Comercio Internacional e to

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Comrcio internacional e desenvolvimentoDo Gatt OMC: discurso e prtica

Kjeld Jakobsen

BRASIL URGENTE

A RELAO entre comrcio internacional e desenvolvimento sempre foi uma questo controversa, que coloca em choque vises e interesses divergentes. Este livro mostra como vm se desenvolvendo as relaes comerciais internacionais desde do final do sculo XIX, e como tm sido diferentes o discurso e as prticas dos pases mais poderosos em relao ao livre-comrcio. O autor discute o que isto representa para pases em desenvolvimento como o Brasil e para o movimento social. E, em particular, questiona o papel que a Organizao Mundial do Comrcio (OMC) pretende desempenhar no novo quadro internacional em que predomina o neoliberalismo, e apresenta alternativas no sentido de tornar o comrcio e as relaes internacionais mais justas.

KJELD JAKOBSEN, ex-secretrio de Relaes Internacionais do municpio de So Paulo, presidente do Instituto de Desenvolvimento de Cooperao e Relaes Internacionais (Idecri) e do Instituto Observatrio Social. Foi secretrio de Relaes Internacionais da Central nica dos Trabalhadores do Brasil de 1994 a 2003.

Kjeld Jakobsen

Comrcio internacional e desenvolvimentoDo GATT OMC discurso e prtica

EDITORA FUNDAO PERSEU ABRAMO

FUNDAO PERSEU ABRAMO Instituda pelo Diretrio Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996. DIRETORIA Hamilton Pereira (presidente) Ricardo de Azevedo (vice-presidente) Selma Rocha (diretora) Flvio Jorge Rodrigues da Silva (diretor) EDITORA FUNDAO PERSEU ABRAMO COORDENAO EDITORIAL Flamarion Maus EDITORA ASSISTENTE Candice Quinelato Baptista ASSISTENTE EDITORIAL Viviane Akemi Uemura PREPARAO Valter Pomar REVISO Marcos Marcionilo CAPA,ILUSTRAES E PROJETO GRFICO

Gilberto Maringoni EDITORAO ELETRNICA Augusto Gomes

1a edio: janeiro de 2005 Todos os direitos reservados Editora Fundao Perseu Abramo Rua Francisco Cruz, 224 CEP 04117-091 So Paulo SP Brasil Telefone: (11) 5571-4299 Fax: (11) 5571-0910 Na Internet: http://www.fpabramo.org.br Correio eletrnico: [email protected] Copyright 2005 by Kjeld Jakobsen ISBN 85-7643-015-0

Sumrio

Introduo ................................................................................... 5 1. Origem do livre-comrcio e do protecionismo .................... 12O liberalismo econmico e o comrcio ........................................... 13 Liberalismo, mas no para todos .................................................... 17 O nacionalismo econmico e a proteo indstria infante ......... 21 A reao crise de 1929 e o comrcio no perodo entreguerras .... 26

2. O GATT, de Genebra a Tquio ............................................... 30A criao do GATT ............................................................................ 31 A clusula da nao mais favorecida ...................................... 34 Zonas de livre-comrcio ........................................................... 35 O Comecon ................................................................................ 36 A arbitragem das disputas comerciais .................................... 38 As excees necessrias e a criao da UNCTAD ............................ 40 A Unio Europia ..................................................................... 42 O GATT e a crise dos anos 1970 ....................................................... 47

3. A Rodada Uruguai do GATT .................................................. 50As principais decises da Rodada Uruguai .................................... 56 O acordo sobre agricultura ............................................................. 58 Avaliao do acordo ........................................................................ 62 A clusula social ........................................................................ 64 Acordos de livre-comrcio regionais e bilaterais ........................... 67

4. A Organizao Mundial do Comrcio (OMC) ....................... 70As Conferncias de Cingapura e Genebra ...................................... 73 A Conferncia de Seattle ................................................................. 76 A Conferncia de Doha ................................................................... 77 A Conferncia de Cancn ............................................................... 82 Resultado das negociaes na OMC ............................................... 86

5. A participao da sociedade organizada .............................. 89Constitui-se a oposio aos acordos .............................................. 90 A Batalha de Seattle ....................................................................... 98 Uma crtica ao mtodo .................................................................. 101

6. Comrcio internacional e desenvolvimento ..................... 105 Bibliografia .............................................................................. 110

Introduo

Desde os tempos remotos relatados na passagem bblica em que Caim cedeu seu direito de primogenitura ao irmo Abel em troca de um prato de lentilhas at as compras que hoje fazemos pela internet houve transformaes extraordinrias no contedo dos bens comerciveis e principalmente na forma de se comercializar, em particular entre um pas e outro. Embora desde o escambo1 da Antiguidade at o comrcio eletrnico de hoje estejamos falando da troca de um bem por outro e da troca de bens por paga-

1. Escambo a troca de bens e servios sem o uso de dinheiro. o estgio mais primitivo nas relaes de troca, geralmente praticado em sociedades de economia natural ou comunidades pobres, que trocam bens por outros bens, por exemplo: sacos de cereais por animais, animais por outros animais, alimentos por alimentos etc.Comrcio internacional e desenvolvimento

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mentos de qualquer natureza, o entendimento sobre a forma como os pases deveriam proceder em relao ao comrcio alterou-se muito. O comrcio um aspecto importante das relaes internacionais. Muitas rotas de comrcio da Antiguidade ajudaram a definir a geopoltica do mundo atual, bem como influenciaram a ascenso e a queda de imprios. Muitos conflitos entre naes deramse em funo de disputas comerciais. Mesmo hoje d-se mais ateno aos aspectos comerciais das relaes internacionais do que propriamente s relaes polticas entre os pases. Durante a histria contempornea houve abordagens muito diferentes sobre o comrcio internacional. A primeira foi o mercantilismo. Depois, com a produo de manufaturados em larga escala, desenvolveram-se o livre-comrcio e sua anttese, o protecionismo. Surgem da duas vises sobre o vnculo entre comrcio e desenvolvimento econmico: o liberalismo e o nacionalismo. Ao longo dos ltimos 60 anos, estas vises, em diferentes momentos, se opem, e em outros, se complementam, durante as tentativas de regulamentar e ao mesmo tempo liberalizar ao mximo o comrcio e os investimentos. H uma relao importante entre comrcio e desenvolvimento, uma vez que os pases vendem seus produtos para obter os recursos para comprar aquilo de que necessitam, inclusive para fomentar seu desenvolvimento, como mquinas, tecnologia etc. No entanto, particularmente a partir do final da dcada de 1970, a mdia e as instituies capitalistas em geral vm tratando a relao entre liberalizao do comrcio e desenvolvimento econmico com uma abordagem neoliberal e como a panacia para solucionar a queda no crescimento mdio do PIB (Produto Interno Bruto) mundial. Esta uma questo controversa, por vrias razes que tentaremos discutir ao longo deste livro, considerando os fatores que qualificam o comrcio externo, como a distribuio funcional da economia de um pas, o papel desempenhado pelo Estado, o valor agregado aos produtos exportados, o papel das empresas transnacionais no sistema de comrcio atual e, principalmente, a diferena entre o discurso e a prtica. 6Kjeld Jakobsen

A percepo de muitos que acompanham a matria, bem como a evoluo dos acordos de livre-comrcio negociados aps a Segunda Guerra Mundial, de que na prtica se repete, embora com roupagem moderna, o colonialismo do perodo de expanso comercial das grandes potncias nos sculos XVIII e XIX. As colnias deixaram de existir como tais, mas a explorao dos pases independentes prossegue por meio de mecanismos mais sutis, e as naes que anteriormente se beneficiavam, primordialmente Inglaterra, Frana e Alemanha, hoje seriam os membros da Trade Estados Unidos, Unio Europia e Japo. A inteno deste livro refrescar um pouco nossa memria histrica como base para a discusso, recuperar fatos e, no caso das polticas comerciais internacionais implementadas aps a Segunda Guerra Mundial, tentar atribuir o devido peso a cada aspecto delas. Isto desde a fracassada tentativa de criar a Organizao Internacional de Comrcio (OIC), passando pelo Acordo Geral de Comrcio e Tarifas (GATT) e outras iniciativas, at a constituio da atual Organizao Mundial do Comrcio (OMC) e discutir o que isso tudo representa, principalmente para pases em desenvolvimento como o Brasil. A inteno cumprir esse objetivo sem cansar o leitor demasiadamente com tecnicismos ou conceitos, mas sem deixar de lado as informaes pertinentes e, tambm, jogar um pouco mais de luz sobre os principais aspectos do comrcio internacional, inclusive as prticas menos ticas. Para tanto, alm desta introduo, o livro est dividido em seis captulos. O primeiro captulo discute o conceito de livre-comrcio introduzido a partir do sculo XVIII, muito semelhante ao que vigora agora sob o neoliberalismo, embora a definio sobre o que so vantagens comparativas e barreiras comerciais tenha se tornado muito mais sofisticada na atualidade, como veremos adiante. Embora muitos governantes naquela poca se reivindicassem liberais, adotavam prticas mercantilistas, protegendo os bens que ainda no estavam em condies de competir com a importao de seus equivalentes. Como fazia, por exemplo, a Inglaterra, que j se apresentava como a potncia hegemnica no mundo. Desde o sComrcio internacional e desenvolvimento

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culo XVI, ela j adotava medidas para desenvolver e proteger sua indstria de roupas de l. As medidas adotadas foram: elevao da tarifa externa2 sobre a importao de produtos de l, importao de mo-de-obra qualificada para organizar a produo inglesa e proibio da exportao da produo local da l como matria-prima ou roupas semi-acabadas. Esses mecanismos rapidamente quebraram os concorrentes dos Pases Baixos (CHANG, 2002). Perceberemos, ao longo da histria, que o livre-comrcio nunca foi integralmente implementado, nem sequer pelos seus defensores. Mesmo a Inglaterra s liberalizou significativamente suas tarifas externas na segunda metade do sculo XIX, quando sua economia estava consolidada. Na verdade, o perodo de maior liberalizao do comrcio naquele sculo durou de 1860 a 1872 (BAIROCH, 1993). Portanto, apenas 12 anos! Por sua vez, economistas liberais e influentes dos Estados Unidos e da Alemanha pregavam abertamente a necessidade da proteo indstria infante, at que esta estivesse slida e em condies para competir no mercado mundial com seus equivalentes mais estruturados e competitivos. Freqentemente se apelava, tambm, para o protecionismo como forma de lidar com as crises econmicas e a recesso, pois diante da escassez de divisas e do aumento do desemprego estimulava-se a substituio de importaes e a produo domstica por intermdio da elevao de tarifas externas. Desde sua independncia, os Estados Unidos aplicaram esse mecanismo diversas vezes, notadamente para enfrentar os efeitos da crise de 1929, a mais grave de todas e, na verdade, mais que uma recesso: uma depresso econmica. Apesar do discurso em defesa do livre-comrcio, que em tese harmonizaria o mercado mundial, pois todos competiriam dentro das mesmas regras, as maiores potncias se sobressairiam a partir do comrcio dos bens que tinham maior capacidade para produzir e dos produtos nos quais detinham mais vantagens com2. Tarifa externa um imposto cobrado nas fronteiras sobre produtos importados. Seu percentual condiciona os preos com os quais os produtos chegaro ao mercado consumidor e, conseqentemente, se vendero muito ou pouco.

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parativas. Na prtica o que ocorreu at o incio do sculo XX foi uma disputa extremamente acirrada por conquista de mercados e aplicao de uma mescla de mercantilismo e nacionalismo econmico com livre-comrcio e liberalismo. Nessa disputa valia tudo: medidas protecionistas, aes blicas, disputar colnias, ignorar patentes, entre outras aes, at que a prpria disputa provocou a Primeira Guerra Mundial. O perodo entreguerras foi consumido na recuperao dos prejuzos causados pela Primeira Guerra Mundial e, em seguida, dos danos provocados pela forte retrao do comrcio mundial decorrente da crise de 1929. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, as potncias capitalistas vencedoras estavam convencidas de que seria necessrio estabelecer uma srie de instituies em nvel mundial para criar regras e monitor-las no que tangia ao sistema monetrio, investimentos e comrcio mundial. Da nasceram as instituies de Bretton Woods3 e o GATT. O segundo captulo trata das rodadas de negociaes comerciais entre a fundao do GATT e a Rodada de Tquio4 e de como os principais procedimentos foram se definindo, bem como destaca o fato de que os pases do Terceiro Mundo no se sentiam devidamente contemplados por essas negociaes e muitos deles sequer estavam tecnicamente preparados para participar das rodadas. Esses pases conseguiram, por intermdio de presso poltica, constituir outros espaos de negociao junto Organizao das Naes Unidas (ONU), assim como regras que levassem em conta seu estgio de desenvolvimento. o perodo de ouro do capitalismo, mas tambm da ascenso das idias cepalinas5, do desenvolvimentismo e do Movimento dos Pases No-Alinhados.

3. As instituies de Bretton Woods so o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BIRD), que entraram em vigor em 1947 (ver p. 31). 4. Rodada o processo negociador no GATT, que pode demorar at alguns anos para ser concludo. As rodadas assumem o nome do local onde ocorreu a reunio inicial (ver p. 37). 5. A Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal) foi criada em 1948, como um organismo regional da ONU para desenvolverComrcio internacional e desenvolvimento

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O terceiro captulo relata a concluso dessa fase do comrcio mundial, com a realizao da Rodada Uruguai do GATT, que complementa a Rodada Tquio em termos de reao ascenso do nacionalismo econmico dos anos 1970. J vivamos sob a gide do neoliberalismo, e essa rodada foi a mais longa de todas, provocando novas redues tarifrias, limitando as excees previstas originalmente no GATT e definindo encaminhamentos para a negociao de uma srie de novos temas considerados comerciveis, como servios, investimentos e propriedade intelectual, alm de aprovar a criao da Organizao Mundial do Comrcio (OMC). No entanto, a OMC s logrou realizar uma conferncia ministerial com algum nvel de deciso: a primeira, realizada em Cingapura em 1996, na qual se ampliou a agenda de novos temas. Para surpresa de muitos, a Conferncia de Seattle, que pretendia iniciar as negociaes da Rodada do Milnio, terminou sem qualquer resoluo, a no ser devolver ao diretor-geral da OMC a tarefa de iniciar consultas para definir o procedimento adequado para retomar as conversaes. Dois anos depois, a Conferncia de Doha conseguiu salvar minimamente as aparncias, mas na conferncia seguinte, em Cancn, houve novo impasse. A trajetria da OMC o tema do quarto captulo. O movimento social tem se apresentado ao debate sobre o comrcio mundial, principalmente a partir da Conferncia da OMC em Cingapura. Particularmente o movimento sindical tem sido muito ativo, fazendo lobby a favor da vinculao entre comrcio e direitos trabalhistas, tentando utilizar o poder de sano da OMC contra os pases que violam sistematicamente os direitos bsicos dos trabalhadores, consagrados numa srie de convenes da Organizao Internacional do Trabalho (OIT). A conferncia de Seattle tambm inaugurou a primeira grande manifestao popular contra a OMC e o livre-comrcio. disto que trata o quinto captulo.estudos em apoio ao desenvolvimento dos pases do continente. Sua sede em Santiago do Chile. Muitos economistas brasileiros, como Celso Furtado, Maria da Conceio Tavares, Jos Serra, entre outros, estiveram ligados a ela.

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O sexto captulo procura desenvolver algumas perspectivas para os rumos do comrcio mundial, considerando as dificuldades em relao ao fortalecimento dos acordos de livre-comrcio. Alm dos problemas na OMC, poderamos mencionar tambm os impasses nas negociaes da Comunidade Econmica da sia e do Pacfico (APEC) e o novo formato da rea de Livre Comrcio das Amricas (ALCA), muito menos liberal em comparao com a pretenso inicial dos Estados Unidos. O reconhecido fracasso do Consenso de Washington6 em promover o desenvolvimento econmico, o questionamento do pensamento nico e seus desdobramentos nas polticas das instituies como a OMC devem-se muito s novas posies dos pases mais pobres, s articulaes de grupos de pases que estes vm promovendo e atuao do movimento social. Sem dvida, voltou a ser atual o tema do desenvolvimento dos pases em estgio mais atrasado e daqueles que mais sofreram com os ajustes estruturais. Constata-se que os pases que hoje so industrializados tiveram a possibilidade de amadurecer seu desenvolvimento econmico, por intermdio da interferncia do Estado e de medidas protecionistas, antes de liberalizar as suas economias. Portanto, justo indagar o que se pretende fazer com os pases que ainda hoje no alcanaram o mesmo patamar. O desafio formular propostas adequadas para o desenvolvimento dos que esto mais atrasados diante da conjuntura econmica atual e que, certamente, no so as mesmas que possibilitaram a implementao do desenvolvimentismo7 de quase 50 anos atrs. Uma outra discusso, igualmente complexa, refere-se ao papel das empresas transnacionais e a regulamentao supranacional para limitar seu poder.

6. O Consenso de Washington um conjunto de medidas econmicas neoliberais, como privatizaes, reformas fiscais e cambiais, reduo tarifria etc., apoiadas pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelo Tesouro dos Estados Unidos e por governos latino-americanos, no incio da dcada de 1980, para reduzir os altos ndices de inflao da Amrica Latina. 7. Desenvolvimentismo uma poltica econmica implementada pelo Estado na tentativa de eliminar a dependncia do exterior, como, por exemplo, a poltica de substituio de importaes na Amrica Latina.Comrcio internacional e desenvolvimento

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1. Origem do livre-comrcio e do protecionismoO professor sul-coreano Ha-Joon Chang, em seu excelente livro Kicking Away the Ladder, publicado em 2002, analisa a estratgia de desenvolvimento dos pases industrializados a partir de uma perspectiva histrica e demonstra que eles adotaram uma srie de medidas para proteger suas economias, at que estas se consolidassem e estivessem aptas para enfrentar a concorrncia com outros pases. No entanto, conclui que os mesmos pases que se industrializaram dessa forma hoje impedem, unilateralmente ou por intermdio das instituies multilaterais, que os pases emergentes apliquem as mesmas medidas para tambm proteger suas economias at que elas estejam devidamente consolidadas e preparadas para a competio no comrcio internacional. Ou seja, ao chegar ao topo, os pases desenvolvidos chutam a escada que usaram, impedindo aqueles que chegaram mais tarde de subir. 12Kjeld Jakobsen

De fato esse um grande embate nas negociaes e instituies que se propem a definir as regras de liberalizao comercial atual: se os pases menos desenvolvidos podem beneficiar-se delas, pois nenhuma regra aprovada se os pases mais poderosos no estiverem de acordo, o que implica afirmar que so eles, na verdade, que as definem. E as definem ou acatam em primeiro lugar de acordo com seus interesses. Por isso, assistimos ainda hoje a discusses at contraditrias, em que a defesa da mxima liberalizao em reas como as tarifas industriais se mistura com posturas protecionistas, por exemplo, quando se tenta eliminar tarifas e subsdios agricultura, praticados pela Unio Europia e pelos Estados Unidos, ou quando os pases desenvolvidos adotam medidas protecionistas unilateralmente e em desacordo com os tratados internacionais.

O liberalismo econmico e o comrcioO mercantilismo era a expresso do modelo de comrcio internacional desenvolvido entre os sculos XVI e XVIII, quando dinheiro e terra eram considerados os fatores de produo. Embora no possusse um marco terico mundial, era a poltica comercial adotada em moldes muito semelhantes pelas monarquias absolutistas da poca. Suas caractersticas principais eram a busca de ouro, prata e supervit comercial para acumular dinheiro. Aliado ao desenvolvimento de novos equipamentos e tcnicas de navegao, o mercantilismo foi um fator de importante estmulo s grandes navegaes e descoberta de novas terras, pois buscavam-se produtos que pudessem ser comprados a preos baixos e vendidos com muito lucro, como as especiarias do Oriente, e procuravam-se tambm novas colnias, de preferncia ricas em pedras e metais preciosos. O dinheiro acumulado podia ser aplicado a juros e tambm servia para os comerciantes pagarem impostos aos monarcas, para proteger suas rotas comerciais, conquistar novas colnias para explorar e comprar direitos de monoplio comercial. Parte dessas reservas destinaram-se ao financiamento das primeiras indstriasComrcio internacional e desenvolvimento

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em certos pases mas, ironicamente, no em Portugal e na Espanha, que estavam entre os atores mais importantes das grandes navegaes e do incio do mercantilismo. Para assegurar o supervit comercial, era necessrio implementar uma srie de medidas de Estado como, por exemplo, o protecionismo alfandegrio, que restringia as importaes ao impor pesadas taxas alfandegrias sobre produtos estrangeiros ou simplesmente proibindo sua importao. Thomas Mun afirmava sobre a poltica protecionista:Os impostos aduaneiros de exportao podem ser nocivos porque encarecem as exportaes britnicas [...] Por outro lado, os impostos aduaneiros de importao devem ser suficientemente altos para desencorajar o consumo de bens estrangeiros na Inglaterra.

Mun foi um dos principais pensadores do mercantilismo ingls e defendia o desenvolvimento da marinha inglesa para reduzir os custos do comrcio internacional para a Inglaterra, a expanso colonial para ampliar os mercados e a concesso de privilgios e monoplios indstria e ao comrcio nacionais (DIAS, 2002). O liberalismo e o livre-comrcio, por sua vez, so as expresses econmicas das Revolues Burguesas a partir dos sculos XVII e substituem o mercantilismo ligado s polticas do Ancien Rgime. Sua teoria pregava que o fim dos entraves, como tarifas elevadas e portos fechados1, faria que o comrcio crescesse em todo o mundo, beneficiando a economia de todos os pases que participassem. O benefcio traduzir-se-ia em crescimento econmico e bemestar, que promoveriam a paz entre as naes. Veremos mais adiante que, apesar dessa contraposio terica ao mercantilismo, a maioria dos pases que abraaram o liberalismo mantiveram as prticas protecionistas do modelo anterior, pelo menos por algum perodo, e na prtica no foi permitido a todos os pa-

1. A poltica de portos fechados significava impedir a importao dos produtos de determinados pases, principalmente inimigos ou concorrentes, ao proibir o acesso de seus navios aos portos nacionais.

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ses participarem livremente do comrcio mundial muito menos em condies iguais. O debate sobre o livre-comrcio comeou a ganhar corpo terico quando Adam Smith, o pai do liberalismo econmico, em sua famosa obra A riqueza das naes, de 1776, desenvolveu a tese da vantagem absoluta ao defender que o crescimento econmico era uma funo da diviso internacional do trabalho, que por sua vez dependia da escala do mercado, interno e externo. Quanto maior a escala, maior seria a possibilidade do crescimento, que por sua vez traria riqueza e poder para as naes que assim agissem. A escala estava ligada produo dos bens em que cada pas tinha maior especializao e, portanto, maior produtividade. Segundo Adam Smith, o livre-comrcio era fundamental para manter esse princpio. Assim, os pases mercantilistas que levantassem barreiras contra o intercmbio de bens e a ampliao de mercados estariam na verdade impedindo seu prprio crescimento econmico e agindo contra seus interesses. Vrios anos depois, um discpulo de Adam Smith, chamado David Ricardo, aprofundou a reflexo sobre essa diviso internacional do trabalho, analisando a especializao defendida por Smith como vantagens comparativas nos termos de troca de uma nao em relao outra. Textualmente:Sob um regime de comrcio perfeitamente livre, cada pas dedica naturalmente seu capital e trabalho s atividades mais vantajosas para ambos. Essa busca da vantagem individual articula-se admiravelmente com o bem universal do conjunto. Ao estimular a indstria, recompensar o engenho e empregar de modo mais eficiente os poderes peculiares oferecidos pela natureza, ela distribui o trabalho de forma mais eficiente e mais econmica; ao mesmo tempo, ao aumentar a massa geral da produo, difunde os benefcios gerais e une, por um lao comum de interesse e intercmbio, a sociedade universal das naes em todo o mundo civilizado. esse o princpio que determina que a Frana e Portugal fabricaro vinho, que o milho ser cultivado na Amrica e na Polnia, e que mquinas e outros produtos sero manufaturados na Inglaterra (RICARDO, 1817 apud GILPIN, 2002).Comrcio internacional e desenvolvimento

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Para demonstrar esta tese, Ricardo utilizava o exemplo do vinho portugus trocado por tecidos ingleses. Portugal, na verdade, seria capaz tanto de produzir vinhos como tecidos. No entanto, ao possuir condies muito melhores para produzir vinhos bons e baratos do que tecidos, seria mais vantajoso dedicar-se integralmente produo e exportao de vinho e simplesmente importar os tecidos da Inglaterra, onde eles eram produzidos a baixos preos e com alta qualidade. Desta forma ganharia mais. Podemos imaginar como seria o mundo atual se as idias de Smith e Ricardo tivessem prevalecido da forma apresentada? Algum consegue imaginar os Estados Unidos como um grande milharal? Ou a Frana como um grande vinhedo? Ricardo, na verdade, apresentava uma situao imaginria, de relaes bilaterais, sem considerar custos de transporte, mais-valia, desenvolvimento tecnolgico, entre tantos outros elementos relevantes para discutir a produo de bens e o comrcio internacional. Posteriormente, economistas neoclssicos aprimorariam essas teses, considerando tambm os custos de transporte e vantagens de escala, entre outros. A teoria H-O2 do comrcio internacional ps-guerra argumenta que a vantagem comparativa dos pases determinada pela abundncia relativa e pela combinao mais lucrativa dos seus fatores de produo, tais como recursos naturais, capacidade administrativa, tecnologia e, principalmente, capital e trabalho (GILPIN, 2002). Ou seja, um pas ir exportar os produtos que melhor combinarem seus fatores mais abundantes e importar os demais. William Stolper e Paul Samuelson complementariam a teoria H-O, ao acrescentar a avaliao dos efeitos dos preos das mercadorias sobre os valores dos fatores de produo. Outro economista, James Meade, desenvolveria a idia de que os preos mundiais so determinados pela demanda e oferta recprocas (GONALVES, BAUMANN, PRADO e CANUTO, 1998).2. A sigla advm dos sobrenomes dos autores da formulao: os economistas suecos Hecksher e Ohlinn.

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Na dcada de 1990, surgiram novas consideraes e estudos de economistas liberais, como Paul Krugman, que destacam o fortalecimento das grandes corporaes transnacionais e do comrcio inter e intrafirmas, pois essas empresas, alm de reestruturarem seus mtodos de produo, tambm se reorganizaram geograficamente, influenciando sobremaneira os fluxos de comrcio internacionais. O progresso dos meios de transporte e comunicao iniciado ainda no sculo XIX com a inveno do telgrafo e dos trens e navios a vapor possibilitou uma integrao maior do mercado mundial, e este tornou-se ainda mais relevante no sculo seguinte, com o desenvolvimento das telecomunicaes, da informtica e do transporte areo. Atualmente, cerca de dois teros do comrcio mundial realizado por empresas transnacionais, sendo metade entre elas mesmas e suas subsidirias e filiais. Apesar de liberal, Krugman at admite a interferncia do Estado no comrcio, desde que seja para promover setores estratgicos. Mas, independentemente das mudanas ou dos estudos mais recentes, a tese da vantagem comparativa e da especializao na diviso internacional do trabalho conformam at hoje a base principal da teoria do livre-comrcio.

Liberalismo, mas no para todosAs idias de abertura econmica e livre-comrcio foram bem aceitas pelos pases que desenvolveram seu parque industrial e buscavam novos mercados a partir do sculo XIX. No entanto, em relao a estes mercados, os pases exportadores aplicavam um liberalismo de via nica. As colnias e os pases asiticos e latinoamericanos participavam da diviso internacional do trabalho apenas como exportadores de produtos primrios minrios e produtos agrcolas e como importadores de manufaturados. Por exemplo, a produo txtil de alta qualidade da ndia foi arrasada no incio de sua colonizao pelas exportaes de txteis ingleses, porque tinha base em produo familiar e no conseguiu concorrer com a indstria britnica, que comprava o algodo a preosComrcio internacional e desenvolvimento

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muito baixos no Egito, processava-o em larga escala na Inglaterra por meio de mquinas e vendia o produto final na ndia. Claro que ningum pensou em permitir que fbricas de txteis fossem abertas ali. Os pases industrializados tentavam de toda forma impedir a instalao de indstrias nas colnias. Friederich List informava, em 1770, que William Pitt O Primeiro , ento conde de Chatham e ex-ministro ingls, incomodado com as primeiras tentativas manufatureiras dos moradores da Nova Inglaterra, declarou que s colnias no deveria ser permitido fabricar sequer um cravo de ferradura (CHANG, 2002). A exportao de mquinas para as colnias tambm era proibida, e os primeiros teares que chegaram Amrica do Norte foram contrabandeados. Lgico que um dos principais motivos que fomentou o crescimento do ideal da independncia no continente americano foi a busca da liberdade econmica, possvel apenas com liberdade poltica. Os Estados Unidos foram a primeira colnia do mundo a alcan-la e passaram por um desenvolvimento todo particular, at se tornarem a potncia econmica e militar que so hoje. No caso dos pases da Amrica Latina, estes assumiram enormes emprstimos externos na primeira metade do sculo XIX para pagar a conta de suas guerras de independncia e dar incio s suas novas vidas como naes livres. Os acordos bilaterais assinados, quase sempre com a Inglaterra, geralmente incluam clusulas de reduo de tarifas externas para as manufaturas inglesas como condio para a concesso de emprstimos. Com isso, o pas credor ganhava um mercado cativo e a produo local de manufaturas no era estimulada. Assim, os recursos para pagar a dvida dos pases latino-americanos ficavam dependentes de suas exportaes de commodities, extremamente vulnerveis quantidade que os pases centrais compravam e aos valores que estavam dispostos a pagar. Quando havia retraes econmicas na Europa nessa poca, o que levava seus pases a diminurem as importaes, o efeito negativo era imediato na Amrica Latina e nas colnias. Foi o que ocorreu durante a primeira metade do sculo XIX, que coincidiu com o perodo da independncia dos pases latino18Kjeld Jakobsen

americanos, introduzindo ainda maiores dificuldades para consolid-la, embora na segunda metade do sculo houvesse uma importante recuperao devido ampliao dos mercados das grandes potncias. Apesar da reduo tarifria concedida ao credor nesse esquema, ainda assim a garantia dada em troca dos emprstimos, at o incio do sculo XX, costumava ser a renda remanescente das alfndegas, isto , a receita proveniente das tarifas externas cobradas dos outros pases. Houve vrias situaes de inadimplncia de alguns pases latino-americanos e caribenhos em que as Foras Armadas dos pases credores intervieram, bloqueando seus principais portos e assumindo a administrao da alfndega local at que a dvida fosse quitada. Foi o que fizeram Alemanha e Inglaterra na Nicargua, em 1895, e posteriormente tentaram fazer,

Quadro 1 Principais commodities da Amrica Latina no sculo XIXPAS Amrica Central Argentina Bolvia Brasil Chile Colmbia Equador Mxico Peru Venezuela PRINCIPAIS PRODUTOS DE EXPORTAO Anilina* e chicle* Couros, l e trigo Estanho Acar, borracha*, cacau e caf Cobre e salitre Caf e metais preciosos Cacau e caf Caf, metais preciosos e pita (fibra) Acar, guano e salitre Caf

Fonte: (BRUIT, 1982). Elaborao prpria. Observaes: (*) Estes produtos eram coletados in natura no sculo XIX e posteriormente foram sintetizados. Comrcio internacional e desenvolvimento

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junto com a Itlia, na Venezuela em 19023. Os Estados Unidos reproduziram essas medidas na Repblica Dominicana em 1904 e 1916, na Nicargua em 1912, no Mxico em 1914 e no Haiti em 1916. No final do sculo XIX e no incio do sculo XX iniciou-se tambm a explorao de petrleo na Argentina, no Peru, no Mxico e na Venezuela. Particularmente para os dois ltimos, o petrleo tornou-se um elemento fundamental para atingir algum nvel posterior de desenvolvimento. No mesmo perodo foram introduzidas tcnicas de congelamento de carne que possibilitariam Argentina e ao Uruguai se tornarem importantes pases exportadores deste produto, tanto bovino como ovino. Somente Argentina, Brasil, Chile e Mxico desenvolveriam nveis mnimos de industrializao antes da Primeira Guerra Mundial, voltados principalmente para a produo de alimentos, materiais de construo e txteis (BRUIT, 1982). Muitos crimes e barbaridades foram cometidos em nome da ampliao do livre-comrcio. A legislao introduzida pela China em 1839 para combater o consumo de pio foi tratada pela Inglaterra como barreira ilegal ao comrcio internacional, no caso o contrabando para a China do pio produzido na ndia, na poca a principal colnia inglesa. Duas guerras foram realizadas para obrigar o governo chins a permitir sua comercializao regular. A primeira, de 1839 a 1842, forou a China a abrir vrios portos para o comrcio europeu e transformou Hong Kong numa possesso inglesa. O Japo tambm foi convencido a tiros de canho a abrir-se para o comrcio com os Estados Unidos, quando o comodoro Matthew Perry, frente de seus navios de guerra, ancorou na Baa de Tquio em 1853 e novamente no ano seguinte, at que fosse estabelecido um tratado diplomtico e comercial com os Estados Unidos,3. Esta foi a ltima tentativa de potncias europias de intervir militarmente na Amrica Latina, pois os Estados Unidos invocaram os princpios da Doutrina Monroe para amea-las com guerra caso no retirassem a armada. O acordo feito implicou levar a discusso da dvida venezuelana para a apreciao do Tribunal de Haia.

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extremamente favorvel a este e que provocou a abertura japonesa para o Ocidente e o fim do seu regime feudal pouco depois. E h muitas outras histrias...

O nacionalismo econmico e a proteo indstria infanteH muitos que afirmam que a tese de Ricardo foi um desservio para a humanidade, pois colocou limites demasiadamente estreitos para a possibilidade do desenvolvimento de muitos pases ao ignorar a possibilidade de o Estado fomentar polticas industriais ou criar vantagens comparativas em determinados momentos, por intermdio de subsdios ou outras medidas de proteo economia. Da mesma forma, o Estado tambm poderia intervir em relao oferta e procura, tentando regul-las. Temos, por exemplo, o caso do primeiro governo de Getlio Vargas, que comprou e incinerou os excedentes da produo de caf do Brasil aps a crise de 1929, assegurando um preo mnimo aos produtores e contribuindo para aumentar o preo do caf no mercado internacional ao diminuir a oferta do produto. Verificaremos que, ao longo da histria e at hoje, muitos pases aplicaram na prtica uma combinao de liberalismo e nacionalismo econmico. Se no fosse assim, muitos pases que hoje so desenvolvidos estariam condenados permanentemente a viverem da agricultura, do extrativismo e da minerao. Os Estados Unidos representam o exemplo mais bem-sucedido e antigo. O desenvolvimento do Japo, da Coria do Sul e de outros Tigres Asiticos4 so tambm exemplos clssicos, e os casos mais recentes referem-se aos ex-pobres da Europa, como Espanha, Portugal e Irlanda, que nas ltimas dcadas atingiram altos nveis de crescimento econmico graas s polticas comunitrias de transferncia de renda aos membros menos desenvolvidos da Unio Europia.4. Tigres Asiticos a forma como so chamados Coria do Sul, Cingapura, Malsia, Taiwan e Hong Kong, que aplicavam polticas industriais como forte apoio estatal e anualmente apresentam altos ndices de crescimento econmico.Comrcio internacional e desenvolvimento

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Muitos se perguntam por que o Brasil, aps sua independncia, no conseguiu atingir o mesmo desenvolvimento econmico dos Estados Unidos, j que, em 1822, tnhamos praticamente a mesma populao deles quando se libertaram da Inglaterra e uma dimenso geogrfica at maior. H seguramente vrios fatores para isso, que, somados, oferecem uma explicao plausvel. Porm, sem dvida, o principal motivo foi a diferena de viso dos que planejaram a economia dos dois pases, no seu comeo de vida independente. Tanto Alexander Hamilton, nos Estados Unidos, quanto o visconde de Cairu, no Brasil, eram discpulos de Adam Smith, porm Hamilton defendia a ao estatal de carter propositivo e medidas protecionistas, enquanto o visconde era defensor do deixar fazer deixar passar deixar vender (FURTADO, 1959). O visconde de Cairu tornou-se um importante conselheiro do rei dom Joo VI e, quando a corte portuguesa se instalou no Brasil para fugir da ocupao de Portugal pelas tropas napolenicas, o visconde convenceu o rei a abrir os portos brasileiros s naes amigas. Ironicamente, os ingleses receberam essa iniciativa absolutamente liberal como uma afronta, pois eles haviam transportado e escoltado o rei at o Brasil em segurana e esperavam que este lhes concedesse acesso exclusivo ao mercado brasileiro por meio de tarifas especiais. Porm, somente dois anos depois obtiveram esse privilgio nas relaes com o Brasil, ao receberem uma tarifa de 15% sobre seus produtos, ante 24% aplicados aos demais pases. Apesar de sua origem liberal, Hamilton era um terico que provinha da primeira colnia a se rebelar contra o imperialismo europeu e desenvolveu uma tese influenciada pelo mercantilismo, porm j situada na nova realidade tecnolgica. Ele reconhecia a superioridade da indstria sobre a agricultura e props uma estratgia de desenvolvimento que hoje tranqilamente chamaramos de substituio de importaes:No s a riqueza, mas a independncia e a segurana de um pas parecem estar associadas materialmente com a prosperidade das manufa-

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turas. Tendo em vista esses grandes objetivos, toda nao deve esforar-se por possuir em si mesma todos os produtos essenciais. Estes abrangem os meios de subsistncia, de habitao, de vesturio e de defesa (HAMILTON, 1791 apud GILPIN, 2002).

Se Adam Smith o pai do liberalismo econmico, Alexander Hamilton o pai do nacionalismo econmico. Vrios economistas que se tornaram at mais conhecidos que ele, como o alemo Friedrich List, inspiraram-se no seu pensamento para rechaar a tese de Ricardo sobre as vantagens comparativas. De acordo com List, estas no eram nada mais que a promoo dos interesses ingleses no comrcio mundial, uma vez que eles haviam usado o Estado para proteger sua indstria nascente e, quando j possuam a supremacia na produo industrial, queriam fortalecer o livrecomrcio! (LIST, 1841 apud GILPIN, 2002). Realmente, a Inglaterra, a partir do sculo XVIII, havia se tornado a potncia econmica hegemnica por ter adotado uma srie de medidas nos campos econmico, poltico e militar. Entre estas podemos citar a fixao do valor da libra e a criao do Banco da Inglaterra e da Bolsa de Londres, que deram segurana ao sistema e comearam a atrair capitais, inclusive internacionais, que geraram excedentes que, por sua vez, financiaram a revoluo industrial. As medidas tomadas para proteger e desenvolver sua indstria, bem como a obrigatoriedade de os produtos ingleses serem transportados em navios ingleses, contriburam ainda mais para que a Inglaterra mantivesse o status quo por quase dois sculos. Por fim, a deciso de anexar colnias e constituir a maior armada do mundo, aps terem destrudo a holandesa, acabaram se transformando em fatores vitais. Se a Inglaterra, uma vez preparada para tal, decidiu seguir a doutrina de Smith e Ricardo, a adoo das vises de Hamilton e List foi fundamental para o desenvolvimento de potncias industriais como Estados Unidos, Alemanha e outros pases menos expressivos. Poderamos, ento, imaginar que os Estados Unidos tivessem adotado tarifas externas extremamente elevadas desde que deComrcio internacional e desenvolvimento

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clararam sua independncia em 1776 (reconhecida pela Inglaterra em 1783). No entanto, seu desenvolvimento em fins do sculo XVIII e na primeira metade do sculo XIX foi, em menor grau, resultado de medidas protecionistas. Isso verificvel pela indstria de tecidos de algodo que, em 1789, tinha uma tarifa externa mdia de 5%, ante uma tarifa externa nacional mdia de 8,5%. Somente em 1808 a tarifa externa subiu para 17,5% (FURTADO, 1959). Esse intervalo de quase 20 anos deveu-se ao fato de os estados agrcolas do sul dos Estados Unidos praticamente viverem da exportao de commodities como o algodo e o tabaco e pressionarem o governo para que no aumentasse a tarifa externa, pois temiam que isto provocasse medidas de retaliao da parte dos pases que compravam seus produtos. Os distrbios causados pelas guerras napolenicas, o bloqueio continental promovido pela Inglaterra contra a Frana, a guerra com a Inglaterra entre 1812 e 1815 e sua tentativa de se tornar um fornecedor alternativo para os pases europeus alteraram a poltica comercial norte-americana. Esta passou a ser ainda mais agressiva na tentativa de exportar e protecionista em relao s importaes. Por mais de um sculo, entre 1808 e 1933, a tarifa externa norte-americana praticamente s subiu. conveniente lembrar que o papel da tarifa externa no era somente tornar os produtos importados mais caros que os nacionais e assim estimular a produo local, mas era tambm a nica receita relevante para financiar os Estados nacionais. Por exemplo, at quase o final do sculo XIX, 90% da receita do governo dos Estados Unidos provinham da cobrana de tarifas externas e foi somente em 1913 que criaram o imposto de renda. Atualmente, so apenas os pases mais pobres que tm a tarifa externa como seu tributo governamental mais importante. A tarifa externa era e ainda um instrumento de poltica macroeconmica muito importante. Vejamos, no quadro 2, como diferentes pases desenvolvidos a aplicavam:

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Quadro 2 Tarifas mdias sobre produtos manufaturados de pases selecionados e no incio do seu desenvolvimento (mdia ponderada em % do valor)PAS/ANO Alemanha Dinamarca EspanhaEstados Unidos

1820 8 12 25 35 R 35 45 R 68 45 55 n.d. R R R 8 12

1875 46 15 - 20 15 20 40 50 12 15 35 0 8 10 5 15 20 35 46

1913 13 14 41 44 20 4 0 18 30 84 20 9

1925 20 10 41 37 21 6 5 22 n.d. R 16 14

1931 21 n.d. 63 48 30 n.d. n.d. 46 n.d. R 21 19

1950 26 3 n.d. 14 18 11 23 25 n.d. R 9 n.d.

Frana Holanda Inglaterra Itlia Japo Rssia Sucia Sua

Fonte: BAIROCH, 1993. Elaborao prpria. Observaes: Os valores das duas primeiras colunas so valores mdios e no extremos. No caso da Alemanha de 1820, utilizaram-se dados referentes Prssia. O R que aparece em alguns quadros significa que a restrio tarifria era insignificante diante de outras medidas restritivas j aplicadas s importaes, como a imposio de cotas ou a proibio pura e simples da importao de determinados produtos.

Ou seja, no incio do sculo XIX, todos se protegiam de uma maneira ou de outra. J no final do sculo houve significativas redues tarifrias, principalmente na Inglaterra, uma vez que a indstria j estava consolidada e vendendo muito bem. A exceo no ltimo quarto de sculo cabe aos Estados Unidos, que enfrentaram a recesso de 1870 por intermdio de novas elevaes nas suas tarifas externas. H poucas alteraes nas tarifas de 1913 a 1925, porm todos registram tarifas externas bem mais elevadasComrcio internacional e desenvolvimento

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em 1931, o que sem dvida foi parte de uma resposta unnime crise de 1929, a mais grave do sistema capitalista at ento. Apesar das idas e vindas, liberalizao das regras comerciais nos momentos de crescimento econmico e protecionismo nos momentos de retrao ou recesso, o comrcio se expandiu extraordinariamente a partir da segunda metade do sculo XIX e atingiu valores, s vsperas da Primeira Guerra Mundial, que foram recuperados somente muito tempo depois. O economista Paul Bairoch em seu estudo Globalization Myths and Reality: One Century of External Trade and Investments, de 1996, aponta que apenas na dcada de 1970 foi recuperada a mesma relao entre exportaes de mercadorias e PIB que havia entre 1912 e 1914.

A reao crise de 1929 e o comrcio no perodo entreguerrasA Primeira Guerra Mundial terminou em 1918, com a rendio da Alemanha e de seus aliados, e os Estados Unidos comearam a despontar como a nova potncia econmica. No sofreram os efeitos da guerra em seu territrio e entraram nela quase no final, mas sua participao foi decisiva para a vitria da Inglaterra e da Frana, alm de ter proporcionado um importante aquecimento de sua economia. O presidente norte-americano Woodrow Wilson esteve muito ativo nas negociaes de paz, apresentando e advogando seus famosos 14 pontos, que incluam a promoo do livre-comrcio e a criao da Sociedade Democrtica das Naes. Embora esta fosse criada, assim como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), os Estados Unidos no se tornaram membros da Sociedade Democrtica das Naes, pois a opinio pblica e o Congresso norteamericano achavam que os Estados Unidos no deveriam se envolver com as confuses europias e que o presidente deveria cuidar mais da economia e dos problemas nacionais. Tampouco houve qualquer avano em direo liberalizao comercial. Pelo contrrio, as tarifas ampliaram-se, comparadas ao nvel em que estavam antes da guerra, e a Alemanha, derrotada, perdeu territrios e colnias e arcou com a imposio de uma 26Kjeld Jakobsen

enorme indenizao de guerra, fatores que na prtica a excluram da participao no comrcio mundial na dcada de 1920. Um outro dado importante a considerar foi a Revoluo Russa de 1917, que deu origem ao regime socialista da URSS (Unio das Repblicas Socialistas Soviticas) e, conseqentemente, a um novo ator de atuao direta no comrcio mundial, o Estado, porque at ento quem comercializava na prtica eram empresas e pessoas, mesmo que apoiadas por polticas de Estado. Alm disso, a URSS iria estabelecer uma relao econmica totalmente diferente com as demais naes. O liberalismo no conseguiu promover o desenvolvimento econmico harmnico e a paz que pregava. A disputa entre os grandes imprios por mercados levara conflagrao da Primeira Guerra Mundial. O tratado de paz que imps condies extremamente severas Alemanha lanou as bases para o incio de um novo conflito ainda pior, apenas duas dcadas depois. Neste meio tempo, a superproduo e a especulao ao sabor do mercado provocaram a maior crise da histria do capitalismo, a de 1929. A economia mundial havia sofrido algumas recesses durante o sculo XIX, mas nenhuma podia ser comparada Grande Depresso de 1929. At hoje os pases respondem s crises estruturais com fechamento e proteo da economia, como ocorreu em 1929, tambm na crise norte-americana dos anos 1970 e mais recentemente durante a crise asitica de 1997. Neste ltimo caso, em plena dcada neoliberal, constatou-se inclusive que, pela primeira vez em cinco anos, houve mais medidas governamentais na direo da proteo das economias nacionais que medidas liberalizantes. As medidas aplicadas foram as usuais, como elevao de tarifas, desvalorizao monetria, interrupo nas negociaes de novos acordos comerciais e imposio de quarentenas nos investimentos em alguns pases. Para enfrentar a Grande Depresso dos anos 1930, uma das primeiras medidas adotadas pelos Estados Unidos foi abandonar o vnculo da sua moeda, o dlar, com o padro ouro5. Esta inicia5. Padro ouro era o lastro que determinava o valor da moeda, a depender das reservas de ouro que cada pas possua. Este sistema foi abanComrcio internacional e desenvolvimento

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tiva foi seguida por muitos outros pases, inclusive o Brasil. O objetivo era desvalorizar a moeda para tornar as importaes mais caras e as exportaes mais baratas. deste mesmo contexto a introduo de vrias medidas protecionistas, algumas que inclusive vigoram at hoje. Em 1933, os Estados Unidos aprovaram a Tarifa Smooth-Hawley, que ampliou a tarifa externa de mais de 20 mil produtos e elevou a tarifa mdia para 53%, valor at ento nunca alcanado e que vigoraria at o incio da Segunda Guerra Mundial. Mas no ficaram somente nisso. O Tariff Act de 1930 introduziu reformas na legislao comercial norte-americana, por intermdio de sobretaxas, cotas, proibio de importaes etc., que deveriam ser aplicadas no caso de haver indcios do uso de subsdios e dumping nos pases de origem dos produtos importados. Da mesma forma, a violao de patentes, marcas e direitos autorais ou ainda a falsificao de produtos norte-americanos passaram a ser consideradas ilegais e sujeitas a pesadas multas. Nesse mesmo ano, foi tambm aprovado o Buy American Act, que obrigava o governo dos Estados Unidos a priorizar a aquisio de produtos nacionais. No ano seguinte, j sob o governo Roosevelt, foi criada a lei agrcola norte-americana por meio do Agricultural Adjustment Act, que controlava a oferta dos produtos agrcolas mediante compensaes aos agricultores e que, para assegurar o fornecimento nas quantidades necessrias populao, restringia a importao de produtos agrcolas e garantia preos mnimos aos produtores por meio de emprstimos subsidiados. Esta legislao basicamente a mesma que vigora atualmente e no protege somente os interesses da agricultura familiar norte-americana, mas tambm os do seu agrobusiness, tema que tem sido muito debatido na OMC e em outros fruns. A crise foi prolongada. Particularmente Estados Unidos e Canad sentiram seus efeitos quase at o final dos anos 1930. Mui-

donado com a crise de 1929. Posteriormente, o FMI definiu a vinculao da moeda norte-americana na base de US$ 35 por ona de ouro, e os demais pases passaram a referenciar-se pelo dlar, pois os Estados Unidos detinham cerca de 40% do estoque mundial de ouro monetizado.

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tas empresas foram bancarrota e somente as mais fortes sobreviveram. Tambm foram constitudos muitos cartis. A Sociedade Democrtica das Naes avaliou que, em 1937, 42% do comrcio mundial eram dominados por cartis. Na tentativa de estimular a retomada do comrcio mundial, comearam a ser assinados acordos bilaterais, sempre com a preocupao de assegurar equilbrio entre exportaes e importaes. O Brasil assinou cerca de 26 desses acordos entre 1930 e 1934, que na prtica pouco acrescentaram economia. A nica relao comercial do Brasil que progrediu entre 1936 e 1939 por conta desses acordos foi com a Alemanha nazista, que instituiu uma poltica de certa complementao econmica. O Brasil exportava algodo e caf e importava produtos industriais, porm sempre em valores e quantidades tais que houvesse equilbrio na balana comercial entre os dois pases. Entretanto, o resultado mundial para o comrcio foi uma retrao de 55% na dcada de 1930. Quando a crise comeou a ser superada, iniciou-se a Segunda Guerra Mundial, e o volume de bens comercializados internacionalmente novamente se reduziu devido ao risco do transporte martimo. A ironia que as conseqncias do liberalismo e do livrecomrcio do sculo XIX, como as duas guerras mundiais e a crise de 1929, na prtica restringiram o comrcio mundial por quase 40 anos, pois ele somente comeou a reagir a partir da dcada de 1950. Quando a Segunda Guerra estava chegando ao final, era claro para muitos dirigentes polticos e personalidades influentes que seria necessrio criar organismos internacionais para regular a economia e promover a paz. Ao trmino da primeira guerra, j havia sido criada a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), para normatizar direitos dos trabalhadores e assim enfrentar a questo social, uma vez que no se desejava a repetio da Revoluo Russa de 1917 e nem de outras tentativas revolucionrias que ocorreram ao final da Primeira Guerra. A Sociedade Democrtica das Naes, tambm criada a partir do Tratado de Versalhes, no conseguira evitar a Segunda Guerra Mundial. Logo, precisava ser substituda por outra coisa.

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2. O GATT, de Genebra a TquioO debate que se travou sobre o carter das novas instituies internacionais aps a Segunda Guerra Mundial entre os trs principais aliados contra a Alemanha nazista Roosevelt pelos Estados Unidos, Churchill pela Inglaterra e Stalin pela Unio Sovitica apontou para vrias iniciativas, entre elas a criao da Organizao das Naes Unidas (ONU), que assumiria a responsabilidade de manejar politicamente os conflitos potenciais do futuro. As duas potncias capitalistas, Estados Unidos e Inglaterra, j haviam deliberado entre si que deveriam ser criadas instituies internacionais para regular a economia a partir de intervenes no sistema monetrio, no sistema de investimentos para a reconstruo no ps-guerra e no comrcio mundial. A primeira meno apareceu na Carta do Atlntico, em 1941, sobre os princpios fundamentais que deveriam reger um mundo melhor, seguido 30Kjeld Jakobsen

por um acordo de cooperao mtua em 1942 e pela negociao da dvida de guerra da Inglaterra com os Estados Unidos em 1945, quando a Inglaterra desmantelou suas restries comerciais aos produtos norte-americanos (CAMPOS e BIANCHINI, 1999). Em 1944, realizou-se a Conferncia de Bretton Woods, que criou o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido como Banco Mundial. Os grandes mentores destas instituies foram Robert Dexter White, que representava o governo dos Estados Unidos e, principalmente, John Maynard Keynes, que coordenava a delegao britnica.

A criao do GATTEmbora j houvesse estudos em andamento para regulamentar o comrcio mundial, este tema acabou sendo o mais difcil, pois ingleses e norte-americanos no possuam sobre ele o mesmo consenso que tinham sobre o FMI e o Banco Mundial. A Inglaterra apresentou uma proposta que defendia desde uma poltica de pleno emprego como uma obrigao internacional, at a manuteno do tratamento comercial preferencial para os pases da Commonwealth (Comunidade Britnica). J os Estados Unidos propuseram um sistema baseado em regras que reduzissem os obstculos ao comrcio mundial. Em 1943, uma comisso angloamericana de alto nvel havia se reunido nos Estados Unidos e apresentou um documento chamado Propostas para a expanso do comrcio mundial e do emprego. Este texto serviu de base para as reunies preparatrias da Conferncia das Naes Unidas sobre o Comrcio e o Emprego de 1946, realizada em Havana, que pretendia criar a Organizao Internacional do Comrcio (OIC). Os Estados Unidos participaram ativamente das discusses preparatrias e da elaborao da Carta Internacional de Comrcio, a Carta de Havana, mas o presidente Truman, percebendo que havia forte oposio no Senado proposta, no a encaminhou para ratificao. De fato, o Congresso norte-americano era majoritariamente republicano, partido tradicionalmente contrrio ao liComrcio internacional e desenvolvimento

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vre-comrcio e pouco interessado em ratificar as resolues da Conferncia, particularmente a criao de uma instituio que determinaria regras para o comrcio mundial, inclusive dos Estados Unidos, e ainda por cima as fiscalizaria! Tendo em vista que algo similar j havia ocorrido quando da criao da Sociedade Democrtica das Naes em 1919, mesmo com o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, sendo um dos seus principais mentores, ningum se disps a levar a OIC adiante sem a participao dos Estados Unidos. Assim como a ausncia dos Estados Unidos, uma das principais potncias polticas e militares da poca, havia contribudo para o fracasso da Sociedade Democrtica das Naes, a falta de compromisso da maior potncia econmica do mundo com as regras do sistema internacional de comrcio torn-las-iam totalmente incuas. A soluo encontrada foi aproveitar apenas alguns princpios, mecanismos e regras de regulamentao do comrcio mundial previstos na Carta de Havana para elaborar um tratado internacional, sem criar uma estrutura fixa e permanente para coordenar as polticas de comrcio mundial at que a Carta viesse a ser ratificada, o que nunca ocorreu. Dessa forma, realizar-se-iam reunies peridicas dos aderentes ao tratado, para deliberar sobre as regras comerciais. Este tratado gerou, em 1947, o Acordo Geral de Tarifas e Comrcio (General Agreement of Trade and Tariffs GATT), que entrou em vigor em maio de 1948. Em seu prembulo, propunha-se a promover um comrcio mais livre e mais justo, mediante reduo de tarifas, eliminao de barreiras notarifrias, abolio de prticas de concorrncia desleal, aplicao e controle dos acordos comerciais e arbitragem dos contenciosos comerciais. Do ponto de vista poltico, a adoo somente do aspecto comercial da Carta de Havana significou a rejeio aos aspectos desenvolvimentistas do comrcio mundial, defendidos por Keynes e vrios governos de pases em desenvolvimento, mencionados nos seus trs primeiros objetivos: promover o crescimento da renda real e a demanda efetiva em escala mundial; promover o desenvolvimento econmico, particularmente dos pases no-industria32Kjeld Jakobsen

lizados; e garantir acesso e igualdade de termos a produtos e mercados para todos os pases, levando-se em conta as necessidades de promover o desenvolvimento econmico. Juridicamente, a nova frmula foi considerada to singela que no necessitaria de ratificao e os prprios pases aderentes ao tratado foram considerados partes contratantes do GATT, em vez de membros. Para cumprir os objetivos traados, o tratado incluiu trs princpios: 1) A no-discriminao, que se baseia em duas clusulas fundamentais: a da nao mais favorecida (ver box, p. 34) e a clusula do tratamento nacional, que estabelece igualdade de tratamento entre produtos nacionais e importados. 2) A reduo geral e progressiva das tarifas. Esta deve ocorrer em bases recprocas e pode ocorrer por intermdio de negociaes produto a produto, reduo linear ou pela harmonizao dos direitos aplicados nos diferentes pases. So os chamados direitos de aduana. 3) Proibio de restries quantitativas (cotas1) s importaes, dumping2 e subsdios3 s exportaes. Foram previstas excees a cada um desses princpios do GATT, da seguinte forma: 1) O Artigo 24 autoriza a criao de zonas de livre-comrcio ou unies aduaneiras, no interior das quais as partes contratantes podem reduzir suas tarifas ou conceder outros benefcios sem a necessidade de oferec-los tambm a outros pases.

1. Cota uma quantidade limitada de produto importado com garantia de tarifa mais baixa. 2. Dumping a venda de um produto por preo menor que o custo de produo, para eliminar a concorrncia. 3. Subsdio um valor que o Estado pode agregar a uma produo para torn-la mais barata e competitiva. Pode ser por intermdio de iseno de impostos, concesso de emprstimos com juros mais baixos que os de mercado ou outras concesses que permitam exportar a preos menores.Comrcio internacional e desenvolvimento

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2) O Artigo 19 introduziu a chamada clusula de salvaguarda, que autoriza o estabelecimento de barreiras tarifrias para proteger setores produtivos nacionais que se encontrem ameaados. 3) O Artigo 12 autoriza a aplicao de restries quantitativas s importaes quando a balana de pagamentos acusa um dficit elevado, desde que as restries ou cotas sejam suspensas quando a situao se normalizar. Tambm so aceitas para limitar a importao de excedentes agrcolas ou quando pases em desenvolvimento julgassem que poderiam favorecer a substituio de importaes em determinados setores.

A clusula da nao mais favorecidaEste princpio obriga um pas a conceder a todos os demais os mesmos benefcios que se dispuser a conceder a algum em particular. Por exemplo, se hoje o Brasil decidisse eliminar sua tarifa externa para a importao de produtos, digamos, da frica do Sul, seria obrigado a tambm eliminar as tarifas para os demais pases que participam da OMC. No sistema multilateral, essa clusula vale tambm para outros temas como investimentos, propriedade intelectual, regras de competitividade etc. uma das pedras angulares do liberalismo e do estabelecimento de regras comerciais supranacionais. Tem origem no liberalismo ingls e j havia sido proposta anteriormente para regular o comrcio mundial quando os Estados Unidos tentaram inclu-la no Tratado de Versalhes, como decorrncia dos 14 pontos propostos pelo presidente norte-americano Thomas Woodrow Wilson para a reconstruo europia. Conceitualmente, um dos sustentculos do princpio da nodiscriminao, que a princpio parece muito justo, pois trata todos os pases da mesma forma. O problema que estes no so iguais, principalmente em se tratando de comrcio. Como a clusula obriga a estender apenas o que oferecido e no o que pedido, e como os pases desenvolvidos s apresentam ofertas nos setores em que esto aptos a competir, a clusula no d vantagens aos pases em desenvolvimento. Estas vantagens referem-se aos pases desenvolvidos, por possurem melhores fatores de produo, bem como mobilidade de capital e trabalho. Aos pases em desenvolvimento, quando muito, cabe o papel de carona.

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O tratado que criou o GATT foi assinado por 23 pases que, na poca, eram responsveis por 80% do comrcio mundial, 11 dos quais pases em desenvolvimento. Os pases fundadores compuseram um grupo consultivo para acompanhar desequilbrios e crises e tm maior peso poltico nas decises sobre o ingresso ou no de novos membros. Normalmente os novos membros tinham no GATT, e ainda tm, hoje no mbito da OMC, de passar por uma fase de adaptao s regras existentes e realidade tarifria determinada pelo Acordo Geral, antes de serem aceitos. Quando a OMC substituiu o GATT, em 1995, este tinha 117 pases membros.

Zonas de livre-comrcioUm processo de integrao econmica entre naes possui vrias fases, at atingir a integrao poltica, isto , o compartilhamento das polticas de segurana e relaes exteriores. Porm, o primeiro passo comea pelo estabelecimento de zonas de livrecomrcio, onde h livre-circulao de mercadorias devido eliminao das tarifas externas entre os pases participantes. O passo seguinte a unio aduaneira, quando esses mesmos pases estabelecem uma tarifa externa comum em relao aos pases que no fazem parte da zona de livre-comrcio, inclusive para evitar desvio de comrcio. (Quando o acordo para estabelecer a unio aduaneira admite excees para certos produtos, ela uma unio aduaneira incompleta.) Em alguns casos, o objetivo principal era constituir zonas de livrecomrcio sem outras pretenses, como o NAFTA (Acordo de Livre-Comrcio da Amrica do Norte), que envolve Mxico, Canad e Estados Unidos, pois particularmente este ltimo no deseja compartilhar as decises sobre suas polticas nacionais com quem quer que seja. J em outros casos realizou-se uma integrao mais ampla, como a Unio Europia, que atingiu a fase de unificao monetria, com a adoo de uma srie de premissas macroeconmicas comuns e a criao de uma moeda nica, o euro. O Mercosul (Mercado Comum do Sul), por exemplo, ainda encontrase na fase intermediria de unio aduaneira incompleta. Uma zona de livre-comrcio assume as mesmas obrigaes previstas no GATT para qualquer outro pas, no que tange a acordos comerciais com outros pases ou grupos de pases.Comrcio internacional e desenvolvimento

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Em 1960, houve uma reforma na constituio do GATT e foi criado um Conselho de Representantes, coordenado por um diretorgeral e um secretariado para mediar e arbitrar as controvrsias. A sede deste Conselho passou a ser a cidade de Genebra, na Sua. Foi, no entanto, preservado o princpio original do Tratado, que estabeleceu que as rodadas de negociaes comerciais determi-

O ComeconLembremo-nos de que, quando foi criado o GATT, estvamos em plena Guerra Fria. A reao do bloco socialista foi formar o Conselho de Ajuda Econmica Mtua (Comecon), em 1949, com o objetivo de estabelecer um sistema de complementao entre as economias dos pases membros a partir da especialidade de cada um. A sede do Comecon ficava em Moscou e foram membros fundadores URSS, Albnia, Tchecoslovquia, Hungria, Romnia e Polnia. A Repblica Democrtica Alem aderiu em 1950, a Monglia em 1962, Cuba em 1972 e o Vietn em 1978. A Albnia abandonou o bloco em 1961 e a Iugoslvia participava parcialmente por intermdio de comisses. Havia ainda alguns pases, como Afeganisto, Angola, Etipia, Laos, Moambique e Repblica Popular do Imen, que tinham status de observadores. Por um lado, o Comecon foi importante para alguns pases socialistas, principalmente os de economia mais frgil, como Cuba, por exemplo, que trocava acar por petrleo com a URSS a preos normalmente descolados das cotaes do mercado internacional. Com isto, adquiria insumo energtico suficiente para atender suas necessidades e vendia o excedente no mercado spot para obter as divisas necessrias para pagar pelos produtos eventualmente comprados de pases capitalistas. Tambm trocava acar por armas e outros equipamentos da Tchecoslovquia, e assim por diante. Por outro lado, como o Comecon proporcionava um sistema de trocas de produtos a partir da especializao de cada membro, contribuiu para a manuteno de um sistema desigual de desenvolvimento e dependente do membro mais poderoso, a URSS, que assim detinha muita influncia sobre os rumos das economias dos demais e, conseqentemente, do sistema socialista. O Comecon extinguiu-se em 1991, aps as transformaes polticas e econmicas dos pases do Leste europeu.

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navam as regras. As deliberaes eram tomadas por maioria simples dos pases membros, com base em um pas, um voto. No caso de decises sobre a admisso de novos membros, autorizao para a aplicao das excees e aprovao das zonas de livrecomrcio ou unies aduaneiras, eram necessrios dois teros dos votos. Durante a existncia do GATT, foram realizadas oito rodadas de negociaes comerciais:ANO 1947 1949 1951 1956 1960 1961 1964 1967 1973 1979 1986 1994 RODADA Negociaes de Genebra Negociaes de Annecy Negociaes de Torquay Negociaes de Genebra Rodada Dillon Rodada Kennedy Rodada Tquio Rodada Uruguai No. de pases 23 13 38 26 26 62 102 123

Fonte: OMC, 1999. Elaborao prpria.

Nas vrias rodadas de negociao, desde a primeira de Genebra que criou o GATT, foram sendo negociadas sucessivas redues tarifrias, basicamente de bens industriais. Nas negociaes que ocorreram entre 1947 (Genebra) e 1951 (Torquay), elas foram reduzidas, em mdia, 25%. Nesta Rodada, as 38 partes contratantes trocaram cerca de 8.700 concesses tarifrias, que corresponderam a um comrcio no valor de US$ 10 bilhes. A modalidade de negociaes que se utilizava nessa poca e que perdurou at a Rodada Dillon, quando mais 4.400 produtos foram negociados, era a da negociao bilateral, em que cada pas negociava primeiro com seu principal fornecedor e depois aplicava o acordado a seus outros parceiros comerciais por conta da clusula da nao mais favorecida.Comrcio internacional e desenvolvimento

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Nas negociaes seguintes, o mtodo adotado foi o da reduo linear de tarifas, excluindo poucos produtos. Na Rodada Kennedy, a negociao envolveu cerca de 60 mil concesses tarifrias, significando uma reduo linear de 35%. O nmero de concesses ampliou-se para 98 mil na Rodada Tquio, representando uma nova reduo linear de aproximadamente 33% para os pases industrializados, com um potencial de comrcio no valor de aproximadamente US$ 155 bilhes. O resultado alcanado por sete rodadas de negociaes, ao longo de 32 anos, foi reduzir a tarifa mdia dos 40% existentes sobre produtos manufaturados poca de criao do GATT, para 4,7% em mdia em 1979 (CAMPOS e BIANCHINI, 1999). Os produtos agrcolas, quando muito, eram negociados marginalmente e foram totalmente excludos do Acordo Geral em 1954 a pe-

A arbitragem das disputas comerciaisTambm conhecido como mecanismo de soluo de controvrsias. O GATT possua uma srie de comits permanentes como o de Normas Tcnicas, Prticas Antidumping, Subsdios e Medidas Compensatrias, entre outros, que alm de produzir estudos tcnicos, podiam ser chamados a opinar sobre as queixas de descumprimento das regras da instituio de um membro contra outro. Normalmente as queixas referiam-se a alguma suposta barreira comercial ou prtica desleal de comrcio. Aps eventuais anlises de algum desses comits, a queixa era submetida apreciao dos pases membros, cujos ministros responsveis reuniam-se uma vez ao ano e decidiam por consenso. No caso de o pas incriminado no respeitar as decises adotadas, o pas reclamante era autorizado a adotar medidas de retaliao comercial contra ele. No entanto, qualquer membro do GATT, inclusive o pas demandado, podia solicitar suspenso da anlise da queixa para vistas e discusses de alternativas, o que freqentemente paralisava as anlises das disputas. Com o aumento do nmero de membros e com maior engajamento dos pases em desenvolvimento no comrcio mundial, aumentou tambm o nmero de queixas, justificando a instalao da estrutura permanente para o GATT, que ocorreu em 1960.

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dido dos Estados Unidos. Na Rodada Dillon, o maior opositor a que voltassem mesa de negociaes foi a Comunidade Europia, que j estava implementando sua poltica agrcola comunitria (PAC). Algo semelhante ocorreu com os produtos txteis, que foram tratados de forma diferente dos demais bens industriais. Como uma parte importante de sua produo no dependia de tecnologia e sim de mo-de-obra intensiva, era um produto que favorecia principalmente os pases em desenvolvimento com mo-de-obra barata e que foi protegido nos pases desenvolvidos por meio de cotas, principalmente. Os produtos txteis acabaram excludos do processo de liberalizao, por intermdio de sucessivos acordos entre 1961 e 1994, que restringiram o acesso aos mercados dos pases desenvolvidos. Foram chamados de Acordos Multifibras, por envolver produtos feitos com diferentes fibras, desde o algodo at as sintticas como o nylon, a lycra e outras. At a Rodada Dillon, os nicos temas em negociao na prtica eram a negociao da reduo de tarifas de bens industriais e a poltica comercial do GATT, que incluam regras antidumping e medidas compensatrias4, entre outras. As rodadas posteriores comearam aos poucos a introduzir novos assuntos, at chegar aos atuais Temas de Cingapura (investimentos, polticas de concorrncia, transparncia em matria de compras governamentais e facilitao de comrcio). O incio de novas rodadas dependia do acordo dos membros e, por vrias vezes, sua realizao atendeu apenas solicitao de algum membro mais importante. Foi assim com a Rodada Dillon solicitada pelos Estados Unidos, preocupados com a entrada em vigor do Tratado de Roma, que criou em 1958 a Comunidade Econmica Europia. Consideravam esta iniciativa ameaadora ao seu comrcio e, por isso, insistiram em redues tarifrias adicionais. Os efeitos da liberalizao comercial fizeram-se sentir rapidamente: entre 1953 e 1963, o comrcio mundial cresceu a uma

4. Medidas compensatrias so aquelas adotadas por governos quando percebem que h a utilizao injusta de subsdios ou a prtica de dumping por outros pases.Comrcio internacional e desenvolvimento

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taxa de 6,1% a.a. que saltou para 8,9% a.a. entre 1963 e 1973, reduzindo-se posteriormente. No entanto, este efeito dizia respeito basicamente aos pases industrializados, que em 1960 eram responsveis por 71% das exportaes mundiais (BHAGWATI, 1988).

As excees necessrias e a criao da UNCTADNo h dvida de que a eliminao ou reduo de obstculos ao comrcio de bens, como tarifas externas, condicionamentos tcnicos, entraves burocrticos, entre outros, contribuem para o crescimento do comrcio. O desafio sempre foi e continua sendo encontrar mecanismos que produzam acordos justos, que respeitem as diferenas existentes entre os pases, possibilitando que estes disponham de mecanismos macroeconmicos para definir rumos autnomos para suas economias, de modo que o comrcio realmente contribua para o desenvolvimento de todos. Ao assegurar o princpio de um pas, um voto, o GATT, nem mesmo no seu perodo mais equilibrado e mesmo possuindo regras mais democrticas que o FMI e o Banco Mundial, conseguiu ou quis resolver essa equao. Nem as excees previstas na sua constituio eram suficientes, at porque dependiam da boa vontade e da aprovao da maioria dos membros do GATT. Muitos pases encontravam-se em processo de descolonizao ao longo dos anos 1950 e ainda tinham os produtos primrios, agricultura e minerao, como sua principal fonte de divisas. A maioria no possua estrutura tcnica para influenciar concretamente as decises a serem tomadas, e mesmo pases mais adiantados, como o Brasil, ainda se encontravam na fase inicial da substituio de importaes. No caso brasileiro, o peso da indstria na economia s veio a superar o da agricultura em meados da dcada de 1950. Essa dependncia dos pases em desenvolvimento de seus produtos primrios para a exportao, para gerar os recursos necessrios para investir na sua industrializao, levou famosa crtica da Cepal sobre a teoria das vantagens comparativas, pois o preo 40Kjeld Jakobsen

dos produtos primrios exportados, principalmente quando sua oferta crescia, deteriorava-se diante do preo dos produtos industriais a serem importados. Portanto, de pouco serviam a especializao e a alta produtividade quando os produtos em questo eram commodities. Esse fenmeno conhecido como a deteriorao dos termos de troca. Por maior que fosse a especializao dos pases em desenvolvimento na produo de commodities, esta no garantia uma posio confortvel no comrcio mundial, e nem que estes pases pudessem acumular capitais suficientes para financiar a prpria industrializao. Nesse sentido, reivindicava-se a implementao de polticas favorveis superao dessa brecha econmica crescente entre os pases industrializados e desenvolvidos e os pases produtores de commodities e subdesenvolvidos, com maior acesso dos produtos dos pases subdesenvolvidos aos mercados dos pases industrializados, incremento do fluxo de capitais e transferncia de tecnologia para os pases do Terceiro Mundo. E, de modo geral, reivindicava-se o apoio industrializao dos pases pobres, a partir da concepo de que esta seria a nica forma de promover um desenvolvimento equilibrado e sustentvel num mundo em crescente interdependncia econmica (UNCTAD, 2004). Quando Keynes estava envolvido nos debates para estruturar o novo sistema econmico mundial, alm do FMI e do Banco Mundial, criados em Bretton Woods, e da OIC, que no vingou da forma planejada, j vinha formulando a criao de uma instituio que interferisse no comrcio de commodities, a partir da criao de um fundo para complementar a renda dos pases dependentes desses produtos de exportao sempre que os seus preos cassem abaixo de certos nveis. No entanto, faleceu antes de ter a oportunidade de levar a proposta adiante. J na quarta rodada de negociaes em Genebra, em 1956, surgiram as primeiras reaes dos pases em desenvolvimento contra as barreiras tarifrias e no-tarifrias que dificultavam suas exportaes, tendo em vista que os pases importadores de commodities haviam adotado uma srie de medidas restritivas de ordem fitossanitria e contingentes diversas. Em maro de 1964, por iniComrcio internacional e desenvolvimento

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ciativa da ONU, realizou-se a Conferncia das Naes Unidas para o Comrcio e o Desenvolvimento (United Nations Conference for Trade and Development UNCTAD). O que era inicialmente para ser um momento de avaliao sobre os resultados do comrcio mundial e discusso sobre eventuais ajustes acabou se transformando numa estrutura permanente para auxiliar os pases em desenvolvimento a participar em melhores condies das negociaes comerciais internacionais, tanto bilateralmente como multilateralmente, no mbito do GATT.

A Unio EuropiaUma das razes para constantes conflitos e guerras entre a Alemanha e a Frana era a disputa por carvo e ao extrados nas regies de fronteira entre os dois pases. A primeira iniciativa de grande porte adotada, aps a Segunda Guerra Mundial, para iniciar a integrao europia, tomou isto em profunda considerao. Em 1948, havia entrado em vigor a unio aduaneira entre Blgica, Holanda e Luxemburgo, que conformaram a chamada Benelux. Dois anos depois, o primeiro-ministro da Frana, Robert Schuman, props um plano para colocar a produo de carvo e ao francoalem sob uma autoridade comum, qual outros pases tambm pudessem aderir. Conformou-se ento, em 1951, o tratado que criou a Comunidade Europia do Carvo e do Ao (CECA), que contou com a adeso, alm de Alemanha e Frana, de Benelux e Itlia. Posteriormente, realizaram-se negociaes entre os seis pases para criar um mercado comum (MCE) e a Comisso Atmica Europia (Euratom), dando base para a integrao econmica e uma poltica de segurana comum. Em 1958, entrou em vigor o Tratado de Roma, que fundou a Comunidade Econmica Europia (CEE), que alguns anos depois recebeu a adeso de mais pases como Dinamarca, Reino Unido e Irlanda. Seus princpios norteadores em direo integrao eram a livre circulao de mercadorias, capitais e servios, bem como a livre circulao de trabalhadores e o direito de se estabelecerem em qualquer pas membro da CEE. Tambm foram adotadas quatro polticas comuns, a saber, em relao a agricultura, competitividade, transportes e comrcio.

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A conjuntura vigente, alm do processo de descolonizao, registrava tambm a ascenso do Movimento dos Pases No-Alinhados, que nasceu na Conferncia de Bandung, cidade da Indonsia, em 1955, reunindo 29 pases recm-independentes da sia e da frica, bem como alguns de seus lderes mais conhecidos, como Nasser, Sukharno, Nehru, entre outros. (O Brasil participou da Conferncia como observador.) Este quadro introduziu uma forte influncia do nacionalismo econmico nas resolues da UNCTAD, conforme podemos perceber no pargrafo 5 de sua ata de fundao:

O resultado comercial alcanado entre 1958 e 1987 foi a diminuio das importaes de fora do bloco para os pases membros, de 65% para 41%, devido complementao econmica que surgiu no interior da Comunidade, enquanto o comrcio intracomunidade alcanou 60% do total realizado pelos seus pases membros. Em 1986, as exportaes da CEE representavam 25% das exportaes mundiais, ante 14% e 18%, respectivamente, dos Estados Unidos e Japo. Esses bons resultados foram alcanados graas a uma poltica de Keynes em casa e Smith no exterior. Recursos governamentais para financiar as polticas desejadas no faltaram (SANTANIELLO, 1999). O temor da criao de uma Fortaleza Europa levou os Estados Unidos a pedirem a Rodada Dillon do GATT, para provocar uma reduo geral nas tarifas externas mundiais, e foi tambm uma das razes para proporem o incio da Rodada Uruguai, em 1986. Mesmo com a maioria dos pases europeus aderindo s polticas neoliberais, a integrao prosseguiu. Em 1984, o nome da Comunidade mudou para Unio Europia, e novos pases aderiram, totalizando 15 at 2003. O Tratado de Maastricht, assinado em 1992, definiu as diretrizes para que a Unio Europia chegasse unio monetria, ocorrida em 1999. Nesse meio-tempo, foi criada uma srie de instituies para dar suporte s polticas comunitrias, como o Parlamento Europeu, o Banco Central, o Conselho Econmico e Social, entre vrias outras. O passo seguinte foi a entrada de mais dez pases na Unio Europia, entre eles vrios exintegrantes do bloco socialista do Leste europeu, em maio de 2004. Um novo grupo, composto por pases menos desenvolvidos do continente, entre eles alguns balcnicos como Bulgria e Romnia, entrar em 2007.Comrcio internacional e desenvolvimento

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Os pases em desenvolvimento reconhecem que tm a responsabilidade primria de elevar o padro de vida de seus povos, mas os esforos nacionais com esta finalidade sero enormemente prejudicados se no forem suplementados e reforados por uma ao internacional embasada no respeito soberania nacional. Um elemento essencial de tal ao ser a adoo de polticas internacionais no campo do comrcio e do desenvolvimento que resultem numa diviso internacional do trabalho modificada, mais racional e equilibrada e acompanhada pelos ajustes necessrios na produo e no comrcio mundial. O incremento resultante em produtividade e poder de compra dos pases em desenvolvimento contribuir para o crescimento econmico dos pases industrializados tambm e assim tornar-se- um meio para a prosperidade mundial (ONU, 1964).

Embora todos os pases membros da ONU sejam membros da UNCTAD, at a Rodada Uruguai do GATT foi o Grupo dos 77 (G-77) que conseguiu transform-la num frum de articulao e negociao das propostas dos pases em desenvolvimento. Este grupo, hoje composto por 132 pases pobres e em desenvolvimento, uma articulao que surgiu para atuar inicialmente na UNCTAD, mas que tambm opera no interior de outras instncias multilaterais. Ao longo das seis primeiras conferncias, conseguiu aprovar uma srie de propostas. Entre as principais decises aprovadas na UNCTAD e posteriormente adotadas pelo GATT podemos mencionar, em primeiro lugar, o princpio da no-reciprocidade agregado ao captulo IV do Acordo Geral, permitindo que os pases em desenvolvimento, a partir desse momento, no fossem obrigados a seguir a clusula da nao mais favorecida em relao aos pases industrializados e pudessem conceder vantagens tarifrias a outros pases em desenvolvimento, sem a obrigao de criar zonas de livre-comrcio ou unies aduaneiras. Este procedimento foi regulamentado nas Rodadas Kennedy e Tquio. Na segunda conferncia da UNCTAD, em 1968, aprovou-se o indicativo de um sistema geral de preferncias (SGP) como forma de os pases em desenvolvimento acederem ao mercado dos 44Kjeld Jakobsen

pases industrializados. Este sistema foi adotado na Rodada Tquio do GATT como um tratamento diferenciado e mais favorvel permanente a esses pases, embora j estivesse em vigor na Comunidade Europia e no Japo desde 1971 e nos Estados Unidos desde 1976. No entanto, o SGP foi adotado com base setorial, isto , os produtos em que os pases em desenvolvimento eram considerados competitivos no entrariam no SGP. Alm disto, a concesso e o cancelamento do SGP so unilaterais e algumas vezes aplicadas a partir de critrios polticos. Com isto, alguns pases ampliaram sua dependncia da exportao de commodities (BIANCHINI e CAMPOS, 1999). A criao de um sistema de preferncias comerciais (SGPC), isto , um sistema de preferncias entre os pases em desenvolvimento, foi proposta na IV Conferncia da UNCTAD em 1976, mas ele s entrou em vigor em 1989. A adoo de regras antitrustes para enfrentar as prticas comerciais restritivas das corporaes transnacionais j havia sido discutida na Conferncia de Havana e depois foi negociada na UNCTAD durante 12 anos (1968 a 1980), quando entrou em vigor. Somente este fato demonstra a influncia dessas empresas na definio das regras internacionais de comrcio, ao conseguirem protelar uma deciso dessa magnitude por 12 anos e ainda assim assegurar que a resoluo aprovada contivesse excees. Embora freqentemente os pases industrializados simplesmente no respeitassem as regras acordadas ou ento, quando muito, as adotassem de acordo com sua prpria interpretao, o reconhecimento da necessidade de conceder tratamento diferenciado para os pases em desenvolvimento era um fato poltico da maior importncia. Tanto que, quando o neoliberalismo tornouse a poltica governamental hegemnica no mundo ao final da dcada de 1980, o papel da UNCTAD foi limitado. De todo modo, o balano positivo. Alm dos j mencionados, foram tambm aprovados acordos referentes a navegao e commodities, entre outros. Houve, ainda, negociaes sobre um tratado para a transferncia de tecnologia, que nunca chegou a ser aprovado. A partir da Rodada Uruguai do GATT e da criao da OMC, os pases desenvolvidos no permitiram mais a interferncia daComrcio internacional e desenvolvimento

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nas resolues adotadas nesse mbito, e o seu papel reduziu-se a realizar estudos e elaborar propostas de como integrar os pases em desenvolvimento no comrcio mundial em conformidade com as regras existentes do sistema multilateral, como superar o problema da dvida externa etc. Os estudos que a UNCTAD produz anualmente sobre fluxos de comrcio e investimentos so de excelente qualidade e o papel que ela desempenha hoje est ligado situao geral em que se encontram as instituies multilaterais, em que o FMI, o Banco Mundial e a OMC exercem um papel predominante em detrimento das demais, inclusive da prpria ONU. , portanto, uma questo eminentemente poltica que possivelmente poder ser superada diante das dificuldades que a prpria OMC vem enfrentando para dar prosseguimento a seu papel de promover o comrcio mundial. Atualmente a UNCTAD tem 192 pases membros e seu oramento gira em torno de US$ 75 milhes. Possui um Secretariado Permanente com quatro divises: Globalizao e Estratgias de Desenvolvimento; Investimento, Tecnologia e Desenvolvimento Empresarial; Comrcio Internacional de Bens, Servios e Commodities e Infra-estrutura de Servios para Desenvolvimento e Eficincia Comercial. Alm destes, h ainda o Programa Especial para os Pases de Menor Desenvolvimento Relativo, Pases sem Litoral e Pequenas Ilhas e, finalmente, a Diviso de Administrao. Nos perodos entre as conferncias, a instncia poltica superior ao secretariado a Junta de Comrcio e Desenvolvimento. A sede da UNCTAD fica em Genebra. O primeiro secretrio-geral foi o economista argentino Raul Prebisch, que havia sido anteriormente diretor-geral da Cepal e autor de importantes estudos sobre a deteriorao dos termos de troca. O ltimo secretrio-geral foi o embaixador e ex-ministro brasileiro, Rubens Ricupero. Em 2004, realizou-se a XI Conferncia da UNCTAD, na cidade de So Paulo.UNCTAD

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O GATT e a crise dos anos 1970Apesar de a economia mundial continuar a crescer a taxas expressivas, na primeira metade da dcada de 1970 comeam a aparecer os sinais de crise e da mudana de paradigma de acumulao. O padro fordista havia se esgotado. Os primeiros indcios comearam a aparecer nos Estados Unidos no final dos anos 1960 com o crescimento da inflao e do dficit pblico devido corrida armamentista e espacial, bem como aos gastos com a Guerra do Vietn. Esta situao tornou-se insustentvel diante da existncia do cmbio fixo e, em 1971, o presidente Nixon anunciou que os Estados Unidos j no tinham nenhum compromisso com o padro ouro, o que abalou, pelo menos momentaneamente, um dos pilares do sistema de Bretton Woods. A resposta foi um acordo de cavalheiros, ao qual alguns pases aderiram, adotando um sistema de flutuao cambial com uma banda de 5%. O segundo golpe na economia mundial veio com a primeira crise do petrleo, entre 1973 e 1974, quando os produtores chegaram a quadruplicar os preos e a inflao em vrios pases desenvolvidos chegou a superar os 10% anuais. O efeito foi ainda pior sobre os pases em desenvolvimento, que eram dependentes da importao de petrleo, porque tanto os preos deste como os de produtos industrializados importados subiram vertiginosamente, enquanto os preos de commodities estagnaram, piorando a deteriorao da relao de troca. Como de costume, as respostas nacionais crise continham componentes protecionistas tarifrios e no-tarifrios, como veremos adiante. Mesmo assim, a Rodada Tquio foi a que mais promoveu a liberalizao comercial neste perodo. Contou com a participao de 102 pases e, alm da reduo tarifria j mencionada sobre um volume de comrcio de US$ 300 bilhes, acordou tambm uma srie de outros temas. Em alguns casos, foram interpretadas normas j existentes no GATT e, em relao a outros, criaram-se novas regras, denominadas cdigos, que, majoritariamente, tinhamComrcio internacional e desenvolvimento

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carter plurilateral5. Entre estes cdigos podemos mencionar o de Subsdios e Medidas Compensatrias, Barreiras Tcnicas ao Comrcio, Compras Governamentais, Antidumping, Comrcio de Aeronaves Civis. As negociaes que os pases em desenvolvimento vinham promovendo no interior da UNCTAD tambm alcanaram resolues nessa Rodada. Foram a legalizao da no-reciprocidade em relao clusula da nao mais favorecida; a graduao dos pases em desenvolvimento, que previa maior comprometimento destes com as regras do GATT medida que se desenvolvessem, e condies e prazos mais favorveis para aplicao do Artigo XVIII6 do Acordo Geral. Esses quase 30 anos de existncia de um organismo multilateral para regular o comrcio mundial deixaram muitas lies. Em primeiro lugar, que a liberalizao promovida pelo GATT por meio, principalmente, de uma profunda reduo tarifria, pode at ter contribudo para a recuperao do fluxo de comrcio mundial, mas em nenhum momento proporcionou uma participao justa e eqitativa dos pases em desenvolvimento em seus resultados. Exatamente porque as novas regras tratavam a todos o