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III ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA POPULAR Negócio da música em tempos de interatividade 30 de agosto a 1º de setembro de 2011 – Faculdade Boa Viagem–Recife-PE 1 COMO VOCÊ NUNCA OUVIU (FALAR EM) VICTOR TOSCANO? 1 Reflexões sobre discografias virtuais na música popular massiva Fernando Coelho 2 Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE Resumo: A constituição de discografias exclusivas em MP3 e o surgimento dos selos virtuais figuram entre os novos aspectos gerados por recombinações entre formatos culturais (álbum, canção), tecnologias comunicacionais e processos midiáticos no território da música popular massiva. A partir da disposição e do endereçamento da obra musical do compositor Victor Toscano e do selo Senhor F Virtual, o artigo pretende identificar questões pertinentes aos novos meios de produção e circulação musical e como eles dialogam com modelos tradicionais e provocam tensionamentos em lógicas hegemônicas Palavras-chave: música popular massiva, liberação do pólo de emissão, gravações caseiras, selos virtuais Introdução Portal eletrônico de referência sobre rock brasileiro, o Senhor F 3 publicou o seguinte texto em sua edição de 22 de novembro de 2008 4 : “Victor Toscano é de Recife, tem 25 anos e uma mão certeira para compor belas canções lofi-folk-pop. Mas, não pense em tosqueira, e sim em sofisticação musical e poética e, ainda, em surpreendentes vocais”. O trecho introduz uma entrevista realizada pelo editor do sítio, o jornalista Fernando Rosa. Mas quem é Victor Toscano? Uma busca no Google 5 por seu nome revela 18.870 resultados encontrados, dos quais os 20 primeiros se referem ao compositor pernambucano – sejam links para contas em plataformas de compartilhamento musical, videos no YouTube, seu site pessoal ou blogs resenhas de seus discos e pequenas reportagens apresentando o 1 Trabalho apresentado ao GT (04): Música e convergência tecnológica, do III Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 30 de agosto a 1º de setembro de 2011, na Faculdade Boa Viagem, em Recife-PE 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Comunicação e Música Popular Massiva (UFAL/UFPE) e bolsista do Programa Reuni (PPGCOM/UFPE). Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4492099J6. E- mail: [email protected] 3 www.senhorf.com.br 4 Acessado em 03 de junho de 2011 5 www.google.com.br. Acessado no dia 03 de junho de 2011.

COMO VOCÊ NUNCA OUVIU (FALAR EM) VICTOR …musica.ufma.br/musicom/trab/2011_GT4_06.pdf · O exemplo de Toscano é apenas mais um a representar a gigantesca produção musical autoral

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30 de agosto a 1º de setembro de 2011 – Faculdade Boa Viagem–Recife-PE

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COMO VOCÊ NUNCA OUVIU (FALAR EM) VICTOR TOSCANO?1 Reflexões sobre discografias virtuais na música popular massiva

Fernando Coelho2 Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE

Resumo: A constituição de discografias exclusivas em MP3 e o surgimento dos selos virtuais figuram entre os novos aspectos gerados por recombinações entre formatos culturais (álbum, canção), tecnologias comunicacionais e processos midiáticos no território da música popular massiva. A partir da disposição e do endereçamento da obra musical do compositor Victor Toscano e do selo Senhor F Virtual, o artigo pretende identificar questões pertinentes aos novos meios de produção e circulação musical e como eles dialogam com modelos tradicionais e provocam tensionamentos em lógicas hegemônicas

Palavras-chave: música popular massiva, liberação do pólo de emissão, gravações caseiras, selos virtuais

Introdução

Portal eletrônico de referência sobre rock brasileiro, o Senhor F3 publicou o

seguinte texto em sua edição de 22 de novembro de 20084: “Victor Toscano é de Recife, tem

25 anos e uma mão certeira para compor belas canções lofi-folk-pop. Mas, não pense em

tosqueira, e sim em sofisticação musical e poética e, ainda, em surpreendentes vocais”. O

trecho introduz uma entrevista realizada pelo editor do sítio, o jornalista Fernando Rosa.

Mas quem é Victor Toscano? Uma busca no Google5 por seu nome revela 18.870

resultados encontrados, dos quais os 20 primeiros se referem ao compositor pernambucano –

sejam links para contas em plataformas de compartilhamento musical, videos no YouTube,

seu site pessoal ou blogs resenhas de seus discos e pequenas reportagens apresentando o

1 Trabalho apresentado ao GT (04): Música e convergência tecnológica, do III Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 30 de agosto a 1º de setembro de 2011, na Faculdade Boa Viagem, em Recife-PE 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Comunicação e Música Popular Massiva (UFAL/UFPE) e bolsista do Programa Reuni (PPGCOM/UFPE). Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4492099J6. E-mail: [email protected] 3 www.senhorf.com.br 4 Acessado em 03 de junho de 2011 5 www.google.com.br. Acessado no dia 03 de junho de 2011.

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recifense como uma promissora novidade musical vinda de Pernambuco, como constam nos

sítios Recife Rock6, O Imimigo7 e A Musicoteca8.

O primeiro link da lista leva a uma conta no MySpace9, o segundo para uma

página no TramaVirtual10 e o terceiro endereço indica um blog próprio

(victortoscanosite.wordpress.com). Nesse, a data da última atualização: 12 de março de 2011.

O texto anuncia um link que leva ao lançamento de um site oficial www.victortoscano.com.

Ao acessar o conteúdo do site, encontra-se uma discografia com cinco álbuns e três EPs.

Detalhe: todos foram lançados apenas em formato digital e de modo gratuito.

O exemplo de Toscano é apenas mais um a representar a gigantesca produção

musical autoral em MP311 que se encontra disponível gratuitamente no ambiente virtual da

internet – sejam em blogs, sites pessoais, redes sociais, plataformas musicais, sites de

compartilhamento, programas P2P e nas páginas de selos virtuais, também conhecidos como

netlabels12.

Tal configuração foi desenvolvida ao longo da última década a partir de

recombinações entre formatos culturais e tecnologias comunicacionais que inauguraram novas

possibilidades de produção e circulação na música popular massiva.

Eis então um território recheado de particularidades, com pesquisas previamente

desenvolvidas nos campos dos estudos culturais e da cibercultura como, por exemplo, o artigo

de João Leão e Davi Nakano intitulado O Impacto da Tecnologia na Cadeia da Música:

Novas Oportunidades para o Setor Independente, publicado na compilação O Futuro da

Música Depois da Morte do CD (2009). No texto, os autores traçam um panorama histórico

do desenvolvimento da indústria fonográfica ao longo do século XX até chegar às atuais

configurações possibilitadas pelo acesso à produção e consumo de música gravada e

distribuída digitalmente. Na sequência, os pesquisadores definem os conceitos de Criação,

Produção, Distribuição e Divulgação empreendidos na cultura musical, tecem considerações

gerais sobre a problemática e concluem:

6 www.reciferock.com/tag/victor-toscano/ 7 www.oinimigo.com/blog/?p=2044 8 www.amusicoteca.com.br/?p=1682 9 www.myspace.com/victortoscano 10 www.tramavirtual.com/victortoscano. 11 MP3 é uma abreviação de MPEG 1 Layer-3 (camada 3) formato digital para compressão de áudio. Foi criado em 1996 pelo instituto alemão Fraunhofer e tornou-se o principal formato de música a circular na internet. 12 Os selos virtuais também são conhecidos como netlabels. Em geral, eles disponibilizam gratuitamente álbuns e músicas formatadas em MP3 e sua estrutura se resume aos próprios sites alocados na internet

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“Portanto, não só os pesquisadores, mas também os artistas e profissionais do mercado necessitam de uma análise mais abrangente da cadeia da música, para além da indústria fonográfica, para que se desenvolvam e se consolidem novos modelos de produção mais adequados ao momento atual. Hoje, a revolução tecnológica digital pela qual passamos, por um lado, enfraquece as possibilidades de apropriação e geração de valor na indústria da informação, mas, por outro lado, possibilita uma produção criativa (e sustentável) de magnitudes sem precedentes”. (LEÃO E NAKANO, 2009, pág. 25)

No presente artigo, pretende-se alargar o horizonte de questões pertinentes ao

tema a partir de dois estudos de caso: a obra do compositor Victor Toscano e o selo Senhor F

Virtual – que acumula mais de cem lançamentos entre álbuns, singles e EPs disponibilizados

gratuitamente em formato digital.

Ao investigar processos de produção, circulação e distribuição de discografias

exclusivamente virtuais – seja por meio de um músico-compositor ou de um selo virtual –, o

texto objetiva identificar alguns aspectos que se transformam e outros que permanecem em

relação a práticas e modelos consagrados na indústria fonográfica e no mercado da música.

Inicialmente, é preciso compreender como se chegou a combinações entre

tecnologias, ferramentas comunicacionais e formatos culturais que permitem com que, com

apenas um computador pessoal e alguns softwares de edição musical, seja possível registrar

canções e formatá-las num álbum virtual.

Do fonógrafo ao estúdio caseiro

Em 1877, o inventor norte-americano Thomas Alva Edison gravou os primeiros

sons a serem reproduzidos mecanicamente. O invento foi chamado fonógrafo. Doze anos

depois, o americano de origem alemã, Emile Berliner (1851-1929) apresentaria o gramofone,

um aparelho capaz de tocar discos com registros sonoros. (CROWL, 2009). Esses foram os

pontos de partida de uma longa e indissociável relação entre música, tecnologias e processos

comunicacionais (SÁ, 2003). Eles também representam o início de profundas e sucessivas

transformações que modelaram tanto a nossa cultura auditiva quanto a nossa relação com a

cultura musical.

A partir dos anos 1920, a gravação elétrica passou a substituir à mecânica e a

utilização de vinil (78RPM) no formato de disco ampliou o tempo de armazenamento dos

registros sonoros. Na década seguinte, a fita magnética surgiu como novo suporte físico para

gravações sonoras e o disco em vinil (com versões em 45RPM e 331/3 RPM) teve a qualidade

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de seu registro melhorada. (CROWL, 2009). Em seguida, como apontam Tatiana Bacal e

Santuza Cambraia Naves:

“Quando o disco, o objeto gravado, deslocou a vivência de uma escuta no ato da performance para uma experiência de escuta do disco enquanto ‘obra final’, uma das características consequentes, entre outras, foi o aperfeiçoamento do estúdio enquanto instrumento e o disco como obra artística final. Trata-se de um processo que teve início a partir dos anos 60 (...)”. (BACAL E NAVES, 2010, pág. 167)

Em paralelo, os estúdios ganharam equipamentos e tecnologias que permitiram a

ampliação da gravação multipista – em diversos canais –, o som em estéreo e outras tentativas

como o estéreo quadrifônico (uma fracassada versão inicial do que seria a atual reprodução

dos hometheaters em 5.1 canais). Após o lançamento comercial da fita K-7 como suporte, a

indústria da música passou por uma nova revolução com a chegada do Compact Disc (CD),

em meados dos anos 80. Pouco mais de uma década depois, a popularização do computador

pessoal e da internet e o desenvolvimento do formato de áudio digital conhecido como MP313

provocaram novas e impactantes mudanças em modelos de consumo e culturas de escuta

musical.

Por outro lado, a disposição básica de um estúdio de gravação não mudou muito

desde a década 60 – a descontar, é lógico, o avanço da tecnologia. De acordo com o produtor

e pesquisador Ticiano Paludo:

Ainda hoje, o “setup básico padrão” (relação de equipamentos e periféricos) utilizado em estúdios de produção e gravação permanece o mesmo daquela época. Basicamente, é constituído pelas instalações físicas (sala de gravação e técnica) e possui uma mesa de som, monitores balanceados (G), cabos, microfones, amplificadores e dispositivos de manipulação de som, como equalizadores. Os custos para a montagem de um estúdio até a introdução da informática nesse processo (o que vai ocorrer de forma massiva apenas no início dos anos 2000) eram inacessíveis à maioria das pessoas. (PALUDO, 2010, pág. 148)

Segundo Paludo, a partir dos anos 70, alguns músicos e produtores começaram a

montar os seus próprios estúdios em suas casas ou em unidades móveis a fim de gozarem de

maior liberdade criativa sem a preocupação dos altos honorários dos estúdios tradicionais.

13 De acordo com João Leão e David Nakano, até 2009, as redes P2P – “apontadas como principal fonte de downloads ilegais de músicas” – armazenavam mais de 885 milhões de arquivos em MP3 a partir de programas SoulSeek, eMule, Bit Torrenet e do pioneiro Napster. Por outro lado, a indústria fonográfica entrou no negócio virtual, porém, com um abissal déficit de oferta: “cerca de 6 milhões de faixas em sites licenciados para venda online de música digital” (2009). Em paralelo, as vendas de música em suportes físicos despencaram vertiginosamente. A descontar o caráter ilegal das operações de troca de arquivos, os números comprovam a força do MP3.

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Mas é somente a partir do início da última década que os estúdios caseiros (os chamados

home studios) se tornaram uma realidade acessível a um custo relativamente baixo, sendo o

computador – aditivado com softwares de edição – o próprio equipamento de gravação.

Em Plugged’ In: Tecnology and Popular Music (2001), Paul Théberge destaca

“(...) a evolução das técnicas e tecnologias dos estúdios de gravação; o crescimento das novas

tecnologias para instrumento; e a evolução do consumo de dispositivos e formatos de áudio,

incluindo as recentes inovações em formatos digitais para a distribuição musical na Internet”,

como aspectos presentes na música popular massiva contemporânea.

No recém-lançado Dez Anos a Mil – Música em Tempos de Internet (2011),

Micael Herschmann e Marcelo Kischinhevsky apontam que “As Novas Tecnologias de

Informação e Comunicação (NTICs) baratearam o custo de pré-produção e produção,

acoplando instrumentos eletrônicos a computadores e softwares de edição. Estúdios caseiros

simplificaram o registro do trabalho de artistas (...)”.

Com a chance de registrar suas criações musicais apenas com um computador, o

compositor passou a poder gravar sem os altos custos dos estúdios tradicionais. Embora o

chamado home studio (estúdios caseiros) já fosse uma realidade desde os anos 90, foi na

virada para a década seguinte que seus custos se tornaram efetivamente acessíveis e sua

operação simplificada e resumida ao manuseio de softwares de edição sonora, como

Cakewalk, ACID, Soundforge, Logic e Pro-Tools, entre outros – todos popularizados em

parte via cópias piratas ou downloads ilegais.

Em paralelo, microfones e placas de áudio que captam o som com qualidade

superior às genéricas previamente instaladas nos computadores também tiveram seus custos

reduzidos e tornaram-se mais acessíveis ao público em geral, como descreve Paludo:

Placas de som profissionais (como a “Audiophile 2496” do fabricante M-Audio – ligada internamente no computador através da conexão padrão PCI, ou outros modelos mais atuais como a “Fast Track Pro” – do mesmo fabricante, conectada através da porta USB) possibilitaram que produtores musicais obtivessem resultados profissionais dentro de suas casas. Aliando a utilização dessas placas de áudio profissionais a programas de computador que emulam com perfeição as mesas de gravação, gravadores multipista e microfones semi-profissionais ou profissionais, o produtor passa a dispor de um estúdio com grande poder de atuação, disponível sem limite de horas (o custo do aluguel por hora desaparece), no conforto do seu lar (PALUDO, 2010, pág. 151)

Vale salientar que não se procura comparar aqui aspectos como a fidelidade

sonora ou a qualidade da gravação em relação às (possivelmente) obtidas num estúdio

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tradicional: o fato é que, independente de supostas diferenças técnicas, o acesso a ferramentas

e processos de gravação e edição musical tornou-se mais acessível que em qualquer outro

momento na histórica da música. Como essa música digital passou a ser distribuída é o que

veremos a seguir.

Liberação da emissão e circulação musical

Ao propor uma revisão da obra Cyberdemocracie: Essai de Philosophie Politique,

de Pierre Lèvy (2002), lançada recentemente sob o título O Futuro da Internet – Em direção a

uma ciberdemocracia planetária (Paulus, 2011), o pesquisador André Lemos retoma o

conceito de cibercultura:

“A cibercultura é o conjunto tecnocultural emergente no final do século XX impulsionado pela sociabilidade pós-moderna em sinergia com a microinformática e o surgimento das redes telemáticas mundiais; uma forma sociocultural que modifica hábitos sociais, práticas de consumo cultural, ritmos de produção e distribuição da informação, criando novas relações no trabalho e no lazer, novas formas de sociabilidade e de comunicação social”. (LEMOS E LÉVI, 2011, pág. 21-22)

Ambos os autores delinearam outro conceito-chave para a compreensão do

impacto que as novas tecnologias comunicacionais passaram a exercer no mundo

contemporâneo: a chamada liberação do pólo de emissão. Em resumo, o termo designa a

inédita ruptura com modelos tradicionais de produção e emissão de informação. A partir de

então, o próprio indivíduo conquistou a chance de operar os processos.

Amplamente conhecido nos estudos de cibercultura, o conceito estabelece que: “A

conexão generalizada traz uma nova configuração comunicacional onde o fator principal é a

inédita liberação do pólo da emissão – chats, fóruns, e-mail, listas, blogs, páginas pessoais – o

excesso, depois de séculos dominado pelo exercido controle sobre a emissão pelos mass

media”. (LEMOS, 2003, pág 15).

Como indica Pierre Lévy, “o ciberespaço permite uma libertação da expressão

pública (...). As distinções de status entre produtores, consumidores, críticos, editores e

gestores da midiateca se apagam em proveito de uma série contínua de intervenções onde

cada um pode desempenhar o papel que desejar”. (LEMOS E LÉVI, 2011, págs. 10-11).

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De modo complementar, o conceito de convergência midiática, cunhado por

Henry Jenkins, é utilizado pelos pesquisadores Simone Pereira de Sá e Jefferson Chagas para

mostrar:

“(...) a popularização de aparelhos e softwares de edição de sons e imagens (computadores, máquinas digitais de fotografia e vídeo etc.) associada às redes virtuais são um exemplo poderoso da mudança promovida pela convergência. Isso acontece não apenas por favorecer uma compatibilidade técnica entre aparelhos e linguagens, mas principalmente por possibilitarem que um número cada vez mais expressivo de pessoas se encontrem na rede para constituir comunidades de gosto e articular seus próprios circuitos midiáticos”. (SÁ E CHAGAS, 2011, pg 105).

Mas há controvérsias no tocante à valoração. Autores com o Andrew Keen, de O

Culto do Amador (2009), e o documentário Press Pause Play (2011), de David Dworsky e

Victor Köhler, discutem se o atual momento – de liberação da emissão e convergência

midiática – estaria democratizando o acesso à produção cultural ou amplificando a

banalidade, uma vez que, como diz o músico Moby14 no vídeo: “Em tempos passados, há 30,

40, 50 anos atrás, as pessoas não faziam coisas. Elas iam ao fotógrafo, compravam discos e

havia os artistas profissionais. E agora, todo mundo é fotografo, todo mundo faz filmes, todo

mundo é escritor, todo mundo é músico”.

E embora Pierre Lévy aponte que “a nova comunicação pública é polarizada por

pessoas que fornecem, ao mesmo tempo, os conteúdos, a crítica, a filtragem e se organizem,

elas mesmas, em redes de troca e colaboração”, o enquadramento pelas mídias tradicionais

(jornais, revistas, emissões de rádio ou de televisão” continua a atingir boa parte da

população. Afinal, como destaca André Lemos ao citar os número da InternetWordStats, o

mundo tinha, em 2008, 1,5 bilhões de usuários de internet, dos quais cerca de 45 milhões

eram brasileiros – números expressivos, mas que representam, respectivamente, menos de ¼

do total das populações citadas.

No entanto, o presente artigo enfoca novas possibilidades de produção e

circulação musical permitida pela atual configuração entre tecnologia e processos midiáticos.

Assim, sem a necessidade dos suportes físicos tradicionais, como o LP e o CD, as canções

registradas em estúdios caseiros ou semi-profissionais em formato digital passam a circular a

partir de novas ferramentas comunicacionais popularizadas no ambiente virtual. Sites de

compartilhamento como 4Shared e Rapidshare e plataformas configuradas especificamente

14 Moby e o nome artístico do norte-americano Richard Melville Hall. Com uma discografia de dez álbuns que transitam ente o rock e vertentes da música eletrônica, ele se tornou um dos mais influentes músicos dos anos 90.

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para o consumo musical, como LastFM, Tramavirtual e MySpace, armazenam e permitem o

acesso direto e gratuito aos arquivos musicais digitais.

A partir dessa configuração, surgiram os primeiros netlabels e as obras de músicos

e disponibilizadas gratuitamente em sítios e plataformas musicais na internet.

Gravar em casa, lançar no mundo – discografias virtuais e netlabels

O exemplo de músicos e compositores que gravaram seus discos em home studio

não é necessariamente uma novidade na história da música. Ao deixar os Beatles, em 1970,

Paul McCartney se trancafiou em sua casa no interior da Inglaterra, onde compôs e gravou o

disco McCartney I (EMI, 1970). No Brasil, Antônio Adolfo trouxe a autoreflexão já no título,

com seu disco Feito em Casa15 (independente, 1977). Para muitos, o disco de Adolfo marca o

início da produção independente no Brasil. De acordo com texto do músico Félix Baigon, que

assina a coluna musical no blog do jornalista Ricardo Noblat16, todo o processo foi feito por

Adolfo: “Desde a confecção da capa até a montagem e embalagem. As negociações do álbum

eram feitas diretamente com os lojistas, em seus shows e em viagens por quase todo o Brasil”.

Na virada dos anos 70 para os anos 80, nomes como Peter Gabriel, Mike Oldfield,

Brian Eno e Kraftwerk também conceberam obras musicais inteiramente gravadas em seus

estúdios próprios. Entretanto, o momento atual permite configurações mais abrangentes e tem

no acesso o seu principal diferencial. O controle do processo de gravação pode ocorrer até

num computador pessoal de configuração básica. Diferente de outras épocas, quando era

preciso um considerável investimento financeiro para gravar uma fita ou CD-demo17 e assim

sair dos ensaios para iniciar uma carreira musical de fato, atualmente; o músico iniciante, o

trovador autodidata ou DJ disposto a registrar trilhas e canções podem produzir suas obras

sem sair de casa e a custos mínimos.

Em seguida, com as músicas finalizadas no formato MP3, basta disponibilizá-las

em sites de compartilhamento e plataformas musicais e eis uma obra musical acabada,

15 O pianista Antônio Adolfo gravou seu disco num estúdio caseiro e preparou artesanalmente a capa do vinil, que teve tiragem inicial de 500 cópias. Em 2005, a gravadora Kuarup Discos relançou o álbum no formato CD. 16 http://oglobo.globo.com/pais/noblat. Texto publicado em 05 de fevereiro de 2010. Acessado em 09 de junho de 2011. 17 Fita-demo ou CD-demo são corruptelas para Fita-demonstração ou CD-demonstração. O termo é utilizado para designar as gravações iniciais de composições realizadas por um músico ou por uma banda. Até o final dos anos 90, era o modo como artistas independentes apresentavam suas gravações ás gravadoras na busca de um contrato.

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conceituada e disponível para apreciação. Com isso, durante os últimos anos, uma produção

musical exclusivamente virtual começou a aparecer por toda a internet.

A indústria fonográfica, por seu lado, percebeu as novas oportunidades que se

abriram para o mercado com a música digital e as novas tecnologias comunicacionais. Por

isso, curiosamente, ao navegar pelas páginas do LastFM ou do MySpace, é possível encontrar

páginas de estrelas consagradas da música nacional e internacional, como Iron Maiden e

Marisa Monte, e também de anônimos como o sueco Henrik José e o brasileiro Victor

Toscano.

Porém, como apontam Keith Nigus e Michael Pickering (2007), não basta ter uma

obra disponível: é preciso saber endereçá-la a seu suposto público ou mercado. Talvez esteja

aí a gênese dos chamados netlabels. Eles existem exclusivamente na internet e possuem seu

cast formado por obras disponíveis gratuitamente e em MP3. Em sua esmagadora maioria sem

fins lucrativos, eles parecem servir como organizador de conteúdo e também por inferirem

uma assinatura (capital simbólico) para músicos, bandas e compositores que desejam ver suas

produções associadas a uma “grife” virtual e assim aumentar as chances de circulação.

Basta uma busca no Google para encontrar centenas de selos virtuais com origem

em diversos países do mundo e que agregam diferentes gêneros musicais. Entre eles, estão o

23 Seconds18, Solidalab19 e Tranzmitter20, além de endereços de busca especializados em

netlabels, como o www.archive.org/details/netlabels e www.netlabelindex.com.

No Brasil é possível encontrar selos como Free Records21, Sinewave22 e

psicotropicodelia23. Esse último estampa em sua página inicial a marca dos 100 mil

downloads. Outra referência nacional é o Senhor F Virtual, que possui mais de 100

lançamentos, entre eles, um single e uma coletânea de Victor Toscano, de quem falaremos

mais a seguir.

O modo como músicos e selos virtuais utilizam tecnologias comunicacionais e

organizam o acesso à informação que desejam compartilhar abertamente em rede constitui-se,

portanto, campo aberto para investigações neste particular contexto agora presente na música

popular massiva. A seguir, a partir do modos operandi relativo à produção, distribuição e

18 www.23seconds.org 19 www.solidalab.com 20 www.tranzmitternetlabel.com 21 www.freerecords.com.br 22 sinewave.com.br 23 www.psicotropicodelia.com.br

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circulação musical empregados por esses dois exemplos (Victor Toscano e Senhor F Virtual),

pretende-se identificar questões e tensionamentos resultantes desse novo modelo quando

comparados ao modelo tradicional.

Dois estudos de caso: Victor Toscano e Senhor F Virtual

Em 1999, o jornalista gaúcho Fernando Rosa lançou na internet uma “edição

experimental” da revista eletrônica Senhor F. Quase dez anos depois, o site tornou-se

referência nacional sobre o rock brasileiro e o cenário da música independente. A reportagem

publicada na edição de 06 de dezembro de 2008 do jornal Gazeta de Alagoas trouxe o

seguinte texto sobre o endereço eletrônico:

“Com uma média de 50 mil acessos por mês, o Senhor F se tornou endereço obrigatório quando o assunto é rock and roll. A revista tem seções temáticas, matérias especiais, artigos, curiosidades, resenhas de shows e discos e links para os outros tentáculos da ‘marca’ Senhor F. Num processo natural, a revista cresceu e, hoje, além de uma agência de notícias atualizada diariamente, incorpora programas de rádio, selos musicais (Senhor F Virtual e Senhor F Discos) e festivais de rock (Noites Senhor F, Senhor Festival e El Mapa de Todos). (GAZETA DE ALAGOAS, 2008, pág. B1)

Autointitulado uma “agência de notícias”, o site vai além do conteúdo informativo

e desde a sua gênese buscou atuar noutras frentes produtivas do rock independente brasileiro.

Na mesma entrevista, Fernando Rosa reafirma sua posição: “Eu acho que a gente cumpriu um

papel fundamental no sentido de fortalecer as cenas independentes. A gente sempre apostou

em fortalecer blogs e cenas regionais”.

A partir de 2003, o site iniciou uma publicação mensal de uma parada com

músicas disponíveis para downloads em MP3 de nomes emergentes ou completamente

desconhecidos do cenário. Era o início do que mais tarde seria transformado no selo Senhor F

Virtual, inaugurado em janeiro de 2005, com o lançamento do EP Volume Quatro, da banda

catarinense Pipodélica.

Em entrevista ao blog Simplicíssimo24 publicada em 12 de abril de 2005,

Fernando Rosa explicou por que a revista cresceu a ponto de englobar dois selos musicais,

sendo um deles virtual:

24 www.simplicissimo.com.br. Acessada em 09 de junho de 2011.

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“A revista é um veículo voltado para o rock independente, ou alternativo aos produtos de baixa qualidade cultural que vigora por ai. É natural, então, que as relações da revista sejam com essas bandas, até porque é nelas que reconhecemos criatividade e compromisso com a construção cultural do país. Como já disse, a Senhor F nasceu junto com a maioria dessas bandas, utilizando a internet como forma de divulgação, distribuição e, hoje, comercialização de suas obras. Temos essa profunda identidade, que valorizamos e buscamos desenvolvê-la cada vez mais, do que é exemplo a criação da Agência de Notícia. Dentro dessa mesma perspectiva, criamos o selo Senhor F Discos, em parceria com o Philippe Seabra, da Plebe Rude, e também o Senhor F Virtual, dentro da Agência de Notícias, para lançar singles on line”. (SIMPLICÍSSIMO, 2005)

Até o momento, o selo Senhor F Virtual acumula mais de cem lançamentos de

discos, singles e coletâneas disponibilizados gratuitamente em MP3. Curiosamente, não há

um endereço específico para a página do selo. Para acessá-lo, é preciso entrar na homepage

inicial do Senhor F (www.senhorf.com.br) e clicar no link25 do selo.

Ao clicar no link, chega-se a página do Senhor F Virtual, que possui texto de

apresentação escrito por Flávio Ohno, um dos colaboradores do site:

“A seção Senhor F Virtual tornou-se um dos espaços mais requisitados da Agência de Notícias Senhor F. Alguns milhares de downloads foram feitos dos singles lançados, com grande repercussão junto à cena nacional. Com isso, ganha o leitor de Senhor F, que tem acesso à música de qualidade produzida atualmente no país. E também as bandas que, desta forma, conseguem divulgar sua obra para um universo mais amplo de ouvintes”.

Logo abaixo do texto, todo o catálogo do selo se encontra disponível para

download, com discos, EPs, singles e coletâneas dispostas em ordem cronológica decrescente

de lançamento.

Os lançamentos são divididos em séries. No total, estão disponíveis 62 discos

(entre álbuns completos, EPs ou singles) e naus três lançamentos da série “El Mapa” (com

grupos e músicos de outros países da América Latina), oito da série “Discos Cheios” e ainda

dois volumes da série “Memória Independente” e mais dois da série “Projetos Especiais”.

Em sua maioria, os downloads são feitos a partir de um único link que contém o

seguinte texto: “Baixe aqui o disco integral, com mp3 & arte”. Os links levam a arquivos

musicais compactados nas extensões “zip” ou “rar”.

Ao lado de nomes que emergiram como boas promessas no cenário independente

nacional na época de seus lançamentos, como Vanguart (MT) – que lançou a celebrada

25 www.senhorf.com.br/agencia/main-senhorf-virtual.jsp?codSessao=38

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música Semáforo pelo Senhor F Virtual –, Los Porongas (AC), Volver (PE), Phonopop (DF),

Superguidis (RS) e Beto Só (DF), encontra-se o do pernambucano Victor Toscano.

Pelo Senhor F Virtual, Toscano possui o single Mapa e a coletânea Figura e

Fundo (2003-2008), esse último pela série “Discos Cheios”, com lançamento em dezembro de

2008. O breve texto que apresenta o single Mapa descreve:

“Victor Toscano é de Recife, desde onde lançou para a rede 2 eps e 4 discos-cheios, todos no esquema "lofi". Influenciado por Beatles, Elliott Smith, Camera Obscura, The Delgados e Chico Buarque, entre outros, revela-se um grande compositor. Com belas melodias e poesia verdadeira, ele projeta-se como um dos nomes mais promissores da nova safra de cantores e oompositores (sic) modernos”. (www.senhorf.com.br)

Já para a coletânea Figura e Fundo (2003-2008), que reúne músicas gravadas, mas

não-lançadas em discos anteriores, o Senhor F Virtual traz a seguinte a apresentação:

“O cantor e compositor Victor Toscano é uma das mais gratas surpresas deste ano de poucas novidades verdadeiramente interessantes. Natural de Recife, e longe do “hype”, ele construiu um repertório de raras e belas canções. Quatorze delas, estão reunidas nesta coletânea batizada de ‘Figura e Fundo’, nome de uma das canções do disco”. (www.senhorf.com.br)

O que chama a atenção no caso de Victor Toscano é que o compositor possui uma

extensa discografia exclusivamente virtual e independente do selo Senhor F. Musicalmente,

as canções presentes em seus discos alternam letras em português e em inglês, com arranjos

eminentemente acústicos, a destacar a forte presença de violões, com pianos, baixo e ritmos

ocasionais. Ao classificá-la por gênero, o músico a rotula como Acústico / Alternativo / Indie

na página do MySpace. Já nas palavras-chaves (também nomeadas como ‘tags’) de sua página

no LastFM, Toscano escolheu os termps Indie / Sing-Songwriter / Alternative / Brasil / Folk-

pop.

De volta ao seu site oficial (www.victortoscano.com), a disposição e

endereçamento das seções remetem a uma típica página de artista musical com links

principais numa coluna horizontal superior com acesso para Bio, Discografia, Download e

Contato. Na coluna lateral à direita, há ícones numa coluna vertical para acesso das páginas

do compositor no sites Facebook, Twitter, YouTube, Wordpress, Flickr, Last FM e MySpace.

Ao clicar em “Bio”, o texto de Júlia de Adellah apresenta o músico e sua obra:

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"E aí fui convidada pelo meu artista favorito a escrever um breve texto biográfico para seu website. Assim começo: Victor nasceu em Recife e, como incontáveis artistas de sua geração, também começou gravando suas coisas no quarto; enlevado por softwares livres de gravação, violões mal timbrados, muita poeira e uma insólita solidão". (www.victortoscano.com/bio)

Convém notar como já no texto introdutório há uma autoreflexão sobre a condição

de o músico gravar “suas coisas no quarto” e com “softwares livres de gravação”. Uma

referência que irá se repetir em praticamente todas as sinopses que apresentam os seus cinco

discos e três EPs lançados até o momento.

Na seção “Discografia”, todos os cinco álbuns e três EPs estão disponíveis para

downloads. As três coletâneas e a sua própria compilação lançada pelo Senhor F Virtual

possuem links que levam às respectivas páginas. Cada álbum possui uma página própria. Os

discos É Mentira26 (2010), Sentindo Cidade27 (2009), Mapa28 (2008) e Actually, I Care29

(2005) possuem capa e contracapa digital no formato jpg30 e ordem das músicas, como os

álbuns tradicionais. Cada link de download leva à página do disco no site de

compartilhamento 4Shared. O álbum Tentativa e Erro31 (2008) possui apenas capa e seu link

'download' também leva à página do 4Shared.

A forma como os três EPs – O Inferno são os Outros que Vivem Dentro de Mim32

(2010), Distraction33 (2007) e Logo Eu34 (2003) – estão disponíveis segue o mesmo padrão,

mas apenas o lançamento de 2010 possui contracapa.

Todos os discos possuem um breve texto descritivo e neles há a predominância de

referência a forma e os meios como qual cada álbum foi gravado. Para o EP Logo Eu, o texto

conta que: “Este é o primeiro registro em áudio de quatro canções feitas entre 2000 e 2003.

Gravado todo em uma hora de estúdio numa manhã de quarta-feira, no bairro de Boa Viagem

em Recife. Durante a música Logo Eu é possível escutar marteladas de uma obra acontecendo

no andar superior”.

26 www.4shared.com/file/187675716/734cdca6/_Mentira__2010__-_Victor_Tosca.html 27 www.4shared.com/account/file/l3KHvXJs/Sentindo_Cidade__2009__-_Victo.html 28 www.4shared.com/file/_WtJHKKf/Mapa__2008__-_Victor_Toscano.html 29 www.4shared.com/file/PU3_YK7j/Actually_I_Care__2005__-_Victo.html 30 Jpg é uma sigla para Joint Photographic Experts Group. A extensão indica a compressão mais popular para arquivos digitais de fotos e imagens. 31 www.4shared.com/file/189217774/25ff1e6c/Tentativa_e_Erro__2008__-_Vict.html 32 www.4shared.com/file/jmx-Q9xv/O_Inferno_So_Os_Outros_Que_Viv.html 33 www.4shared.com/file/199889226/30b37f54/Distraction__2007__-_Victor_To.html 34 www.4shared.com/file/200551310/c1df7e28/Wednesday_Morning__2003__-_Vic.html

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Para Tentativa e Erro, a sinopse destaca que “o título do disco é uma referência

direta ao processo de gravação do mesmo” e continua:

“Gravado no recém montado HomeStudio dentro do quarto de Victor no início do ano de 2008. ‘Tentativa e Erro’ é um disco radicalmente sincero, com 11 canções gravadas no período de uma semana entre experimentações com microfones, teclado, violões. Enfim, é um disco que fala de muitas coisas, mas que parece se unir pelo simples ‘aprender a gravar’”.

Neste caso, a autoreflexão sobre o processo de gravação encontra-se presente até

mesmo no título da obra.

O texto para o disco Sentindo Cidade é encerrado com a frase: “Este disco foi

gravado em janeiro de 2009 inteiramente no quarto”. Por fim, para o último lançamento do

recifense, É Mentira, a sinopse explica: “Seguindo a tradição dos demais discos, Victor toca

todos os instrumentos. Há um leve salto qualitativo no registro do áudio em relação ao disco

anterior, também no esquema lo-fi35”.

Considerações finais

Entre diversos aspectos a serem considerados na radical e contínua transformação

por quais processos de produção e consumo de música têm passado, o presente artigo enfoca a

música disponível a partir de novas dinâmicas de criação e circulação. Ao tempo que geram

lógicas próprias, elas dialogam com a tradição e preenchem brechas presentes em mercados

hegemônicos.

Nos estudos de caso abordados, atenta-se para questões e problemáticas que

surgem a partir desta configuração relativamente recente no modo de conceber e endereçar

uma produção musical.

De início, no exercício de identificar o que permanece e se transforma neste

recente modelo, nota-se que a noção de álbum, com os aspectos que o caracterizam, como

capa, arte gráfica, ordem e duração das músicas foi preservada na absoluta maioria dos discos

encontrados no Senhor F Virtual – como observado com mais detalhes no caso de Victor

Toscano que, por outro lado, não tenha links para agenda ou shows em seu site oficial. Ou

seja, ele grava canções e lança discos, mas não há menções a apresentações ao vivo.

35 Lo-fi é a abreviatura para Low-Fidelity (“Baixa-fidelidade”) e descreve uma gravação de som que contém ruídos com uma baixa freqüência de resposta.

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Noutro exemplo, o Senhor F possui um selo nos moldes tradicionais, o Senhor F

Discos36 que, diferente do equivalente virtual, prensa discos físicos em CD com tiragem

media de mil cópias. Até hoje, o Senhor F Discos acumula 14 lançamentos em CD de artistas

musicais, alguns deles, como Beto Só, Volver, Superguidis e Los Porongas também figuram

com álbuns, singles ou EPs no selo virtual. O curioso é que todos os discos prensados pelo

Senhor F Discos estão disponíveis para download e com arquivos em MP3 e em JPG, que

reproduzem capas e encartes das versões físicas.

No caso específico do Senhor F Virtual ocorreu o contrário. Alguns discos

lançados pelo netlabel passaram a existir em versão física, como os EPs Realidade

Aumentada, da banda Tape Disaster. Há inclusive um caso curioso, dos gaúchos GRU, que

tiveram o link de seu disco Kitchen Door retirado do site por que “o artista assinou contrato

com um selo”. Mesmo sem link para download, o texto referente ao GRU continua na página

do Senhor F.

Bandas como Laranja Freak, Volver, Snoozer e os grupos de países latino-

americanos como Turbopotamos (Peru) e Austin TV (México) já tiveram discos lançados no

formato físico, mas recorreram ao selo virtual para novos lançamentos. Em outros casos,

como nos singles dos grupos Martiataka, StereoScope e Superguidis, o lançamento virtual

serviu como aperitivo para o lançamento futuro de discos físicos.

Contudo, há outra contradição no tocante à circulação. Percebe-se que, mesmo

com a essência e existência exclusivamente virtual, o selo não explora outras ferramentas de

comunicação comuns ao ambiente, como redes sociais e plataformas musicais. A própria

estrutura visual do selo limita-se a uma única página-catálogo e não há qualquer outra forma

de comunicação ou interação com os usuários do site.

Noções de copyright passam à margem dos netlabels e das discografias virtuais.

Selos e artistas não estabelecem contratos formais. No circuito onde não se paga para ter

acesso a músicas e álbuns em MP3, a questão dos Direitos Autorais é vista com indiferença.

Se não no discurso, certamente na prática. Sejam trilhas eletrônicas ou baladas ao violão, não

há referência a registro ou edição das músicas. Até as licenças Creative Commons37 podem

ser ignoradas. Disponível de modo gratuito, as músicas de Victor Toscano e outras milhões

36 www.senhorf.com.br/agencia/main-senhorf-discos.jsp?codSessao=39 37 Creative Commons é um conjunto de licenças de copyright criada em 2001 por uma organização norte-americana destinada a permitir a cópia e compartilhamento de obras artísticas com menos restrições que o tradicional todos direitos reservados.

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que formam o vasto ambiente musical virtual – seja no MySpace, Last FM, blogs pessoais ou

netlabels – tem sua autoria atestada apenas pelo nome que assina a obra.

Como aponta Simone Sá (2010), exemplos equivalentes também geram tensões

no lado mais tradicional da indústria fonográfica, como quando o Radiohead deu aos fãs a

chance de pagar o quanto queriam – ou até não pagarem – para obter In Rainbows38 numa

versão digital encontrada no site do disco. Ou como os ingleses do Artic Monkeys, que

mostram as músicas inicialmente como termômetro de receptividade.

“A música digital ainda tem 95% do seu uso na ilegalidade”. É o que indica Nadja

Vladi em artigo recém-publicado (2011). Um complemento à assertiva de Simon Frith,

quando afirma que o negócio que é marcado pelo fracasso de 90% dos seus produtos.

Destinados ao sucesso ou a fracasso, eles estão aí. Álbuns concebidos e

formatados num quarto ou músicas gravadas em estúdios caseiros, eles circulam por um

espaço ciberdemocrático, como definem André Lemos e Pierre Levy. Espaço propulsor de

novas dinâmicas entre processos comunicacionais e práticas criativas. Essencialmente

intercambiáveis, recombinantes e a multiplicar diálogos, convergências e tensionamentos na

música popular massiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACAL, Tatiana; NAVES, Santuza Cambraia. Inventando Tecnologias e Produzindo Sons: Relações Estabelecidas entre Produtores Sonoros e Tecnologias de Criação. In: SÁ, Simone Pereira de (org.). Rumos da Cultura da Música – Negócios, Estéticas, Linguagens e Audibilidades. Porto Alegre: Editora Sulina, 2010, pp. 165-188. CARVALHO, Alice Tomaz de e RIOS, Riverson. O MP3 e o fim da ditadura do álbum comercial. In: PERPETUO E SILVEIRA (Orgs.) – O futuro da música depois da morte do CD – pp. 49-73. São Paulo, Momento Editorial, 2009. CROWL, Harry. A criação musical erudita e a evolução das mídias: dos antigos 78rpms à era pós-CD. In: PERPETUO E SILVEIRA (Orgs.). O futuro da música depois da morte do CD. pp. 143-158. São Paulo, Momento Editorial, 2009. FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge/Massachusett: Havard University Press, 2006.

GRUPO DE PESQUISA MÍDIA E MÚSICA POPULAR MASSIVA. Disponível em: 38 In Rainbows foi o sétimo álbum lançada pela banda britânica Radiohead. O lançamento oficial ocorreu no dia 10 de outubro de 2007 com uma versão digital do álbum disponibilizada no site. A versão em CD de In Rainbows chegou às lojas no dia 03 de dezembro de 2007, num Box com 02 CDs e 02 LPs em vinil.

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