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Instituto de Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro Pobreza Energética - Complexo do Caju - “Providing adequate, affordable energy is essential for eradicating poverty, improving human welfare, and raising living standard world-wide (World Energy Assessment, 2000) Patrocinadores: Banco Mundial Conselho Mundial de Energia Maio 2005

Complexo do Caju - ANEEL · pobreza deve voltar-se, assim, para a gênese e as formas de manifestação dominantes dessa situação, tendo como pano de fundo a dimensão emancipatória

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Instituto de Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro

Pobreza Energética - Complexo do Caju -

“Providing adequate, affordable energy is essential for eradicating poverty,

improving human welfare, and raising living standard world-wide ”

(World Energy Assessment, 2000)

Patrocinadores: Banco Mundial

Conselho Mundial de Energia

Maio 2005

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EQUIPE Coordenação Geral

Professor Adilson de Oliveira (IE/UFRJ) Redação do Relatório Final

Professor Adilson de Oliveira (IE/UFRJ) Professora Hildete Pereira de Melo (Faculdade de Economia/UFF)

Grupos Focais

Gisélia Franco Potengy Programação Estatística

Professor Alberto Di Sabbato (Faculdade de Economia/UFF)

Redação do Primeiro Relatório Intermediário

Professor Adilson de Oliveira (IE/UFRJ) Professora Lena Lavinas (IE/UFRJ)

Assistentes de Pesquisa

Midihã Ferreira da Silva Marcelo Nicoll Luciana Bacellar (Grupos Focais) Clesirlene de Oliveira (Grupos Focais)

Supervisores

Robert Bacon (Banco Mundial) José Malhães da Silva (Comitê Brasileiro do Conselho Mundial de

Energia) Glória Pina (Conselho Mundial de Energia)

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ÍNDICE

1. Introdução ...............................................................................................5 2. Energia, Pobreza e Exclusão ..................................................................7 Conceituação ................................................................................................7 Pobreza Energética ......................................................................................10 3. Situação Brasileira ................................................................................14 Marginalidade e Pobreza .............................................................................14 Política Energética .....................................................................................17 4. Favelas, Pobreza e Energia...................................................................22 5. Caju: Pobreza e Energia .......................................................................27 Viver no Caju ..............................................................................................27 Linha de Pobreza para o Caju......................................................................30 Perfil dos Responsáveis pelos Domicílios...................................................35 Políticas Sociais...........................................................................................38 Energia no Caju ...........................................................................................40 6. Cidade do Rio de Janeiro: Pobreza e Energia ......................................46 Pobreza Energética nas Favelas Cariocas ...................................................46 Políticas para a Pobreza Energética.............................................................49 7. Conclusão .............................................................................................58 Referências Bibliográficas...........................................................................63 Relação de Siglas........................................................................................ 67 Anexo...........................................................................................................68 I. Metodológico ...........................................................................................68 II. Grupos Focais .........................................................................................71

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TABELAS

Tabela 1- Situação Demográfica - 2001. ........................................................................ 15 Tabela 2 – Situação Social - 2001. ................................................................................. 16 Tabela 3 - População segundo a Cor/Raça (%). ............................................................. 16 Tabela 4 - Distribuição Regional da População. ............................................................ 17 Tabela 5 - Famílias Contempladas com Subsídios (%) ..................................................21 Tabela 6 - População dos Aglomerados Subnormais do Município do RJ - 2000......... 21 Tabela 7 - Escolaridade da População do Município do RJ - 2000................................ 24 Tabela 8 - População com Água Encanada no Município do RJ - 2000. ....................... 24 Tabela 9 - População do Caju e do Município do RJ - 1980-2000. ............................... 24 Tabela 10 - Tipologia dos Domicílios do Caju - 2002.. ................................................ 31 Tabela 11 - Domicílios do Caju por Quintis de Salário Mínimo (%). ........................... 31 Tabela 12 - Caju – Posse de Bens Duráveis - 2002........................................................ 32 Tabela 13 - Brasil e Estado do Rio de Janeiro - Posse de Bens Duráveis - 2002........... 33 Tabela 14 - Caju - Ocupação do Responsável pelo Domicílio (%) - 2002. ................... 37 Tabela 15 - Caju - Domicílios com Programas Sociais - 2002. ..................................... 38 Tabela 16 - Caju - Domicílios segundo Tipos e Programas Sociais - 2002. .................. 39 Tabela 17 - Gastos Efetivos com Energia - 2002. .......................................................... 41 Tabela 18 - Caju - Consumo de Eletricidade - 2002. ..................................................... 42 Tabela 19 - Caju - Gastos com Energia - 2002............................................................... 44 Tabela 20 - Renda Per Capita em Salários Mínimos - 2000. ......................................... 46 Tabela 21 - Caju - Substituição de Posse do Imóvel por Valor do Imóvel ................... 47 Tabela 22- Caju - Acréscimo de Disponibilidade de Crédito ........................................ 47 Tabela 23 – Favelas do Município do RJ – Consumo e Perda de Energia Elétrica. ...... 48 Tabela 24 – Favelas do Município do RJ – Gastos com GLP........................................ 49 Tabela 25 – Caju – Valor Estimado da Conta Elétrica................................................... 53 Tabela 26 – Favelas do Município do RJ – Gastos Atuais e Estimados - (R$/MWh) .. 55 Tabela 27 – Caju – Valor Estimado da Conta Elétrica com Nova Política Tarifária ....55 Tabela 28 – Caju – Arrecadação Tarifária Anual (R$ 1000) ........................................56

FIGURAS Figura 1 – Brasil – Evolução do Consumo Residencial de Combustíveis. .................... 18 Figura 2 – Brasil – Domicílios com acesso à Iluminação Elétrica - 2003...................... 18 Figura 3 - Brasil - Escolas com Suprimento de Energia Elétrica - 2002........................ 19 Figura 4 – Brasil – Evolução do Preço Real Médio do GLP - 1995-2003. .................... 20 Figura 5 – Evolução das Tarifas Reais de Energia Elétrica - 1995-2004....................... 20 Figura 6 – Caju – Sexo do Responsável pelo Domicílio - 2002. ................................... 35 Figura 7 – Caju – Cor/Raça do Responsável pelo Domicílio - 2002. ............................ 36 Figura 8 – Caju – Idade do Responsável pelo Domicílio - 2002.................................... 36 Figura 9 – Caju – Escolaridade do Responsável pelo Domicílio - 2002........................ 37 Figura 10 – Caju – Efeito do ValeGás sobre o Gasto com Energia - 2002. ................... 45

QUADRO Quadro 1 - Tipologia de Domicílios .............................................................................. 31

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1. Introdução

A crise econômica relegou a questão da distribuição de renda a segundo plano. Objeto de forte debate na América Latina, e especialmente no Brasil nos anos 1960 e 1970, esse tema foi revisitado na última década, desta vez focalizando a questão da pobreza e da exclusão social.

O fenômeno da pobreza tem sido tradicionalmente mensurado com base na renda do indivíduo. Porém, mais recentemente, o debate sobre a pobreza evoluiu para além da carência de renda. As condições de acesso do indivíduo aos direitos da cidadania são dimensões importantes da situação de pobreza, destacando-se entre esses direitos o acesso ao suprimento adequado de energia. A impossibilidade prática de exercer os direitos da cidadania permite caracterizar situações de exclusão e vulnerabilidade que funcionam como mecanismos de perpetuação da pobreza. Em outras palavras, a renda por si só não garante o acesso aos direitos da cidadania, e a dificuldade de acesso a esses direitos dificulta o crescimento da renda a patamar superior ao identificado como de pobreza. A forte expansão das favelas nas zonas urbanas brasileiras é um exemplo vivo dessa dinâmica.

Este trabalho tem por objetivo analisar a pobreza energética nas favelas do Rio de Janeiro. Nossa meta é a sugestão de políticas públicas que possam, com o apoio de empresas energéticas, contribuir para a melhoria das condições de vida da população favelada da cidade. O estudo foi feito com um corte metodológico quantitativo e outro qualitativo.

O enfoque quantitativo utilizou dados estatísticos disponíveis no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1, bem como os dados da “Pesquisa Socioeconômica das Comunidades de Baixa Renda do Caju” 2 e dados da concessionária de eletricidade (Light) para identificar o padrão de consumo de energia dos domicílios do Caju. No enfoque qualitativo, procuramos conhecer a opinião dos moradores do Caju quanto a temas relativos ao escopo da pesquisa. Cinco grupos de moradores (lideranças, jovens e empreendedores) foram estruturados para debater a situação socioeconômica e energética do Caju. Os debates foram gravados, transcritos e analisados como informação suplementar aos dados quantitativos disponíveis.

Uma das principais dificuldades à realização de estudos sobre a pobreza é a limitação das fontes de informações no que tange à mensuração do patrimônio e à identificação das estratégias de sobrevivência dos indivíduos. Essa limitação acaba impondo o enfoque da renda monetária como indicador da pobreza. Ocorre que uma das características da pobreza é a renda errática dos indivíduos, o que torna muito frágeis as análises com base em dados de renda, especialmente quando autodeclarados.

Visando superar esse problema, o presente estudo adotou como proposta metodológica para o desenho da linha de pobreza energética um indicador que combina dados de renda do domicílio com itens relativos a patrimônio e acesso a crédito. Esse conjunto de elementos oferece uma percepção melhor do fluxo de renda com que conta o indivíduo para garantir sua qualidade de vida.

Esse indicador agregado permitiu-nos estruturar o perfil dos moradores do Caju em quatro tipos (A,B,C,D). Os domicílios do tipo D caracterizam-se por renda per capita abaixo da linha tradicional de pobreza utilizada no Brasil, propriedade

1 Censo Demográfico de 2000 e Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNAD). 2 Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Sistema FIRJAN) e Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS).

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imobiliária irrelevante, posse de poucos bens de consumo duráveis e praticamente não acesso a crédito. Os domicílios do tipo A, por outro lado, contrastam com os do tipo D por terem renda per capita próxima de três salários mínimos, propriedade imobiliária significativa, posse de uma cesta de bens de consumo duráveis relevante e razoável acesso ao crédito. Os domicílios dos tipos B e C situam-se em posições intermediárias; os domicílios B, significativamente acima da linha de tradicional de pobreza, e os C, relativamente próximos dessa linha.

O suprimento adequado de energia é consensualmente considerado essencial para melhoria das condições de vida das famílias. Por essa razão, as políticas energéticas da última metade do século XX perseguiram a universalização do acesso às formas modernas de energia. As empresas energéticas, especialmente as concessionárias de energia elétrica, desempenharam papel chave nessa política, tendo se generalizado o uso de subsídios cruzados para manter as tarifas em patamar compatível com a renda dos consumidores de baixa renda.

A partir da década de 1990, o setor energético brasileiro sofreu radical mudança na sua trajetória institucional. Tradicionalmente operado por empresas estatais, em regime de monopólio, boa parcela do setor foi privatizada para dar espaço a um regime competitivo no suprimento de energia.

Como resultado dessa transformação institucional, a política de universalização do acesso às formas modernas de energia foi revista. Os subsídios cruzados, que antes permitiam oferecer tarifas compatíveis com a renda da população pobre, foram reduzidos ou simplesmente extintos, e os programas de extensão das redes de distribuição para os consumidores de baixa renda foram desacelerados ou paralisados. A população de baixa renda tem reagido a essa nova realidade com a inadimplência e o uso de mecanismos informais de acesso ao suprimento de energia. Essa situação criou um círculo vicioso de perdas financeiras para as concessionárias, o qual produz elevação tarifária que, por sua vez, induz a inadimplência e o acesso informal. Urge repensar a política de universalização do acesso às fontes modernas de energia. Nosso estudo é uma contribuição nessa direção.

O próximo capítulo desse relatório faz uma revisão da literatura sobre pobreza e situa o papel da energia na superação desse problema. O terceiro capítulo analisa a questão da pobreza no Brasil e apresenta a evolução da política energética no país. O quarto capítulo apresenta os resultados do estudo de caso (Caju). O quinto capítulo extrapola os resultados obtidos no Caju para o conjunto das comunidades carentes do Rio de Janeiro e oferece alternativas de política para amenizar a situação de pobreza energética dessa população.

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2. Energia, Pobreza e Exclusão

Conceituação 3 Na sua acepção mais imediata, o conceito de pobreza remete à insuficiência de

renda monetária para atender a necessidades essenciais à vida do individuo, especialmente as de caráter fisiológico. Na Inglaterra do século XIX, a pobreza esteve vinculada à situação em que o individuo era incapaz de ingerir uma quantidade mínima diária de calorias (Rowntree, 1901)4. Nesse enfoque, os conceitos de pobreza e de fome são utilizados quase como sinônimos.

Em resposta aos contornos limitados dessa conceituação de pobreza, surgiu a categoria necessidades básicas, que permite entender a pobreza como fenômeno de caráter relativo que não se expressa “(...) apenas em função do nível de renda relativamente baixo disponível. (...) As pessoas são relativamente pobres se não puderem usufruir, plenamente ou suficientemente, de condições de vida (isto é, dietas, amenidades, padrões e serviços) que lhes permitam atuar, participar e comportar-se, tal como seria esperado, na qualidade de membros que são de uma sociedade” (Townsend, 1993)5.

Para Gough (2000), a universalidade e a objetividade da categoria necessidades básicas residem na compreensão de que carências não satisfeitas podem causar sérios danos ao ser humano, comprometendo sua trajetória de vida. Daí decorre a caracterização das necessidades básicas6 como pré-requisito de cunho universal, indispensável à existência dos indivíduos.

Tão importante quanto ter suas necessidades básicas atendidas é, para o individuo, dispor de condições e habilidades que lhe permitam obter os meios necessários para atender a essas necessidades. Para Sen (1992), “não se pode estimar se os recursos econômicos disponíveis são adequados ou não, sem antes considerar as possibilidades reais de ‘converter’ renda e recursos em capacidade de funcionar (agir)”. Nessa leitura, a pobreza é entendida como falta de habilidades (capabilities) para alcançar níveis minimamente aceitáveis de qualidade de vida. O foco do estudo da pobreza deve voltar-se, assim, para a gênese e as formas de manifestação dominantes dessa situação, tendo como pano de fundo a dimensão emancipatória desses processos.

A situação de pobreza pode ser resumidamente caracterizada pelo grau de destituição que sofre o indivíduo (e sua família). Essa destituição compromete sua capacidade de, com a mobilização de seu próprio esforço e dos meios ao seu alcance, auferir renda suficiente para satisfazer suas necessidades cidadãs. Nesse sentido, não se mede a pobreza apenas por um estado de carência material ou de ausência de bem-estar. A pobreza se verifica na ausência de capacidades e meios para agir de modo a alcançar estado de bem-estar compatível com as condições prevalecentes na sociedade.

3 Este texto cita livremente passagens de Lavinas (2003), Pobreza, Desigualdade e Exclusão: contextos atuais, São Paulo, Prefeitura do Município de São Paulo e União Européia, Rede URB-AL 10, 2003. Agradecemos à Secretaria de Relações Internacionais da Prefeitura do Município de São Paulo a autorização para sua utilização neste estudo. 4 Essa concepção prevalece ainda hoje no enfoque em que as necessidades humanas ficam limitadas às da sobrevivência física (alimentação, moradia, vestimenta), desconsiderando o social. 5 A União Européia considera pobres os indivíduos cujos recursos os excluem dos modos de vida, hábitos e atividades normais da sociedade onde vivem. O público alvo das políticas assistenciais compensatórias são os indivíduos cuja renda per capita é inferior a 66,7% da renda mediana disponível. 6 Inclui-se aqui o que se denomina “necessidades intermediárias”, tais como acesso adequado a água e alimentação, moradia, ambiente protegido, educação básica, segurança e proteção na infância.

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A pobreza é, portanto, conseqüência de uma dinâmica socioeconômica que provoca a destituição de capacidades, meios materiais e meios simbólicos, indispensáveis para que os indivíduos se tornem capazes de usufruir plenamente de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Esse déficit de direitos, por sua vez, produz a exclusão e reproduz a pobreza. Em outras palavras, a pobreza não deve ser identificada somente pelas calorias consumidas ou pela renda auferida pelo indivíduo. A renda é apenas uma das medidas para identificar a posição social do pobre7.

O hiato que separa o pobre do padrão mediano expressa, sobretudo, a falta de recursos e capacitações que o exclui da condição cidadã. Nesse sentido, a pobreza deve ser entendida como uma situação social que expressa a ausência de vínculos entre aqueles que são socialmente designados como pobres e os demais membros da sociedade, resultado de uma “inserção precária, instável e débil, que leva à anomia, ao sofrimento e ao isolamento, acentuando ainda mais o fenômeno do não pertencimento” (Lavinas, 2003). Não por acaso, o debate sobre exclusão social vem somar-se ao da pobreza.

Ao contrário da indigência, que se sustenta em critérios objetivos (tais como falta de renda, de moradia e de capital humano), a exclusão implica considerar também aspectos subjetivos, que incluem o sentimento de rejeição, a perda de identidade, a falência dos laços comunitários e sociais. O resultado desse processo é a retração das redes de sociabilidade, com quebra dos mecanismos de solidariedade e de reciprocidade. A exclusão aparece menos como um estado de carência do que como um percurso, uma trajetória, em que à insuficiência de renda e à falta de recursos somam-se desvantagens acumuladas. Ela resulta de processos de de-socialização ocasionados por rupturas, situações de desvalorização social advindas da perda de status social e da redução drástica das oportunidades, em que as chances de re-socialização tendem a ser decrescentes.

A exclusão, tal como a pobreza, nasce como uma categoria do campo da intervenção, pois, sendo uma categoria identitária, visa designar e caracterizar a situação social dos indivíduos que se situam na parte inferior da hierarquia social. Ela tem conotação negativa, pois significa integração deficiente, seja pelo lado do sistema produtivo, seja pelo lado do padrão de consumo. Por essa razão, a noção de exclusão também remete ao fracasso8.

A literatura sugere formas distintas de intervenção política nas situações de pobreza. A vertente economicista privilegia políticas sociais voltadas para a manutenção da renda (safety net, negative income tax, food stamps). A intervenção estatal, nesse caso, é justificada pelo fato de o déficit de renda dos indivíduos gerar disfunções na sua inserção no mercado. A manutenção de uma renda mínima visa corrigir essa imperfeição, assegurando o funcionamento adequado das forças do mercado. No plano metodológico, esse enfoque trabalha com linhas de pobreza (níveis mínimos de renda) que permitam identificar um público-alvo para políticas compensatórias do Estado.

A vertente solidária prefere a adoção de políticas que promovam a coesão social, mantendo um padrão de renda mínimo. O que se procura corrigir, nesse caso, é o vínculo entre a pessoa (família) destituída e sua comunidade, pois tal vínculo debilita

7 É pobre quem se situa abaixo do padrão médio de consumo da sociedade em que a pessoa está inserida. 8 A percepção dessa realidade levou o Observatório Europeu das Políticas Nacionais contra a Exclusão a interpretar esse fenômeno como a negação dos direitos fundamentais do indivíduo. O Conselho da Europa adotou em 1994 a seguinte definição: são excluídos « os grupos de pessoas que se encontram parcial ou integralmente fora do campo de aplicação efetiva dos direitos humanos (Salama & Destremau, 1999). Aqui exclusão é o avesso da cidadania.

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sua inserção social. Essa vertente tem como paradigma a inclusão social, cabendo ao Estado garantir o acesso aos direitos de cidadania.

Para as Nações Unidas, a exclusão deve ser enfrentada nas suas três dimensões: i) a econômica, ditada pela dificuldade em atender as necessidades básicas devido, principalmente, à falta de emprego; ii) a institucional, que se traduz na incapacidade de participar das formas de regulação da vida social; iii) a cultural, que se verifica na dicotomia do conjunto de valores e princípios compartilhados socialmente.

Estivill (2003) classifica as estratégias de combate à pobreza e à exclusão em quatro categorias paradigmáticas: (i) Reprodutora: mantém o indivíduo na situação de pobreza, evitando que o quadro de carências seja agravado; (ii) Paliativa: oferece assistência emergencial; (iii) Preventiva: oferece serviço de saúde, educação e outros; (iv) Emancipatória: pretende aumentar o empowerment e a autonomia dos indivíduos, reduzindo sua vulnerabilidade.

Esse último paradigma tem informado a nova geração de políticas de combate à pobreza. O suprimento das carências da população pobre não é suficiente para garantir aos grupos vulnerabilizados condições mínimas para lutarem por sua sobrevivência e conquista de maior bem-estar. Novas demandas relevantes, fruto do avanço do processo civilizatório, restringem as possibilidades de atuação social dos grupos sociais de baixa renda.

Nesse sentido, é fundamental transitar do enfoque centrado na superação das carências (freedom from want) para uma abordagem que privilegie a liberdade para agir (freedom to act), como propõem Raveaud & Salais (2001). Esse nos parece o enfoque adequado para o quadro urbano brasileiro, no qual a busca por emancipação e autonomia já orienta grande número dos programas de combate à pobreza e à exclusão.

Na luta contra a exclusão, a reforma do sistema de proteção social deve ultrapassar a satisfação das necessidades materiais elementares e pautar-se pelo paradigma da aquisição de habilidades e capacidades requeridas no mundo do trabalho. Tal mudança de paradigma explica-se pelo fato de a nova pobreza ser constituída essencialmente por pessoas disponíveis para o trabalho que, no entanto, não conseguem trabalhar.

O desafio consiste em não limitar as políticas sociais às prioridades definidas pelas urgências da pobreza para só então contemplar dimensões estruturais da exclusão. É preciso forjar uma ação que, simultaneamente, contemple as necessidades relativas às esferas do consumo e do mercado de trabalho, ampliando o espaço da participação cidadã. Essas duas dimensões da exclusão não podem ser dissociadas, devendo ser enfrentadas conjuntamente.

Uma boa ilustração dessa interface são os programas de garantia de renda mínima, cuja implementação, execução e gestão se dão de forma descentralizada, por meio da assinatura de contratos de inserção social firmados entre os beneficiários e as autoridades locais. As modalidades desses programas são bastante diferenciadas no âmbito da União Européia, embora obedeçam a três princípios básicos: multidimensionalidade, participação e parceria. Em Portugal, por exemplo, o programa de rendimento mínimo garantido levou à criação de Comissões Locais de Acompanhamento (CLAs). As CLAS monitoram o processo de inclusão e buscam soluções específicas para cada caso de exclusão, atuando na ótica da multidimensionalidade.

No Brasil, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva mesclou programas de distribuição de serviços in natura (Fome Zero) com programas de transferência de renda para famílias que possam comprovar insuficiência de renda aguda (Bolsa Família). Estima-se que mais de três (3) milhões de famílias estejam sendo

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contempladas por esse programa focalizado, com benefícios mensais em torno de R$ 72,80 para cada família, sujeito a contrapartidas e a critérios de elegibilidade. Tendo privilegiado inicialmente as zonas rurais mais carentes, o programa Bolsa Família vem se estendendo para as áreas urbano-metropolitanas do país.

Ainda é cedo para estimar seu impacto, mas cabe registrar que sua cobertura está muito aquém da demanda. Além disso, oferece um benefício que apenas atenua o hiato de renda que separa os mais destituídos da cidadania. Contando com recursos financeiros limitados, o Bolsa Família restringe-se à implementação de um safety net (mínimo social). Na verdade, ele constitui um “modo de regulação estática da pobreza, que se preocupa mais em preservar a situação da população beneficiada, do que propriamente em retirar os pobres dessa situação” (Lavinas, 2003). Ainda que essas políticas tenham o efeito positivo de reduzir a incidência e a intensidade da pobreza de certos grupos sociais particularmente vulneráveis, esses programas não têm mostrado eficácia na superação da pobreza e da exclusão.

É necessário repensar a política de combate à pobreza e à exclusão, ampliando seu escopo para além das carências materiais. Nesse sentido, é fundamental a identificação dos processos que engendram as trajetórias de empobrecimento e exclusão da vida institucional, trajetórias estas que conduzem à ruptura das redes de sociabilidade. As políticas de combate à pobreza devem ser estruturadas visando eliminar esses processos e, sobretudo, criar condições favoráveis para que trajetórias de inclusão social possam emergir na sociedade. Este projeto procura compreender o papel do setor energético na construção dessas trajetórias.

Pobreza Energética Os seres humanos necessitam de suprimento continuado de energia para sua

sobrevivência. Originalmente, a energia dos músculos foi a força motriz utilizada pelos homens para suprir suas necessidades vitais. O avanço do processo civilizatório permitiu à humanidade incorporar novas fontes de energia (biomassa, solar, hidráulica, eólica, carvão, hidrocarbonetos, nuclear) à sua matriz energética (Oliveira, 1998).

Maiores disponibilidade e diversidade de fontes de suprimento energético permitiram ampliar a satisfação (tanto quantitativa quanto qualitativamente) de ampla gama de necessidades humanas. A preservação de alimentos, o condicionamento do ambiente em condições adequadas para o conforto do indivíduo, o suprimento de água potável, o esgotamento sanitário, a educação, a saúde, o acesso à informação são necessidades que, nos dias atuais, não podem ser satisfeitas sem o suprimento de alguma fonte de energia. As sociedades modernas, especialmente nas zonas urbanas, tornaram-se largamente dependentes de suprimento energético para garantir a qualidade de vida de sua população. A ruptura no fluxo de energia que chega aos lares, ao comércio, à indústria e ao campo tem imediato impacto na vida social, como nós, brasileiros, pudemos vivenciar no ano de 2001 (Oliveira, 2003).

O consumo de energia é geralmente utilizado como proxy para estimar o nível de bem-estar das sociedades modernas. Por essa razão, a pobreza energética é apontada como uma das características centrais da situação de pobreza (WEA, 2000). A escassez no suprimento energético não somente reduz a qualidade de vida dos que a vivenciam como, na prática, limita as oportunidades disponíveis para a superação da situação crônica de insuficiência de renda monetária para cobrir necessidades básicas. Em outras palavras, a dificuldade de acesso ao suprimento de fontes modernas de energia é um dos aspectos determinantes da exclusão social nas economias modernas.

Essa realidade induziu a adoção de política energética orientada para a universalização do acesso ao suprimento energético, na segunda metade do século XX.

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Governos e organismos multilaterais de crédito canalizaram recursos substanciais para o desenvolvimento da infra-estrutura energética com o intuito de aumentar a disponibilidade de energia. Dessa forma, pretendia-se acelerar o processo de desenvolvimento econômico e social.

Como resultado dessa política energética, a conexão da população à infra-estrutura de suprimento de fontes modernas de energia foi universalizada nos países desenvolvidos. Nos países em desenvolvimento, essa política permitiu aumentar rapidamente o número de famílias conectadas às redes de suprimento energético nas zonas urbanas, porém, para a população das zonas rurais, a conexão ainda é uma realidade distante (WEA, 2000). No entanto, a universalização do acesso às fontes modernas de energia permanece sendo o principal desafio enfrentado pelos sistemas energéticos dos países em desenvolvimento.

Apesar do significativo avanço no processo de conexão às redes de suprimento, o problema do acesso à energia não foi plenamente equacionado. De fato, o problema da pobreza energética persiste, mesmo nos países desenvolvidos (DTI/UK, 2001). Contudo, é preciso distinguir entre a situação de pobreza energética enfrentada pelos países desenvolvidos e aquela enfrentada pelos países em desenvolvimento.

Nos primeiros, a pobreza energética se manifesta em bolsões da população, que não alcançam nível de conforto ambiental adequado devido à insuficiência de renda. No caso dos países em desenvolvimento, grande parte da população ainda não está conectada às redes de suprimento de energias modernas, e boa parte da que está conectada não tem condições de arcar com o custo do seu suprimento.

Nessas condições, as famílias pobres, principalmente nas zonas rurais, são induzidas ao consumo de formas tradicionais de energia (basicamente a lenha) e ao uso de mecanismos informais de acesso a fontes modernas de energia, com o apoio de equipamentos de baixa eficiência energética. Na prática, o custo unitário do serviço energético dessas famílias é mais elevado que o das famílias não pobres. Esse custo se expressa, principalmente, sob a forma da coleta de lenha, tarefa geralmente realizada por mulheres e crianças9.

A pobreza energética é definida como a impossibilidade de escolha10 de serviços energéticos (em termos de confiabilidade, qualidade, segurança e proteção ambiental) em condições econômicas que dêem suporte ao desenvolvimento econômico e social das famílias e aos indivíduos (WEA, 2000).

Os problemas provocados pela pobreza energética são importantes também no plano econômico (DTI/UK, 2001). O suprimento energético adequado é determinante para o incremento da produtividade no trabalho, inclusive o trabalho doméstico. O suprimento energético dos domicílios fortalece a posição das mulheres na família e facilita sua entrada no mercado de trabalho. Essa dinâmica gera também condições suficientes para que as crianças das famílias pobres possam dedicar mais tempo à vida escolar, criando condições objetivas para que possam exercer plenamente sua cidadania na vida adulta.

Tradicionalmente, a política energética tem procurado minimizar a pressão dos gastos com energia sobre a renda das famílias pobres por meio da oferta de subsídios 9 É importante notar que a queima tradicional da lenha tem efeitos muito nocivos para a saúde das famílias (Smith, 1993). Essa situação acentua o problema da pobreza, à medida que os problemas pulmonares decorrentes da inalação dos gases resultantes da queima da lenha limitam a capacidade de trabalho dos indivíduos. Esse problema tem exigido significativos gastos em saúde pública nos países em desenvolvimento. 10 As fontes de energia apresentam características diferenciadas em termos de conveniência, acessibilidade, controle, impactos ambientais, eficiência energética e custos. A ampliação da gama de escolha energética das famílias permite aumentar o acesso ao suprimento energético.

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cruzados. Contudo, a liberalização dos mercados energéticos tem dificultado a continuidade desse tipo de política. Premidas pela concorrência, as empresas energéticas têm adotado estratégias de mercado que reduzem as tarifas elevadas dos consumidores de maior renda e, conseqüentemente, diminuem os recursos disponíveis para subsidiar os consumidores de baixa renda.

O aporte de recursos fiscais para subsidiar os consumidores de baixa renda, como ocorre nos países desenvolvidos, poderia equacionar esse problema. No entanto, a situação fiscal da maioria dos países em desenvolvimento (particularmente, os da América Latina) sofreu forte deterioração nas últimas décadas. Os orçamentos governamentais têm pouco espaço para a oferta de recursos fiscais para subsidiar a energia dos consumidores de baixa renda. Conseqüentemente, as tarifas reais de energia para esses grupos sociais têm crescido significativamente nos últimos anos (Barnes & Toman, 2001) e, mesmo quando a renda monetária dos pobres cresce moderadamente, a elevação nos preços dos energéticos vem ocorrendo em ritmo superior ao aumento de renda das populações carentes.

Essa trajetória tarifária tem aumentado a dimensão da pobreza energética nos países em desenvolvimento. A conexão de novos consumidores de baixa renda às redes de distribuição das fontes modernas de energia estancou, e aqueles já conectados a essas redes enfrentam aumentos tarifários reais que reduzem sua renda residual para os demais gastos da família. É importante notar que a literatura sugere que a dificuldade de acesso às infra-estruturas, particularmente às de energia, é ressentida pelos pobres como um elemento do processo de exclusão social (Asian Development Bank, 2001).

Essa situação tem levado a forte incremento da inadimplência e do uso de soluções informais para garantir o acesso ao suprimento energético, com graves conseqüências para a vida das empresas energéticas. Essa realidade sugere que é necessário repensar as políticas públicas orientadas para a erradicação da pobreza energética.

Ao formular políticas de universalização de acesso à energia, é fundamental ter presente que o suprimento energético não garante às comunidades carentes o atendimento de suas demais necessidades essenciais para o exercício da cidadania (alimentação, saúde, educação, trabalho, informação, autonomia). No entanto, o suprimento energético, se convenientemente articulado com outros programas sociais, pode propiciar o processo de desenvolvimento dessas comunidades, por meio da emergência de micro e pequenas empresas que ofereçam bens e serviços adequados às condições socioeconômicas da população de baixa renda (Wasiki & Kimenyi, 2001).

Em suma, a política energética voltada para os grupos carentes da sociedade não deve ficar limitada à conexão às redes de suprimento e à oferta de tarifas sociais. Ela precisa ir além, dando dimensão efetiva ao papel indutor do desenvolvimento local exercido pelo suprimento energético. Nesse sentido, a política de superação da pobreza energética deve ser coordenada com os programas de combate à pobreza e à exclusão social.

As empresas supridoras de energia têm papel estratégico na eliminação da pobreza energética. Tradicionalmente, as empresas têm adotado posição passiva, disponibilizando o suprimento subsidiado de energia para sua clientela de baixa renda, na expectativa de que futuros incrementos na renda dessa população ampliem seu mercado de consumidores não-pobres. Essa política está ultrapassada pela realidade atual dos países em desenvolvimento. A persistência dessa política apenas aumentará o volume da inadimplência e ampliará o uso de soluções informais pelos consumidores de baixa renda para garantir o acesso ao suprimento energético.

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As empresas de energia necessitam desenvolver estratégias ativas que, apoiadas em políticas governamentais, promovam o desenvolvimento econômico das comunidades de baixa renda. Dessa forma, elas não apenas estarão cumprindo com sua responsabilidade social como também estarão ampliando o mercado para seus serviços.

As iniciativas das empresas energéticas podem ocorrer em diversos campos, como, por exemplo:

• a articulação com agências governamentais, visando a formalização das atividades locais e o estímulo do espírito empresarial na comunidade carente;

• a oferta de esquemas tarifários que permitam às famílias pobres e aos pequenos negócios das comunidades carentes enfrentarem situações de insegurança socioeconômica;

• o incentivo ao uso de energia renovável e à eficiência energética como instrumentos de redução dos impactos ambientais das fontes fósseis e de fomento ao empreendedorismo local.

Nesse último campo, cumpre notar que a experiência empírica indica que as famílias pobres tendem a tomar decisões com base nos custos iniciais dos equipamentos consumidores de energia, dando pouca importância ao fluxo posterior de gastos com a energia necessária para obter seus serviços energéticos11.

Esse fato induz as famílias pobres a orientarem suas escolhas para equipamentos de menor custo, ainda que menos eficientes do ponto de vista energético. Desse modo, a decisão de baixo custo no momento da compra ou obtenção (segunda mão) do equipamento revela custo bem mais elevado quando computados os gastos com a compra de energia, durante a vida útil desse aparelho. Essa situação eleva desnecessariamente os gastos energéticos das famílias pobres que, é importante notar, representam uma parcela significativa de sua renda12. A redução da pobreza energética passa, necessariamente, por uma política de eficiência energética voltada para a população de baixa renda.

11 A taxa de desconto utilizada pela população pobre é muito superior à taxa de desconto usada na economia formal. Essa diferença é mais acentuada em países que viveram longo período com inflação elevada, como é o caso do Brasil 12 Como veremos mais à frente, esses gastos chegam a atingir mais de 17% da renda familiar, no caso das famílias indigentes no Brasil.

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3. Situação Brasileira

Marginalidade e Pobreza Lícia Valladares (1991) identifica duas inserções, espacial (moradia) e

ocupacional, como faces indissociáveis do fenômeno da pobreza na sociedade brasileira. Na passagem do século XIX para o século XX, eram considerados pobres o vadio, o morador dos cortiços, os que viviam nas ruas, os que se recusavam a trabalhar. Nas décadas de 1950 e 1960, a pobreza ressurgiu na “massa dos marginalizados, colocados na periferia do sistema econômico na situação do subemprego”. A pobreza é retratada pela expansão dos excedentes populacionais, pelos grupos marginais que não encontram trabalho no setor formal e moderno da economia e que costumam viver nas favelas13.

A pobreza é entendida como uma forma de exclusão: não pertencer à nova classe trabalhadora portadora do projeto de modernidade social. A insuficiência de renda ou o não-atendimento das necessidades básicas não constituem, de imediato, fatores de identificação e delimitação da pobreza. De alguma maneira, a categoria pobreza se constrói com base em uma discriminação (não pertencer), com um registro estigmatizante. Marginalidade e dualidade, duas idéias-força intimamente ligadas à dinâmica do mercado de trabalho nas sociedades periféricas, vão, assim, informar o debate sobre pobreza no Brasil, sob a influência do pensamento cepalino14.

Nessa matriz, que vai permanecer até meados da década de 1970, pobres são aqueles que permanecem no mercado informal, no qual predominam os setores tradicionais e atrasados, à margem do setor moderno da economia e que, por isso mesmo, não conseguem romper a situação de pobreza para adotar os novos valores urbano-industriais das sociedades capitalistas desenvolvidas. Francisco de Oliveira (1975) esclarece o equívoco dessa interpretação, ao indicar que a exclusão não era dada pela forma inadequada, disfuncional da integração produtiva dos trabalhadores, mas pela sua exclusão dos frutos do crescimento econômico: “(…) a expansão capitalista da economia brasileira aprofundou no pós-64 a exclusão que já era uma característica que vinha se firmando sobre as outras e, mais que isso, tornou a exclusão um elemento vital de seu dinamismo”.

A exclusão aparece, assim, como estruturalmente inerente à construção da sociedade brasileira, ao contrário do que ocorre nos EUA e na Europa, onde o “compromisso fordista” garantiu o acesso da classe trabalhadora a níveis de bem-estar social compatíveis com o grau de desenvolvimento econômico. “É ideológico denominar marginalidade o que, de fato, reflete uma situação de tensão entre duas estruturas sociais que se interpenetram. (…) Essa forma de articulação é um traço característico, e não uma patologia” (Castells, 1971).

Enquanto nos países avançados, a exclusão faz sua aparição em meados dos anos 1970, com o desemprego de longo prazo e o aparecimento da categoria dos novos pobres (trabalhadores destituídos de uma identidade e empobrecidos, “underclass” 15), no Brasil, o padrão excludente é constitutivo do modelo de acumulação, em todas as suas fases e não apenas por força da flexibilização e globalização dos mercados. Em

13 Valladares (1991) retoma a contribuição de Kowarick (1975) para recordar que, nesse momento, a marginalidade é reconhecida como inerente ao sistema capitalista e, sobretudo, às sociedades dependentes, que, ao adotarem o modelo da substituição de importações, dão lugar à constituição de um mercado de trabalho dual, formado por dois setores independentes. 14 Ver sobre o assunto Tavares (1975), Singer (1975), Malan & Wells (1975). 15 Expressão cunhada por Wilson W. Julius (1987).

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outras palavras, a pobreza é conseqüência da exclusão. Essa nova compreensão dos determinantes da pobreza faz com que, na segunda

metade da década de 1970, e ao longo da década seguinte, a pobreza passe a ser entendida não como reflexo da exclusão do mercado de trabalho, porém como expressão de certo tipo de vínculo, de uma inserção precária, débil, instável na vida social. Pobre é o trabalhador cuja renda não lhe permite viver dignamente, cujo status de trabalhador é constantemente questionado. Francisco de Oliveira fala do “elo perdido”, vínculo inacabado na construção de uma identidade de classe, em razão da transição entre emprego formal e informal, da entrada e saída do mercado de trabalho. Rupturas que traduzem os agouros de uma cidadania interrompida.

Exclusão e pobreza se constituem, no quadro brasileiro, como duas categorias intimamente associadas, embora distintas. A exclusão exprime não o estar fora, mas o não estar legítima e plenamente integrado na vida cidadã. A exclusão é o oposto da integração social, que é determinada por dois eixos: inserção profissional e inserção nas redes de sociabilidade e reciprocidade. “Na abordagem do setor informal, a referência básica não é mais o subemprego. Acredita-se que, bem ou mal, o dinamismo do mercado informal16 absorve a população (ativa) deixando poucos fora (do mercado de trabalho). A tendência é mais de incluir que de excluir indivíduos e famílias, muito embora o grau de absorção possa variar e gerar baixos rendimentos” (Valladares, 1991).

Atualmente, o Brasil é habitado por pouco mais de 50,4 milhões de famílias, vivendo em cerca de 46,5 milhões de domicílios (Tabela 1). O país vive uma transição demográfica em que se observa ligeiro crescimento da taxa de participação feminina na população total, ao lado da queda na taxa de fecundidade das mulheres 17. A maioria da população é branca (53,4%), porém a parcela de pardos (40,4%) é muito elevada. Pretos (5,6%) mais asiáticos e indígenas compõem o restante da população (Tabela 3).

Tabela 1 – Situação Demográfica – 2001

Domicílios 46.505.346 Famílias 50.465.099 Pessoas 169.369.557 Pessoas por Domicílio 3,64 Pessoas por Família 3,35 Distribuição das Pessoas por Sexo

Masculino 48,68% Feminino 51,32%

Total 100,00% Fonte: PNAD/IBGE, 2001, Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

O Brasil viveu um período de forte crescimento econômico e acentuada urbanização entre 1930 e 1980. O crescimento econômico permitiu substancial elevação na renda per capita da população, sem que, contudo, os benefícios desse crescimento fossem repartidos de forma equilibrada na sociedade (Malan & Wells, 1975). A forte concentração da renda acelerou o processo de urbanização e provocou um processo de favelização nas regiões metropolitanas brasileiras. A partir da década de 1980, o crescimento econômico tem sido medíocre, sem que tenham sido arrefecidos os

16 Aqui entendido, na acepção de Oliveira (1975), de um terciário em grande expansão destinado a prover os serviços necessários ao crescimento do capitalismo. 17 Em 1980, o número médio de pessoas por família era 4,5, segundo o IBGE.

16

processos de urbanização e de concentração da renda. Como resultado dessa dinâmica econômica, a pobreza, um problema fundamentalmente rural até a década de 1980, tornou-se um problema principalmente urbano. A explosiva expansão das favelas, especialmente nas regiões metropolitanas, oferece a melhor evidência desse fenômeno.

A maioria dos estudos brasileiros sobre a pobreza utiliza uma linha de corte baseada nos rendimentos monetários 18. São classificadas como indigentes as famílias cuja renda familiar per capita é inferior a um quarto de salário mínimo mensal e, como pobres, as famílias com renda familiar per capita abaixo de meio salário mínimo mensal. Utilizando essa metodologia, Melo (2004) estima que 14,7% da população brasileira vivem em situação de pobreza e 8,2% na de indigência (Tabela 2) 19. Portanto, cerca de 29% dos brasileiros (23% das famílias) vivem a situação de miséria e pobreza.

Tabela 2 – Situação Social (Milhões) Total Pobres Indigentes Absoluto % Absoluto % Absoluto %

Famílias 50,5 100 7,4 14,7 4,2 8,2 Pessoas 169,4 100 29,2 17,2 19,8 11,7 Masculino 83, 6 100 14,1 16,9 9,7 11,6 Feminino 86,2 100 15,0 17,4 10,0 11,7 Pessoas na família 3,34 3,94 4,76

Fonte: PNAD/IBGE, 2001. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

Não há uma distinção significativa entre homens e mulheres no que se refere à pobreza, apesar de a literatura indicar que as famílias chefiadas por mulheres são mais vulneráveis à pobreza e à indigência (Barros et alii, 2002). Por outro lado, a análise pela raça/cor indica que há uma forte concentração da pobreza e da indigência nas populações parda e preta. Juntas elas representam 61,1% da população pobre e 70,5% da população indigente, oferecendo um sinal claro de que a chaga produzida pelo longo período escravocrata do século XIX ainda não foi removida da sociedade brasileira (Tabela 3)20.

É importante destacar que o analfabetismo é também grave problema entre os pobres e indigentes. Em 2001, cerca de 45% dos indigentes e cerca de 35% dos pobres não tinham qualquer instrução no Brasil. A parcela de crianças que, por viverem as situações de indigência e de pobreza, deixam de freqüentar os bancos escolares é muito elevada. Apesar de não se poder afirmar que a baixa escolaridade seja suficiente para explicar a pobreza, é consensual que a educação é uma dimensão necessária para evitar a perpetuação dessa situação.

Tabela 3 - População - Cor/Raça (%) Total Pobres Indigentes

Brancos 53,4 38,6 29,2 Pretos 5,6 6,9 6,8 Pardos 40,4 54,2 63,7 Outros 0,6 0,3 0,3 Total (milhões) 169,0 29,2 19,8

Fonte: PNAD/IBGE, 2001, Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

18 Essa renda é calculada somando todos os rendimentos dos membros da família. 19 Estimativa feita com base no salário mínimo da época: R$ 180,00. 20 Sobre a questão racial no Brasil, ver Paixão (2003).

17

Por ser o Brasil um país com diferenças regionais marcantes no que se refere ao grau de desenvolvimento econômico, são sensíveis as variações regionais quanto à situação de pobreza da população do país (Tabela ). A indigência encontra-se nitidamente concentrada (64,2%) na região Nordeste, região mais pobre do país. A população indigente é também relativamente elevada na região Norte, onde a parcela da população nessa condição supera a parcela da população regional. Por outro lado, a região Sudeste, apesar de relativamente rica, contém um contingente bastante expressivo de indigentes. É importante notar que as duas regiões com elevada parcela de indigentes são também as que exibem maior parcela de sua população composta por pretos e pardos (cerca de 71%).

A repartição regional da população em situação de pobreza é mais equilibrada entre as regiões. No entanto, é ainda na região Nordeste que se concentra a maior parcela da população brasileira nessa situação (44,1%). A região Sudeste contém cerca de um terço do contingente de pobres do país.

Como resultado da concentração da pobreza e da indigência na região Nordeste, menos da metade da sua população (47,2%) se enquadra na categoria dos não-pobres (renda per capita familiar superior a R$ 90 mensais). O quadro é um pouco mais favorável na região Norte, outra região relativamente pobre do país, porém a população não-pobre é ainda parcela relativamente pequena do total (61,4%). Contrastando com as situações nordestina e nortista, temos as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, onde o contingente dos não-pobres representa 81,6%, 79,5% e 74,3%, respectivamente.

Tabela 4 - Distribuição Regional da População.

Indigentes Pobres Não pobres Total Norte 6,1% 8,1% 5,1% 5,7% Nordeste 64,2% 44,1% 19,8% 28,6% Sudeste 21,4% 31,9% 52,2% 43,5% Sul 8,6% 12,2% 17,6% 15,1% Centro-Oeste 4,3% 7,5% 7,6% 7,0% Total (milhões) 19,8 29,2 115,3 169,4

Fonte: PNAD/IBGE, 2001, Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

Esta breve descrição da pobreza brasileira indica que a questão da indigência é mais intensa nas regiões rurais, contudo, a maioria da população indigente vive nas zonas urbanas, especialmente nas regiões metropolitanas. No entanto, a indigência é um problema fundamentalmente das regiões Nordeste e Norte, onde há forte concentração da população preta e parda. Já a pobreza, apesar de encontrar-se também concentrada nessas duas regiões, é um problema observado em todas as regiões brasileiras, com um grau de intensidade próximo de 20% da população regional.

Política Energética A economia brasileira sofreu radical transformação na segunda metade do século

XX. Até então, ela estava assentada essencialmente na produção agropecuária, vivendo a maior parte de sua população em áreas rurais. O rápido crescimento da atividade industrial induziu o desenvolvimento da infra-estrutura de serviços urbanos, especialmente o suprimento de energias modernas. A oferta desses serviços (inclusive os sociais), associada à oferta de empregos melhor remunerados nas zonas urbanas,

18

induziu a migração massiva da população rural para as cidades brasileiras. Em 2003, cerca de 84% da população do país vivia em zonas urbanas (IBGE, 2003).

A difusão do uso das fontes modernas de energia, em substituição às fontes tradicionais, foi uma constante na política energética brasileira da segunda metade do século passado (Oliveira, 1998). O uso do gás liquefeito do petróleo (GLP) em substituição à lenha foi incentivado com substanciais subsídios cruzados (Figura 1). A difusão do uso da eletricidade pela população carente foi também incentivada por meio de uma política agressiva de conexão dos consumidores às redes de suprimento e tarifas com subsídios cruzados (Figura 2).

Figura 1 – Evolução do Consumo Residencial de Combustíveis

0%

20%

40%

60%

80%

1986 1992 1998 2003

LENHA + CARVÃO VEGETAL OUTOS COMBUSTÍVEIS

Fonte: BEN 2004. Elaboração Própria.

Figura 2 – Domicílios com acesso à Iluminação Elétrica - 2003

85%

90%

95%

100%

Norte Nordeste Centro-Oeste

Sudeste Sul Brasil

Fonte: PNAD/IBGE, 2003. Elaboração Própria.

Apesar de ter sido significativo o avanço na conexão às redes de suprimento de energias modernas 21, estima-se que cerca de 8,5 milhões de brasileiros ainda não estão conectados à rede de suprimento de eletricidade, a maior parte deles nas zonas rurais do Norte e do Nordeste do país. Essa mesma população ainda utiliza a lenha na cocção de

21 A conexão com as redes de suprimento de gás canalizado é ainda incipiente, porém a rede de distribuição de GLP cobre todas as regiões urbanas.

19

seus alimentos 22, cabendo destacar que o uso da lenha como fonte de suprimento energético em ambientes fechados tem reconhecidamente efeitos perversos para a saúde dessa população, particularmente do ponto de vista respiratório (WEA, 2000).

É relevante notar a existência de uma parcela significativa de escolas (Figura 3), inclusive em áreas urbanas, ainda não conectadas à rede de suprimento elétrico. A maior parte dessas escolas está situada nas regiões Norte e Nordeste, onde também está concentrada a população carente brasileira. Essa situação contribui para o fraco desempenho acadêmico das crianças das famílias carentes e acaba por perpetuar a condição de pobreza das comunidades onde essas escolas estão localizadas.

Figura 3 - Brasil - Escolas com Suprimento de Energia Elétrica - 2002

0%

20%

40%

60%

80%

100%

120%

Norte Nordeste Centroeste Sul Sudeste Brasil

Fundamental Médio

Fonte: MEC/INEP, site acessado no dia 4/12/2004, às 12 horas. Elaboração Própria.

A mudança na política econômica ocorrida no Brasil após a promulgação da nova Constituição (1988) induziu a redefinição do papel do Estado no setor energético (Oliveira, 1998). A Petrobrás perdeu o monopólio no suprimento de combustíveis, e a Eletrobrás não mais coordena a atuação das concessionárias de energia elétrica. Os mercados energéticos foram liberalizados, e as empresas energéticas, privadas e públicas, foram compelidas a praticarem preços competitivos na sua oferta de energia.

O ambiente competitivo tornou mais difícil e complexo o uso de subsídios cruzados na implementação de tarifas com objetivos sociais, como ocorria no passado. Ao oferecer subsídios para os consumidores de baixa renda, as empresas energéticas são forçadas a elevar os preços de sua oferta de energia para os demais consumidores, perdendo competitividade vis-à-vis as empresas concorrentes. Mais ainda, a nova política energética induziu o alinhamento dos preços e tarifas dos energéticos aos patamares de preços vigentes no mercado internacional, provocando forte elevação no preço do GLP e nas tarifas reais de energia elétrica (Figuras 4 e 5). Entre 1995 e 2003, a inflação medida pelo IBGE foi muito inferior ao aumento das tarifas de energia, gerando um forte aumento real no custo do suprimento energético das famílias.

22A lenha é consumida essencialmente pela população pobre das zonas rurais e das periferias urbanas, sendo seu consumo elevado em termos percentuais devido, basicamente, à ineficiência energética dos fogões de lenha em uso no Brasil.

20

Figura 4 – Evolução do Preço Real Médio do GLP - 1995-2003

R$ 0,00

R$ 5,00

R$ 10,00

R$ 15,00

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003

Fonte: Ministério de Minas e Energia/ BEN.

Site visitado em 21/01/2005, às 16 horas. Elaboração Própria.

Figura 5 – Evolução das Tarifas Reais de Energia Elétrica - 1995-2004

R$ 0,0

R$ 50,0

R$ 100,0

R$ 150,0

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

Sudeste Brasil

Fonte: ANEEL. Site visitado em 21/01/2005, às 15 horas. Elaboração Própria.

Os efeitos dessa nova situação não tardaram a se manifestar. Como se pode notar na Figura 1, a substituição do consumo de energias tradicionais foi revertido. A inadimplência e o uso de mecanismos informais para acessar o consumo de eletricidade massificaram-se, como mostraremos no caso da comunidade do Caju.

Com o intuito de mitigar o impacto social dessas mudanças, o governo Fernando Henrique Cardoso criou novos mecanismos para subsidiar o suprimento energético das famílias de baixa renda. A política de universalização de tarifas baixas universais para consumos considerados essenciais, adotada na década de 1970, foi substituída pela política de focalização dos subsídios nos grupos sociais de baixa renda, por meio da transferência de renda para as famílias com dificuldades para honrar sua conta energética.

No caso do GLP, foi criado o programa Vale-Gás, que ofereceu um auxílio financeiro para os consumidores capazes de comprovar renda per capita até meio salário mínimo. Esse programa pretendia assistir cerca de nove (9) milhões de pessoas, mais de 50% delas residindo na região nordestina. Para se credenciar ao subsídio, as famílias deviam comprovar déficit de renda, registrando-se no cadastro único de

21

famílias carentes do governo. No caso da eletricidade, a progressividade tarifária (preços mais elevados quanto

maior o consumo) foi limitada aos consumidores que pudessem comprovar carência financeira. Nesse caso, o credenciamento das famílias com direito a tarifas subsidiadas foi delegado às concessionárias, porém sob a supervisão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), órgão regulador do sistema elétrico brasileiro.

Os efeitos dessa mudança na política tarifária do sistema elétrico podem ser notados na tabela abaixo. O número de consumidores contemplados com subsídios foi drasticamente reduzido. E não foi apenas isso. A Aneel identificou uma redução de 34% no número de consumidores credenciados como de baixa renda, em 1997, para apenas 17,2%, em 2001.

Tabela 5 - Famílias Contempladas com Subsídios (%)*

Consumo (KWh/mês) Antes Depois 0 – 30 82% 65%

31 – 100 55% 40% 101 – 200 24% 10%

>200 0% 0% * Antes e depois da nova regulamentação tarifária

Fonte: Boletim DIEESE, nº 206, 1997. A lei 10438 (2002) procurou eliminar as distorções apontadas na Tabela ,

caracterizando toda família com consumo médio até 80 Kwh/mês como de baixa renda. Além desses consumidores, também podem ser enquadrados como consumidores de baixa renda aqueles cujo consumo mensal se situe entre 80 Kwh/mês e 220 KWh/mês, desde que obedecidos os seguintes critérios:

• o responsável pela unidade consumidora ser inscrito no Cadastramento Único de Programas Sociais do Governo;

• a família ter renda per capita máxima equivalente a meio salário mínimo; • essas duas condições serem comprovadas junto à concessionária. Essa nova regulamentação, no caso das tarifas elétricas, tem enfrentado sérias

dificuldades de implementação no caso dos consumidores cujo consumo se situa entre 80 e 220 KWh, devido à dificuldade na implementação do Cadastro Único de Programas Sociais do Governo e à limitação dos recursos disponíveis para compensar os subsídios oferecidos pelas concessionárias de energia elétrica. No que se refere ao Vale-Gás, este foi incorporado ao subsídio oferecido nos programas sociais do governo, no âmbito do programa Bolsa Família.

22

4. Favelas, Pobreza e Energia

O estado do Rio de Janeiro goza de situação privilegiada no cenário nacional. Sede da capital da Colônia, do Império e da República até 1960, o estado abriga a terceira população do país. O PIB per capita fluminense (R$ 10.160,00) é inferior apenas ao do Distrito Federal e ao do estado de São Paulo. No entanto, a estrutura econômica fluminense é extremamente desbalanceada.

O setor de serviços responde por 73,2% da economia regional, enquanto a agropecuária, praticamente inexistente, representa menos de 1% do valor adicionado estadual. Do ponto de vista industrial, o Rio contém um quarto do parque produtivo brasileiro. Essa desmedida terceirização foi atenuada nos anos 1990 pelo fabuloso crescimento da extração de petróleo na Bacia de Campos, no litoral norte do estado (IBGE, 2002). A cidade do Rio de Janeiro é considerada a capital energética do Brasil23. A distribuição de energia elétrica na cidade do Rio é feita pela Light Serviços de Eletricidade SA, e a distribuição de gás natural canalizado, pela Companhia Estadual do Gás (CEG).

O Rio de Janeiro, assim como todas as regiões metropolitanas brasileiras, teve a pobreza reduzida na década de 199024. É importante remarcar, entretanto, que, entre 1999 e 2001, houve uma inflexão nessa tendência, notando-se incremento no número de pobres e indigentes na região (IETS, 2003). Esse fato pode ser explicado pelo processo de desindustrialização regional que o florescimento das atividades petrolíferas não conseguiu atenuar. Essa situação se refletiu em todos os indicadores socioeconômicos fluminenses, com maior evidência na queda na renda domiciliar per capita e no aumento da violência urbana.

A penúria de parte da população carioca há muito vem sendo decodificada a partir das favelas, em uma associação direta entre carência, moradia precária e infra-estrutura deficitária (Valadares, 1991). A população trabalhadora excedente foi excluída do acesso à moradia digna, combinando-se inserção espacial e inserção ocupacional na construção da identidade social do pobre urbano (favelado).

Tradicionalmente, designa-se como favela um complexo habitacional composto por moradias precárias e irregulares, construído fora das normas legais do município. Essa forma de inserção dos pobres na realidade urbana brasileira, e particularmente no Rio de Janeiro, originou-se na célebre reforma urbana de 1904 do prefeito Pereira Passos. Ao rasgar a Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), no centro da cidade do Rio de Janeiro, Pereira Passos expulsou os moradores dos cortiços do Rio português para o morro da Providência, dando origem à primeira favela da cidade. Desde então, esse arranjo habitacional só fez expandir-se na cidade e em todo o País.

Segundo o Código de Obras do município do Rio de Janeiro da década de 1930, a favela é uma “aberração” a ser eliminada. Essa situação justificou sua não inclusão (ou mera referência) nas bases cartográficas da cidade, inviabilizando a construção de novas moradias regulares nas áreas ditas de favela, assim como investimentos na melhoria das existentes. Tal impedimento induziu a construção de “parques proletários”, para onde era transferida a população favelada 25.

Essa proposta, marcada por influências sanitaristas, propiciou a constituição das primeiras comissões de moradores de favela que se insurgiram contra a política de

23 Nela têm sede as principais empresas de energia (Petrobrás, Eletrobrás, Furnas e Eletronuclear). 24 Esta redução foi estimada pela linha de pobreza calculada com base nos rendimentos monetários. 25 Em particular entre os anos de 1947 e 1954.

23

remoção e formularam “uma pauta de direitos sociais, referente a problemas de infra-estrutura de suas localidades” (Burgos, 2003). Entre 1968 e 1975, foram removidas cerca de 100 mil pessoas e destruídas aproximadamente 60 favelas.

Com a chegada de Leonel Brizola ao governo do estado do Rio de Janeiro, no início dos anos 80, foi retomada uma agenda social para as favelas extremamente carentes em matéria de infra-estrutura. No caso da eletricidade, somente 47 das 364 favelas cadastradas dispunham de sistema de iluminação pública (Burgos, 2003). Entre outras iniciativas relevantes (rede de esgoto, coleta de lixo), o governo Brizola desenvolveu um programa de iluminação pública, que foi acompanhado pelo programa Eletrificação de Interesse Social, lançado pela então concessionária estatal dos serviços de distribuição de energia elétrica (Light).

Nos anos 1990, observou-se uma inflexão no enfrentamento da questão favela. Proposta sancionada no Plano Diretor do Município do Rio de Janeiro sugeriu transformar as favelas em bairros populares, respeitando-se suas particularidades em termos de ocupação urbana. Foi lançado um programa inovador (Favela Bairro), com o objetivo de promover a efetiva integração das favelas à cidade, rompendo com a visão segregacionista até então prevalecente.

Nova definição de favela foi registrada: “área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação da terra por população de baixa renda, precariedade da infra-estrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de alinhamento irregular, lotes de forma e tamanhos irregulares e construções não licenciadas, em desconformidade com os padrões legais” (Burgos, 2003). Nessa altura, 40 favelas foram selecionadas para integrar esse programa de urbanização e suprimento de infra-estrutura social, paralelamente à implementação de medidas preliminares voltadas para a regularização fundiária.

É interessante registrar a ênfase dada à dimensão de moradia, caracterizada como de padrão irregular, fora da norma. Essa visão normativa preside a definição utilizada pelo próprio IBGE hoje em dia, quando denomina favela toda “aglomeração subnormal”. Isto é, conjunto de moradias ou área habitacional cujo padrão é déficitário, aquém de uma determinada norma.

No ano de 2000, a população do município do Rio de Janeiro somava 5,9 milhões de pessoas vivendo em 1,8 milhões de domicílios (IBGE, 2000). Comparando os dados demográficos da cidade nos Censos de 1991 e 2000, o Rio de Janeiro cresceu a uma taxa média de 0,74% ao ano, ritmo inferior à média brasileira. Vários bairros perderam população (tais como Copacabana, Tijuca, Méier), porém as favelas do município cresceram mesmo onde a população do bairro diminuiu. Atualmente, a população favelada da cidade do Rio de Janeiro soma cerca de 1,1 milhão de pessoas que habitam 307 mil domicílios (IBGE, 2000). Ou seja, aproximadamente 19% da população (17 % dos domicílios) carioca habita as favelas da cidade.

Muito jovem, um quinto dessa população é constituído por crianças com menos de 10 anos (Tabela ), e outros 10% situam-se na faixa etária dos 10 aos 16 anos. Devido à menor expectativa de vida das famílias faveladas, é notável a sub-representação dos idosos (3,6%) 26, contrastando com a participação desse grupo etário no conjunto da sociedade carioca (8,4%). Esses dados dão suporte à assertiva de que nascer na pobreza significa ter vida curta.

26 Aqui consideradas as pessoas com mais de 65 anos.

24

Tabela 6 - População dos Aglomerados Subnormais Município do RJ - 2000

Aglomerados RJ Até 9 anos 21,5% 15%

10 anos ou mais 78,5% 85% 16 anos ou mais 67,5% 75,1% De 16 a 24 anos 18,2% 15,9% De 25 a 64 anos 45,3% 50,8% De 16 a 64 anos 63,5% 66,7% 65 anos ou mais 3,6% 8,4%

Total 1.095.949 5.857.904 Fonte: Censo Demográfico Brasileiro 2000, IBGE.

Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

A escolaridade é também fator de exclusão da população favelada carioca. Apenas 1% da sua população adulta chegou ao ensino universitário, indicador que contrasta fortemente com o da população total do município (14%). É também muito elevada a proporção (76%) dos que não concluíram o ensino fundamental (menos de 7 anos de estudo). Se nos detivermos na faixa etária 16-64 anos, que corresponde idealmente à população em idade ativa, essa proporção cai para 33%, mas ainda assim é elevada (Tabela ).

Tabela 7 - Escolaridade da População do Município do RJ - 2000 16-24 25-64 16-64 Todas RJ Aglom. RJ Aglom. RJ Aglom. RJ Aglom.

Até 3 e alf. Adult. 7% 14% 12% 28% 11% 24% 13% 44% De 4 a 7 24% 42% 24% 39% 24% 40% 24% 32% De 8 a 11 57% 42% 41% 30% 45% 33% 33% 22% Mais de 12 12% 1% 22% 2% 20% 2% 14% 1%

Fonte: Censo Demográfico Brasileiro 2000, IBGE. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

No que tange a oferta de serviços públicos elementares, observa-se na Tabela ,

que praticamente todo o universo das favelas do Rio de Janeiro dispõe de água encanada, coleta de lixo e suprimento elétrico. Dessa forma, a provisão desses serviços não pode ser interpretada como um fator discriminante das comunidades faveladas, do ponto de vista da conexão às redes de suprimento27.

Tabela 8 - População com Água Encanada no Município do RJ - 2000

Água Luz Saneamento Lixo

RJ 99,10% 99,50% 93,50% 98,50% Aglomerados 97,90% 99,90% 83,20% 96,70%

Fonte: Censo Demográfico Brasileiro 2000, IBGE. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

27 No entanto, muito há que se dizer quanto à diferenciação na qualidade dos serviços prestados.

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Não causa propriamente surpresa identificar taxas de desemprego elevadas (acima das registradas para o conjunto da área metropolitana) na população favelada. Porém, é preocupante o nível muito elevado de pessoas na idade ativa que informam estar em busca de emprego. A parcela de desempregados com idade superior a 16 anos situa-se em torno de 30%, sendo particularmente elevada entre os jovens que chegam ao mercado de trabalho (aproximadamente 40%). Esses números denotam um quadro de insegurança socioeconômica acentuada, que sugere ser a favela o destino daqueles que vivem uma situação de precariedade no emprego (IETS, abril de 2002).

A década de 1980 marca uma ruptura no enfoque com que é tratada a questão da infra-estrutura energética nas favelas cariocas. Nesse período, elaboraram-se os primeiros diagnósticos sobre o déficit da oferta de energia, indispensáveis para incentivar e legitimar o desenvolvimento de programas públicos voltados para a oferta de formas modernas de energia para essas áreas. Datam dessa mesma época trabalhos conectando o consumo de energia à distribuição de renda.

Behrens (1985) identificou os requerimentos energéticos da população das favelas28. Os domicílios pesquisados eram atendidos essencialmente com energia elétrica e GLP, insumos utilizados essencialmente para necessidades energéticas básicas (cocção, no caso do GLP; refrigeração de alimentos, iluminação e conforto térmico, no caso da energia elétrica)29. Nas favelas da periferia, onde ainda era possível obter lenha de áreas nativas, a lenha era utilizada em substituição ao GLP. O consumo de energia elétrica nas favelas mostrava-se elevado em razão de ineficiências: fiação inadequada, equipamentos de segunda mão, refrigeradores funcionando praticamente vazios, pouca entrada de luz natural. O consumo domiciliar de energia situava-se em torno de 250 Mcal por mês, sendo cerca de um terço das necessidades energéticas cobertas por energia elétrica. O autor estimou que as famílias das favelas com renda inferior a um salário mínimo comprometiam mensalmente cerca de 25% da sua renda na aquisição de energia.

A universalização do acesso dos moradores das áreas faveladas às formas modernas de energia foi o principal pilar da política energética do Estado do Rio de Janeiro a partir do primeiro governo Leonel Brizola. Essa política encontrou respaldo na política tarifária adotada pelo governo federal, tanto para a eletricidade quanto para o GLP. Os preços desses energéticos foram ajustados à renda monetária das populações carentes, com o apoio de subsídios cruzados oferecidos pelos demais consumidores.

Essa política enfrentou vicissitudes e resistências, como retrata Vasconcellos (1985). Iniciado em 1979, o programa da Light destinado a favelas e loteamentos não regularizados (Programa de Eletrificação de Interesse Social) 30 tinha por meta estender os serviços de eletricidade a todas as favelas situadas nas suas áreas de concessão. O programa produziu 150.000 novas ligações, em 443 comunidades, entre 1979-1984 31. Para atingir tal meta, foi estabelecido um padrão de construção específico de linhas de distribuição para as favelas, considerando-se as dificuldades de acesso e construção. A limitação legal para a iluminação pública, devido à ausência de recolhimento dos tributos municipais nas favelas, foi contornada por meio da criação de um novo registro

28 Pesquisa de campo junto a 330 domicílios (amostra aleatória), com aplicação de um questionário previamente estabelecido. 29 Na época, os eletrodomésticos mais presentes nos lares pesquisados eram a televisão, a geladeira e o chuveiro elétrico. 30 Na época, a concessionária de energia elétrica era uma empresa pública. 31 No mesmo documento, Behrens (op cit.) afirmava que o número estimado de ligações ainda a fazer seria de cerca de 25 mil, “total perfeitamente possível de ser executado em 1985.

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legal (iluminação comunitária), cuja taxa de serviço passou a ser cobrada diretamente nas contas de luz dos consumidores da área eletrificada.

Na década de 1990, a continuidade do programa da Light encontrou forte obstáculo na renda da população mais pobre das favelas. As tarifas eram crescentes e o consumo da população de baixa renda era relativamente elevado, em parte devido à má qualidade das instalações elétricas das residências e à ineficiência dos equipamentos energéticos utilizados por essa população. Tais problemas, associados à irregularidade e à queda da renda familiar, fomentaram cortes no fornecimento e fraude, elementos que tornaram o programa financeiramente inviável.

Apesar desses problemas, no início da década de 1990, a política de universalização do acesso às fontes de energia moderna tinha alcançado seu principal objetivo nas favelas cariocas: praticamente todas as famílias estavam conectadas à rede de suprimento de energia elétrica e o uso de GLP era generalizado. No entanto, a política energética sofreu uma radical inflexão.

A política energética implementada nos anos 1990 induziu o alinhamento dos preços e tarifas dos energéticos com o patamar de custos vigentes no mercado internacional, bem como a redução e focalização dos subsídios nos consumidores capazes de comprovar sua situação de carência de renda. Os resultados dessa política não têm sido satisfatórios. As concessionárias indicam ser crescente a inadimplência bem como o número de consumidores que utilizam mecanismos informais para obter suprimento elétrico não oneroso.

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5. Caju: Pobreza e Energia

Viver no Caju 32 A ocupação da área conhecida por Caju na cidade do Rio de Janeiro remonta aos

tempos coloniais. Localizada próxima ao centro da cidade e debruçada sobre a baía de Guanabara, a região foi desde tempos idos um local de atividades portuárias, aspecto que continua tendo importância nos dias atuais. O Complexo do Caju engloba as favelas, as zonas urbanizadas e também os empreendimentos industriais, portuários e serviços existentes naquele território.

No início do século XIX, a Quinta do Caju era uma propriedade particular à beira da praia do Caju. Em 1817, essa quinta foi comprada por D. João VI, que a dotou de uma capela e um cais, e passou a se chamar Quinta Real do Caju, servindo como balneário da família real por um bom período. De bairro elegante, cuja ligação com o centro urbano se fazia por mar, o Caju passou, no espaço de algumas décadas, a ser um bairro industrial, plenamente integrado à vida da cidade. No final do século XIX, já estavam ali instalados um estaleiro e duas fábricas de tecido. Alguns anos depois, o antigo Ministério de Guerra transferiu o Arsenal de Guerra para o prédio de uma das fábricas de tecido. Em 1840, foi inaugurado o Cemitério do Caju e, atualmente, há um conjunto importante de cemitérios localizado na área.

No século XX, o espaço físico do Complexo do Caju foi modificado por grandes aterros, e a antiga praia do Caju é hoje apenas o nome de uma rua. Nesse período, estabeleceram-se no Complexo várias instalações portuárias, o Parque de Material de Eletrônica da Aeronáutica (PAME) e o estaleiro Ishikawajima (PMRJ, Favela-Bairro, 1996).

Na década de 1980, a construção naval brasileira sofreu sensível retração. Mesmo tendo uma localização privilegiada na zona central da cidade do Rio de Janeiro, o Caju sofreu fortemente os efeitos da crise da construção naval. Os empregos formais desapareceram e as áreas abandonadas “foram ocupadas por estacionamentos e depósitos de containers” (fala de um morador). A falência do sistema de financiamento habitacional 33 e do aumento das taxas e serviços públicos (imposto territorial urbano, água, eletricidade) induziu a migração das áreas formalmente urbanizadas para as zonas faveladas da cidade. A ocupação desordenada e a favelização do Caju aceleraram-se com o fechamento dos estaleiros navais. Apesar de subsistirem diversos empreendimentos comerciais e industriais no complexo, a maior parte da população do Caju habita suas comunidades de baixa renda (favelas).

O efeito demográfico provocado pela crise da construção naval no Caju pode ser notado na Tabela . A população do Complexo refluiu, só voltando a crescer, mais recentemente, com a revitalização dessa indústria.

32 Essa seção foi elaborada com base nos relatos colhidos em cinco (5) grupos focais (lideranças formais, lideranças informais, um grupo de jovens, dois grupos de empreendedores), cada um deles com oito (8) a dez (10) moradores das comunidades de baixa renda do Caju. O grupo das lideranças formais foi composto por membros das diretorias das associações das comunidades. As lideranças informais foram selecionadas pela equipe de pesquisa entre as pessoas com reconhecida liderança nas comunidades. Os demais grupos foram compostos por pessoas indicadas pelas lideranças formais. 33 Entre 1970 e 2000, o percentual de residências financiadas caiu de 11,6% para 7,8% (O Globo, 10/3/2004)

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Tabela 9 - População do Caju e do Município do RJ -1980-2000

Fonte: Censo Demográfico Brasileiro 2000 / PNAD, 1996.

Anuário Estatístico da Cidade do Rio de Janeiro,1991.

O cadastro do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) registra 183 empresas no Caju, 36 delas industriais (três da construção naval, duas metalúrgicas e uma pequena refinaria de petróleo). A rede de estabelecimentos comerciais funciona como base de serviços para a zona portuária. Esse parque produtivo oferece a base necessária para uma política de desenvolvimento local, orientada para a valorização dos efeitos de encadeamento que podem ser engendrados por pequenos negócios no cinturão desses empreendimentos.

A Prefeitura do Município do Rio de Janeiro recorta as comunidades de baixa renda do Caju em oito (8) comunidades: Parque Nossa Senhora da Penha, Quinta do Caju, Parque Boa Esperança, Parque São Sebastião, Parque Alegria, Ladeira dos Funcionários, Vila Clemente Ferreira e Parque Conquista. São 6.605 domicílios com aproximadamente 17.500 pessoas.

Na percepção de seus moradores, o Caju é um bairro decadente. Os grupos focais expressaram forte nostalgia do passado, sobretudo em relação às perdas de espaços de lazer e de tradições culturais. Com o passar dos anos, dois cinemas, parques, campos de futebol e uma colônia de pescadores foram extintos. O passado é evocado como um tempo com muitas oportunidades econômicas e forte inserção dos moradores no tecido social da cidade. O Caju não é mais um bairro “bom de se viver”.

Os moradores criticam as empresas que vieram para o Caju por terem eliminado locais de lazer para instalar suas atividades. Para eles, as empresas, ao ocuparem esses locais, tinham a obrigação de indenizar a comunidade, construindo áreas similares em outros espaços. A decadência do bairro é associada pelos moradores ao fato de os estaleiros terem engolido as praias, dando margem à proliferação dos depósitos de containers 34.

A violência apareceu de forma explícita em todos os grupos focais, como um dos problemas centrais do Complexo. Ela é maior nas áreas que ficam próximas à principal rua do Complexo. A comunidade Quinta do Caju, provavelmente em função da existência de maior número de equipamentos urbanos e da presença de instalações da Aeronáutica, foi considerada como uma área privilegiada, do ponto de vista da segurança.

A violência interfere decididamente no cotidiano de todos os moradores, mas parece atingir especialmente os jovens sujeitos ao processo de aliciamento pelo crime organizado35. Nas palavras de um dos jovens: "Quando eles vêm invadir aqui é uma tristeza. ... E a gente não pode ficar até tarde na rua porque do nada começa tiro... À noite, final de semana, quando não tem nada na praça, uma festinha de rua, a gente tem que ir para casa.”

34 Ah! Eu não me lembro, mas minha mãe me contava que onde acabou a praia para virar a Ishikawagima tinha uma vila, tinha uma praia... foi aterrada para virar o estaleiro. O Caju tinha uma festa junina que era a Festa de S .Pedro, uma das melhores, que acabou” (palavras de um morador). 35 É importante notar que as facções do crime organizado fazem parte do tecido social das comunidades.

1980 1991 1996 2000 Caju (mil) 17,4 13,9 17,8 17,7 RJ (milhões) 5,1 5,5 5,6 5,9 Caju/RJ 0,34% 0,25% 0,32% 0,30%

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Os grupos focais sugeriram que facções do crime organizado controlam subterritórios no interior do Complexo, alimentando conflitos entre as comunidades e gerando insegurança. Essa territorialização dos espaços do Caju tem efeitos nocivos sobre a vida de todos, pois os moradores sentem-se impedidos de freqüentar atividades nas demais comunidades do Complexo36.

“Viver no Caju é viver esquecido pelas autoridades que governam nosso estado e município”. Há muita insatisfação com as insuficiências de infra-estrutura social e econômica disponível no Caju 37. O posto de saúde é pequeno; o sistema de transporte é insuficiente e irregular; as vagas escolares são menores que o número de crianças em idade escolar; o ensino é considerado de péssima qualidade e está localizado em área insalubre (ao lado da estação processadora de lixo urbano); os hospitais de referência existentes no Complexo estão sucateados38. Os entrevistados exprimiram um forte sentimento de exclusão, resumido na seguinte frase: “Você vai numa comunidade carente, numa favela, encontra tudo sujo, todas as coisas desorganizadas. Aí você vai ao Centro, na Barra, em Copacabana e encontra tudo limpo. Por que será? Óbvio! As pessoas sujam do mesmo jeito, a pessoa que mora lá em Ipanema não vai descer do seu apartamento luxuoso e vai varrer a sua calçada. É o gari que vai lá e faz.”

Faltam programas para atender crianças e adolescentes (tais como creches, cursos profissionalizantes e preparatórios para a entrada nas universidades) e de assistência aos pequenos negócios. Nas palavras de um “empreendedor”. "Eu preciso de três pessoas para trabalhar comigo. Não tenho condições de botar nenhum porque não tenho condições de pagar. Não tem uma linha de crédito, não tem uma instituição que empreste, o governo não empresta, quem tem dinheiro não quer emprestar... E nessa situação a gente fica parado. A gente não desenvolve, e muitas vezes somos obrigados a fechar o negócio ou trabalhar mecanicamente".

Os jovens reivindicam educação de qualidade como forma de conseguir melhores oportunidades de vida e de combater a violência. "Quando a gente termina o 2º grau, como é o meu caso, a gente fica assim, e agora? Como no momento, eu não estou fazendo nada". A reivindicação de mais e melhores cursos profissionalizantes, localizados no bairro, traduz a busca de melhores oportunidades, mas também, revela a preocupação de combater a arregimentação dos jovens pelo crime organizado. “Um jovem que passa o dia inteiro sem fazer nada com certeza vai ser atraído pelas "lanhouse" (casa de jogo de computador), pelos colegas que ficam fumando, seja o que for na rua. Vai ser atraído por uma coisa ruim..” Para os moradores, a única forma de sair dessa situação é por meio do trabalho e da educação.

Esse anseio é tão forte que a primeira reivindicação feita pelas lideranças formais (diretorias das associações de moradores) para nossa equipe de pesquisa foi a estruturação de um curso pré-vestibular no local. Felizmente, a reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) decidiu atender a solicitação das lideranças do Caju. A equipe do projeto sensibilizou a concessionária de energia elétrica (Light), que mobilizou a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) para co-

36 Foi citado que quando uma escola precisou paralisar suas atividades para obras, os alunos transferidos para outra escola deixaram de freqüentar as aulas, com medo de serem hostilizados. 37 “O que está ruim na escola são os professores, porque não têm condição de ir para a escola, aí falta demais, as crianças vão para a escola não tem professor... volta para casa. Os professores têm muito medo, porque não moram aqui, então eles têm um medo tremendo, qualquer coisa eles estão largando as crianças sozinhas e estão indo embora, as crianças ficam abandonadas, um desespero. A escola está horrível” (fala de um morador) 38 Houve, inclusive, uma passeata dos moradores contra o fechamento do único hospital que se mantém aberto para emergências - o Hospital Anchieta.

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financiar um curso pré-vestibular para 100 estudantes do Caju, que começou a ser ministrado em 2005.

A fala dos moradores caracteriza um forte sentimento de exclusão. Os dados econômico-sociais coletados na pesquisa de campo, como mostraremos a seguir, dão suporte a esse sentimento.

Linha de Pobreza para o Caju Um dos principais obstáculos à realização de estudos sobre a pobreza é a

limitação das fontes de informações no que tange à mensuração do patrimônio das pessoas e às suas estratégias de sobrevivência.

A renda é geralmente utilizada como instrumento para medir o bem-estar, embora isto implique limitação metodológica importante, pois a renda dos pobres é errática e quase sempre subestimada. Nossa pesquisa procurou contornar esse problema, combinando o rendimento declarado pelos moradores com informações relativas aos bens patrimoniais do domicílio, formalização do trabalho de seus moradores e acesso ao crédito 39.

Os bens patrimoniais permitem avaliar o comportamento cumulativo da renda, enquanto a formalização do trabalho e as condições de crédito oferecem uma perspectiva das condições de renda no futuro. A combinação desses elementos, no entender da equipe de pesquisa, oferece uma melhor percepção da situação de pobreza em que está mergulhado o domicílio. Com essa perspectiva, construímos uma tipologia para os domicílios das comunidades de baixa renda do Caju que permite retraçar a linha de pobreza no Complexo.

A tipologia dos domicílios foi estruturada com base em cinco indicadores 40: • Rendimento mensal per capita dos moradores do domicílio – foram

considerados os rendimentos das pessoas com 10 anos ou mais de idade, provenientes das seguintes fontes: trabalho principal, aposentadoria, pensão, aluguel, outros trabalhos, ajuda de familiares não residentes no domicílio, doação e outras rendas. A soma desses rendimentos foi dividida pelo número de residentes no domicílio para obter a renda per capita.

• Posse e valor do imóvel – foram consideradas as seguintes situações: imóveis não próprios, imóveis próprios sem declaração de valor e imóveis próprios com valor declarado.

• Posse de bens duráveis no domicílio – foram atribuídos pontos aos bens, de acordo com a proporção de cada um deles no conjunto dos domicílios das Comunidades do Caju.

• Disponibilidade de crédito dos moradores do domicílio – foram consideradas a posse de conta corrente bancária, conta de poupança, cartão de crédito e cartão de crédito de lojas.

• Moradores com carteira de trabalho assinada – foi considerado o percentual de moradores do domicílio que possuíam carteira de trabalho assinada. Para cada uma das variáveis foram estabelecidos cinco estratos, atribuindo-se

pontos para cada uma das variáveis descritas acima. Somados os pontos relativos aos indicadores de cada domicílio, identificaram-se situações socioeconômicas diferenciadas, que foram classificadas com a seguinte tipologia: A, B, C e D. Nessa

39 Estas informações foram obtidas na pesquisa de campo realizada em uma amostra de moradores da Favela do Caju. 40 Ver anexo I (Metodológico).

31

tipologia, a pobreza é crescente em ordem alfabética.

QUADRO 1 - TIPOLOGIA DE DOMICÍLIOS TIPO QUANTIDADE

DE DOMICÍLIO DE PONTOS DO DOMICÍLIO A 26 A 40 B 20 A 25 C 14 A 19 D 8 A 13

A Tabela 10 mostra que 42,4% dos domicílios das comunidades de baixa renda

do Caju tinham renda média per capita superior ao salário mínimo da época da pesquisa (R$ 200,00). Cerca de 15% dos domicílios apresentavam características de um grupo social afastado da situação de pobreza: renda per capita próxima de três salários mínimos, patrimônio imobiliário significativo, posse de bens de consumo durável relativamente diversificada e certo acesso a crédito. Esses domicílios caracterizam-se pela menor densidade de pessoas, menor número de crianças e maior número de residentes com emprego formal.

Os domicílios do Tipo B (27,8%) estão relativamente distantes da linha de pobreza, com renda per capita cerca de 50% superior ao salário mínimo. O patrimônio imobiliário e a posse de bens de consumo durável desses domicílios são razoáveis, porém o acesso a crédito dos domicílios desse tipo é pouco favorável, e o número de crianças no domicílio, mais elevado.

Os tipos C (36%) e D (21,7%) compõem o grupo de domicílios que apresentam renda inferior a um salário mínimo da época (R$ 200,00). A pobreza está concentrada nos domicílios do tipo D. Nesses domicílios, a renda per capita é inferior a meio salário mínimo. O patrimônio imobiliário dos moradores é insignificante, praticamente não têm acesso a crédito, e a posse de bens de consumo duráveis limita-se aos absolutamente essenciais (televisão, fogão, geladeira e rádio). Não causa surpresa que nesses domicílios o número de crianças seja elevado e o trabalho ocorra na informalidade.

Os domicílios do tipo C têm situação pouco mais favorável que os do tipo D, porém muito próxima da pobreza. A renda per capita está pouco acima de meio salário mínimo, porém o acesso a crédito é parco, assim como a posse de bens de consumo duráveis. Os domicílios desse tipo têm um número relativamente elevado de crianças e a informalização do trabalho é significativa.

Tabela 10 - Tipologia dos Domicílios do Caju - 2002

CARACTERÍSTICAS A B C D TOTAL Número 963 1.833 2.376 1.433 6.605 % sobre o Total 14,6 27,8 36,0 21,7 100,0 Nº de Pessoas Total 2,9 3,2 3,5 4,1 3,5 10 Anos e Mais 2,7 2,7 2,8 2,8 2,8 Com Carteira 1,2 1,0 0,7 0,3 0,8 Renda Per Capita (R$) 584,39 297,83 175,62 88,84 250,31 Valor do Imóvel (1000 R$) 19,2 10,9 7,2 2,8 9,0 Bens (pontos) 61,0 41,9 28,3 16,9 34,4 Crédito* (pontos) 10,3 5,9 2,5 0,8 4,2

(R$) = Reais de Setembro de 2002.

Fonte: FIRJAN/IETS. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

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A Tabela 10 deixa clara a importância da formalização do mercado de trabalho para a erradicação da pobreza, servindo como elemento de convicção para a hipótese de que a enorme informalização do mercado de trabalho está na raiz da desigualdade da distribuição de renda brasileira. A presença de pelo menos um membro do domicílio no mercado formal de trabalho oferece renda continuada, e acesso ao crédito necessário tanto para a acumulação de patrimônio imobiliário quanto para a diversificação da posse de bens de consumo duráveis. Por outro lado, os domicílios com maior número de crianças mostram maior vulnerabilidade, devido ao menor número de pessoas no domicílio em condições de adquirir renda. Esses dados corroboram conclusões de outros estudos sobre pobreza no Brasil, que apontam as crianças como especialmente vulneráveis à situação de pobreza (Rocha, 2003 e Melo, 2004).

A Tabela mostra a composição de nossos quatro tipos de domicílios em termos da sua renda per capita distribuída em cinco quintis. Como era de se esperar, os domicílios do tipo A têm, todos, renda per capita superior a um salário mínimo. Nos domicílios do tipo B, há uma pequena parcela (22,7%) de domicílios com renda per capita ainda inferior a um salário mínimo, indicando que esses domicílios continuam apresentando alguma vulnerabilidade socioeconômica.

Aproximadamente 70% dos domicílios do tipo D estão na situação de indigência (20,4%) ou de pobreza (49%), se adotado o critério tradicional de linha de pobreza. Porém, outra pequena parcela com renda superior ao critério tradicional de pobreza não teve renda no passado que permitisse acumular algum patrimônio e diversificar sua posse de bens de consumo duráveis.

Os domicílios do tipo C mostram um panorama de renda e patrimônio mais favorável que os do tipo D, mesmo assim nesse tipo está incluído um pequeno grupo de domicílios que, no critério tradicional, estariam classificados como indigentes (2,2%) ou pobres (11,9%).

Esses resultados sugerem que a linha de pobreza baseada no rendimento monetário esconde situações de pobreza bastante diferenciadas.

Tabela 11 - Domicílios do Caju por Quintis de Salário Mínimo (%)

TIPOS Até 0,25 SM Mais de 0,25 Mais de 0,50 Mais de 0,75 Mais de 1 TOTAL a 0,50 SM a 0,75 SM a 1 SM SM

A 0,0 0,0 0,0 0,0 100,0 963 B 0,0 0,0 7,8 14,9 77,3 1.833 C 2,2 11,9 27,8 33,7 24,5 2.376 D 20,4 49,0 22,1 6,8 1,7 1.433

TOTAL 5,2 14,9 17,0 17,7 45,2 6.605 Fonte: FIRJAN/IETS. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

A Tabela 10 também indica o valor da propriedade imobiliária. O resultado é, de

certa forma, surpreendente. Apesar de os imóveis da favela não serem reconhecidos formalmente pelas autoridades públicas, o valor patrimonial do estoque de moradias da favela não é nada irrelevante 41. O valor estimado para as melhores moradias 42 situa-se no patamar de R$ 400,00/m2. Esse valor contrasta com o preço dos imóveis em bairros populares do Rio de Janeiro (aproximadamente R$ 1200,00/m2), sugerindo que a inclusão do espaço favelado do Caju no cadastro formal da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro não apenas daria segurança jurídica à propriedade das famílias faveladas 41 Na sua imensa maioria, são casas de alvenaria, resultado da autoconstrução. 42 Supondo uma área da moradia de 50 m2.

33

como também permitiria sensível valorização financeira desses imóveis43. De qualquer forma, os valores indicados na tabela dão uma dimensão da capacidade de poupança da população favelada do Caju, mesmo vivendo nas condições adversas de exclusão social.

Um outro item de avaliação foi a análise do estoque de bens de consumo duráveis existentes em cada domicílio. A Tabela 12 sugere que os habitantes do Caju procuram distribuir a posse de equipamentos segundo dois critérios: valor de aquisição e essencialidade para a vida social e cultural.

Tabela 12 - Caju - Posse de Bens Duráveis - 2002 BENS A B C D TOTAL

ELETRODOMÉSTICOS GELADEIRA 68,7 81,1 88,3 90,0 83,8 GELADEIRA DUPLEX 31,9 18,1 9,0 6,6 14,3 FREEZER VERTICAL 26,8 11,7 6,7 2,8 10,2 FREEZER HORIZONTAL 6,9 5,0 3,4 2,6 4,2 FILTRO DE ÁGUA (VELA/CARVÃO ATIVO) 73,2 64,6 51,5 41,5 56,1 FILTRO DE ÁGUA (OZONIZADOR) 9,3 4,7 4,4 3,0 4,9 FORNO MICROONDAS 33,7 18,9 8,4 2,5 13,7

LAZER TV EM CORES 98,1 95,3 93,5 89,5 93,8 RÁDIO 92,0 93,3 85,6 79,6 87,4 VIDEOCASSETE 58,8 45,6 29,3 16,7 35,4 DVD 2,5 2,1 1,2 0,0 1,4 TV P/ ASSINATURA 15,2 11,1 5,1 1,9 7,5

COMUNICAÇÃO E TRANSPORTE TELEFONE CELULAR 59,7 45,5 33,5 20,4 37,8 TELEFONE FIXO 81,4 65,6 48,1 20,6 51,8 MICROCOMPUTADOR 18,2 8,0 4,3 1,9 6,8 AUTOMÓVEL PRÓPRIO 32,1 14,7 5,5 0,7 10,9

CONFORTO ASPIRADOR DE PÓ 11,7 4,9 1,8 0,4 3,8 MÁQ. DE COSTURA 31,8 23,9 16,5 6,9 18,7 AP. AR CONDICIONADO 45,2 27,0 15,0 4,5 20,4 MÁQ. LAVAR ROUPAS 68,8 48,8 34,2 20,4 40,3 CHUVEIRO ELÉTRICO 68,1 53,6 39,9 26,4 44,9

Fonte: FIRJAN / IETS, 2002. Tabulações Especiais. Elaboração Própria

Na área do lazer, a televisão e o rádio são bens universalizados. A televisão está presente em mais de 90% dos domicílios, inclusive nos do tipo D, e o rádio, em pouco menos de 90%. É interessante notar a forte difusão dos aparelhos de vídeo (com posse significativa mesmo nos domicílios do tipo D) e da TV por assinatura. Pode-se notar ainda o início do processo de difusão do aparelho DVD.

A posse da geladeira está também universalizada. No entanto, é preciso notar que a posse das geladeiras duplex (com freezer incorporado), por serem mais caras, é ainda pouco difundida mesmo nos domicílios de maior renda (31,9%). A posse de freezers é relativamente alta, refletindo o hábito brasileiro, incorporado durante o período de alta inflação, de comprar os alimentos necessários para consumo mensal, no 43 Em novembro de 2004, uma parceria do governo federal com o município do Rio de Janeiro permitiu contemplar 843 famílias do Caju com a regularização de suas propriedades. (site www.vivafavela.com.br, acessado em 1/2/2005 às 13h15). Essa mudança provocou a imediata duplicação do valor dos imóveis (site www.gabeira.com.br/cidadesustentavel, acessado em 1/2/2005 às 13h15).

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início do mês. A preocupação com a qualidade da água é refletida na difusão do uso de filtros, apesar de o suprimento da favela ser realizado pela mesma empresa que abastece as zonas urbanas formais da cidade do Rio de Janeiro. É notável a rápida difusão do uso dos fornos de microondas.

No rol dos bens destinados ao conforto doméstico, destacam-se o chuveiro elétrico e a máquina de lavar roupas, ambos com difusão bastante significativa, mesmo nos domicílios dos tipos C e D. Em seguida, posiciona-se o aparelho de ar condicionado e a máquina de costura, sendo particularmente importante a difusão do uso de aparelhos de ar acondicionado nos domicílios dos tipos A e B. O aspirador de pó é pouco difundido, apesar de ser um eletrodoméstico relativamente barato. É importante notar a forte difusão de eletrodomésticos intensivos no consumo de energia elétrica.

No conjunto dos bens relacionados à comunicação e ao transporte, há forte difusão de telefones fixos e celulares, ambos com presença significativa inclusive nos domicílios do tipo D44. Essa situação pode ser explicada pela brutal redução no custo de acesso a esses equipamentos após a privatização da telefonia no Brasil. O caso do automóvel é peculiar. Por ser um bem de custo elevado, sua posse só é relevante nos domicílios de tipos A (32,1%) e B (14,7%). No entanto, nota-se a posse desse bem também nos domicílios pobres, o que pode ser explicado pelo fato de ser bastante difundido o mercado de segunda mão para veículos.

Como se pode notar na Tabela , a posse de eletrodomésticos da população favelada do Caju não é significativamente distinta da do padrão da cidade do Rio de Janeiro no que concerne à televisão, ao rádio e à geladeira. O padrão de posse do freezer, da máquina de lavar roupa e do filtro é menor que o do da cidade do Rio de Janeiro, porém muito próximo ao da média nacional. Os domicílios dos tipos A e B têm a posse de um conjunto de bens domésticos similar aos encontrados nos lares da classe média brasileira, com taxas de participação mais altas do que a taxa verificada para a média do Brasil urbano. Esses mesmos domicílios concentram a posse de eletrodomésticos relativamente caros e, de certa forma, menos essenciais (máquina de lavar roupas, freezer, microcomputador, ar condicionado). A posse desses equipamentos nos domicílios C e D pode ser explicada pela importância do mercado de segunda mão nos domicílios pobres e indigentes. É interessante notar a difusão da televisão por assinatura, inclusive entre os pobres e indigentes, fruto provavelmente da conexão informal.

Tabela 13 - Brasil e Estado do Rio de Janeiro

Posse de Bens Duráveis - 2002 Bens Brasil (%) RJ (%)

Fogão 98,59 99,40 Filtro de água 55,05 75,46 Rádio 88,85 95,41 Televisão 93,70 97,77 Geladeira 91,38 97,59 Freezer 18,83 24,23 Máquina de lavar roupa 38,11 54,74 Total de Domicílios (milhões) 40,7 4,5

Fonte: PNAD/IBGE, 2002, site acessado nos dias 18/11 e 9/12/04.

44 A favela do Caju acompanhou o movimento de forte difusão da telefonia em todo o país ocorrido na década de 1990 (Schwartzman, 2004).

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Perfil dos Responsáveis pelos Domicílios A maioria dos responsáveis pelos domicílios da comunidade de baixa renda do

Caju é do sexo masculino (Figura ). Porém, há um nítido incremento na participação feminina na responsabilidade pelos domicílios mais pobres. A participação das mulheres (33%), no caso dos domicílios pobres, é aproximadamente 60% superior à dos domicílios do tipo A. É importante notar que, no caso dos domicílios pobres, a participação das mulheres é maior que a média nacional (26%), enquanto no caso dos domicílios dos tipos A e B, essa participação é menor que a média nacional.

Figura 6 – Caju – Sexo do Responsável pelo Domicílio - 2002

0%

20%

40%

60%

80%

100%

A B C D TOTAL

HOMEM MULHER

Fonte: FIRJAN/IETS. Elaboração Própria.

A dinâmica social dos lares mais pobres aparentemente é menos centrada nos

laços familiares, o que resulta nessa elevada participação de chefia feminina nos domicílios dos tipos C e D. Pode-se inferir que a pobreza tem como um dos seus fatores explicativos a ruptura da estrutura familiar tradicional. Tal como outros estudos mostram para o resto do Brasil (Melo, 2004, Rocha, 2003, IBGE, 2002), os domicílios de responsabilidade masculina permitem melhor inserção do chefe no mercado de trabalho. Quando a mulher é a responsável pelo domicílio, ela não apenas tem que arcar com as atividades domésticas como ainda necessita buscar trabalho para gerar renda familiar. Essa situação explica a maior vulnerabilidade das famílias chefiadas por mulheres.

Os domicílios do Caju distribuem-se de forma quase similar à média brasileira no que concerne à cor/raça do seu responsável (Figura ). No entanto, é importante notar que, assim como no resto do Brasil, a maioria dos domicílios mais pobres é chefiada por pretos e pardos.

A idade do responsável pelo domicílio (Figura ) não é fator diferenciador entre os quatro tipos de domicílios. Cerca de dois terços dos domicílios são chefiados por adultos na faixa de 30-59 anos de idade. Os idosos (idade superior a 60 anos) assumem a responsabilidade por cerca de um quinto dos domicílios do Caju, sendo importante notar que eles chefiam cerca de um quarto dos domicílios do tipo A. Por outro lado, é considerável a participação de jovens na chefia de domicílios mais pobres.

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Figura 7 – Caju – Cor/Raça do Responsável pelo Domicílio - 2002

0%

20%

40%

60%

80%

A B C D TOTAL

BRANCA NEGRA OUTROS

Fonte: FIRJAN/IETS. Elaboração Própria.

Figura 8 – Caju – Idade do Responsável pelo Domicílio - 2002

0%10%20%30%40%50%60%70%

A B C D TOTAL

10 A 29 20 A 29 30 A 59 60 E MAIS

Fonte: FIRJAN/IETS. Elaboração Própria.

A escolaridade do chefe do domicílio é o principal diferenciador entre os tipos

de domicílios da favela do Caju (Figura ). Nos domicílios A, o analfabetismo é pouco intenso entre os responsáveis; uma pequena parcela deles tem curso superior completo ou incompleto, cerca de dois terços passaram pelo curso fundamental e outro terço passou pelo ensino médio. No caso dos domicílios de classe D, cerca de 28% dos seus responsáveis são ainda analfabetos. A taxa de analfabetismo entre os responsáveis pelos domicílios cresce com o nível de pobreza. Esses dados indicam claramente a enorme importância da educação de boa qualidade na redução da pobreza, da exclusão e das desigualdades sociais.

A pobreza está claramente associada ao desemprego e à precariedade do trabalho, como mostram as informações da Tabela . Não existem responsáveis desempregados nos domicílios do tipo A, e muito poucos nos do tipo B. Por outro lado, o número de responsáveis desempregados ou sem ocupação clara nos domicílios C e D

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é crescente, chegando a cerca de 24,1% no caso dos últimos. É interessante notar a drástica redução na parcela de responsáveis pelos domicílios com empregos formalizados nos domicílios do tipo D, o que indica a importância da formalização do trabalho para a superação da pobreza. A presença de aposentados na chefia de domicílios é importante em todos os tipos (entre 14% e 18%), situação similar à encontrada em outros estudos sobre o papel social desempenhado pelos idosos no aporte da renda nos domicílios brasileiros (Camarano, 1999).

Figura 9 – Caju – Escolaridade do Responsável pelo Domicílio - 2002

0%10%20%30%40%50%60%70%80%

A B C D TOTAL

Sem Instrução/ Pré-Escolar 1º Grau Completo/ Incompleto

2º Grau Completo/ Incompleto 3º Grau Completo/ Incompleto

Fonte: FIRJAN/IETS. Elaboração Própria.

Tabela 14 - Caju - Ocupação do Responsável pelo Domicílio (%) - 2002 OCUPAÇÃO A B C D TOTAL

ATIVOS Empregado com Carteira 44,5 43,1 39,4 22,4 37,5 Empregado sem Carteira 9,8 11,3 12,0 19,3 13,1 Empregador 6,2 4,3 2,2 0,5 3,0 Conta-Própria 17,7 13,9 11,8 16,1 14,2 Empregado Doméstico com Carteira 1,2 3,8 2,8 0,4 2,3 Empregado Doméstico sem Carteira 0,9 2,4 3,4 2,9 2,6 Desempregados 0,0 0,9 1,9 9,9 3,1 Não Remunerado/Auto-Consumo 0,3 0,0 0,4 0,0 0,2

INATIVOS Aposentados ou Pensionistas 18,0 16,2 17,6 14,3 16,6 Outros 1,3 4,1 8,6 14,2 7,5 Total de Domicílios 963 1833 2376 1433 6605

Fonte: FIRJAN/IETS. Elaboração Própria.

É interessante notar também a presença de microempresários na favela do Caju. Entre 12% e 18% dos responsáveis por domicílios declararam trabalhar por conta própria. Um número significativo de responsáveis por domicílios declarou-se empregador, no caso dos tipos A e B. Ainda que incipiente, há um movimento no sentido de estruturar negócios, empregando pessoas, inclusive nos domicílios pobres. Essa situação sugere que o apoio às iniciativas locais pode produzir bons resultados como política de combate à pobreza.

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Políticas Sociais O bairro do Caju abriga uma série de projetos sociais implementados pelas três

esferas de governo (municipal, estadual e federal). Além dos projetos sociais oficiais, é importante ressaltar a rede de solidariedade que envolve membros das igrejas católica e evangélica do bairro. No caso da igreja católica, sua ação está mais voltada para distribuição de alimentos (cestas básicas) às famílias necessitadas da comunidade, enquanto que a evangélica funciona como rede de apoio educacional.

Alguns desses projetos sociais são destinados a grupos específicos (idosos, jovens, crianças), sendo bem recebidos na comunidade os projetos que estimulam as atividades desportivas e os destinados à alfabetização de adultos. A população jovem é o principal público alvo dos projetos sociais que visam amenizar a influência do tráfico de drogas no bairro, conter a violência e afastar o jovem da criminalidade. No âmbito educacional, destaca-se o Projeto Renascer, fruto de uma parceria entre a Aeronáutica e a prefeitura do Rio de Janeiro, que oferece curso de informática para jovens, adultos e para a terceira idade. Para os jovens, esse é "o único projeto social que realmente ajuda”. Graças ao projeto, "nós tentamos ficar livres das drogas".

O SOS (Rotary) é a instituição que mais desenvolve projetos sociais no Caju, a maioria com caráter educativo-profissionalizante (eletromecânica, informática, corte e costura, mecânica de elevadores, bijuteria). Além disso, a instituição oferece os serviços da creche, do Banco de Alimentos e da horta comunitária. É importante destacar que boa parte dos participantes dos grupos focais não sabia da existência dos cursos e serviços oferecidos pelo SOS.

A pesquisa identificou 553 domicílios das comunidades de baixa renda do Caju contemplados pelos programas sociais governamentais e não governamentais (Tabela ). Desse total, 80,3% foram enquadrados nos domicílios dos tipos C (36,3%) e D (44,3%). No entanto, apenas 17,1% dos domicílios D e 8,5% dos C tiveram acesso aos programas de transferência de renda. Surpreendentemente, 2,5% dos domicílios A e 4,5% dos B também receberam transferências sociais, o que indica a ineficiência com que operam alguns desses programas. O valor médio da transferência de renda mensal oferecida por esses programas aos domicílios contemplados foi próximo de três quartos do salário mínimo da época.

Tabela 15 - Caju - Domicílios com Programas Sociais - 2002 A B C D TOTAL

Número de Domicílios 24 83 201 245 553 % sobre o Total 4,3 15,0 36,3 44,3 100,0 % sobre o Total de Domicílios do Tipo 2,5 4,5 8,5 17,1 8,4 % sobre Renda Total do Domicílio 6,0 8,7 14,0 20,7 10,1 Valor Total 2.211,00 6.265,00 16.009,00 16.916,00 41.401,00 Valor Médio por Domicílio 92,13 75,48 79,65 69,04 74,87

Fonte: FIRJAN/IETS. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

Os programas de transferência de renda concentram seus recursos (79,5%) nos

domicílios com renda per capita abaixo de um salário mínimo (C e D). Apesar de ser um montante relativamente pequeno (cerca de R$ 41 mil mensais), o total das transferências representa parcela importante (10,1%) da renda declarada pelo conjunto dos domicílios do Caju. Essas transferências têm papel particularmente relevante no caso dos domicílios D (20,7%).

Em 2002, quatorze (14) programas sociais das três esferas de governo (federal,

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estadual e municipal) 45 eram atuantes nas comunidades do Caju (Tabela ), porém apenas quatro (4) desses programas tinham impacto significativo na comunidade (bolsa escola, vale gás, cheque cidadão e leite saúde). (Bolsa-Escola, Vale Gás, Cheque Cidadão e Leite Saúde)

Os programas Bolsa Escola e Vale Gás são de responsabilidade do governo federal. O critério de seleção desses programas é a renda per capita, que deve ser inferior ou igual a meio salário mínimo. O programa Bolsa-Escola oferece ajuda financeira (R$ 20,00) às famílias para estimular a freqüência à escola das crianças entre 6 e 15 anos; o Vale Gás subsidia a compra de gás de cozinha, concedendo R$ 7,50 mensais às famílias.

Tabela 16 - Caju - Domicílios segundo Tipos e Programas Sociais - 2002

Programas A B C D TOTAL %

Federais BolsaEscola 15 35 87 83 220 26,6 Vale Gás 12 28 68 57 165 19,9 Bolsa Alimentação 0 4 12 12 28 3,4 ICCN (leite) 0 3 7 12 22 2,7 PETI 0 0 0 4 4 0,5 Bolsa Renda 0 12 0 0 12 1,4 Sub-Total 27 82 174 168 451 54,5

Estaduais Cheque-Cidadão 0 0 15 37 52 6,3 Leite Saúde 0 0 19 26 45 5,4 Agente Jovem* 0 7 12 6 25 3,0 Todos pela Paz 0 0 0 6 6 0,7 Sub-Total 0 7 46 75 128 15,5

Municipais SOS Cidadania 0 3 0 6 9 1,1 Jovens pela Paz 0 10 7 0 17 2,1 Saúde da Família 0 3 0 0 3 0,4 Agentes da Saúde 0 0 3 0 3 0,4 Sub-Total 0 16 10 6 32 3,9 Não Identificado 6 0 60 48 114 13,8 Cesta Básica 3 16 30 54 103 12,4 Sub-Total 9 16 90 102 217 26,2 Total 36 121 320 351 828 100,0

Fonte: FIRJAN/IETS, 2002. Tabulações Especiais. Elaboração Própria. * O Programa Agente Jovem é um Programa Federal. No entanto, sua execução e

orientação são realizadas pelo governo do Estado. (TV Globo, Jornal Nacional, 03/02/2005).

Os programas Cheque Cidadão e Leite Saúde são operados pelo governo estadual. O primeiro distribui renda (R$ 100,00) diretamente para famílias cuja renda per capita seja inferior a um terço (1/3) do salário mínimo, contanto que a família mantenha seus filhos menores de 14 anos em escolas e que a carteira de vacinação das crianças esteja em dia. Os recursos devem ser usados na compra de gêneros alimentícios e de higiene pessoal nos supermercados conveniados. É proibida a compra de cigarro e bebida alcoólica. O programa Leite Saúde oferece R$ 15,00 para que a família adquira

45 13,8% dos domicílios declarou ter acesso a algum programa social, mas não soube (ou não quis) identificar qual seria esse programa. As cestas básicas são distribuídas por organizações não governamentais.

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leite em pó para alimentar suas crianças. É importante notar a existência de programas comunitários, oferecidos tanto pelo

governo estadual (Agente Jovem e Todos pela Paz) quanto municipais (SOS-Cidadania, Jovens pela Paz, Saúde da Família e Agente da Saúde). Esses programas pretendem oferecer serviços mobilizando pessoas da própria comunidade, o que tem como benefício adicional a geração de renda na comunidade.

É interessante notar que o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), cujo objetivo é reter as crianças entre sete e quatorze anos na escola em jornada ampliada, é praticamente ausente nas comunidades de baixa renda do Caju. Os programas sociais mais significativos (Bolsa Escola e Vale Gás) contemplam domicílios que, na nossa classificação, estão fora da linha de pobreza, indicando a dificuldade enfrentada pelos programas federais em identificar a real situação de pobreza das comunidades de baixa renda.

Os grupos focais fizeram críticas ao assistencialismo dos programas sociais. Do ponto de vista dos entrevistados, esses programas não mudam a condição social das famílias e geram a acomodação nos grupos sociais vulneráveis. Receber subsídios do governo não substitui a necessidade de adoção de medidas capazes de conferir cidadania por meio do emprego. O indivíduo que possui um emprego, com salário digno, não necessita de “ajuda do governo”. “Eu conheço família que apanha uma Cesta Básica na Igreja ali, apanha outra lá em cima e passa o mês todo naquela. Quando fala em trabalho: - Ih rapaz, hoje num dá!!!”.

Energia no Caju Os domicílios do Caju utilizam o gás liquefeito de petróleo (GLP) na cocção de

alimentos, e a eletricidade para iluminar suas moradias e alimentar o conjunto de seus aparelhos eletrodomésticos. A logística de comercialização de GLP está presente nas comunidades, e a conexão à rede de energia elétrica da concessionária carioca (Light), privatizada em 1996, é praticamente universal. Desta forma, o problema energético central enfrentado pela população de baixa renda do Caju reside na capacidade de as famílias arcarem com as despesas decorrentes do seu consumo de energia.

A Tabela apresenta os gastos efetivos com o consumo de energia nos domicílios das comunidades de baixa renda do Caju. No caso da eletricidade, a estimativa foi feita com base nos valores que os domicílios declararam na pesquisa de campo como sendo seu gasto na aquisição mensal de eletricidade. No caso do GLP, os gastos foram estimados com base no uso de um botijão (13kg) mensal para atender o consumo de uma família com quatro (4) pessoas e no preço praticado na época da pesquisa de campo, adicionado de 20%.

Esse adicional deve-se ao fato de a comercialização do GLP nas comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro ser controlada por grupos associados ao crime organizado46, que impõem um adicional ao preço de comercialização desse combustível praticado pelas empresas regulares. “Nós pagamos aqui 33 reais - vocês devem saber - é por causa do tráfico. O botijão, agora, é do tráfico. O tráfico está mandando legal no gás. Porque o certo do gás, que o governo deu o preço, é 28 reais. Você vai lá na avenida Brasil, se passar um caminhão e o cara puder te vender, ele vai te vender a 28 reais. Se eles souberem que tu comprou lá, tu vai tomar um pau ou alguma coisa.” Dessa forma, o custo do suprimento de GLP oscila entre R$ 20,00 nos domicílios do

46 Jornal O GLOBO, dias 22/09/04, 25/09/04, 28/09/04, 11/10/04, 14/10/04, 18/10/04.

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tipo A e R$ 27,00 nos do tipo D, onde é maior o número de moradores e, conseqüentemente, maior o consumo de GLP.

A ausência da repressão do poder público a esse tipo de prática é vista pelos moradores do Caju como mais uma evidência do descaso das autoridades com a comunidade. O governo estadual, responsável pela repressão das atividades criminosas na cidade, recebe uma expressiva quantia financeira regular (cerca de R$ 400 milhões mensais, em 2004), paga pelas empresas produtoras de petróleo que operam no Rio de Janeiro47, para compensar a população pelo esgotamento desse combustível fóssil. Na percepção da comunidade, esses recursos financeiros deveriam trazer benefícios para os grupos sociais de baixa renda. “Teve um tempo em que eles tabelaram o gás e eu cheguei a comprar o botijão de gás a R$13,00. Então, por que esse aumento de quase 400%?, se eles falam que a inflação está 2%, está 6%.? Eu creio que o culpado disso aí também são os fabricantes e o governo – que não está fiscalizando isso. Então, teria que o gás ter uma tabela fixa. É R$15,00. Pelo menos para as comunidades". Todos os grupos focais consideraram que o preço "bom" para o GLP seria, no máximo, R$ 20,00.

A Tabela 17 apresenta um resultado inesperado: aparentemente não há diferença significativa no consumo de eletricidade entre os tipos de domicílios (A, B, C e D) das comunidades de baixa renda do Caju, apesar da significativa diferença na posse de equipamentos eletrodomésticos por esses tipos de domicílios. Esse resultado induziu-nos a comparar os consumos faturados pela Light com consumos estimados utilizando a posse de eletrodomésticos dos domicílios informada nos questionários da pesquisa de campo48. Para tanto, utilizamos duas bases de dados.

Tabela 17 - Gastos Efetivos com Energia - 2002

A B C D TOTAL Renda Média por Domicílio 1.541,37 870,59 567,73 334,23 743,07 Energia Elétrica Faturada (LIGHT e IETS) 26,18 29,18 21,71 24,80 25,56 GLP Estimado + 20% 19,69 21,10 23,76 27,23 23,18

Fonte: FIRJAN/IETS. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

As informações disponíveis na concessionária de energia elétrica (Light) permitiram tomar conhecimento da quantidade física (KWh) e do dispêndio financeiro (Reais) com energia elétrica dos domicílios do Caju (energia faturada). Os dados dos questionários informaram os dispêndios com energia elétrica declarados e o conjunto de aparelhos eletrodomésticos em uso nos domicílios. Como, infelizmente, as bases de dados da amostra (Firjan/IETS) e da Light não são perfeitamente compatíveis, buscamos identificar os domicílios da pesquisa Firjan/IETS constantes no cadastro da Light 49. Foi possível identificar pouco menos de 21% de nomes presentes nos dois cadastros. A essa amostra reduzida denominamos amostra Light/IETS.

A Tabela apresenta duas estimativas de consumo de energia elétrica: uma feita com base na amostra reduzida Light/IETS e outra com base na amostra plena

47 A maior bacia produtora de petróleo brasileira localiza-se no Rio de Janeiro. Em 2003, foram extraídos 1,3 milhões de barris diários das bacias sedimentares fluminenses. 48 Estimativa feita multiplicando a posse de aparelhos eletrodomésticos declarados pelos domicílios pelos indicadores médios de consumo de eletricidade desses aparelhos obtidos em pesquisa nacional realizada pelo Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (PROCEL). 49 A comparação entre os dois bancos de dados foi realizada com base nos nomes completos (prenome e sobrenome) dos responsáveis pelos domicílios constantes nos dois cadastros. Nessa situação, foram identificados 18% dos domicílios da amostra do IETS.

42

Firjan/IETS. Pode-se notar que apenas os domicílios do tipo D têm consumo estimado próximo do faturado (na verdade, até mesmo inferior ao faturado). Todos os demais tipos de domicílios mostraram consumo significativamente superior ao faturado, sendo crescente a diferença entre consumo estimativo e faturado à medida que o domicílio está em melhor situação econômica. As duas estimativas apresentam trajetória similar, porém a amostra Firjan/IETS sugere consumo domiciliar superior, que oscila entre 12% e 15%50.

A provável explicação para essa diferença nas estimativas é o fato de termos usado números médios nacionais para o consumo específico dos aparelhos eletrodomésticos dos domicílios do Caju. Como sabemos que esses aparelhos são, em geral, menos eficientes do ponto de vista energético que a média nacional, é razoável esperar que o consumo médio efetivo dos domicílios esteja mais próximo da estimativa feita com base na amostra reduzida Light/IETS.

Tabela 18 - Caju - Consumo de Eletricidade - 2002

A B C D TOTAL KWh estimado (LIGHT/IETS) 261,10 191,25 149,76 95,13 176,39 KWh estimado (FIRJAN/IETS) 232,98 169,14 129,73 95,13 148,21 KWh Faturado (LIGHT) 106,69 113,43 99,99 103,19 106,28

Fonte: FIRJAN/IETS. Tabulações Especiais. Elaboração Própria

Esses números sugerem que as perdas comerciais da Light nas comunidades de

baixa renda do Caju são muito elevadas, situando-se no patamar de 40% do consumo das comunidades faveladas do Caju51. Esse número surpreendente resulta do uso generalizado do gato52 (citado nos grupos focais) como estratégia para equilibrar os gastos energéticos com a renda domiciliar.

As tarifas são consideradas muito elevadas pelos moradores do Caju, quando comparadas com a renda dos domicílios53. Além disso, foi lembrado que as comunidades de baixa renda não gozam da mesma qualidade de serviços oferecida pela concessionária nas demais zonas da cidade. Na percepção dos moradores do Caju, as situações de emergência não são atendidas com presteza, principalmente no horário noturno54; a qualidade do suprimento elétrico é baixa; no período de verão, a rede de suprimento não é capaz de sustentar a demanda; as solicitações de ampliação de fases dos estabelecimentos comerciais não são atendidas no tempo devido.

Há entre os moradores uma forte postura crítica em relação à desigualdade social no país, especialmente entre os jovens, sendo consensual que a energia deveria ter preço compatível com a renda domiciliar. Desigualdade social e pouca eficiência na prestação dos serviços são apontadas como razões para que a energia elétrica seja mais barata para as comunidades de baixa renda. Na percepção dos moradores, essa situação justifica o

50 Essa diferença entre as duas estimativas pode talvez ser explicada pelo fato de os domicílios da subamostra Light/IETS ser composta por domicílios com maior nível de formalização. 51 Os números da concessionária, baseados na energia disponibilizada nos transformadores que alimentam as favelas do Caju, são um pouco mais elevados que essa estimativa (70%), sendo que 6% são perdas de distribuição e 2%, de iluminação pública (entrevista com funcionário da empresa). 52 Nome utilizado para a conexão irregular à rede de distribuição de energia elétrica. 53 “O preço do KWh está muito alto. Os salários, normalmente, não estão acompanhando o preço do KWh, e a conta, realmente, fica muito cara”. 54 Funcionários da concessionária estabelecem relações pessoais na comunidade e instruem moradores com certo conhecimento técnico como proceder em caso de desarme de transformadores.

43

uso do gato55 como estratégia de sobrevivência. No entanto, os entrevistados consideram justo que aqueles que têm maior número de aparelhos que demandam energia elétrica paguem mais pelo seu suprimento de eletricidade.

A imagem da concessionária junto à comunidade melhorou bastante após a implementação do Projeto Comunidade Eficiente 56. Esse projeto ofereceu suporte técnico a 172 domicílios, identificados como de alta penúria57, para implementar no domicílio mudanças que permitem reduzir o consumo de energia elétrica e melhorar a qualidade de vida da família residente. Utilizando recursos disponibilizados pelo órgão regulador (Aneel)58, o Projeto Comunidade Eficiente promoveu a melhoria da iluminação, da ventilação e da fiação elétrica59 em 79 domicílios. Mais ainda, o projeto ofereceu ensinamentos quanto a hábitos e mecanismos para minimizar o consumo de energia60. Como resultado do projeto, o consumo de eletricidade foi reduzido e os domicílios inadimplentes regularizaram suas contas com a concessionária. Os participantes dos grupos focais sugeriram que o projeto seja transformado em um programa sistemático.

Um aspecto importante do sistema elétrico brasileiro é o uso generalizado de chuveiros elétricos para o aquecimento da água utilizada no banho diário. Esse hábito tem como conseqüência forte incremento no consumo de energia nos horário de pico do consumo (início da noite). Para atender a essa demanda, de apenas duas horas diárias, são necessários pesados investimentos em linhas de transmissão e de distribuição de energia elétrica.

O uso da energia solar para o aquecimento de água permitiria reduzir drasticamente a demanda de pico do sistema elétrico, com significativos benefícios econômicos para todos os consumidores61. Contudo, essa tecnologia é ainda muito pouco utilizada no Brasil. Os participantes dos grupos focais demonstraram desconhecer as tecnologias que usam a energia solar, apesar de alguns entrevistados terem tomado conhecimento dessa forma de energia em programas na televisão.

A idéia de implantação desse tipo de sistema nas comunidades foi bem recebida. Os coletores solares foram considerados solução limpa de energia que seria bem aceita no bairro. O grupo focal de empreendedores visualizou nesse tipo de equipamento uma oportunidade de geração de renda na comunidade. As indagações surgiram quanto ao preço e à forma de obtenção dos equipamentos necessários.

A Tabela mostra o hiato entre o consumo estimado e o consumo faturado de eletricidade, em termos financeiros. Os domicílios D não tiram qualquer benefício das distorções existentes no suprimento de energia das comunidades de baixa renda do

55 Essa prática é facilitada pela conduta de funcionários terceirizados que oferecem suporte técnico para a implantação do gato. 56O parcelamento das contas em débito foi muito bem recebido na comunidade, como relatou um jovem que estava em débito com uma conta de R$2.000,00. Com o projeto de parcelamento, ele está pagando cerca de cem reais por mês para abater a dívida, além do seu gasto mensal. Dessa forma, está conseguindo quitar o débito. 57 Denker/Light, Relatório Final, Comunidade Eficiente, sem data. 58 O regime tarifário brasileiro prevê um adicional tarifário de 1%, que é destinado ao fomento de inovações tecnológicas (0,5%) e à melhoria da eficiência do sistema elétrico (0,5%). Para utilizar os fundos disponíveis para a eficiência elétrica, as concessionárias devem obter aprovação do órgão regulador para seus planos de utilização desses recursos. 59 As moradias das favelas do Caju foram construídas sem qualquer apoio arquitetônico. 60 Foram doadas 3 lâmpadas eficientes por domicílio. 61 A Light realiza um projeto piloto (A Era da Energia Solar) que visa a instalação de coletores solares em comunidades de baixa renda, nas cidades de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. A concessionária estima que a redução da demanda poderá diminuir em até 30% a conta de luz dos moradores (site www.light.com.br, acessado no dia 1/2/2005, 12 horas)

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Caju. Na verdade, eles são penalizados, pois pagam pelo GLP um preço superior ao preço de mercado e não têm consumo distorcido pela prática do gato. Esses domicílios pagam cerca de 10% a mais pelo seu consumo energético.

Tabela 19 - Caju - Gastos com Energia - 2002

(R$) A B C D TOTAL Renda Média por Domicílio 1.541,37 870,59 567,73 334,23 743,07 Energia Elétrica Faturada (LIGHT e IETS)62 26,18 29,18 21,71 24,80 25,56 Energia Elétrica Estimada (LIGHT e IETS) 84,99 59,58 43,62 23,25 53,69 GLP Estimado 16,41 17,58 19,80 22,70 19,32 GLP Estimado + 20% 19,69 21,10 23,76 27,23 23,18 Gasto Total Efetivo 45,87 50,28 45,47 52,03 48,74 Gasto Total sem Distorções 101,40 77,17 63,43 47,50 73,01

Fonte: FIRJAN/IETS. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

Por outro lado, os domicílios A, apesar de também pagarem um sobre-preço pelo seu suprimento de GLP, gastam com seu suprimento energético menos de 50% do seu consumo efetivo. Os domicílios B e C também se beneficiam dessa situação, ainda que em menor medida, pois pagam cerca de 70% pelo seu consumo efetivo. Na prática, os domicílios A recebiam, na época da pesquisa, um subsídio implícito da ordem de meio salário mínimo, enquanto os dos tipos B e C recebiam cerca de um quarto de salário mínimo como subsídio. De forma esdrúxula, somente os domicílios D não são beneficiados pela prática do gato.

A Figura apresenta duas estimativas da parcela da renda dos domicílios do Caju destinada ao seu suprimento de energia, ambas baseadas nas estimativas dos gastos totais (efetivo e sem distorções) da Tabela 19.

Nos domicílios C e D, o custo do suprimento energético sem distorções representa uma parcela importante da renda domiciliar (respectivamente 11,2% e 14,2%). No entanto, como o custo efetivo desse suprimento é mais elevado nos domicílios D, a parcela efetiva da renda domiciliar destinada a garantir o suprimento energético desses domicílios eleva-se para 15,6%. Já no caso dos domicílios C, os gastos efetivos representam parcela menor da renda domiciliar (8%), fruto dos subsídios implícitos obtidos pelo mecanismo do gato.

Nos domicílio A e B, o custo do suprimento energético efetivo representa parcela relativamente baixa da renda domiciliar (respectivamente 3% e 6%). Ao serem removidas as distorções provocadas pelo gato e pela comercialização do GLP, essa parcela cresce significativamente (6,6% e 8,9%).

62 É interessante notar que os grupos focais consideraram como razoável pagar pela sua conta elétrica (entre R$ 20,00 e R$ 30,00) uma quantia bastante próxima da faturada pela Light.

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Figura 10 – Caju – Efeito do Vale Gás sobre o Gasto com Energia - 2002

0,0%

5,0%

10,0%

15,0%

20,0%

Efe

tivo

Sem

Dis

torç

ões

Efe

tivo

Sem

Dis

torç

ões

Efe

tivo

Sem

Dis

torç

ões

Efe

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Sem

Dis

torç

ões

Efe

tivo

Sem

Dis

torç

ões

A B C D TOTAL

Energia Elétrica GLP Vale-Gás

Fonte: FIRJAN/IETS. Elaboração Própria.

O Vale Gás tem impacto significativo (2,2%) na redução do comprometimento

da renda domiciliar com energia no caso dos domicílios do tipo D. Infelizmente, porém, como mostramos anteriormente, apenas 4% desses domicílios das comunidades de baixa renda do Caju eram contemplados com esse benefício. O efeito desse programa social é ainda bastante relevante nos domicílios do tipo C, onde ele reduz em 1,3% o comprometimento da renda domiciliar com o custo do suprimento energético. Novamente, porém, a parcela dos domicílios contemplados com esse programa é muito pequena (3%). No caso dos domicílios A e B, o efeito do Vale Gás sobre a renda domiciliar é pouco significativo.

No Reino Unido, tradicionalmente, mensura-se a pobreza energética com base no consumo energético mínimo necessário para manter o conforto energético do domicílio. Estudos recentes estimaram em 5% a parcela máxima da renda familiar que pode ser destinada ao suprimento energético, no caso dos consumidores de renda situados nos três primeiros decis de renda (DTI/UK, 2001).

No Brasil, não há proposta oficial para a linha de pobreza energética. Tendo em vista o fato de a renda per capita inglesa ser substancialmente superior à brasileira e que, contudo, os preços da energia são relativamente próximos nos dois países, parece-nos razoável adotar como critério para definição da pobreza energética, no caso brasileiro, o patamar máximo de 5% da renda domiciliar ser destinada aos gastos com o suprimento de energia.

Aceita essa conceituação, apenas os domicílios do tipo D seriam enquadrados como pobres energéticos, se contabilizados os gastos efetivos com energia dos domicílios do Caju. Contudo, caso sejam removidas as distorções provocadas pelo gato e pelo controle da comercialização do gás natural exercido por grupos vinculados ao crime, apenas os domicílios do tipo A não seriam considerados pobres do ponto de vista energético. Esse resultado ajuda a compreender a razão de tão forte difusão do fenômeno gato nas comunidades faveladas do Rio de Janeiro. Ele sugere também a necessidade de uma profunda revisão na política energética voltada para as comunidades de baixa renda nas regiões urbanas.

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6. Cidade do Rio de Janeiro: Pobreza e Energia

Pobreza Energética nas Favelas Cariocas

O último Censo Demográfico (IBGE, 2000) identificou cerca de 300 mil domicílios nas diversas comunidades de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro. Essas comunidades, apesar de situadas em pontos distintos do território da cidade, reúnem condições ambientais similares às descritas na seção Viver no Caju.

Os microdados produzidos pelo IBGE quanto às características dos domicílios das favelas cariocas não permitem a perfeita adequação dos critérios que foram adotados para traçar a linha de pobreza para o Caju. No Censo do IBGE não está disponível o valor dos imóveis, tampouco as condições de acesso ao crédito. Essas informações, presentes na pesquisa FIRJAN/IETS, são essenciais para identificar a trajetória passada e a perspectiva futura da renda dos domicílios.

Essa limitação obrigou-nos a estruturar uma linha de pobreza simplificada, ainda que com metodologia similar à utilizada para o Caju. Introduzimos as seguintes mudanças nos indicadores de pontuação utilizados na pesquisa do Caju:

i) ao invés do valor do imóvel, usamos a posse (ter ou não ter) do imóvel; ii) não usamos o indicador de disponibilidade de crédito; iii) no indicador de posse de eletrodomésticos, deixamos de incorporar

alguns deles de pouca relevância (máquina de costura, DVD, aspiradores etc).

Com essa base reduzida de dados, comparamos indicadores produzidos com os dados do Censo IBGE para o conjunto das favelas cariocas e os da pesquisa Firjan/IETS para a Favela do Caju. Como se pode notar na Tabela , há uma pequena discrepância na renda per capita média do total de domicílios, medida em termos de salários mínimos63. Essa discrepância é um pouco mais acentuada no caso dos domicílios dos tipos A1 e D1, porém ela é suficientemente próxima para permitir adotar os dados do Caju como representativos do universo das favelas cariocas.

Tabela 20 – Renda Per Capita em Salários Mínimos - 2000

Município do RJ (favelas) Caju Tipo Domicílios Renda Per Capita Domicílios Renda Per Capita

Nº % s/ Total (em S.M.) Nº % s/ Total (em S.M.)

A1 35.559 12,2 4,1 640 9,7 3,5 B1 85.335 29,3 1,7 2.047 31,0 1,6 C1 99.158 34,0 0,9 2.656 40,2 0,9 D1 71.510 24,5 0,3 1.262 19,1 0,4

Total 291.562 100,0 1,4 6.605 100,0 1,3 Fonte: Censo 2000/IBGE. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

Entretanto, a linha de pobreza reduzida parece-nos insuficiente para estimar a

real situação de pobreza das comunidades de baixa renda. Procuramos, então, verificar o

63 Na época do Censo, o valor do salário mínimo era de R$ 151,00; na época da pesquisa Firjan/IETS, esse valor era de R$ 200,00.

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efeito da introdução dos indicadores valor do imóvel e acesso ao crédito na linha de pobreza do Caju.

Em um primeiro teste, incorporamos o valor do imóvel como indicador adicional à linha de pobreza reduzida. A Tabela mostra que a inclusão desse indicador aumenta significativamente a parcela de domicílios pobres do Caju (tipo D) e praticamente mantém a parcela dos domicílios do tipo C. Esse resultado sugere que a incorporação do valor do imóvel na linha de pobreza tende a aumentar o nível de pobreza dos domicílios do Caju. Essa situação pode ser explicada pelo fato de que um bom número de domicílios tem a posse do imóvel, porém não tem declarado o seu valor64.

Tabela 21 - Caju - Substituição de Posse do Imóvel por Valor do

Imóvel (mantendo as demais características) Tipo Domicílios Renda Per Capita p/ Domicílio

Nº % sobre Total (em Reais) (em S.M.)

A2 463 7,0 742,91 3,7 B2 1.540 23,3 368,32 1,8 C2 2.629 39,8 207,85 1,0 D2 1.973 29,9 99,18 0,5

Total 6.605 100,0 250,31 1,3 Fonte: Censo Demográfico 2000. Tabulações Especiais. Elaboração Própria

O segundo teste incorporou o indicador de acesso ao crédito à linha de pobreza simplificada. A Tabela mostra que esse elemento diminui significativamente a parcela de domicílios pobres do Caju (tipos D e C) e aumenta a parcela dos domicílios do tipo B e, principalmente, do tipo A. Esses dados sugerem que a incorporação do acesso ao crédito na linha de pobreza tende a reduzir o nível de pobreza dos domicílios do Caju.

Tabela 22- Caju - Acréscimo de Disponibilidade de Crédito (mantendo posse do imóvel e demais características)

Tipo Domicílios Renda Per Capita p/ Domicílio Nº % sobre Total (em Reais) (em S.M.)

A3 1.250 18,9 543,18 2,7 B3 2.317 35,1 260,74 1,3 C3 2.216 33,6 141,09 0,7 D3 822 12,4 69,97 0,3

Total 6.605 100,0 250,31 1,3 Fonte: Censo Demográfico 2000. Tabulações Especiais. Elaboração Própria

Esses resultados indicam claramente que o acesso ao crédito e a posse valorizada65 do imóvel têm um impacto significativo na situação de pobreza das comunidades de baixa renda. Os domicílios com renda declarada baixa, porém com imóvel valorizado e acesso ao crédito, mostram uma situação de pobreza bem menos acentuada (visível na posse de eletrodomésticos, por exemplo) que aqueles que não gozam dessas duas condições adicionais.

Como a ausência do valor do imóvel tende a aumentar o nível de pobreza, e, por outro lado, o acesso ao crédito tende a reduzi-lo, é de se esperar que a incorporação

64 Por serem imóveis não reconhecidos pela autoridade municipal, é muito difícil identificar seu valor. 65 Daí a extrema importância da titulação legal dos imóveis das comunidades de baixa renda.

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desses dois indicadores na linha de pobreza simplificada produza uma redistribuição dos domicílios entre as posições apresentadas nas tabelas 21 e 22:

• diminuindo o número de domicílios C e D, em relação à tabela 21, mas aumentando em relação à 22;

• aumentando o número de domicílios A e B em relação à tabela 21, mas reduzindo em relação à 22;

Esse resultado foi obtido no caso do Caju: 14,6% (A), 27,8% (B), 36% (C) e 21,7% (D). Decidimos, assim, utilizar as estimativas realizadas no capítulo anterior para extrapolar os dados do Caju para o universo das favelas do Rio de Janeiro.

A Tabela 23 apresenta o resultado dessa extrapolação para o consumo de energia elétrica. O consumo anual de eletricidade das favelas do Rio de Janeiro soma aproximadamente 580 GWh, dos quais cerca de 37,4% (216,7 GWh) deixam de ser faturados, representando uma perda financeira para a concessionária de aproximadamente R$ 168,2 milhões anuais.

A maior parte dessa perda de faturamento ocorre nos domicílios A (17,8%), que não podem ser considerados como pobres energéticos. Os domicílios que podem ser caracterizados como indigentes não comprometem as finanças da concessionária. A maior parte das perdas financeiras da concessionária ocorre nos domicílios B e C, que podem ser classificados como pobres do ponto de vista energético.

É importante notar que os dados censitários indicam uma trajetória de progressiva difusão de aparelhos eletrodomésticos nos domicílios de baixa renda das regiões urbanas do Brasil. Essa trajetória sugere que o consumo de energia elétrica nas favelas brasileiras deverá ser crescente, sem que, contudo, seja incrementada a quantidade de energia faturada pelas concessionárias. Portanto, as perdas financeiras das concessionárias tendem a ser crescentes, se não for encontrada solução adequada para o problema do gato.

Tabela 23 – Favelas do Município do RJ –

Consumo e Perda de Energia Elétrica Consumo

(GWh) Perdas (GWh) Domicílios % Número

Mensal Anual Mensal Anual Milhões R$/ano %

A 14,6% 42509 11,1 133,2 6,6 78,7 30 17,8% B 27,8% 80913 15,5 185,7 6,3 75,6 75,6 44,9% C 36,0% 104883 15,7 188,5 5,2 62,6 62,6 37,2% D 21,7% 63257 6,0 72,2 0 0 0 0,0%

Total 100,0% 291562 48,3 579,6 18,1 216,9 168,2 100,0% Fonte: Censo 2000/IBGE. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

A Tabela apresenta os resultados da extrapolação para o consumo de GLP. Os gastos anuais das comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro com a aquisição do GLP somam cerca de 81,1 milhões de reais. O crime organizado apropria-se de, aproximadamente, 13,5 milhões de reais sob a forma de um sobre-preço cobrado dos domicílios favelados. Diferentemente dos gastos elétricos, a maior parte dessa transferência de recursos para o crime organizado advém dos domicílios pobres (36,9%) e indigentes (25,5%). O programa Vale Gás tenderia a minimizar esse efeito, porém atinge uma pequena parcela dos domicílios pobres (3%) e indigentes (4%), como vimos no caso do Caju. Se não for equacionado o problema do suprimento de GLP para as

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comunidades faveladas, o programa Vale Gás funciona, na prática, como transferência de renda para o crime organizado.

Tabela 24 – Favelas do Município do RJ – Gastos com GLP

Gastos (milhões R$) Gastos Adicionais

(milhões R$) Domicílios % Número Mensais Anuais Mensais Anuais %

A 14,6% 42.509 0,8 10 0,14 1,7 12,4% B 27,8% 80.913 1,7 20,5 0,28 3,4 25,3% C 36,0% 104.883 2,5 29,9 0,42 5,0 36,9% D 21,7% 63.257 1,7 20,7 0,29 3,4 25,5%

Total 100,0% 291.562 6,8 81,1 1,1 13,5 100,0% Fonte: Censo 2000/IBGE. Tabulações Especiais. Elaboração Própria.

Esses dados sugerem a necessidade de uma profunda revisão na política de suprimento energético das comunidades cariocas de baixa renda. Os domicílios em situação de indigência (D) são extorquidos em 3,4 milhões de reais pela ação do crime organizado e pagam integralmente pelo seu suprimento elétrico. Já os domicílios que conseguiram se distanciar da situação de pobreza (A e B) e os domicílios em situação de pobreza (C), apesar de também serem penalizados pela atuação do crime organizado no que se refere ao seu suprimento de gás natural, retiram substancial benefício da prática do gato com os gastos para seu suprimento elétrico. Na prática, ocorre uma total inversão da lógica social: os domicílios indigentes pagam mais que o preço de mercado pelo seu suprimento energético, enquanto os domicílios A e B são substancialmente subsidiados pela prática do gato.

Políticas para a Pobreza Energética A política energética brasileira sofreu radical modificação na última década do

século passado. A implantação de regime competitivo em ambiente de custos setoriais crescentes provocou forte elevação tanto nas tarifas quanto nos preços dos combustíveis. Os efeitos desses aumentos foram especialmente ressentidos pelos consumidores de baixa renda, pois os tradicionais subsídios cruzados que sustentavam o acesso desses consumidores às fontes modernas de energia foram drasticamente reduzidos.

Essa nova realidade coincidiu com o aumento do desemprego e o crescimento da informalidade no mercado de trabalho, movimentos provocados pela estagnação da atividade econômica. A concentração de renda, historicamente elevada no Brasil, foi mais acentuada ainda, induzindo forte expansão das comunidades de baixa renda na cidade do Rio de Janeiro66. Vale dizer, o suprimento energético tornou-se mais caro em um período de expansão da pobreza e de favelização das zonas urbanas.

O hiato social que separa o cidadão pleno dos habitantes das favelas ampliou-se, emergindo um círculo de exclusão em que os favelados, ao terem negados direitos básicos da cidadania (tais como a segurança, propriedade, saúde e educação), consideram legítima a adoção de mecanismos não legais de sobrevivência pelo fato de o

66 O mesmo processo ocorreu em todas as regiões metropolitanas brasileiras.

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ambiente socioeconômico lhes negar acesso aos direitos cidadãos. Nesse clima, o uso do gato como instrumento indevido de apropriação da energia fornecida pelas concessionárias passou a ser considerado mecanismo legítimo de garantia de acesso à energia nas comunidades de baixa renda.

Esse sentimento foi reforçado no período de racionamento. A forma autoritária com que foram impostas fortes penalidades para os domicílios que porventura ultrapassassem limites de consumo fixados pelo governo67 provocou rápido incremento no uso do gato como mecanismo de escape às sanções governamentais. Passados pouco mais de três (3) anos do racionamento, o gato passou a ser um traço cultural das favelas cariocas.68

A generalização do uso do gato impossibilita, na prática, a adoção de políticas eficazes de repressão a esse mecanismo. As concessionárias, no intuito de preservar o equilíbrio econômico-financeiro de sua concessão, sentem-se impelidas a adotar subsídios cruzados implícitos, elevando as tarifas para os demais consumidores de eletricidade para compensar suas perdas comerciais. Porém, o regulador do mercado elétrico (Aneel), corretamente, resiste em aceitar essa solução, pois ela onera os demais consumidores e distorce o sinal econômico do preço da eletricidade. Pressionadas na sua rentabilidade, as concessionárias relutam em realizar os investimentos necessários para a expansão e a preservação da qualidade dos seus serviços. Cria-se, desta forma, um círculo vicioso em que perde a sociedade como um todo.

Para equacionar essa questão, é preciso trabalhar simultaneamente sobre dois pilares: a ampliação dos direitos de cidadania das comunidades faveladas e o ajuste das tarifas de energia ao patamar de renda dessa população.

Até o momento, a política energética tem sido assentada apenas no segundo pilar, ignorando o papel determinante do déficit de cidadania na emergência da cultura do gato. São oferecidas tarifas subsidiadas a todos os domicílios cujo consumo não ultrapassa 80 KWh mensais. Também têm acesso a tarifas subsidiadas os domicílios cujo consumo se situe entre 80 KWh e 240 KWh69, porém o responsável pelo domicílio deve comprovar sua inscrição no programa Bolsa Família do governo federal para ter direito a esse regime tarifário.

As críticas a essa política têm sido crescentes. Primeiro, porque baixo consumo domiciliar não é sinônimo de exclusão social. É crescente o número de domicílios com um único habitante nos estratos médios, com baixo consumo de energia. Por outro lado, os domicílios pobres (como vimos no caso do Caju) caracterizam-se por consumo de energia relativamente elevado, apesar de ser baixo o consumo per capita. Segundo, porque o governo federal tem enfrentado muita dificuldade em estabelecer um cadastro atualizado das famílias de baixa renda, situação que inviabiliza, na prática, a oferta criteriosa de subsídios tarifários para os domicílios com consumo entre 80KWh e 240 KWh.

Sintetizando, a política energética atual para os consumidores de baixa renda tem oferecido subsídios a quem não necessita e não atende a imensa maioria dos domicílios de baixa renda, levando-as a adotarem o gato. Para oferecer uma política conseqüente, é fundamental compreender que a raiz do gato encontra-se na fragilidade dos vínculos de cidadania entre os habitantes das favelas e os cidadãos plenos.

67 Os consumidores que não reduzissem em 20% o seu consumo de eletricidade médio do período de inverno por dois meses seguidos teriam seu fornecimento de energia cortado pelas concessionárias. E havia prêmio para reduzir consumo. 68 Essa cultura vem se estendendo para além das zonas faveladas e para outros serviços públicos que operam com o apoio de redes físicas de suprimento (água, TV a cabo, etc). 69 Esse limite varia regionalmente.

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Os gatos nada mais são do que a contra face do controle exercido pelo crime organizado, não apenas do suprimento de GLP, mas, principalmente, do direito de ir e vir nas comunidades faveladas. A superação do problema do gato deve ser idealizada no bojo de um processo que instale dinâmica de coesão social nas comunidades faveladas, similar à implementada nos países europeus na segunda metade do século XX. Em outras palavras, o acesso ao suprimento de energias modernas necessita ser articulado com o acesso a outros direitos da cidadania, de forma a reforçar o sentimento de pertencer ao universo cidadão. Nesse sentido, julgamos essencial que a política energética nas comunidades faveladas seja articulada com a regularização da propriedade fundiária nas favelas e com programas de geração de renda na comunidade.

As favelas desenvolveram-se em áreas que, pela legislação vigente, são classificadas como não edificáveis ou em terras devolutas. Essa situação tem impedido a regularização da propriedade de famílias que, na maioria dos casos, vivem na mesma residência há dezenas de anos. Além disso, essa situação desvaloriza drasticamente o valor dos imóveis construídos com poupança das famílias de baixa renda, como mostramos anteriormente, reduzindo o acesso dessa população ao crédito bancário.

Os governos brasileiros têm adotado políticas públicas direcionadas a minorar esse problema. O Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável–Papel Passado, recém criado pelo Ministério das Cidades, pretende romper “a barreira administrativa e patrimonial que sempre separou os moradores das favelas dos outros moradores urbanos”.70 Esse programa tem realizado assentamentos em terras de propriedade da União, com títulos de posse do imóvel registrados em cartório. A Quinta do Caju foi o primeiro assentamento a ter seus títulos regularizados, beneficiando 859 famílias. Também a prefeitura do Rio de Janeiro adotou o Programa Morar Legal que regularizou, nos últimos anos, 129 loteamentos.71 Essas iniciativas, por enquanto ainda tímidas, necessitam ser aceleradas.

Por outro lado, o governo atual adotou a eliminação da fome, dimensão mais sofrida da pobreza, como sua principal prioridade no campo social. Os diversos programas de transferência de renda existentes em 200272 foram unificados no Programa Bolsa Família. Este oferece R$ 50,00 mensais às famílias com renda per capita até R$100,00 mensais, e as famílias com filhos até 15 anos recebem adicionalmente R$ 15,00 mensais por criança (máximo de três benefícios). O objetivo básico dessa política é diminuir o quadro de carências econômicas vivido pela família, sendo parte de um conjunto de medidas que pretende garantir acesso a direitos sociais básicos: saúde, alimentação, educação e assistência social. Essa política pode ser classificada como paliativa (Estivill, 2003), ainda que seja sua ambição transformar-se em uma política emancipatória.

Para que esses dois programas possam atuar como instrumento efetivo de emancipação dos pobres e indigentes, é indispensável que operem coordenadamente, no sentido de, com o apoio da política econômica, gerar uma dinâmica capaz de criar emprego e renda na comunidade. E o setor energético pode e deve ter um papel indutor nesse processo.

Nosso estudo de caso permitiu estimar as perdas financeiras anuais da concessionária de eletricidade do município do Rio de Janeiro em R$ 168,2 milhões e as dos domicílios relativas ao GLP em outros R$ 13,5 milhões. Somadas, essas perdas representam pouco mais de R$ 180 milhões, que poderiam ser direcionadas para

70 www.cidades.gov.br, acessado em 15/2/05. 71 www.rio.rj.gov.br/habitação, acessado em 15/2/05, às 16h30. 72Bolsa Escola, Vale Gás, Bolsa Alimentação e o Cartão Alimentação (ver www.conedh.mg.gov.br/trabalhoas/bolsa. Site acessado em 14/02/05, às 18 horas).

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produzir benefícios para os domicílios em situação de indigência (tipo D) ou em situação de pobreza (tipo C). Dois problemas colocam-se então: i) como coletar esses recursos?; e ii) a que destiná-los?

A reversão do hábito generalizado de uso do gato, assim como a eliminação dos mecanismos que permitem apropriação de um sobre-preço na distribuição do GLP por grupos vinculados ao crime organizado, são problemas de solução obviamente complexa. A política energética por si só não pode alcançar esse objetivo. Porém, atuando coordenadamente com outras políticas governamentais, o setor energético pode apoiar o processo de inclusão social dessas comunidades na vida cidadã. Essa inclusão deve resultar na eliminação desses mecanismos.

Nesse sentido, julgamos essencial articular a política energética para as comunidades de baixa renda com a política de inclusão social dos governos federal, estadual e municipal. Vale dizer, associar essa política aos programas de regularização fundiária e aos programas de transferência de renda governamentais. A propriedade fundiária valoriza o patrimônio imobiliário das famílias faveladas, ampliando suas oportunidades de acesso ao crédito. Sobre esse pilar deve-se estruturar um conjunto adicional de ações que induzam atividades econômicas na comunidade, gerando emprego e renda. As empresas energéticas podem ter papel relevante nessa empreitada, se devidamente apoiadas pela política energética.

Nosso estudo do Caju permitiu identificar uma forma efetiva para a atuação das empresas energéticas. O projeto Comunidade Eficiente, idealizado pela Light, contratou mão-de-obra disponível na comunidade para efetuar melhorias nos domicílios e para oferecer ensinamentos quanto a hábitos e mecanismos para minimizar o consumo de energia nos domicílios das favelas. Esse projeto produziu significativos benefícios tanto no plano energético (melhoria da eficiência) quanto nos planos financeiro (redução da inadimplência e dos gatos) e institucional (percepção de interesse da concessionária pela comunidade). Dessa forma, foi possível combinar o esforço de geração de renda na comunidade com a meta de redução das perdas comerciais, trazendo benefícios tanto para consumidores de eletricidade quanto para a concessionária.

O projeto Comunidade Eficiente, da Light, foi financiado com recursos oriundos do adicional tarifário destinado à melhoria da eficiência do sistema energético. Projetos similares, com um horizonte razoável de vida (5 a 10 anos), poderiam ser generalizados para todas as comunidades de baixa renda. O SEBRAE e o SENAI73 poderiam ser mobilizados pelas concessionárias para oferecerem o necessário apoio técnico à estruturação de microempresas ou cooperativas de trabalhadores que assumiriam a tarefa de implementar as medidas propugnadas pelo Programa Comunidade Eficiente74. A difusão do uso da energia solar na produção doméstica de água quente, com tecnologia assentada na mão-de-obra local, deveria ser uma dimensão importante desse programa. Dessa forma, o projeto estaria melhorando a eficiência econômica do sistema elétrico e, concomitantemente, gerando renda.

O financiamento desse programa viria do adicional tarifário destinado à melhoria da eficiência do sistema energético. Como, provavelmente, esses recursos serão insuficientes para a adoção de um programa com a envergadura necessária, o órgão regulador (Aneel) permitiria às concessionárias adicionar à sua base de remuneração, para efeito do cálculo das tarifas, os investimentos adicionais realizados dentro do programa Comunidade Eficiente, até o montante estimado como perdas financeiras provocadas pelo uso do gato nas comunidades de baixa renda. Esse

73 Organismos vinculados aos sindicatos empresariais. 74 Os grupos focais sugeriram a criação de um centro de capacitação na comunidade que ofereça aos seus moradores oportunidade de desenvolvimento de micro-negócios.

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investimento adicional seria amortizado em função da expectativa de redução das perdas não técnicas de eletricidade na comunidade.

Essa solução redunda em um subsídio inicial dos demais consumidores aos domicílios de baixa renda das comunidades faveladas. Contudo, esse subsídio inicial será rapidamente eliminado com a amortização do investimento feito no Programa Comunidade Eficiente, e os consumidores serão rapidamente compensados pela redução tarifária permanente que ocorrerá com a eliminação do subsídio implícito contido no mecanismo do gato.

A articulação do programa de regularização fundiária com os programas de transferência de renda (Bolsa Família) e o programa de geração de renda (Comunidade Eficiente) seria coroada com uma nova formulação para o regime tarifário dos consumidores das comunidades faveladas, em que novamente as concessionárias exerceriam papel atuante.

Nosso estudo identificou que o valor da fatura mensal da Light nos domicílios do Caju varia entre R$ 18,00 e R$ 26,00, valores que correspondem a consumos próximos de 100 KWh mensais. No entanto, os dados coletados quanto ao conjunto de eletrodomésticos utilizados nos domicílios sugerem um consumo significativamente superior a esses consumos nos domicílios tipos A, B e C. Apenas os domicílios tipo D consomem nessa faixa.

Na Tabela 25, apresentamos nossa estimativa da conta elétrica dos domicílios da favela do Caju, com base no consumo estimado, utilizando o atual regime tarifário para os consumidores de baixa renda. Apenas no caso dos domicílios do tipo D, o valor da conta elétrica seria equivalente ao patamar efetivamente pago em 2002. Nos demais domicílios, a conta elétrica apresentaria valores muito superiores aos efetivamente pagos em 2002 (Tabela 26).

Tabela 25 – Caju – Valor Estimado da Conta Elétrica (R$/Mensais)

A B C D

Consumo (KWH) 261,1 191,25 149,76 103,19

Compra de Energia 25,28 16,85 11,85 6,68 Transporte Itaipu 0,53 0,36 0,25 0,14 CCC/CDE 3,47 2,31 1,63 0,92 RGR 1,07 0,71 0,5 0,28 Rede Básica e Conexão 4,18 2,79 1,96 1,11 Royalties 0,18 0,12 0,08 0,05 Taxa Aneel/NOS 0,09 0,06 0,04 0,02 Pis/Confins/CPMF 4,18 2,79 1,96 1,11 Parcela Light 24,03 16,02 11,27 6,35 Total 63,02 42,02 29,54 16,65

ICMS (18%) 13,83 9,22 6,49 3,65

TOTAL 76,85 51,24 36,03 20,3

Fonte: Light e FIRJAN/IETS. Tabulações Especiais. Elaboração Própria Caso esses montantes estimados viessem a ser cobrados, praticamente todos os

domicílios das comunidades faveladas seriam colocados na situação de pobreza energética, pois a parcela da renda dos domicílios que teria que ser destinada à garantia do suprimento de eletricidade seria significativamente superior aos 5% da renda domiciliar que propomos para determinar a linha de pobreza energética nos domicílios

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B, C e D. Esse resultado sugere ser imperioso buscar alternativas que permitam alinhar os gastos energéticos das famílias faveladas ao limite acima.

A análise da Tabela permite verificar que três parcelas são dominantes nos custos que determinam as tarifas dos consumidores de baixa renda: i) a compra de energia; ii) a parcela Light; iii) os impostos (PIS, COFINS, CPMF E ICMS) e taxas (RGR e CDE). Somadas, essas três parcelas representam mais de 90% da tarifa dos consumidores de baixa renda. Portanto, qualquer proposta de redução tarifária para os consumidores de baixa renda terá que rever pelo menos uma dessas três parcelas.

A “parcela Light” corresponde aos recursos destinados a ressarcir a concessionária pelos seus custos operacionais e à remuneração do seu investimento. Como esses recursos foram recentemente revisados pelo regulador, julgamos conveniente aceitar que eles devam permanecer no patamar atual75. Resta-nos analisar as duas parcelas restantes.

A parcela dos impostos e dos encargos (CCC, CDE, RGR, PIS, COFINS, CPMF e ICMS) nas tarifas de energia elétrica sofreu significativo aumento nos últimos anos. Somadas, essas parcelas representam 29,6% das tarifas dos consumidores das comunidades do Caju. É hoje consensual, na sociedade brasileira, que os encargos e impostos incidentes sobre a tarifa de energia elétrica encontram-se em patamar inaceitável. Essa situação é particularmente odiosa no caso dos consumidores das zonas faveladas que, como pudemos identificar nos grupos focais, não sentem que lhes seja oferecida justa retribuição pelas quantias que lhes são cobradas. Parece-nos razoável sugerir que haja um tratamento tributário especial para as favelas, pelo menos até que sejam garantidos aos habitantes dessas comunidades todos os direitos da cidadania.

Nesse sentido, sugerimos que sejam removidas da tarifa dos consumidores das favelas as parcelas CCC, CDE, RGR, PIS, COFINS e CPMF. No caso da parcela referente ao ICMS, os consumidores das favelas são beneficiados com a redução do imposto incidente, de 30% para 18%. Entretanto, esse patamar impositivo ainda resulta em significativa elevação nas tarifas dos consumidores de baixa renda. Esse aspecto é particularmente relevante no caso dos domicílios do tipo D, cuja renda domiciliar per capita está abaixo do nível de indigência. Pelo menos no caso desses domicílios, sugerimos a eliminação da incidência do ICMS.

No caso da parcela “compra de energia”, sugerimos que seja permitido à Light destinar preferencialmente a seus consumidores de baixa renda a energia que vendeu no leilão de energia velha76. Nessa situação, a parcela “compra de energia” seria substancialmente reduzida. Na situação atual, a parcela “compra de energia” nas tarifas dos domicílios do Caju, caso eles não utilizassem o mecanismo do gato, oscilaria entre R$ 6,68 e R$ 25,28. Adotando para a parcela “compra de energia” o valor de venda da energia velha da Light, essa parcela passaria a oscilar entre R$ 5,34 e R$ 13,51. O resultado global dessa nova política tarifária para os domicílios do Caju é apresentado na Tabela 27. Nela podemos notar que a conta elétrica dos domicílios tipo D seria reduzida em aproximadamente 65%, ficando em patamar inferior ao gasto atual desses

75 As tarifas da Light foram objeto de cuidadosa revisão em 2003. Recentemente, a Aneel propôs um aumento tarifário adicional para a concessionária por julgar que as tarifas fixadas para 2004 não são suficientes para remunerar os investimentos da empresa. 76 A nova regulamentação do mercado elétrico brasileiro exige que todas as distribuidoras de energia elétrica contratem a energia necessária ao suprimento de seus consumidores por intermédio de leilões. A energia das centrais existentes (energia velha) e a energia das centrais em construção ou que serão construídas no futuro (energia nova) serão comercializadas em leilões separados. Nos leilões de energia velha, o preço dos contratos ficou muito abaixo do preço estimado para a energia, que será oferecida pelas centrais em construção (cerca de R$ 100,00/MWh). A Light vendeu sua energia por apenas R$ 51,73/MWh.

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domicílios. Os domicílios do tipo C teriam pequeno aumento no seu gasto atual com energia elétrica, porém, ainda assim, a conta elétrica deles ficaria muito abaixo do valor estimado apresentado na Tabela 25. Os domicílios dos tipos A e B teriam um aumento sensível de sua conta elétrica. Contudo, é importante notar que o aumento ficaria significativamente abaixo do valor estimado caso fosse aplicado ao consumo efetivo desses domicílios o regime tarifário atual (Tabela 26). É importante notar que essa nova política tarifária permitiria a todos os domicílios favelados permanecerem com a conta elétrica abaixo do patamar de 5%.

Tabela 26 – Favelas do Município do RJ – Gastos Atuais e Estimados (R$/MWh)

Fonte: Tabulações Especiais. Elaboração própria.

Tabela 27 -Caju - Valor Estimado da Conta Elétrica com Nova Política Tarifária (R$/Mensais)

A B C D

Consumo (KWH) 261,1 191,25 149,76 103,19

Compra de Energia 13,51 9,89 7,75 5,34 Transporte Itaipu 0,53 0,36 0,25 0,14 CCC/CDE 0 0 0 0 RGR 0 0 0 0 Rede Básica e Conexão 4,18 2,79 1,96 1,11 Royalties 0,18 0,12 0,08 0,05 Taxa Aneel/ONS 0,09 0,06 0,04 0,02 Pis/Confins/CPMF 0 0 0 0 Parcela Light 24,03 16,02 11,27 6,35 Total 42,52 29,24 21,35 13,01

ICMS (18% e 0%) 9,33 6,42 4,69

TOTAL 51,85 35,66 26,03 13,01 Fonte: Tabulações Especiais. Elaboração própria.

É importante comparar o efeito dessa nova política tarifária com a situação atual,

adotando a hipótese otimista de que o mecanismo do gato venha a ser abandonado pelos domicílios do Caju (Tabela 28). Do ponto de vista do governo estadual, apesar da renúncia fiscal para os domicílios indigentes (tipo D), a arrecadação tributária aumenta em 7%.. Do ponto de vista da concessionária, o efeito líquido dessa política será o aumento de 21% da sua arrecadação, depois de descontado o ICMS. A sua arrecadação com as parcelas Light e compra de energia serão incrementadas respectivamente em

Domicílios A B C D

Gastos atuais 26,18 29,18 21,71 24,8 Valor estimado da conta com tarifa atual 76,85 51,24 36,03 20,3

Valor estimado da conta com nova política tarifária 51,85 35,66 26,03 13,01

Renda Média por Domicílio 1.541,37 870,59 567,73 334,23

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70% e 5%. Os consumidores serão beneficiados pela eliminação do subsídio implícito provocado pelo uso do gato. As perdas financeiras dessa nova política ficariam praticamente limitadas à redução na arrecadação de impostos e encargos do âmbito federal.

Entretanto, essas perdas podem ser compensadas se a concessão da política tarifária proposta ficar condicionada à manutenção atualizada do cadastro dos domicílios favelados com direito às políticas de inclusão social (regularização fundiária, Bolsa Família)77 e, conseqüentemente, à redução tarifária proposta. Além disso, não há que negligenciar os benefícios decorrentes do processo de inclusão social que seria deslanchado por essa política.

Tabela 28 -Caju - Arrecadação Tarifária Anual (R$ 1000)

Nova Política

Tarifária Situação

Atual Variação

Percentual

Compra de Energia 686,4 654,5 5%

Transporte Itaipu 23,6 13,8 70%

CCC/CDE 0,0 89,9 -100%

RGR 0,0 27,7 -100% Rede Básica e Conexão 184,6 108,3 70%

Royalties 7,9 4,6 70%

Taxa Aneel/ONS 3,9 2,3 70%

Pis/Confins/CPMF 0,0 108,3 -100%

Parcela Light 1060,6 622,2 70%

Total 1967,0 1631,7 21%

ICMS (18% e 0%) 382,7 358,2 7%

TOTAL 2349,6 1989,8 18% Fonte: Light e FIRJAN/IETS. Tabulações Especiais. Elaboração Própria

Se aceito o patamar de 5% como o limite de gastos razoáveis do domicílio com seu suprimento energético, com exceção dos domicílios do tipo A, os recursos restantes disponíveis para os domicílios das favelas adquirirem seu suprimento de GLP seriam insuficientes. Os domicílios do tipo B teriam disponíveis cerca de R$ 8 mensais, enquanto os dos tipos C e D teriam, aproximadamente, R$ 3, porém o botijão de GLP está sendo comercializado a aproximadamente R$ 28 no mercado legal. A redução do preço do GLP para as comunidades faveladas torna-se, portanto, indispensável.

Diferentemente da eletricidade, o suprimento de GLP não está estruturado por meio de rede física diretamente conectada ao consumidor final, o que dificulta o ato de singularizar o domicílio que receberia o benefício de um preço favorecido. Não por outra razão, o programa Vale Gás foi incorporado ao programa Bolsa Família. Nesse caso, a redução no custo do suprimento de GLP teria que ser canalizada para os domicílios cadastrados pelas concessionárias de energia elétrica como qualificados para acesso aos programas sociais governamentais, por intermédio do programa Bolsa Família.

77 Por exemplo, por meio de um questionário aplicado anualmente nos domicílios das zonas faveladas.

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No entanto, a distribuidora de GLP recém adquirida pela Petrobrás, a empresa estatal petrolífera, poderia ser encarregada pelo governo federal de apoiar a criação de microempresas, operadas por moradores das favelas, que atuariam como comercializadoras de GLP nas suas comunidades. Dessa forma, não apenas estaria sendo eliminada uma fonte de recursos do crime organizado como, principalmente, novos empregos estariam sendo gerados nas favelas.

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7. Conclusão

A preocupação com a exclusão e a desigualdade na distribuição de renda é recorrente na literatura socioeconômica brasileira. Nas duas últimas décadas, a crise econômica deu nova dimensão a essas questões, fruto do forte crescimento da pobreza e da conseqüente expansão das comunidades de baixa renda (favelas) nas áreas metropolitanas.

Surgidas no Rio de Janeiro no final do século XIX, como espaços dos marginalizados, as favelas tornaram-se, no final do século XX, território destinado aos trabalhadores com inserção precária no mercado de trabalho e redes sociais esgarçadas. O abandono das favelas pelo Estado abriu espaço para a presença do crime organizado, criando um registro estigmatizante para os moradores das favelas, que reforça entre eles o sentimento de exclusão social. A desvalorização, advinda da perda de status social e da redução das oportunidades, “justifica” a exclusão territorial das favelas e a destituição dos direitos da cidadania de seus moradores, gerando um círculo vicioso em que a exclusão gera a pobreza e a pobreza sedimenta a exclusão.

Na segunda metade do século XX, a universalização do acesso às fontes modernas de energia foi adotada no Brasil como elemento central da política energética. Pretendia-se induzir o crescimento do consumo de energia para incrementar a produtividade do trabalho e, conseqüentemente, a renda da população. Dessa forma, esperava-se a progressiva erradicação da pobreza e da exclusão.

Fruto dessa política, as redes de distribuição de energia foram rapidamente expandidas e subsídios cruzados foram utilizados para oferecer acesso dos grupos sociais de baixa renda ao GLP e à eletricidade. Hoje, a rede de distribuição do GLP e a rede elétrica chegam a praticamente todos os domicílios das zonas urbanizadas. Infelizmente, porém, a pobreza e a exclusão não diminuíram.

Na década de 1990, à semelhança do que ocorreu em outras partes do mundo, as mudanças institucionais ocorridas no setor energético induziram profunda mudança na política energética brasileira. A liberalização dos mercados energéticos constrangeu as empresas de energia a abandonar o uso de subsídios cruzados em um período de custos energéticos crescentes. A inevitável elevação nas tarifas de energia para os grupos sociais vulneráveis gerou o problema da pobreza energética.

A resposta de parcela crescente da população pobre a essa nova política tarifária tem sido o uso do gato como instrumento de preservação do consumo em nível tarifário compatível com a sua renda familiar. Essa prática, infelizmente, apenas agrava o problema. Incorporado por grupos sociais que têm condições econômicas para arcar com o custo de seu suprimento energético, o gato vem se alastrando para outros serviços públicos, com graves conseqüências tanto no plano econômico quanto no social.

A cidade do Rio de Janeiro oferece uma ilustração do que foi exposto acima. Cidade primaz do Brasil, ela vem enfrentado, nos últimos vinte anos, o empobrecimento de sua população, visível na expansão das favelas: cerca de 17 % dos domicílios do município estão localizados em favelas. Esse quadro é agravado pela elevada taxa de desemprego da população favelada (em torno de 30%) e, de modo especial, no caso dos jovens que chegam ao mercado de trabalho (40%). Esses números denotam um quadro acentuado de vulnerabilidade social e de insegurança socioeconômica, em que a favela passa a ser o destino daqueles que vivem a situação de precariedade do emprego. Esse

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quadro complexo tende a se agravar na ausência de políticas públicas voltadas para a exclusão e a pobreza. O combate à pobreza energética deve ser estruturado nesse contexto.

Para estudar a pobreza energética na favela do Caju, propusemos uma linha de pobreza congregando os rendimentos dos domicílios com indicadores relativos ao patrimônio de seus moradores (posse e valor do imóvel, cesta de bens de consumo duráveis) e ao acesso ao crédito dos mesmos (carteira assinada, posse de cartões de crédito e conta em banco). Com base em informações coletadas em uma amostra dos domicílios dessa favela, pudemos identificar quatro tipos de domicílios:

• tipo A (14,6%) - pode ser considerado emancipado da situação de pobreza;

• tipo B (27,8%) - encontra-se relativamente afastado da linha de pobreza, porém não pode ser considerado emancipado;

• tipo C (36%) - vive no limite da situação de pobreza, boa parcela deles em situação de vulnerabilidade;

• tipo D (21,7%) - concentra a indigência e a pobreza. Esses dados sugerem que a situação de exclusão que caracteriza o conjunto dos

moradores da favela do Caju obscurece significativa diversidade quanto à renda, ao patrimônio, ao emprego e ao acesso ao crédito da população que vive nessa favela. Em outras palavras, ainda que compartilhando um espaço socioeconômico de exclusão, os moradores do Caju apresentam forte heterogeneidade socioeconômica.

Com renda per capita próxima de três salários mínimos, os domicílios do tipo A apresentam uma situação econômica longe da tradicional linha de pobreza brasileira (renda per capita de meio salário mínimo). A renda domiciliar mais elevada, o emprego com carteira de trabalho assinada, poucas crianças vivendo no domicílio familiar e o relativo acesso ao crédito permitiram a esses domicílios a aquisição de patrimônio imobiliário significativo, bem como a posse de uma cesta de bens de consumo durável diversificada. Pode-se afirmar que os moradores dos domicílios do tipo A não são pobres; sua exclusão é dada pelo território onde habitam.

Os domicílios do tipo B encontram-se em posição menos favorável. Apesar de sua renda sugerir que tenham superado a situação de pobreza, sua condição patrimonial e sua cesta de bens de consumo duráveis sugerem que esses domicílios ainda se encontram em situação de relativa vulnerabilidade econômica. O nível relativamente baixo de chefes de domicílio com empregos formais e o acesso bastante limitado ao crédito confirmam essa perspectiva.

Com renda per capita próxima da classe média brasileira, os domicílios dos tipos A e B somam quase 43% dos domicílios do Caju. Portanto, ainda que vivendo em situação de exclusão social, pouco menos da metade da comunidade do Caju pode ser considerada como não-pobre, se considerada a linha de pobreza tradicionalmente utilizada no Brasil. Esta constatação, de certa forma surpreendente, indica que a simples elevação da renda não é suficiente para romper o quadro de exclusão social em que estão colocadas as famílias faveladas.

Os domicílios do tipo C são os mais numerosos (36%) no Caju. Seus moradores têm renda per capita muito próxima da linha tradicional de pobreza brasileira. Com um bom número de crianças no domicílio e muito pouco acesso ao crédito, o patrimônio e a posse de bens de consumo duráveis desses domicílios é ainda incipiente. A vulnerabilidade é gritante nos domicílios de tipo D: renda per capita média inferior a meio salário mínimo, patrimônio insignificante, não acesso a crédito, posse de bens de consumo duráveis limitada aos equipamentos essenciais (geladeira, fogão, televisão), mais crianças no domicílio, informalidade no trabalho e sensível presença do

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desemprego. A pobreza e a indigência estão fortemente presentes no Caju. Juntos, os

domicílios C e D representam 57% dos domicílios dessa favela. Em larga medida, a vulnerabilidade dos domicílios está associada a um número elevado de crianças e à participação feminina na responsabilidade por esses domicílios. Surpreendentemente, os programas de transferência de renda têm muito pouca presença na comunidade e nem sempre estão orientados exclusivamente para os mais vulneráveis. Apenas 17% dos domicílios de tipo D se beneficiaram de alguma forma de transferência de renda dos programas governamentais.

Os moradores do Caju compreendem que os programas de transferência de renda não mudam a condição social das famílias. Do ponto de vista deles, esses programas: apenas perpetuam a situação de vulnerabilidade. Nas palavras de um morador, o indivíduo que possui um emprego, com salário digno, não necessita de “ajuda do governo”. Ou seja, a oferta de subsídios pelo governo não substitui a necessidade da adoção de medidas capazes de conferir cidadania por meio do emprego.

A ausência do poder público na favela do Caju salta aos olhos. Há falta de vagas escolares e, nas escolas existentes, o ensino é de má qualidade. São poucos os moradores que conseguem ter acesso ao ensino superior, apesar de considerarem esse um bom caminho para afastar os jovens de envolvimento com o crime. A incapacidade do Estado de dar legitimidade à propriedade imobiliária, a violência incontrolada do crime organizado, a falta de estruturas sociais que garantam o acesso à educação, ao mercado de trabalho e ao lazer formam um quadro de exclusão resumido na frase de um morador: “Viver no Caju é viver esquecido pelas autoridades que governam nosso estado e município". O desleixo dos poderes públicos com os problemas da comunidade é fortemente ressentido pelos moradores do Caju, que se consideram excluídos pelo poder público da vida cidadã.

A situação energética, analisada sob o prisma de nossa linha de pobreza, mostra um quadro surpreendente: a conta elétrica dos quatro tipos de domicílios é similar, apesar da posse muito diferenciada de aparelhos eletrodomésticos. Em outras palavras, aparentemente, a presença de um maior número de eletrodomésticos não altera o consumo de energia dos domicílios. Na verdade, esse resultado surpreendente advém do fato de ser generalizado o uso do gato para manter a conta elétrica dentro de patamar mínimo necessário para obter o comprovante de residência e conseguir acesso ao crédito das casas comerciais.

É importante notar que os domicílios do tipo D não tiram qualquer benefício do gato. O consumo médio nesses domicílios, em termos físicos (KWh), corresponde aos gastos cobrados na fatura da concessionária (Reais). Os grandes beneficiários do gato são os domicílios do tipo A. Em menor medida, beneficiam-se também os domicílios do tipo B e os do tipo C, que conseguem reduzir em cerca de 50% o custo do seu suprimento elétrico.

Se, por um lado, os moradores do Caju obtêm ganhos financeiros com o uso do gato, por outro lado, eles são penalizados pelo controle do suprimento de GLP exercido pelo crime organizado, que cobra um adicional de aproximadamente 20% sobre o preço de mercado desse combustível. Os domicílios do tipo D são particularmente penalizados pelo fato de não tirarem qualquer benefício do uso do gato.

A forte participação dos gastos com energia na renda domiciliar e o sentimento de exclusão são apontados como justificativas para a generalização do uso do gato nos domicílios do Caju. Os gastos efetivos com o suprimento energético representam cerca de 14,3% da renda domiciliar no caso dos domicílios do tipo D. Eles representam parcela menor da renda dos domicílios do tipo C e B (7,4% e 5,3%, respectivamente),

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apenas porque boa parte da energia elétrica consumida por esses domicílios não é contabilizada pela concessionária. No caso dos domicílios do tipo A, a parcela efetiva da renda familiar dedicada ao suprimento energético é relativamente baixa (2,7%), porém ela se elevaria para 6% na ausência do uso do gato.

Esse quadro heterogêneo de pobreza energética, em um ambiente de exclusão social, sugere ser necessária uma política energética para as favelas, que não fique limitada à oferta de tarifas subsidiadas. A política energética necessita ser articulada com outras políticas, tendo por objetivos a inclusão social e a erradicação da pobreza energética.

Nossa estimativa das perdas econômicas provocadas pela situação atual sugere que os domicílios em situação de indigência (D) do Rio de Janeiro pagam integralmente pelo seu suprimento elétrico, no entanto, são extorquidos em 3,4 milhões de reais pela ação do crime organizado no suprimento de GLP. Os demais domicílios, apesar de também serem penalizados pela atuação do crime organizado no que se refere ao seu suprimento de GLP, retiram substancial benefício da prática do gato para seu suprimento elétrico. Na prática, ocorre uma total inversão da lógica social: os domicílios indigentes pagam mais que o preço de mercado pelo seu suprimento energético, enquanto os domicílios A e B são subsidiados pelo gato.

Nossa estimativa das perdas econômicas provocadas por essa situação nas comunidades de baixa renda cariocas soma cerca de R$ 180 milhões anuais. A maior parte desses recursos (R$ 168,2 milhões) é drenada dos demais consumidores da área de concessão da Light para subsidiar os usuários do gato. Outra parcela (R$ 13,5 milhões) acaba nas mãos do crime organizado. Nenhuma dessas soluções é positiva para a sociedade. Urge formular uma política energética alternativa que permita não apenas regularizar o pagamento do suprimento elétrico nas áreas faveladas e retirar o controle do crime organizado sobre o suprimento de GLP, mas, sobretudo, que seja capaz de eliminar o sentimento de exclusão dessas comunidades.

Do nosso ponto de vista, essa nova política deve ser assentada em dois pilares: a ampliação dos direitos de cidadania das comunidades faveladas e o ajuste das tarifas de energia ao patamar de renda dessa população.

No que se refere ao primeiro pilar, sugerimos a articulação de um programa das concessionárias de energia elétrica nos moldes do projeto Comunidade Eficiente da Light com o Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável do Ministério das Cidades. Esse pilar teria por objetivos oferecer a propriedade legal da moradia às famílias faveladas, dar eficiência aos programas de transferência de renda, aumentar a eficiência energética das comunidades faveladas e gerar novos negócios nessas comunidades.

Já o segundo pilar teria por meta central adequar o nível tarifário do suprimento energético dos domicílios das favelas à renda desses domicílios. O indicador determinante na fixação desse nível tarifário seria o patamar máximo de 5% da renda domiciliar dedicada ao suprimento energético do domicílio, patamar em uso no Reino Unido para determinar a pobreza energética. Essa meta é factível com mudanças no regime de impostos e encargos que sobrecarregam as tarifas elétricas dos consumidores de baixa renda, somadas à permissão de que seja alocada para os consumidores de baixa renda a energia velha, contratada a preços muito abaixo do custo de oportunidade da energia nova. Restaria, ainda, algum esforço a ser feito visando a redução no custo do suprimento de GLP. Nesse caso, o caminho natural é a inclusão de subsídio à aquisição de GLP no programa Bolsa Família.

O sentimento de exclusão é muito forte nas favelas do Rio de Janeiro. A reação dos habitantes dessas comunidades à sua situação de pobreza energética, longe de

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equacionar o problema, tende apenas a inviabilizar o desenvolvimento da infra-estrutura elétrica indispensável para a melhoria da qualidade nas favelas. É importante notar que a dinâmica que encontramos no setor energético está se reproduzindo em outros serviços públicos. Essa situação é agravada pela percepção de oportunidade identificada pelo crime organizado, atuante nessas comunidades, de apropriar-se de atividades econômicas rentáveis como resultado da ausência do poder público.

Reverter essa situação é tarefa urgente.

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Relação de Siglas

ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica

BEN/MME – Balanço Energético Nacional do Ministério das Minas e Energia

CEG – Companhia Estadual de Gás

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos

FIRJAN – Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro

GLP – Gás Liquefeito de Petróleo

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

IETS – Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade

INEP – Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais do Ministério da Educação

MEC – Ministério da Educação

PAME – Parque de Material de Eletrônica da Aeronáutica

PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil do Ministério do Trabalho

PIB – Produto Interno Bruto

PMRJ – Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro

SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas

SENAI – Serviço Nacional da Indústria

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

WEA – World Energy Assessment

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Anexo

I. Metodológico

QUADRO 1 – PONTUAÇÃO SEGUNDO A POSSE DE BENS

BEM % DOMIC. QUE

POSSUEM PONTOS GELADEIRA 83,8 2 GELADEIRA DUPLEX 14,3 10 FREEZER VERTICAL 10,2 10 FREEZER HORIZONTAL 4,2 10 TV EM CORES 93,8 0 MÁQ. LAVAR ROUPAS 40,3 8 VIDEOCASSETE 35,4 8 TELEFONE CELULAR 37,8 8 TELEFONE FIXO 51,8 5 MICROCOMPUTADOR 6,8 10 AUTOMÓVEL PRÓPRIO 10,9 10 RÁDIO 87,4 2 ASPIRADOR DE PÓ 3,8 10 MÁQ. DE COSTURA 18,7 10 AP. AR CONDICIONADO 20,4 8 FORNO MICROONDAS 13,7 10 CHUVEIRO ELÉTRICO 44,9 8 TV P/ ASSINATURA 7,5 10 DVD 1,4 10 FILTRO DE ÁGUA (VELA/CARVÃO ATIVO) 56,1 5 FILTRO DE ÁGUA (OZONIZADOR) 4,9 10

QUADRO 2 – PONTUAÇÃO SEGUNDO A DISPONIBILIDADE DE

CRÉDITO MODALIDADE DE

CRÉDITO % DOMIC. QUE

POSSUEM(*) PONTOS CONTA CORRENTE 38,2 3 CONTA POUPANÇA 30,7 1 CARTÃO DE CRÉDITO 29,7 4 CARTÃO DE LOJAS 32,4 2 (*) Pelo menos um morador do domicílio possui.

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QUADRO 3 – PONTUAÇÃO DOS DOMICÍLIOS SEGUNDO AS DIFERENTES CLASSES

PONTUAÇÃO POR CLASSES DE RENDA MENSAL PER CAPITA (EM SALÁRIOS

MÍNIMOS) PONTOS ATÉ 0,5 SM 4 MAIS DE 0,5 A 1 SM 8 MAIS DE 1 A 2 SM 12 MAIS DE 2 A 3 SM 16 MAIS DE 3 SM 20

PONTUAÇÃO POR CLASSES DE POSSE/VALOR DO IMÓVEL PONTOS

NÃO PRÓPRIO 1 PRÓPRIO SEM VALOR 2 PRÓPRIO VALOR ATÉ R$ 4 MIL 3 PRÓPRIO VALOR DE R$ 4 MIL A 15 MIL 4 PRÓPRIO VALOR SUPERIOR A R$ 15 MIL 5

PONTUAÇÃO POR CLASSES DE PONTOS S/ POSSE DE BENS PONTOS

ATÉ 10 1 MAIS DE 10 A 25 2 MAIS DE 25 A 50 3 MAIS DE 50 A 100 4 MAIS DE 100 5

PONTUAÇÃO POR CLASSES DE PONTOS S/ CRÉDITO PONTOS

ATÉ 2 1 MAIS DE 2 A 5 2 MAIS DE 5 A 10 3 MAIS DE 10 A 20 4 MAIS DE 20 5

PONTUÇÃO POR CLASSES DE PONTOS S/ % MORADORES C/ CARTEIRA

ASSINADA PONTOS

ATÉ 10% 1 MAIS DE 10% A 25% 2 MAIS DE 25% A 50% 3 MAIS DE 50% A 75% 4 MAIS DE 75% 5

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QUADRO 4 – DETERMINAÇÃO DOS TIPOS DE DOMICÍLIOS (de acordo com a soma de pontos das características

acima, para cada domicílio) TIPO DE DOMICÍLIO SOMA DE PONTOS

A 26 EM DIANTE B DE 20 A 25 C DE 14 A 19 D ATÉ 13

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II. Grupos Focais

Este item apresenta um relato sucinto das discussões havidas nos grupos focais sobre o tema pobreza e energia. Foram realizados cinco grupos focais com um total de 44 pessoas (43 moradores do bairro e uma liderança informal não-moradora). Para realizar esta análise, baseamo-nos nas percepções dos moradores e não-moradores que participaram dos grupos focais. A análise divide-se nos seguintes tópicos: Viver no Caju, Energia e Geração de renda.

1. VIVER NO CAJU

1.1. A decadência do bairro

O Caju é hoje um bairro em plena decadência econômica, social e cultural. Com exceção das "lideranças formais" e dos "jovens", os outros grupos expressaram uma forte nostalgia do passado, sobretudo em relação à perda de espaços de lazer e de tradições culturais. Essa diferença pode ser creditada às diferentes posições em que os integrantes de cada grupo se encontram. Os grupos das "lideranças formais" e dos "jovens" olham para o futuro, o primeiro em virtude da necessidade de eficácia em seus mandatos, e o segundo porque, em razão da idade, não possui uma memória do bairro, só conhecendo o passado pelo que dizem os mais velhos. Os outros grupos, de certa forma, estão mais descompromissados com qualquer projeto político em relação ao bairro.

O passado é referido evocado como um tempo em que o bairro não era o que é hoje, quando se assiste à decadência, e é lembrado de forma idealizada, sempre como um tempo de glória, no que se refere a oportunidades econômicas, de lazer e à inserção no tecido social da cidade. O Caju não é mais o mesmo, embora não se saiba muito bem precisar quando começou a perder a característica de um bairro “bom de se viver”. Para alguns, foi depois da ditadura militar, outros explicam a decadência a partir da incorporação do bairro ao porto, quando os estaleiros engoliram as praias, dando margem à proliferação dos depósitos de containers; ou quando esses mesmos estaleiros diminuíram sua atividade econômica.

O certo é que os relatos deixam claro que, com o passar dos anos, o Caju perdeu dois cinemas, entre eles o "Imperial", localizado na Vila Militar, o mercado, casas de flores, "comércio farto" e muitos espaços de lazer, como parques e campos de futebol. Algumas praias foram aterradas para virar estaleiros, o que parece ter colaborado para a destruição da colônia de pescadores, onde se faziam homenagens no dia de São Pedro, com procissão de barcos enfeitados, como conta esta moradora da Quinta do Caju: Ah! Eu não me lembro, mas minha mãe me contava onde acabou a praia para virar a Ishikawagima tinha uma vila, tinha uma praia... foi aterrada para virar o estaleiro. O Caju tinha uma festa junina que era a Festa de S. Pedro, uma das melhores, que acabou! Mas isso não tem muito tempo não, a tradição, as mocinhas de branco carregando o andor, isso tudo foi acabando".

Muitas áreas foram transformadas, com prejuízo para os moradores, que perderam os locais para o lazer, substituídos por estacionamentos, armazenamento de containers e empresas. No local onde atualmente se localiza uma escola, havia um parque utilizado para várias atividades no final de semana, como jogos de futebol,

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desfiles de carnaval do bloco local "Chega Mais", que também desfilava na Cinelândia. Todas estas tradições culturais foram perdidas.

A substituição do uso do espaço por outro foi criticada nesses grupos, no sentido de que um benefício é realizado, mas se tira outro. Haveria que ter um outro local, planejado na época da construção da escola, por exemplo, para onde transferir as atividades de lazer.

Dessa forma, criticam as empresas que vieram para o Caju, com a extensão do porto, e tiraram o conforto, o bem-estar social dos seus moradores, sendo utilizado como exemplo a transformação de um local de lazer para sediar uma empresa. Para os moradores, as empresas que ocuparam áreas de lazer tinham por obrigação indenizar a comunidade, para que pudessem ser construídas outras áreas de lazer.

1.2. A Violência

De um lado, as representações das oito comunidades internas ao bairro, expressas nas associações de moradores, fortalecem a idéia da territorialização. E as facções organizadas do tráfico de drogas no Rio de Janeiro (Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Terceiro Comando etc.) "controlam" esses sub-territórios, alimentando o conflito e a insegurança.

Entre as lideranças das Associações de Moradores, é flagrante a disputa por qualquer recurso que chega às comunidades 78. Fazem questão de demonstrar que estão "defendendo a sua comunidade", ao "batalhar" para obter recursos como obras sociais, projetos etc. Essa "luta" para trazer "recursos" significa manter prestígio e poder no seu interior e alimentar a disputa entre as oito comunidades. Isso reafirma a lógica da fragmentação das comunidades. Nesse sentido, são trocadas acusações entre as lideranças formais e informais, que podem se traduzir em idéias como "não saber reivindicar", "ausência de lideranças fortes", "ausência da noção do bairro uno". No discurso, a "união" é sempre pregada como ideal, mas a realidade da fragmentação impele à competição entre as comunidades: "Já participei de algumas reuniões. Então, visivelmente o que a gente vê é o seguinte:...as lideranças cada qual puxando para si. Eu tiro, por exemplo, numa reunião que eu participei quando estava para fazer a Vila Olímpica aí. Então, um de nossos líderes falou de fazer uma divisória (repartição entre as comunidades) das pessoas que ia ser empregada, qualificada. Mas alguém disse: "Esta lá na minha área, a preferência é para os meus funcionários.". Isso daí foi visivelmente dito isso aí”.

O controle do bairro pelas diferentes facções reforça a territorialização das oito comunidades, permite a fácil cooptação dos jovens para a criminalidade e o controle, por parte destes grupos, de serviços econômicos importantes para a população (como a distribuição de gás de cozinha) e dos recursos financeiros, humanos e culturais injetados pelos projetos sociais implantados no bairro.

A convivência das diferentes comunidades com as facções do crime organizado só pode ser entendida se pensarmos que essas facções não são algo externo às comunidades, fazem parte do tecido social - é o irmão, o pai, o sobrinho, o conhecido desde criança que podem estar no tráfico. Ao mesmo tempo em que fazem algumas atividades para "eles", para aqueles que "estão de frente" na comunidade, podem

78 Inclusive o curso pré-vestibular, reivindicação das lideranças e que está sendo encaminhado pela equipe da pesquisa, tornou-se alvo desta disputa.

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também ter outras ocupações, até estar engajados em algum projeto social. Como foi dito - a única forma de "sair" é pelo trabalho.

A territorialização, isto é, a divisão das comunidades entre as facções, faz com que moradores de uma comunidade não possam freqüentar as outras, nem mesmo para ir a eventos esportivos. Daí a queixa de um coordenador de projeto de esportes sobre a dificuldade de organizar torneios que envolvam as diferentes comunidades do bairro. Essa "proibição", completamente internalizada pelos moradores, funciona no cotidiano. Assim, quando uma escola precisou fechar para obras, os alunos transferidos para outra escola, em outra comunidade, deixaram de freqüentar as aulas, por medo de serem hostilizados.

Essa situação explica o aparecimento da violência de forma explícita em todos os grupos focais, como uma das questões mais importantes para todas as comunidades. Se, no grupo das lideranças formais, o tema surgiu apenas no final, quando houve uma "provocação" feita pelos entrevistadores, os outros grupos manifestaram-se, de forma clara, como parte de explicações de respostas às perguntas. (?) Pontuou todo o discurso do grupo dos "jovens" e apareceu de forma espontânea e muito forte nos grupos de "empreendedores", principalmente quando se falou das opções e viabilidade de lazer no bairro.

Apenas um morador no grupo de "lideranças informais" apontou que o bairro é tranqüilo de se viver, atribuindo a situação à existência de um posto policial na entrada de sua comunidade - Nossa Sra. da Penha. Percebeu-se, em visita posterior, que os policiais do posto vivem em “harmonia” com os moradores e traficantes da comunidade, protegendo-os e monitorando o fluxo de pessoas que entram na comunidade para comprar drogas com os jovens do tráfico.

No grupo dos jovens, a violência foi o ponto negativo mais citado. Entretanto, o morador da Quinta do Caju distingue sua comunidade pela tranqüilidade, como aparece nos trechos abaixo: "É a questão da violência que eu acho que incomoda. Ele disse que lá no bairro dele, na Quinta, não tem muito problema com isso. Agora aqui, nós que moramos aqui.... Chatuba, Parque São Sebastião...Conhecido como Faixa de Gaza....não é assim..”

As diferentes áreas do bairro se distinguem em relação ao grau de violência. Algumas comunidades são consideradas mais tranqüilas ou porque seus moradores têm como referencial a violência considerada, por eles, bem maior em outras comunidades do Rio de Janeiro, ou porque moram em regiões estratégicas do bairro, como a Quinta do Caju.

A violência é maior nas partes do bairro mais próximas à grande rua que corta o bairro (rua Carlos Seidl), como no Parque São Sebastião, na Ladeira dos Funcionários, no Parque Conquista, no Parque Boa Esperança e no Parque Alegria. Nossa Senhora da Penha e Quinta do Caju são consideradas áreas mais tranqüilas. A primeira, por ser uma área pequena, protegida, com um posto policial ao lado da única entrada. É quase um condomínio fechado. A segunda, Quinta do Caju, provavelmente em função da existência de maior número de equipamentos urbanos e da presença mais forte de aparatos estatais, como instalações da Aeronáutica, foi considerada em todos os grupos uma área privilegiada, como aparece no discurso do entrevistado que se segue: “Então, a gente vê a Quinta do Caju e as demais comunidades, existem grandes diferenças. ...A Quinta do Caju tem mais estrutura.. é apadrinhada pela Aeronáutica, pelo PAME. ...existem“n” coisas que a valorizam.. É a comunidade ideal, como a gente queria que fosse todo o bairro. Não só dentro da Quinta” (moradora da Clemente Ferreira).

Alguns entrevistados têm percepções bem diferentes acerca das formas de violência que existem dentro do bairro. Para um deles, por exemplo, a violência existe

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na cidade como um todo, mas, quando ela está dentro de casa, sente-se segura: “as autoridades chega metendo o terror lá em todo mundo. Mas eu estou dentro da minha casa. Então, eu estou tranqüila. Eu nunca corri risco de nada (...) Ninguém nunca entrou dentro da minha casa. Ninguém nunca me abordou,, nem minha filha, nem meu filho, nem o meu companheiro”. (moradora da Vila Clemente Ferreira)

Outro morador que vive em área mais perigosa, mais atingida pelo conflito, culpa pela violência tanto a polícia quanto os "traficantes": “Eu acho a comunidade do Caju péssimo de se viver, em termo de criar filhos....No Sebastião o tráfico é uma coisa (...)No Parque Conquista é outro. Onde eu moro, que é no Parque Boa Esperança, tendo o tráfico é chamado de Chatuba é o mais inferno. (...) é a autoridade, a polícia quando entra...todo mundo vê por aí...rádio, televisão, jornal...os comentários, eles entram para bater mesmo, não respeita. É bala perdida. Os inocentes pagando o pato. E, por outro lado, os traficantes também, eles mandam bala também” (morador do Boa Esperança).

A violência interfere decididamente no cotidiano de todos os moradores do bairro, particularmente no dos jovens, uma vez que ficam mais expostos no ir e vir para o trabalho, estudo ou lazer, sendo também objeto de aliciamento por parte da empresa do tráfico. Além de ser um fator com o qual têm que conviver diariamente de uma forma muito concreta e próxima, como se pode perceber na fala que segue: "Quando eles vêm invadir aqui é uma tristeza. ...E a gente não pode ficar até tarde na rua porque do nada começa tiro... À noite final de semana, quando não tem nada na praça, uma festinha de rua, a gente tem que ir para casa. Eu acho que falta também o lazer, e a questão que a gente não gosta mesmo é a violência mesmo, que é difícil acabar aqui no Caju” Para os jovens, a violência está acabando com o Caju. É nesse sentido que eles reivindicam uma educação de qualidade, que aparece como uma forma de conseguir melhores oportunidades de vida e de combater a violência.

Foi enfatizada por todos os jovens a falta de cursos profissionalizantes e de uma boa escola de Segundo Grau. Para eles, uma comunidade com aproximadamente 6.000 pessoas já justificaria ter cursos profissionalizantes, porque, quando os jovens terminam o segundo grau, ficam sem perspectiva, "quando a gente termina o 2º grau, como é o meu caso, a gente fica assim, e agora? Como no momento, eu não estou fazendo nada"

A reivindicação por cursos profissionalizantes localizados na comunidade se explica, também, pelo perigo que têm que enfrentar na volta dos cursos localizados fora do bairro, uma vez que são obrigados a estudar no horário noturno, em escolas fora do bairro.

Os jovens do Caju acompanharam a "onda" geral de procura pelo 2º Grau Técnico, que, no Brasil, cresceu muito no último ano, dadas as maiores possibilidades de emprego. A reivindicação de mais e melhores cursos profissionalizantes, localizados no bairro, traduz uma busca individual de melhores oportunidades, mas também revela uma preocupação social, como a única forma de combate à arregimentação dos jovens pelo tráfico, como mostra este trecho. “Um jovem que passa o dia inteiro sem fazer nada com certeza vai ser atraído pela "lanhouse” (casa de jogo de computador), pelos colegas que ficam fumando, seja o que for na rua. Vai ser atraído por uma coisa ruim. Está precisando de uma ajuda mesmo profissionalizante e também de lazer. Um curso onde ele se forme naquilo que ele queira e onde ele se divirta também.”

Enquanto os "jovens" apontam a educação como forma de combate à violência, os participantes do grupo das "lideranças formais" creditam o fato à falta de trabalho. Segundo o grupo, o bairro é violento porque não há trabalho, principalmente para os

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jovens que ali residem. Nesse sentido, o ingresso no mundo do tráfico torna-se a única via de sobrevivência, o que legitima a violência dentro da comunidade.

Para alguns jovens do bairro, que entraram em contato com o crime, é difícil tentar arrumar algum trabalho, mesmo que tenham sido “liberados pelo tráfico". Foi frisado, no grupo das lideranças formais, que a única forma de "liberar" o indivíduo do tráfico é pelo trabalho. A dificuldade para fazê-lo pode ser creditada à baixa escolaridade, à incapacidade de permanecer no trabalho devido à falta de disciplina e/ou à dependência química. E também porque trata-se de soluções individuais pensadas pela comunidade, sem nenhum apoio institucional ou de Governo, como se pode perceber pelo que segue: “Pois é, isso aconteceu até mesmo na minha comunidade. Eu conversei com o dono da Triunfo e consegui umas fichas para empregar alguns moradores daqui do Caju. E o que aconteceu? Até pessoas que trabalham no tráfico queriam se empregar.. E eu fui, eu dei a maior força... A dificuldade foi para aquelas pessoas que não sabiam ler e escrever”. Os relatos abaixo contam uma história de um morador do bairro, por meio do discurso de duas lideranças comunitárias: “o que aconteceu com o André, o Caveirão passou lá e matou ele. A gente tinha uma proposta, eu e João (outro líder comunitário) para empregar o cara. Ele chegou perto de mim, uma semana antes e falou: - "Por favor, pelo amor de Deus, arruma um emprego". Lá na minha sala. "André, a gente vai ver".. Levamos o currículo dele, levamos tudo. Não só dele como de outros – bandidos – para arrumar emprego. Não conseguimos. Uma semana depois, o cara estava morto. Porque o cara chegou e disse para a gente: - ‘Se vocês não conseguirem um emprego para mim, eu vou para o tráfico e eu sei que vou morrer.’ E morreu”. (...) “Dá licença, eu queria falar sobre esse caso. Eu tentei trazer o André. Botei o André no Gari Comunitário. O André trouxe sérios problemas. Por que? De manhã, ele não tinha condições de levantar para trabalhar, porque passava a noite armado, na vida. André não trabalhou nem um mês, ele não conseguiu trabalhar. Queimou meu filme. Eu não consegui mais vaga na minha comunidade. Eu levei o André, tirei documento do André, fiz tudo pelo André, botei o André e ele me queimou”.

1.3. Cursos Profissionalizantes

1.3.1.Considerações gerais Encontramos entre os jovens, o que seria previsível, mas também entre os

adultos, de todos os grupos, uma grande preocupação de realizar cursos profissionalizantes que ajudem na empregabilidade. Além dos cursos de 1º e 2º Graus oferecidos pelas escolas públicas estaduais e municipais, existem vários outros cursos no bairro. A seguir, apresentamos um quadro com alguns deles, o local onde se realizam e algumas observações sobre seu funcionamento.

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CURSOS OFERECIDOS NO CAJU

CURSOS LOCAL OBSERVAÇÕES

Mecânico Rotary –SOS/ Parceria com a FIAT.

Limitações à participação dos moradores: o nível de exigência do processo de seleção inibe os adolescentes da comunidade a se candidatarem, em face da baixa auto-estima.

Informática e vários outros de qualificação

Quartel da Aeronáutica na Quinta do Caju.

Para a Terceira Idade

Informática Rua Carlos Seidl. Parceria American North Bank/ Assoc. Ladeira dos Funcionários

Com uma duração máxima de três meses, com três provas. Os três melhores alunos ganham uma bolsa para um curso de Webdesigner, durante um ano.

Informática Rotary –SOS Serviços gerais, auxiliar de escritório.

Rotary- SOS /ASPAR (Associação Patrulha Jovem)

Já havia terminado. Aulas de português e de matemática.

Alfabetização Várias associações de bairro. Artesanato Assoc. Vila Clemente

Ferreira

Escolinha de Esportes Projeto Mel da Prefeitura Vários esportes em várias comunidades

Alfabetização e vários cursos Projeto "Jovens pela Paz" -

Escola de circo " Fábrica do Sonho"

Vila Clemente Ferreira.

Constatou-se que o curso de eletromecânica oferecido pela Fiat, dentro do SOS, (a “menina dos olhos” dentre todos os cursos oferecidos dentro do bairro) não pode ser desfrutado pelos jovens que ali residem. Na realidade, há uma série de limitações que restringem a participação deles nesse curso, e os alunos são, em sua maioria, pessoas de fora da comunidade. Um dos entrevistados chamou a atenção para o nível de exigência do processo de seleção desse curso, o que limita a entrada dos jovens do Caju que, segundo ele, não alcançariam o nível exigido, pela má qualidade do ensino nas escolas locais:“A prioridade é trabalhar em cima da comunidade da área do Caju. Mas como é feito uma seleção por capacidade, muitos adolescentes do Caju não têm acesso a um certo tipo de escola igual a um de fora tem. Então, 90% é cortado, 1% vai para o curso. Aí é onde eles cata o pessoal de outras localidades e completa o efetivo deles”. Provavelmente, o processo seletivo, por meio de prova de conhecimentos no nível de 1º grau, provoque insegurança e desinteresse entre os jovens da comunidade para tentar uma vaga no curso. Segue a intervenção de mais um integrante do grupo: “Em relação à Fiat... Daquela reunião que nós assistimos, o que eu achei que ele falou [o

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coordenador de lá]... que daria até 70% das vagas para os nossos adolescentes, só que eles teriam que estudar e fazer as provas. O que eu acho mais que justo! Porque é uma prova a nível de 7ª série ... E realmente, gente, o que eu vi na minha comunidade...Até fiquei muito triste quando a gente anunciou: - Olha gente vai ter a prova lá para Fiat! Eu não vi interesse nos adolescentes. Então de repente até é isso. Não tem muitos adolescentes nossos aqui porque realmente as vezes eles não se interessam”.

O mais ambicioso em matéria de continuidade, entre todos os cursos de informática, parece ser aquele realizado em parceria com a associação da Ladeira dos Funcionários e o American North Bank, uma empresa que tem uma unidade localizada no bairro. Tem uma duração máxima de três meses, e são feitas três provas. Os três melhores alunos nesse primeiro curso ganham uma bolsa para um curso de Webdesigner durante um ano. No grupo de lideranças formais, o coordenador do curso na comunidade defendeu a taxa de 40 reais cobrada para os adultos e criticou o desinteresse dos jovens em participar de cursos de qualificação gratuitos. Ao mesmo tempo, essa liderança presidente da associação da Ladeira dos Funcionários, (?) coordenador do curso de informática patrocinado pelo American North Bank, criticou fortemente a maioria dos outros cursos de informática existentes no Caju, porque não qualificam em nada o aluno, pois têm duração muito curta (e provavelmente, qualidade questionável). Ressaltou, em seguida, a necessidade de um projeto social sério, de qualificação do jovem que mora no Caju e pretende ingressar no mercado de trabalho, sugerindo que a população do Caju deveria ser empregada no mercado de trabalho local, com muitas empresas: “Tem uma série de cursos, só que a demanda é grande. Mas esses cursos que tem na comunidade... têm que ser reavaliados. Você tem que avaliar o mercado local do Caju porque a intenção é você estar empregando o povo do Caju no Caju. A proposta de curso deve ser voltada para esse mercado local, vai inserir a pessoa no Caju para trabalhar. Vamos qualificar ele para a necessidade deste mercado local. Vamos diversificar ou requalificar”.

No grupo de lideranças informais, havia duas jovens que trabalhavam em projeto de alfabetização e que tinham realizado o curso de informática do SOS, embora não venham praticando. Enquanto isso, uma das lideranças - aquela que pareceu conhecer muito bem a maioria dos projetos sociais que existem no Caju - teceu severas críticas aos critérios de idade, pagamento de taxas e limite de escolaridade desse curso, em face da necessidade de pessoas como ela de fazerem um curso de informática: “...estou tentando fazer um curso de informática o maior tempão. Se tivesse recursos para pagar o curso lá fora, já até teria feito. Na época em que vim aqui fazer o curso da SOS, fui informada que teria que pagar uma taxa de 15 reais. Eu estava desempregada, não tinha como tirar esses 15 reais. E teria que ter o 2º grau. Só fiz até a 8ª série, então me senti ...excluída do processo. Depois, fiquei sabendo que esse curso nunca tem vaga para adultos, só para crianças”.

Os cursos de qualificação estão, teoricamente, à disposição dos moradores das diferentes comunidades, mas a possibilidade de procura e freqüência obedece à lógica da territorialização, imposta pelas facções locais e interiorizadas pelos moradores: “É que muitas vezes, alguma coisa que funcione em determinada comunidade, que é colocada em aberto, outras comunidades têm receio, como ela citou o problema da violência, de freqüentar outras comunidades aí. Então, isso se torna um grande obstáculo de uma comunidade para outra (...) porque infelizmente a área do Caju é dividida por facções, então muitas vezes pessoas que não têm nada a ver têm receio de ir de uma comunidade para outra (...)” (morador do Nossa Sra. da Penha).

Alguns são mais bem informados do que outros sobre os cursos que existem na comunidade, possivelmente, por morarem em localidades que estão mais próximas dos

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locais de realização dos cursos, como os moradores da Quinta do Caju : “ Os principais são informática, auxiliar de escritório... Tem artesanato, mecânica, eletrônica, turismo... São cursos que podem ajudar futuramente. Quanto mais você for fazer esses cursos melhor para se tornar um profissional de qualidade. Aí quando tiver com um currículo preenchido de cursos bons, vai ficar muito mais fácil achar um emprego. Vê aquele emprego sobre o gari. Aquela fila imensa. Tinha lá advogado, juiz, médico, com um currículo mesmo legal, com diploma e tudo, só que não estavam conseguindo trabalho. Imagina alguém que não tenha curso, nem sequer o básico da informática. Essa pessoa está completamente... perdida."

Em todos os grupos, notou-se a falta de conhecimento dos moradores em relação aos cursos oferecidos devido à comunicação deficiente. No grupo de jovens, cada um tinha conhecimento de um curso ou de um projeto, e o grupo focal se tornou um espaço de troca de informações e oportunidades. Os jovens se queixaram muito da falta de informação e da forma pouco democrática de escolha dos alunos.,. Como é um recurso escasso, as pessoas da comunidade que têm mais acesso o utilizam como moeda de troca. "Esses cursos que tem aqui na comunidade ou a gente não tem informação que está acontecendo os cursos ou as pessoas são escolhidas a dedo. Chega assim; "oh, vem cá você, tem um curso ali.".. Não, ao invés de divulgar, botar um cartaz, avisar, fazer uma divulgação legal para dizer que tem curso, não. São pessoas escolhidas a dedo, por interesse próprio das próprias pessoas daqui, assim, presidente, vice-presidente às vezes tem algum interesse próprio, indicam a pessoa, que também indicam uma pessoa que não dá informação total para ela. Só divulga, “ ah,, tem um cursinho ali, faz aquilo ali para mim” e nada mais. Não informa o que é. A gente chega a perguntar só que não indicam, não falam."

Havia quatro jovens que tinham realizado o Curso da ASPAR - Associação Patrulha Jovem do Rio, patrocinado pelo Rotary no SOS. Esse curso teve caráter profissionalizante e durou até o jovem atingir 18 anos. Foi um curso de serviços gerais, auxiliar de escritório, com aulas de português e de matemática, "para aprender a falar melhor" e, que durava um tempo mais longo. Alguns foram encaminhados para uma empresa, outros, não. Todos consideraram o curso bom porque encaminhou alguns jovens para a empresa. “Comecei com 16 anos e quando você completa os 18 você tem que sair, porque completa a maioridade. Assim, foi o único curso que eu vi aqui no Caju que realmente deu oportunidade de emprego para muitas pessoas aqui dentro. É, foi através dele também, com o contato que eu tive com a diretora de lá que eu arrumei esse emprego agora, que eu estou agora. Já está com três anos. Então foi o único curso, que eu vi que deu certo aqui dentro do Caju".

Os outros cursos oferecidos parecem ser cursos mais curtos e não têm caráter profissionalizante. Alguns cursos que são oferecidos, por iniciativa particular, não têm estrutura para continuar e frustram as expectativas dos jovens: “Eu comecei a fazer alguns cursos de informática. Tanto é que tinha um curso comunitário, aqui na comunidade do Caju mesmo, que a pessoa pagava vinte reais e fazia o curso por três meses. Era na comunidade Parque Nossa Senhora da Penha. Só que no término do Primeiro mês o curso faliu. Não se sabe o motivo. Você começou fazendo o curso, terminou sem o diploma. Era um curso particular.”

Alguns jovens têm muito clara a necessidade de aprenderem informática como uma ferramenta fundamental para o mercado de trabalho atual. "Era um curso de informática básico. Mas o Básico ajudou muito melhor do que nada. Porque hoje em dia tudo está pedindo informática. É porque um curso profissionalizante é diferente. Tudo está pedindo informática. Até mesmo balconista está pedindo informática básica.

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Todo curso de informática sendo básico, não é profissionalizante. Que é um curso que vai te ajudar para a profissão."

As lideranças formais e informais e os jovens criticaram muito os cursos que são realizados pelos projetos porque têm um caráter pontual, sem continuidade. E percebem que não existe uma proposta educacional séria destinada às populações dessas áreas: "Essa questão dos cursos seria ótimo porque o que mais tem aqui são projetos.. Projeto para isso, projeto para aquilo... mas a questão de efetivar mesmo é muito difícil acontecer. A gente está falando muito de serviços para jovem, mas tem muitas pessoas aqui que já tem uma certa idade e estão desempregadas. A questão seria um curso para pessoas de mais idade. Como cursos de corte e costura, curso de artesanato. Artesanato hoje em dia está dando muito dinheiro. Hotelaria também seria uma boa. Mecânica para os jovens... tem o curso da Fiat, mas tem uma determinada idade para a pessoa entrar, tem até que fazer prova e tudo para poder entrar. Se você não for aprovado, você não entra. Tem muitos jovens, rapazes que não têm oportunidade também de fazer esses cursos. Seria uma boa esses cursos para pessoas de mais idade e pessoas jovens também".

Poucos empreendedores conheciam os cursos profissionalizantes em sua comunidade. Outros não sabiam da existência desses cursos em suas respectivas comunidades (inclusive naquelas que se destacam por possuírem vários projetos sociais, oferecendo cursos). Interessante foi o fato de ninguém sequer ter mencionado o SOS, que possui uma série de cursos. Pareceu-nos que os integrantes de idade mais avançada não tinham conhecimento algum sobre os cursos existentes no Caju. Também entre os empreendedores foi enfatizada a necessidade da existência de cursos profissionalizantes para os jovens na comunidade. O grupo também destacou as limitações econômicas para os jovens, principalmente de favelas, participarem dos cursos reconhecidos/valorizados no mercado de trabalho, como por exemplo os cursos do SENAI/SENAC, considerados muito caros.

O conhecimento do segundo grupo de empreendedores sobre os cursos existentes no Caju é muito variado e passa pelo valor que cada um dá a um determinado tipo de curso. Assim, para uma manicura, o curso de computador que é oferecido pode ser desqualificado como curso de criança: "Aqui no Caju agora não tem mais curso. Tinha curso quando era o SOS. O único curso que tem aqui no Caju é negócio de computador. É o único que tem. Fora isso não tem outro curso para ninguém fazer.(...) só curso para criançada fazer o computador, aprender computação e mais nada. Só. Não tem mais nada".

E, mais uma vez, é a experiência de trabalho que faz com que outros cursos sejam conhecidos e valorizados, como citou o mecânico de automóveis: "Aqui tem de mecânica Fiat, aqui no Caju. Inclusive eu tenho um neto que está se formando no curso de mecânica agora, o ano que vem ele se forma e está indo ganhar a vida dele. Mecânica, só aqui no Caju”.

Enfim, o conhecimento do que acontece no bairro se circunscreve à experiência imediata de cada um, em sua experiência de trabalho ou em sua comunidade: "E agora está tendo um projeto na associação, de artesanato. E eu estou gostando muito. Eu gostaria que tivesse mais. Associação de moradores do Parque Alegria. Eu acho que é por causa da eleição. Não tenho certeza não. Porque falou que se não votar no César Maia vai acabar...? É mais ou menos isso, se perder acabou. É benefício temporário”.

Aqui aparece uma forma importante de cooptação política, que não está ligada a uma corrupção imediata, mas à idéia da doação. Trata-se da percepção de que os projetos controlados por alguns políticos acabarão se eles não forem eleitos, prejudicando a população, que deixará de receber aquele benefício.Todos os integrantes

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desse grupo gostariam que houvesse mais cursos no Caju para que as pessoas conseguissem melhorar as suas condições de vida. Apareceram respostas genéricas, mostrando que deveria haver cursos de várias áreas para atender as diferentes preferências, enquanto outros citaram vários cursos. Uma das justificativas para preferir um curso perto de casa é o custo da passagem. Enfatizaram que é preciso que os cursos beneficiem todas as comunidades do Caju, não apenas uma. Foi lembrado que seria bom se conseguissem o patrocínio de "alguém interessado, alguma autoridade, empresas, instituição privada que interessasse em montar aqui seria muito beneficente para gente".

Alguém lembrou que a área de telemarketing está se expandindo e que seria interessante haver cursos direcionados para esse serviço, uma vez que emprego é a preocupação central. Outra atividade lembrada foi a escolinha de esportes para atender a todo o bairro, o que dá um testemunho da importância do esporte nas comunidades carentes: "eu estava aqui me lembrando que na época o que me afastou das drogas foi – na época, tinha a escolinha aqui do Mavibis. E muitos jovens da minha época - eles até hoje não usam drogas – participavam. Então eu queria reivindicar alguém que intensificasse uma escolinha de futebol e que abordasse outras áreas de lazer ali dentro."

1.4. Lazer

Todos os participantes dos cinco grupos, com raras exceções, queixaram-se da ausência de alternativas de lazer no Caju, reivindicando para o bairro equipamentos, que na ótica deles, encontram-se fora do bairro, e cujo acesso é limitado devido a condicionantes econômicas.

A opinião geral é "Quem quer lazer tem que sair do bairro." E deslocar-se implica uma série de gastos, como passagem e lanche. Os jovens que cursam o segundo grau em escolas fora do bairro saem mais cedo das aulas para ir ao cinema, ao parque, divertir-se com os amigos: "E no bairro onde você mesmo mora sem um tipo de lazer que vocês possa se divertir, extravasar um pouco, fica uma coisa meio cansativa, meio presa. É como se você estivesse num lugar preso. Esses pequenos projetos que têm teatro ou música são a minoria".(jovem)

Apareceram diferentes tipos de lazer praticados pelos moradores do Caju, como pescar; ir ao teatro, ir ao parque, ir a lugares que sejam baratos, ir à praia, ir à piscina. Comida também apareceu como lazer, no sentido de utilizar o dinheiro que sobra para comprar comidas, "besteiras", e também no sentido de comer melhor, o que não se come no cotidiano (filé, por exemplo).

A Quinta da Boa Vista, porque é perto e barato, e a Feira de São Cristovão são os lugares mais citados para o lazer: "No meu caso, eu tenho quatro filhos, eu não tenho condições de botar os quatro... num lugar onde se paga. Então, quando eu quero fazer um lazer, eu procuro a Quinta da Boa Vista. Se eu pudesse puxar a Quinta da Boa Vista para o Caju... Ou então, ir para praia... Então quer dizer, quando eu quero me divertir, eu tenho que sair do Caju. Que não tem nada no Caju. Inclusive eu trabalho na praça à noite e você não vê qualidade nenhuma de lazer. Você não tem um brinquedo próprio paras crianças ali, como em outras áreas tem. Até mesmo para os jovens, em relação à idéias – eu posso até citar, skate – em outras áreas você vê.."

Alguns moradores vão para o centro da cidade - que não é distante - e procuram lugares com música. Outros, com maior renda, freqüentam shopping, em um bairro

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próximo, ou vão ao cinema, no centro da cidade. Outros, alegando não terem tempo, não saem, ficam em casa jogando videogame. Existem aqueles que jogam futebol no próprio bairro. E houve entrevistado que disse que, quando pode, viaja para a Região dos Lagos - Iguaba Grande.

Em um dos grupos de empreendedores, comparou-se o Caju com outras comunidades e foi constatado que o bairro tem poucos equipamentos de esporte, como quadras. Aquelas que existem não atendem à demanda: "Eu tenho visto em outras comunidades, como a Vila do João, eu não sei se é para inglês ver – eu creio que é – ali na Linha Vermelha, tem uma quadra de futebol atrás da outra, e tudo vazia. Aqui, para nós fazer um lazer, para jogar uma bola ou até as meninas jogar um vôlei, muitas vezes tem que pagar um espaço. Então, em relação a qualidade de lazer dentro do Caju, é nota ZERO!' (empreendedores); "Só tem aquela quadra lá que está jogada ao deus dará.. Chega um ponto ali, que está todo mundo sufocado. Todo mundo quer jogar, as crianças quer jogar... Quando vai terminar o jogo é duas, três horas da manhã, esperando a vaga. A única coisa que tem lá no Parque da Alegria é isso". (empreendedores).

Muitos entendem que a culpa desta situação é que o Caju é um bairro esquecido pela imprensa, conseqüentemente, também pela prefeitura, que não se volta para o Caju com programas de lazer, como Vilas Olímpicas, como em outras comunidades. Essa parece ser uma queixa claramente influenciada pela época em que foi feita a pesquisa, nas vésperas das eleições. Mas é também uma reivindicação de quem vê comunidades vizinhas serem beneficiadas com grandes equipamentos.

Um dos participantes do grupo das lideranças informais relacionou a questão da limitação econômica à pouca divulgação dos eventos gratuitos que ocorrem na cidade. Nesse sentido, a falta de informação, aliada à falta de recursos, gera acomodação, impedindo que as pessoas sintam vontade de sair do bairro.

Por último, verificou-se que apenas um participante do grupo das lideranças informais – não-morador do bairro – percebeu o Caju como um lugar interessante, onde é possível criar espaços de lazer, como um Centro Cultural, a partir da própria história do bairro e de monumentos que fazem parte da identidade do bairro: a Casa de Banhos de D. João VI, como mostra o trecho a seguir.

Os jovens parecem ser o grupo que mais sai do bairro para se divertir. Saem, em princípio, quando participam de excursões, passeios promovidos pela escola ou por algum projeto social existente na comunidade, como relata um deles: "Teatro como atividade cultural eu só tive acesso uma vez no museu. Uma outra coisa não relacionada ao Teatro, no Museu de Belas Artes teve a pintura de Monet, e por causa de um passeio da escola. (grupo de jovens); "Eu também fui. Acho que foi no mesmo tempo. Foi no mesmo dia que ele foi – Claude Monet... Mas está vendo, só por causa do colégio. Foi em 97" (grupo de jovens).

Mas, também costumam ir ao cinema na Cinelândia, no centro da cidade, nos dias de semana, porque é mais barato; outros vão ao Norte Shopping. Um dos jovens tem um amigo que trabalha em cinema da Zona Sul, por isso tem facilidade de entrar sem pagar, o que aproveita vendo todos os filmes que passam nesse cinema.

Apenas dois jovens tinham ido ao teatro, um deles apenas uma vez. Uma das jovens ia muito, quando criança, ao Teatro Municipal, com o pai, que trabalhava lá. Um deles se queixou de que o teatro é caro, embora fosse lembrado por outros que há teatro a um real. Imediatamente, um dos jovens colocou a verdadeira razão para eles não irem ao teatro não existe o hábito de freqüentar teatro por uma "questão cultural"; o teatro aparece como um hábito de elite. Esta questão esteve presente também em outros grupos, no das lideranças informais,por exemplo, como foi expresso claramente: "Se

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você chegar no bairro de Copacabana, perguntar para uma criança onde ele quer ir, praticamente, ele vai falar assim "Eu vou para o teatro, porque ele já vive naquela área, é o nível dele. Se você chegar e perguntar o nosso nível O que você quer ver? Ah! Eu quero ver o cinema! Por quê? Porque o cinema é bom? È que nem ele falou mesmo, é falta de cultura - infelizmente, isso é verdade – de informação. Se perguntar ...Ah! Eu vou ao futebol. Por quê? Porque eu gosto do futebol? É nosso. (morador da Vila Clemente Ferreira); "Falta de cultura(...) e quem vai sozinho, não tem visita guiada. Visita guiada é só para quem liga antes, marca, leva um grupo enorme. Então, se sai daqui uma pessoa analfabeta que queira ver uma coisa diferente vai se perder lá dentro. Não vai saber para onde vai andar, o que está vendo.... Não vai ter ninguém para guiar aquela pessoa”. (moradora do Parque Boa Esperança)

Alguns jovens demonstraram grande vontade de ir a teatro, e uma jovem estava informada sobre as peças que iriam passar em um teatro próximo, localizado nos armazéns do Cais do Porto. O depoimento abaixo, de uma jovem de 22 anos que completou o segundo Grau, desempregada, com uma renda familiar declarada de 800 reais, para uma família 4 pessoas, revela a extensão da exclusão cultural na cidade do Rio de Janeiro, sobretudo se for levada em conta a localização do bairro, tão próximo do Centro da cidade do Rio de Janeiro, com todos os seus equipamentos culturais: "Seria bom que a gente tivesse mais oportunidade para ir ao teatro. Eu tenho uma vontade imensa de ir, mas só que às vezes é tão difícil....Ali naqueles armazéns. ..vai ter uma peça lá. Vai ser parece que R$2,00. vai ser uma peça... falando sobre o Mundo do Skate. Mas não fala só sobre Skate, é toda uma história ali... Eu queria ir, mas eu não sei se vai dar. Eu nunca fui, mas eu tenho uma vontade imensa. Eu queria muito que nós tivéssemos mais oportunidade, mais acesso a essa parte cultural, ao teatro. Que deve ser muito bom!"

Embora todos os onze participantes do grupo de jovens falassem do passeio à Quinta como algo muito comum aos domingos, apenas quatro deles conheciam o Museu Nacional, aí localizado.

Há projetos sociais na comunidade que oferecem vários cursos de esporte, teatro, capoeira, música etc., como o "Jovens pela Paz". Uma integrante do grupo dos jovens que faz parte deste projeto explicou como ele funciona, ao mesmo tempo em que relatou que faltam alunos, pelo visto porque o projeto é pouco conhecido na comunidade. O conhecimento sobre os diferentes projetos existentes nas comunidades é muito pequeno. Embora alguns tenham ouvido falar do projeto "Jovens pela Paz", a questão da territorialização está sempre presente. Dado que o projeto em questão está localizado em uma das partes do bairro ou do Complexo do Caju, como eles se referem, os moradores das outras partes não têm acesso. Conclui-se que a informação é um ponto crítico.

Entretanto, os entrevistados citaram uma instituição, fora do bairro, que proporciona aulas pagas de natação e de outros esportes, e onde algumas mães estão matriculando seus filhos, mesmo pagando, numa estratégia consciente de ocupá-los, evitando que os jovens fiquem ociosos na rua. Nesse sentido, há uma descrença na ação do poder público em preencher essa lacuna que é crucial para o jovem nessas comunidades. "Se for natação, acho que é R$25,00; esporte é R$20,00. R$20,00que a gente paga para o filho da gente, também não é nem tanto! Porque a gente não vai esperar a boa vontade da prefeitura chegar e colocar. Aí vai ficar um ano, dois anos, três, quatro, cinco – para chegar e botar. Então, o que é R$20,00 por mês? Você não sai ali na rua e não gasta com cerveja R$20,00? Então, você pega os R$20,00 e paga para o seu filho passar o mês nadando, jogando bola, aprendendo alguma coisa na vida. Só esperar pela prefeitura, você vai mofar. Seu filho vai aprender na rua o quê? O

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que não presta, a ser alguém ruim na vida. Ali, não. Ali, vai para escola, saiu da escola, vai lá: É a única coisa que a gente tem. Agora, tem muita gente que não quer pagar. Quer esperar a prefeitura chegar e colocar alguma coisa aqui dentro."

Entretanto, essa estratégia não é possível para todos; de um lado, porque os projetos são localizados fora da comunidade, em locais considerados mais distantes, o que implica em gastos de passagens e, de outro, porque muitos não podem pagar, principalmente quando têm mais de um filho. "Aquela coisa que a gente vê todo dia na imprensa noticiando – das obras sociais que o governo municipal faz, que o governo estadual faz. Aqui não tem. Um cursinho que a gente bota uma criança para fazer ou uma natação que a gente paga, em outros lugares tem de graça. Ora, se os outros bairros têm de graça, por que o Caju não pode ter? ". "Aqui, em matéria de lazer é nota zero. Que não é todo mundo que pode pagar. Ás vezes você tem um filho só, você faz o sacrifício. E quem tem dois, três? Vai botar um só? E o resto, vai ficar sem?"

A associação entre a dificuldade para o lazer e a violência apareceu muito clara em três grupos: o dos jovens e os dois dos empreendedores - a violência limita a diversão. Muitos jovens se queixaram de que os pais não deixam sair à noite do bairro, para ir, por exemplo, dançar, porque a volta para casa é muito perigosa. Eles devem passar na entrada do bairro por cruzamentos, como o da Linha Vermelha, onde, diariamente, a polícia enfrenta “bandidos”. A seguir, alguns trechos das falas dos moradores, que mostram a tensão em que vivem: “Aqui a gente não vive. Eu, pelo menos, vegeto. Vai escurecendo eu tranco tudo, vou ver televisão até chegar o sono, chegou o sono, vou dormir (...) Porque não tem como, não tem nada para se divertir! Mesmo se tivesse já sabe como é que é..."(empreendedor); “Olha, lazer aqui não existe. E para receber uma bala perdida, eu prefiro sair daqui. A polícia chega não respeitando ninguém. É bala para tudo quanto é canto. Não só aqui como em outras favelas.”(empreendedor)

1.5. Projetos Compensatórios

O objetivo geral deste tópico é analisar a percepção dos moradores acerca da eficácia e abrangência dos projetos sociais das esferas municipal, estadual e federal como Bolsa Família, Cheque Cidadão, Vale Gás, Vale Idoso, Farmácia Popular, dentre outros, além de serviços públicos de educação e saúde.

A maioria dos participantes dos grupos focais relatou nunca ter sido contemplada por nenhum desses projetos, apesar de conhecê-los.

Há um desconhecimento geral da quantidade de moradores do bairro do Caju que possam estar sendo beneficiados pelos programas. E apareceu a denúncia da existência de mecanismos de beneficiamento de grupos dentro da comunidade que têm vinculação direta com associação de moradores, ou com Igrejas Evangélicas, ou com a direção das escolas públicas, que limitam o acesso daquelas pessoas das comunidades do bairro do Caju, que realmente necessitam, aos benefícios.: ‘Eu acho também que essa Cesta Básica tem pessoas que não precisam e recebem, outros que precisam e não conseguem. Isso deveria ser bem vigiado. Fazer... Existir uma assistente social até para ir realmente na casa da pessoa para ver se realmente aquela pessoa... Mas eu vejo lá na minha comunidade gente que teve enfarte, que está numa cadeira de rodas – não consegue, e outras – consegue. Então eu acho que isso deveria ser muito bem vigiado”. (moradora do Parque Alegria). (...) “As associações não sabem quem das comunidades pega o Cheque-Cidadão. Ninguém sabe. Que é só da igreja. Você tem que ser da igreja para você ganhar ou então você não ganha”(...)“De Bolsa Família não sei porque

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nunca recebi, agora de Bolsa Escola ... as meninas falaram que era para eu ir lá, era na faixa etária de sete anos e eu tenho uma filha de sete anos , e cheguei lá e disseram : são 50 bolsas que eles recebem e só podem dar quinze . Aí eu virei " e o resto?" ( moradora da Quinta do Caju)

Por outro lado, pode-se especular que o fato de o Caju não ser um bairro composto predominantemente por moradores de baixa renda seja um dos motivos pelos quais os projetos sociais dos governos não tenham tanto impacto nas comunidades do bairro, uma vez que a renda. é o principal critério para fornecimento dos benefícios.

Apenas dois integrantes dentre todos os grupos focais realizados (?), em um total de 44 pessoas, recebiam benefícios dos programas Vale Gás (governo estadual) e Bolsa Escola (governo federal). No primeiro caso, o participante que recebia o benefício avaliava com ar de descaso o auxílio de R$14,00 que recebia de dois em dois meses, para adquirir o botijão de gás. Já no segundo caso, o benefício, praticamente, constituía uma solução para o chefe de família desempregado, que arrecadava R$160,00 todo mês, somando a bolsa de cada filho (quatro bolsas de R$40,00 do programa Bolsa Escola). De acordo com o morador, o programa “é uma coisa maravilhosa que inventaram. Embora eu não sei quem inventou, pra mim não devia acabar nunca”.

O descontentamento com o caráter excludente de acesso aos benefícios foi acompanhado de críticas no que diz respeito ao assistencialismo dos programas sociais, que geram acomodação nos grupos sociais vulneráveis e não mudam a condição social destes. Sob este aspecto, apenas receber “paliativos” do governo não substitui, para eles, a necessidade de adoção de uma medida mais concreta, realmente capaz de conferir cidadania: a geração de empregos. De acordo com essa lógica, o indivíduo que possui um emprego, com salário digno, não necessita de “ajuda do governo”. Além disso, a acomodação daqueles que recebem os benefícios dos programas sociais faz parte de um círculo vicioso, no qual a exclusão social leva à demanda por benefícios, o que impede o indivíduo de sentir necessidade (ou vontade) de se tornar cidadão, de arrumar um emprego: “Eu conheço famílias que apanham uma Cesta Básica na Igreja ali, apanham outra lá em cima e passam o mês todo naquela. Quando fala em trabalho: -Ih rapaz, hoje num dá!!!”.

No entanto, se, por um lado, as armadilhas dos programas sociais são sinalizadas pelos moradores, por outro lado, seu discurso também comporta uma chamada para a intervenção estatal dentro da comunidade. Nesse sentido, é o Estado quem deve gerar empregos, quem deve criar centros comunitários, criar programas de atividades desportivas para afastar os jovens da criminalidade etc. Trata-se de um discurso aparentemente contraditório, mas que expressa demandas específicas de pessoas que vivem a realidade do bairro do Caju, um bairro que perdeu status econômico e, conseqüentemente, social, com o passar dos anos.

Ainda sobre os projetos compensatórios, o Programa Primeiro Emprego foi muito criticado pelos jovens, que apontaram a ineficácia do programa, uma vez que limitações do tipo experiência profissional ainda constituem um entrave para a entrada do jovem no mercado de trabalho formal. Além disso, o programa não garante a permanência do jovem na empresa, mesmo que por tempo determinado. O acesso e a permanência tornam-se voláteis.

Alguns jovens relataram que um posto do Programa Primeiro Emprego foi instalado no bairro do Caju, cadastrando e oferecendo “curso preparatório” 79 para os jovens estagiarem em empresas parceiras. No entanto, a divulgação do funcionamento do posto foi insuficiente, uma vez que “as pessoas foram indicadas para fazer esse 79 Segundo os jovens, cada participante do curso recebia ajuda de custo de R$90,00 por mês e o curso tinha duração de 3 a 5 meses.

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curso...Eu, por exemplo, não tive conhecimento que esse Primeiro Emprego ia entrar aqui. Muitos jovens não tiveram...”. Percebe-se aqui a reprodução dos esquemas de divulgação dos projetos junto às pessoas mais próximas à associação de moradores, seja um projeto que ocupe espaço significativo na mídia, seja outro de menor abrangência.

Segundo uma moradora do bairro, que recebe o benefício Vale-Leite, “eu, para conseguir esse leite, eu só consegui porque eu tinha uma prima que trabalhava na associação, porque senão, eu não ia conseguir”.

1.6. Projetos sociais em atividade no Caju O bairro do Caju abriga uma série de projetos sociais implementados pela prefeitura, governo do Estado e governo federal, destinados a grupos específicos, como por exemplo, idosos, jovens, crianças etc. No entanto, verifica-se que o segmento da população jovem é o grande público alvo dos projetos, que tentam amenizar as conseqüências da violência e do tráfico sobre o bairro e afastar o jovem da criminalidade. Assim, projetos que estimulam as atividades desportivas e aqueles destinados à alfabetização são bem difundidos e aceitos pelas comunidades. O projeto Mel (patrocinado pela prefeitura do Rio), atualmente, tem um público alvo de 180 crianças, atendendo às comunidades de Nossa Sra. da Penha, Quinta do Caju, Tavares Guerra, Centro do Caju, Arsenal de Guerra e Chatuba. De acordo com um de seus coordenadores, o objetivo central do projeto é "reeducar as crianças". Os projetos Brasil Alfabetizado, destinado à alfabetização de adultos (governo federal) e Jovens pela Paz, destinado a crianças de 07 a 12 anos (governo do Estado), estão concentrados na comunidade de Boa Esperança. Cada um atinge cerca de 25 pessoas e eles funcionam na associação de moradores. Percebe-se um tom de rivalidade entre as comunidades (ou entre as lideranças das comunidades) quando falam dos projetos nelas desenvolvidos. Nesse sentido, um projeto "X" pertence à comunidade "A", mas, pela consciência do coordenador, ele é oferecido às demais comunidades: "(...) mas em si o Projeto pertence ao Parque Nossa Sra. da Penha. A gente também abrange outras comunidades também com crianças de diversas áreas do Caju (...) ". Esse tom personalista pode ser identificado em todas as lideranças comunitárias. Ainda no âmbito educacional, destaca-se o Projeto Renascer, fruto de uma parceria entre a Aeronáutica e a prefeitura do Rio de Janeiro, que oferece curso de informática para jovens, adultos e pessoas de terceira idade. De acordo com os jovens da comunidade, é "o único projeto social que realmente ajuda aqui ainda é o projeto Renascer" e, graças ao projeto, "nós tentamos ficar livres das drogas". A atuação desse projeto dá-se, também, no sentido de uma orientação destinada, principalmente, aos jovens sobre um modelo de conduta a ser seguido: a vida militar. Além dos projetos sociais oficiais, é importante ressaltar a rede de solidariedade que envolve membros das igrejas católica e evangélica do bairro. No caso da igreja católica, sua ação está mais voltada ao recolhimento de mantimentos e distribuição entre as famílias necessitadas da comunidade. É o caso da Capela São Pedro, onde um grupo de oito pessoas realiza esse trabalho e visita asilos e enfermarias dos hospitais do bairro, pois "tem os idosos assim muito necessitados de uma palavra amiga, de uma palavra de amor, de carinho, e a gente faz esse trabalho". Enquanto isso, a Igreja Evangélica do Evangelho Quadrangular está tentando oferecer alguns cursos, tais como aulas de guitarra, bateria, informática, balé, porém a iniciativa está limitada devido ao pequeno espaço da igreja.

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O Projeto de artesanato com materiais recicláveis funciona na associação de moradores da comunidade Clemente Ferreira. Destinado a promover uma série de cursos que possibilitem a conscientização dos moradores quanto ao fim dos recursos naturais, enquadra-se em um modelo de projeto de educação ambiental. Atualmente, há cerca de 50 pessoas envolvidas e é destinado aos jovens, adultos e crianças. No entanto, o SOS - Rotary é a instituição que mais desenvolve projetos sociais. A maioria com caráter educativo-profisionalizante, destacando-se os cursos de eletromecânica, informática, corte e costura, mecânico de elevadores e bijouteria. Além disso, a instituição oferece os serviços da creche, Banco de Alimentos e horta comunitária.

Atualmente, é parceiro, com outra empresa, em um projeto de informática desenvolvido pela associação da Ladeira de Funcionários: é importante destacar que boa parte dos participantes das reuniões não sabia sequer da existência desses cursos e serviços oferecidos pelo SOS.

1.7. Aspectos negativos e positivos do bairro

Apenas um dos cinco grupos focais demonstrou "gostar" de morar no bairro - o único grupo em que os aspectos positivos prevaleceram foi o grupo das Lideranças Informais. Entretanto, mesmo assim, não deixaram de listar os aspectos negativos do bairro, que se confundem com aqueles que foram referidos pelos outros grupos. É provável que a resposta positiva desse grupo tenha aparecido apenas como uma reação inicial à pergunta formulada, sem nenhum aprofundamento maior, uma vez que suas respostas se aproximaram das respostas dos outros grupos quando o roteiro da entrevista levou a uma reflexão mais profunda.

Assim, podemos dizer que, ao analisar o bairro em que moram, os entrevistados dos cinco grupos focais enfatizaram os aspectos negativos sobre os pontos positivos. A maioria listou as deficiências do Caju (?) e as referências pejorativas, como por exemplo, o fato de o bairro ser conhecido como aquele que abriga o maior cemitério da América Latina, um hospital de doenças infecto-contagiosas e um lixão. As falas dos integrantes do grupo das lideranças formais elucidam a insatisfação com o bairro e a perspectiva que os moradores têm em relação ao futuro: “(...) se você for comparar o Bairro do Caju com outros locais que você vê... Eu vi hoje na revista Veja – “chegou cidadania na Rocinha”: que é um posto de atendimento do Governo onde.... tem agência de empregos, tem negócio de esporte, tem negócio de educação... É uma lista que eu acho que tem uns dez itens que você fica assim: “Nossa... se tivesse isso no Caju!” Então, por que o governo se preocupa com a Rocinha? Porque a Rocinha estava na mídia um dia desses? E o Caju fica esquecido... E eu escrevi uma frase aqui bem interessante: “Se as autoridades competentes não apontarem para a triste realidade existente nas comunidades – no momento, no Caju – outros meios deploráveis sustentarão as comunidades”.(moradora do Parque Conquista)

Como era de se esperar, a época em que fizemos a pesquisa, próxima às eleições municipais, de certo modo afetou as respostas dos participantes. Assim, as pessoas que foram indicadas pela liderança da Ladeira dos Funcionários tenderam a enfatizar as realizações da prefeitura do Rio de Janeiro, cujo prefeito era candidato nas eleições municipais. O mesmo aconteceu em um dos grupos de empreendedores, em que um entrevistado, respondendo a pergunta de como era viver no Caju, disse que viver no Caju era "viver esquecido pelas autoridades que governam nosso estado e município".

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Mas, ao aprofundar a reflexão logo depois, resgata a ação da Prefeitura em relação aos projetos sociais.

Em um dos grupos de empreendedores, aparecem opiniões divergentes sobre como é viver no Caju - alguns entrevistados tinham uma visão pessimista do bairro, outros, porém, como uma entrevistada de 27 anos, manicura, com uma renda familiar declarada de R$600,00, destacou como aspecto positivo o bairro ter um comércio farto. Esse otimismo levanta um aspecto importante sobre a visão dos moradores em relação ao bairro ideal - uma comunidade fechada que disporia de todos os serviços e comodidades e de onde os moradores não precisariam sair para fazer nada no resto da cidade. Entretanto, outra visão oposta sobre o que seria o bairro ideal também aparece, quando, mesmo sendo pessimista em relação às virtudes do bairro, resgata-se o aspecto importante da abundância de transporte, que possibilita sair do bairro, viver outras realidades: "De bom, ás vezes os amigos, só. E a sorte que a gente tem é que não precisamos pegar muita condução para ir até para os Estados Unidos, ou para onde que for, que tem condução para todo o canto. É o que beneficia a gente ali do Parque da Alegria. O resto é viver a sorte...' (homem, 62 anos, mecânico); "E uma coisa boa é isso mesmo, o transporte. A gente tem acesso a tudo quanto é lugar. Fora isso..." ( mulher, 19 anos, explicadora)

Em alguns momentos, as qualidades do bairro foram mencionadas pelos moradores, que reconheciam a situação de vulnerabilidade do local em que viviam, mas sabiam que alguma coisa havia mudado com o passar dos anos. Os aspectos positivos estavam sempre relacionados à existência de projetos sociais ligados ao Governo, como o Favela – Bairro, ou aqueles articulados pela Aeronáutica ou pelo Exército em parceria com as associações. Esses últimos aparecem mais nas localidades próximas às instalações das Forças Armadas, como, por exemplo, o projeto Renascer (cursos de alfabetização, 1o grau e Terceira Idade, computação) que funciona em dependências do Quartel da Aeronáutica, na Quinta do Caju, em parceria com a Prefeitura e a associação.

Um entrevistado, depois de falar que o Caju não tinha nada - “De resto... acho que não tem mais nada” - ressaltou que “... o que tem de interessante no Caju é a população do Caju, é o povo do Caju, o ser humano que vive no Caju (...) que guerreia ali para viver (...)Não o que transita, mas o que vive no Caju”.

A Quinta do Caju aparece como um espaço privilegiado em relação às outras comunidades no que diz respeito à maior tranqüilidade, à proximidade com instalações da Aeronáutica e seus projetos e a serviços de saúde, como lembra uma moradora desta comunidade: “Lá na Quinta, nós não temos sérios problemas com saúde graças a Deus. Lá tem a associação, que faz essa parte de assistência médica. De quinze em quinze dias vai um ginecologista, pediatra, um clínico geral”

1.7.1. Aspectos negativos A seguir, listamos os vários aspectos negativos do bairro citados pelos entrevistados: 1.Falta, insuficiência ou mau funcionamento dos transportes, como longos intervalos entre os ônibus, descaso com os moradores de terceira idade etc. Os moradores defenderam as “vans” e “kombis”, porque vieram sanar os problemas de transporte do Caju, como esta moradora mostra : “E cada vez mais, nós que estamos ficando de idade, estamos ficando com dificuldade de andar. Os ônibus passa, quando vê que é a gente, passa batido e não te pega. Então, graças a Deus pelas vans. Eu sei que tem muita gente que é contra as vans, mas eu sou a favor das vans. Sou a favor das kombi, porque elas pára para pegar a gente”.

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Ao mesmo tempo em que o problema do transporte foi ressaltado pelos participantes do grupo de lideranças informais como um ponto negativo, destacaram a centralidade do bairro em relação à cidade, a proximidade com o centro e com outros equipamentos e com vários corredores de transporte : “apesar da localização, quem tem meio de transporte é favorecido para se deslocar: rapidamente está em Caxias; se depender ir para a Barra, rapidinho; centro da cidade, nem se fala; Niterói”. (morador do parque Nossa Sra. da Penha) . "Nós estamos dentro do aeroporto internacional, estamos dentro da rodoviária, estamos dentro do centro da cidade, estamos dentro da Linha Vermelha, estamos dentro da Linha Amarela, quando não, um pouquinho mais na Linha Verde”.(administrador do SOS) 2. O alto desemprego entre jovens e adultos. Isto faz com que muitos procurem uma solução em atividades não legalizadas. 3. O perigo do lazer das crianças. Elas correm risco de morte quando estão brincando em frente suas casas (carros e motos passam em alta velocidade pelas ruas de algumas comunidades depois das 18h). 4. O mau funcionamento das escolas de primeiro e segundo grau. Os moradores consideram que as cinco escolas do bairro são suficientes em quantidade. Entretanto, houve referências freqüentes à má qualidade do ensino, além da falta de professores na escola estadual, que apareceu associada à violência do bairro: “o que está ruim na escola são os professores, porque não tem condição de ir para a escola, aí falta demais, as crianças vão para a escola não têm professor, volta para casa. Os professores têm muito medo, porque não moram aqui, então eles têm um medo tremendo, qualquer coisa eles estão largando as crianças sozinhas e estão indo embora, as crianças ficam abandonadas, um desespero. A escola está horrível”.(moradora da Vila Clemente Ferreira). São, sobretudo, os jovens que se queixaram das escolas de 2º grau, pois procuram se matricular em escolas de melhor qualidade fora do Caju. 5. O mau funcionamento dos serviços de saúde.O posto de saúde é pequenopara atender todas as comunidades do bairro, trabalha com uma demanda acima da sua capacidade e está localizado em uma área insalubre, do lado da Comlurb.

Já houve reivindicação das lideranças comunitárias para terem no bairro agentes comunitários de saúde, do programa "Saúde da família".

Foi interessante constatar a relação feita, em um dos grupos de empreendedores, entre o fato de pagar impostos e o direito do cidadão a ter serviços públicos corretos, com bom funcionamento. E não tendo o serviço, o direito do cidadão de reivindicar quando lhe é dado espaço, como nos grupos focais realizados, percebidos como espaços de reivindicação. "Posto médico daqui não funciona. É o pior possível. O posto de saúde do Santo Cristo, para mim, é um modelo de posto de saúde. O do Caju, para mim, é um modelo de descaso, de desleixo, de falta de respeito com a comunidade, com as pessoas. Somos nós que pagamos os salários deles. É desse dinheiro dos impostos que sai o pagamento dos salários desses profissionais que estão lá no posto de saúde para maltratar a gente quando chega lá. Então essa é uma das nossas reivindicações."

Outra queixa, no grupo dos empreendedores, é que o posto de saúde não tem remédio.

Neste outro trecho, um morador mostra a indignação com as verbas que saem para a saúde e com a situação em que se encontra o setor. E aqui ele não poupa nenhum governo, nem municipal, nem estadual. "E na farmácia popular o remédio está um real por quê? Porque não tem nos postos de saúde. No Souza Aguiar, você pega uma receita e vai no Souza Aguiar, você não encontra remédio lá. No posto de saúde aqui não tem Amoxilina . Remédio caro que custa acima de cinco reais não tem. Para onde é que vai esse remédio, esse dinheiro que é investido, que é liberado pela Secretaria de Saúde

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para comprar medicamentos? Gazes não tem no posto de saúde, não tem esparadrapo, não tem atadura, não tem nada, para onde é que vai o dinheiro? (...) Porque são os piores atendimentos os dos postos de saúde da rede municipal, sem contar a estadual."

Com o passar dos anos, os hospitais de referência que existem dentro do Caju e que são utilizados pela população do bairro passam por um processo de sucateamento ou de fechamento. Houve, inclusive, uma passeata dos moradores contra o fechamento do único hospital que se mantém aberto para emergências - o Hospital Anchieta.

Apareceu, também neste quesito, a reivindicação geral de que as favelas sejam tratadas como bairros, da mesma forma que os outros espaços da cidade. Dessa forma, não se compreende a razão pela qual não existe um hospital aberto 24 horas no Caju. O Hospital Anchieta fecha nos feriados e finais de semana. 5. Má qualidade da iluminação pública 6. Falta de segurança., Há necessidade de um policiamento que evite roubos e de maior atenção policial para as queixas que são levadas. Foram relatados os roubos no viaduto na Av. Brasil e de crianças no Parque da Alegria. A falta de segurança se estende ao trânsito, e essa queixa foi comum durante toda a pesquisa, uma vez que o bairro é área de passagem e manobra de grandes caminhões de transporte de containers do porto, ocasionando atropelamentos, inclusive de crianças. 7. Ausência e/ou deficiência dos serviços de saneamento básico em algumas áreas. Essa, aliás, foi uma das únicas reclamações feita por morador da Quinta do Caju, que se queixou da proliferação de ratazanas, que estão atacando crianças que dormem no chão. 8. Falta de um programa de assistência aos negócios, com destaque para a ausência de linhas de crédito para o pequeno negócio. Como lembra este comerciante. "Eu tenho um comércio na comunidade, ...não somos assistidos, não temos um programa (...) que venha a dar condições da gente tocar o nosso negócio . Para que possamos crescer, para que haja até emprego para outras pessoas. Eu preciso de três pessoas para trabalhar comigo. e não tenho condições de botar nenhum porque não tenho condições de pagar. Não tem uma linha de crédito, não tem uma instituição que empreste, o governo não empresta, quem tem dinheiro não quer emprestar... E nessa situação a gente fica parado. A gente não desenvolve, e muitas vezes somos obrigados a fechar o negócio ou trabalhar mecanicamente" 9. Falta de áreas de lazer para crianças., (aspecto negativo não por acaso citado pelas mulheres). Essas áreas se espalham de forma desigual pelo bairro. Algumas comunidades têm, outras, não, ou a localização não é correta. E as praças com brinquedos se localizam próximas às grandes vias muito perigosas, com muito trânsito. 10. Falta de programas para atender crianças e adolescentes e de cursos profissionalizantes para a infância e a juventude. Foram, sobretudo, as mulheres, em uma postura decidida de defesa das crianças e adolescentes contra o narcotráfico, que lembraram a necessidade de ter maior número de programas voltados para essas faixas etárias. Não existem oportunidades para ocupar seu tempo, por isso crianças e adolescentes ficam muito "soltas " na rua e acabam se envolvendo com "coisas que não devem". Os homens também falaram da necessidade dos cursos profissionalizantes, mais precisamente, de um centro de cursos profissionalizantes, embora ainda na perspectiva de comunidade ideal fechada, citada acima. O objetivo é que os filhos pudessem estudar na comunidade, sem sair para outros lugares da cidade : "Ainda que fosse pago, não só grátis. Nós queremos pagar, mas queremos que tenha. (...) Nós queremos que tenha também essa área de cursos profissionalizantes aqui no bairro do Caju."

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11. Falta de uma maior competição bancária. O bairro contacom uma agência do Banco do Brasil. Dois entrevistados, um comerciante estabelecido e um vendedor ambulante, que dependem muito de serviços bancários, queixaram-se da falta de outros bancos, o que, segundo eles, poderia melhorar o atendimento desse serviço, considerado muito ruim.

1.7.2. Aspectos Positivos 1. Embora raros, e se opondo à opinião geral, alguns entrevistados declararam-se beneficiados com serviços públicos de educação, creche e saúde. Como declara uma moradora do Parque Alegria, opondo-se à opinião sobre o mau funcionamento do posto de saúde e da escola: “Eu também recebo remédio em casa. As minhas consultas aqui no posto são agendadas. Eu me trato ali há 3 anos, nunca aconteceu deu chegar lá e: - Ah, a doutora não veio. Eu particularmente não tenho o que falar do posto. Agora então que passou para lá, eu acho que está mais limpinho, mais organizado. Parte de remédio também, graças à Deus, eu uso remédio de pressão alta, não falta, pelo menos chega sempre na minha casa certinho, direitinho... . Eu acho que aqui a escola – nós temos a escola onde meu filho estudou, minha filha está estudando atualmente; é até a oitava séria – as diretoras são ótimas, fazem um trabalho maravilhoso” (moradora do Parque Alegria) 2. As creches foram consideradas como um dos serviços que funcionam melhor.Esse aspecto foi citado em todos os grupos, com raras exceções. Embora haja cinco creches na comunidade, elas são insuficientes em relação à demanda. 3. Corpo de Bombeiros. Foi elogiado pelos moradores.

2. ENERGIA

2.1. Introdução

O tema do pagamento dos impostos e dos serviços públicos serviu de introdução para a discussão da relação da população com as concessionárias de energia. Todos os grupos acham que é importante pagar impostos e contas, porque existem gastos que devem ser cobertos. Entretanto, todos consideram que os governos, de uma maneira geral, administram mal os "impostos que são recebidos da sociedade".

Não obstante, os jovens, em um primeiro momento, quando inquiridos sobre o pagamento de impostos, tiveram uma reação negativa. Em seguida, em uma análise mais realista, perceberam que não há como fugir do pagamento, pois, ao comprar um produto, o imposto já vem embutido. Aproveitaram para mostrar como as comunidades pobres são tratadasde forma diferenciada pelos governos, comparandoo tratamento dado a essas comundides com aquele dado aos espaços “mais nobres” da cidade, como se pode ver no trecho de uma fala de um jovem de 16 anos: “Você vai numa comunidade carente, numa favela, encontra tudo sujo, todas as coisas desorganizadas. Aí você vai no Centro, na Barra, em Copacabana e encontra tudo limpo. Por que será? Óbvio! As pessoas sujam do mesmo jeito, a pessoa que mora lá em Ipanema não vai descer do seu apartamento luxuoso e vai varrer a sua calçada.É o gari que vai lá e faz. Só que lá é um ponto turístico e aqui não é um ponto turístico, mas mesmo assim as pessoas que moram em comunidades como favela, a dona de casa vai lá todo santo dia e lava a sua porta. Lava ou varre a frente de sua casa. "

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Todos os entrevistados, com raras exceções, acharam que também é importante pagar pelos serviços públicos como água, luz, esgoto e telefone, porque o pagamento dá o direito de reivindicar: "se os serviços fossem de graça, nós também não teríamos direito de reivindicar melhorias para a nossa comunidade" (empreendedores). Entretanto, todos acharam que as tarifas estão muito altas, com aumentos constantes, o que prejudica qualquer planejamento de gastos e onera os orçamentos. Criticaram, também, a má qualidade da prestação desses serviços. Um empreendedor citou os casos de ligações que caem a todo o momento e a falta de luz durante dois ou três dias na comunidade. Uma integrante do grupo de empreendedores sugeriu que é preciso rever a obrigatoriedade do pagamento da assinatura do serviço de telefone, considerando-se, como ela diz, que hoje o telefone é uma necessidade e que o pagamento de serviços refere-se ao seu uso.

A questão da pesada carga tributária para as microempresas foi lembrada, no grupo de empreendedores, pelo mecânico que teve que fechar o seu negócio, em função do pagamento de impostos.

Um dos "comerciantes" argumentou que não pode legalizar seu negócio por causa dos impostos e exemplificou com sua situação, dizendo que de ICMS pagaria 17% e que os impostos juntos chegam a "engolir" uma parcela de 60 a 70% do faturamento bruto de uma firma. Concluiu que, dessa forma, "um pequeno ou micro-comerciante não tem condição de abrir um negócio e sustentar uma carga tributária destas".

2.2. Fornecimento de energia elétrica 2.2.1. Tarifas, pagamentos e estratégias dos moradores

Não houve concordância em relação aos valores que os moradores deveriam pagar pela conta de energia elétrica, embora essa variação não seja muito grande - o valor mínimo variou entre R$15,00 no grupo das lideranças informais, R$20,00 em um dos grupos de empreendedores, R$25,00 no outro grupo de empreendedores e R$30,00 em dois grupos : nas lideranças formais e no grupo dos jovens. Os valores máximos também variaram entre R$30,00 (para os dois grupos de empreendedores) R$40,00 (no grupo de jovens), R$50,00 (nas lideranças formais) e R$80,00 (nas informais).

A mais forte postura crítica em relação à desigualdade social no país partiu dos jovens, o que se refletiu sobre a opinião que têm em relação ao pagamento de serviços públicos, como a energia elétrica, por exemplo, como vemos no trecho abaixo: “Parece até uma piada, mas nós brasileiros temos a maior reserva de água do mundo, que gera eletricidade pura, que não polui o ar e no entanto, a gente paga uma das cotas mais altas para ter energia elétrica. Enquanto a energia elétrica dos Estados Unidos é uma coisa que polui imensamente – queima de carvão – e eles pagam baixíssimo. Só que há uma coisa que não há no Brasil – igualdade” (jovens).

Alguns entrevistados consideraram que a conta é muito alta em relação ao consumo que têm, porque ficam pouco tempo em casa, e que a energia deveria ser mais barata para as comunidades carentes.

Foi lembrado que aqueles que têm maior número de aparelhos que demandam energia elétrica deveriam pagar mais do que os outros que têm menor número, porque gastam mais. O uso de energia também é controlado pelos moradores, aparecendo como um comportamento usual na comunidade, como vemos neste trecho: "Depende do seu uso de objetos. Porque ar condicionado puxa muita luz, microondas puxa muita

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luz... Se não tiver isso aí, pode pagar a taxa mínima..Porque tem geladeira ligada, tem fogão, televisão, ventilador, videocassete, aparelho de som... Então está muito razoável. Se você não tiver isso, está bom... Eu pago vinte, vinte e um, vinte e dois reais de luz. E eu tenho televisão, geladeira, ventilador, só. E controlo. De manhã eu deixo ligado só a geladeira e a televisão um pouco, também depois eu desligo. Senão vem muito alto e eu não vou ter condições de pagar.”(empreendedor).

Outros entrevistados, mesmo pagando mais, acharam que seu consumo corresponde ao que é cobrado, porque possuem aparelhos, como ar condicionado, que gastam muita energia. Um participante do grupo das lideranças informais que tem necessidade de gastar muita energia em seu trabalho, queixou-se fortemente dos aumentos constantes nas tarifas de energia: “No meu caso, eu trabalho com ferro de solda, com duas, três televisões ligadas na estante da loja – em teste. Fica difícil falar de um patamar que devia pagar porque estou gastando. O que posso falar é sobre os altos índices de reajuste – que prejudicam a gente. Eu tenho que ficar com a luz da loja acesa, tenho que ficar com ferro, televisão, vídeo ligado, aparelho de som ligado em teste. Tenho que gastar. Todo mês tem aumento de conta de luz. E aí ninguém agüenta, quebra o bolso da gente. O problema da conta de luz é os altos índices de reajuste todo mês. Aí quebra. Ganhando o que se ganha fica difícil “

Os jovens também chamaram a atenção para os constantes aumentos nas tarifas, no preço do kw, o que faz aumentar muito as contas: "Acho que deveria ter um preço fixo em relação à cobrança do que você está usando. Que a gente vê muito aí na televisão: Ah, a energia vai aumentar! Por que vai aumentar? E você pagar o que você realmente está usando, mas não toda hora ficar aumentando o preço da energia. Uma conta fixa. É, toda hora eles (a concessionária) estão aumentando o preço da energia"

Embora a proposta de uma tarifa de baixa renda tenha sido lançada por um participante, todos os outros integrantes do grupo de lideranças informais, mesmo considerando o kwh muito alto, declararam estar pagando o preço justo, levando-se em conta o consumo que têm, no que foram seguidos pelos outros grupos - quem consome mais deve pagar mais. Nesse sentido, têm consciência de que, necessariamente, o conforto implica em gastos. Afirmam que não podem reclamar de contas de energia com valor alto, porque eles realmente gastam, e aqueles que se privam do confortoassim o fazem porque não têm condições de pagar altas contas. Por isso, consideram que o valor da energia que pagam é justo. Obviamente, se pudessem, pagariam uma quantia bem menor pelo serviço: “Eu gostaria de pagar pouco, mas eu acho que o que eu pago por aquilo que eu gasto. Realmente eu gasto muito, eu tenho ar condicionado e gasto. Eu pago uma conta de R$150,00 todo mês. Eu gostaria de gastar tudo que gasto e pagar pelo menos uns R$40,00 ou R$50,00 (...)Se eu não posso gastar, eu não gasto. Mas se eu posso pagar, eu gasto. (...). O calor vem aí, eu ligo o meu ar condicionado às seis horas da tarde, entro para dentro do meu quarto e fico lá. Eu pago R$150,00, mas eu gostaria de pagar R$50,00”.

O parcelamento das contas em débito foi muito bem recebido na comunidade, como relatou um jovem que estava em débito com uma conta de R$2.000,00. Com o projeto de parcelamento, ele está pagando cerca de R$100,00 por mês para abater a dívida, além do seu gasto mensal. Dessa forma, está conseguindo quitar o débito.

Entretanto, em um dos grupos de empreendedores, apareceram entrevistados que, embora tenham recorrido ao parcelamento de contas atrasadas, encontraram dificuldade para pagar, recomeçando a acumular as prestações- já tinham três parcelas acumuladas de R$60,00, relativas ao parcelamento. Nesse caso, o empreendedor reivindicou primeiro a isenção (perdão da dívida) e, depois, o que ele acha que seria

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razoável, uma taxa mínima de R$15,00 a R$20,00 mensais, até conseguir abater a dívida.

O Projeto "Comunidade Eficiente" também foi bem recebido, embora os jovens considerem que a divulgação poderia ser mais ampla, com um tempo maior de duração, para dar oportunidade a um número maior de pessoas conhecerem o projeto, pois muitos moradores nem ficaram sabendo da sua existência. As lideranças formais e informais que estiveram mais próximas do projetoopinaram que ele deveria constituir um programa a longo prazo, com funcionamento contínuo, sistemático e não como um projeto pontual. Alguns jovens também se referiram de forma positiva ao projeto de educação sobre como economizar energia e à peça teatral que foi encenada.

O uso do gato e o atraso de pagamento nas contas de energia elétrica apareceram como reação estratégica dos moradores ao alto preço cobrado e aos freqüentes aumentos das tarifas, devido às limitações socioeconômicas, ou seja, porque recebem baixos salários. Têm que pagar aluguel, precisam sustentar filhos e precisam se alimentar. Têm que fazer "escolhas". Um integrante do grupo das lideranças formais justificou o uso do gato em função do valor alto da tarifa, embora ache justo que aqueles que consomem mais paguem mais do que os outros que consomem menos. Para ele, toda comunidade favelada, e não somente as pessoas consideradas de baixa renda, deveria pagar uma tarifa mais baixa, básica, de forma a evitar o gato.

Ao contrário de outros grupos focais, em que a questão de fazer ou não o gato apareceu de forma residual, em um dos grupos de empreendedores, foi relatada, de forma clara, a maneira correta de fazer o gato, sem ser arriscado, nem perigoso.

Os moradores mostraram que a tarifa diferenciada não atinge toda a comunidade e revelaram a estratégia do gato como reação a contas consideradas indevidas, como mostram estes dois trechos: "Tive uma briga com o pessoal da Concessionária quando eles iam tirar medida lá... tive uma briga com o engenheiro, se eu trabalho fora, como é que eu vou ficar com a luz acessa o dia todo? Disse que o meu relógio tinha gato. Provei por A mais B, mas veio uma conta de seiscentos e pouco... Testou lá e: Você paga primeiro depois reclama. Não, não vou pagar nada não. Então vou meter gato mesmo!" "Às vezes vem conta que eu nem gasto. Aí eu: pô, não é possível! Aí eu nem pago, deixo correr frouxo. Meto gato..... Porque o meu consumo de luz eu sei quanto é. Porque eu moro sozinho, às vezes, fico só com uma lâmpada fluorescente. Aí já sei que é R$2,00,R$3,00. Mas tem conta que às vezes eu chego em casa, sessenta, setenta. Eu não gasto isso!"

A ameaça de fazer o gato pode também constituir uma estratégia utilizada para conseguir que a concessionária e suas terceirizadas realizem os serviços que os moradores necessitam, mas encontram dificuldades em realizar, como conta este jovem: "A Concessionária piorou muito depois que foi privatizada. Olha só, minha casa estava em construção. Nós tiramos o relógio. Teria que trocar porque era de ferro e agora eles estão colocando em acrílico. Nós ligamos para a Concessionária para eles fazerem a troca, porque somente eles podem mexer no relógio para fazer essa troca. Pô! foi mais fácil falar com o presidente que falar com o pessoal da Concessionária. O atendimento deles é péssimo. E às vezes eles dão um prazo "Ó três dias úteis nós vamos estar aí". Nunca chega esses três dias úteis deles. Aí a única maneira que a gente achou foi a seguinte. "Ó se vocês não virem em três dia úteis vamos fazer um gato e vai ficar no gato. Porque a gente quer pagar, fazer as coisas certas, vocês não querem deixar." .... eu acho que depois da privatização ....que foi privatizada, terceirizou tudo, ficou pior. "

Enquanto alguns moradores declararam abertamente que fazem gato, uma entrevistada criticou a conduta corrupta de alguns funcionários das terceirizadas e a

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falta de organização da concessionária no caso em que teve que pedir um serviço: "Eu fui fazer pedido na Concessionária para botar três fases na minha casa e não apareceram até hoje. Teve um moço que fica trabalhando lá, que se ofereceu. Eu levei ele comigo, paguei a passagem dele. Eu não sabia. Ele chegou lá em casa, verificou tudo e ofereceu uma fortuna só para dar o papel com a autorização. Meu esposo chegou depois e falou: "Não. Não vou fazer isso não. A gente já fez o pedido. Eles que têm que vir aqui. E não vieram, não chegaram. Eu acho que eles têm que se organizar nessa parte e botar o cabo, tudo direitinho para cada pessoa, e diminuir o custo, e verificar Ah! Aquele botou gato...Porque o gato pega a luz do outro que está pagando. E cortar e verificar".

2.2.2 Serviços oferecidos pela concessionária de energia elétrica Verificou-se que os dois grupos que estiveram mais próximos da Concessionária, no projeto "Comunidade Eficiente" - lideranças formais e lideranças informais - são aqueles que fizeram uma avaliação positiva, embora com algumas críticas e sugestões, dos serviços oferecidos pela concessionária. Os outros três grupos, mais afastados da concessionária, tiveram uma visão mais negativa de sua intervenção na comunidade. Note-se que a avaliação positiva deve ser vista com reserva, pois constitui uma defesa da associação enquanto intermediadora entre o poder local e as concessionárias. Na verdade, a defesa é em causa própria, o grupo das lideranças formais é constituído dos representantes das associações (alguns deles foram "agentes comunitários" da Concessionária) e os integrantes do grupo lideranças informais são indivíduos muito próximos dessas associações e das lideranças formais. Portanto, essa avaliação positiva está contaminada, uma vez que se refere a "recursos" de certa forma monopolizados por esses grupos na comunidade. Além disso, alguns deles fazem a intermediação entre o poder local e os serviços públicos. Mesmo com a ressalva que se pode fazer em relação à apreciação positiva por parte do grupo das lideranças informais, apenas dois de seus integrantes demonstraram conhecer em detalhes a dinâmica do projeto Comunidade Eficiente. Como dissemos, os participantes do grupo de lideranças formais avaliaram positivamente os serviços oferecidos pela concessionária. Foram destacados como pontos positivos: 1. o fornecimento satisfatório de energia; 2. o trabalho da concessionária com os agentes comunitários, que permitiu aos moradores regularizarem seus débitos junto à companhia; 3. a instalação de lâmpadas econômicas pela concessionária; 4. as mudanças nas relações entre a companhia e a comunidade.

Antes a concessionária e outras fornecedoras de serviços públicos não podiam atender à comunidade porque os funcionários se sentiam ameaçados. Segundo as lideranças formais e informais, essa situação mudou a partir da relação que foi estabelecida entre as associações e as concessionárias. As concessionárias passaram a atender e a cortar o serviço quando não há pagamento. Essa apreciação, como dissemos, deve ser relativizada, considerando-se o "lugar" que ocupam essas lideranças na estrutura de poder das comunidades. A seguir, reproduzimos um trecho da entrevista de uma liderança informal: “Eu acho que a Light melhorou muito o atendimento. Antigamente, era muito mais difícil a gente conseguir que a Concessionária trouxesse benefícios para nossas comunidades. Hoje em dia, a gente tem as associações e, através das associações, está se conseguindo um contato muito mais direto com a Light.

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E nesse contato os benefícios estão sendo bem mais rápidos”. Esta outra fala das lideranças informais refere-se ao atendimento de emergência na situação de falta de energia: “Eu acredito que o serviço é satisfatório. Antigamente, quando havia qualquer problema de luz às vezes a pessoa levava meio dia, um dia, quando caía um vendaval. Hoje, só quando realmente tem um grande temporal que demora mais um pouco, mas o atendimento, no meu ponto de vista, é satisfatório (...) os serviços são caros, mas eu acho que os atendimentos estão bons".

Mesmo próximas da concessionária, as lideranças formais fizeram críticas aos serviços fornecidossegue: 1) ausência de um serviço de emergência (tanto telefônico quanto pessoal) que atenda às solicitações dos moradores em situações de periculosidade; 2) mau atendimento nas agências da Concessionária.

As falas abaixo refletem a insatisfação dos moradores: “O que eu acho ruim na Light é o seguinte: quando a gente precisa da Light, não tem disk emergência, Disk não sei o que (...). Teve uma vez lá, o posto pegando fogo, pegando nas casas todas... O pessoal foi lá na minha casa – na época eu era agente comunitário da Light – socorro! Eu ligo, ligo, ligo e ninguém apareceu. O morador começou a tacar troço no fio – que aí parou o fogo..."“(...) “eu fui fazer a reclamação de um poste que está caindo na minha comunidade...eu dentro da Light, o atendente teve a cara-de-pau de mandar eu ir lá fora ligar para a Light. E aí? Eu falei para ela: eu estou dentro da Light, como é que eu vou lá fora para ligar para você, se eu já estou aqui dentro?"

Embora os participantes dos dois grupos, lideranças formais e informais, tenham ressaltado a importância do projeto Comunidade Eficiente para a comunidade, chamaram a atenção para a sazonalidade da atuação que, na ótica deles, deveria ser sistemática, por meio de um trabalho de conscientização da população e extensão para o segmento das grandes empresas que existem no Caju, que também fazem gato. Além disso, ressaltaram a insuficiência quantitativa para a realização do trabalho, uma vez que o bairro é muito grande.

Os integrantes do grupo de jovens fizeram muitas queixas em relação aos serviços prestados pela concessionária, principalmente quando há problemas com transformador no período noturno: "Às vezes, quando um transformador estoura lá, dá algum problema... E isso quando acontece à noite, você liga para a central de informações, Pôxa ! é tão difícil. Tem que ligar umas três vezes e isso se eles vierem para consertar ....Eu acho que nessa parte assim tem uma falhazinha da Concessionária aí"

Entre os jovens, as fortes críticas ao atendimento da concessionária de energia foram também atribuídas às falhas depois da privatização, sobretudo com a terceirização dos serviços. Essa apreciação também apareceu entre os empreendedores - um morador do Parque São Sebastiãoafirma que, embora a Concessionária trabalhe certo, as firmas terceirizadas são culpadas pelo mau atendimento; sugere que uma forma de resolver o problema quando falta luz seria a colocação de um gerador em cada comunidade., como acontece em hospitais e presídios.

Da mesma forma, a avaliação dos participantes de um dos grupos de empreendedores quanto aos serviços oferecidos pela Concessionária foi negativa. As principais críticas deste grupo dizem respeito à: 1. ausência da concessionária no atendimento aos casos de emergência na comunidade, 2. qualidade da luz oferecida (que é muito fraca), 3. insuficiência da rede elétrica das comunidades que durante o verão não sustentam o fornecimento de energia,

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4) mau atendimento da concessionária às solicitações de ampliação de fases em estabelecimentos comerciais etc.

Os integrantes relatam que os funcionários do setor de atendimento estabelecem relações pessoais com a comunidade, procurando ensinar aos moradores que têm um certo conhecimento técnico, como o biscateiro que trabalha como eletricista, o modo de proceder em caso de desarme de transformadores.

No segundo grupo de empreendedores, as opiniões se dividiram em relação à qualidade do serviço prestado e ao atendimento das concessionárias de energia. Todos reconheceram que o sistema de pagamento da Concessionária está melhor do que era antes, ressaltando que agora as pessoas conseguem pagar contas atrasadas via correio.

Entretanto, houve uma polarização quanto ao atendimento à comunidade. Algumas partes do bairro, segundo o que apareceu nas entrevistas, são mais bem atendidas pelas Concessionárias do que outras partes. Os moradores das comunidades mais bem atendidas creditam o fato às lideranças comunitárias, talvez refletindo, mais uma vez, as divisões locais. Os moradores de Parque Nossa Senhora da Penha, Quinta do Caju e da Ladeira dos Funcionários são mais favoráveis à concessionária, creditando o bom atendimento à ação das lideranças de associações, como segue: "Pelo menos onde eu moro a qualidade de serviço tem sido boa. Isso aí também vale muito dos que estão "de frente" na comunidade, o pessoal que é presidente da comunidade, os diretores... Um tempo atrás, os cabos começaram a dar aquecimento devido aos aparelhos de ar condicionados, que eram ligados no verão, e os moradores fizeram reivindicação e foram atendidos rápido. Inclusive até botaram um poste lá e um outro aparelho(empreendedores). "Lá na Quinta nós não temos problema com a Concessionária. É muito difícil faltar luz, quando falta vem rapidinho. Se acontecer algum problema, a gente liga e eles também vêm rapidinho. Sem reclamações”.

Os moradores de Parque Alegria e Parque Conquista, que parecem não contar com bom atendimento da concessionária, ressaltam a dificuldade para que algum conserto seja realizado, durante a noite, em suas comunidades, como se pode verificar nestas falas: "Porque muitas vezes por ficar muito tempo com a falta de luz, estraga as coisas que está na geladeira. Queima as coisas por causa daquele vai e volta. Aí muitas vezes demora para vir consertar " (...) " Se faltar luz mais ou menos umas cinco horas, eles só vem lá paras dez horas ou então, só lá no outro dia seguinte. Quando falta luz, você tem que esperar a boa vontade deles de vir consertar. Às vezes é uma coisa mínima, de chegar lá no posto engatar lá, pronto e acabou. Mas eles não vêm. Eles não querem saber. Eles querem saber de onde mais não tem luz. Mas aqui, aqui tem que esperar a boa vontade deles vir consertar a luz".

2.2.3. Sugestões

A seguir, apresentamos uma lista das principais sugestões dos diferentes grupos em relação a este tópico:

1. Tarifa diferenciada para os pobres poderem consumir eletrodomésticos, com objetivo de maior inclusão social (grupo das lideranças informais).

Os participantes das lideranças informais sinalizaram que o preço do kwh é muito alto e que a quantidade de eletrodomésticos não deveria ser determinante para o preço da conta de energia. De acordo com a lógica, quanto mais aparelhos eletrodomésticos, mais consumo e mais cara a conta de luz. Na verdade, a possibilidade de pagar a energia passa a ser um indicativo da possibilidade de acesso ao consumo de bens duráveis, transformando-se em um indicativo de exclusão social. Significa que os

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outros segmentos da população podem ter acesso aos eletrodomésticos que trazem conforto, enquanto os moradores das áreas carentes não podem, não por causa do acesso ao eletrodoméstico, que foi facilitado com o crediário, mas pela dificuldade de pagar o preço da energia elétrica. Eles sabem que gastam, mas reivindicam que o preço do kwh seja mais baixo para as populações carentes, de forma que possam ter acesso ao maior conforto proporcionado pelos eletrodomésticos. A única dona de casa integrante do grupo resume bem a questão, no trecho a seguir: “Porque está caro é o kwh, porque cada um vai gastar de acordo com o que tem dentro de casa. A gente acha caro porque tem uma porção de coisa dentro de casa? Não. A gente tem que achar caro o Kwh, porque cada um quer ter as coisas que vai dar o seu conforto. Agora, se vai gastar mais porque tem mais coisas dentro de casa, acho que não é o normal. Acho que a gente tem que reivindicar que paga muita luz sim, porque o kwh está caro. Porque eu acho que a pessoa tem dentro do possível aquilo que conseguiu ter, o Kwh deveria ser mais barato para podermos ter o nosso conforto e pagar menos” (Dona de casa). “(...) o preço do kwh está muito alto. Os salários, normalmente, não estão acompanhando o preço do Kwh e a conta, realmente, fica muito cara”.

2. Pagamento de energia, baseado na renda, a partir da constatação de que a energia é muito cara no país (grupo de lideranças informais), como ilustra o texto abaixo:

“Hoje, as empresas, tanto Concessionária, quanto empresas de telefonia preferem que ajuízem uma ação contra eles do que qualquer outra coisa, porque eles vão lá fazem um acordo de 200 “merréis’ e acabou o problema. Eu considero isso um desrespeito ao consumidor. A minha opinião é que fosse taxado com um percentual baseado no salário mínimo. Hoje, o kilowat está custando menos que 1 real.... Aí você diz assim Ah! Pô! Mas, é tão pouquinho! Não é, não! A nossa energia é uma das mais caras do mundo. Isso, gente, tem que ver as estatísticas. Tem que ver o que informam. Então, nossa energia é cara”.

3. Cota única para moradores de comunidades carentes. Essa proposta, do grupo das lideranças informais e do grupo de empreendedores, é semelhante à anterior, porém mais radical,. Entretanto, os valores declarados de pagamento da energia elétrica variavam entre R$20,00 a R$100,00, mesmo economizando, o que demonstra um consumo diferenciado: "Pelo menos para a comunidade, a conta mínima que o morador devia pagar seria o que o governo tem dado, os vinte reais. Por quê?....Se você analisar, a energia é super barata. Nós temos tecnologia que gera essa energia super barata. E eu não entendo esses aumentos abusivos. A minha sugestão seria ter uma cota mínima para a comunidade de vinte reais. Eu pago R$70,00 de luz. E privando muitas vezes o meu bem estar dentro de casa. Às vezes eu estou dentro de casa: oh, apaga a luz da cozinha! Oh, é cinco minutos para tomar banho de água quente! Eu já bati no meu filho porque ele passou seis. Porque eu sei o peso. Então é chato isso e é triste. (empreendedor)(...) "nas comunidades que a gente considera carente e que já tem um nome especificado pela Concessionária: “Baixa-renda”, eu acharia que deveria ter uma cota geral por pessoa (...)Igual a CEDAE faz nas nossas comunidades, é R$5,00 por mês – nunca ultrapassa isso” (líderes informais).

4. Criação de um posto de atendimento da Concessionária dentro do Caju, a fim de diminuir a distância entre a empresa e o consumidor e desburocratizar o atendimento (lideranças informais).

5. Prosseguimento, de forma sistemática, de projetos sociais do tipo Comunidade Eficiente (lideranças informais).

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6. Conta mais discriminada, mais detalhada, com explicação dos gastos, evitando que se pague pelo que não se consome. Essa sugestão também aponta para a necessidade de maior transparência, para que o consumidor saiba exatamente aquilo que está pagando (jovens).

7. Educação do consumidor. Um rapaz sugeriu que houvesse uma "educação de como usar a energia, como usar os eletrodomésticos, de forma a economizar energia."

8. Agente de atendimento comunitário, aproveitando o conhecimento técnico dos trabalhadores do bairro (grupo de empreendedores). Concretamente, os técnicos da concessionária já ensinam alguns moradores mais experientes como consertar e manipular o equipamento em algumas situações.

9. Posto de atendimento no Caju e micro postos nas comunidades, com o objetivo de descentralizar este tipo de atendimento (empreendedores).

10. Carro de plantão e um micro posto para as emergências no bairro (empreendedores).

2.3. Fornecimento de gás de cozinha:

Atualmente, esta é uma das questões mais importantes nas comunidades pobres do Rio de Janeiro. O fornecimento de gás, como é sabido, está sendo, progressivamente, monopolizado por grupos que impõem seu preço. É sintomático todos os integrantes dos grupos focais considerarem que o preço é abusivo. O preço atual pago pelo botijão no Caju oscila entre R$33,00 3 R$35,00.

Dos cinco grupos realizados, apenas um deles não se referiu diretamente à questão desse monopólio: o das lideranças informais. Essa questão apareceu de forma clara nos outros quatro grupos: o das lideranças formais,o de jovens e os dois de empreendedores.

Embora os integrantes do grupo das lideranças formais tenham citado os "atravessadores", em nenhum momento mencionaram a atuação de facções criminosas na distribuição do gás de cozinha dentro da comunidade, o que foi identificado em outros Grupos Focais. Eles criticaram a ação dos intermediários, ou “atravessadores”, que distribuem o gás, e a negligência dos governos federal e estadual com relação ao fornecimento do gás, de um lado, porque não combatem os "atravessadores" e, de outro, porque deveriam estar revertendo os "royalties" do petróleo para o fornecimento do produto com tarifas mais baixas para as comunidades pobres. Os trechos a seguir demonstram a insatisfação quanto ao fornecimento do produto e seu preço final: "Por que nós pagamos R$33,00? O bujão de gás sai da Refinaria a R$5,00 para um atravessador desses, aí quando chega na gente...R$33,00. Sacanagem.! Eu acho que o governo deveria tomar o pé da coisa. Não é qualquer pessoa, qualquer família que tem R$30,00 , R$35,00 para dar num bujão de gás. Eu acho que o bujão de gás deveria ser no máximo R$ 17,00, R$18,00. Eles estariam ganhando R$12,00 ou R$15,00 acima, que já é grana para caramba. Então tinha que abaixar esse gás. Chegar a no máximo R$20,00”. (...) “Vou te dizer por qual razão: porque o gás é que nem você falou, ele sai a R$5,00 - ele não chega nem a sair a isso. Porque o governo de Estado é que fica com esse dinheiro para gente pagar ele. Ele ganha royalties de petróleo. Então, ele poderia botar bem barato e diminuir o royalties do petróleo – não perderia nada e saía ganhando e a população saía ganhando. Então, eu acho que deveria ser R$15,00 no máximo na época atual”.

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Entre os jovens, a insatisfação em relação ao preço elevado do botijão é fruto da sua indignação com a forma pela qual se realiza o comércio do gás na favela, como mostra o trecho a seguir: "Para falar a verdade, eu não sei bem quanto a gente deveria pagar porque... está dando até pena de quem está vendendo gás hoje em dia. Não sei se vocês já assistiram reportagem, já viram em jornais... Por exemplo, aqui na comunidade, pessoas que vendem o gás... As facções aqui estão pedindo R$3,00 de cada gás. Tem uma vizinha minha, ela vendia gás, ela parou de vender porque ela estava levando um prejuízo imenso. Aí eu acharia até que seria uma injustiça da minha parte falar que teria que pagar menos se a pessoa que está vendendo, não está ganhando muita coisa com isso cara. " "O poder paralelo aqui está terrível mesmo até nesse sentido do gás.“

Nesse sentido, apareceu uma idéia: a fixação do preço do botijão deveria considerar a taxa imposta pelo "poder paralelo", o que significa reconhecê-lo e legitimá-lo.

Em um dos grupos, apareceu forte crítica e inconformismo em relação ao fato de os moradores estarem completamente submetidos ao tráfico na determinação do preço final do gás que, segundo eles, é de vinte e oito reais, mas sai para os moradores do Caju por trinta e três reais. “Não, mas nós pagamos aqui 33 reais - vocês devem saber - é por causa do tráfico. O botijão, agora, é do tráfico. No Parque Conquista é, no Parque Boa Esperança é, no “Bastião” (Parque São Sebastião) aqui, é. Agora, eu não sei na Quinta do Caju.. Eu só falo pelo Rio todo. O tráfico está mandando legal no gás. Porque o certo do gás, que o governo deu o preço, é R$28,00. Você vai lá na Av. Brasil, se passar um caminhão e o cara puder te vender, ele vai te vender a R$28,00. Se "eles" souberem que tu comprou lá, tu vai tomar um pau ou alguma coisa. Vocês sabem disso, os moradores sabem disso.. Porque o tráfico...o preço é deles. R$33,00, que estão mandando isso agora. O caminhão vem cheio, o motorista dá (o gás) na mão deles. Todo mundo vê isso aí. Agora, nós estamos pagando R$ 33,oo por causa disso” “No Jardim América, eu vi na semana passada R$25,30 o botijão de gás de 13Kg”.

A razão da diferença entre o preço do gás e o valor excessivo pago nas comunidades foi explicado, claramente, por um dos entrevistados, demonstrando a insatisfação e a impotência da comunidade com a situação, uma vez que não contam com nenhum apoio de autoridades para mudar essa situação: " Tem comunidade que chega a custar R$ 55,00, como no Borel, no Vidigal, na Rocinha... Está publicando direto nos jornais aí. Isso é um preço abusivo. Nós trabalhamos com gás, nós sabemos que o preço é R$30,00. Cobra R$55,00. ...Eles falam que é obrigado a comprar na mão deles..... De quem "está de frente" na comunidade. Saiu várias reportagens no jornal aí. Estão fechando vários depósitos clandestinos porque eles querem cobrar preço abusivo. Dão o preço para eles de R$20,00 e eles querem vender a R$30,00 pra gente. Nós apanhamos a R$30,00, vendemos R$33,00 para ganhar R$3,00 em cima. Eles querem que bote R$55,00. Isso é um absurdo. Não tem como trabalhar....(...) Quem tem depósito clandestino está tudo fechado. Já foram presos várias pessoas aí. (Devia se pagar) uns R$20,00. É o preço que sai para todos. Eles vendem a R$30,00a."

Essa explicação levou a que outros moradores precisassem o que está acontecendo, como se vê nestes trechos, em que os moradores se queixam da negligência dos Governos em relação à fiscalização: "A gente paga um preço a mais porque acho que eles ainda tiram dinheiro para dar para os “caras” aí. - Uma propina.” (...) “Mas aqui onde a gente mora está assim, muitos lugares vendiam botijão de gás, hoje em dia não tem. O caminhão vende a R$30,00, então agora é R$33,00, R$33,0034,00. Porque R$3,00, R$4,00 é para "eles". A gente tem como comprar a R$30,00, mas o caminhão não vende mais a R$30,00. Porque o lucro que eles vendem a

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mais, R$3,00, R$4,00 não é mais dele. É “deles”.... Se a gente comprar lá na rua do mesmo jeito também. Ele comprou no caminhão a R$30,00, ele vai vender a R$35,00. Mas R$5,00 é “deles”. Quem vende não tem lucro nenhum. Senão não vende gás." (...) "Existem temas que são difíceis da gente comentar. O botijão de gás eu acho que devia ter um preço tabelado. Só devia aumentar o preço do gás, como de muitos outros serviços, de ano em ano. O gás está aumentando quase que de mês em mês ou de dois em dois meses. Tem lugar aí fora que o gás está R$29,00, R$29,90 eu vi aí num bairro aí que eu passei – não me lembro aonde é que foi. Ali perto de Vigário Geral está R$29,00. Na Penha R$29,00. Só aqui está R$33,00 – por quê? Então eu acho que o gás devia ser tabelado e ninguém paga um centavo a mais que aquele preço. É X, é R430,00, é R$28,00. Antigamente o gás estava a R$25,00 aqui, de repente foi para R$33,00, do nada. É R$20,00 um botijão durante um ano. Acabou, ninguém paga mais." (...) "Desde a época em que se criou o real – teve um tempo em que eles tabelaram o gás e eu cheguei a comprar o botijão de gás a R$13,00. Então, porque esse aumento de quase 400%? Se ainda nós estamos no real e eles falam que a inflação está 2%, está 6%.? Eu creio que o culpado disso aí também são os fabricantes e o governo – que não está fiscalizando isso. Então, teria que o gás ter uma tabela fixa. É R$15,00. É R$15,00. Pelo menos para as comunidades."

Todos os grupos, com algumas exceções, responderam à que o preço "bom" seria o limite máximo de R$20,00, como ilustram esses trechos das falas do grupo de empreendedores: "Eu acho que R$20,00 está bom. Porque não duro um mês com um botijão de gás lá em casa. Já pensou? R$33,00 todo mês, todo mês... R$20,00 está bom. Porque quem não tem consumo gasta num mês um botijão de gás. E quem gasta mais? Dois botijões por mês. Vai pagar como? R$33,00, R$35,00 ... tem lugar aqui que é R$36,00 o botijão de gás."

2.4. Energia Solar

Quase a totalidade dos participantes demonstrou desconhecer completamente o funcionamento do sistema para uso da energia solar. Em todos os grupos, havia alguns que já tinham ouvido falar, visto programas na TV, e aqueles raros que conheciam bem o funcionamento do sistema explicaram o funcionamento para os outros moradores.

No grupo das lideranças formais, apenas um integrante declarou ter visto algo sobre energia solar na televisão, enquanto outro demonstrou ter conhecimento técnico sobre o assunto. Houve muitas dúvidas sobre as formas de distribuição e sobre a tarifa a ser paga, mas a idéia de implantação do sistema de fornecimento de energia solar nas comunidades agradou a todos.

No grupo de lideranças informais, a hipótese de adoção do sistema de energia solar na comunidade deixou todos os participantes entusiasmados, apesar do relativo desconhecimento em relação ao funcionamento efetivo ou da existência do sistema. Na realidade, apenas duas mulheres e um homem do grupo haviam tomado conhecimento desse tipo de energia por meio de programa de televisão ou de experiência pessoal, em viagem de férias. Entretanto, muitas dúvidas surgiram sobre o fornecimento desse tipo de energia, relacionadas ao preço e à forma de obtenção dos kits, que supostamente seriam instalados em suas casas. Esta segunda dúvida foi acompanhada de uma incerteza com relação ao acesso a esse tipo de energia por parte da população de comunidades pobres. No grupo dos jovens, embora alguns já tivessem ouvido falar da energia solar aplicada ao ambiente doméstico, opinaram que deveria se fazer uma campanha de

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esclarecimento para que todos conhecessem as aplicações, formas de funcionamento, custos etc. Todos acharam que é uma forma econômica e limpa de energia e que seria bem aceita no bairro.

Na sugestão abaixo, feita pelo grupo dos jovens, está implícita uma certa desconfiança quanto à eficácia da utilização desse tipo de energia. A idéia é utilizar a energia solar durante o dia, como uma forma de baixar a conta de energia elétrica. É como se dissesse "ver para crer": "Tem vários fatores legais com a energia solar. Primeiro: iria gastar menos água. Segundo: você poderia utilizar energia solar durante o dia e para continuar mantendo o imposto sobre a energia, utilizar a energia convencional à noite. Só para gastar um pouquinho assim, só para você ter o controle. Ter um certo direito sobre aquilo e se manter informado e tudo mais. Só que a divulgação para as pessoas da cidade não é divulgado. Só que para as pessoas do campo já foi divulgado. Tem muitas fazendas de pessoa de baixa renda que tem essa tecnologia.”

Em resposta a uma questão que apareceu sobre a razão de ainda não ter sido implantado esse tipo de energia nas comunidades de baixa renda em grandes cidades, um dos jovens achou uma explicação: "Falta de planejamento. Isso para uma cidade teria que ser planejado. Não vai ser assim. Tem que colocar pessoas que aprendessem a fazer o Kit, aprendessem a vender, tivessem como vender. É toda uma rede que tem que ser montada. Vocês imaginam que não é fácil. Tipo assim, a companhia de gás, a companhia de eletricidade levou anos montando isso aí. Então é a mesma coisa."

A hipótese de adoção da energia solar agradou a todos os participantes dos grupos de empreendedores, apesar de alguns nunca terem ouvido falar no sistema, de outros terem tomado conhecimento através da televisão, e de outros terem presenciado o funcionamento do sistema em outro estado do país. Surgiram algumas dúvidas com relação ao funcionamento do sistema de energia solar: quanto à possibilidade de funcionar quando não está chovendo, a possibilidade de instalação pelo morador, o custo, o espaço que ocupa e o perigo. Para mostrar como as pessoas estão abertas a inovações que proporcionem economia e melhor qualidade, destacamos estas falas: "É menos perigosa. A energia solar como falou, ela é gerada através do sol. E essa tecnologia é tecnologia de ponta. E isso já é feito nos países de primeiro mundo. Então, eu ainda não sei por que ainda não chegou até nós. ....Mas eu já ouvi falar da energia solar não só para aquecer a água como até mesmo para mover máquina. Inclusive há 20 anos atrás passa um filme – até futurista – nesse filme os carros eram movidos à energia solar. Então seria uma coisa eficaz aqui para nós."(...) "E quando não tem sol a bateria já está carregada. Então já tem como abastecer tudo dentro de casa."(...) "Eu queria ver corromper o sol!” (...)“Já tem até carro movido a energia solar. Só teve um aqui no Caju. Mesmo assim, teve aqui só para dar uma demonstraçãozinha aqui só lá para os homens grandão” (...)”A Universidade de Campinas fabricou um avião movido a energia solar. Faz uns dois anos e está em fase de testes – assisti na televisão. Os engenheiros fabricaram um avião e fizeram um teste nele. Ele voou – energia solar. Mas seria bom que realmente tivesse. Que não ficasse apenas no campo das idéias, mas que fosse para a prática."

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3. GERAÇÃO DE RENDA

3.1.Introdução Todos os grupos estão de acordo que há pessoas que produzem artigos e serviços

na comunidade e que poderiam ser incentivadas a tornar seus negócios mais lucrativos. Afirmam que, por falta de informação ou por não saberem como usar a informação que têm, precisam ser orientadas na administração de seus negócios.

Duas das entrevistadas que trabalham por conta própria lembraram que os trabalhadores estão muito desestimulados e que aparecem muitas pessoas e entidades dizendo que vão ajudar, mas, depois, não há continuidade.

Um dos comerciantes lembrou algumas empresas que poderiam fornecer apoio financeiro para um programa de incentivo à geração de renda - Triunpho, Multiterminais, Petrobrás.

Os entrevistados analisam a possibilidade de crescimento dos "negócios", a partir das particularidades do que fazem. Alguns opinam que teriam, obrigatoriamente, que crescer "para fora" do Caju. Por exemplo, o morador que tem um depósito de bebidas e que desejaria comprar um caminhão para entregar em outros lugares, embora ache que os tempos são de crise. Ou a vendedora de cosméticos que gostaria de abrir uma loja na zona Sul,"que dá dinheiro", onde não teria problemas para receber as prestações, como tem no Caju. Entretanto, essa mesma entrevistada, ao aprofundar a possibilidade de realizar suas aspirações, verificou suas limitações - o custo burocrático e os impostos.

Os grupos de empreendedores listaram as dificuldades para os pequenos empreendedores no Caju: o custo para abrir e legalizar um negócio, a burocracia exigida para registro do negócio e para obtenção de crédito, os juros altos que acompanham as linhas de crédito, a falta de capital para comprar os materiais necessários, os locais e canais de comercialização

Foram feitas sugestões no sentido de haver maior flexibilidade para os pequenos negócios de moradores de áreas pobres. Todos os grupos expressaram o medo dos moradores do bairro em relação à possibilidade de conseguirem pagar as dívidas, e foram reconhecidas as limitações que têm em relação à administração eficaz de um negócio.

A pergunta sobre espaço para abrir negócios foi entendida literalmente no sentido físico, o que, de qualquer forma, permitiu que fossem citados alguns dos espaços aparentemente disponíveis no bairro, como um balcão abandonado no Parque Alegria, que poderia servir para abrigar grupos de produtores ou cooperativas.

As lideranças formais atuam, algumas vezes, como interlocutores entre as instituições credoras e os moradores do bairro, por exemplo, para abertura de contas bancárias. Nesse sentido, as "associações" são consideradas intermediárias legítimas entre a população e o poder público. Sugestões para a Melhoria da Geração de Renda:

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¤ Programa de Geração de Renda Em todos os grupos, foi constatada a necessidade de um programa de incentivo à

geração de renda para a comunidade.

¤ Foram apresentadas as seguintes sugestões sobre o caráter do programa: ¤ O programa deve ser continuado e não pontual, como todos os projetos que

aparecem no Caju. ¤ Deve incorporar muitas parcerias, principalmente das empresas localizadas no

bairro, como a Triunpho, a Multiterminais, a Petrobrás. ¤ Deve ter uma ampla divulgação. ¤ Deve incluir a participação de todas as comunidades.

¤ Foram citadas pelos moradores algumas dificuldades para os pequenos

empreendedores no Caju: ¤ Custo para abrir e legalizar um negócio. ¤ Burocracia exigida para registro do negócio e para obtenção de crédito. ¤ Juros altos das linhas de crédito. ¤ Falta de capital para comprar os materiais necessários. ¤ Falta de locais para a produção de alguns produtos e de canais de comercialização. ¤ Desconhecimento dos princípios da boa administração. ¤ Dificuldade para pagar as dívidas provenientes de créditos para pequenos negócios

em função de sua fragilidade econômica. • Foram dadas algumas sugestões dos moradores visando superar estas

dificuldades: ¤ Aproveitar espaços abandonados no bairro para localizar a produção e a

administração de alguns dos pequenos negócios. ¤ Operar com maior flexibilidade em relação ao pagamento dos créditos dos pequenos

negócios de moradores de áreas pobres. ¤ Fortalecer a tendência das lideranças formais atuarem, algumas vezes, como

interlocutoras entre as instituições credoras e os moradores do bairro, por exemplo, para abertura de contas bancárias. Nesse sentido, as "associações" são consideradas intermediárias legítimas entre a população e o poder público.

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¤ Passar a considerar o capital investido pelos moradores das áreas pobres como um capital legítimo, que poderia servir como lastro nos negócios.

¤ Criar linhas de crédito especiais para os moradores dos bairros mais pobres,

visando incrementar o pequeno negócio e a construção de moradias: crédito sem burocracia, com taxas de juros mais baixas que as atuais e com prazos de pagamento mais extensos; crédito para iniciar o negócio e para capital de giro. As propostas para as taxas de juros variaram entre 2 e 3%, ou a fundo perdido.. Nenhum participante dos grupos dos empreendedores teve acesso a crédito específico para micro empresa, mas utilizaram crédito pessoal para tentar estabelecer um negócio. Os empréstimos não foram bem sucedidos, pois, ao invés de possibilitarem crescimento do empreendimento, geraram dívidas e perda de bens.

¤ Criar um posto de atendimento dentro da comunidade para esclarecimentos

sobre como montar e administrar um negócio: tirar documentos, linhas de crédito disponíveis, orientação quanto à administração.

¤ Formar cooperativas ou “grupos de trabalho independentes”, que venham a

fornecer desde alimentação a uniformes para as grandes empresas que existem dentro do próprio bairro.

¤ Estabelecer parcerias com empresas, com a Universidade e com o Sebrae. ¤ Dar apoio financeiro e orientação contábil e administrativa aos grupos e

pessoas que realizam atividades por conta própria no bairro.

Um exemplo é o grupo de reciclagem que está sendo desenvolvido na Associação da Clemente Ferreira e outros que devem existir. Além dessa proposta, apareceram outras opções de trabalho por conta própria: a cabeleireira; o comerciante, que tem a sua pequena mercearia; a costureira; a manicura; a lavadeira de roupa; o pedreiro; o carpinteiro; a mulher que tenta ajudar o marido, fazendo uma quentinha; o sapateiro; o consertador de bicicleta; o vendedor de salgados Os jovens deram muitos exemplos de atividades que já estão sendo realizadas por moradores ou por eles mesmos e que poderiam ser auxiliadas com crédito e aconselhamento administrativo, como o instrutor de capoeira que precisa de espaço, a pessoa que trabalha com a confecção de cestas de café da manhã, com estamparia, etc.

¤ Reativar vários espaços ociosos do bairro para abrigar atividades de geração de renda dos moradores do bairro.

Constatou-se que, muitas vezes, o espaço físico para a realização das atividades transforma-se no ponto crítico de algumas atividades. Foi lembrado um galpão pertencente à Prefeitura do Rio de Janeiro, onde, teoricamente, deveria funcionar uma fábrica de gelo, mas que, na realidade, está abandonado. Também foi mencionada a oportunidade de recuperar casas de espetáculos, uma vez que uma das fortes carências do bairro, a falta de lazer, pode virar uma fonte de emprego, se houvesse incentivo para reativarr as casas de espetáculo que foram fechadas.

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¤ Haver maior investimento do governo na área naval, uma vez que, historicamente, o bairro foi construído a partir dessa atividade econômica. As lideranças comunitárias lembraram a tradição operária que está se perdendo,dado que os antigos operários estão em atividades como reciclagem de lixo ou estão trabalhando como camelô. Nesse sentido, os participantes dos grupos de lideranças formais, de lideranças informais e dos empreendedores afirmaram categoricamente que é responsabilidade do governo gerar empregos, pois só ele pode criar mecanismos para estimular o crescimento econômico, como, por exemplo, baixos impostos e facilidade de crédito a juros mais baixos. Criticaram a falta de compromisso do governo em incentivar as empresas, públicas ou privadas, a criar “frentes de trabalho”, por exemplo, diminuindo os impostos. Houve críticas à incompetência administrativa e à impunidade, como indicadores de que o governo não “faz por onde”, por isso há desemprego. Os integrantes de um dos grupos de empreendedores, mais uma vez, fizeram associação entre falta de emprego e alta incidência de criminalidade no bairro. A geração de empregos, vista dentro do próprio bairro, decorreria de investimentos do governo no estaleiro Caneco. Essa resposta foi fortemente influenciada pela faixa etária dos participantes que conheciam o bairro da época dos estaleiros, com uma atividade econômica muito forte. Muitos dentre eles têm parentes que trabalharam nestas atividades.

¤ Qualificação Profissional Foram apresentadas as seguintes sugestões para a melhoria da qualificação profissional: Criação de um Centro de Capacitação. Objetivo - aumentar as oportunidades de qualificação para os jovens do Caju, possibilitando "trabalhar por conta própria", fazer um "negócio". Essa proposta foi feita por um estofador que trabalha por conta própria: “Eu acho que aqui no Caju teria até uma falta. Um Centro de Capacitação. Para que as crianças – também não é só aprender para ir para uma firma não. Às vezes, uma dona de casa quer fazer um curso de salgado ou confeitar bolo e trabalhar para ela mesma. Também esse nosso pensamento não é só: ah, vou trabalhar numa firma, vou trabalhar numa multinacional. Não! Tenho que trabalhar para mim também. Eu sou estofador, trabalho para mim. Eu trabalho há cinco anos, gosto do que eu faço. Então eu acho que é isso que falta aqui no Caju. Porque não adianta também você colocar um curso aqui, chegar e cobrar R$100,00; R$200,00; cento e poucos reais num curso. Ninguém vai ter condições de fazer um curso desse” (morador do Parque São Sebastião). Oferta de vários cursos de qualificação, como telemarketing, turismo, eletricista, pedreiro, culinária, cabeleireiro, carpinteiro etc. Como muitos profissionais nunca fizeram cursos, a sugestão foi feita para melhorar a qualidade técnica. Destacou-se, também, que alguns profissionais, como pedreiros, eletricistas, manicuras, não são articulados, no sentido de se comportarem como fornecedores em potencial de serviços dentro do bairro.Isso foi confirmado em outros grupos, quando alguns profissionais disseram que preferem trabalhar em outros bairros considerados mais abastados, porque ganham mais. Oferta de cursos para a área Naval

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Em quase todos os grupos, foi lembrada a vocação naval do bairro e houve sugestões no sentido de aproveitar a população, realizando cursos para esta área "O Caju é uma grande potência de área naval. Nós temos aqui o estaleiro Caneco e temos a CERNETAL (?) que é lá dentro do Caju. Então por que não investir aqui em formação de mão-de-obra para a área naval? Também seria uma boa revitalizar esta área. O Caneco também está quase falido. CERNETAL também tem pouca obra lá dentro." Oferta de cursos para faixas etárias acima dos 18 anos. Partindo da crítica de que, quando oferecidos, os cursos são restritos a jovens até os 18 anos e não existem cursos para a faixa além dos 18 anos, apareceu a reivindicação de ampliação dos cursos de qualificação para as outras faixas etárias. Foi lembrada também a dificuldade do primeiro emprego, ou por causa da exigência da “experiência", ou porque os jovens não têm idade para trabalhar. Oferta de capacitação dos empreendedores para administrar negócios. Essa capacitação seria dada com a orientação de instituições como o Sebrae e a Universidade e foi citada pela lideranças informais e pelos empreendedores. Um dos grupos de empreendedores especificou a importância da orientação em relação à administração do negócio (montagem da empresa, movimentação de dinheiro etc.). Quando foi montada a cooperativa Arco-Irís (reciclagem???), há seis anos, a universidade deu um curso de gerência (como gerenciar um negócio e como legalizar uma empresa), no SOS. Um dos entrevistados participou desse curso e acha que essa contribuição da Universidade foi muito importante, por isso deveria ser uma ação continuada, não esporádica.