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FICHA TÉCNICA Título original: Come Back to Me Autora: Mila Gray Tradução © Mila Gray, 2014 Edição original publicada em 2014 por Pan Books, uma chancela de Pan Macmillan, uma divisão de Macmillam Publishers Limited Tradução: Manuela Madureira Imagem da capa: Shutterstock Capa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1.ª edição, Lisboa, agosto, 2015 Depósito legal n.º 395 544/15 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt O poema na página 249 foi reproduzida com a autorização de Finn Buther, http://greatest‑ reality.tumblr.com

Come Back to Me Autora: Mila Gray Tradução © Mila Gray ... · o rosto, ela parece ter visto um fantasma. Não. Errado. Ela parece ... Kit parece mais velho do que os seus vinte

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FICHA TÉCNICA

Título original: Come Back to MeAutora: Mila GrayTradução © Mila Gray, 2014Edição original publicada em 2014 por Pan Books, uma chancela de Pan Macmillan, uma divisão de Macmillam Publishers LimitedTradução: Manuela MadureiraImagem da capa: ShutterstockCapa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.ª edição, Lisboa, agosto, 2015 Depósito legal n.º 395 544/15

Reservados todos os direitospara a língua portuguesa (exceto Brasil) à

EDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

O poema na página 249 foi reproduzida com a autorização de Finn Buther, http://greatest‑reality.tumblr.com

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JESSA

Uma espiral no espelho distorce a imagem, como uma impres‑são do polegar numa lente. Vou a meio da escada, a apanhar o cabelo num rabo ‑de ‑cavalo, com os pensamentos a milhares de quilómetros, quando uma mancha do lado de fora da janela me faz estacar de repente.

Desço mais um degrau, a cena fica nítida, e, ao aperceber ‑me do que estou a ver, de quem estou a ver, o coração cai‑me aos pés, e o ar sai ‑me dos pulmões como numa exalação final. Deixo cair os braços lentamente ao longo do corpo. O meu instinto é voltar a correr para cima, enfiar ‑me na casa de banho e trancar a porta, mas fico petrificada. Este é aquele momento sobre o qual se têm pesadelos, que se repete na nossa mente, o mais sombrio dos deva‑neios, alimentado por filmes e histórias da vida real que ouvimos toda a vida.

Imaginamos repetidamente como iremos lidar com a situação, o que diremos, como agiremos quando abrirmos a porta e os encon‑trarmos ali. Suplicamos a todos os deuses imagináveis que este momento nunca chegue. Fazemos acordos, promessas, trocas deses‑peradas. E vivemos cada dia com o murmúrio dessas preces girando em círculo nos recônditos da nossa mente, como um cântico inter‑minável. Então, o momento acontece, e compreendemos que tudo foi inútil. As preces não foram escutadas. Não houve acordo. Terá sido culpa nossa? Não teremos cumprido a nossa promessa?

O tempo parece ter abrandado. O pai de Kit não se moveu. Parou no fim do caminho de acesso, a olhar fixamente para a casa, olhos franzidos sob a luminosidade brilhante da manhã. Traz a farda de

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gala. Foi esse facto que registei antes de mais e me disse tudo o que precisava de saber. Isso e o próprio facto de ele se encontrar ali. O pai de Kit nunca veio cá a casa. Só há uma razão para ele poder vir.

Não deu um só passo, e a minha mente ordena ‑lhe que não o faça. Ordena ‑lhe que se vire e volte a entrar no carro escuro estacionado junto do passeio. Ao volante, vê ‑se uma figura indistinta fardada. Por favor. Volte para ali e vá ‑se embora. Começo a fazer contratos vãos com um deus sem nome. Se ele voltar para o carro e se for embora, eu farei tudo. Mas isso não acontece. Avança um passo em direção à casa, e é então que tenho a certeza de que ou Riley ou Kit está morto.

Um grito, ou talvez um soluço, tenta escapar ‑se da minha gar‑ganta, mas é bloqueado por uma sólida vaga de náusea. Agarro ‑me ao corrimão para me manter de pé. Quem? Qual deles? O meu irmão ou o meu namorado? Oh, meu Deus. Oh, meu Deus. As pernas tremem ‑me. Vejo o pai de Kit avançar lentamente pelo caminho, de cabeça curvada.

Memórias, imagens e palavras atravessam a minha mente como fragmentos riscados de um filme: os braços de Kit em volta da minha cintura, a puxarem‑me para ele, o nosso primeiro beijo a coberto da escuridão junto à da porta das traseiras, o sorriso no seu rosto na primeira vez em que dormimos juntos, o azul dos seus olhos iluminado pelas centelhas de uma lanterna chinesa, a violência da sua voz ao dizer que me amaria eternamente.

Volta para mim. Foi a última coisa que eu lhe disse. Volta para mim.Sempre. Foi a última coisa que ele me disse.Depois, vejo Riley, em garoto, a atirar um comboio de brincar

pela escada abaixo, a mergulhar na piscina, a pegar na minha mão no funeral do nosso avô, a sorrir e a bater com a palma da mão aberta na de Kit depois de se terem alistado. A foto dele fardado no dia em que terminou o curso. Os círculos sob os olhos na última vez em que o vi.

A campainha da porta soa. Dou um salto. Mas permaneço onde estou, petrificada a meio da escada. Se não for à porta, talvez ele se vá embora. Talvez isto não esteja a acontecer. Mas a campainha volta a soar. De seguida, ouço passos no patamar acima de mim. A voz da minha mãe, sonolenta e confusa. — Jessa? Quem é? Por‑que estás aí parada?

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Então, ela vê. Espreita pela janela, e eu ouço a sua inspiração profunda, e o «não» destroçado que murmura em resposta. Tam‑bém ela sabe que um carro militar estacionado em frente da casa às sete da manhã só pode significar uma coisa.

Viro ‑me para ela. Tem a mão a comprimir a boca. Com a sua camisa de noite, o cabelo despenteado e o sangue a abandonar ‑lhe o rosto, ela parece ter visto um fantasma. Não. Errado. Ela parece ser um fantasma.

A campainha soa pela terceira vez.— Vai abrir a porta, Jessa — diz a minha mãe numa voz estra‑

nha que não reconheço e me sobressalta o suficiente para recome‑çar a descer a escada. De repente, sinto ‑me mais calma, como se flutuasse fora do meu corpo. Isto não pode estar a acontecer. Não é real. É apenas um sonho.

Dou por mim diante da porta. Rodo a chave. Abro ‑a. Kit. Riley. Kit. Riley. Os seus nomes descrevem círculos na minha mente como aves de rapina num céu azul límpido. Kit. Riley. Qual deles é? O pai de Kit está aqui com a sua farda de gala e a sua insígnia de capelão para nos comunicar que o meu irmão foi morto em combate ou que o seu filho, o meu namorado, foi morto em combate? Ele viria em qualquer dos casos. Quereria ser ele a dizer‑‑me. Quereria ser ele a dizer à minha mãe.

O pai de Kit pestaneja ao ver‑me. Esteve a chorar. Tem os olhos vermelhos, as faces molhadas. Na realidade, ainda está a chorar. Observo as lágrimas a deslizarem ‑lhe pela cara e apercebo ‑me de que nunca o vi chorar, o que me leva a desejar confortá ‑lo. Mas, ainda que conseguisse encontrar palavras, tenho a garganta tão seca que não conseguiria proferi ‑las.

— Jessa — murmura o pai de Kit, em voz rouca.Apoio ‑me à ombreira da porta, conservando as costas direitas.

Estou ciente de que a minha mãe me seguiu escada abaixo e se encontra logo atrás de mim. O pai de Kit lança ‑lhe um olhar por cima do meu ombro. Respira fundo, ergue o queixo e tira o boné antes de voltar a pousar os olhos em mim.

— Lamento — diz ele.— Quem? — ouço ‑me a perguntar. — Quem foi?

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JESSA

três meses antes...

— Oh, céus, quem é aquele?Didi aperta ‑me o braço com força suficiente para provocar

nódoas negras. Levanto os olhos. E vejo ‑o. Está a fitar ‑me, a sorrir abertamente, e eu tenho de engolir o meu próprio sorriso. Sinto o estômago aos pulos e um nó nas entranhas.

— Kit — digo eu, em parte em resposta a Didi, em parte apenas pela oportunidade de proferir o nome dele em voz alta ao fim de tanto tempo. Os meus olhos estão presos aos de Kit, e, ao ouvir ‑me pronun‑ciar o seu nome, ele sorri ainda mais e atravessa a sala em direção a mim.

— Olá, Jessa — saúda. O seu olhar percorre ‑me, a avaliar ‑me, antes de se fixar no meu rosto. Leva a mão à cabeça rapada, num gesto que torna os saltos mortais mais rápidos. Continua a sorrir‑‑me, mas mais timidamente agora.

— Olá — digo eu, engolindo em seco. De súbito, fico nervosa. Não o vejo há nove meses. Não sabia se ele viria hoje e, embora tenha imaginado este momento dezenas, centenas de vezes, des‑cubro que não estou de todo preparada para ele agora que real‑mente acontece. Em toda essa imaginação nunca tivera em conta a maneira como ele me faria sentir, semelhante a ter acabado de saltar da berma de um penhasco. Estou ofegante, quase a tremer, e com dificuldade em suster o seu firme olhar azul.

Kit parece mais velho do que os seus vinte e um anos. Tem os ombros mais largos e está ainda mais bronzeado do que o habitual, factos bem salientados pela T ‑shirt branca que veste. Sinto Didi

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a apertar ‑me o braço com tanta força que parece querer estancar uma hemorragia arterial e sei que, se me virar, a verei a babar ‑se despudoradamente. Ela pode frequentar uma escola de freiras, mas as suas preces centram ‑se em pedir a Deus que a livre não de peca‑dores mas da sua virgindade.

— Feliz aniversário — deseja ‑me agora Kit. Ainda não tirou os olhos de mim, e a minha pele aquece sob o seu olhar persistente. Sinto o rosto a escaldar.

— Obrigada — consigo articular, desejando encontrar uma resposta melhor, algo provocante e espirituoso. Sei que tinha pla‑neado qualquer coisa para este momento, mas o meu cérebro optou por desligar.

— Olá!É Didi. Largou ‑me o braço e estende a mão a Kit. — Sou a Didi,

a melhor amiga da Jessa. Deves ser o Kit. Ouvi falar muito de ti.Imensa ênfase no muito. Tomo mentalmente nota para a matar

mais tarde. Kit lança ‑me um olhar, nitidamente divertido mas a tentar conter ‑se, antes de virar toda a sua atenção para Didi. Aperta ‑lhe a mão, apresentando ‑se devidamente, o que me dá a oportunidade de me recompor e o observar a sério. Ele tem um metro e oitenta, mas parece mais alto, talvez por se manter tão direito. Reconheço a marca de tinta no seu braço, a espreitar de baixo da manga. É a mesma tatuagem que Riley ostenta, um emblema dos Marines. Os meus dedos anseiam por o percorrer. Oh, céus. Há meses que ando a dizer a mim própria para me curar de Kit, a ordenar ‑me que o esqueça. Didi revira os olhos sempre que menciono o nome dele. Até acrescentou o meu nome no Urban Dictionary, na entrada da palavra patético. Mas agora, ao observar Kit a enfeitiçá ‑la, vejo que ela talvez esteja finalmente disposta a dar ‑me tréguas.

Ela faz ‑lhe perguntas como se fosse uma casamenteira chinesa, a informar ‑se acerca do trabalho e da farda. Não me admiraria se de seguida começasse a perguntar ‑lhe quanto é que ganha e se tem namorada. Eu devia interrompê ‑la, mas ainda estou a recuperar e, para ser franca, quase espero que ela lhe pergunte mesmo se tem namorada, apesar de uma outra grande parte de mim não desejar

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ouvir a resposta. Porque, e se tiver? Inspiro e lembro a mim pró‑pria que ele passou os últimos nove meses no Sudão, a viver com um grupo de tipos, a dormir numa sala com mais uma dúzia de homens, a comer numa cantina militar. Não é como se tivesse andado em festas ou a frequentar clubes todas as noites, portanto, é altamente improvável que tenha conseguido encontrar uma namorada durante esse tempo.

Kit responde delicadamente às perguntas de Didi, acenando e proferindo as respostas padrão que foram treinados para dar. Por outras palavras, nada de pormenores. Tudo o que eu sei é que ele e Riley têm estado no Sudão com o resto do seu destacamento de marines, a proteger a embaixada dos EUA em Cartum. E é tudo. Eles só voltaram ontem.

Enquanto ouço Didi e Kit a conversarem, com Didi a contar‑‑lhe que se mudou para Oceanside há apenas seis meses e que a sua grande ambição é terminar o liceu e mudar ‑se para Los Angeles (felizmente, ela omite a sua outra grande ambição: perder a virgin‑dade), apercebo ‑me de que estou a olhar fixamente para os lábios de Kit, a imaginar como seria beijá ‑lo.

Nunca aconteceu nada entre mim e Kit, nunca nada pôde acontecer, pelo que tudo o que posso fazer é imaginar. É o melhor amigo do meu irmão desde que tinham catorze anos. Conhecemos Kit assim que nos mudámos para a Califórnia, tinha eu onze anos. Ele e o meu irmão são inseparáveis desde o dia em que se encon‑traram nas provas para a equipa de basebol. É o género de amizade masculina que se vê nos filmes. Não como em Brokeback Mountain, felizmente para mim, mas é algo que sempre invejei um pouco. É provável que Kit e Riley não tenham passado um dia sem se ver desde que se conheceram. São mais chegados do que irmãos. É uma amizade que persiste, apesar de o meu pai odiar Kit e ter tentado tudo o que estava ao seu poderoso alcance para lhe pôr fim.

Olho através da janela para o jardim, onde o meu pai e Riley estão a acender o grelhador. Como se possuísse uma espécie de sexto sentido, o meu pai ergue a cabeça de repente. Nos seus tem‑pos de marine, foi um atirador especial e possui uma capacidade inquietante de pressentir quando está a ser observado. Tem ‑me

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na sua mira. Depois, vejo ‑o registar a presença de Kit. Passa ‑lhe pelo rosto uma expressão sombria antes de Riley acender o carvão, provocando chamas da altura da palmeira mais próxima, e o meu pai se virar para lhe dar ordens ríspidas. Sinceramente, só na minha casa é que uma festa de anos se transforma numa operação militar.

Nunca ficou perfeitamente claro porque é que o meu pai odeia tanto Kit, mas sei que tem algo a ver com o pai dele, que tam‑bém é marine e serviu na mesma companhia do meu pai nos anos oitenta. Também é possível que o meu pai culpe Kit por algumas das escolhas de vida mais dúbias de Riley, nomeadamente ter ‑se alistado como praça, em vez de ir para a faculdade e tornar‑se oficial, que era o que o meu pai esperava dele (leia ‑se: lhe pregava desde o berço). Depois, houve aquela vez em que incendiaram a garagem ao lançarem fogo de artifício. E a vez em que ambos se enfiaram pelas bancadas durante um jogo de futebol televisionado. Sim, agora que penso nisso, talvez haja algumas razões pelas quais o meu pai guarda ressentimento a Kit.

O pai de Kit é atualmente um capelão dos marines, tendo encontrado Deus depois de uma longa batalha com o desgosto e a garrafa a seguir à morte da mãe de Kit. Entretanto, o meu pai subiu de posto e é agora coronel, papel que desempenha mesmo quando não está fardado, provavelmente até quando dorme. Talvez seja por isso que Kit ainda está connosco, na cozinha, e não lá fora, a espevitar o fogo com os homens. Ou talvez a razão seja outra?

Kit vira ‑se para mim e inspira profundamente. Atrás dele, avisto Didi a fazer uma expressão de «uau!» Esforço ‑me para não rir.

Precisamente nessa altura, a minha mãe irrompe na cozinha a trans portar travessas cheias de comida.

— Kit! — exclama ela, encantada. A minha mãe não sente em relação a Kit nem ao pai dele o mesmo ressentimento do meu pai. Na realidade, gosta quase tanto dele como de mim e do meu irmão. Trata ‑o como seu segundo filho. Sempre que Riley e Kit regressam de licença parece a Parúsia. A minha mãe liberta ‑se da depressão em que esteve envolvida desde que eles partiram e regressa à vida. Sei que, por muito orgulhosa que se sinta, odeia que eles sejam marines tanto como eu. Também sempre des confiei que ela

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tenta compensar o facto de o meu pai tratar Kit como se ele fosse uma espécie de pária. Às vezes torna ‑se embaraçoso. Como agora.

Ela pousa duas tigelas com salada e frango marinado em cima da mesa e envolve Kit num abraço apertado. Só lhe chega ao ombro, mas ele fica com ar de quem não conseguiria libertar ‑se ainda que tentasse. O que não faz, porque é demasiado delicado, e pen‑so que secretamente gosta que ela o apaparique.

Didi aproveita a oportunidade e, enquanto a minha mãe abraça Kit, desliza para junto de mim. — Caramba, nem sequer o reco‑nheci das fotografias. É muito mais sexy. Quero vê ‑lo fardado. Imagina só. Se já é esta brasa vestido normalmente.

Dou ‑lhe uma cotovelada nas costelas. Eu já vi Kit fardado. E Didi não se engana. Fiquei sem fala.

— Ou nu — sussurra Didi. — De facto, sim, esquece a farda. Imagina ‑o nu.

— Chiu — murmuro eu, sem lhe confessar que já o fiz. Muitas vezes.

— Ele está tão vidrado em ti.— Caluda — sibilo, enquanto a minha mãe larga Kit. No

entanto, sinto o pulso acelerar. Didi terá razão? Ou apenas dirá aquilo porque sabe que é o que eu quero ouvir?

— Não, a sério, ele não consegue tirar os olhos de ti — insiste Didi, a disfarçar as palavras com uma tossidela quando Kit se vira para voltar a olhar ‑me. — Estás a ver? — Didi dirige ‑se à minha mãe. — Senhora Kingsley, precisa de ajuda? — pergunta em voz excessivamente alta e excessivamente óbvia.

A minha mãe ergue os olhos, afogueada. — Ah, isso seria ótimo, obrigada, Bernadette.

— Didi — corrige Didi abruptamente. Detesta que a tratem pelo nome de batismo. Pega no frango e encaminha ‑se para a porta onde se acumulam grandes vagas de fumo graças ao líquido ace‑lerante que o meu irmão acabou de deitar no grelhador. Lança ‑me um olhar ao sair: olhos arregalados e a cabeça inclinada na direção de Kit. Deduzo que me está a dizer para ir falar com ele.

O problema é que eu nunca precisei de me esforçar para con‑versar com Kit. Sempre aconteceu naturalmente. Até agora. Por

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qualquer razão, a minha garganta parece estar repleta de pedras. Mal consigo pensar numa frase coerente, quando mais proferi ‑la.

— Então, Jessa, como tens passado? — ouço Kit dizer mesmo atrás de mim.

Viro ‑me, com o coração a disparar como um foguete dentro do peito.

— Olha... bem. Ótima. OK. — Conversa de chacha. Isto é con‑versa de chacha. Ele está a rir de mim. Vejo ‑o morder os lábios, a esforçar ‑se para não sorrir. Os lábios. OK. Foco. Nada de fixações.

Respiro fundo. Como ninguém, exceto Didi, sabe, há anos que eu gosto de Kit. Estou caída por ele desde que eu tinha catorze anos e ele dezassete, mas, a última vez em que ele veio de licença foi a primeira vez em que senti que isso poderia ser recíproco, talvez, possivelmente. Possivelmente não. É este talvez, possivelmente, pos‑sivelmente não que me tem mantido acordada na maioria das noites durante os últimos nove meses. Recordei incessantemente as intera‑ções que tivemos até as memórias ficarem tão gastas que não tinha a certeza se estaria a remendá ‑las com acontecimentos inventa dos, a imaginar coisas que não haviam acontecido. Ter ‑se ‑iam os seus dedos demorado nos meus naquela vez que me ajudou a levantar? Ter ‑me ‑á apertado mais quando me deu o abraço de despedida? Terá olhado para mim com uma intensidade penetrante porque se imaginava a beijar ‑me ou porque eu tinha comida presa nos dentes? Trocámos e‑mails com regularidade enquanto ele esteve ausente, e os e‑mails foram despreocupados, por vezes aproximando‑se do flirt, antes de voltarem rapidamente para o terreno mais sólido de apenas amigos.

— Ainda bem — comenta ele. Aquilo é um sorriso trocista?Porque não consigo eu deixar de olhar para os lábios dele? Por‑

que hei de perder completamente o fio aos pensamentos quando ele está tão perto? E terá ele sempre cheirado tão bem? Que diabo se passa comigo?

Consigo finalmente encontrar a voz e construir uma frase com‑pleta com verbos, substantivos e pronomes. Incrível. — E tu? Como foi aquilo por lá?

Apanho o leve desvanecer momentâneo do seu sorriso antes de voltar a brilhar de novo. Passa a mão pela cabeça.

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— Pois, sabes... — Encolhe os ombros e deixa a frase em sus‑penso.

Pergunta estúpida, penso eu. Raios. Durante um instante nenhum de nós diz nada. Começo a torcer a ponta do meu rabo‑‑de ‑cavalo, uma coisa que faço quando estou nervosa, e depois, apercebendo ‑me de que isso pode ser tomado como provocante ou como idiota, deixo cair as mãos ao longo do corpo. Kit está ali, à espera, a observar ‑me, aquele meio sorriso ainda no rosto. É difícil decifrar a sua expressão. Parece divertir ‑se com o meu embaraço, mas há algo mais na maneira como me olha. Abre a boca como se fosse perguntar ‑me algo, mas volta a fechá ‑la. O ar à nossa volta parece carregado de tensão, mas tal vez isso seja por‑que eu estou superconsciente de cada gesto que faço e também do facto de o meu pai se encontrar a menos de quinze metros a empunhar uma coisa que pode ser encarada como uma arma.

— Quanto tempo tens? — indago finalmente, sentindo as faces a arder quase tanto como o frango que se encontra a fumegar no grelhador.

— Quatro semanas — responde ele.Aceno e baixo os olhos para os pés. Quatro semanas. Um

mês. E depois partirá de novo. Porque desejo eu que aconteça algo entre nós? Não vale a pena. Ele partiria quase de imediato.

— Então, qual é a sensação? — pergunta.Levanto bruscamente a cabeça. Qual é a sensação de quê? Por

um instante ocorre ‑me a ideia louca de que ele sabe o que estou a pensar, de que me leu a mente.

— De ser livre. De ter dezoito anos — explica Kit, ao ver ‑me confusa.

— Bom, tenho mais uma semana de aulas — digo eu. — Depois, o verão inteiro. E, depois, vou para a universidade.

Kit inclina a cabeça para um lado. — A USC?— Não. A USD — replico eu. — Disse adeus a esse sonho. Para

mim, vai ser a Universidade de San Diego.— Pensava que querias ir para Los Angeles — comenta Kit.

— Pensava que estavas entusiasmada com um curso de teatro na USC.

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O meu olhar voa instintivamente para a janela, para o meu pai que continua ocupado com as chamas ondulantes. Grita qualquer coisa a Riley. — Bom, sabes como é — digo, desejando não ter abordado o assunto. — O meu pai quis que eu fosse para a USD. É mais perto. Posso viver em casa.

Kit olha para mim com uma expressão incrédula, um relâm‑pago de desapontamento nos olhos que me deixa um nó no estômago. Era de esperar que Kit se lembrasse que eu queria ir para a Universidade do Sul da Califórnia. Ele foi a primeira pessoa a quem contei o meu sonho de frequentar a Escola de Arte Dramática da USC. Fi ‑lo na última vez em que ele veio de licença. Tinha tido uma discussão com o meu pai por causa das notas dos meus testes, e depois fora até à praia e encontrara Kit. Havíamos começado a conversar, e, quando dei por mim, estava a contar ‑lhe tudo. Kit fora a primeira pessoa a perguntar ‑me o que queria eu fazer da minha vida. Se pudesses realizar um sonho, qual seria?, perguntara.

Eu dissera ‑lhe que iria para a USC estudar teatro. Ele ficara tão interessado, tão entusiasmado com a ideia, que eu começara também a ficar excitada, começara de facto a considerá ‑la. Depois voltara para casa, ainda estimulada pela nossa conversa, pronta para começar a pesquisar o processo de candidatura, e encontrara o meu pai à minha espera com um programa completo de explica‑ções pós ‑horário escolar e uma brochura da USD. Mas não quero pensar em nada disso hoje. É o meu aniversário. Kit olha em volta da sala com a testa franzida. Sigo o seu olhar até à janela. O meu pai está de pé, com tenazes incandescentes numa das mãos, a olhar ‑nos furiosamente através do vidro, de olhos apertados como miras de laser. No entanto, de repente, a sua visão é bloqueada por Didi, que se coloca diante dele a segurar uma tigela de frango marinado como se fosse a cabeça de São João Batista.

— É melhor ir andando — ouço Kit dizer.Dou meia ‑volta. — Não — murmuro rapidamente, a agarrar o

pulso dele. — Fica, por favor.Kit olha para os meus dedos a rodearem ‑lhe o braço. Não diz

nada, mas, quando ergue os olhos, sinto o pulso acelerar ao ver ‑lhes

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a expressão. É inconfundível. Não estou a inventar nem a imaginar isto. Vejo o desejo, brilhante como uma labareda. Surpreendida, largo ‑lhe o pulso, os dedos escaldantes.

— Não quero ir a tribunal militar — murmura ele, a acenar levemente com a cabeça na direção da janela.

— Ora, ignora ‑o — aconselho eu, ofegante, e amaldiçoando ‑me por isso. — Ele não está bem. Sabes como ele é. — Detesto ter de arranjar desculpas para o meu pai, mas já me habituei. Tenho ‑o feito durante a maior parte da minha vida.

— Pois — contesta Kit —, mas não quero que ele me mande numa missão isolada para a Somália ou o Afeganistão. Ou, ainda pior, que me ponha a limpar latrinas na base para o resto da vida.

Kit olha para a minha mão que se encontra a poucos centímetros da sua. Levanta a cabeça, e o seu olhar pousa um instante nos meus lábios. — É melhor ir indo — repete em voz baixa.

Engulo em seco. Não. Não vás, quero eu dizer. Quero voltar a pegar ‑lhe no pulso. Quero ver mais uma vez aquela expressão no seu olhar. Só para ter a certeza, porque já começo a perguntar ‑me se não a terei imaginado. Mas não faço nada disso. Limito ‑me a acenar. Ele recua em direção à porta. — Diz a Riley que depois lhe telefono.

Aceno de novo. Sabe ‑se lá porquê, sinto lágrimas a queimarem os meus olhos. Culpo o fumo do churrasco que se infiltra pelas portas de sacada completamente abertas. Porque é que o meu pai tem de estragar sempre tudo? E, ainda mais irritante, porque é que eu não o enfrento? Já tenho dezoito anos. Já não devia ter medo.

— Vemo ‑nos por aí, Jessa — despede ‑se Kit. Tira dois cupcakes do prato em cima da mesa, sorri ‑me e desaparece. Segundos depois, ouço a porta da entrada a bater.

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KIT

Não devia ter ‑me vindo embora. Se o coronel sou um idiota Kingsley não me tivesse apontado aquelas tenazes como se visasse a minha cabeça com uma metralhadora, talvez eu tivesse ficado por lá. Aposto que lhe passou pela cabeça usar a minha cara como combustível para o grelhado. Enfim. O que esperava eu? Nunca fui bem acolhido na casa deles. Bom, isso não é estritamente verdade. Sou bem acolhido sempre que ele não está. Riley, Jessa e a mãe sempre fizeram todos os possíveis para que eu me sentisse em casa. Acho que sentem remorsos pela maneira como ele me trata. Sei que Riley acha o pai um idiota, mas não pode dizer nada. Suponho que, no seu lugar, eu também não diria.

Com um suspiro, passo a perna por cima da moto e ligo o motor. Enquanto estava longe, as duas coisas de que mais sentia a falta, e acerca das quais tecia fantasias tão regularmente que na minha unidade me alcunharam de cabo «na Lua», eram esta moto e Jessa Kingsley. OK, e de um bife do Fleming’s, meio passado. Mas principalmente de Jessa, devo dizer. E, caramba, agora lembro ‑me exatamente porquê e apercebo ‑me, ao mesmo tempo, do quanto a minha imaginação me defraudou. Não levei comigo uma foto dela, não queria que Riley tivesse ocasião de perguntar por que raio andava eu com uma fotografia da irmã na carteira, por razões óbvias, nomeadamente por desejar manter os meus tomates inteiros. Para a próxima, contudo, vou levar uma foto. Que se lixem os tomates.

Jessa Kingsley é a minha obsessão secreta há dois anos. Feliz‑mente para ela, sai à mãe e não ao pai: cabelo louro claro, pele acetinada, olhos tão verdes que, se não soubéssemos, julgaríamos

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serem lentes de contacto. Um dia, ela era aquela miúda loirita, só cotovelos, joelhos e aparelho dos dentes, que nos seguia perma‑nentemente aos dois, como um lemingue, depois eu vou para os treinos, e, quando volto, descubro que ela está crescida, com olhos do tamanho de pratos rasos, o cabelo caído a direito, pelas costas abaixo, como a mira de um atirador especial, e um sorriso que me corta a respiração sempre que o vejo.

Ela não cresceu muito. Na verdade, continua baixa e delicada, mas tem curvas em todos os sítios certos. Embora eu tenha demo‑rado um pouco a perceber isso, e tenha sido mais um bónus do que a atração principal. Jessa frequenta uma escola de freiras, e o seu uniforme assemelha ‑se a um hábito de religiosa. E penso que o pai tem o poder de veto acerca de todo o seu guarda roupa, porque ela nunca mostra muita pele. Só percebi como o seu corpo era fabuloso quando a vi na praia, de biquíni. Essa visão foi o suficiente para transformar a minha obsessão marginal em devastadora.

No entanto, ir a casa dela foi uma ideia parva. Agora não serei capaz de a afastar da cabeça durante o próximo mês. Suponho que parte de mim esperava ir visitá ‑la e descobrir que ela ganhara uns cinquenta quilos ou pelo menos um namorado, o que poria todos os meus sonhos em perspetiva. Talvez ela tenha mesmo um namorado. A ideia quase me faz esbarrar no passeio. Droga. Não perguntei. Mas não. Quero dizer, se ela tivesse namorado, eu saberia, certo? Tenho a certeza de que Riley teria dito qualquer coisa. Qualquer rumor de um tipo a atirar ‑se à irmã, e ele saberia e pôr ‑lhe ‑ia ponto final, mesmo lá de longe, do Sudão. Descobriria uma maneira. Além disso, há o pai dela. Não estou a vê ‑lo a consentir que Jessa saia com ninguém algures neste século. E não consigo imaginar nenhum tipo a conhecer o pai e a convidá ‑la para um segundo encontro.

Nem sei dizer quantas vezes pensei em confessar a Jessa o que sinto, mas, para ser franco, nunca tive a certeza de ela estar inte‑ressada. E admitir algo deste género a alguém é realmente coisa de uma só oportunidade. Se não for retribuído, não só fazemos figura de parvos como perdemos uma amizade. A parte da figura de parvo não me preocupa muito, porque provavelmente é o que ela já me

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considera, mas preocupa ‑me perder a amizade dela. A questão é que, nos seus e‑mails recentes, se não me engano, ela pareceu namoriscar comigo. E, depois de ver a maneira como ela me olhou ainda há pouco e dos comentários nada subtis da sua amiga, tenho quase a certeza de que sim. Instala ‑se ‑me no peito um zumbido mesmo abaixo do esterno, um impulso de energia que se transmite em redor, fazendo acelerar o ritmo do meu coração.

Apercebo ‑me de que vou a exceder bastante o limite de veloci‑dade e a sorrir como um acelera maníaco. Abrando. Há um sinal de proibição de inversão do sentido de marcha. Apesar disso, durante um segundo, penso em fazê‑lo. Mas depois digo a mim próprio para me manter afastado. Riley matava ‑me. Raios, o pai dela matava ‑me se desconfiasse sequer do que eu fantasio em relação à filha. Na realidade, ele não se limitaria a matar ‑me. Primeiro torturava ‑me, e depois matava ‑me. É má ideia. Jessa e eu não poderemos nunca estar juntos. Não a longo prazo. Ela vai para a universidade no outono, e eu volto a partir daqui a um mês, nem preciso de que me lembrem.

Estaciono junto ao cais e fico apoiado ao gradeamento durante meia ‑hora, a ouvir as ondas a bater nos pilares, a observar as crian‑ças que brincam nos balouços ao fundo do passeio, e os pescadores que deitam as redes uma e outra vez, esperando apanhar algo que se veja. Quando finalmente me volto, o sol começa a afundar ‑se no oceano, e decidi o que vou fazer. Sorrio, apesar de saber que talvez seja a coisa mais estúpida que alguma vez pensei em fazer. E, con‑siderando todas as coisas estúpidas que já fiz, isso não é dizer pouco.

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JESSA

Estou estendida em cima da cama, a brincar com o colar que a minha mãe acabou de me oferecer e a olhar para o teto. É em forma de coração (o colar, não o teto), e, enquanto brinco com ele, não posso impedir ‑me de pensar em Kit. Ter ‑me ‑ei enganado em relação à expressão dos seus olhos? Sinto borboletas a flutuarem no meu estômago à ideia de que não me enganei. Mas, depois, as borboletas desfazem ‑se em pedaços ao imaginar a cara do meu pai a olhar para Kit através da janela e a apontar ‑lhe as tenazes do grelhador. Quero dizer, há demasiados obstáculos, mesmo sem contar com o número de armas e acessórios de grelhador que o meu pai possui. Afundo a cabeça na almofada. Suponho que posso dizer adeus a saber alguma vez como é beijar Kit. E, de caminho, suponho que posso dizer adeus a ter namorado antes dos trinta e um anos ou a alguma vez perder a virgindade. Serei como as freiras que nos ensinam Religião na escola. Na verdade, posso tirar já as medidas para uma coifa e arrumar o assunto.

Não contei a Kit as discussões que tive com o meu pai por causa da universidade. Na realidade, «discussões» é um exagero. Ninguém discute com o meu pai. Ele dita a lei. Nós obedecemos. O meu pai sofre de distúrbio de stresse pós ‑traumático, um diagnóstico feito oficiosamente por mim e Riley, dado que ele se recusa a consultar um «médico de malucos» ou a falar acerca dos seus problemas. Temos de andar a pisar ovos, por medo de que ele fique demasiado stressado ou irritado, o que acontece mais ou menos de hora a hora. Até o som do assobio de uma chaleira pode fazê ‑lo explodir, razão pela qual todos os nossos telefones estão regulados para o modo silencioso.

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Quando tem mesmo uma das suas crises, é como se um tornado assolasse a casa. Nunca nos bateu, mas já destruiu imenso mobi‑liário. Neste momento, ouço ‑o no piso de baixo, no seu escritório, a ver o jogo, soltando ocasionalmente uma imprecação isolada ou um grito de vitória. Tenho o estômago tenso e sinto ‑me nervosa, como se fosse fazer um teste em que o castigo por falhar é a morte em frente a um pelotão de fuzilamento. Com um reconhecimento desagradável, apercebo ‑me de que me sinto assim sempre que ele está em casa. Não sei como é que a minha mãe aguenta nem por‑que é que não se divorciou dele. Se eu estivesse no lugar dela, já o teria feito. Prometo solenemente a mim própria que jamais casarei com um militar. Não depois de presenciar a destruição que isso provocou na minha própria família.

Uma pancada na porta sobressalta ‑me. Tiro a cabeça de baixo da almofada. Riley encontra ‑se à entrada. Olha por cima do ombro, entra no meu quarto e fecha silenciosamente a porta atrás de si.

— Ei! — exclama, deixando ‑se cair na cama a meu lado. — Que tal estás?

— Bem — respondo eu, sentando ‑me de pernas cruzadas na cama e encolhendo os ombros. — Já sabes.

Ele acena afirmativamente. Sabe. Aniversários, Natais, Dias de Ação de Graças... são, sem sombra de dúvida, os dias mais desgas‑tantes do ano em nossa casa. Ter Riley presente ajuda, porque, pelo menos, partilhamos o peso e podemos ambos amparar a minha mãe. Quando ele não está, cai tudo em cima de mim, algo de que, creio, Riley sente remorsos, porque quando me estende um pre sente bem embrulhado, a sua expressão é um pouco acanhada.

— Feliz aniversário — diz.Eu seguro no presente e fito Riley, curiosa. — O que é? —

pergunto.— Arranjei ‑o no Sudão.Isso leva ‑me a erguer uma sobrancelha. Quero dizer, não consigo

imaginar que género de centros comerciais eles terão lá.Rasgo o embrulho com dificuldade. Durante toda a nossa vida,

o meu irmão e eu fomos exaustivamente ensinados a arrumar os nossos quartos no final de cada dia e a fazer as nossas camas como

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se nos preparássemos para uma inspeção diária, que, de facto, acon‑tecia. O presente está acondicionado de modo tão impecável como uma cama de caserna de marine. Demoro quase cinco minutos a chegar ‑lhe.

— Um iPhone? — exclamo, surpreendida, quando finalmente consigo rasgar o papel todo.

— Sim, não mostres ao pai — aconselha Riley, desnecessaria‑mente. Como se tal coisa me passasse pela cabeça. O meu pai opõe‑‑se com veemência às redes sociais, smart phones ou, bem, qualquer tecnologia que não se destine a uso militar. Desconfia, por natu‑reza, de tudo aquilo que não consegue compreender, e isso coloca as redes sociais no topo da sua lista, com as raparigas adolescentes logo a seguir. Não só me proibiu perentoriamente de ter uma conta no Facebook como apenas recentemente concordou em me deixar comprar um telemóvel (o tijolo mais básico existente no mercado) com a condição, salientou, de que eu o use apenas para emergên‑cias. O tipo da loja olhou para mim com o ar de pie dade normal‑mente reservado às vítimas de catástrofes humanitárias. A única notícia boa é que não especificou o que entendia por emergências, portanto, todas as conversas com Didi agora começam por «Didi, isto é uma emergência.»

— Arranjaste isto no Sudão? — pergunto eu a Riley, repa‑rando que é o último modelo mas que não traz caixa. Nem instru‑ções, aliás.

Riley encolhe os ombros. — Desbloqueei ‑o e meti ‑lhe algumas aplicações.

Percorro ‑o. — Candy Crush? Angry Birds?— Sabes, para todas aquelas conferências chatas a que vais ter

de assistir na universidade. — Obrigada — agradeço ‑lhe com uma palmada no ombro.— De nada — responde ele, devolvendo ‑me a palmada. Durante

um bocado não dizemos nada. Riley parece diferente, em especial depois desta última missão: mais velho, mais preocupado, cansado. Quase deixou de sorrir, e não me lembro da última vez que o ouvi rir ou contar uma piada, o que é estranho, porque Riley foi sempre um gozão, o miúdo que pespegava autocolantes à prova de água

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com as caras dos professores em todas as sanitas da escola, o miúdo que cobriu o automóvel do diretor com papel de alumínio e liderou a sua turma do sexto ano num Dia de Gazeta. Acho que ele parou com as partidas mais ou menos na mesma altura em que o meu pai começou a passar ‑se.

Não o digo a Riley, mas aquilo que mais me assusta, além da sua morte, é que um dia ele regresse e comece a comportar‑‑se como o pai. O dia em que ele se alistou com Kit foi um dos piores da minha vida. Mas sorri como sempre e fingi ‑me feliz por ambos. Agora gostaria de o interrogar sobre o Sudão, sobre o seu trabalho, sobre o que viu, mas sei que ele não me pode contar muito e, além disso, tenho a sensação de que não quer falar sobre o assunto.

— Queres ver televisão? — pergunto, esperan çada em que ele diga que sim, porque ainda não tive muitas oportunidades de estar com ele desde que regressou. E são os meus anos.

— Não posso — responde. — Vou encontrar ‑me com a Jo. — Lança ‑me um olhar de desculpas e põe ‑se de pé.

Esforço ‑me para ocultar o meu desapontamento. Então, está decidido. Vou ficar aqui estendida e fazer uma pequena festa de piedade por mim própria, porque quem é que passa a noite do seu décimo oitavo aniversário sozinha no quarto, a jogar Angry Birds num telemóvel cujas definições estão todas em árabe, tendo ao pescoço um pendente em forma de coração oferecido pela mãe? Ah, pois, certo, alguém sem vida própria. E sem perspetivas de a vir a ter.

— Como vai a Jo? — indago, a sorrir, embora suspire inti‑mamente.

— Está boa — diz Riley, e a sua cara ilumina ‑se instantanea‑mente. Ele e Jo já se namoram há três anos. Conheceram ‑se mesmo antes de ele e Kit se alistarem. Jo estava a servir à mesa na sua churrascaria preferida. Riley gastou a maior parte das suas econo‑mias em bifes e gorjetas, a tentar convencê ‑la a sair com ele, e ela acabou por ceder. O meu irmão é aquilo a que algumas pessoas chamariam persistente. A minha mãe diz que ele simplesmente não sabe aceitar um não como resposta. E aquilo parece estar a resultar,

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apesar de eles só se verem de nove em nove meses, mais ou menos. Penso nisso enquanto Riley sai a porta. Sem dúvida para uma noite de sexo. E nem sequer é o aniversário dele, penso mal ‑humorada.

Ainda não passou um minuto desde que ele partiu quando o som de qualquer coisa a roçar na minha janela me faz erguer bruscamente a cabeça. Levanto ‑me da cama e vou até à janela. Riley. Ele costumava atirar pedras à minha janela nas noites em que se escapava, um sinal para eu descer e lhe abrir a porta das traseiras para ele entrar. Abro a janela e espreito. Talvez se tenha esquecido das chaves. Está completamente escuro lá fora, a lua é uma lasca, e as luzes do pátio não estão acesas, pelo que não consigo ver nada.

— Jessa?O coração salta ‑me à boca ao reconhecer a voz de Kit.— Que estás tu a fazer? — sibilo para a escuridão. A minha

excitação é toldada pelo facto de o meu pai possuir uma audição supersónica, e, se ele encontra Kit a vadiar por entre os seus arbus‑tos, não precisa de desculpa para pegar na espingarda.

— Desce — diz Kit.Hesito. O meu estômago parece uma máquina de lavar roupa

no ciclo de extração. Porque quer ele que eu desça? E se o meu pai ouve? Mas o meu corpo está a reagir autonomamente, vou já a caminhar para o espelho. Passo uma escova pelo cabelo e fito os meus olhos, que me parecem levemente febris e vítreos.

Vou até ao patamar em bicos de pés, tentando encontrar uma desculpa para o motivo que me leva lá abaixo, caso seja apanhada. Depois recordo a mim mesma que mal passa das nove. Não preciso de uma razão para descer. Do que preciso é de atinar. Entro na cozinha e dirijo ‑me diretamente à porta, abro o ferrolho e deslizo para fora, tudo isto a murmurar uma prece silenciosa para não ser apanhada, porque, embora eu tenha jeito para representar, quando se trata do meu pai só recebo Razzies1. Ele vê através de mim como se eu fosse uma janela sem vidro.

1 Os Golden Raspberry Awards, ou só Razzies, são uma paródia aos Óscares atribuídos aos piores do ano (ator, filme, realizador, etc.). (NT)

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Estou descalça; a relva faz ‑me cócegas nos pés. Movo ‑me rapida‑mente pelo relvado em direção aos arbustos laterais do jardim. No entanto, quando chego, não há sinal de Kit. Olho em volta. Onde está ele? Estou a ficar maluca? Terei imaginado isto?

Mas, nessa altura, uma mão tapa os meus olhos, e um braço rodeia a minha cintura por trás.

— Buu — sussurra Kit ao meu ouvido. Uma onda de arrepios percorre ‑me a espinha. A sua mão esquerda

demora ‑se no meu estômago, mas ele tira a outra dos meus olhos. Volto ‑me devagar, trémula, subitamente inibida. Trago apenas os calções do pijama e um top de algodão, sem sutiã. Talvez devesse ter pensado em vestir uma camisola. Mas agora é demasiado tarde. Vejo o olhar de Kit pousar ‑me nas pernas e subir lentamente. Sinto ‑me a ficar com pele de galinha, como se ele me percorresse o corpo com os dedos e não apenas com os olhos. Quando chega ao meu rosto, vejo o sorriso no rosto dele e a maneira como os seus olhos brilham.

Fico com a respiração presa ao olhar para ele. — Que fazes tu aqui? — murmuro.

— Esqueci ‑me de te dar isto — responde, ao tirar um sobres‑crito do bolso de trás.

Olho ‑o. — O que é?— Abre — diz, ao pô ‑lo nas minhas mãos. — É a tua prenda

de anos.Pego ‑lhe e abro ‑o, sempre consciente de que ele me observa. No

interior, estão dois bilhetes para O Mercador de Veneza em Balboa Park, daí a quinze dias. Levanto a cabeça e fito ‑o de olhos arrega‑lados. — Isto é a sério?

Ele acena afirmativamente, sorrindo ao ver a minha expressão. — Lembro ‑me de quando entraste nisso — declara. — Queres ir vê ‑lo? Não tinha a certeza...

— Sim, sim — apresso ‑me a afirmar. — Obrigada! Mal posso espe rar. Vens comigo, certo? — pergunto, a segurar o segundo bilhete.

Ele encolhe os ombros. — Claro. Isto é, eu não quis impor ‑me ou algo assim. Sabes, caso queiras levar a Didi. Ou... — tem estado a fixar os pés, mas agora levanta os olhos e percebo que tenta des‑cobrir se tenho namorado.

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— Não. Quero ir contigo — as palavras tropeçam umas nas outras com a pressa de saírem. Interrogo‑me se deveria ter feito um ar mais desprendido. Demasiado tarde. E, seja como for, agora ele sorri abertamente.

— Fixe — comenta, a esgaravatar com o pé na terra.Ambos respiramos fundo. O meu olhar voa em direção à casa.

Suponho que deveria regressar antes de o jogo terminar ou o meu pai nos ouvir. De repente, sem dizer uma palavra, Kit pega na minha mão e puxa ‑me mais para a sombra dos arbustos. Nem tento protestar.

— Sabes — murmura ele, sem me largar a mão. — Tenho pensado em ti. Enquanto estive ausente. — Olha ‑me nos olhos, já sem sorrir, com uma expressão de seriedade no rosto, e talvez até mesmo um pouco de nervoso. — Tenho pensado muito em ti.

— Ah — digo eu. A presença de Kit parece afetar diretamente o meu nível de literacia.

— Pois — confirma ele, baixando os olhos para as nossas mãos. O seu polegar começa quase distraidamente a afagar ‑me o pulso e eu inspiro profundamente. É como se ele estivesse a atear um incêndio, fazendo o sangue correr ‑me pelas veias como lava der‑retida. Sinto o calor invadir ‑me o rosto e precipitar ‑se para outras partes do corpo.

— Há quanto tempo estás aqui? — pergunto, a esforçar ‑me para manter a voz firme, embora a minha capacidade de concen‑tração se desvaneça porque o seu polegar continua a afagar ‑me.

— Há cerca de meia hora. Esperei até ver Riley sair.— Estiveste à espera nos arbustos durante meia ‑hora só para

falares comigo?Kit encolhe os ombros. — Recebi treino de atirador especial.

Sou capaz de ficar sentado no escuro durante horas, a esperar e a observar.

— Isso é reconfortante — comento eu. — E nada arrepiante.Ele ri baixinho, e o som faz ‑me desejar aproximar ‑me mais,

apoiar o meu corpo contra o dele. — Imaginei que o teu pai não quereria ver ‑me aparecer por aqui

a bater à porta.

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Lanço automaticamente um olhar por cima do ombro, quase à espera de ver o meu pai a fazer pontaria a partir da varanda das traseiras. — Sabes que, se ele te encontra aqui, mata ‑te.

— Arrisco — declara Kit, mudando levemente de posição e puxando ‑me mais para si, de maneira que resta apenas uma nesga de espaço entre nós. Eu mal lhe chego ao queixo, por isso tenho de inclinar a cabeça para trás. A uma distância tão curta, sinto o seu cheiro, a detergente de roupa e algo mais, algo cítrico, talvez loção pós ‑barba.

— Tinha mesmo de voltar a ver ‑te — murmura, a voz suave como uma carícia.

Afasto ‑me um ou dois centímetros, com o coração a galopar. Tenho medo. Não de Kit, mas do que está prestes a acontecer entre nós. Sinto ‑me como se fosse dar um passo de um rochedo para o abismo e não sei se aterrarei em segurança ou se acabarei desfeita em pedaços em quaisquer rochas pontiagudas que ainda não vejo. Isto pode ser temerário, estúpido, perigoso. Ou pode ser a melhor coisa que alguma vez farei. — Falo a sério — balbucio. — Se o meu pai te encontra aqui, explode.

Kit sorri. Levanta a mão e aconchega ‑me uma madeixa de cabelo atrás da orelha. — Valeria a pena — afirma ele, com a mão a demorar ‑se e a pousar ‑me na face.

— O quê? — pergunto eu, os sentidos toldados, totalmente focada na sua mão e nos seus lábios, tão perto dos meus.

— Isto — diz ele, beijando ‑me.Imaginei ‑me a beijar Kit milhares de vezes, mas nunca, em toda

a minha imaginação, foi assim. No instante em que os seus lábios tocam nos meus sinto ‑me projetada no espaço. Os seus bra ços apertam ‑me a cintura, a puxarem ‑me mais para si, o calor das suas mãos e dos seus lábios acende focos de incêndio através de todo o meu corpo. Ele é terno, doce, quase cuidadoso, até que, completa‑mente consumida por ele, me ergo em bicos de pés, lhe rodeio o pescoço com os braços e o puxo para mim.

Geme levemente quando os meus seios se comprimem contra ele, e a sua mão desce até à minha anca, a apertá ‑la com força e a puxar ‑me com mais firmeza. O beijo aumenta de intensidade, ele

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enfia ‑me a língua na boca, ao encontro da minha. Posso sentir o seu desejo, saboreá ‑lo, e isso alimenta o meu. Então, fico realmente sem fôlego, com estrelas a dançar no fundo dos olhos, o sangue a rugir ‑me na cabeça tão alto, que a princípio nem ouço Kit proferir o meu nome, com os lábios ainda a esmagarem os meus.

— Jessa — murmura.Demoro alguns segundos a voltar a mim. Kit parou de me

beijar. Afasta ‑se, embora as suas mãos continuem a apertar ‑me as ancas. Abro os olhos, com a respiração alterada e o rosto a escaldar. Kit olha fixamente por cima do meu ombro.

— O teu pai — sussurra ele.

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