Comentário à Regra

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  • 7/25/2019 Comentrio Regra

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    II COMENTRIO REGRA EM PARALELO COM A RNB

    ndiceIntroduoCaptulo I: Em nome do Senhor

    Captulo II: Dos que querem abraar esta vida e de como devem ser recebidosCaptulo III: Do ofcio divino, do jejum e de como os irmos devem ir pelo mundo

    Tema: A oraoTema: A minoridade

    Captulo IV: Que os irmos no recebam dinheiroCaptulo V: Do modo de trabalharCaptulo VI: Que os irmos de nada se apropriem, da mendicncia e dos irmos enfermos

    Tema: A pobreza em espritoCaptulo VII: Da penitncia que se deve impor aos irmos que pecam

    Tema: caminhar juntos a fraternidade

    Captulo VIII: Da eleio do ministro geral desta fraternidade e do captulo de pentecostesCaptulo IX: Dos pregadores

    Tema: Reflexes sobre a conventualidadeCaptulo X: Da admoestao e correo dos irmos

    Tema: A obedincia religiosaCaptulo XI: Que os irmos no entrem em mosteiro de freiras

    Tema: A virgindade evanglicaCaptulo XII: Dos que querem ir entre os sarracenos e outros infiisConcluso: Palavras de santa exortao de So Francisco aos frades

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    INTRODUO

    1. A regra como projeto de vida

    Ns religiosos modernos, ao ouvir a palavra regra, numa espcie de jogo associativo, ligamoslogo com:

    A) Imposio, autoritarismo jurdico, obrigao, dever, de cima para baixo = o que caracterizatudo isso tem a conotao de no livreregra

    Admitimos que uma ordem religiosa tem que ter sua regra; e damos as razes para isso; masnossa reao imediata, se formos sinceros, est dizendo: regra no inteiramente livre. Mas porque regrase apresenta com esta conotao negativa? Esta reao sinal da nossa maneira coletivade pensar; a nossa pr-suposio usual epocal, aquilo que est em uso sem o perceber, vem de uma

    problemtica que poderamos identificar na palavra livre, liberdade.

    Vamos ver, aqui tambm, pelo jogo de associao, o que surge em torno da palavra livre ouliberdade, em oposio ao jogo associativo anterior.

    B) Imposio X livre escolha; autoritarismo X democracia; jurdico X carismtico; obrigao Xespontneo; dever X gostar; moralizante X liberal = O que caracteriza todo esse modo de ser tem aconotao de natural-espontneovida.

    A partir dessa compreenso se diz que a regra encaixotou o carisma esfuziante, espontneo,livre de SF, pois criava muita revoluo e desordem colocava muita invaso carismtica no mundo

    jurdico. Era preciso por ordem; surgiu assim a institucionalizao, e nesta entrou o esprito jurdico,dando em jurisdicismo. Ento, regra pertence jurdico e vida pertence liberdade.

    Essa maneira de pensar entende o essencial humano como natural-espontneo. Nessainterpretao do humano se fundamenta nossa antropologia, nossa psicologia, sociologia, educao,formao, tudo. Pensar o humano como espontneo-natural o fundamento do que chamamosmundo dos consumo. Consumir satisfazer os impulsos, os desejos, os gostos que surgemespontneos de nossa natureza, deixada a si mesma; tudo que de alguma maneira delimita oespontneo desabrochar do nosso natural sentido como imposio. Se aceitamos, o aceitamosporque, sem um mnimo de estrutura e se cada um fizer o que bem entende, no d sociedade. Mas,

    afinal, um mal necessrio. Ao ouvirmos a palavra regranos movemos nesse equvoco sem perceber.

    Essa maneira de pensar bastante questionvel. Os textos medievais esto bastante distantesdela. E, coisa paradoxal, o mundo moderno, moderno mesmo, se identifica mais com o pensarmedieval do que com essa nossa interpretao do humano.

    Ao refletir sobre a regra e a vida dos frades menores, no usamos a palavra vidana acepo deespontneo-natural acima mencionada. O espontneo e natural prprio das plantas e dosanimais. O animal no precisa de lei, porque ele a tem dentro de si. Um animal selvagem quando estcom a barriga cheia para de comer, ele no diz: vamos nos banquetear, porque gostoso; por isso, oanimal no morre de doena e sim de velhice; como rvore que seca por si mesma quando chega

    maturidade. Por isso, na Adm n. 5, SF diz que as outras criaturas (animais e plantas) servem ao Criadormelhor do que o homem, embora o homem tenha sido criado numa excelncia que supera os outrosseres.

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    O nico ser que precisa de proibies o homem. Por qu? Por traz dessa caracterstica, queparece negativa, se esconde e se anuncia o grande privilgio, a excelncia do homem que supera atodos os outros seres: a vida humana, o humano tem a necessidade, o privilgio de ter de superar oestado simples da natureza, para se tornar humano. O ser humano tem que ser. Ter que sersignifica ter a capacidade, a necessidade, a tarefa de se responsabilizar, de se assumir. Essa aestrutura originria do homem e nisso consiste sua grandeza, seu privilgio. Quanto mais no ficardeitado eternamente em bero esplndido , quanto mais assumir a tarefa de enfrentar, de trabalhar,de se libertar, mais o humano se torna ele mesmo. Essa capacidade de se transcender, que na filosofia

    recebeu o nome de transcendncia, recebe atualmente o nome de autonomia, responsabilidade deser, e, mais originariamente, liberdade, ser livre.

    A palavra usada pelos antigos para expressar essa caracterstica do humano o verbo dever".Ao dizer: "Tu deves", se apelava para a coisa mais dinmica e sagrada que o ser humano tem e bemdiferente do sentir nosso usual quando ouvirmos a palavra "dever".

    Essa tarefa do "ter que ser", do "dever", o que constitui o homem como pastor e guarda danatureza. necessrio assumir essa tarefa, trazendo cada vez mais tona as possibilidades que nosso dadas: cultivar, trabalhar, melhorar, conscientizar. Isso viver, isso Vida Humana!

    Este "dever" supe antes um "querer". Por isso, palavras como DEVER, QUERER, Conscientizar-se, ASSUMIR, RESPONSABILIDADE E OUTRAS, resumidas numa nica expresso, significam PROJETO DE VIDA.

    Essas palavras indicam todo um modo de ser prprio, diferente do natural-espontneo. H,porm, em ns uma forte tendncia de nos instalar no natural-espontneo, pois o modo de serdever-querer, muitas vezes, sentido como um "peso": assumir todos os dias esta nossa grandeza,custa! Custa tanto, sempre de novo, toda manh dizer: "Eu te amo, meu Senhor". Pensamos: "Jrepeti tantas vezes, agora chega! J estou cansado! Ser que no tem jeito de as coisas funcionarempor si mesmas?"

    Este "peso" muitas vezes interpretado negativamente, como um mal necessrio; assim a lutaquotidiana do responsabilizar-se, do engajar-se, do assumir gera na Vida Religiosa pessoas cansadas,resignadas, que consideram a luta de toda uma vida como um mal necessrio, ao passo que esta lutaconsigo estar no grande exerccio da identidade, estar experimentando o nosso privilgio; e quemno o assume est abdicando de si mesmo.

    O modo de ser do dever-querer to moderno que a sociedade de hoje, quando querprogredir, o usa; e as sociedades que no o usam vivendo muito no "natural-espontneo", socolocadas de lado.

    Toda vez que um ser humano ou uma sociedade se engaja pra valer numa causa grande, superao entendimento da liberdade como "natural-espontneo" e se engaja exatamente na mesmacompreenso que o medieval tinha de liberdade, ou seja, viver no significa deixar a vida sedesenvolver espontaneamente, mas assumir, exercitar, colocar um objetivo e se doar a ele; isto , aprpria sociedade moderna tem um modo de entender a vida como "Projeto de Vida".

    Desde sua juventude, So Francisco achou a luta por um projeto de vida como uma grandedignidade. Ento lutou a vida inteira e amadureceu para uma cordialidade muito grande, de talmaneira que antes de morrer, disse: "Ns no fizemos nada ainda, vamos comear de novo".

    Ele iniciou seu itinerrio partindo do natural: Oriundo da cidade de Assis..."; nascera de umafamlia bastante boa, tinha boa ndole, era pessoa muito jovial...; ia se desenvolvendoespontaneamente. Mas, aos poucos, comeou a tomar certos propsitos: com isso j estavacomeando a colocar sua vida dentro de um projeto.

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    Depois, como jovem, viveu farta o espontneo: o gosto, o prazer. Mas aos poucos comeoua se perguntar o que ele queria da vida. Queria ser cavaleiro: se determinou para um ideal, um projetode vida. Sua vida deixou a maneira de folguedo para entrar nos exerccios. Provavelmente treinoumuito tempo para a guerra; procurou uma companhia do mesmo ideal, procurou um chefe militar.Assim comeou a entrar num em um modo de ser que no era mais espontneo-natural; comeou aser cavaleiro, guerreiro, com seus companheiros, sua estrutura, suas leis, atravs disso tentou sercada vez melhor, cada vez mais perfeito no projeto cavalheiresco.

    No entanto, fracassou duas vezes. Se Francisco fosse natural-espontneo, teria desanimado.Mas como era projeto, tinha o ideal na frente e o ideal o puxava. Por isso, na priso no ficoudesanimado, mas se comportou como cavaleiro; usou priso para se realizar e realizar o projeto.

    Em seguida um novo elemento se inseriu no seu viver: o sonho lhe disse: Voc quer sercavaleiro, mas por que cavaleiro de meia-tigela? Por que no quer ser cavaleiro do Senhor? Erespondeu: Ah! Existe uma cavalaria maior do que isto que estou imaginando? E era isto que eleestava querendo; no mudou o ideal, mas entendeu o ideal mais radicalmente. O projeto anterior setornou mais projeto ainda, mais sentido de vida.

    E foi crescendo entendendo cada vez melhor o ideal, at descobrir que o ideal que o estavapuxando era o Seguimento de Jesus Cristo, ser cavaleiro deste grande Rei. Descobriu tambm que noestava sozinho: comeou assim a entrar no grande projeto da humanidade que a f crist. Franciscopensava que o projeto era dele, mas descobriu que o que estava buscando era universal: algo quedesde Jesus Cristo at ele, milhares de pessoas tinham buscado, cultivado, dando a sua prpria vida.Nessa constante passagem do natural para o projeto de vida, Francisco "recebeu" companheiros domesmo projeto de vida. E comeou a ter uma nova pertena, pois, no humano, na medida em que vaise educando e crescendo para ser capaz do projeto da vida, se abre e se move dentro de uma novaimensa pertena: o Pai de Jesus Cristo, Jesus Cristo, os apstolos, a Igreja, constituam uma pertenaque chegava at ele. Todo o Povo de Deus estava caminhando naquele ideal que ele tinha escolhido.Descobriu que aquilo que parecia um projeto individual era muito pessoal, muito engajado, mas noera individual-particularista. Era um ideal enorme da humanidade nova em Jesus Cristo. Por isso foiat o representante desse Povo de Deus, no reparou se era bom ou ruim como pessoa, e pediu aaprovao para o seu gnero de vida. Quando So Francisco diz: "A Regra e a Vida dos FradesMenores esta", est dizendo: "Embala-te! Entra nessa enorme corrente chamada vida crist, quevem desde Jesus Cristo at ns". essa maneira de entender o humano que est por trs de todo otexto da Regra.

    2. Preliminares para o estudo do texto (frei K. Esser)

    2.1 - Os manuscritos dos "Opuscula" apresentam muita variedade quanto aos ttulos dos

    diversos captulos, quer na forma, quer no contedo. Isso evidente principalmente na transmissoda Regra no bulada, da qual possumos um texto sem indicao alguma de captulos. Francisco ditavaadmoestaes e cartas sem indicar qualquer ttulo para os captulos, como prova o Testamento.Podemos supor o mesmo em relao ao manuscrito original da Regra. Os ttulos atuais dos captulosso posteriores; pois prejudicam o sentido do contexto e no indicam com preciso o contedo. E oque se constata nos captulos 2, 6, 10, 11 e 12, onde os ttulos, quando muito podem figurar como"pars pro toto". Os ttulos, embora j presentes na bula papal de confirmao, foram pois colocados,em partes at bem apressadamente, antes da publicao da bula; naquela poca, qualquer Regradeveria estar estruturada em captulos, por motivos litrgicos, uma vez que no fim da Prima, "adabsolutionem capituli", lia-se um trecho da Regra como "lectio brevis", como ainda hoje fazem as

    Ordens antigas. Para estudar, pois, o texto da Regra, convm no sobrevalorizar os ttulos e a divisoem captulos. Este esclarecimento bem poderia ter evitado interpretaes errneas da Regra nopassado. Haja visto a conexo interna dos atuais captulos 5 e 6; se se tivesse atendido a esse fato,muita discusso sobre a relao entre trabalho e mendicncia teria sido desnecessria. Devemos, pois,largar a ideia to arraigada que nos faz ver nos 12 captulos um sinal da "apostlica regula". Francisco

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    teria subdividido a Regra em 12 captulos para simbolizar os 12 fundamentos apostlicos e as 12portas, por onde se entra na "vita evanglica", e como numa nova Jerusalm que desce de Deus e temnas 12 portas marcados os 12 nomes dos apstolos. A verdade histrica mais sbria e no carece detais sublimaes msticas.

    2.2 - Como atesta principalmente o Testamento, mas tambm os demais escritos, o pensamentode Francisco no "lgico", e sim concreto-associativo. Lendo a Regra, logo notamos a ausncia dequalquer construo lgica. Os captulos englobam, no raro, assuntos diversos; as transies de um

    captulo a outro no obedecem s leis da lgica. Como exemplo tomemos o tema "atividade dosfrades", tema esse tratado com estranha conexo ou, segundo nosso modo de pensar, sem nexoalgum nos captulos 5 e 9 da Regra. De fato mal se pode compreender, a no ser luz do predomnioda lenda, que ningum tenha at agora levantado a pergunta sobre a estrutura interna da Regra, ouseja sobre seu princpio orientador interno. A pergunta poderia ser formulada assim: Por que osdiversos pensamentos da Regra se apresentam nesta ordem e no numa ordem diferente?

    2.3 - A Regra dos Frades Menores, segundo seu contedo e sua estrutura, obra genuna de SoFrancisco. S ele pode ser o autor de um documento que traz to nitidamente o cunho pessoal de seupensamento: ainda mais: encontram-se ali muitos avisos em forma pessoal (moneo, praecipio), como

    locues diretamente endereadas aos frades (vos carrissimos frates meos, dilectissimi fratres).

    Alguns versculos, verdade, foram adaptados ao Direito Cannico vigente (por exemplo 2,2;3,1; 4,5; 7,1; 9.1), mas com visvel acatamento do pensamento do santo (em particular 3,5; 7,1).Talvez possamos atribuir este auxilio jurdico ao Cardeal Hugolino, que mais tarde afirmou ter ajudadoa So Francisco "in condendo Regulam". Por vrias razes no se pode admitir o auxilio jurdico daCria Romana; alis os secretrios da mesma nem se deram ao trabalho de elaborar uma introduoprpria para a bula de confirmao, mas tomaram simplesmente o formulrio "Solet annuere", emuso para os privilgios dos cistercienses. To pouca importncia se dava na Cria nova Ordem em1223! Outras passagens da Regra foram estilisticamente corrigidas (como talvez 2,17; 3,10; 6,4; 9,310,7; 13,3).

    notvel que estas correes se encontram precisamente nos avisos e admoestaes maissignificativos para a espiritualidade e a vida dos frades. Sem dvida, os encarregados da redao finalse esmeraram mais nestas partes, deixando as admoestaes perifricas (2,14; 3,12; 3,14; 6,7-9), emseu estilo simples, tpico de So Francisco, como provam os demais opsculos. A colaborao dosfrades na redao final foi bem diferente daquela descrita pelas "Lendas" posteriores!

    2.4 - A Regra no obra jurdica, destinada a dar normas para tudo. Ao redigir a Regra, Franciscoolhava a vida concreta, como fez tambm no Testamento, e procurava impregnar essa vida quotidianacom o verdadeiro esprito franciscano. Da algumas concluses importantes: a) A Regra um

    documento espiritual; esta afirmao de singular relevncia. Ela um discurso de exortao dosanto para seus frades. Por isso, quase todas as frases tm a forma do conjuntivo, exprimem antes umdesejo, do que propriamente uma ordem. Apenas 4 versculos apresentam um "debea(n)t" (3,12; 6,9;7,3; 10,4); trs dizem: "precipio firmiter" (4,1; 10,2; 1,1) e um "per obedientiam injungo". Taisexpresses, em si mais fortes, no indicam, no entanto, uma obrigao maior, como podemosobservar confrontando os versculos 6,1; 12,3. Em outras palavras: a Regra usa s vezes frmulas

    jurdicas mais fortes, que, na realidade, no aumentam a obrigao. Estas frmulas no podem servir,portanto, como critrio para escolher os tpicos mais decisivos da Regra. Pois no um jurista quefala, mas um "pater spiritualis", que tem em mira levar para a vida prtica o esprito do Evangelho.

    b) A Regra , pois, a "forma vitae" - e isto importante - para a vida quotidiana dos frades. Osavisos da Regra destinam-se sua vida concreta; as admoestaes e advertncias dizem respeito acertas situaes reais. A Regra, como j dissera com acerto So Boaventura, no se refere vidasingular e carismtica de So Francisco. Ele no pretende impor sua vida como norma ou "Regra" paraos outros.

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    c) Alm disso, Francisco toma em considerao a vida minortica, tal como tinha evoludo at1223, e procura traar-lhe normas de conduta espiritual; ele procede do mesmo modo como fez aoescrever sua "Regula pro eremiteriis" para os frades que preferiam uma vida mais contemplativa emlugares isolados, ou como procedeu na carta a Santo Antnio com os estudos, ou na Carta a toda aOrdem com os sacerdotes da Ordem e o culto comum nas residncias que se iam fundando, ou aindano Testamento, ao resolver a questo das casas e igrejas para os frades. Nunca Francisco tomouatitude de "protesto" contra tais evolues. Interessava-lhes, isso sim, comunicar a tudo o espritopeculiar da fraternidade, esprito que se encarnou na Regra.

    2.5 - A Regra foi escrita para a vida. Ela quer impregnar a vida concreta dos Frades Menores como esprito do Evangelho. O modo como ela o faz bem peculiar, pouco satisfatrio sob o aspecto

    jurdico, mas excelente do ponto de vista cristo. Esta Regra no pode pois ser vivida juridicamente.Deve-se antes correr o "risco" de realiz-la em esprito de f. A Regra mesma convida a tal tentativaquando fala da "divina inspiratio" e da "necessitas fratrum", onde se insinua uma atitude aberta ecorajosa. Por isso nossa vida franciscana ser sempre uma "santa aventura", um engajamento paraconquistar o esprito do Evangelho, o "spiritus Domini et eius sanctam operationem". A vida atual daOrdem se assemelha vida dos primeiros Minoritas: a cura de almas e o apostolado, as mltiplasnecessidades da Igreja e do Reino de Deus obrigam a um modo de vida que colide com as formas

    claustrais e monacais do sc. XIII, aceitas ento por necessidade das circunstncias. Hoje a vida tendea romper estas formas. A mudana das circunstncias na atualidade no nos oferece umaoportunidade singular de pr a Regra a servio da vida? No poderamos tentar "regular" de maneiranova nosso viver cotidiano mo dos avisos espirituais, advertncias e admoestaes paternais, dospreceitos e das proibies sbias, dadas por So Francisco para nosso caminho de vida? O que SoFrancisco nunca fez, tambm ns no o devemos fazer: "protestar"; hoje como sempre s h umatarefa: pr em harmonia com a Igreja a nossa vida concreta, inserida na prpria vida da Igreja que aexige como sendo "forma sancti Evangelii". Se soubemos interpretar os sinais dos tempos na vida daIgreja. ento nenhuma gerao da Ordem teve, como a nossa, a possibilidade e a obrigao de realizaraquilo que a Regra tanto quer defender e garantir: "regulam spiritualiter observare.

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    I - EM NOME DO SENHOR!

    In nomine domini! Em nome do Senhor

    RNB: Prlogo: Em nome do Pai, do Filho, e do Esprito Santo. Amm.

    O primeiro captulo da Regra contm, como que em germe, tudo o que So Francisco quer dizera seus frades. Como um promio, expe os princpios fundamentais da Regra toda. Os onze captulos

    seguintes desenvolvero estes princpios. A frase final do ltimo captulo resume-os todos mais umavez numa frase breve, concisa, mas poderosa.

    Em nome. A expresso "In nomine Domini", encontrada em muitos documentos medievais, erafamiliar tambm a So Francisco. uma profisso de f que nasce de uma bem determinada maneirade encarar a existncia como existncia religiosa crist. Como a chave de uma partitura de msica do tom partitura toda, assim tambm esta expresso d o tom ao texto todo: um texto daexperincia religiosa crist. Portanto a expresso "Em nome do Senhor", colocada como saudaoinicial, situa logo a Regra e o "leitor" no interesse do Senhor. Tudo o que ser dito depois brota desseinter-esse: o prprio vigor de Deus, o inter-esse dele, suas dinmicas que esto articulando a Regra.

    "Nome" o vigor, o mago de uma pessoa. Nessa expresso inicial nota-se a experincia do "nome"feita por So Francisco e seus companheiros; a dimenso do Encontro com o Senhor. Na manh daressurreio, Maria Madalena procura o corpo do Senhor, pelo menos o corpo; Jesus se d a conhecerchamando-a pelo nome: "Maria!", e ela responde: "Rabboni!" O nome restabelece logo o re-lacionamento com Cristo, porque o nome todo o vigor dele em relao a ela e dela em relao a ele.A experincia do nome, feita no Encontro, aciona a atitude de fazer "em nome de". Este fazer no seorigina do sujeito que faz, nem um fazer para (a favor) o Senhor; antes um fazer que acolhe ovigor, a cordialidade que o Senhor tem; atuar com a mesma vontade, a mesma fora com que oSenhor faria. E como quando se diz: "Voc est preso em nome da lei": nesta expresso, o preso sentea presena do estado, da sociedade que d fora e autoridade lei. Ao iniciar o texto com esta

    expresso, So Francisco entende afirmar que tudo o que ser dito pela Regra tem porfundamentao e gnese o Nome do Senhor. Todos os irmos, faam isto ou aquilo, buscaro estarmovidos pelo vigor do Senhor.

    Do Senhor. A reverncia de Francisco ao Mistrio de Deus aparece no tratamento "Senhor",dado ao Deus de Jesus Cristo e ao prprio Jesus Cristo, tratamento que caracteriza a submissodiscipular do Seguimento. Por isso um equvoco fatal pensar que "Senhor Deus", "Senhor Jesus"possa ser substitudo ou "atualizado" com tratamentos como "chefe, chefo, amigo, amigo,camarada ou companheiro". No mesmo equvoco camos quando tentamos evitar a palavra Senhor,pensando ser um tratamento indicativo da dominao do poder impositivo. A palavra Senhor, mesmoque tenha tambm referncia com o sistema "senhor-escravo", a palavra bsica da reverncia

    discipular e tem conotao de uma profunda intimidade inefvel do Mistrio do Encontro no Amor.Uma pessoa que de alguma forma no desperta para essa reverncia no trato com Deus, com aspessoas e com todas as coisas, dificilmente vai entender o que significa com preciso ser discpulo doSeguimento de Jesus Cristo.

    Incipit vita Minorum Fratrum: "Comea a vida dos Frades Menores

    RNB: Prlogo: Esta a vida do Evangelho de Jesus Cristo, que Frei Francisco pediu ao Senhor Papa Inocncio lheconcedesse e aprovasse; e o Senhor Papa lha concedeu e aprovou para seus irmos presenties e vindouros.

    Comea. O incipit um bom elucidativo: poderamos ter esperado a frmula "Incipit regula

    fratrum minorum e ao invs encontramos o termo vida. Eis a palavra-chave para entendermoscorretamente aRegra: ela ser pois exposio, descrio e regulamentao de determinada forma devida. Poderamos pois traduzir assim: Origina-se o sentido de vida dos frades menores.

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    Substituindo a palavra regula por vida, mais densa de contedo, evidencia-se que a regra daOrdo minorum no pretende regular tudo, at os pormenores, como as regras monsticas. No setrata, portanto, de uma daquelas regras "qui docent sic et sic ordinate vivere". A Regra franciscana antes a tentativa de saturar com bom esprito uma j determinada forma de vida. A regra franciscana uma coletnea de admoestaes, avisos, preceitos, proibies e advertncias, sempre com afinalidade de ensinar a legtima forma desta nova vida. O comear, aqui, no o incio-ocorrncia dealgo que tem um depois. iniciar como "gnesis", como origem da vida dos Frades Menores. Comeocomo momento essencial de uma deciso vital geradora, que se d no presente como histria, como

    caminho j andado por So Francisco e pela "comunitas" (con-munus: So Francisco e "scios").

    A vida. O que vida? A resposta a uma pergunta sempre consequncia das compressesatuantes na pergunta. Quem pergunta pela vida a partir de suas articulaes, como se fosse coisa,buscando certeza, segurana, resposta clara e distinta, objetiva, certamente no encontrar respostasatisfatria. Ns no sabemos bem o que vida! No entanto vivemos! Eu vivo a vida, sem contudopoder agarr-la e defini-la. No entanto, a vida no algo irreal e abstrato. o vigor concreto quemovimenta toda a minha existncia. Existem coisas realssimas que nos envolvem totalmente, a partirdas quais fao tudo o que fao, e no entanto no sei bem o que so. como o olho que tudo v e nov a si prprio. A Vida aquilo que est presente em tudo o que a gente faz, em toda articulao do

    viver. E no se pode peg-la como se fosse coisa. Vida assim uma palavra indicativa de umarealidade experimental muito simples, mas que no d para agarrar e definir. Como entender isso?Veja o exemplo do atleta:

    PASSADO FUTURO

    ======================= ! =========================

    IN-STANTE do salto

    No momento do salto, o atleta justifica o passado e abre perspectivas para o futuro. O passado

    o tempo do treino: o atleta se prepara para o instante do salto. Faz naturalmente vrias tentativas.Mas o "instante" chega como dom da conquista do passado. No o instante do relgio; o vigor dosalto, cuja energia no mensurvel quantitativamente. O in-stante o resultado de um vigoracolhido do passado mediante longa preparao que lana o atleta para o futuro. O in-stante dsentido a todo o passado e abre o futuro, justificando toda a vida do atleta. O in-stante cria,deslancha, faz brotar a histria do atleta. E o momento decisivo, o momento da deciso. Deciso nono sentido de "eu" quero; deciso na con-creo como Histria, momento decisivo como dom daconquista. Esse in-stante, momento crucial, fruto de concreo. o instante criador, pois nele oatleta pode ter xito ou no; mas ter xito ou no no o mais importante. O importante que nesteinstante se d a Histria do atleta. A Vida tem o mesmo processo. Vida no sentido humano o

    historiar-se de uma enrgica deciso, de uma evidncia vital; "histria" de uma alma, mas no nosentido de historiografia, pois ela "fenmeno": um processo de amadurecimento no qual vemsurgindo aos poucos e vem se descortinando o sentido do caminhar. Neste caminhar, a atitudefundamental ser ob-audiente, atento, na ausculta do nascer do destino, do sentido da vida nodecorrer do caminhar. Vida portanto uma atitude de abertura para tudo o que der e vier, sem nadadeterminar ou objetivar de antemo como definitivo a partir de si. A Vida assim entendida "contemplao", pois contemplar o mesmo que "ouvir o tempo", o tempo oportuno, o tempo da"histria", o tempo do salto. Ob-audincia o modo de ser que capta o que a vida significa. Assimsendo, aquele que no entende que o ser do homem "histria", que a "vida" "histria", aquele queentende a vida como coisa, est perdido! A vida no isso ou aquilo. Vida soli-tudo, isto , num-

    todo.

    Dos frades menores. So Francisco cria um nome para os seus irmos. Fato indito na histriadas instituies monsticas, pois at ento as vrias formas de monaquismo distinguiam-se pela cordo hbito (Monges Negros - Beneditinos ou Brancos - Premostratenses), ou pelo mosteiro de origem

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    (Cartuxos, Cluniacenses, Valumbrosanos, Cistercienses). O nome "Minorum Fratrum" vai alm de umadenominao de circunstncia: exprime uma nota essencial dos ideais da nova Ordem. So Franciscono chama a seus frades Pauperes catholici". Como ento se chamavam grupos idnticos domovimento religioso favorvel pobreza dos apstolos; nem pauperes Christi, termo usado nomesmo movimento; tambm no h mais a expresso pauperes minores, usada no primeiromomento, mas sim minores fratres. O que caracteriza essa denominao pois o de fratres,sendo o minores um adjetivo. O que vem primeiro o fato de serem frades, a fraternitas, vindoem seguida a minoritas, o fato de serem menores, pobres. A minoridade est em funo da

    fraternidade, razo pela qual SF gostava de chamar a nova Ordem de fraternitas.

    Infelizmente a pobreza serviu, repetidas vezes na histria, de motivo para discusses, contendase desagregao entre os irmos. Pobreza externa, compreendida mais a partir do movimento dosctaros do que da Regra e do espirito de So Francisco, conforme hoje podemos perceber claramente.Por causa desse equvoco, os irmos comprometeram no s a fraternidade, mas principalmente agenuna minoridade, o "Mysterium paupertatis" de So Francisco, distorcendo o ideal mais genuno.Valorizando demais o pauper rebus dos ctaros, as geraes franciscanas posteriores chegaram auma mudana valores, de forma que o ideal ldimo da nova fundao, a fraternidade evanglica, veioa ser quase eclipsado por completo.

    Regula et vita Minorum Fratrum haec est, scilicet Domini nostri Jesus Chrisri sanctum Evangelium observarevivendo vivendo in obedicentia, sine proprio et in castitate.

    A Regra e a vida dos frades menores esta: observar o santo evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo emobedincia, sem propriedade e em castidade.

    RNB: A regra e a vida destes irmos esta: viver em obedincia, em castidade e sem propriedade; e seguir adoutrina e as pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que diz: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens,d-os aos pobre e ters um tesouro nos cus, e vem e segue-me. E: Quem quiser vir aps mim renuncie a simesmo e tome a sua cruz e siga-me. E ainda: "Se algum quiser vir a mim e tiver mais amor ao pai e me, aosfilhos, aos irmos, s irms e mesmo prpria vida, no pode ser meu discpulo. E: Todo aquele que deixar pai eme, irmos ou irms, mulher ou filhos, casas e campos, por amor de mim, receber o cntuplo e possuir a vidaeterna" (Mt 19,21; 16,24; Lc 14,26; Mt 19,29).

    A regra e a vida. O termo "regula" relativamente recente nos escritos de So Francisco. Naspassagens mais antigas da RNB temos a palavra "vita" em vez de Regula, mesmo ao se tratar da Regra

    j fixada por escrito. Para So Francisco os dois termos so sinnimos. A estes dois termos est ligadauma dificuldade embaraosa para a histria da Ordem. Tendo os frades aumentado rapidamente emnmero e tendo-se espalhado pela Europa toda e alm, foi perdida a exata noo da "vita minorumfratrum" que a Regra queria vivificar. Como reao, a Ordem comeou a se agarrar letra para salvaro esprito e o "spiritualiter observare", passou progressivamente e depois at exclusivamente, a serum "litteraliter observare", como atesta o Speculum Perfectionis. No se pergunta qual o elo que

    existe entre vida e regra, mas sim entre regra e observncia. A isso se acrescentou o fato daadaptao s formas monacais j existentes na Igreja. Embora a histria nos mostre claramente anecessidade deste fenmeno para o homem medieval, contudo este fato dificultou no pouco acompreenso genuna da Regra.

    Entre Regra e Vida, ns simpatizamos mais com "Vida" do que com "Regra" porque Vida d asensao de liberdade. "Regra e vida", porm, pressupe um modo de ser humano que temconscincia do humano como liberdade; mas liberdade, no entendida como estar livre dasdificuldades, como a dinmica de responsabilizar-se, de entender o viver como sentido de vida, comoter projeto. Vamos ento ver como se relacionam "Regra e Vida". Regra vem de "reger"; tem

    conotao de dominar, como o rei rege o povo, como o cavalheiro domina o cavalo fogoso: denota ovigor que consegue conter a fora; a energia dirigida, no desbarata. A Regra portanto o vigor davida sob o domnio e a regncia de uma ordem. Assim, no existe vida sem regra, como no existepintura sem tinta. A Regra concreo, algo estruturado, preso, fixo. E na na estrutura que aparece

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    a vida. Regra mtodo de trabalho para realizar, firme e claro, o da vida. Na Regra tudo exerccio decomo fazer o seguimento de Jesus Cristo.

    Vida vigor nascivo, espontneo, livre, sem medida. A palavra "vida" aqui no deve serentendida como vitalidade natural, vivncia, sentimento, vibrao, mas como impulso originrio,enrgica deciso de busca do sentido, capaz de permear toda uma existncia. O sentido da vida oideal; o ideal aquele que sempre de novo anima o a cada passo, e coloca a minha dinmica sempremais para frente. Ideal no uma coisa que um dia voc poder alcanar; aquilo que, sempre que

    avana vai mais para frente; e isso no porque utpico, mas porque dinmico. Vida significaseguimento de Jesus Cristo. Esse o ideal.

    Para dar dicas de cada passo a ser concretizado na busca do ideal existem regras. Regra oque se tem que fazer agora para, atravs dela, entender a animar cada vez mais o ideal, e ser cada vezmais progressivo na busca. A vida portanto o que d vigor regra sob o impulso de sua nascividadelivre. a vida que faz surgir as concrees, as estruturas. Assim, no existe regra sem vida, como noexiste pintura sem inspirao. Da interpretao e valorizao que se d a esta frase inicial depende ainterpretao de toda a Regra. Assim, se acentuarmos a palavra Regra: "A Regra a vida", a vida orientada pela Regra, a Regra a norma da vida. A vida objetivada em funo de regras; a regra

    torna-se ensinamento, objetivo, lei. Esta maneira de interpretar provm do nosso modo de ser,bitolado pela subjetividade: tudo normativo, finalstico, auto-asseguramento que d segurana efirmeza. Ento a Regra norma do meu viver; seguindo-a, minha vida est segura e eu me justifico.

    Mas, se acentuarmos a palavra Vida: A Vida a regra", a Vida d a medida regra. Portantopara entender a regra necessrio primeiro saber o que Vida, pois ela a fonte, o suco que d amedida de interpretao da regra. A Vida a raiz; a regra o broto, o resultado, a concreo da Vida.Portanto a regra deve ser lida como concreo da Vida e no como ensinamento ou "normaorientadora". Regra e Vida, porm, so dois momentos de uma mesma realidade, que indicamexatamente o viver humano chamado: "Projeto fundamental de vida". O segredo est no "e": o que aVida faz da Regra e como a Regra acolhe a Vida. O perigo de um lado cair no idealismo e esquecer aencarnao, abandonando a Regra e ficando no puro campo do idealismo sem concreo; e do outro cair no legalismo, no empirismo de leis e estruturas sem vigor nascivo. No existe "formaevanglica" sem "matria" nem matria sem forma: as duas coisas juntas constituem o Evangelho. Oesprito de So Francisco muito historial, aproveita da situao concreta "hic et nunc", sem cair nogenrico. Liberdade no fazer aquilo que est fora da quadratura, mas fazer caminho com o queest dentro dela.

    esta. Para entrar e crescer na vida franciscana de grande importncia saber em que consisterealmente "esta" vida. Com " esta", o texto aponta para algo bem concreto e determinado.Usualmente, para "definir" de alguma maneira a nossa vida, falamos uma poro de coisas como

    fraternismo, vida evanglica, minorismo, apostolicidade, vida fraterna... E no entanto tudo isso temtantas interpretaes diferentes e at opostas que no fim ficamos no sabendo bem o que "esta"vida. E se, afinal, depois de muita discusso soubermos em que consiste esta vida, no fundo nosabemos se esta compreenso realmente vlida para todos ou apenas para mim ou para um grupo.Torna-se assim difcil estabelecer o critrio para determinar o que deveramos "observar" como nossaidentidade, e tambm como apresentar nossa vida aos "vocacionados", candidatos Ordem. Atendncia, nessa vaguidade sobre nosso gnero de vida, de buscar algo comum, geral, quepossamos estabelecer como o mnimo de nossa identidade. Mas aqui surge de novo o problema dainterpretao deste mnimo estabelecido. E mesmo que estabeleamos um ideal geral, normas,termos e conceitos gerais, h de novo tantas diferentes interpretaes que todo o processo de dvida

    comea de novo.

    As fontes franciscanas originrias parecem no conhecer esse problema. Sabemos que desde oincio houve entendimentos diferentes, por exemplo acerca da pobreza; e, no entanto, as fontes soamde tal modo que do a impresso que palavras como "esta vida", "vida do Evangelho de Jesus Cristo",

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    servo-familiar. Observar o Santo Evangelho ento significa: diante do Evangelho de Nosso SenhorJesus Cristo ter disposio, renovar-se e manter-se aberto ao modo de ser de servo do Evangelho. Osprimeiros frades, pelas palavras "observar o Santo Evangelho, se sentiam obrigados a observar todosos conselhos evanglicos, como por exemplo, no julgar, no guardar nada para amanh. Em 1230, aOrdem, entre outras questes, apresentou tambm esta: se o "observar" obrigaria a todos osconselhos evanglicos. Na bula "Quo elongati" o papa respondeu que os frades estavam "obrigados"no mesmo nvel que todos os demais cristos e "firmemente" como franciscanos.

    O Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Desde o comeo, Francisco considerava suavida e a dos frades como uma vida plasmada no Evangelho. Levar uma "vida segundo o Evangelho",era, naquela poca, o ideal de muitos cristos que tomavam a srio seu cristianismo. Todosentendiam, com isso, a obrigao de viverem na maior pobreza, ganhando o po com o trabalho dasprprias mos, e, quando necessrio, mendigando como os pobres; vestiam-se com modstia esimplicidade, e em tudo se contentavam com o que podiam conseguir; procuravam servir ao reino deDeus pela pregao itinerante. Muitos desses pregadores mandavam traduzir o Novo Testamento emlngua vulgar para poderem propor mais fielmente a doutrina do Senhor e o exemplo dos Apstolos.Por circunstncias adversas, muitos desses cristos e muitas de suas organizaes entraram emconflito com a Igreja, apesar dos bons e sinceros sentimentos que nutriam inicialmente, tornaram-se

    hereges declarados e j no receavam de combater a Igreja e principalmente a hierarquia.

    O que ns entendemos quando usamos a palavra Evangelho? O que Evangelho? Comoentend-lo? o livro, so aquelas palavras, aqueles conceitos? Existe o sentido do livro sem ainterpretao do leitor: No assim que o Evangelho s existe nas interpretaes? Interpretaescomo a de So Francisco, de Santo Incio, de Santa Teresa, de So Domingos... Os prprios quatroevangelhos, como livros, "so a interpretao que as primeiras comunidades crists fizeram doMistrio de Jesus Cristo. Nenhuma das interpretaes o Evangelho. nenhuma o esgota. Evangelho aquilo que est sempre de novo para alm de cada interpretao. Mas onde est este alm? Estealm no nenhuma coisa atrs das interpretaes. Ele s percebido na experincia. Vamosdescrever brevemente a experincia do evangelho: Voc l o livro chamado Evangelho. Ali voc lDeus e amor". Voc entende a sentena. Voc tem uma experincia do que amor, por exemplo, doamor de seus pais. E a parir dela interpreta o livro do Evangelho. Voc ento imagina a Deus comoamor do pai e com essa imagem na sua mente, vc reza, recorre a ele, e tira dali a coragem de viver.Um dia, na sua vida acontece algo muito dolorido. Vc reza e pede que Deus o sustente e o livre dosofrimento. Mas voc so recebe nenhuma resposta deste Deus de sua interpretao. Nessa situaol de novo e medita o livro do Evangelho. De repente descobre que a sua interpretao era muitoinfantil. No era propriamente errada, mas limitada. Agora nessa nova leitura voc percebe novasdimenses do Amor de Deus, antes no compreendidas. Corrige pois a interpretao anterior. Agorasua interpretao mais profunda. E comea a viver com novo vigor, a partir dessa nova e maisprofunda interpretao do Amor de Deus. Assim, de experincia em experincia, voc l o livro doEvangelho e cada vez se lhe revela nova profundidade do Amor de Deus. Mas, quanto mais voc l einterpreta o Evangelho, tanto mais percebe que, para alm daquilo que voc agora compreende, abre-se um abismo de profundidade inesgotvel do sentido do Amor de Deus. Essa profundidade para almda minha atual compreenso no nenhuma coisa. Ela tambm no perceptvel como presena daprofundidade, a no ser fazendo a experincia na concreo acima descrita. Essa profundidade no pois um "saber sobre" a experincia de tal profundidade, mas uma experincia direta e concreta "apartir de" um silncio profundo, inefvel, feita no prprio caminhar da "histria de sua alma". O quechamamos de Evangelho s se torna presente, s , s existe como profundidade do silncio que estsempre para alm daquilo que na atual concreo eu compreendo como experincia na minhainterpretao. Isto significa: o Evangelho s se toma presente na concreo. Portanto na caminhada

    da histria de uma "alma". Por isso o Evangelho jamais uma coisa existente em si, independente dacaminhada da concreo, que ns chamamos interpretao. Existem concrees que tiveramintensidade e profundidade muito grande, onde a presena do Evangelho tomou-se muito compacta edensa. Uma tal concreo So Francisco. Quanto mais densa e profunda a presena do Evangelhonuma concreo, tanto mais ela inspira e provoca a nossa prpria concreo na caminhada para a

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    acolhida do sentido do Evangelho. como a obra de arte: quanto mais intensa e densa a obra, apresena da arte, tanto mais ela inspira e provoca novas obras de arte. por isso que os artistascontemplam com tanta frequncia as obras clssicas dos grandes mestres. Deixar-se inspirar eprovocar pela obra no copiar a obra. No reproduzir o seu contedo. antes deixar-se colherpelo vigor da caminhada, do movimento da obra, deixar-se evocar para caminhar na prpriaconcreo. Mas, na medida em que a concreo da minha caminhada aumenta em profundidade edensidade, eu me aproximo, identifico-me, isto , sou atingido e colhido pela mesma presena quecolheu a obra do mestre, como o silncio e o abismo de profundidade do Mistrio de Deus, que no

    nosso caso chama-se Evangelho ou Amor de Deus e Deus de Amor de nosso Senhor Jesus Cristo. SoFrancisco de Assis uma tal obra clssica do Evangelho. Ser franciscano ser inspirado e provocadopor essa obra e concrescer a partir dela na nossa prpria concreo para aproximar-nos do Evangelhoque constitui o alm, o silncio de profundidade, dentro do qual, em cuja acolhida desabrocha aconcreo So Francisco. E ao sermos assim tambm acolhidos na profundidade do Mistrio queacolheu So Francisco, somos acolhidos na nossa concreo como ns mesmos e entoexperimentamos que justamente essa profundidade do Mistrio que acolheu e acolhe tambm a umSo Domingos, a uma Santa Teresa de vila, a um simples cristo desconhecido. Cada qual l oEvangelho; o Evangelho torna-se uma concreo diferente em cada um, pois a concreo de cada um sempre uma interpretao: o Evangelho toma-se "obra". Essas obras passam a existir como foras

    da Histria. como na msica: no samba, na valsa, na sinfonia, na pera: em cada uma se d amusicalidade, mas uma no a outra. Na profundidade de cada obra deve-se descobrir o que Evangelho. Descubro ento que o Evangelho s na concreo: ele vigor que criou aquela e cadauma das concrees. A volta historiogrfica e filolgica s fontes literrias no volta originria sfontes. Volta s fontes antes a aprendizagem da inspirao e provocao do Evangelho. Portanto,"voltar s fontes" no voltar ao Cristo histrico, ao Evangelho como livro, ou ao Evangelho em si.Voltar fonte originria significa entrar em contato com a obra que concreo do Evangelho: deixar-se provocar pela obra (imitar So Francisco, por exemplo) e atravs dela ir at o Evangelho.

    NS SO FRANCISCO 1 COMUNIDADE JESUS CRISTO

    | ----------- | -------------------------| ----------------------------||- + -------------- + ---------------------------- + ---------------------------- ++Ev.3 Ev.2 Ev. 1 EVANGELHO

    O Evangelho s revelado na medida em que tento viv-lo, na medida em que se concrescecom ele. Esse problema muito difcil de se entender se se est preso aos conceitos usuais e ingnuosde histria. E o conceito da historiografia, das cincias histricas ingnuo! A obra clssica" deseguimento do Evangelho de Jesus Cristo feita por So Francisco tornou-se referencial para muitaspessoas, que, assim, tornaram-se companheiros de SF no seguimento de JC. Nasceu com isso umaescola de seguimento de JC, chamada franciscanismo. A regra a experincia do seguimentocolocada por escrito, feita texto sagrado da escola, texto para onde a escola franciscana sempre denovo volta para reviver o kairs franciscano.

    Vivendo em obedincia, sem propriedade e em castidade. Nas duas Regras no se fala de"votos', mas de "promessa", segundo a terminologia de ento. Os trs votos, como especificaes daVida Religiosa, aparecem pela primeira vez em 1148, na frmula de profisso dos cnegos Regularesde Sainte Genevieve em Paris. Foi adotada na regra dos Trinitrios em 1198. Na metade do sc. XIII,Inocncio IV declarou que os trs votos constituem a essncia de todo instituto religioso. "Voto" temligao com "devotio, devoo, devotamento; quando o medieval dizia "devoo", pensava em"engajamento"; engajamento significa "estar doado a", votado a. Quando a LTC diz: "Francisco dava-se ao trabalho da venda de panos", diz que ele estava devotado, engajado no comrcio. Voto,

    devoo, devotamento, engajamento so palavras tpicas das pessoas que tm projeto de vida. Umapessoa que vive no natural-espontneo no conhece estas palavras. Quando se comea a ter o modode ser do assumir, j no se entende a vida como evoluir espontneo, mas como ter um objetivo eengajar-se por ele. A primeira coisa que se faz no engajamento a promessa; quando o engajamentofica forte h compromisso. Quando o compromisso fica mais forte ainda, h o juramento; quando o

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    engajamento se toma devotamento que surge do encontro com Jesus Cristo no seguimento, h voto:o voto , portanto, o grau mais intenso e mximo do engajamento. Os votos no so feitos emparticular, mas diante de todo o Povo de Deus, so pblicos. Quando o engajamento pequeno se fazao p do ouvido, e j compromete; quando o compromisso maior apertamos a mo do outro echamamos testemunhas; e quando "pra valer" mesmo, o fazemos sobre a Sagrada Escritura; quandoo engajamento pra valer mesmo tem significao para toda a Igreja, o fazemos publicamente, diantede todo o povo de Deus. No questo jurdica; antes expresso do vigor de um engajamento, poisisso pertence maneira de ser do projeto de vida. No tem nada a ver com encaixotar o carisma no

    formalismo. Portanto, "em obedincia, castidade e sem prprio..." expresso uni-comunitria de umcompromisso de jura, levado ltima radicalidade. a concentrao de toda a nossa fora numprojeto.

    Os trs votos e a Vida Religiosa so a colocao mais radical da "questo humana". A existnciahumana est continuamente na tentao de esquecer sua prpria raiz. Este esquecimento, chamadona experincia religiosa de "pecado original", se concretiza em trs diretrizes: apropriar-se do sercomo autorealizao, apropriar-se do querer e do saber como poder e apropriar-se do "mundo" e dosbens como ter. Na medida em que cresce no "apropriar-se", o ser humano esquece a gratuidade doseu existir. Este apropriar-se, porm, no uma coisa. Ser, poder, ter so antes diferentes modos de

    ser do homem, nos quais o homem se posiciona, se firma, se realiza; so pois modos da experinciahumana. Na Vida Religiosa o ser humano "devota" a Deus ser, ter e poder. O devotamento do ser, novoto da castidade, se concretiza na deciso de se colocar na raiz de toda dinmica de autoafirmao,particularmente na raiz da afetividade e do amor esponsal. O devotamento do ser a tentativa dereconduzir o amor ao amor originrio, deixando-o ser na sua gratuidade. S pode ser casto quemprocura compreender o amor como Gratuidade do Deus de Jesus Cristo. Assim, a castidade a alegreacolhida da plenitude da Gratuidade, da Jovialidade da Vida. Enquanto tal a castidade serva domatrimnio, como Deus servo de toda humana criatura na regncia da vida. O devotamento do ter,no voto de pobreza, uma provocao, uma recordao que convida para uma caminhada de buscaque reconduza a existncia riqueza originria. Por isso, atrs do devotamento do ter est a

    experincia da acolhida de uma riqueza essencial e radical. Essa riqueza radical o modo de ser doDeus de Jesus Cristo que a Gratuidade. A pobreza por isso a busca de um ter to radical que antes dar, criar, fazer nascer, deixar ser o universo na sua graa e gratuidade. O devotamento dopoder, no voto de obedincia, afirma que o poder do querer e do saber no basta que ele fracodemais, bitolado demais para ser poder radicalmente jovial, manifestao da Gratuidade: esta sim aplenitude do vigor de doao livre e generosa. Para que esse vigor jovial acontea necessrio abrir-se de corpo e alma a ele com preciso e afinao. Mas para isso necessria uma escuta de todoouvido para a mais leve inspirao do apelo do Mistrio da Gratuidade que ressoa em todas as coisas,nos acontecimentos, nas criaturas, nas imposies, em tudo, sem exceo.

    Esse trabalho de reconduzir a existncia humana ao originrio tem estilo de ab-negao. Naabne-gao no se nega o ser, o ter e o poder no sentido de desprezo ou rejeio, mas no sentido deafirmao, de radicalizao, pois a gratuidade de Deus, ao dar Vida aos seres, ao livr-los Vida, nose apossa deles; se se apossasse no poderia envi-los para a Vida. E ao envi-los vida, o vigor daGratuidade de Deus se retrai na sua humildade, como o servo que depois de servir, se retrai no recatodo seu servir. Abnegar-se pois imitar esse estilo da gratuidade de Deus ao servir a vida. Servir assim,porm, purificar o ser, o ter e o poder no a partir de ns mesmos, mas a partir de sua essnciaoriginria: Deus.

    RNB: Seguir a doutrina e as pegadas. Para ns, doutrina ensinamento, e seguir umensinamento no soa muito bem. que ns temos uma escolaridade que nos fez perder o el para um

    aprender chamado discipulado; quase no temos experincia do que isso seja. Por isso, nos teramosusado a palavra "seguir a pessoa"! Mas para So Francisco doutrina mais forte do que pessoa, pois"doutrina" vibrao que brota de uma pessoa. Doutrina vem do latim "doceio", doctum: dar,transmitir. "Dokio", "doxa", em grego, significa aparecer, glria. Portanto doutrina ensinar,transmitir a outrem, fazer aparecer, levar a ver como algo aparece no seu "peso". Aparecer, no no

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    sentido daquilo que na realidade no , mas naquilo que realmente , aparecendo. Doutrina o vigordo mestre, tudo aquilo que o mestre pode, a manifestao do mestre, a manifestao daquilo atrsdo qual ele prprio est. Nosso relacionamento com Jesus Cristo muitas vezes pessoal, individual nosentido dele ser nossa ajuda, nosso amigo; mas que Ele seja Mestre para interpretar a vida, asociedade, o universo e o meu caminhar; que Ele me d uma orientao de como entender vida,morte, sofrimento, alegrias, para eu ter uma "doutrina", isto , uma orientao, uma verdade que meconduz e que eu espalho mundo afora, porque princpio de uma nova humanizao, esserelacionamento com Jesus Cristo ns no temos. Pegadas o mesmo que doutrina, pois as "pegadas"

    anunciam sempre uma presena; como quando o caador vai atrs das pegadas da caa. umaparecer que na medida em que se anda, se torna cada vez mais presente e real. Mas por qu"pegadas" de Jesus Cristo? Porque Jesus Cristo Mestre nunca aparece direta e imediatamente. Eleaparece de modo "inacessvel" em todas as coisas; em todos os afazeres dentro do engajamento,dentro de um projeto de vida; acontea o que acontecer, faa o que fizer sempre h o Mestre,continuamente presente provocando, convocando, ensinando; tudo esconde a "passagem doSenhor". "Seguir a doutrina e as pegadas significa imitar; um andar no qual vem surgindo a presenade Jesus Cristo. seguimento de Jesus Cristo. Imitar ser igual, identificao. Muitos tratados sobrea imitao de Jesus Cristo feita por So Francisco deixaram a impresso de que a nica preocupaodo Santo era imitar a pobreza de Jesus. pois conveniente focalizar o ponto de partida, o mago da

    imitao de Jesus Cristo e os pontos concretos que ele tirou da "doutrina e das pegadas" de JesusCristo para orientar a sua prpria vida. O que esse centro, esse mago, o corao de Jesus Cristo? Aresposta : ser-filho. Ser-filho no somente ter filiao, ter nascido fisicamente de tal e tal pessoa.Ser-filho antes e essencialmente abrir-se totalmente ao esprito que anima o pai. Compreender,fazer seu o ideal do pai; ver, pensar, sentir como o pai. Ser-filho colocar-se no centro do corao dopai, dentro dos olhos do pai, sentir, ver tudo a partir dali. E pois ser uma alma e um corao com o pai:identificao, fazer a vontade do pai. Mas como tornar-me uma s alma e um s corao com o Deus-Pai se no o conheo? So Francisco descobriu algum que conhecia o Pai: Jesus Cristo. Tornar-se umas alma e um s corao com Jesus Cristo, o Filho, portanto tornar-se uma s alma e um s coraocom o Pai. So Francisco assumiu a concepo que Jesus Cristo fazia de Deus. Concepo essa que no

    era somente uma teologia, uma ideia, mas sim uma experincia originria, o mago, a identidade deJesus Cristo. Qual a concepo que Jesus Cristo tinha de Deus, quando o chama de Pai? A respostaest no Novo Testamento, isto , na Nova Aliana. Pela leitura meditada da Sagrada Escritura, SoFrancisco descobriu a concepo de Deus que animava a Jesus Cristo, isto , deve ter entrado nocorao e nos olhos de Jesus Cristo: o amor do Pai o amor de total gratuidade e doao. Mas essadoao no doao triunfalista do senhor orgulhoso, impessoal que esbanja os seus presentes paramostrar que ele bom! a doao que mendiga, suplica a mesma gratuidade de ns. A nossa doaodeve pois ter a mesma estrutura, o mesmo modo de ser da doao do Pai que nos ama no porquesomos bons, mas porque ele bom. Isto , dizer "Pai" am-lo, ter a coragem de viver, de ser,confiar nele radicalmente, no porque ele serve para sermos felizes, mas porque compreendemos que

    amar amar como o Pai ama, que o Pai precisa do nosso amor, amor que imitao do amor dele.Esse convite para sermos um Tu para Deus-Pai, sermos um parceiro no que toca ao amor de doao, a maior provocao nossa pessoa, a maior dignificao do "humano", o radical-humano. O Pai,ao convidar-nos para um amor assim, nos faz iguais a ele no seu modo de ser especfico: somos seusfilhos. Ver o mundo luz desse amor-doao ser filho, chamar a Deus de Pai. Ser filho, ser assimcriatura, So Francisco chamou de ser-menor. Na imitao de Jesus Cristo assume uma posio dedestaque o apelo imitao da Senhor. Esta realmente a primeira coisa que d na vista quando oSanto fala da imitao de JC. Mas ao lado da pobreza, a obedincia a atitude fundamental na vida deJC. Na leitura dos escritos de SF, topamos sempre de novo com a obedincia, da qual fala ao menostantas vezes quantas da pobreza. Ele v na obedincia a atitude salvfica fundamental. da

    obedincia que nascem todas as virtudes, inclusive a pobreza, a cujo apelo ele responde comoobedincia vontade do pai.

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    Outro referencial da imitao-seguimento de SF a humildade; concretamente, a humildade deJC na eucaristia est sempre diante dos olhos de SF. Tambm na sua atividade apostlica, SFprocurava conformar-se ao exemplo do seu Senhor.

    Abrasado pelo ideal da imitao de Cristo, So Francisco comps a mais bela orao paraimplorar a graa da imitao do Senhor: "Concedei-nos a ns mseros praticar... o que reconhecemosser a vossa vontade e sempre querer o que vos agrada, a fim de que, interiormente purificados,iluminados e abrasados pelo Esprito Santo, possamos seguir as pegadas de vosso Filho, Nosso Senhor

    Jesus Cristo (Carta a toda a Ordem).

    RNB: Que diz. So citados vrios versculos do Evangelho. Por eles So Francisco apresenta aestrutura da busca da identidade e suas caractersticas. Todas as citaes indicam "deciso" de sadade si e de entrega, atitudes tpicas da dimenso religiosa. So todas radicais. Imitao concretamentesignifica seguir os passos de Jesus Cristo, que viveu e disse tais palavras. E na histria concreta de cadaum, esta imitao consiste em ouvir e acolher uma deciso radical, que d identidade nova realidade. Ns quase no sentimos mais a fora deste "dizer. Mas ele ocorre muito em qualquerreligio e qualquer filosofia; que usualmente "dizer" "meio de comunicao"; mas para os antigos,"dizer" no meio de comunicao, antes doao da pessoa. Por isso a Sagrada Escritura usa muitas

    vezes a expresso: "Em verdade, em verdade vos digo...", querendo frisar que na afirmao que segueest todo o ser da pessoa que fala. Quando a nossa Regra diz: "Seguir Jesus Cristo que diz" significa:Repare bem, porque no que Jesus Cristo diz aqui, est o segredo de seu ensinamento e do seucaminhar. Ele mesmo est buscando viver isso".

    RNB: Se queres. Este versculo fala da postura fundamental para entrar no seguimento de JesusCristo: necessrio um querer no dividido e que surja de uma grande afeio. E o corpo a corpo doquerer ser. um querer muito solicito, empenhado no fazer; deciso de jamais querer uma vez portodas, mas antes um querer renovado todos os dias, pois o ter querido ontem no garante o quererde hoje; tem que ser um querer vivo e renovado todo dia com muita criatividade e originalidade. Este"se queres..." importante: no significa "se quiser..."; significa antes: "j que voc quer"; aponta parauma ntida conscincia de que o seguimento um projeto de sua vida. Todo engajamento por siprprio livre; se obrigado de fora, no engajamento. Isso de enorme importncia, porque se oprojeto de vida tem a estrutura da liberdade, do querer, do projeto de vida, aquilo que voc escolheu,a causa na qual voc se engajou, isso seu, com todas as consequncias, de tal maneira que se nofizer o que Jesus disse, voc no conseguir realizar-se no seu projeto de vida.

    RNB: Ser perfeito. A palavra "perfeito", no tem a significao moderna de "sem defeito". Omedieval entende a perfeito como perfazido. Perfazido aquilo que atravessa todo o caminho echega at o fim. Um exemplo que o frei Egdio d de perfeito: o que adianta ter um navio bonito,forte, carregado de riquezas, se no meio do caminho afunda e no chega at o fim? Porm, um

    naviozinho mixuruca, fraquinho, mas que tem um bom timoneiro dentro, consegue atravessar todasas tempestades, chega ao porto todo arrebentado... mas chegou ao fim: isso "perfeito". Ns nodizemos: cheguei todo arrebentado, mas cheguei inteiro!?

    RNB: Vende tudo. Este versculo se refere pobreza. Usualmente entendemos desapegar comojogar fora. Mas Jesus est pensando na parbola do "homem que encontrou o tesouro": vendeu tudopara comprar. como dizer: "Senhor, eu tinha energia empatada aqui e acol; no sabia o que valia apena mesmo para viver. Agora Tu me chamaste, Te descobri, Tu s o tesouro precioso; juro que euvou vender tudo, que vou empatar tudo em voc!" O texto no est exigindo "sacrifcios"; estdescrevendo em que consiste o modo de ser, chamado seguimento; o que prprio deste fenmeno

    humano. Esta estrutura no exclusiva da Vida Religiosa, mas est presente tambm na vida de ummdico, de uma assistente social etc., que se doam sua profisso como vocao; eles tambm, nofundo, tm que "vender tudo"; so profisses, que tm por ideal a doao de si. E nessa doao queo "humano" se realiza; a doao de si realiza muito mais do que o cultivo do espontneo, no sentidode criar ninho para si.

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    RNB: Dar aos pobres. o dar decidido, de quem corta as pontes atrs e s pode ir para frente,pois pobre, mesmo querendo, no pode lhe dar de volta o que vc lhe deu. Como se dissesse: Querseguir-me? Quer caminhar comigo pra valer? Ento em que concentrar todas as foras, e se engajardeterminadamente, porque do contrrio falta embalo para chegar ao fim.

    RNB: Ters um tesouro nos cus. O nosso engajamento o Cu; Cu a presena de JesusCristo. Engajamento, numa palavra, o Encontro; que se caracteriza sendo absoluto, nico, todo,inteiro; o sentido total da minha vida. Esse absoluto expresso com palavras como: Odiar pai e

    me...; vende tudo...". So modos de dizer, para explicitar que este engajamento absoluto.

    RNB: Renuncie a si mesmo. Refere-se obedincia. Renunciar ab-negar a si mesmo, saltarfora de si, pegar a si mesmo e jogar-se dentro; assim estar livre para acolher uma estrutura preciosachamada "carregar a cruz e seguir". O mesmo vale para "vender tudo". necessrio precisar bem anossa viso de "eu", "bens", "afetos" e a viso de So Francisco quando diz: abnegue-se. Carregar acruz no exemplo de renncia, mas de recompensa da renncia. Usualmente entendemos carregar acruz como renncia aos bens, aos afetos e ao eu; mas aqui se entende abnegar-se a si mesmo pormeio de exerccios de iniciao e entrar no "el" dos "carregadores-agarradores da cruz e seguidoresde Jesus Cristo". Carregar a cruz carregar o estandarte, a bandeira, a grande glria de quem

    pertence raa dos seguidores de Jesus Cristo. A possvel entender a "doutrina de Jesus Cristo:aquilo que a partir do eu no se entende. Toda a Regra est nisso. So Francisco d a vida por isso. preciso muita vontade para renunciar. H todo um problema existencial aqui, por isso necessriocolher o "tom" da palavra "renunciar": pode ser caminho para a neurose (renncia como treino, comopeso sem alma) ou manifestao cordial de uma afeio, de uma grande afirmao, de uma grandebusca de realizao. A experincia usual de renncia um pouco do tipo "neurtico": temos umapreguia danada. Este texto talvez se dirija para pessoas que esto afeioadas, mas tm dificuldade deengatar. Quando uma pessoa engata, comea a ter dificuldade; no incio ainda vai (ele ainda no estengatado, mas s afeioado), mas depois de um tempo aparece toda a dificuldade do engatar.Quando algum comea para valer, sente certo a enjoo, pois no cotidiano no h evidncias a todahora. A comea o trabalho de ser "per-feito", comea o engajamento "eu somente comigo"! O querertem que ter preciso e determinao. Mas na Vida Religiosa necessita-se sim de um grande querer,mas mais ainda de uma grande afeio e de seu cultivo decidido.

    RNB: Mais amor a. Refere-se castidade e afetividade. Afetividade, religiosidade, sociabilidadeno so dimenses uma ao lado da outra: o seguimento o novo princpio fundamental nico quesubsume as outras dimenses. No Oriente esse processo de maturao humana se chamou deiluminao, que o normal para tal dimenso religiosa. Na determinao de seguir Jesus Cristo h apossibilidade de permanecer envolvidos ambiguamente em laos afetivos, por isso tem que se jogarfora tudo, at o mais sagrado lao da afetividade com pai, me... No ascese, mas mtodo, seno osalto no acontece. Largar a afetividade, ningum a larga por largar, mas a larga porque descobriu um

    princpio to absoluto que faz largar tudo. No se trata de substituir a afetividade por Jesus Cristo;trata-se de tomar Jesus Cristo como princpio de uma nova afeio; o seguimento dele pobre ehumilde o novo tesouro que vai trazer uma nova afetividade, dentro da qual cabe pai, me...

    RNB: Por amor de mim. "Seguimento" o novo sensorial que cresce dentro do religioso: comose o meu olho visse de noite ou meu ouvido ouvisse os sons que o cachorro ouve. A experinciareligiosa torna-se "sensorial" quando tem um estalo de grande evidncia. necessrio muito tempo,ateno e trabalho, pois no talento, mas conquista. So Francisco fundou uma escola para seexercitar a criar esta afinao: a Regra. A Regra um conjunto de vestgios deixados pelo mestrepara, atravs deles, engatar nesta habilidade que chamamos seguimento. E este o sentido da

    instituio: abrigar em concrees a intuio originria. A Vida Religiosa Franciscana tradicional tinhaesquecido esta postura: o conceito de escola de seguimento" no estava mais claro. So Franciscono foi muito original a respeito aos movimentos da poca, mas foi originrio: levou ao cerne o queera "moda" da poca.

  • 7/25/2019 Comentrio Regra

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    Frater Franciscus promittit obedientiam et reverentiam domino papae honorio ac successoribus eius canoniceintrantibus et ecclesiae Romanae. Et alii fratres teneantur fratri Francisco e eius successoribus obedire.

    Frei Francisco promete obedincia e reverncia ao Senhor Papa Honrio e a seus sucessores, canonicamenteeleitos, e Igreja Romana. E os demais irmos estejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seus sucessores.

    RNB: (prlogo): Frei Francisco, e quem for superior desta Ordem, prometa obedincia e filial respeito ao SenhorPapa Inocncio e seus sucessores. E todos os outros irmos sejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seussucessores.

    Frei Francisco. H novidade neste "frater", "frei": irmo. A Ordem franciscana j nisso sediferencia das demais. Francisco no se sente um superior, um prior; sente-se irmo, companheiro defrades numa opo de Vida que cria novo vnculo de parentesco, to forte quanto o do sangue, oumais. Por outro lado, So Francisco tem conscincia do lugar que lhe cabe na "fraternidade": o doscio fundador", aquele que por primeiro " tido" pela experincia religiosa franciscana.

    Promete obedincia. "Obedincia e vassalagem" era o que prometiam os feudatrios a seussuseranos: deviam ento servi-los com fidelidade. Em seu brio cavalheiresco, So Francisco se fazvassalo do Senhor Papa, submetendo-se em tudo s suas determinaes. Era a primeira vez que umaOrdem em sua totalidade se unia to estreitamente ao Papa, sujeitando-se em tudo diretamente a

    ele. Por esta obedincia, absoluta e impregnada de f, autoridade eclesial, Francisco preservou aOrdem de cair em posies herticas. Assim So Francisco pe a si mesmo e a sua Ordem a servio daIgreja, para sentir, querer e trabalhar com e para ela. Nesta Igreja e para ela, So Francisco tomacompromisso tambm para o futuro; operar no interior dela com uma ao pastoral que se tornarextraordinariamente frutuosa para os cristos e na misso entre os infiis, misso que a partir destemomento torna-se uma caracterstica dominante da vida eclesial. Obedincia aqui no subservincia. Obedincia significa pertena. Um livro da medicina chinesa afirma que as pessoas queobedecem, que esto no el, fluindo, pertencendo fora do cu e da terra, vivem cem anos. E maisou menos essa a concepo que So Francisco tem ao escrever este versculo da Regra. Pois na Igrejapulsa aquela imensido que se chama "crer na vida eterna". Vida Eterna no crer que depois da

    morte a alma vai continuar vivendo; isso muito pouco. Crer significa que a "vida eterna" estpresente j agora. E ns, no fundo, vivemos a aparncia de uma coisa que muito maior do que nsimaginamos.

    O que significa esta obedincia? Significa que o Evangelho no est assentado no ar, massituado, enraiado dentro de uma situao histrica. Este "estar situado" o que chamamos deinstituio: Papa, Bispo, Superior. A "vida do Evangelho" est sempre colocada dentro de um contextoconcreto, numa situao histrica (com este papa, tal bispo, tal comunidade...). Volta ento apergunta: o que significa obedincia dentro destas concrees? Quando falamos de obedincia,geralmente a entendemos como obedincia de execuo: seguir normas, executar o que mandado

    pela instituio. Mas no haveria a possibilidade de entender a obedincia como desafio de ouvir osentido que est pulsando atrs da instituio? O pianista que executa uma melodia. toca na medidaem que escuta: se escuta bem ou mal, profundamente ou mediocremente a melodia que esttocando, tambm tocar bem ou mal, profundamente ou mediocremente, porque se coloca no enviode si mesmo e de sua sensibilidade. Na obedincia acontece o mesmo: como o sdito ouve, interpretaa ordem, assim ele obedece. No se trata, pois, de executar normas, mas acolher o "sentido" daquiloque se ouve nelas. Desta forma a obedincia torna-se tarefa constante de ouvir, ob-audire o sentidoda norma e da ordem a partir do vigor de Evangelho. O importante o "a partir de onde eu escuto".Assim, cada vez que obedeo, eu me revelo naquilo que sou: aquilo que escuto me determina no meumodo de ser. Obedincia um modo de ser esquisito pelo qual se faz aquilo que se e ouve. Assim se fraterno, ento se age e obedece fraternalmente. Se se ouve com certa animosidade, tambm setambm se obedece com certa animosidade: se se obedece por medo do superior, a pessoa se revelamedrosa, infantil. Esta a estrutura do humano: eu determino a mim mesmo em tudo o que fao.Ns s conseguimos ouvir a partir de nossa identidade. Portanto. obedincia problema deidentidade, maior capacidade de assumir a obedincia. O ponto de partida da obedincia (a

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    identidade), deve ser to fundamental que se possa obedecer em toda e qualquer situao, como umartista to vigorosamente artista que de todo material ele pode fazer uma obra de arte. Assim, necessrio ver bem o piv onde coloco a minha identidade, pois dele depende e provm a obedincia.Se ele for bom poderei fazer de qualquer coisa uma obedincia.

    Nesta perspectiva, a obedincia conduzir tudo para a ausculta do vigor do Mistrio. SF nuncaexecutou normas, pois colocou a si prprio e o papa numa outra medida. Para ele, no existe oproblema da obedincia, porque ele ouve a partir de sua identidade evanglica. Por isso, se o papa lhe

    ordenasse virar cambalhotas, ele o faria.

    Vigor de identidade ter a capacidade de assumir a situao, a quadratura. Uma caractersticarelevante da espiritualidade franciscana o fato de ver a obedincia muito situacionada, encarnada,historial. Assim, o "problema das estruturas" deixa de ser problema quando a pessoa se mantem na

    jovialidade e no vigor, pois desse jeito o horizonte onde so colocadas as estruturas se alarga e todaselas, juntamente com a autoridade, so iluminadas por nova luz. nessa situao, nesta enquadraturaque se ouve o vigor do mistrio que envolve a tudo e a todos. Mais uma vez a obedincia depende damedida em que a identidade est ancorada no Mistrio.

    E reverncia. S. Francisco ao dizer "reverncia" ao papa toma a atitude tpica do cavaleiromedieval, atitude de abertura diante de um vigor de ser que atua no papa; a atitude de relacionamentode simpatia para o vigor dos outros, sem humilhao, acolhendo a autoridade que o outro tem.Reverenciar no bajular nem e medo nem subservincia; a capacidade de dar simpatia para aquilo que bom; a conscincia da realidade maior que atua por trs das pessoas e das instituies.

    Voc j imaginou o Pai de Jesus Cristo, Jesus Cristo, o Esprito Santo como fonte de todo odeslanche da humanidade, que o Apocalipse define "Novo Cu e nova Terra"? E que a Vida Religiosa e oseguimento de Jesus Cristo est dentro desse el? E essa imensido de viso que S. Francisco chamou deser catlico. Catlico no significa confessional, significa ter presente a imensido e a grandeza do Povode Deus. Isto e comunho dos Santos. Ns pertencemos a um povo, a uma famlia fantstica. quase

    necessrio avivarmos a nossa prpria imaginao, para termos uma representao mais adequadadaquilo que cremos. E atrs deste texto tem esta imaginao.

    Senhor Papa. Ao contrrio de tantos movimentos herticos daquele tempo, que pretendiamlevar vida evanglica em oposio Igreja hierrquico-sacramental para preservar-se a si mesmo e aseus frades presentes e vindouros da ameaa de heresia, Francisco ligou-se por obedincia irrestrita ao"Senhor Papa". Por mais que se reconhecesse o chamado por Deus Altssimo para uma vida Segundo oEvangelho, no quis viver sua vocao, sem que a Igreja o aprovasse.

    A atitude de ir ao papa confirma que S Francisco recebeu "esta" vida como dom de Deus;

    Francisco pede Igreja de poder experimentar o seu carisma, mas no a modo de "direito" e de dono,mas a modo de "dom", de pobre, de esmoler: de joelho perante o papa; o modo com que S. Franciscoest diante de tudo e de todos, feito servo de toda humana criatura.

    "Senhor papa" para ns tem ressonncia de poderio, mas em S. Francisco no. Senhor eco domistrio da benignidade de Deus que se doa no papa (vigrio de Nosso Senhor Jesus Cristo) e nosenhoriode Jesus Cristo; ele no v prepotncia mas a disposio de doao do servo. Na palavra "Senhor" ecoa aexperincia da primeira comunidade crist diante do "Senhor Jesus Cristo".

    Igreja Romana. S. Francisco nunca fala do que seja a Igreja em sua essncia.

    Leva-a simplesmente em conta na forma que a v diante de si e se preocupa exclusivamente com aatitude a tomar, ele e seus irmos em face dessa Igreja. Ele fazia questo de integrar a sua Ordememcomunidade eclesial. Os limites, que nunca deviam ser ultrapassados pelas pessoas quepretendiam pertencer Ordem, eram em primeiro lugar, os limites determinados pela f e pela

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    vida da Igreja catlica. Quem no quisesse respeit-los deveria ser "definitivamente excludo denossa fraternidade". Como por volta de 1200 havia muita gente que queria levar vida pobresegundo o Evangelho, mas afastada da Igreja, S. Francisco exigia que cada candidato Ordemfosse diligentemente examinado sobre a f catlica e os sacramentos da Igreja".

    S. Francisco entregou a Ordem e a regra sem reservas aos cuidados da Igreja. Jamaispretendeu ser livre em relao ela, nem mesmo no plano jurdico. Quase todas as grandesorganizaes religiosas existentes por volta de 1200 procuravam, por meio da iseno cannica,

    subtrair-se autoridade dos bispos. SF no entanto detestava romper a organizao diocesana daIgreja por meio de privilgios. Ele reverenciava bispos e sacerdotes. Contava at com apossibilidade de ser hostilizado por eles ou at de eles serem pecadores. Esta ltima circunstnciavem muito a propsito, pois havia na poca fortes correntes de opinio que no admitiam que umsacerdote ou um bispo pudessem pecar, contestando at a validade dos sacramentos ministradospor sacerdotes e bispos indignos. O seu respeito partia da conscincia dos "poderes" conferidos aeles pelo Sacramento da ordem; o poder de perdoar os pecadores, de celebrar a Eucaristia e deministra-la aos fieis; enxergava simplesmente no ministrio de sacerdotes e bispos a atuao deJesus Cristo, chamando-os por isso de seus senhores.

    Ns sempre nos perguntamos e discutimos o que a Igreja quer de ns hoje; mas isso nodeixa de ser abstrato. S. Francisco foi pedi-lo Igreja! E a igreja deu-lhe esta Regra para osfrades atuais e futuros; ento aqui j est bem determinado o que Evangelho de Jesus Cristo:a Regra. Nesta esta "'empacotado" o que significa Evangelho para ns franciscanos. A Regra avontade de Deus condensada para ns. Est intimamente ligada ao papa e a seus sucessores.

    Como hoje obedecer a Igreja a seus apelos e como distinguir os apelos da Igreja dos apelos doprprio eu, encoberto, camuflado por grandes motivaes e ideologias? S. Francisco na Regra nosindica como fazer para ter clarividncia e distinguir a submisso covarde e as camuflagens do eu, daverdadeira reverncia e sub-misso Igreja. Quem quer saber o que Evangelho, Igreja pastoral,hoje, deve colocar trs elementos que dificultem o entender o que Evangelho, Igreja pastoral hoje: aRegra, o Papa e o Ministro geral. O querer do eu e suas camuflagens excludo por estes trs fatorese checado por eles. Usualmente dizemos que a Igreja Romana e o Ministro geral deveriam ajudar,apoiar o nosso querer prprio!

    Os demais irmos estejam obrigados. O viver religioso no um viver subjetivo; indivduomas no individualista. Por isso, como Francisco busca no papa e na Igreja o arch, o fundamento, araiz do seu viver religioso, tambm os Frades Menores devem buscar nele e nos seus sucessores oarch, o kairsoriginrio e originante, que mantenha unido todo o corpo da Ordem e o mantenha naidentidade prpria ao longo dos sculos.

    Neste cho existencial lana razes o aspecto jurdico do viver ministerial" interno Ordem eem referncia Igreja. Trata-se de uma obedincia hierrquico-pessoal, como era entendida pela leifeudal da vassalagem e expressa nas frmulas de juramento de fidelidade feito pelos bispos ao papa epelos clrigos ao bispo. A Regra introduz na Vida Religiosa dois elementos novos, raros antes daprimeira metade do sculo XIII: a dependncia direta ao papa e a centralizao da Ordem sob ogoverno de um ministro geral.

    S. Francisco pe assim disposio da Santa S uma fora apostlica de vanguarda, cujadinamicidade assegurada pela mobilidade dos frades e a ligao com a autoridade central.Submetendo os frades "jurisdio" do ministro geral, a Regra cria as premissas para uma evoluoimportante: a clericalizao. Sem dvida a Igreja dava Ordem um meio eficaz para manter intacta apureza de sua vida; mas isso criava as condies para que os cargos internos mais importantes sfossem exercidos por frades sacerdotes. A clericalidade da Ordem tem aqui uma de suas razes.

  • 7/25/2019 Comentrio Regra

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    II - DOS QUE QUEREM ABRAAR ESTA VIDA E DE COMO DEVEM SER ACEITOS

    DE HIS QUI VOLUNT VITAM ISTAM ACCIPERE, ET QUALITER RECIPI DEBEANT

    Si qui voluerint hanc vitam accipere et venerint ad fratres nostros, mittant eos ad suos ministros provinciales,quibus solumodo et non aliis recipeiendi fratres licentia concedatur.

    Aqueles que quiserem seguir esta vida e vo ter com os nossos irmos, mandem-nos estes a seus ministros

    provinciais, aos quais somente e no a outrem, se conceda licena de receberem irmos.

    NB: Se algum, por inspirao divina, quiser abraar esta vida e for ter com os nossos irmos, esses o recebamcarinhosamente. Mas apresentem-no quanto antes ao seu ministro.

    No 2 captulo da Regra, nosso Pai So Francisco fala da maneira de admitir na Ordem, do tempodo noviciado, das vestes dos irmos j professos. Por fim d uma importante admoestao, indicandocomo os irmos devem guardar verdadeira pobreza e humildade nas relaes com os demais cristos.

    Aqueles. Quem so estes? So os que so tocados por uma afeio religiosa toda prpria,chamada vocao, manifestao do Mistrio. Acolher esta convocao da vida tarefa fundamental

    da existncia, pois por esta acolhida a pessoa se responsabiliza do seu viver. o prprio Deus quemmove uma pessoa a abraar a vida toda evanglica e toda apostlica. Nisso ele exercita suapaternidade. Ns fomos queridos por um Deus que em Jesus Cristo nos amou primeiro. Essa escolhaque Deus faz de ns manifestao uma imensa aceitao que ele tem de ns, com tudo o que somose temos, para que sejamos arautos, mensageiros alegres dessa boa nova: que a humanidade,acontea o que acontecer no cantinho, tem atrs de si, no fundo de si, um grande amor, um amoreterno, um amor insondvel, amor cuja dinmica a fora e a esperana da vida.

    Que quiserem. Querer o posicionar-se decidido e decisivo diante dos en-via do Mistrio quese manifesta como vocao vida religiosa franciscana. Como o modo de ser do querer? Quaissuas caractersticas? Querer uma estrutura da existncia humana: a vida toda sempre um sequeres". uma fora que toma o homem semelhante a Deus: participao, fasca do prprio criador.Por isso o querer antes de tudo uma afeio misteriosa que acolhe algum com uma urgncia queest alm das motivaes' subjetivas.

    Por outro lado o querer um decidir-se autnomo, onde toda a responsabilidade est com apessoa que quer. Querer buscar, isto , estar na dinmica mais essencial do esprito. Por ser umadeciso, o querer cria necessariamente um conflito entre o querer autossuficiente e autnomo e oquerer aberto a uma competncia maior e que busca a raiz de sua autonomia: a vontade de Deus.

    Todo querer limitado, finito diante da vida que em suas manifestaes est sempre para alm

    do que podemos com nosso querer. Por isso todo querer bom, no ponto, cordial diante da finitude,a acolhe e se articula dentro dela, tomando-a seu aliado. A grandeza do querer humano finito estem ele ser artesanal": repetir a grande fora do humano. A criatura nunca faz algo uma vez portodas, para sempre. Esta caracterstica do querer tambm a grande possibilidade do humano diantedo erro e do pecado: reassumir o passado como de ressurreio, sem deixar que o passado intoxiqueo presente.

    Se queres, deves, impe-se, necessrio que. A imposio a fora do concretizar-se do querer;brota, portanto, da liberdade. Imposio no podar a liberdade, a partir de uma vontade alheia, maso concrescer do querer naquilo que prprio de sua busca. A alergia imposio mostra que o querer

    no est no ponto; necessrio tirar da cabea o esprito de madame! A vida luta, sujar-se.

    Resumindo numa espcie de lema: o querer aqui, agora, comigo, sempre novo, de novo,nova, a mesma coisa. Seu oposto : ali, depois, com os outros, ressentida e preguiosamente, umavez por todas, qualquer coisa.

  • 7/25/2019 Comentrio Regra

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    H diversas tonalidades de querer, bem diferentes entre si:

    QUERERESTTICO

    QUERERVOLUNTARIOSO

    QUERER TICO QUERERRELIGIOSO

    No querer Agencia Busca Acolhe

    Gostaria Eu quero Se queres Encontro

    Deveriahipottico

    Tenho direitoopo

    Devesdeciso

    necessriodeterminao

    Dependendo...publicidade

    Autossuficientedogmtico

    Autnomotico

    Obedientediscipular

    Indefinidogenrico

    Infinitodesmedido

    Finitoconcreto

    In-finitopobre

    Anmico

    ressentido

    Dominador

    orgulhoso

    Cordial

    disposto

    Grato

    jovial cordial

    Ineficazineficiente

    Pretensiosoimpotente

    Per-feitoartesanal

    A modo de servoservo menor

    COISA NENHUMA A FRUSTRAO O DEVER O NICONECESSRIO: O PAI DE

    JC

    Abraar esta vida. Abraar este projeto de vida. Ao falar da recepo dos candidatos, significativo que no se fale de entrar no convento, mas abraar esta vida: esta expresso erapreferida por So Francisco por responder melhor a um tipo de vida comum mas no comunitria.

    Vo ter com os nossos irmos. Os irmos j abraaram o projeto de vida franciscana e j fizeramuma histria a parti do chamado de Deus. Os novos irmos os procuravam por pertencerem aescola franciscana. O medieval entrva na ordem para procurar a resposta s grandes perguntas davida, pois encarava a ordem como uma escola onde havia um acmulo de experincias e posturasedequadas a esta questo ,quase como uma escola que possua o segredo da arte de viver.

    Mandem-nos estes a seus ministros provinciais. Alm do dom de Deus e da vontade docandidato, necessria ainda a aceitao por parte da comunidade. O direito de aceitar os novos

    irmos, at agora reservado a So Francisco, passa agora para os ministros provinciais. Os ministriprovinciales so apresentados como uma instncia superior. O cargo deles contudo no

    juridicamente fixado, nem aqui nem em outra parte da Regra. Supe-se simplesmente que todossaibam quem so e quais as suas atribuies. Por isso, a Regra nada regula a esse respeito. Ficaevidente assim a inteno fundamental da Regra: impregnar de esprito a vida que os frades levavam.

    RNB: Por inspirao divina. O que move algum a abraar este gnero de vida? A RNB respondeexplicitamente a inspirao divina ( a mesma expresso usada na RB para os que vo entre ossarracenos). Inspirao divina parece indicar o critrio para a recepo dos candidatos. Uma espciede medida para saber se o candidato tem ou no tem vocao. Se porm essas palavras no forem

    apenas um enfeite, uma mera expresso ou modo de falar piedoso, mas querem dizer de fato umarealidade, ento ficamos atrapalhados. Isso porque, embora admitamos que a inspirao divina umatica garantia para averiguar a vocao, como saber se algum quer realmente pela inspirao divina?Com que critrio verificar o prprio critrio da vocao, como certificar-se se ou no pelainspirao divina?

  • 7/25/2019 Comentrio Regra

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    Pelo teor do texto, percebe-se que SF no tinha esse tipo de perplexidade. Ele sabe realmentese ou no pela inspirao divina. Ns, porm, um tanto escandalizados diante de uma talpretenso, perguntamos: como que ele sabe acerca da inspirao divina? Mesmo que tivesse umarevelao em carne e osso, como saber que realmente uma revelao divina?

    Mas que tal se SF, em vez de nos responder, virasse a pergunta contra ns dizendo: E como que vocs no sabem acerca da inspirao divina? Costumamos responder que no sabemos porque odivino transcende a nossa experincia. Essa resposta uma verdade ou uma teoria aprendida, mal

    analisada, que esconde um qu de irresponsabilidade mental? O que sabemos acerca dessatranscendncia, realmente? No assim que o divino uma experincia; experincia essencialmentehumana, experincia de fundo; uma experincia toda prpria que exige um preparo, um tirocnio,uma busca, uma aprendizagem toda especial, exclusiva dela e um longo exerccio, uma rdua econtnua prtica?

    Por que no sabemos acerca dessa dimenso, dessa experincia toda prpria, chamada divino?No porque na realidade no temos a experincia do divino? E por que no temos essa experincia?No porque somos diletantes, amadores, sim, turistas na procura, na busca, no estudo dessadimenso? No porque jamais nos exercitamos pra valer, dura e radicalmente, com uma boa e

    discreta e bem esclarecida orientao, na prtica dessa experincia?

    Um mestre na msica sabe de imediato, no primeiro contato, se um candidato tem a disposioIdeal ou no; sabe porque um mestre, isto , um discpulo dedicado que de corpo e alma, por longosanos doou-se ao trabalho tenaz, diligente e cada vez mais exigente na arte da msica e adquiriu com otempo um fato certeiro e clarividente. Ns aprendemos espiritualidade, aprendemos a rezar e ameditar, nos analisamos, fazemos pastoral, reunies, trabalhos; aprendemos teorias filosficas,recebemos muitos conhecimentos sobre muitas coisas, trabalhamos nisso e naquilo, fazemos retirosabertos e fechados, participamos de cursos aqui e ali, nos atualizarmos, nos engajamos, combatemosa alienao, estamos abertos a tudo o que bom, fazemos ioga, zen, parapsicologia... Mas afinal, emque estamos engajados? Em que estamos ficando mestres, isto , discpulos dedicados, atentos eradicais, de corpo e alma? Na aprendizagem de qu? Em que estamos ficando certeiros, clarividentes?

    Talvez seja esse borboletear de leve" na superfcie das coisas que jamais permite a nossa buscade tornar-se sria e quente, incmoda, dura e difcil; por no pesar como tarefa, como compromisso,como imposio de uma realidade-terra; falamos mito da necessidade da prtica, do engajamento,sem jamais nos clarear a mente e o corao, a ponto de nos capacitar a um julgamento certeiro, justoe claro da realidade, um saber cheio de faro acerca de algum que vem a ns e quer caminharconosco...

    Ministri vero diligenter examinent eos de fide catholica et ecclesiasticis sacramentis. Et si haec omnia credant etvelint ea fideliter et usque in finem firmiter observare et uxores non habent vel, si habent, et iam monasteriumintraverint usores vel, licentiam eis dederint auctoritate diocesani episcopi, voto continentae iam emisso, et illiussint aetatis uxores, quod non possit de eis oriri suspicio, dicant illis verbum sancti Evangelii (cf. Mt 19,21 par),quod vadant et vendant omnia sua e ea studeant pauperibus erogare. Quod si facere non potuerint, suficit eisbona voluntas.

    Os ministros, porm, os examinem diligentemente sobre a f catlica e os sacramentos da Igreja. E se creremtodas essas coisas e as quiserem professar com fidelidade e observar com firmeza, at o fim; e se no foremcasados, ou, se o forem, as mulheres j tiverem encontrado em convento ou, feito o voto de continncia, lhestiverem dado licena, com autorizao do bispo diocesano, e se elas forem de tal idade que no torne o seuconsentimento suspeito; a eles digam os ministros a palavra do santo evangelho (Mt 19,21), que vo e vendamtudo o que possuem e tratem de distribuir entre os pobres; mas, se o no puderem, basta-lhes a boa vontade.

    RNB: Todos os irmos sejam catlicos, e vivam e falem como catlicos. Se porm um deles, por palavras ou poratos, se afastar da f e da vida catlica e no se quiser emendar seja definitivamente expulso da nossafraternidade. Consideremos todos os clrigos e todos os religiosos como nossos senhores, no que concerne salvao da almas e no se opuser nossa ordem, e respeitemos no Senhor sua ordenao, ofcio e ministrio.

  • 7/25/2019 Comentrio Regra

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    O ministro o receba carinhosamente, conforte-o e lhe explique diligentemente em que consiste o nosso gnerode vida. Feito isto, e se o candidato resolver abraar esta vida, venda tudo o que possui - na medida em que puderfaz-lo espiritualmente sem impedimento - e procure distribu-lo aos pobres.

    Se vier algum que no possa distribuir os seus bens por estar impedido de faz-Io, mas que tenha no espritoesta vontade, renuncie aos seus bens e isto lhe basta.

    Os examinem diligentemente. Entre o primeiro encontro e a recepo ao Noviciado, passavaum certo perodo de tempo, no qual o Ministro Provincial expunha ao candidato o teor da Vida

    religiosa franciscana, o examinava sobre sua f catlica e buscava reconhecer no candidato ascondies indispensveis. Era como um postulantado. Essa medida era ento indispensvel, paraevitar a infiltrao de elementos herticos na comunidade minortica. O perigo era forte, por causadas grandes semelhanas exteriores. Os ctaros, e com eles os valdenses, rejeitavam a hierarquiaeclesistica e os sacramentos por ela administrados. A f nos sacramentos da Igreja era, pois, umcritrio adequado para verificar se algum tinha senso eclesial catlico. SF espera que os ministrosfaam uso da licentiade receber irmos, dentro do verdadeiro espirito franciscano: na recepo denovos irmos, consoante