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1 Como definir o problema de pesquisa e escrever um texto científico 1 Este texto traz observações para pesquisadores em formação e orientadores, as quais podem ser úteis em dois momentos-chave: a definição do problema de pesquisa e a elaboração do texto científico em si. Primeiro veremos como montar um problema de pesquisa a partir de um conjunto de passos básicos. Segundo, veremos o modo de escrever um texto acadêmico e desenvolver uma abordagem científica ao tema. Essas observações vêm sendo construídas a partir do convívio com pesquisadores tanto jovens quanto bastante experientes. Uma das intenções é estimular a atenção a esses dois itens – a definição do problema e a elaboração do texto – no nosso cenário de pesquisa. A definição do problema de pesquisa É parte fundamental de qualquer texto cientifico. Uma formulação clara estruturará a abordagem, e levará também a um texto claro para o leitor. Qualquer texto científico – do abstract ao artigo, monografia, dissertação ou tese – deve contemplar e conter os seguintes itens, se os objetivos são informar o leitor no começo do texto e estabelecer claramente o problema de pesquisa. 1. Defina qual é o problema a ser estudado - imediatamente. Um texto científico não deve guardar segredos para uma revelação surpreendente adiante, como um texto de ficção poderia – o autor deve mostrar logo no começo do seu texto qual é o problema em questão. 2. Diga por que o problema é relevante, descrevendo suas implicações no tecido do real, mostrando seu atrelamento a uma situação empírica relevante, e/ou mostrando o problema (ou os aspectos do problema) como sub-teorizado ou tratado apenas parcialmente em abordagens anteriores. 3. Aponte (em resumos, projetos) e critique (em artigos ou textos mais longos) o que se sabe sobre o problema - ou seja, estado atual do conhecimento sobre ele. Diga até onde trabalhos existentes vão, o que não incluem, o que de importante lhes falta. Assim, ficará claro para você e para o leitor qual é o campo possível de contribuição do seu trabalho. 4. Mostre então o que a pesquisa adicionará ao conhecimento do problema. Ou mais rapidamente: (1) O que é o problema, (2) porque ele é relevante, (3) o que se sabe sobre o problema, e (4) o que a pesquisa contribuirá para o conhecimento do problema. 2 1 Vinicius M. Netto [em 08.01.14]. Professor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade 2 Esses quatro itens foram desenvolvidos a partir da orientação do Professor Bill Hillier, na University College London (UCL). Hillier insistia nesses itens, o que me demandou um bom tempo de entendimento e “simplificação” do meu próprio modo de entender pesquisa e a produção de textos.

Como Definir o Problema de Pesquisa e Escrever Um Texto Cientifico

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O texto traz observações para pesquisadores em formação e orientadores, as quais podem ser úteis em dois momentos-chave: a definição do problema de pesquisa e a elaboração do texto científico em si. Primeiro vemos como montar um problema de pesquisa, a partir de passos básicos: (1) O que é o problema, (2) porque ele é relevante, (3) o que se sabe sobre o problema, e (4) o que a pesquisa contribuirá para o conhecimento do problema. Segundo, vemos o modo de escrever um texto acadêmico e desenvolver uma abordagem científica a um tema de pesquisa. Essas observações vêm sendo feitas a partir do convívio tanto com pesquisadores jovens quanto bastante experientes. Uma das intenções é estimular a atenção a esses dois itens - a definição do problema e a elaboração do texto - no nosso cenário de pesquisa.

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Como definir o problema de pesquisa e escrever um texto científico1

Este texto traz observações para pesquisadores em formação e orientadores, as quais podem ser úteis em

dois momentos-chave: a definição do problema de pesquisa e a elaboração do texto científico em si. Primeiro

veremos como montar um problema de pesquisa a partir de um conjunto de passos básicos. Segundo,

veremos o modo de escrever um texto acadêmico e desenvolver uma abordagem científica ao tema. Essas

observações vêm sendo construídas a partir do convívio com pesquisadores tanto jovens quanto bastante

experientes. Uma das intenções é estimular a atenção a esses dois itens – a definição do problema e a

elaboração do texto – no nosso cenário de pesquisa.

A definição do problema de pesquisa É parte fundamental de qualquer texto cientifico. Uma formulação clara estruturará a abordagem, e levará

também a um texto claro para o leitor. Qualquer texto científico – do abstract ao artigo, monografia,

dissertação ou tese – deve contemplar e conter os seguintes itens, se os objetivos são informar o leitor no

começo do texto e estabelecer claramente o problema de pesquisa.

1. Defina qual é o problema a ser estudado - imediatamente. Um texto científico não deve guardar

segredos para uma revelação surpreendente adiante, como um texto de ficção poderia – o autor deve

mostrar logo no começo do seu texto qual é o problema em questão.

2. Diga por que o problema é relevante, descrevendo suas implicações no tecido do real, mostrando seu

atrelamento a uma situação empírica relevante, e/ou mostrando o problema (ou os aspectos do

problema) como sub-teorizado ou tratado apenas parcialmente em abordagens anteriores.

3. Aponte (em resumos, projetos) e critique (em artigos ou textos mais longos) o que se sabe sobre o

problema - ou seja, estado atual do conhecimento sobre ele. Diga até onde trabalhos existentes vão, o

que não incluem, o que de importante lhes falta. Assim, ficará claro para você e para o leitor qual é o

campo possível de contribuição do seu trabalho.

4. Mostre então o que a pesquisa adicionará ao conhecimento do problema.

Ou mais rapidamente:

(1) O que é o problema, (2) porque ele é relevante, (3) o que se sabe sobre o problema, e (4) o que a

pesquisa contribuirá para o conhecimento do problema.2

                                                                                                                         1 Vinicius M. Netto [em 08.01.14]. Professor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade 2 Esses quatro itens foram desenvolvidos a partir da orientação do Professor Bill Hillier, na University College London (UCL). Hillier insistia nesses itens, o que me demandou um bom tempo de entendimento e “simplificação” do meu próprio modo de entender pesquisa e a produção de textos.

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A estrutura do argumento científico (e, portanto, seu texto) segue facilmente essa espécie de caminho lógico,

onde uma coisa leva a outra – atendendo a esses passos. Essa construção simples deve ficar aparente para

o leitor já no resumo e já na própria introdução do texto. Mais do que tudo, busque uma construção clara para

você mesmo, como pesquisador/a.

Itens clássicos de um texto científico O texto deve ter as seguintes qualidades, entre outras:

§ Organização metodológica: clareza dos passos na definição do problema e no seu tratamento.

§ Apoio em outros textos, autores e referências bibliográficas, incluindo eventualmente críticas de

teorias/abordagens existentes, na definição do problema e no encaminhamento do que sua

pesquisa pretende contribuir.

§ Qualidade de dados empíricos (quando envolver enfrentamento empírico), uso de tais dados na

verificação da(s) hipótese(s).

§ Qualidade argumentativa ao longo do texto e da conclusão.

A Introdução aponta e contextualiza o tema. Toda informação aqui deve ser vinculada diretamente com o

tema da pesquisa. A introdução pode fazer uso dos quatro passos apontados acima para estabelecer o tema

e esclarecer sua abordagem a ele. Veremos abaixo que um texto acadêmico não deve colocar o leitor à deriva

da argumentação: o leitor precisa de um mapa para saber onde a argumentação aponta – uma introdução que

apresente os passos do argumento e o papel das seções ou capítulos nessa direção.

A justificativa não consiste de um apontamento das razões pessoais para o interesse pelo tema ou para a

motivação para fazer o trabalho. É uma argumentação sobre a importância, a urgência ou a necessidade de

tratarmos o tema frente a demandas empíricas ou teóricas. Em outras palavras, ela estabelece a necessidade

de atenção ao tema (i) em sua relevância para um contexto da prática ou da realidade empírica, ou (ii) em sua

relevância científica, como a necessidade da superação de uma teoria ou abordagem anterior.

Os objetivos devem ser colocados da forma simples. Evite frases como “A dissertação/tese visa estabelecer

[isso e aquilo]”, conclusivas demais. Prefira termos como “analisar”, “investigar a possibilidade de...” e outras

expressões que evitem o erro das certezas a priori.

Esses itens clássicos de pesquisa não precisam estar em seções específicas, com esses nomes nos títulos.

Eles podem estar colocados na forma de um texto único, sem seções – mas devem estar colocados de modo

explícito para o leitor.

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O modo de escrever o texto científico Escreva de forma alocêntrica – isto é, escreva não para si mesmo (o modo egocêntrico) mas para um leitor

que nunca leu nada a respeito. Seu texto deve ser claro o bastante que mesmo o leitor desinformado possa

entender qual a natureza do tema que você estuda e o porquê seu tema é um problema relevante, que

mereça ser estudado e explicado.3

O texto científico pode ser entendido como uma argumentação a respeito de um problema de pesquisa –

sobre sua natureza, sua importância, o que se sabe sobre ele e o que se pretende contribuir quanto a ele.

Para garantir a clareza da sua abordagem e seu texto, cada estágio da sua argumentação deve servir ao

propósito do tratamento do problema como um todo – cada parágrafo deve deixar claro para o leitor qual

é seu lugar na evolução e desdobramento do argumento. Imagine o argumento como um fio que vai

construindo, momento a momento, a explicação como um todo: cada estágio deve estar implicado pelo

anterior e demandar um próximo estágio. Os estágios do argumento podem ganhar a forma de seções; os

grandes estágios podem ganhar a forma de capítulos. O percurso desse “fio” da argumentação deve ser

antecipado para o leitor já na introdução do texto. O leitor de um texto científico não deve ter de “descobrir”

sozinho, ao longo do caminho, para onde o argumento está rumando. Não saber as razões e a direção do

argumento é irritante para o leitor, porque desse modo ele não entende o porquê da passagem que lê e, ao

menos momentaneamente, pode ser levado a rejeitar seu argumento. Tampouco “guarde o melhor para o

final” ou busque surpreender seu leitor. Surpresas são válidas em um texto de ficção, não em um texto

científico.

Evite afirmações ou definições ambiciosas sem uma discussão apropriada. Definições precisam ser

analisadas, explicadas cuidadosamente. Afirmações sem amparo não podem fazer parte de um texto

científico. Essa tentação precisa ser evitada. Tratamentos insuficientes de problemas delicados precisam ser

resolvidos no texto em si, sob pena de não se atingir um texto (artigo, dissertação ou tese) qualificado. Não

podemos assumir uma ideia sobre o problema que investigamos como uma "premissa" – isto é, uma espécie

de “verdade não-demonstrada”, sem qualquer referência consistente na literatura sobre o tema, mesmo que a

ideia faça sentido. Coloque as premissas de um estudo fazendo uso de referências apropriadas – isto é,

trabalhos anteriores cuja credibilidade científica darão suporte a essas premissas.

Afirmações sem esse suporte devem ser introduzidas por termos como “parece ser” etc. indicando a sua

possibilidade, e não uma “certeza” ou “resposta”. Respostas são exatamente o que a pesquisa busca chegar,

no final do seu caminho. Em suma, uma afirmação conclusiva só deve estar colocada no texto se tiver o

suporte de referencial teórico e empírico consolidado (amparada em um trabalho com competência científica),

ou como uma conclusão da própria pesquisa a partir de suas verificações (portanto, além de uma impressão

pessoal ou da mera opinião).

                                                                                                                         3 Recordo este item como fortemente enfatizado por Hillier, entre outros.

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O uso de expressões como “demonstração” (“a pesquisa visa demonstrar...”) em um texto científico significa

“oferecer evidências empíricas”. (Evite o termo “provar” – evidências empíricas de uma hipótese podem ser

fortemente dependentes do contexto, e contextos variam imensamente). O texto deverá oferecer tais

evidências, como suporte a uma afirmação ou hipótese.

Por mais "correta" que uma ideia pareça, ela deve ser posta como uma possibilidade, uma hipótese. É

preciso modéstia diante do fenômeno em estudo.

O uso de evidências para basear e suportar seus achados é fundamental. Nem todo fenômeno oferece a

possibilidade de uma “captura” empírica (como aqueles fenômenos grande volatilidade ou extensão,

substancialmente discursivos, ou problemas políticos, éticos ou estéticos) mas esforce-se para fazê-lo.

Desenhar um método de captura empírica das implicações do fenômeno em estudo é desafiador e excitante,

e vai aumentar sua maturidade e alcance como pesquisador/a. Nos casos onde o estudo empírico e a busca

de evidências não forem possíveis, busque interpretações rigorosas bem apoiadas conceitualmente. Mas

não confunda interpretação rigorosa com exercício de retórica.

É a estrutura de hipóteses, confrontos empíricos e a busca de evidências que vai permitir construir sobre

estudos anteriores e apoiar conhecimento sobre conhecimento com mais confiança. É por esses meios que o

conhecimento científico adquire um caráter acumulativo: podemos construir sobre conhecimentos

anteriores porque eles encontram suporte em estudos empíricos (ou interpretações rigorosas, no caso de

temas que não sejam passíveis de confirmações empíricas). A alternativa é apoiar argumentos sobre

argumentos, em última análise, com o status não diferente de opiniões pessoais: esse modo de produzir

informações não gera conhecimento capaz de amparar mais conhecimento.

Não assuma como fato exatamente o que deve ser demonstrado através da pesquisa. Infelizmente, boa

parte da pesquisa feita no Brasil termina partindo de uma espécie de certeza a priori: o estudo apenas se

encarregará de confirmar aquela certeza inicial. Essa postura não adiciona ao conhecimento: é uma mera

reprodução do que se sabe – ou pior, do que se crê saber. Devemos buscar reconhecer o que está lá fora,

não o que gostaríamos que estivesse.

A procura por uma postura isenta é essencial. Ainda que epistemologicamente impossível, ela deve ser

um horizonte sempre buscado por pesquisadores. Tente “deixar o fenômeno falar”. Podemos ter nossas

hipóteses sobre as respostas para certo problema, e a pesquisa deve corroborar tais hipóteses... ou mostrá-

las equivocadas ou insuficientes. Hipóteses ou explicações possíveis que não sejam confirmadas pelo estudo

em si também são contribuições para o conhecimento: outros estudos podem partir dessas considerações.

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Não tenha receio de lidar com questões difíceis em sua pesquisa. Temas ambiciosos demandam mais

da pesquisadora, por exigirem tratamento teórico e empírico cuidadoso, mas o final do processo oferece

recompensas: mais recursos de conhecimento e condição de tratar temas difíceis e mesmo mais amplos.

Temas ambiciosos preparam a pesquisadora para quebrar os medos e enfrentar as questões mais centrais da

disciplina.

Contemple e conserve a ambição da contribuição – ela não é privilégio de poucos eleitos. O que move o

esforço de pesquisa é a curiosidade, a "vontade de saber" (lembrando a expressão de Foucault em outro

contexto), perfeitamente legítima e aberta a todos. Ainda, mais buscas por contribuições tenderão a

enriquecer o debate, o ambiente intelectual em que você atua e a disciplina em si. Mas faça seu dever de

casa: conheça sua disciplina e seu tema a fundo.

Conheça mais teorias, mesmo aquelas que concorrem com a que você escolheu, provavelmente mais afim a

sua visão de mundo. Precisamos reconhecer a “primazia e o papel fundamental da teoria”, como aponta

Helena Cronin: Darwin já alertava que toda observação é feita em relação a alguma visão – e que, portanto,

só sob a luz da teoria fatos podem falar (o que também implica que evidências e dados não podem ser livres

do ruído da teoria).4 Teorias enriquecem a compreensão do delimitado e do local: conhecer as teorias mais

amplas oferece condição de conhecer mais amplamente o fenômeno sob estudo. Mais teoria é a melhor

resposta para lidar mesmo com problemas empíricos específicos. A consideração contextual é naturalmente

importante, mas precisamos de recursos cognitivos para relacionar contextos e reconhecer o que pode

atravessar contextos. Muitas relações que esclarecerão o fenômeno poderão vir à tona apenas se a

pesquisadora estiver amparada em ideias capazes de reconhecer a possibilidade de novas relações. Vemos o

mundo pela lente da teoria – e vemos mais com mais teorias.

Com frequência, a pesquisa incorre em tentações normativas – a ideia de guiar a prática, oferecer um modo

de fazer ou de intervir na realidade. Nesses casos, propostas a serem feitas pelo pesquisador devem ser o

objeto final do texto, a partir das evidências reunidas pela própria pesquisa e pesquisas de referência. (Se

essas propostas foram feitas por outros autores, elas deveriam estar colocadas durante a construção do

problema e no confronto com casos empíricos anteriores). Observe que pesquisas com tom normativo

frequentemente se comprometem enquanto pesquisas – tendem a perder o caráter investigativo, que é sua

razão de ser. O que não quer dizer que, uma vez encerrada, os resultados de uma pesquisa não possam dar

suporte à crítica e à ação normativa. Na verdade, a independência entre esses estágios distintos tem o

potencial de reforçar a crítica e a ação.

Evite evocar a própria experiência pessoal como fator para apontar a consistência de uma informação,

dado, ou para afirmar um fato. Por mais valiosa que sua experiência seja, uma pesquisa envolve exatamente

                                                                                                                         4 Cronin, H. “In the beginning is the theory”. In Brockman, John (ed) This Explains Everything: Deep, Beautiful, and Elegant Theoris of How the World Works. New York: Harper, 2013.

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a checagem sobre o quão generalizável são ela e as ideias que tiveram origem a partir dela. Dados

informados por sua experiência, portanto, não podem ser simplesmente assumidos como corretos ou

generalizáveis.

A opinião pessoal sobre um problema também deve ser evitada. O problema deve ser, antes, descrito a

partir de interpretações rigorosas, sustentadas em outros autores e, de acordo com o tema, em evidências

empíricas. Explicações sobre o problema devem ser colocadas como possibilidades a serem investigadas

pela pesquisa. O texto científico deve ter o formato investigativo e não opinativo.

Evite observações na forma de comentários. Comentários jogados como meras adições, postas sem que

sua ligação ao tema da pesquisa esteja evidente para o leitor, mesmo que sinalizando implicações do texto,

não são o material de um texto científico. Um texto científico não é um somatório de digressões com pontos

em comum. Assim, evitaremos descontinuidades na argumentação que desorientam o leitor e retiram o foco e

a força do argumento principal.

Citações devem ser rigorosamente iguais ao texto original – sem erros na frase ou no nome do autor. Elas

não precisam estar italicadas – as aspas ou seu destaque em um parágrafo recuado serão suficientes.

Evite citações em apud [ex. Jenks in Chen et al (2008); Jenks apud Chen et al (2008)]. É preciso buscar os

textos originais, usando o apud apenas para textos não disponíveis de forma impressa ou digital.

O problema do limite de tamanho (número de palavras, caracteres ou de páginas): componha seu texto

buscando objetividade. Se ele eventualmente extrapolar o limite de páginas, não se preocupe

demasiadamente: edite o texto quando ele já tiver satisfeito os requerimentos quanto à organização,

qualidade de argumentação, apoio em/crítica de referências bibliográficas, qualidade dos dados na discussão

e sustentação/checagem da(s) hipótese(s) e qualidade argumentativa e substantiva da conclusão. Editar e

deletar é mais fácil que adicionar conteúdos – e contribuem para um texto denso e objetivo.

Sobre a atividade da pesquisa

O momento aterrador da qualificação. O exame de qualificação tem um papel: avaliar se sua pesquisa

encontra-se estruturada e em condição de avançar para sua forma final. O objetivo é verificar se a

pesquisadora tem a compreensão de seu tema, do modo de abordá-lo, dos passos do argumento ou do

tratamento do tema, a certeza de onde este caminho está apontando, que resultados podem ser esperados, e

qual o tempo necessário para tanto, entre outros itens. A banca alertará a pesquisadora sobre os riscos e

demandas desse percurso. Portanto, a qualificação é um momento-chave na aquisição de uma visão global

do problema, do seu tratamento e dos meios para tratá-lo na forma do texto. É um momento de testagem das

suas ideias, e de conquista de autonomia intelectual. Boas bancas costumam deslocar suas ideias, o que é

enriquecedor. E podem oferecer sugestões de conceitos, autores e abordagens que também adicionarão

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complexidade a sua visão do tema. É um momento de criatividade e de checagem de realidade. Aprecie esse

momento de riqueza, porque ele não se repetirá com frequência – e deveria.

O momento aterrador da banca final. No mesmo espírito, uma boa banca não se limitará a simplesmente

elogiar seu trabalho, mesmo que ele seja de fato excelente. A banca tem o papel de apontar

(respeitosamente) os limites de seu argumento e visão, confrontá-los com visões concorrentes, e sugerir

outras formas de ver o mesmo problema. Esses itens serão como um chamado para seus futuros trabalhos,

para seu aprimoramento como pesquisador/a. Eles “puxam ao próximo nível” de rigor e competência em sua

carreira. Desconfie das bancas “afetivas” – sua contribuição a seu crescimento como pesquisador/a tenderá a

ser mais limitado. Aspire pela crítica – e desvincule a crítica ao seu trabalho da critica a sua pessoa. Bancas

endereçam seu trabalho, não a você. Por mais que trabalhos de pesquisa expressem sua visão de mundo,

paixões etc., há de se reconhecer que argumentos e trabalhos, uma vez disponibilizados, são entidades

independentes em si, e que precisam de consideração e crítica para encontrar seu lugar no campo das ideias

e das práticas – de um modo ou de outro. Essas são as formas como contribuições, menores ou maiores, são

feitas e estabelecidas. E esses são os modos como nos refinamos como atores atuando em pesquisa.

Imersão é fundamental. Escreva todos os dias, ao menos um pouco. Se paramos de escrever por mais do

que uns dias, os medos se instalarão novamente. Mantenha cadernos (analógicos ou digitais) perto de você o

tempo todo, mesmo ao lado da cama. Anote suas ideias, por menores que pareçam. Ao anotar uma ideia,

outras aparecerão no mesmo momento.5 Pense em seu tema e problemas aparentemente insolúveis antes de

dormir: sua mente vai fazer conexões durante o sono e respostas poderão vir na madrugada ou na manhã.

Escreva constantemente. O texto acadêmico – sobretudo o artigo – não é uma peça ou um evento

excepcional na vida ou no ano de um/a pesquisador/a. Estar constantemente escrevendo é um modo de

expressar e registrar suas ideias, e de amadurecê-las. Ainda, boas ideias não vêm em uma bela manhã

qualquer. Elas são perseguidas, esboçadas, reescritas até atingir um formato auto-suficiente como

argumentos e convincente como ideias. O texto é um modo de expressão – é preciso estar sempre “no texto”.

Exponha-se a ideias e abordagens e mesmo a disciplinas diferentes das suas. Sabe-se (há décadas)

que ideias novas vem quando conectamos coisas que ainda não foram conectadas.6 A explosão combinatória

possível nas relações entre temas e aspectos e visões diversas está do seu lado. Isso quer dizer que há um

enorme potencial para novas ideias, e que o 'aleatório' está do seu lado (isso ganhou um nome que ainda não

temos em português: serendipity). Essa exposição também reduzirá o erro (tão comum) de reificarmos nosso

próprio campo e abordagem como os mais apropriados ou com algum privilégio de acesso ao real.

                                                                                                                         5 Outro ponto de Hillier. 6 Beveridge, W.I.B. (1957) The Art of Scientific Investigation. New Jersey: The Blackburn Press.

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Supere o isolamento no qual caímos facilmente durante a pesquisa. O paradigma do pensador solitário

escrevendo à luz de velas é isso mesmo: antigo. Fale de suas ideias a colegas, ao namorado, à esposa,

mesmo que suas ideias estejam ainda em formação. Clareza e novas ideias vêm no momento da fala. Ainda,

a comunicação vai reforçá-las – e por extensão, o campo de atividade de pesquisa. A leitura dos demais ao

seu problema também aumenta a possibilidade de novas conexões – e temos novamente a riqueza da

aleatoriedade para gerar novas ideias ('serendipityʼ).

Não cometa o erro estúpido de subestimar estudantes e pesquisadores em formação. Sua visão livre

dos vícios do campo e das limitações das teorias anteriores os coloca em condição para ver o que não

vemos. Por isso, estão em posição única para trazer novos insights. E esse é com frequência o caso.

Supere o dualismo do qualitativo versus quantitativo. O preconceito em relação a abordagens

quantitativas vêm do seu frequente impulso de reduzir o mundo que experienciamos ao físico e mensurável, e

do descarte de tudo o que não é visível e mensurável como não existente ou irrelevante. Os receios sobre a

apologia da formalização quantitativa como acesso privilegiado ao real são justificados. A linguagem verbal

alcança coisas que a quantitativa não é capaz: o conotativo, o simbólico, o ético, o emocional etc. Mas o

oposto também é verdadeiro. Como lidar com as intensidades das coisas? Nosso vocabulário é incrivelmente

vago nesse aspecto (palavras como “muito”, “pouco” etc.), e com frequência é importante conhecer com

precisão as intensidades envolvidas em um problema (por exemplo, “como conhecer o impacto ambiental do

crescimento urbano?” ou “como podemos entender a influência da queda de mobilidade urbana para a

equidade social?”). Ainda, fenômenos envolvem tramas de relações que pulsam em várias direções. Como

representamos essas tramas do fenômeno pela sequência inevitável da linguagem oral ou escrita – pela linha

do discursivo? A palavra também encontra limites. Abordagens quantitativas operam em aspectos e campos

que a linguagem verbal não alcança. Portanto, evite reificar formas de pensar. Naturalmente, isso demanda

uma espécie de modéstia da pesquisadora diante do que deseja entender e diante das linguagens disponíveis

para tanto.

Por isso, tente algo difícil: mantenha "os olhos frescos" de um estudante. A pesquisa envolve um senso

de encantamento que a racionalidade do entendimento não deve destruir, mas afirmar de outro modo.

A pesquisa é uma aventura intelectual e o mestrado e doutorado, momentos únicos de descoberta e

aprimoramento no desenvolvimento de uma pesquisadora ou pesquisador. Esse senso de aventura, a

insatisfação com respostas e explicações anteriores, o lidar com o que não se sabe, com incertezas, o tatear

“no escuro”, a busca de respostas sem partir de respostas pré-assumidas são grande parte das razões, do

fazer e da excitação desse tipo de trabalho – e de um modo de vida expressado na pesquisa.

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Não ignore a diferença entre abordagens concorrentes ao desenvolver seu tema de pesquisa.

Não subestime a importância de ser deslocada/o em seu ponto de vista por outros autores e visões. Isso

tende a ser fortemente positivo.

Portanto, não subestime a importância das crises intelectuais – elas tendem a nos levar a ampliar a

complexidade de nossos pontos de vista.