa é chegado o momento de pular a fogueira e pedir favores

ao santo. Dizem que, se rodarmos em volta dela, conseguimos saber se vamos arrumar

namorado. Os alunos cantam a canção Pula a fogueira: Pula a fogueira Iaiá/Pula a

fogueira Ioiô/Cuidado para não se queimar/Pois essa fogueira já levou o meu amor...

E assim se encerra esta noite de festa esperada durante todo o ano por todos. O

rancho, sempre com um música alegre que não deixa ninguém ficar sentado, garante a

alegria da festa. Todos os presentes rezaram, comeram, jogaram e dançaram. Agora é hora

de ir embora e esperar que os votos pedidos sejam realizados e que o ano seja de fartura e

felicidade.

4.2.2.4 3ª etapa: processo de colagem

Na terceira etapa do projeto, foi realizada uma atividade orientada, quando as

crianças tomaram contato com os softwares audacity e sonar e aprenderam a manipular

algumas ferramentas para edição de áudio e também tiveram a oportunidade de conhecer

um pouco do processo de colagem na composição musical.

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166

Nesta 3ª etapa, as classes tiveram a oportunidade de conhecer com mais

detalhes a atividade desenvolvida por cada uma através da audição e análise do material

sonoro coletado. A parte tonal da peça seria como uma base para a composição e sobre ela

estaria sobrepostos todos os áudios referentes à simbologia da festa e também às suas

características: ruídos, vendedores, fogos de artifício, etc. Apesar das duas classes

participarem do mesmo conteúdo de pesquisa, cada uma delas desenvolveu uma parte da

música que exigia enfoques diferenciados. Nesta última etapa, houve o intercâmbio de

material sonoro em prol da montagem da peça e por estar em horários diferentes, cada

classe tinha como ponto de partida o material desenvolvido, mas inacabado pela outra.

Relato a seguir o trabalho conjunto de ambas as classes. Foram seis horas/aula

divididos em três horas/aula para o terceiro ano e três horas/aula para o Período Integral.

Ambas as classes desenvolveram, basicamente, a mesma atividade. Ao final das seis

horas/aula, o projeto havia chegado ao fim. A última hora/aula, para cada classe, foi

destinada a apreciação musical da obra e posterior análise.

1º encontro

Neste encontro, igualmente para os dois grupos, estabelecemos um primeiro

contato com o programa Sonar. Já havíamos tido um contato com gravadores e editores de

áudio através do Audacity por conta das gravações que fizemos durante a 2ª etapa. O Sonar

possui as mesmas características que o Audacity, porém com a diferença que o primeiro

suporta vários áudios ao mesmo tempo, o que seria ideal para o nosso trabalho de colagem.

Tínhamos o material coletado no Audacity e no MP3 Player salvo em formato wav117

e em

MP3, respectivamente, dentro de uma pasta de nome “audio_festadesãojoão”. Para o

formato MP3, utilizamos um programa livre chamado Format Factory e aprendemos a

converter os arquivos que estavam em MP3 para Wav.

O primeiro passo foi apresentar aos alunos como funcionava o sistema de

trilhas na qual poderíamos colar vários áudios sobre a base musical que o terceiro ano havia

gravado. Fiz uma ilustração na lousa da interface do programa para que, todos juntos,

117

Quando salvamos um arquivo no programa Audacity, este tem como primeira opção o formato aup. Os alunos aprenderam que era necessário executar o comando “exportar” e escolher a opção WAV 16bit PCM com sinal. Este formato é suportado quando abrimos na trilha de áudio do sonar.

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pudéssemos visualizar. Antes de iniciarmos o processo de colagem no Sonar, realizamos

uma atividade lúdica que englobava a execução das funções do programa, mas sem a

utilização deste. A atividade consistia em os alunos se dividirem em grupos pela sala e cada

grupo representaria uma trilha do Sonar: a base instrumental e os sons característicos da

festa de São João. Foi uma forma interessante de mostrar aos alunos, de um modo geral,

como seria o nosso trabalho. Esta atividade serviu para que os alunos pudessem entender o

funcionamento do programa.

Figura 73 - Representação gráfica do Sonar.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Passado o primeiro momento descrito acima, o segundo passo foi iniciarmos a

atividade diretamente no programa Sonar:

a) Abrir o Sonar para efetuar a abertura de uma nova seção em file. Ao abrir a seção,

uma nova janela pedia algumas informações:

a.1. Nome: festadesaojoao;

a.2. Local: mesma pasta onde estavam armazenados os arquivos de áudio;

a.3. Trilhas de áudio: 8 trilhas de áudio.

b) Sobre a primeira trilha, clicamos com o botão direito do mouse do computador e

selecionamos a função “importar áudio” - era aberta uma nova janela e, em

“examinar”, era possível escolher a pasta onde estava o arquivo de áudio que

queríamos colocar na trilha do Sonar -. Este procedimento foi relativamente fácil

para o entendimento dos alunos que já frequentavam aulas de informática e tinham

familiaridade com o Word e Power Point.

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c) Aprender algumas operações básicas com o mouse do computador como:

deslocamento do áudio em função do tempo, mudança de uma trilha para outra e

justaposição de arquivos.

Figura 74 - Conhecendo o Sonar.

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

De um modo geral, as crianças demonstraram interesse na construção de uma

trilha sonora. O fato de poder fazer e desfazer as operações com os áudios as deixaram à

vontade para experimentar e caso não desse certo, bastava desfazer a operação e recomeçar.

O 3º ano, embora participasse das atividades desenvolvidas nesse encontro,

dedicou-se também à gravação definitiva da parte tonal da peça Festa de São João.

2º encontro

Neste encontro, quando os alunos entraram na sala de aula, o notebook já estava

“aberto” no programa Audacity com um arquivo de áudio previamente selecionado onde os

alunos iriam aprender a manipular ferramentas básicas de edição como: selecionar, colar e

copiar e inserir efeitos de áudio tais como: amplificar, alterar velocidade, alterar tom,

equalizar, fade in e fade out, eco e delay.

Primeiramente, mostrei aos alunos as funções acimas citadas e expliquei o

funcionamento das ferramentas de edição e de efeito. Em seguida, os alunos revezavam-se

nas tarefas de manipulação de áudio utilizando as waves que gravamos na segunda etapa do

projeto. Editávamos e guardávamos os arquivos nas pastas, pois estes, depois de editados,

seriam utilizados no processo de colagem que faríamos no Sonar juntamente à base gravada

pelo 3º ano.

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Figura 75 - Aluna manipulando o Audacity

Fonte: Fotografia realizada em sala de aula por alunos do colégio Educap.

Foram duas horas/aulas com a duração de 50 minutos cada. Os alunos do 3º ano

iniciaram este processo e os alunos do período integral finalizaram a partir do ponto onde

parou o 3º ano. Estabelecemos uma ordem para a manipulação das waves para facilitar a

nossa organização e esta ficou da seguinte maneira:

1. Mastro de São João

1.a. amanhecer; entrada na mata; corte da madeira.

1.b. canção: capelinha de melão

2. Preparativos para a festa

2.a. amarração das bandeiras coloridas;

2.b. preparação da fogueira;

3.c. montagem das barracas e do palco.

3. Levantamento do mastro

3.a. fogos de artifício;

3.b. crianças entoam a quadra de São João.

4. Banho coletivo

4.a. sons de água e floresta;

4.b. crianças entoam a quadra do banho

5. A festa

5.a. vendedores e animadores de barracas;

5.b. soltar balões: pedidos para São João;

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5.c. canção: sonho de papel

6. Pula fogueira

A partir desse encontro, o 3º ano teve a possibilidade de conhecer efetivamente

os sons criados pelos alunos do Período Integral e que constituíram a paisagem sonora da

festa de São João. Em vários deles, identificaram de imediato a similaridade com o

conteúdo apreendido e em outros, como por exemplo, os fogos de artifício, comentaram

que “se não fosse falado o que era não dava para saber”. Sugeri aos alunos que tentassem

colocar efeitos neste arquivo de modo a nos aproximarmos de um som que representasse

melhor os fogos de artifícios, o que foi feito imediatamente. Utilizamos aumento de graves,

alteração de tom, Phaser, Eco e Delay. Os alunos ficaram satisfeitos com o resultado final.

Com estes dois encontros, foi possível deixar os arquivos de áudio preparados

para o processo de colagem que seria realizado nos dois próximos encontros.

3º encontro

O terceiro encontro foi reservado para o processo de colagem da peça Festa de

São João. Quando os alunos chegaram o notebook já estava com o Sonar “aberto” e eu já

havia inserido na primeira trilha a parte tonal da Festa de São João. Os arquivos de áudio

seriam adicionados nas outras trilhas e depois iríamos fazer a mixagem através do controle

de volume. Todo o material sonoro já havia sido preparado no encontro anterior. Com

relação ao áudio da parte tonal da peça, tínhamos a amostras da parte A, da parte B e a

gravação integral da peça. Com esses elementos e através das funções “copiar”, “colar” e

“deslocamento”, pudemos aumentar o tamanho da nossa música de acordo com os arquivos

de áudios que iam sendo inseridos nas trilhas do programa. Seguimos o mesmo roteiro das

edições realizadas no encontro anterior e, usando de base a peça tonal, fomos agregando os

elementos que achamos representar uma festa de São João e assim chegarmos a uma

composição final.

Da mesma forma com procedemos com a manipulação dos arquivos de áudio,

neste processo de colagem, os alunos iam se revezando nas tarefas e uma classe

complementou o trabalho da outra. O terceiro encontro, com duas horas/aulas, com 50

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minutos cada, foi suficiente para concluirmos a nossa peça. Em seguida salvamos em

formato wav.

4.2.3. Algumas considerações

Durante a produção da trilha sonora, “Festa de São João”, os alunos se

envolveram em diversas tarefas: assistiram a vários vídeos e viram muitas fotos; ouviram

histórias de simpatias e adivinhações; tocaram e cantaram diversas canções; idealizaram

cenas pouco comuns em suas vidas cotidianas, ora reproduzindo imagens assistidas ora

reinventando pequenos roteiros; lidaram com gravadores e editores de áudio. Todas essas

atividades estavam relacionadas à festa junina e aos seus sons característicos. O que se

buscou nesta ação pedagógica, além do reconhecimento de vários tipos de escuta118

, foi um

tipo de aprendizagem que geralmente está fora da escola, isto é, “as crianças aprenderam

brincando, jogando, através do fazer, do imitar, do fazer junto, enfim, através dos processos

populares de aprendizagem” (RODRIGUES, 1992, p. 65). Seguindo os passos de Maria

Augusta Rodrigues, procurei despertar nos alunos o interesse pelo estudo através da prática,

pois como a autora mesmo diz, “aquilo que se aprende vendo ou fazendo jamais será

esquecido” (RODRIGUES, 1992, p. 65).

Seguir essa “tradição” - de transmissão de conhecimentos pela oralidade- foi

um fator preponderante para a criação de um ambiente de espontaneidade dentro da sala de

aula, isto é, não estávamos aprendendo um conteúdo determinado através do qual, os

alunos, posteriormente, seriam avaliados por uma prova. Em nossos encontros, geralmente,

nos sentávamos no chão da sala de aula para contar, ouvir e “fazer” histórias - às vezes

ditas e às vezes cantadas -, favorecendo uma prática pedagógica de duas vias e, com isso,

118

Ao usar o termo “vários tipos de escuta”, refiro-me às mudanças de referencial de percepção que ocorreram em sala de aula no decorrer do trabalho. Inicialmente, os alunos praticaram o ato de simplesmente escutar, em seguida, uma escuta mais atenta, direcionada aos detalhes característicos de cada momento da festa de São João e por último, principalmente, após a análise das amostras de áudio coletadas, uma escuta de caráter estético e significativo, permitindo que esses sons ambientais fossem percebidos como música.

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tínhamos a possibilidade de ampliar as nossas experiências artísticas e culturais. Tinha em

mente

[...] propor um ensino de música que possa contribuir para a ampliação da

experiência cultural partindo da vivência do aluno e promovendo o diálogo com

as múltiplas formas de manifestação artística. Um intercâmbio baseado no

respeito pelas diferentes vivências (CANEN apud PENNA, 2010, p. 99).

Procurei, através dessa ação pedagógica, trazer para as aulas de música, uma

prática comum de transmissão de conhecimentos que acontece dentro da cultura popular,

quer dizer, uma didática musical pautada pelo diálogo e pela troca de experiências. Como

bem disse Maura Penna, “quanto maior o diálogo e a convivência, maior o enriquecimento

da produção artística” (PENNA, 2010, p.117).

Esta prática educativa nos levou ao encontro do que Patricia Campbell

considera ser uma ação educacional mais abrangente, isto é, a busca por uma maior

variedade de fontes musicais para o repertório de ensino. Segundo a autora, torna-se

fundamental, nos dias de hoje, que estudemos a música na cultura e a música como cultura,

incluindo a arte tradicional, a manifestação tribal, a música popular dos bairros vizinhos,

bem como aquelas de localidades remotas e distantes das nossas vivências musicais.

(CAMPBELL, 2004).

Ao propor uma atividade que primou pela pesquisa geográfica, histórica e

cultural das festas juninas, principalmente a partir de seu referencial sonoro, quis trazer

para o universo da escola uma prática que, habitualmente, as crianças não estão mais

acostumadas: as manifestações populares. Para a maioria delas, a festa junina era um

evento anual realizado pelo colégio, no qual as classes se apresentavam na quadra da escola

dançando a quadrilha ao som de músicas variadas e barracas de jogos e comidas. Embora

estas atividades sejam tradicionais nas festas juninas, os alunos não tinham consciência de

toda a simbologia da tradição que haviam por trás dessa festa. Segundo Huizinga,

“atualmente perdeu-se o sentido do jogo ritual e sagrado [...], mas nada contribui mais para

nos fazer recuperar esse sentido como a sensibilidade musical. Sentindo a música somos

capazes também de sentir o ritual” (HIZINGA, 2010, p. 178). Ao estudar, junto com os

alunos, todos os elementos culturais que fazem parte da Festa de São João, foi possível

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reconhecermos alguns modos de atividade musical, como, a música composta para

apresentação em palco e a música que é ao mesmo tempo reza, pedido, agradecimento e

celebração. Diante do exposto, a minha intenção com este projeto foi, além de oferecer aos

meus alunos uma prática musical prazerosa, que a música agisse como uma mediadora para

uma educação multidisciplinar e globalizante. Sobre esse assunto, Huizinga coloca que

“hoje em dia, a maior parte das pessoas fazem música por prazer, mas os antigos lhe

atribuíam um lugar na educação, porque a Natureza não quer apenas que trabalhemos bem,

quer igualmente que utilizemos bem o ócio” (HUIZINGA, 2010, p. 180).

Ao mergulharmos com os “ouvidos e com os olhos” na cultura das festas

juninas, foi possível, através de um ambiente lúdico, aqui fomentado pelas histórias de

“feitura” e levantamento do mastro, dos banhos coletivos, das crenças envolvendo a

fogueira, etc., nos envolvermos com o tema a tal ponto de criarmos um ambiente coletivo

de aprendizagem. E aqui me permito me apropriar de um termo que Wenger define como

“comunidade de prática”, isto é, pessoas com interesses comuns e que, por meio de uma

interação, desenvolvem maneiras de se fazer aprender mais sobre esse interesse que as une;

pessoas que desejam se engajar em um processo de aprendizagem coletiva numa área do

conhecimento humano (WENGER, 2010). O autor coloca da seguinte maneira:

[...] se acreditamos, por exemplo, que o conhecimento consiste em informações que

são armazenadas por partes no cérebro, então faz sentido uma prática de ensino em

sala de aula, na qual os alunos permaneçam completamente imóveis e isolados de estímulos que possam levá-los à distração e, desse modo, a informação é fornecida

da forma mais sucinta e articulada possível [...] Mas, se acreditamos que as

informações armazenadas de forma explícita são apenas uma pequena parte do

conhecimento, e que o saber envolve a participação ativa, principalmente em

comunidades sociais, então, o modelo tradicional não parece tão produtivo. O que

parece promissor são as maneiras criativas de envolver os alunos em práticas

significativas; proporcionar acesso a recursos que melhorem a sua participação; de

abrir horizontes para que possam integrar-se em trajetórias de aprendizagem com

as quais se identifiquem; e envolvê-los em ações, discussões e reflexões que fazem

a diferença para as comunidades que valorizam119 (tradução minha) (WENGER,

2010, p. 09-10).

119

If we believe, for instance, that knowledge consists of pieces of information explicitly stored in the brain, then it makes sense to package this information in well-designed units to assemble prospective recipients of this information in a classroom where they are perfectly still and isolated from any distraction, and to deliver this information to them as succinctly and articulately as possible. [...] But if we believe that information stored in explicit always is only a small part of knowing involves primarily active participation in social communities, then the traditional format does not look so productive. What does look promising are

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A participação dos alunos no processo de preparação de uma trilha sonora

permitiu que eles direcionassem a sua atenção para o ambiente sônico, seja ele musical,

discursivo, ruidoso ou qualquer outra manifestação sonora. Foi possível, para os alunos,

através da escuta desses ambientes, reconhecer diferentes texturas, criar uma relação

estética com essas texturas, ruídos, silêncios, ritmos, melodias e timbres. Pôde-se perceber

que nenhum ambiente era composto de apenas um som, mas, ao contrário disso, por um

conjunto de sons que, ao serem ouvidos atentamente, possibilitavam sentir os diálogos que

se estabeleciam entre eles. De uma maneira lúdica, através da escuta, os alunos analisaram

e discutiram vários elementos constituintes da festa junina e puderam ter uma experiência

que permitiu outras possibilidades de se fazer música que não a que lidasse com os métodos

tradicionais já desenvolvidos dentro da sala de aula.

Sem dúvida, é possível perceber, pela maneira como as crianças reagiram a

todo o processo que envolveu o trabalho de construção da trilha sonora, uma ampliação do

conceito do que é música. A construção de paisagens sonoras a partir de fontes literárias

abriu um caminho no campo da imaginação. É claro que os alunos tiveram, inicialmente, a

referência da imagem e do som ao assistirem a vídeos sobre o assunto abordado, mas uma

grande parte de nossa pesquisa envolveu a leitura de textos e isso gerou, a meu ver, uma

necessidade de inventar os sons das palavras; construir, como disse uma aluna, um cenário,

mas um cenário composto de sons. Foram gravadas amostras de áudio dos sons produzidos

em classe e que tentavam ora inventar, ora recriar os sons de uma festa junina; editar os

áudios coletados, remixá-los e elaborar um discurso musical utilizando um processo de

colagem, da qual o ouvinte fosse capaz de formular em sua mente as imagens que estes

sons provocam.

Ao conectarmos estes sons a uma música popular instrumental e compormos

uma trilha sonora com elementos da música tonal e da música concreta, acreditamos

possibilitar uma aprendizagem mais aberta à experiência, fazendo com que as matérias de

expressão que compõem as duas linguagens conectadas possibilitem encontros mais

inventive a ways of engaging students in meaningful practices, of providing access to resources that enhance their participation, of opening their horizons so they can put themselves on learning trajectories they can identify with, and of involving them in actions, discussions, and reflections that make a difference to the communities that they value.

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sensíveis, assim, abrindo novas percepções artísticas, podendo gerar afetos e

desterritorializar pensamentos dentro da instituição escolar.

Quanto mais a obra se desenvolve, mais motivos se conjugam e conquistam seu

próprio plano, mais autonomia se ganha. Os motivos tornam-se independentes

das personagens e das paisagens, para se tornarem eles mesmos paisagens

melódicas e rítmicas. [...] Dos ritmos funcionais ao devir expressivo do ritmo.

(Godinho, 2007, 155).

Mas o que de mais importante pode ser tirado dessa experiência pedagógica

vivenciada por mim e pelos alunos, mais do que a ampliação do conceito de música pelas

crianças, é a concretização de um ambiente de aprendizagem coletiva, não só sob o ponto

de vista do aprendizado musical, mas também sob o prisma de uma conscientização dos

valores sociais.

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5 OUVIR O MUNDO E PODER PARTICIPAR DESTA GRANDE MÚSICA:

CONCLUSÃO

Uma das justificativas para um trabalho de educação musical que, além do

estímulo à prática musical, esteja focado na percepção dos sons que permeiam a nossa vida

cotidiana, é a constatação de que, a cada dia que passa, é possível sentir como a quantidade

de sons em nosso ambiente está aumentando.

A maior parte dos sons que ouvimos nas cidades, hoje em dia, pertence a alguém

e é utilizada retoricamente para atrair a nossa atenção ou para nos vender alguma

coisa. À medida que a guerra pela posse de nossos ouvidos aumenta, o mundo

fica cada vez mais superpovoados de sons (SCHAFER, 2001, p. 12).

Alguns destes sons já são conhecidos por serem perigosos para a nossa saúde.

Como a nossa percepção auditiva está sendo constantemente estimulada por eles, ela tem

aprendido a se adaptar a esta nova realidade atual. Nossa escuta parece estar cada vez

menos focada na compreensão dos sons que compõem o ambiente (soundscape) no qual

estamos imersos e agindo como um anestésico para o que é, portanto, considerado poluição

sonora. Muito pouco da paisagem sonora é realmente ouvida.

Hoje, com a difusão de fones de ouvido, conectados a uma infinidade de

gadgets120

, o indivíduo é capaz de criar uma trilha sonora de sua própria vida, como se

fosse a trilha sonora de um filme; pode, de algum modo, regular o seu estado de humor da

forma como preferir. É comum assistir a jovens, andando pelas ruas, completamente

desconectados de seus ambientes sonoros; às vezes até mesmo, sem perceber, eles estão

cantando em voz alta, músicas que estão ouvindo em seus fones de ouvido. De certa forma,

esses ouvintes, estando alheios a suas paisagens sonoras circundantes, acabam não se dando

conta da real situação na qual se acham mergulhados e, assim, não sentem a necessidade de

reivindicar um ambiente mais salubre. O ser humano entra em um processo de

individualização a ponto de chegar a se desvincular dos problemas vividos pela

coletividade.

120

No mundo da tecnologia gadgets são dispositivos portáteis de variados segmentos como smartphones, MP3 ou MP4 players, tablets e diversos outros aparelhos considerados pequenos que desempenham funções específicas. In < http://canaltech.com.br/tag/Gadgets/ >. Acesso em 23/01/2014.

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178

Conforme aponta o educador e compositor Murray Schafer, o ambiente sonoro

do mundo moderno vem sofrendo um aumento vertiginoso de ruídos em relação aos sons

naturais abalando o equilíbrio com os sons da natureza, principalmente em razão do

desenvolvimento tecnológico. “A multiplicação de máquinas e a tecnologia em geral

resultaram numa paisagem sonora do mundo, cuja intensidade cresce continuamente”

(SCHAFER, 1991, p. 289). Este efeito traz como uma das consequências uma diminuição

na capacidade auditiva do ser humano. O autor prossegue dizendo que a poluição sonora é

um dos grandes problemas da vida contemporânea e ressalta a importância do ambiente

sonoro como uma fonte importante de informação. Para ele, a paisagem sonora do mundo é

uma composição em que o homem é o criador e a ele cabe a responsabilidade de interferir e

poder torna-la “mais ou menos bela”. O fato de, cada vez mais, pessoas estarem se

conectando individualmente em seus próprios sons e se desvinculando do mundo sonoro

real, faz com que a sociedade perca a capacidade de se organizar e reivindicar, junto às

instituições políticas e estâncias de decisões, uma melhor qualidade de vida no que diz

respeito á poluição sonora ambiental. Quando adquirimos o hábito de conhecermos o

ambiente através da escuta, tornamo-nos mais criteriosos com relação ao ambiente sonoro

na qual estamos imersos. Diz o compositor e educador musical Carlos Kater que “diante de

todos os tipos de sons que existem na natureza, precisamos sempre de “melhores ouvidos”

para assim então apreciarmos o significado e a riqueza do mundo da qual somos apenas

uma das partes” (KATER, 2011, p. 09).

Quando o mundo era pouco povoado, destituído de máquinas e aparelhos

elétricos e as pessoas levavam uma vida rural, o ambiente que predominava eram os sons

da natureza: água, ventos, trovões, queimadas, aves e animais. Essas pessoas utilizavam a

escuta para decifrar “presságios sonoros da natureza”. Com o passar do tempo houve uma

mudança, transportando as pessoas da vida predominantemente rural para a vida urbana.

Assim, outros sons começaram a fazer parte desta nova paisagem: vozes de pessoas, ranger

de rodas de madeira, sons de atividades artesanais, etc. O ambiente começa a se tornar

híbrido e os sons da natureza se misturam aos sons da cidade; os seres humanos, aos

poucos, vão perdendo a capacidade de se orientar pelos sons naturais e passam a

desenvolver outros “mecanismos” que decifrem os presságios naturais. Mais tarde, com a

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Revolução Industrial, os sons mecânicos abafam tanto os sons naturais quanto os humanos,

com um zumbindo constante. Atualmente o que percebemos é um ambiente global

extremamente barulhento; lugares, como o céu e o fundo do mar, que antes eram

silenciosos, hoje, com a sua utilização para fins de transporte marítimo e aéreo, tornaram-

se, também, ambientes barulhentos. Daí a necessidade de não se abstrair do ambiente

sonoro onde vivemos, através do uso abusivo de aparelhos que nos isolam da vida cotidiana

e nos deixam anestesiados para os sons indesejáveis. Para Carlos Kater, o exercício da

escuta, além de importante, é prazeroso e pode nos levar a ampliar a nossa capacidade de

percepção de mundo. Ele diz que “quando conhecemos o mundo ‘de ouvido’, podemos ir

mais longe no que ouvimos, tão longe quanto formos capazes de escutar e de caminhar”

(KATER, 2011, p. 07).

As referências aos perigos que ameaçam o meio ambiente podem ser

observadas em diversas áreas do conhecimento. Até aqui, foram apresentadas questões

ecológicas do ponto de vista da escuta significativa do ambiente sonoro, o que Murray

schafer chamou de Ecologia Acústica. Já foi dito bastante sobre as consequências da

postura individualista do ouvinte que se abstrai do seu ambiente sonoro coletivo e se

envolve em um invólucro protegido pelo seu “fone de ouvido” que o deixa isolado dos sons

do mundo. Neste contexto, é possível fazer uma conexão com o pensamento de Guatarri

quanto à postura individualista da sociedade em relação ao meio ambiente.

Guatarri, em seu livro “As três ecologias”, ao abordar a questão do

desequilíbrio ecológico e da padronização de comportamentos da sociedade na atualidade,

diz que é a relação da subjetividade com sua exterioridade que se encontra comprometida

(GUATARRI, 1990). Ouvir o mundo a nossa volta pode ser uma forma de participarmos

mais da vida coletiva da comunidade. Através de uma escuta crítica do ambiente onde

vivemos, podemos refletir sobre que tipo de ambiente no qual queremos viver. Refletir se o

som que produzimos não estaria diretamente ligado ao nosso modo de vida atual. Guatarri

questiona como é o modo de vida da sociedade moderna e chama a atenção para uma

mudança de mentalidade no que diz respeito ao progresso técnico-científico. “O que está

em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no contexto da

aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico”

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(GUATARRI, 1990, p. 08). O autor faz uma crítica à falta de atenção para os desequilíbrios

na natureza provocados pelo homem sob a justificativa de um desenvolvimento necessário

e uma economia de lucro “se sobrepondo às esferas sociais”. Ele diz,

O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-científicas,

em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos

que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície.

Paralelamente a tais perturbações, os modos de vida humanos individuais e

coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração (GUATARRI,

1990, p. 07).

A ameaça de deterioração, provocada pela relação da humanidade com a

natureza, não se dá somente pela poluição objetiva que já se estabelece, mas também pelo

fato de estar havendo “um desconhecimento e uma passividade fatalista dos indivíduos e

dos poderes com relação a essas questões consideradas em seu conjunto” (GUATARRI,

1990, p. 23). O desafio será promover um conjunto de novas ações do “ser-em-grupo”

criando práticas efetivas tanto “nos níveis microssociais quanto em escalas institucionais

maiores”, uma vez que lançar mão de ações e fórmulas correspondentes a períodos

históricos anteriores, não seria útil, pois “a densidade demográfica era mais fraca e a

densidade das relações sociais mais forte que hoje”, ou seja, o mundo caminha em

constante transformação física e social. É necessário que se busque novos modos de

apreensão para a nova realidade mundial e como nos diz Guatarri, “os modos de apreensão

– seja pelo conceito, seja pelo afeto e pelo percepto – são, com efeito, absolutamente

complementares” (GUATARRI, 1990, p.19).

O campo dedicado ao estudo das relações entre o indivíduo com ele mesmo,

com a sociedade e com o meio ambiente evidenciadas acima, Guatarri denominou de

Ecosofia ou Ecologia Social, isto é, “uma articulação ético-política” entre, o que o autor

definiu como os três registros ecológicos - o do meio ambiente, o das relações sociais e o da

subjetividade humana (GUATARRI, 1990, 08). A partir desses três pilares, é possível,

segundo ele, uma conexão entre os aspectos sociais e educacionais entendendo a educação

estética como um dos meios de equilibrar as relações do indivíduo com o exterior em um

recriar-se contínuo: “Novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na

relação com o outro, com o estrangeiro, com o estranho” (GUATARRI, 1990, p. 55). Para o

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autor, a natureza não deve ser separada da cultura; é necessário aprendermos a pensar

“transversalmente” as interações entre ecossistemas, as relações individuais e sociais.

Guatarri coloca o que ele chama de alguns desastres da ecologia social ou, um desequilíbrio

ecológico, isto é, degenerações que a sociedade vem sofrendo em razão de uma economia

de lucro. Tais desastres, segundo ele, são: a) a mídia influenciando no modo de vida das

pessoas. “As telas de televisão estão saturadas de uma população de imagens e de

enunciados ‘degenerados’” (GUATARRI, 1990, p. 25); b) o desenvolvimento que se

apodera de territórios urbanos e rechaça dezenas de milhares de famílias pobres; c) a

desterritorialização do Terceiro Mundo, que afeta a textura cultural das populações, o

habitat, as defesas imunológicas; d) o trabalho infantil. E prossegue dizendo que para se ter

um controle sobre estes fenômenos é necessária “uma mudança fundamental de

mentalidades”. Diz ele que, diante desse quadro atual, no qual a economia de lucro se

sobrepõe às esferas sociais, no qual a subjetividade perde para o subjetivo coletivo, “não

somente as espécies desaparecem, mas também as palavras, as frases, os gestos de

solidariedade humana” (GUATARRI, 19990, p. 27).

Na visão de Guatarri, é importante que as três ecologias se desprendam dos

paradigmas pseudocientíficos para determinar seus pontos de referência. Isto porque, ao

estabelecer tais pontos, está implicado uma lógica diferente “da lógica que rege a

inteligibilidade dos conjuntos discursivos” atuais. Na sua visão, é importante que se

originem novas práticas políticas, novas práticas estéticas e novas relações entre capital e

atividade humana visando uma valorização da subjetividade, isto é, de conhecimento,

cultura, sensibilidade e sociabilidade. “Sistemas de valor incorporal, as quais a partir daí,

estarão situados novas relações produtivas”. Segundo Guatarri,

A ecosofia social consistirá, portanto, em desenvolver práticas específicas que

tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do

contexto urbano, do trabalho, etc. [...] A questão será literalmente reconstruir o

conjunto de modalidades do ser-em-grupo (GUATARRI, 1990, 15-16).

Ao trazer essas questões para o campo da educação musical, segundo

Koellreutter, - “que jamais considerou a educação musical apenas um meio para a aquisição

de técnicas e procedimentos necessários à realização musical” (KOELLREUTTER apud

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BRITO, 2001, p. 40) - é necessário que o professor proporcione para os alunos uma

“educação viva” que seja adequada à sua época e contexto, de modo que a música, possa

ser um instrumento de educação, possibilitando uma formação crítica através de uma visão

estética de mundo; valorizar “a importância e o porquê da música na vida humana”. Para

Koellreuter, este modelo de educação musical deveria ser:

[...] um tipo de educação musical que sirva de complemento ao ensino tradicional

e leva o aluno a dúvidas, suposições e hipótese, ao conhecimento especulativo, à

pesquisa e à investigação. Um ensino que indica caminhos para a invenção e a

criação de novas ideias, novos conceitos e novos princípios de ordem; que treina

o ouvido como exercício de ler e ouvir, produzir, distinguir e definir qualquer

fenômeno sonoro, incluindo o ruído e o som artificial (KOELLREUTTER apud

SOARES, 2006, 380-381).

A sociedade moderna tem se caracterizado pela velocidade com que estão

acontecendo os avanços tecnológicos e, por consequência, estamos vivendo um momento

em que os produtos são cada vez mais descartáveis num período ínfimo de tempo: o que era

uma grande novidade tecnológica, em questão de meses, torna-se um produto obsoleto; o

lixo tem se tornado um grande problema para os governos. Vivemos em sociedade formada

por uma multiplicidade de indivíduos que vêm se perdendo quanto à sua responsabilidade

individual. Neste sentido, a educação musical nas escolas, deveria ser um tipo de educação

musical diferente daquele destinado à profissionalização de musicistas, embora seja

competência do curso também oferecer condições para que aqueles alunos que demonstrem

interesse por uma prática musical poderem se desenvolver tecnicamente em algum

instrumento musical. Contudo, afirma Koellreutter, não se pode perder de vista o objet ivo

primordial de uma educação musical que tenha a função de “transformar critérios e ideias

artísticas em uma nova realidade, resultante de mudanças sociais” (KOELLREUTTER121

).

E complementa dizendo que mesmo a educação musical voltada para a formação e

121 KOELLREUTTER, H. J. O ensino da música num mundo modificado. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 6. Disponível em: <http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em 10 out. 2012.

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preparação de músicos profissionais, deve ser um ensino de música que prepare os futuros

musicistas a “colocar suas atividades a serviço da sociedade” (KOELLREUTTER122

).

Muito do que se vê em cursos de formação, capacitação ou especialização é que

os métodos de educação musical “caracterizam-se, muitas vezes, pelo enfoque exclusivo de

questões especificamente musicais e – unicamente – da música tradicional do Ocidente”

(BRITO, 2001, p 44). São, geralmente, cursos destinados a novas possibilidades

pedagógicas, mas com conteúdos que abordam temas como: leitura e escrita da notação

musical tradicional, fórmulas de compasso, formações orquestrais tradicionais, etc. Não que

esses assuntos não tenham o seu valor, mas são assuntos que fazem parte de apenas um

período da história da música dentro de uma região delimitada. Koellreutter, sempre esteve

mais preocupado com os porquês da música, com os processos criativos que envolvem

determinada composição, seja ela barroca, clássica, oriundas de outras culturas ou

contemporânea. Ele propunha “trabalhar com a linguagem musical de um modo aberto e

criativo, com o objetivo principal de desenvolver as capacidades humanas”

(KOELLREUTTER apud BRITO, 2001, p. 43).

Se “a música exerce função simbólica, pelo menos no sentido em que ela

representa outras coisas como valores culturais e comportamento humano”

(ZAMPRONHA, 2007, p. 97); se, para uma total compreensão da arte, precisamos

“relacionar os nossos conhecimentos com o todo. Com o todo da arte, com o todo da nossa

existência, com o todo do meio ambiente e com o todo da sociedade em que atuamos”

(KOELLREUTER123

); se “a consciência humana é produto da sua capacidade simbólica

(...) o homem planeja, pensa e age, construindo o que imaginou. Enfim, um mundo

simbólico” (DUARTE JR, 1994, p. 19-20) , a proposta de elaborarmos – professor e aluno

- outras maneiras de concebermos a música apoiada em um fazer musical criativo pode

abrir possibilidades para uma educação musical, que além da prática musical em si,

possibilita, através de uma contínua e variável visão estética de mundo, coexistências de

122

Ibidem. 123

KOELLREUTTER, H. J. O espírito criador e o ensino pré-figurativo. Cadernos de Estudo: Educação Musical nº 6. Disponível em: < http://www.atravez.org.br/ceem_6/musica_educacao.htm>. Acesso em: 10 out. 2012.

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pensamentos que pensem outras formas e necessidades de ocupação e utilização do espaço

e tempo físicos. Pensamos ser possível nos encontros, e aqui pensamos em encontro com as

Artes, que as sensações disparadas entre sons, imagens, movimentos e composição musical,

possam nos fazer sensíveis; uma consciência que não viria por um reconhecimento dado em

formas de saber pré-estabelecidos, viria de um sentir propiciado por forças agenciadoras no

jogo intensivo do virtual à sua atualização no estado de coisas atuais e que poderia colocar

o humano-aluno em um devir musical. Desse modo, a consciência só seria possível em uma

variação complexa contínua nos encontros sensíveis e singulares que cada um pode ter.

Nesta pesquisa, ao propor o exercício da improvisação livre e da composição

musical dentro de dois projetos, “Ecos da Floresta” e “Festa de São João”, e, tendo como

ponto de partida, o exercício de escutar com mais cuidado e criticamente a paisagem

sonora, foi possível criar relações musicais através da escuta dos ambientes reconhecendo

texturas, ruído, silêncio, som, melodia, ritmo, amplitude e timbre; analisar o nosso espaço

sonoro; propor uma arte interativa, tendo a ludicidade como gatilho para discussões

globais; utilizar a tecnologia na criação artística e proporcionar uma familiaridade com

ambientes de programação tecnológica. Nas atividades com os alunos, durante esta

pesquisa, como professor, me retirei da posição de alguém que “transmite” conhecimentos,

para um local onde o professor busca conhecer e criar junto com seus alunos. Parti da ideia

de experimentar em aula e de tentar criar o que não se sabe de antemão, apostando na

transdisciplinariedade que poderia haver entre arte, ciências, história e geografia, ecologia,

etnomusicologia e, por que não dizer, filosofia, já que muitos conceitos nos mobilizam a

pensar, no campo da educação. Optei por um processo de ensino-aprendizagem com as

intensidades de nossas relações, de nossos encontros, com as conexões afetivas possíveis

que levam alguém a aprender. Desafiando as verdades universais, abrimos trajetos feitos

por e com múltiplos encontros que a vida lança e que torna impossível a ideia de unidade,

vista a imensa multiplicidade que encontramos e que não estão presas a uma organização

dada.

Vale lembrar que a preocupação deste estudo sempre foi no sentido de que

todos os alunos se sentissem estimulados a participar dos projetos propostos. O conceito de

“música participativa”, apresentado por Turino, abriu essa possibilidade de “unanimidade

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participativa” no fazer musical; a ideia de vários níveis de dificuldades no que tange à

execução de um instrumento musical, seja ele convencional ou de papel, proporcionou uma

segurança para os alunos que, ao sentirem-se competentes, não se intimidaram, pois

estavam preparados para a função que desempenhariam dentro da peça; além disso, as

funções não se limitaram à prática instrumental. O registro de todo o processo de

construção da peça, a organização da sala de ensaios, por exemplo, foram todas funções

consideradas tão importantes quanto o ato de tocar. O objetivo principal, dentro do projeto,

era que os alunos estivessem inseridos dentro do ambiente das discussões que se

estabeleceram na sala de aula, assim como a participação espontânea nos exercícios

preliminares e no processo de gravação da trilha sonora.

O ato de proporcionar aos alunos uma convivência com os diferentes gêneros

musicais, apresentando novos estilos e permitindo uma análise reflexiva do que lhes foi

apresentado, tanto do ponto de vista estético quanto estrutural, reflete, a meu ver, a busca

por uma educação musical voltada não só para o aspecto técnico da execução musical, mas

para uma construção de valores sociais através da prática musical. Diz João Francisco

“frente ao mundo o homem se pergunta acerca do valor124

(do significado) que as coisas

têm em relação a sua vida” (DUARTE JR, 1988, p. 36). Acredito que tal proposta possa vir

ao encontro de uma educação musical que se realiza a partir da participação ativa de cada

um, respeitando suas limitações e seu próprio ritmo de aprendizado, valorizando a sua

personalidade, instigando a sua curiosidade e estimulando sua criatividade e imaginação.

Segundo Loureiro, é necessário que se busque novas formas de se ensinar música, ou seja,

“uma educação musical comprometida com a democratização do acesso ao saber, à cultura

e à arte” (LOUREIRO, 2008, p. 161).

A exploração de novas técnicas pedagógicas, que incluam os alunos dentro do

universo da música, e que contribuam para que eles tornem-se aptos a fazer algo e capazes

de compreenderem a sua ação indo além das notas musicais, pode ser um caminho que

procura por uma educação musical menos racionalista e mais inventiva. O ensino da

música, que propõe a investigação do ambiente acústico através da escuta, pode ser

responsável pela criação de um padrão de sofisticação na assimilação dos conceitos

124 Grifo do autor

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musicais e sociais; uma construção de valores sociais através da prática musical. Esse tipo

de concepção educacional musical sugere a oportunidade de interrelação entre várias

disciplinas e previlegia a participação efetiva do aluno. Segundo Sérgio Vasconcellos “A

inadequação das técnicas pedagógicas é na grande maioria dos casos a responsável direta

pelo insucesso de muitos planejamentos” (CORRÊA, 1971, p. 50).

Diante disso, acredito ter produzido, através do exercíco da composição e da

improvisação, a formulação de um programa de educação musical levando-se em conta

esses princípios: explorar, inventar, construir, criar músicas e executá-las, investigando o

seu desenvolvimento histórico e étnico; criar atividades em sala de aula que levem o aluno

à formação e apropriação de conceitos; sensibilizá-lo para o fazer musical e não, ao

contrário, afastá-lo da música; criar uma expectativa de escuta musical através de

experiências com novas sonoridades; confeccionar instrumentos musicais como uma

maneira de incentivar o jogo e a criatividade. Tudo isso faz parte de uma metodologia de

ensino-aprendizagem que se realiza através de um processo dinâmico, utilizando-se de

improvisações com melodias, harmonias, timbres e texturas. Enfim, propôs-se aqui uma

visão mais aberta para a música capaz de nos levar para além dos tópicos pré-moldados.

Esta pesquisa foi uma tentativa de abrir o currículo a experiências, a

experimentações e permitir acontecimentos que liberem o devir e estimulem a produção de

outras formas de conhecimentos musicais em aprendizagens que considerem o afeto como

mobilizador de desejos e de novas percepções no processo de educação. Não se trata aqui,

de importar uma metodologia ou uma filosofia de educação musical, mas buscar conexões

entre educadores que além da prática da educação, foram compositores, e por isso, capazes

de trazer a atividade artística - criativa e crítica - para dentro da sala de aula; que não se

limitaram a re-ensinar os mesmos conceitos teóricos musicais e nem reafirmar as mesmas

práticas, mas procuraram uma abordagem diferenciada para a prática musical levando em

conta o caráter formativo do indivíduo e ressaltando a sua responsabilidade perante o

mundo; através da criação, propor uma arte transformadora e que seja capaz de criar um

grau de interesse social e musical. Ao lidar com crianças, procurar uma forma de

abordagem que leve em consideração a importância do ambiente musical em sala de aula e

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procurar fazer com que todos se sintam a vontade para experimentar e participar com aquilo

que podem contribuir, independentemente do conhecimento musical que detêm.

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