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COMO OS MANUAIS DE PORTUGUÊS FAZEM NASCER. OU MATAM LEITOR.ES Os manuais interagem com as circunstâncias históricas dos conteúdos científicos, das políticas educativas, das tecnologias de produção do livro, das opções pedagógicas e dos valores que a sociedade atribui à escola. Págs. 8 a 12 Ç^s por Carina Infante do Carmo

COMO OS MANUAIS DE PORTUGUÊS · COMO OS MANUAIS. DE PORTUGUÊS PODEM (DE)FOFLMAFL LEITOR.ES Nas últimas décadas foi abandonada a selecta de textos que visava o contacto dos alunos

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COMO OS

MANUAIS DEPORTUGUÊSFAZEM NASCER.OU MATAM LEITOR.ESOs manuais interagem com as circunstâncias históricas dos conteúdoscientíficos, das políticas educativas, das tecnologias de produção do livro, dasopções pedagógicas e dos valores que a sociedade atribui à escola. Págs. 8 a 12

Ç^s por Carina Infante do Carmo

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COMO OSMANUAIS .

DE PORTUGUÊSPODEM

(DE)FOFLMAFLLEITOR.ES

Nas últimas décadas foi abandonada a selecta de textos que visava o contacto dos alunos com a literaturanacional, com modelos consagrados de língua, propiciando, no contexto do Estado Novo, a edificaçãomoral e nacionalista. Em sua substituição, vingou um livro que se propõe desenvolver a competência

comunicativa dos alunos, não apenas com textos literários

por Carina Infante do CarmoQUANDO CHEGA SETEMBRO e começa o

ano lectivo, os manuais escolares são notícianos media. Por pesarem nas mochilas dos alu-nos e no orçamento das famílias; por se mul-tiplicarem os bancos de troca de manuais; porserem parte substancial do mercado editorial

português e serem vendidos não apenas em li-vrarias mas cada vez mais em hipermercadosou oriline; por multinacionais high tech se mo-vimentarem no sentido de ser acelerada a pre-sença do digital nas salas de aula e tornar ob-

soleto o manual impresso.Contudo, só muito esporadicamente a

atenção do nosso espaço público, tão convoca-do para falar de rankings de escolas e de fracos

níveis de literacia, se concentra nessa ferra-menta estruturante da escolarização. As ex-cepções aconteceram a propósito do Portu-

guês e sempre sem a profundidade que a ma-téria exige. Em 2003, quando se aproximavaa entrada em vigor da revisão curricular da-

quela disciplina do ensino secundário, a opi-nião publicada clamou com veemência contraa inclusão, num manual de 10" ano, do regu-lamento do programa televisivo Big Brother,em desfavor de textos literários. Em 2007, fo-ram contestadas a implementação da Termi-

nologia Linguística para os Ensinos Básico eSecundário (TLEBS) e a confusão que esta re-velava entre a sua sustentação científica e o

ajuste da sua aplicação à realidade escolar.

Certo é que o manual tem uma relevânciairrecusável: trata-se de um recurso educativofortemente regulado e normalizado que in-

terage com as circunstâncias históricas dos

conteúdos científicos (porque os didactiza),das políticas educativas dos governos, das tec-

nologias de produção do livro, das opções pe-dagógicas e dos valores e funções que a socie-

dade atribui à escola. Mesmo que não se cinjaao modelo do livro único, como sucedeu du-rante o salazarismo, o manual é um produtode consumo nada neutro que faz a conexãoentre economia, política e cultura. Insistemos seus estudiosos em que não é um suporteinócuo de informação, pois organiza e guia a

aprendizagem, a meio caminho entre o currí-culo prescrito nos programas e o currículo rea-

lizado e avaliado pelos professores. Ele corres-

ponde a uma selecção de saberes e práticas de

ensino, validada num dado momento históri-co e conformada aos interesses do negócioeditorial e de quem domina os processos de

apropriação e distribuição do conhecimento e

do poder, no campo social.

Acresce o facto de o manual escolar ser pa-ra muitos o meio privilegiado, senão o único,de aculturação com a expressão escrita. Nessa

medida, é um repositório precioso da memó-ria cultural moderna e contemporânea que a

historiografia tem valorizado em crescendo. 10

Desde finais do século XVIII, o manual foidando corpo às disciplinas escolares, à medida

que elas se expandiram até ao ensino secun-dário e que a escolaridade se democratizou. E

assim passou a ter presença determinante naescola: serve de base à planificação das aulas e

aos momentos de avaliação, monopoliza a

prática diária na sala de aula e ocupa parte

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substancial do trabalho autónomo dos alunos.

Dele resulta(ra)m, por isso, formas diversas de

conceber e levar à prática a profissão docente.No limite, se um professor aceita dependerem absoluto do manual e o sobrepõe à inter-pretação activa do programa da sua disciplina,abdica da responsabilidade de definir algo do

que ensina. Submete-se ao que vem prefabri-cado no manual e que se projecta em círculovicioso no formato e conteúdo dos exames fi-nais.

Assim se compreende que este seja temafértil na produção científica das Didácticas e

das Ciências da Educação, em congressos,

provas académicas, redes de investigação, ca-

tálogos e publicações especializadas. No con-texto português, é significativa, na última dé-cada e meia, a proliferação de dissertações de

mestrado e doutoramento sobre manuais,embora tenham uma escassa divulgação edi-torial e circulem pouco no espaço privilegia-do da sua reflexão: a escola básica e secundá-ria. Várias têm sido as linhas de pesquisa, se-

guidas numa perspectiva raramente compara-tiva porque ainda muito focada no espaço na-cional: o papel dos manuais na construçãometodológica do conhecimento, os circuitos

e condicionalismos da sua produção, circula-

ção e uso, o seu estatuto e funções no traba-lho pedagógico e as representações ideológi-cas que por força veiculam.

1. UM ESTUDODE FUNDO

No que diz respeito ao Português, há um mar-co que importa evidenciar a mais de doze anosda sua publicação: o ensaio A Construção Esco-

lar de Comunidades de Leitores. Leituras do Ma-nual de Português (2000), de M. a de Lourdes da

Trindade Dionísio, que é um dos primeiros es-tudos de fundo, entre nós, no âmbito da Di-dáctica/Metodologia de Ensino do Portuguêse da Leitura do Texto Literário. Desta obra e de

outros projectos realizados em parceria comRui Vieira de Castro (o prefaciador do volu-

me), no âmbito do Centro de Investigação emEducação da Universi-dade do Minho, deriva-ram inúmeros trabalhos científicos sobre o

mesmo tema, muitos deles sob a orientaçãoda própria M. a de Lourdes Dionísio.

Sendo originalmente a tese de doutora-mento que a autora defendeu, em 1999, naUniversidade do Minho, este ensaio cruza di-ferentes áreas disciplinares (Teoria da Litera-

tura, Linguística, Ciências da Educação, emparticular) e nele encontramos muito mais do

que uma metodologia (que o é também) deanálise de manuais escolares de Português.Dá-nos a ver como estes constróem leitores,saberes e práticas, modelos e entendimentos

que se querem legítimos de leitura e de mun-do: "Enquanto texto regulador, a par dos pro-gramas, o manual delimita um conjunto de

regras e de textos, de comportamentos inter-

pretativos definidos por uma comunidade

(de que fazem parte professores e autores de

manuais, também eles professores) comoos comportamentos válidos para formar lei-tores." (p. 88).

Com base na análise de 18 manuais de Por-

tuguês do 7."ano de escolaridade, editados noano lectivo de 1992-1993, este estudo identi-fica as especificidades da leitura na escola quenaturalmente é pública, interactiva, determi-nada pela intervenção do programa, do ma-nual e do professor, na sala de aula. Só que, da

amostra do corpus estudado, se retiram duas

consequências sérias: 1. é normalizado e cons-

trangedor o que se pergunta sobre um texto,o que sobre ele deve ser dito na aula e as for-mas de aferir as aquisições realizadas pelosalunos; 2. ficam comprometidos a autonomia,o espírito crítico e até o gosto de quem está naescola a aprender a ler e a construir sentidoscom/sobre textos.

Esta visão muito crítica dos regimes de lei-tura propiciados na escola pelos manuais de

Português tem em conta as mudanças por quepassaram nas últimas décadas. Foram várias,de resto, em embrião no final dos anos 60 e

depois, mais consistentemente, a partir das

décadas de 70-80. Passou-se do livro único su-

periormente imposto para o manual escolhi-

do, entre as ofertas do mercado, pelos profes-sores de cada escola. Ganharam relevo o design

gráfico e a ilustração que tornaram exuberan-te e infantilizadora a disposição tipográfica e

icónica da página. Além de que se complexifi-caram as redes de informação em que circulao livro de Português. Multiplicaram-se os li-vros para-escolares (prontuários, dicionários,livros de preparação para exames, sínteses deobras literárias) e os livros/recursos-satélitedo manual: o caderno de exercícios, o guia do

professor, o CD-áudio, o CD de recursos ou o

e-manual, que dá a versão digital do livro im-

presso, com acesso a recursos de som e ima-

gem da Internet, ajustáveis a uma regular ac-

tualização de conteúdos.Nas últimas décadas, ocorreu outra grande

mudança. É que se abandonou a selecta de

textos que visava o contacto dos alunos com

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a literatura nacional, com modelos consagra-dos de língua, propiciando, no contexto do Es-

tado Novo, a edificação moral e nacionalista.Em sua substituição, vingou um livro que se

propõe desenvolver a competência comunica-tiva dos alunos, não apenas com textos literá-rios. À antologia de textos juntaram-se umcompêndio de gramática, questionários,guiões de leitura, fichas informativas sobre

autores e obras, testes de auto-avaliação, su-

gestões para contrato de leitura ou listas de ve-

rificação de desempenhos dos alunos.Para conhecer este objecto didáctico trans-

mudado, M. a de Lourdes Dionísio centra-seno que ele diz acerca de si, da sua organizaçãoe dos seus princípios, e no que faz com os tex-tos para conduzir as operações de compreen-são e interpretação. Estuda as notas introdu-tórias dos livros que, em seu entender, os fa-

zem oscilar entre intenções pedagógicas ino-vadoras e a realidade empobrecida da sua di-dáctica da leitura. Desses textos programáti-cos resulta sobretudo a certeza de que o ma-nual se entende "como texto que aspira a

uma forte regulação da prática pedagógica"(p. 259) e que não prevê ser um recurso en-tre outros; no que toca à leitura, vê-se como

'"o programa total' [nas palavras de JeanneChall], cabendo aos professores a sua media-

ção" (idem).Depois, merecem a sua atenção os questio-

nários que organizam a situação de leitura e o

processo de transmissão e construção dos sa-

beres interpretativos dos alunos, neste caso à

entrada do 3" ciclo de escolaridade. Os proble-mas são vários: favorecem-se os domínios daleitura e da gramática, em detrimento da es-

crita e oralidade; insiste-se mais no géneronarrativo do que na poesia ou no teatro; e, aci-

ma de tudo, revela-se a função disciplinadorade explicações, sugestões, comentários, a quea ensaísta chama "'enquadradores' discursi-vos" (p. 111): são eles asserções que os autoresdos manuais antepõem às tarefas e perguntassobre os textos, tocando as dimensões linguís-tica, retórica e técnico-compositiva. Tais en-quadradores estabelecem a comunicação en-tre o autor do manual e os seus leitores e des-tes com os textos e identificam o que é enten-dido como relevante e digno de ser compreen-dido num texto. Transcrevo, a título de exem-plo, um pequeno elenco de enquadradores re-

tirados por M. a de Lourdes Dionísio do seu

corpus de manuais (cf. pp. 334-355):Certamente <reparaste> que a primeira frase é

umapergunta [...]. "Fica-nos a impressão" de

que o poeta está afalar com alguém..."Se lermos atentamente" o texto tendo em con-

ta o seu aspecto gráfico, "podemos descobrir",desde logo, "algumas ideias fundamentais"Nofundo, o poeta "revela-no" duas "faces",duas perspectivas da Lua: uma em que ela <nos>

é dada na sua condição primordial de simples"coisa em si"; outra, em que ela aparece reco-

berta de "mais-valia"A estrofe sobre que <estamos a reflectir) consti-

tui um (interessante) exemplo de metáfora...<Como deves ter reparado), a linguagem de Mi-guel Torga é muito sugestiva e de grande valor

expressivo.

2. QUEMCOMANDAAINTERPRETAÇÃO

Nesta lista, Dionísio assinala o lugar e a voz de

quem comanda a interpretação e implicita-mente define normas de comportamento

O manual é um recursoeducativo fortemente reguladoe normalizado que interagecom as circunstânciashistóricas dos conteúdoscientíficos (porque osdidactiza), das políticaseducativas dos governos, dastecnologias de produção dolivro, das opções pedagógicas edos valores e funções que asociedade atribui à escolaAcresce o facto de o manualescolar ser para muitos o meioprivilegiado, senão o único,de aculturação com aexpressão escrita. Nessamedida, é uni repositórioprecioso da memória culturalmoderna e contemporâneaque a historiografia temvalorizado em crescendo

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Luís Vaz de Camões d.™ m™» António xorraao global macews Alice Vieira global ima™ Luísa Ducla Soares ampvodk José Rodrigues Migueis akcmvods

face aos textos e aos respectivos contextos de

leitura, mesmo se se simulam o diálogo ou a

implicação do aluno. Por vezes os enquadra-dores apenas citam um trecho do texto e comisso pretendem facilitar a tarefa da leitura enão tanto condicioná-la. Já o mesmo não su-cede com enquadradores que se impõem, de

modo reiterado, na interpretação em curso.Não há dúvida de que na escola a leitura deve

ser orientada. O problema está no modo siste-mático e rotineiro como se restringe o que po-de ser dito e feito com os textos e como se per-siste na validação de sentidos explicitamentedeclarados no texto.

Pode objectar-se que o contexto a que se re-fere A Construção Escolar de Comunidades de

Leitores não é já o nosso, tanto mais que vigo-ra um novo programa de Português para o en-sino básico, homologado em 2009, a que se

somarão, com pressupostos não inteiramen-te coincidentes, as metas curriculares para a

mesma disciplina, a partir de 2013-2014. (2> As-sim é, de facto. Ainda por cima, é difícil fazer

comparações porque não dispomos de umcorpus tão vasto de manuais e de uma avalia-

ção equivalente ao do fundamentado estudode M. a de Lourdes Dionísio, para daí retirarconclusões sólidas sobre os manuais de Portu-

guês hoje em circulação.Ainda assim, uma análise sumária de ma-

nuais de Português para o 7. "ano de escolari-

dade, adoptados no presente ano lectivo,dão-nos indícios reveladores que exigemsem dúvida um estudo mais aturado. A liçãode leitura reforça um pouco os domínios da

escrita e da oralidade, até por insistência do

programa em vigor, mas a sequência de tare-fas (reconhecimento de vocabulário-ques-

tionário de compreensão/interpretação-fun-cionamento da língua-oralidade e/ou escrita)deixa os textos praticamente incólumes nasua riqueza de sentidos e nas possibilidadesde se relacionar com outros textos, sejam elesverbais ou visuais. Há pequenas variaçõesdentro de um manual e nem todos os ma-nuais são iguais, mas é indesmentível queabundam perguntas de escolha múltipla, cor-

respondências ou preenchimento de palavrasem branco. Acontece um poema de ArmindoRodrigues ou um excerto da peça Leandro,Rei da Helíria, de Alice Vieira (inspirada emRei Lear e no conto tradicional O sal e a água),serem pouco mais do que pretexto para exer-cícios de funcionamento de língua. <3) Inúme-ros questionários mais parecem exercícios de

toca e foge: abrem possibilidades de interven-ção do aluno mas acabam no levantamentomecânico e desproblematizador de factos de

que não se tiram ilações mais complexas e es-

peculativas.No corpus de A Construção Escolar da Comu-

nidade de Leitores é desequilibrada a distribui-

ção de tarefas de interpretação. Ao aluno ca-bem a paráfrase, a identificação, a classifica-

ção, ao nível do imediatamente perceptívelno texto (quanto a vocabulário ou a figuras de

retórica). Para o autor do manual ficam os

actos cognitivos que a escola valoriza mais

(a inferência, os juízos de valor, a justificaçãoe a decodificação), patentes nos enquadrado-res discursivos. E, conforme defende RuiVieira de Castro, o grave deste cenário é queele persiste, nos meados dos anos 2000, emmanuais de Português do ensino secundá-rio/ 4 ' É esse o padrão do questionário sobre o

soneto camoniano Grão tempo há já que sou-

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be da Ventura, retirado de um manual de

10/àno actualmente em circulação:i. É possível identificar neste soneto quatro

momentos estruturais distintos, ao longo dos

quais o sujeito poético procede a uma apresen-tação da sua vida:

1. Invocação às forças activas na sua desgraça.2. Apelo à mulher amada.

3. Considerações sobre o poder do amor.

4. Reflexão sobre a sua existência.

1.1. Ordena esses momentos de acordo com o

poema efaz corresponder a cada um deles um

segmento textual.

2. Interpreta as diferentes apóstrofes que são

utilizadas no decorrer da composição.

3. Classifica como verdadeiras (V) ou falsas(F) as afirmações que se seguem:a. No verso "Grão tempo há já que soube daVentura" (v. 1), o sujeito é simples.b. As formas verbais "assolai" e "destruí" (v. 7)encontram-se no modo imperativo.c. Na frase "vingai-vos desta vida, qu'indadura!" (v. 8) está presente a conjugação prono-minal reflexa.d. O antecedente do pronome "a" no verso

"Soube Amor da Ventura, que a não tinha" (v.

9)é Ventura.e. Sintaticamente, a palavra sublinhada na

expressão "Mas vós, Senhora, (...) vivei nesta

alma minha" (vv. 12-13) desempenha afunçãode sujeito.

f Afrase "vivei nesta alma minha" (v. 13)concretiza um acto ilocutório expressivo.

3.1. Corrige as afirmaçõesfalsas. is)

Quer isto dizer que, num nível avançado da

escolaridade, é comum fazer-se perguntas so-bre as ideias do texto que adiantam quase todaa resposta do aluno, convocando-o para pou-co mais do que tarefas de identificação tex-tual. Pode usar-se um ou outro conceito lin-

guístico ou literário útil à interpretação mas é

pobre a análise da letra do texto que obsessi-

vamente se orienta para exercícios de funcio-namento da língua. Dir-se-á que nem toda a

leitura tem de conduzir a uma análise porme-

norizada mas então para quê escolher um so-neto de Camões se o objectivo é tão-só testarconhecimentos linguísticos básicos?

O problema da compreensão na leitura

atinge também os manuais de 4. "ano de esco-laridade estudados por M. a Regina de MatosRocha, em 2007. <6) De acordo com as especifi-cidades desta etapa da aprendizagem, o dia-

gnóstico feito aponta para deficiências na se-

lecção e apresentação do corpus literário (porrecurso excessivo à adaptação e ao corte das

obras citadas) e na limitação grave dos movi-mentos interpretativos potencialmente sus-citados pelos textos. A saber: a falta regular de

contextualização do texto ou de propostas de

activação prévia de conhecimentos dos alu-

nos; o predomínio notório de perguntas de

reconhecimento literal e reconstituição da

informação que o texto contém, em detri-mento da inferência; a escassez de activida-des que promovam a detecção de ideias es-senciais de cada momento e do conjunto dos

textos, a compreensão da linguagem figura-tiva ou da coesão textual. Também neste ca-

so, já no final do l."ciclo, falha a necessidadede uma leitura mais crítica e reflexiva cons-truída a partir dos textos.

Perante um tal quadro, não será arriscadoreafirmar com M. a de Lourdes Dionísio queos manuais formam comunidades de leitorese "asseguram uma linha de continuidade, naqual a incorporação da inovação e da mudan-

ça é um processo lento nunca configurandorupturas violentas" (p. 260). Tal dado é tantomais impressionante quanto se sabe que o

impacto de um manual é diferido no tempoe extensível no espaço social: ele "ultrapassaos limites da comunidade constituída pelosreceptores e utentes imediatos de cada ma-nual em particular" (idem), os alunos e os pro-fessores, ao mesmo tempo que vai além dos

muros da escola e circula na comunidade, emparticular na família.

A autora defende esta posição porque os

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Agustina Bessa-Luís cio^mAcms Miguel Torga «»» d» Sophia de Mello Breyner Andresen António Gedeão «»• dh Alves Redol «qi-d,

manuais de Português por si analisados são

uma soma de textos e actividades que não as-

seguram actos cognitivos gradativamenteelaborados, na direcção da actividade espe-culativa da leitura. Nas suas palavras: "Neu-tralizando leituras privadas, fazendo predo-minar um discurso anónimo e público no

qual os sujeitos não se revelam, a posição de

leitor que as estratégias discursivas reforçam,por processos redundantes, caracteriza-se

pela exterioridade e disjunção relativamenteaos textos e aos seus significados." (p. 400).Não apenas se diluem as variáveis do leitor edas suas circunstâncias como se apaga a ri-

queza do texto, constrangida, em alguns ca-

sos, pela verificação de conceitos literários e

linguísticos, importados da leitura especiali-zada e universitária.

3.ESCOLHEFLOS TEXTOS

A par das operações de leitura, A ConstruçãoEscolar de Comunidades de Leitores trata da an-

tologia de textos que todo o manual de Portu-guês inclui. Desde logo a antologia levantauma questão crucial: os textos escolhidos fi-cam diferentes ao ganharem um contexto di-verso da publicação original, desta feita comintuito pedagógico. Sofrem cortes, adaptaçõesou juntam-se-lhes dispositivos gráficos derealce (títulos, enquadramentos, ilustrações,etc). Nessa condição, podem sugerir novas co-

nexões de sentido com textos próximos no es-

paço do manual ou novos enfoques em fun-ção do aparato didáctico que os rodeia. Não de-vendo comprometer a fidedignidade e integri-dade dos textos escolhidos, é normal que o

manual lide com fragmentos, enquanto cabe

ao professor a capacidade de induzir e orien-tar os alunos na desejada leitura integral deobras mais extensas previstas no programa. Arealidade confirma entretanto que o livro ori-

ginal tem presença menor no aprendizado da

leitura dos alunos que, em regra, se ficam porrecortes descontextualizados do texto no ma-nual, por vezes indevidamente truncados e

não identificados na sua fonte bibliográfica, e

quando muito complementados por livros de

resumos das obras literárias.A partir da altura em que o manual de Por-

tuguês deixou de ser apenas uma selecta, a

sua antologia passou a estar organizada em

função do binómio literário (ou do que lheestá nas margens, o paraliterário: narrativas de

aventura, policiais, ficção científica e fantás-

tico, BD, etc.) e não literário (textos dos me-dia, correspondência, textos científicos, tex-tos informativos, regulamentos ou, mais re-

centemente,posfs de bloques). Mesmo assim,M. a de Lourdes Dionísio defende que a aber-tura da aula de língua materna a outros textos

que não os literários não impediu que a rela-

ção da leitura e da escola continuasse a ser lar-

gamente mediada pela literatura. E como tal,"o texto literário é, por diversos ângulos, umproblema da escola e de como ele acrescenta,ao processo de aprender a ler em língua mater-na, uma mais-valia distintiva quanto à espe-cificidade de leitura escolar" (p. 65). Por isso

mesmo não é indiferente para a formação deleitores o tipo de textos que o manual privile-gia. Vejamos de que forma assim é.

Com efeito, o manual tem nos textos lite-rários seleccionados exemplos do uso correc-

to e da elaboração artística e cultural da lín-

gua. A antologia resulta de uma escolha con-

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tingente, historicamente situada, de textos ti-dos como modelares, merecedores de conser-

vação e perpetuação e legitimados por insti-

tuições consagradoras como a universidade, a

imprensa especializada ou as editoras (o câno-ne literário). Todavia, o manual, ele próprioestabiliza os bons textos e bons autores nocontexto pedagógico, fixando o cânone literá-rio escolar que, além do propósito patrimo-nial, serve para aferir as competências adqui-ridas pelos alunos e o respectivo progresso es-

colar. Tanto assim é que, sob a orientação do

programa e outros documentos curricularesda disciplina, o manual escolhe ou exclui au-

tores, estilos de época, géneros e subgéneros;revela uma definição de boa literatura e até do

que é ou não literário. Em suma, ele fixa umcorpus literário obrigatório e, com ele, impli-ca um conjunto de métodos e procedimentosdidácticos de abordagem de textos, conceitosteóricos e críticos, assim como valores acercade língua, cultura e comunidade (nacional ou

outra), num determinado contexto político--educativo. <7> Nesse sentido, dado o enorme

peso social da escola, o manual participa na re-

gulamentação da própria instituição literária.Não admira então que A Construção Escolar

de Comunidades de Leitores não esqueça o pa-pel dos manuais de Português do ensino bási-

co nos anos 80-90, reforçados pelo articuladodo Programa de Língua Portuguesa do Ensino

Básico de 1991. Em concreto, eles elevaram aoestatuto de maioridade a literatura de recreio

(extra-escolar) para crianças e jovens. Retira-ram-na da zona de indefinição quanto ao seu

estatuto literário, o que tornou possível queAlice Vieira, António Torrado ou Luísa DuclaSoares fossem "reconhecidos pela comunida-de escolar e extra-escolar como exemplos dobom uso" (p. 86) da língua, a par de José Ro-

drigues Migueis, Vergílio Ferreira ou AgustinaBessa-Luís. Assim o comprova a lista de auto-res que M. a de Lourdes Dionísio identifica noseu estudo, sem pretender estudar a evoluçãodiacrónica das escolhas e exclusões literáriasfeitas pelos manuais. O seu propósito é o de

assinalar, nos anos 90, a lista de autores (comSophia, Gedeão, Alice Vieira, Eugênio de An-drade, Use Losa e Torga à cabeça), em funçãodo número de citações por manual e da recor-rência no conjunto do corpus, assim como das

actividades previstas e dos respectivos enqua-dradores discursivos.

Convém entretanto sublinhar que a abertu-ra a uma produção literária de qualidade paracrianças e jovens, temperada e amadurecida

entre nós na 2. a metade do século XX, não im-pediu que os manuais integrassem exempla-res menores de escrita, portugueses ou estran-

geiros, e não apenas pela via dos textos não li-terários. Fizeram-no porventura com o pre-texto de se aproximarem dos interesses dos

alunos (muitos deles oriundos de extractossociais menos privilegiados) e de cumpriremos objectivos do seu desenvolvimento comu-nicativo e competência linguística. Anos mais

tarde, não poucas escolhas do Plano Nacionalde Leitura, que no l."e 2.'ciclos são a referên-cia para a leitura na sala de aula, relativizarambastante o critério da qualidade literária dos

textos escolhidos.

4.OLUGAPLDALITERATURANO CÂNONELITERÁRIO

E aqui entramos na polémica do lugar da

literatura, do cânone literário (e por extensãodas Humanidades) na escola que, nas últi-mas décadas, foram sendo desconsidera-

dos como eixo de aprendizagem da línguamaterna e da transmissão cultural de umlegado colectivo. Os motivos para essa desafei-

ção da literatura são normalmente poucoexplicitados mas não fogem a justificaçõesno mínimo discutíveis como a igualdade de

oportunidades no ensino, os desafios científi-cos ou as exigências do mercado de trabalhoe de um ecossistema cultural marcado pelacomunicação mediática e digital.

Escrevendo ainda no limiar do século

XXI, M. a de Lourdes Dionísio não dá o alar-me quanto ao declínio da literatura e do câ-

none literário na escola, por achar, com ra-

zão, que não há incompatibilidade entre a

educação literária e a competência linguís-tica adquiridas através de uma variedade

ampla de textos e géneros discursivos do

quotidiano. De resto, atribuir à literatura o

modelo supremo da língua implica a recusaliminar da qualidade a todo o discurso me-diático, isolando-a do riquíssimo mundoverbal de que se alimenta e que enriquece.E, por último, o cânone literário na escolanão é por si a panaceia para formar grandesleitores, se ler significa dar respostas pré--formatadas e superficiais ou dar por adqui-rido, sem ir à letra do texto, a proclamadaexcelência de obras consagradas e a inserçãoesquemática em correntes estéticas: assim

caricaturada, a literatura fica de fora da sala

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de aula como um panteão mumificado quea escola teimosamente preserva. Grande

parte da argumentação de A Construção Es-

colar de Comunidades de Leitores ajuda a

comprovar esse facto sem rodeios.

E, no entanto, não basta dizer que a pro-ficiência na leitura não depende de que tex-tos se escolhe e, sim, das formas como são

dados a ler e das motivações para se darema ler de determinado modo. Se o tempo cur-ricular é escasso e a escola, o lugar especiale, para muitos, a oportunidade única de en-contro com o melhor que a língua portu-guesa já produziu, a literatura tem de terprivilégio nos programas e manuais.

5. QUE COLUNAVERTEBRAL?

Nas aulas de Português, a coluna vertebraldeve ser a textualidade canónica' 81 ? a portu-guesa, a lusófona, a dos clássicos universais

antigos e modernos?, naturalmente mutá-vel e capaz de mobilizar relações histórico--literárias mas também temáticas, retóri-

cas, técnico-compositivas. Claro que a cul-tura letrada se vê hoje atingida pela hege-monia da cultura visual-digital que quasesempre molda os indivíduos segundo a ló-

gica do entretenimento, da informaçãofragmentária e sem memória, do olharavesso à concentração e à análise. Razãoredobrada para na escola se exploraremconexões criteriosas e imaginativas entreos clássicos da literatura, expressões do

património artístico e cultural da humani-dade e discursos sociais os mais diversos,num tempo em que as fronteiras entrecultura erudita e cultura de massas se

matizaram bastante. A estranheza de textosnão contemporâneos ou não quotidianosexige aprendizagem reflectida de saberes

e destrezas mas não justifica que sejamarredados dos alunos por não lhes estarem

no horizonte de expectativas mais próximo.Do ponto de vista quantitativo a literatu-

ra tem expressão forte nos manuais e nissoM. a de Lourdes Dionísio tem razão. O gran-de problema está no facto de aqueles terempassado a ser organizados em função de

uma didactização empobrecida de concei-tos teóricos de texto e discurso, as chama-das tipologias textuais, e com elas nivela-rem pela mesma bitola rasa textos literá-rios, utilitários ou mediáticos. Ora, a litera-tura não é uma linguagem ornamental des-viante de uma suposta língua neutra do

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quotidiano e da comunicação, nem é maisum tipo de texto, pela razão simples de quese apropria, pensa e recria toda a produçãoverbal humana. Com as suas convenções e

códigos (métricos, estilísticos, retóricos, sé-

micos, pragmáticos, ideológicos, etc), elaforma experiência e cria humanidade, cons-trói sentido de historicidade, de criação es-tética da língua, de memória cultural de

uma comunidade.A arrumação tipológica dos textos, em

que se quer encaixar a literatura, encontra-mo-la a cada passo em manuais do ensinobásico (mesmo que o programa o recuse ex-plicitamente) e do ensino secundário. À luzdo programa, ainda em vigor, de Portuguêsde 10." ll."e 12."anos, a história literária por-tuguesa deu lugar a uma manta de retalhosem que persistem alguns textos canónicos

portugueses mas com exclusão dos clássicos

anteriores ao século XVI e sem a possibilida-de de se perspectivarem as obras e os auto-res numa cronologia mínima. E, como é ób-

vio, nem Pe. António Vieira é apenas umexemplo de texto argumentativo nem Ca-mões pode ser simplistamente alinhado en-tre textos autobiográficos. Mesmo se se citauma passagem de autoridade de um crítico

literário, a leitura dos textos torna-se ana-crónica porque é quase sempre omisso o tra-balho de memória cultural, artística e literá-ria; por exemplo, a que dê evidência à pun-gência e exaltação da condição humana ou à

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fidelidade e inovação dentro da estética pe-trarquista na obra camoniana ou à exube-rância barroca de imagens e de eloquênciano sermonário de Vieira.

O manual não tem de ser o espelho exac-to do que se passa na aula; é no espaço reale contingente da aula que se dá o encontrodos alunos e da sua experiência de vida e deleitura com o texto. Contam, então, mais

Eugênio de Andrade arquivo dn

que tudo, a intervenção do professor e a sua

imprescindível experiência de leitor. Eacontece também o manual fazer um pou-co a diferença e explorar a pequena margemde autonomia e criatividade didácticas, pa-ra lá dos constrangimentos editoriais e da re-

produção estrita do discurso pedagógico ofi-cial. A margem é muitíssimo apertada, mashá casos, raros, de manuais a que importa fa-zer justiça, mesmo se não são os mais publi-citados e adoptados nas nossas escolas.

Assim acontece no que toca à didáctica daleitura nos manuais Português Dez e Portu-

guês Onze, de Brígida Trindade, CristinaDuarte, Fátima Rodrigues, Lúcia Lemos e

Madalena Dine, destinados aos cursos cien-tífico-humanísticos do ensino secundário.Folheie-se Português Dez (Raiz Editora, l. a

cd.: 2010) e é visível o trabalho de compen-sação de danos do programa e do seu espar-tilho das tipologias textuais. Não é apenasCamões que é devidamente retirado dos

textos de carácter autobiográfico (confor-me define o programa de 10."ano) e posto

ao lado de poetas do século XX. É tambéma disposição didáctica dos materiais e ques-tionários cuja sequência não perde de vista,na medida do possível, a centralidade dotexto literário. As imagens não são ilustra-ções mas objecto de leitura paralela e cruza-da com o texto verbal. E a lógica do livro an-tecipa para o aluno um caminho menosnormativo de aprendizagem, de construçãode sentidos com os textos, literários ou não,até às dimensões mais criativas e pessoaisdas oficinas de escrita e oralidade.

Em todo o caso, nada apaga a realidade de

que o manual de Português é um dispositi-vo poderoso e demasiadas vezes perversono modo como, para voltar a Maria de Lour-des Dionísio, "prescreve um conjunto de

convenções sobre as possibilidades e impos-sibilidades inerentes às acções individuais esociais da leitura" (p. 393). É sintomático

que os manuais, expeditos como são a falardo prazer de ler, sejam tão escassos na esco-lha de textos sobre leitura ou de persona-gens mergulhadas na emoção de ler e omi-tam o poder emancipador da leitura emcontextos não escolares, como excepcional-mente se exemplifica no excerto de Vindi-ma de Sangue, de Alves Redol, que M. a de

Lourdes Dionísio destaca em anexo de umdos livros do seu corpus.

A Construção Escolar de Comunidades de

Leitores leva-nos a pensar politicamente o

manual de Português que "represent[a],para cada geração, uma versão oficialmen-te sancionada e autorizada do conhecimen-to e da cultura" (p. 14). Num contexto his-tórico que se pretendia de democratizaçãocultural, a escola portuguesa é marcada poruma realidade estudantil (e docente) mas-sificada e desigual quanto ao backgroundlinguístico e cultural e quanto ao valor atri-buído à educação. Ainda por cima, o contex-to histórico mais recente agravou o desin-vestimento na escola pública e intensificoua proletarização dos professores. É nesse

quadro que interessa analisar o manual: aonivelar por baixo as escolhas da leitura, aofazer uma "pedagogia do reconhecimento e

da aceitação" (p. 403), ele participa na dis-

criminação social que, quando muito, levaos alunos a atingir uma competência fun-cional, suficiente para o desempenho de

uma profissão no mercado de trabalho ou

para o consumo acrítico dos bens culturaisde entretenimento.

A escrita e a leitura foram e são categorias

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determinantes em torno das quais se orga-niza(ra)m as ideias e as práticas do poder e

do saber na sociedade. Na era dos media e

do digital assim continua a ser, mesmo se o

livro impresso está a perder centralidade ci-vilizacional. Nem por isso são menos rele-vantes o lugar (a escola) e o instrumento (omanual de Português) que formam leitores,as suas atitudes, experiências e ideias de lei-tura e de mundo.(1) Para o caso português, çf.JustinoMagalhães, O

Mural do Tempo. Manuais Escolares em Portugal,

Lisboa, Edições Colibri/Instituto de Educação da

Universidade de Lisboa, 2011.

(2) Convém mencionar que o Ministério da Educação,

ainda sob o comando de Isabel Alçada, deixou cair as

Metas de Aprendizagem de Língua Portuguesa do

Ensino Básico, divulgadas em 2010.

(3) É o caso de António Vilas-Boas ScManuél Vieira,

Entre Palavras 7 Língua Portuguesa, Lisboa,

Sebenta/Leya, 2Oi2,pp. 40-41 e 224-225, ao contrário

de P 7Língua Portuguesa 7. 0 ano

(Lisboa, Texto Editora, 2011), de Ana Santiago

e Sofia Paixão, que exploram essa linha de leitura

intertextual.

(4) Ruí Vieira de Castro "O Português no Ensino

Secundário: processos contemporâneoa de

{reconfiguração", in Maria de Lourdes Dionisio e Rui

Vieira de Castro (org.), O Português nas Escolas.

Ensaios sobre a Língua e a Literatura no Ensino

Secundário, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 53-54.(5) Pedro Silva et ai., Expressões 10 Português 10 o

.

Ano, Porto, Porto Editora, 2011, p. 158.

(6) Cf. Maria Regina de Matos Rocha, A Compreensãona Leitura. Análise de Manuais do 4. 0 ano de

Escolaridade, dissertação de mestrado em Ciências da

Educação (Psicologia da Educação), Faculdade de

Psicologia e de Ciências da Educação- Universidade de Coimbra, 2007.

(7) Cf. Pedro Balaus Custódio, A Leitura e o Cânone

Literário nos Programas de Português: uma Década

de Mudanças (1991-2001), tese de doutoramento em

Línguas e Literaturas Modernas (Didáctica da

Literatura Portuguesa), Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra, 2003, p. 377.

(8) Cf. Vítor Manuel de Aguiar Silva, "Teses sobre o

ensino do texto literário na aula de Português" in As

Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da

Literatura e a Política da Língua Portuguesa,

Coimbra, Almedina, 2010, pp. 207-216.

A AUTORA NÃO SEGUE O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO

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