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Compor e decompor: ensaio sobre a história em Ginzburg* Ronald Raminelli Durante as últimas décadas, muitos historiadores se debruçaram sobre a cultura popular. Inúmeras pesquisas voltaram-se ao passado a fim de resgatar tradições culturais que se perderam nas "brumas do tempo". Os resultados desse empreendimento encontram-se nas várias mono- grafias dedicadas aos costumes, ritos e mitos muito esquecidos ou "metamorfoseados" pelos séculos. Contudo, a cultura popular emergida do passado dificilmente teve seu significado original resgatado; em mui- tos casos, o embate entre o presente (o historiador) e o pretérito (o objeto em estudo) produziu sentidos outros, muitos deles avessos à época em questão. Uma parte significativa da historiografia dedicou-se a esta árdua tarefa de resgate; procurando ser o mais fiel possível ao passado, a fim de perceber uma racionalidade estranha à nossa, capaz de dar coerência aos procedimentos ou fenómenos estudados.1 Muitos historiadores dedicados ao tema recorreram a teorias e metodologias provenientes da Antropologia, buscando solucionar questões suscitadas durante as investigações. O culturalismo e o funcionalismo forneceram pistas valiosas para a compreensão do passado; como exem- plo, vale citar a influência de Evans-Pritchard para os estudos sobre a feitiçaria na Grã-Bretanha realizados por Keith Thomas e Alan Macfar- lane.2 Porém, o presente ensaio não abordará a contribuição da Antropo- logia, mas o caminho singular percorrido por Cario Ginzburg a fim de também pensar a cultura popular. O historiador mencionado introduziu duas preciosas perspectivas: a primeira quando aperfeiçoou a noção de "circularidade cultural" de M. Bakhtin,3 criando a possibilidade de se visualizar a dinâmica cultural entre os estratos da sociedade; a outra quando elaborou uma metodologia baseada no "paradigma indiciário", * O ensaio é inspirado no curso ministrado pela Prof. Dr. Ana Maria Burmester, na Pós- graduação do Departamento de História da UFPR. Na elaboração deste texto, contei com a valiosa contribuição do professor Marnio Teixeira Pinto. 1 Encontram-se referências sobre a historiografia dedicada à cultura popular em C. Ginzburg. O queijo e os vermes.(trad.) São Paulo: Cia das Letras, 1987. pp 16-20 e Stuart Clark. "French historians and early modern popular culture" Past & Present, 100: 62-99, 1983. 2 Sobre a influência de Evans-Pritchard na historiografia dedicada à bruxaria, ver Mary Douglas. Witchcraft, confession and accusation. London: Tavistock, 1970. 3 Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, (trad.) São Paulo: Hucitec, 1987. | Rev. Brás, de Hist. S. Paulo | v. 13, n" 25/26 j pp. 81-96 [ set. 92/ago. 93 j 81

Compor e decompor: ensaio sobre a história em Ginzburg* · Jacques Lê Goff, em dois artigos luminosos, ambos da décadas de 1960, nas quais procurou enfatizar como a tradição

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Page 1: Compor e decompor: ensaio sobre a história em Ginzburg* · Jacques Lê Goff, em dois artigos luminosos, ambos da décadas de 1960, nas quais procurou enfatizar como a tradição

Compor e decompor:ensaio sobre a história em Ginzburg*

Ronald Raminelli

Durante as últimas décadas, muitos historiadores se debruçaramsobre a cultura popular. Inúmeras pesquisas voltaram-se ao passado a fimde resgatar tradições culturais que se perderam nas "brumas do tempo".Os resultados desse empreendimento encontram-se nas várias mono-grafias dedicadas aos costumes, ritos e mitos há muito esquecidos ou"metamorfoseados" pelos séculos. Contudo, a cultura popular emergidado passado dificilmente teve seu significado original resgatado; em mui-tos casos, o embate entre o presente (o historiador) e o pretérito (o objetoem estudo) produziu sentidos outros, muitos deles avessos à época emquestão. Uma parte significativa da historiografia dedicou-se a esta árduatarefa de resgate; procurando ser o mais fiel possível ao passado, a fimde perceber uma racionalidade estranha à nossa, capaz de dar coerênciaaos procedimentos ou fenómenos estudados.1

Muitos historiadores dedicados ao tema recorreram a teorias emetodologias provenientes da Antropologia, buscando solucionar questõessuscitadas durante as investigações. O culturalismo e o funcionalismoforneceram pistas valiosas para a compreensão do passado; como exem-plo, vale citar a influência de Evans-Pritchard para os estudos sobre afeitiçaria na Grã-Bretanha realizados por Keith Thomas e Alan Macfar-lane.2 Porém, o presente ensaio não abordará a contribuição da Antropo-logia, mas o caminho singular percorrido por Cario Ginzburg a fim detambém pensar a cultura popular. O historiador mencionado introduziuduas preciosas perspectivas: a primeira quando aperfeiçoou a noção de"circularidade cultural" de M. Bakhtin,3 criando a possibilidade de sevisualizar a dinâmica cultural entre os estratos da sociedade; a outraquando elaborou uma metodologia baseada no "paradigma indiciário",

* O ensaio é inspirado no curso ministrado pela Prof. Dr. Ana Maria Burmester, na Pós-graduação do Departamento de História da UFPR. Na elaboração deste texto, contei com avaliosa contribuição do professor Marnio Teixeira Pinto.1 Encontram-se referências sobre a historiografia dedicada à cultura popular em C. Ginzburg.O queijo e os vermes.(trad.) São Paulo: Cia das Letras, 1987. pp 16-20 e Stuart Clark."French historians and early modern popular culture" Past & Present, 100: 62-99, 1983.2 Sobre a influência de Evans-Pritchard na historiografia dedicada à bruxaria, ver MaryDouglas. Witchcraft, confession and accusation. London: Tavistock, 1970.3 Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, (trad.) São Paulo:Hucitec, 1987.

| Rev. Brás, de Hist. S. Paulo | v. 13, n" 25/26 j pp. 81-96 [ set. 92/ago. 93 j

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recuperando temas esquecidos pelos historiadores devido à carênciadocumental.

CULTURA E CIRCULARIDADE

Os problemas em torno da dinâmica cultural foram abordados porJacques Lê Goff, em dois artigos luminosos, ambos da décadas de 1960,nas quais procurou enfatizar como a tradição popular e a cultura eruditamesclaram-se no mundo medieval. Em "Os camponeses e o mundo ruralna literatura da Alta Idade Média",4 Lê Goff preocupou-se em explicaia ausência do camponês na literatura dos séculos V e VI, período deintensa ruralização da economia e sociedade europeias; e enfatizou ovínculo existente entre literatura e sociedade, mostrando a primeira como"espelho deformado" da sociedade real.

A motivo para o desaparecimento do camponês do universoerudito encontra-se na sua perda de sustentação económica, social cmental; a sociedade rural foi combalida pelas invasões bárbaras e poiuma ideologia destinada a menosprezar o valor do trabalho manual.Entretanto, nem mesmo a conjuntura desfavorável ao homem rural pôdeanular por completo sua participação na literatura do período. Nestesentido, o historiador descobre que o camponês se apresenta, nos textoseruditos, por intermédio de disfarces, como pagãos (não cristianizados),pecadores, pobres, ignorantes e iletrados. Os trabalhadores são retratadoscomo seres marginais e passíveis de ser alocados em um bestiário tera-tológico. Em síntese, Lê Goff pensa a ruralização da economia e o in-cremento das ordens monacais como responsáveis pelo afastamento, emesmo clivagem, entre eruditos e camponeses e, consequentemente, pelaconstituição de dois universos aparentemente antagónicos.

A visão erudita sobre o homem do campo na Alta Idade Médianos remete aos limites do emprego da literatura como fonte historie aPois, se por um lado ela fornece um conhecimento preciso sobre a idi-ologia de setores letrados, por outro ela é imprópria quando se necessitade informações sobre a sociedade real. A mencionada ausência do camponês patenteia a marginalidade desse elemento e o desconhecimcniuclerical da tradição popular. Além de ser um indício do despreparo oudesinteresse, por parte do clero, em difundir o cristianismo entre oscamponeses. O contrário, todavia, ocorre nos documentos manuseadospor Lê Goff em "Cultura clerical e tradição folclórica na civilizada..

4 In: Para um novo conceito de Idade Média, (trad.) Lisboa: Imprensa UnivcrsiiàiinVEstampa, 1980. pp. 121-133.

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inerovíngea".5 Neste artigo o historiador avalia o quanto a tradiçãofolclórica contribuiu para o fortalecimento e difusão do cristianismo.

Nesse aspecto, o estudo demonstrou que a romanização dosbárbaros representou um forte apelo cultural sobre a Cristandade, queinduziu o clero a promover a difusão da palavra de Cristo. Esse em-preendimento desenvolveu-se por intermédio de dois tipos de proce-dimentos: l - - o acolhimento do folclore pelos membros da Igreja,facilitado por estruturas mentais comuns, ou pelo esforço do clero em seadaptar aos seus futuros fiéis; 2 — ao mesmo tempo, a cultura eruditarecusou-se a assimilar algumas práticas da cultura popular, práticaefctivada através da destruição, desnaturalização ou obliteração de ritosc crenças. Lê Goff enfatiza, portanto, o processo pelo qual a Igreja seapropriou, em parte, do legado popular e o reelaborou, a fim deaproximar o mesmo do cristianismo. Por outro lado, a Igreja elegeualguns traços culturais como proibidos e criou um aparato repressor afim de persegui-los. O historiador procurou portanto explorar o controleexercido pelo clero sobre a manutenção, o significado, ou mesmo, sobrea interdição dos mais variados aspectos da cultura popular. O artigoainda conclui pelo domínio clerical do processo de circulação culturalentre os populares e o clero, sendo esse mecanismo indispensável àdifusão do cristianismo e o constante "entrosamento" entre os setores dasociedade.

A visão de Lê Goff sobre a circulação cultural está profundamentemarcada pelo marxismo ,— a classe dominante manipula os costumes eassim fortalece a sua hegemonia. C. Ginzburg não concebe a dinâmicacultural de modo unilateral; pelo contrário, o historiador entende que háuma troca incessante entre os vários níveis culturais. Na introdução de"O queijo e os vermes", Ginzburg faz inúmeras considerações sobre aquestão. De início menciona que a oralidade da cultura popular provo-cou uma certa relutância, por parte dos historiadores, em se dedicaremao estudo histórico sobre a tradição popular. As crenças, pensamentos ecostumes das classes subalternas circulam através da fala, e poucas vezesdeixam registros escritos. Essa situação se torna ainda mais grave parao historiador, que se debruça sobre populações localizadas em temposremotos e obscuros. Entretanto, em algumas raras ocasiões, é permitidoaos estudiosos do passado entrar em contato com a tradição popular.Quando isto ocorre, tal documentação se lhe apresenta por intermédio dehomens eruditos, que comumente desconhecem este legado, e por isso odeformam.

' M- cit. pp 207-219." ( ' (]in/.burg. Op.cit.

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Apesar das dificuldades, alguns historiadores se dedicaram aotema, mas nem sempre obtiveram êxito. Os limites dessas pesquisas seevidenciam quando concebem as classes populares como alvo fácil daaculturação empreendida pelas classes dominantes: ou quando atribuema esse segmento traços culturais, em parte, autónomos à sua cultura;outras vezes, nutrem um sentimento de "estranhamento absoluto" face àessa tradição, preferindo não tocá-la e deixá-la falar por si mesma.Porém, segundo Ginzburg, a melhor proposta destinada ao estudo dacultura popular, por via da documentação escrita, encontra-se na obra deM. Bakhtin. O mesmo acredita em uma influência recíproca entre a"cultura das classes subalternas e a cultura dominante".7 Assim, ao invésde caracterizar, como Lê Goff, a pretensa dominação por parte da classedominante sobre a cultura popular, Bakhtin reforça a troca incessanteentre os dois níveis sociais. Em "O queijo e os vermes", Ginzburg segueessa trilha, explorando sempre o cruzamento entre o erudito e o popular.

Em "Os andarilhos do bem", Cario Ginzburg depara-se com prá-ticas mágicas desconhecidas da demonologia, que por conseguintesuscitaram estranheza à Inquisição. O historiador consultou váriosprocessos envolvendo os benandanti e descobriu que, ao longo dos anos,o Santo Ofício e seu aparato repressor induziram a transformação dascrenças próprias do grupo. O que era exógeno à demonologia, tornou-separte dela. Deste modo, o estudioso pôde perceber como ocorreu a"diabolização" das práticas que, anteriormente, eram autónomas em rela-ção à herança clerical. No caso de Menocchio, porém, o fenómeno dacircularidade é mais evidente, pois este moleiro atua como intermediaiiocultural entre a tradição folclórica e a literatura impressa. E assim n-aliza uma síntese original e extraordinariamente instigante para a históriadas ideias e da cultura popular.9

Nesta mesma obra, Ginzburg procura DECOMPOR o pensamentode um moleiro. Deste modo, consegue relacionar as ideias inéditas deMenocchio às possíveis origens; ou melhor, fracionando sua visão demundo, o historiador torna-se capaz de indicar ou determinar as leiturasrealizadas pelo moleiro e a maneira particular dele apreender o contendodas obras. Por intermédio da decomposição, Ginzburg visualiza a dm.imica cultural e a circularidade entre o pensamento popular e o erudito,a tradição do povo e a ortodoxia.

Ainda na introdução de "O queijo e os vermes", Ginzburg expli-c i t a sua preferência pelo termo cultura, em vez de mentalidade. E, assim,tece considerações sobre o caráter classista do primeiro, enquanto osegundo desprezaria as diferenças e os antagonismos, enfatizando oaspecto "supraclassista". Além disso, segundo o historiador italiano, osestudos de mentalidade têm se voltado para o irracional, a inércia, oarcaísmo, a afetividade...

Nesta caracterização o estudioso demonstra o quanto sua con-cepção de mentalidade é obtusa. Não há dúvida de que alguns trabalhosdedicados ao estudo da perspectiva mental têm se pautado pelasabordagens supracitadas. No entanto, nem todas as pesquisas possuemesse aspecto "tenebroso", pois a existência de um substrato culturalcomum a todos os segmentos sociais não invalida, a priori, as diferençasclassitas. A partir desse prisma, existiria um pool informativo comum(mentalidade = estrutura), como a língua, por exemplo, convivendo comníveis culturais e sociais profundamente diversos e, às vezes, antagó-nicos. Vale dizer que uma pesquisa que não leve em conta ambas asperspectivas tende a simplificar a trama social e perder a ideia detotalidade.

Por outro lado, o termo cultura, empregado unicamente a partir doenfoque classista, inviabiliza a circularidade, pois, se não houvesse umsubstrato informativo comum entre os eruditos e os populares, como seriapossível a comunicação, entre os dois níveis? Em suma, a ênfase no cará-ter classista e o desdém pelo estudo das mentalidades invalidam a circu-laridade cultural, ou melhor, as pesquisas deste historiador. Deste modo,entendendo que as críticas a Lucien Febvre e à história das mentalidadesnão passam de mera retórica.

Em "Ticiano, Ovídio e os códigos da figuração erótica do séculoXVI",10 o mesmo historiador introduz uma outra concepção decircularidade, desta vez menos esquemática. A partir de uma análisesobre um quadro de Ticiano, Ginzburg demonstra o quanto a troca entreníveis culturais é complexa, afastando-se um pouco da versão de Bakhtin.O eixo central do presente texto será a procura de uma fonte inspiradoracapaz de levar Ticiano a pintar algumas de suas obras-primas. Panofskyconsidera Ovídio como principal inspiração para o mencionado pintor.Todavia, Ginzburg descobre que Ticiano não lia latim, e que por issodificilmente teria lido Ovídio no original. O mestre conheceu Ovídio porintermédio de uma vulgarização das Metamorfoses, onde havia figuras

7 Idemp. 21.8 C. Ginzburg. Os andarilhos do bem. (trad.) São Paulo: Cia das Letras, 1988.9 Ginzburg. O queijo ... op. cit.

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'Ginzburg. Mitos, emblemas e sinais, (trad.) São Paulo: Cia das Letras, 1989. pp 119-141

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pintadas de maneira tosca. Tanto o texto quanto as ilustrações loi .unfundamentais para a realização da obra de Ticiano, permitindo-lhe remiusímbolos desconhecidos da poesia de Ovídio — símbolos estes pn-Mm.na vulgarização. Deste modo, a originalidade atribuída a Ticiano poiPanofsky tornou-se um indício da circularidade e, logo, da interpretai, , i < >vulgarizada de uma obra erudita.

Neste ensaio de Ginzburg, dois aspectos são da maior impou.nu 1.1para a História: l — revela a complexidade do entrosamento eniu- o.vários níveis culturais, pois a obra de Ovídio (de cunho erudito) deuorigem a uma vulgarização (portadora de traços da tradição popular e > l nlegado greco-romano), que por sua vez influenciou a obra erudita « l iTiciano; 2 — por outro lado, esse estudo nos induz a relativizar os mmlos (erudito e popular) introduzidos por Bakhtin, e ressalta a necessidadede um raciocínio capaz de entender a dinâmica da circularidade de loima menos estanque. Assim, não se pode reduzir este fenómeno a u n Msimples ação do erudito sobre o popular, ou vice-versa, por, ,\e da dinâmica cultural e, logo, a confluência incessante e u i i .

os níveis de cultura, transforma a tarefa de rotulá-los, entre erudito « •popular, em uma missão árdua e muitas vezes estéril.

Em "História noturna", o historiador indica uma nova faceta dofenómeno da circularidade. Uma determinada cerimónia realizada amulmente em Frankfurt girava em torno da entronização de um rei acompanhado de soldados travestidos de mulher. O monarca vinha cm umcarro e se tornava alvo de risos e escárnio. O historiador nota aipimparentesco entre esta festividade e uma outra realizada na Mésia miei mie na Capadócia, onde um rei era nomeado pelos soldados no período dascalendas de janeiro. E assim, indagou Ginzburg: "A cerimónia «lêFrankfurt não seria uma evocação erudita, inspirada por algum estúdio. , ,menos inclinado que Lipinius, a condenar de forma moralista as céu monias pagãs?"11

Nesta hipótese o historiador aventa a possibilidade de a e u l i m aerudita determinar o aparecimento de uma cerimónia em Franklmi «Ioséculo XVII a partir dos primeiros séculos da era cristã. A hipótese, noentanto, é descartada a partir da constatação de que os espectadores d « >evento entendiam perfeitamente o significado do rito, além de pa i t i e iparem do mesmo rindo e debochando do dito monarca. A contestação ,! .«possível circularidade reforça a tese de Ginzburg de que há um suhsti.iiocultural comum, unindo as populações da Eurásia. Por outro lado, amesma hipótese levanta a possibilidade de um tipo muito singulai « l ê

11 Ginzburg. História Noturna.(trad.) São Paulo: Cia das Letras, 1991. pp 166-167

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dinâmica cultural, lembrando aos historiadores que os fenómenos dacultura são complexos e muitas vezes capciosos.

No entanto, em "História noturna", Cario Ginzburg ainda não selibertara da dicotomia entre o popular e o erudito. O popular foi con-cebido como um estrato cultural muito antigo, disperso em um imensoterritório entre a Europa e a Ásia. Por outro lado, o erudito produziu adcmonologia, conhecimento elaborado a partir da cultura popular edestinado a perseguir inicialmente os judeus e, em seguida, as bruxas.Enfim, o historiador entende o complexo do Sabá como síntese erudita,realizada a partir da observação e perseguição da cultura popular.

Por fim, vale mencionar que a noção de circularidade levouGinzburg a observar com muito cuidado a documentação referente aoscostumes e hábitos populares. O termo filtro cultural criado pelohistoriador permite vislumbrar como as informações existentes nosarquivos do Santo Ofício, por exemplo, são o resultado de um embateentre o herege e o inquisidor. Ou melhor, as narrativas preservadas pelaInquisição constituem uma prova cabal de como os eruditos entendiamos ritos e mitos provenientes de uma outra tradição cultural. Assim, osdepoimentos gravados pelos inquisidores servem menos como fontes paraa história da cultura popular e mais como recurso para uma história dasrepresentações do outro, da alteridade. Indiretamente, Ginzburg inauguraum novo caminho para os estudos da Inquisição, transformando osinquisidores em "antropólogos".

A noção de filtro cultural foi aperfeiçoada por Ginzburg emalguns artigos da coletânea publicada pela Difel e organizada por Fran-cisco Bethencourt e Diogo Ramada. Em "A micro-história", há doisartigos da maior importância: "O inquisidor como antropólogo: uma ana-logia e suas implicações" e "Saques rituais. Preâmbulos de uma in-vestigação em curso". Neles, Ginzburg abala os alicerces das pesquisassobre a cultura popular. Inicialmente, ressaltando a participação doinquisidor nas informações advindas dos processos inquisitoriais; emseguida, demonstrando os limites do uso de teorias antropológicas paraentendimento do passado.12

No segundo artigo, o historiador percorreu os caminhos dosantropólogos pós-modernos (Clifford Geertz, James Clifford, PaulRabinow e Renato Rosaldo) e realizou um estudo histórico sobre a teoriados ritos de passagem. Descobriu então que os estudos antropológicossobre o tema tiveram forte influência da tradição greco-romana, pois:

1 ' Ânimos encontrados na coletânea "A micro-história e outros ensaios", (trad.) Lisboa: Difel,l ' > ' ) ! . p. 143-168 e 203-214.

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"Ao debruçarem-se sobre civilizações de outros continentes, os viajanicse os estudiosos europeus serviram-se muitas vezes, e nem sempre deforma consciente, dos conhecimentos e das categorias provenientes daAntiguidade Grega ou Romana..."13 Assim, ao recorrer às teoriasantropológicas, muitas vezes os historiadores não percebem a filiarãoentre os ritos de povos longínquos e os costumes próprios do passadoeuropeu. Em "A micro-história", encontram-se reflexões sobre <>problema das representações e das mediações existentes entre o passadodas culturas populares e o historiador, ressaltando os limites às pesc|insãs destinadas a conhecer as tradições populares. Em "Représentation Irmot, 1'idée, Ia chose", seu último trabalho, o historiador aponta umanova fase de sua produção historiográfica, deixando os estudos voltadosà cultura popular, para se dedicar às representações do corpo do rei.14

HISTÓRIA E MORFOLOGIA

Em "Sinais — raízes de um paradigma indiciado",15 Ginzbui)1

reconstrói a formação de um modelo epistemológico, por muito tempodesqualificado pela ciência. O paradigma indiciário mencionado afirmouse como ciência humana somente por volta do final do século XIX,quando nomes como Morelli, Sherlock Holmes e Freud procuravamindícios, aparentemente insignificantes, para reuni-los e, em seguida,construir uma realidade complexa. Morelli, por exemplo, objctivavadistinguir os mestres da pintura de seus alunos e, para isso, não procurouparticularizá-los através de sua formação académica, pois esse caminhonão permitiria o êxito de seu empreendimento. Buscou, então, identificaios mestres por intermédio de indícios aparentente sem importânciacomo orelhas, unhas e mãos das pessoas representadas em telas. Suaintenção era debruçar-se sobre esses dados, a fim de chegar àindividualidade de cada artista (pois esses detalhes comumenicescapavam ao controle consciente dos mestres no momento da execuçãoda obra). O mesmo método de trabalho e a sua evidente valorização doinconsciente foi empregado por Freud, na Psicanálise, e por ConanDoyle, no romance policial. Para explicar as conexões existentes entre ostrês estudiosos, o historiador percorre pistas, segue rastros e descohic(observando o uso da metalinguagem) um dado comum a esses

13 Ginzburg, C. Saques rituais. In: A micro história..., p. 163.14 Ginzburg, C. Représentation: lê mot, l'idée, Ia chose. Annales, 44: 1219-34, 1991.15 Ginzburg. Mitos..., pp. 143-179.

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personagens: a medicina. Todos haviam passado pela escola de medicinae conheciam muito bem as "artimanhas" da semiologia.

No entanto, as raízes deste modelo epistemológico são muito maisantigas e remontam ao saber venatório. Os caçadores, há milénios,perseguiam pegadas, ramos partidos, penas, e a partir desses dados iamno encalço de animais. Sua tarefa era reunir informações desconexas econseguir capturar a presa. O poder de relacionar os rastros aos animaisassemelha-se à capacidade mental de identificar em caracteres picto-gráficos uma ideia ou um objeto. Assim, decifrar rastros, adivinhar porindícios e ler são mecanismos mentais semelhantes e tributários do para-digma indiciário.

O historiador empreende, em seguida, um levantamento históricodos desdobramentos deste paradigma e menciona o aparecimento dajurisprudência, semiologia médica, arte divinatória, historiografia e dafilologia, durante a Antiguidade. E ressalta que após o Renascimento oparadigma enfrentou uma grande resistência por parte dos critérios decientificidade elaborados por Galileu. A comprovação de uma experiênciase daria pela repetição (aspecto quantitativo) de um mesmo fenómeno,enquanto a arte de conjecturar se originaria na análise qualitativa, ten-dendo a individualizar os fenómenos. Tal procedimento é tão conhecidodos médicos quanto dos historiadores, pois, como na medicina, oconhecimento histórico é indireto e conjecturai. Por isso, durante a épocamoderna, esse modelo transformou-se em um mero auxiliar da ciênciagalicaica, devido à ênfase na individualidade e na capacidade de servircomo instrumento de abstração. Ginzburg chega a afirmar que a ciênciamoderna é anti-antropomófica, por desdenhar as particularidades de cadaser humano e valorizar a padronização.

Entre os séculos XVIII e XIX, as ciências humanas assumiram,cada vez mais, o paradigma indiciário da semiologia. Contudo, somenteno final do "ottocento", com o surgimento da sociedade de massa, essemodelo alcançou uma maior sistematização. Com Morelli, Freud e ConanDoyle, vê-se a consagração de um tipo de pesquisa dedicado ao conhe-cimento do indivíduo, saber dedicado sobretudo às condutas incons-cientes. A enorme aceitação do paradigma não isentou as ciênciashumanas de viver um terrível dilema: assumir um status científico débilc chegar a resultados relevantes; ou assumir um status científico forte eobter respostas irrelevantes. O impasse é explicado a partir do rigorelást ico característico do paradigma, do carater mutável deste tipo deconhecimento, que não se efetua por meio de regras preexistentes, maspor intermédio da intuição. Ginzburg ainda classificou a intuição comoalia e baixa; a primeira seria característica do conhecimento venatório eM - onstituiria, segundo faz entender o historiador, em um dom genético;

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enquanto a outra se encontraria entre homens de uma elite ilustrada Ametodologia criada por Ginzburg e respaldada no paradigma indiciai mestá evidente em quase todas suas pesquisas. Em História Notum.icontudo, há o aperfeiçoamento de tal metodologia. Classificar, comparaie analisar informações em sincronia e diacronia tornaram-se os prmcipais procedimentos metodológicos de Ginzburg na sua última obra Aestrutura do texto, a metodologia e a tese aí encontradas estão cmperfeita harmonia; não se pode explicitar a primeira sem recorrer aosoutros dois e vice-versa. O historiador a dividiu em três partes: l - oscapítulos iniciais caracterizam-se pela narrativa histórica, onde o auimrelata como as perseguições aos leprosos e judeus contribuíram paia «>surgimento do complexo do Sabá e da caça às bruxas; 2 — a seguir, apartir de série documental vastíssima, reúne indícios capa/.es < ! < •comprovar a existência de um substrato cultural comum entre as pópulações da Eurásia; para tanto recorre a sincronia, comparando amorfologia de ritos encontrados numa vasta área e em períodos variad< > > . ,3 — a terceira e última parte é mais heterogénea quando comparada asdemais, pois em um capítulo Ginzburg emprega a perspectiva cionológica (diacronia) e conjectura sobre as várias imigrações ocorridas »partir do centro da Ásia em direção ao sul, oeste e leste; enquanto nooutro recorre a metodologia empregada pelos estruturalistas para comprovar o isomorfismo entre os mitos de Édipo, Aquiles, Cindercla eoutros tantos encontrados em uma vasta área compreendida entre <>sudoeste asiático e as ilhas britânicas.

A metodologia desenvolvida por Ginzburg e destinada a investigaia cultura popular está evidenciada nas partes II e III quando o mesmo,através de uma enorme massa documental, detecta semelhanças eniictraços culturais no tempo e espaço os mais variados. No entanto, é nuparte I que o pesquisador delimita o problema principal da obra: comprovação da existência de um substrato cultural comuns às populações < l . iEurásia. O ponto de partida da investigação é o complexo do Sabá,cerimónia narrada em vários documentos, sobretudo nos proccinquisitoriais a partir do século XV, onde se encontra uma série detraços culturais comum à tradição dos povos euro-asiáticos. Nesiesentido, entende-se que nas partes II e in encontram-se procedimentosmetodológicos destinados a comprovar uma hipótese esboçada n»-,primeiros capítulos. Na parte I, Ginzburg então avança no tempocobrindo a Alta Idade Média até chegar à perseguição às bruxas cni ieos séculos XVI e XVII; na partes subsequentes, o procedimento einverso, pois a partir de traços culturais detectados no Sabá, < >pesquisador retrocede no tempo e percorre um enorme território. Naverdade, o historiador italiano não respeita uma delimitação tempoi.i l .

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alem de não fazer diferença entre as variadas regiões dos continenteseuropeu c asiático.

A problemática em torno do substrato cultural comum àspopulações da Eurásia surgiu a partir de processos inquisitoriaislelercntes à região do Friul, onde encontrou relatos de heresia da maiorimportância para a história da cultura popular. Os processos continhamcultos religiosos desconhecidos dos demonólogos, que, a princípio,tiveram dificuldade de caracterizá-los como bruxaria. Ao longo dos anose depois de muitos interrogatórios, os inquisidores conseguiram que osadeptos do culto agrário assimilassem parte do discurso dos de-monólogos, aproximando cerimónias exóticas do culto satânico. Porintermédio desta constatação, o pesquisador iniciou o estudo sobreciieularidade cultural, que seria, mais tarde, aperfeiçoada em "O queijoe os vermes". Porém, o culto agrário desconhecido da Inquisição tornou-se um interesse permanente do historiador; foi investigando os processosdo Friul que encontrou os relatos de Menocchio e deu continuação àpesquisa que daria origem à "História Noturna". Deste modo, oslienandanti influenciaram toda a obra de Ginzburg, suscitando uma sériede problemas teóricos e metodológicos; muitos deles seriam abordadosK >m profundidade depois de vinte anos. Por muitos anos, comenta(im/.burg, "partindo da documentação a respeito dos benandanti, procu-i e i aproximar - - tendo por base afinidades puramente formais —depoimentos sobre ritos, crenças e mitos, sem ter a preocupação deinseri-los em alguma moldura histórica plausível". 16

Depois de muitas pesquisas, o historiador encontrou respaldoleorico para a conduta metodológica acima mencionada. Wittgenstein,nas reflexões sobre o Ramo de Ouro de Prazer, comenta que aexplicação histórica (diacronia) não é a única forma de ordenar a evo-lução dos dados, é possível também ordená-los em sua relação recíproca(sincronia); a morfologia torna-se, assim, igualmente um pressupostoi apa/. de ordenar o material empírico. O historiador utilizou a mor-lologia "como uma sonda", para examinar um estrato profundo, inatin-gível por outro meio.17 Deste modo, inverteu a tese de Wittgenstein elecorreu, como conduta inicial, à comparação dos ritos, mitos e crençasencontrados, empregando, em seguida, a análise histórica da distribuiçãole in io i ia l de traços culturais semelhantes.

O empreendimento proposto acima esbarra em um obstáculo(|iiase intransponível, a falta de documentação. A hipótese defendida pelo

"• < . I I I / I M I U » . História Noturna. Op. cit., p. 26." l.lrni. p. 28.

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estudioso requer dados sobre um período no qual a escrita praticamenteinexistia nas vastas estepes da Ásia; além disso, quando a mesma faziaparte do legado de uma civilização, não era comum relatar práticaspopulares, mas cânones religiosos e a vida administrativa. Devido àcarência informativa, Ginzburg elaborou uma metodologia que primavapor classificar, comparar e analisar dados coligidos aqui e ali na vastadocumentação consultada. A tarefa do historiador era COMPOR umsubstrato cultural que uniria vários povos: para isto, segue pistas,percorre rastros, compara ritos, aproxima cerimónias, encontra iso-morfismos e conjectura contatos. Indícios insignificantes, como um pédescalço, podem construir uma realidade complexa: "Testemunhosfragmentados, distanciados no espaço que registram, uma vez mais, aprofundidade do estrato cultural que tratamos de trazer à luz".18

A metodologia empregada descarta, então, a heterogeneidade dasfontes documentais e as particularidades de seu surgimento, pressupondoa homogeneidade das informações. Um indício é sempre semelhante aoutros, já que faz parte de um mesmo puzzle. A fragilidade da pesquisaé, em princípio, contornada quando se pensa na unidade cultural quepromoveria uma padronização ou proximidade entre os mitos e ritos.Contudo, a similitude não é um princípio, mas uma hipótese a sercomprovada, e diga-se logo, de difícil comprovação. Tal procedimentolança dúvidas sobre o rigor metodológico da pesquisa, e como historiadoreu pergunto: seria possível comparar orelhas e unhas existentes n;ipintura do Renascimento, da mesma maneira que se compara mitos dosudoeste asiático com outros da Escócia? Ritos isomorfos teriam semprea mesma origem? Possuiriam o mesmo sentido ou simbolismo emsociedades tão díspares? O etnocentrismo não seria o responsável pel;iunidade ou similitude destas práticas?

A despeito dos obstáculos, Ginzburg dedica a parte II de "HistóriaNoturna" à morfologia, comparando e aproximando fenómenos culturaisA tarefa do pesquisador consistiu em DECOMPOR crenças, ritos e mhos,a fim de chegar a unidades isomorfas. Em muitos casos, sobretudo n.iparte dedicada aos combates em êxtase, o empreendimento mostrou sefrutífero, originando uma das análises mais instigantes da pesquisa; emoutras, a carência documental não permitiu boas comparações. O hi.storiador, todavia, não se contentou com o exame morfológico: "Nossoitinerário levou-nos a sociedades, tempos e espaços cada vê/, m.ir.distantes do âmbito cultural em que o Sabá se cristalizara. Talve/. esseresultado fosse previsível. Imprevisto, ao contrário, é o contraste entre u

1 Idem, p. 164.

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heterogeneidade dos contextos e a homogeneidade dos dados. Isso colocaquestões das quais não podemos fugir. Mas para buscar uma respostaserá necessário testar uma possibilidade que ainda não se levou em consi-deração: isto é, que tais convergências formais devam-se a conexões decaráter histórico". 19

No entanto, a análise histórica da difusão deste substrato culturaltornou-se o ponto frágil da pesquisa. O título "Conjunturas eurasiáticas"já é um indício da debilidade do estudo em diacronia. A quaseinexistência de testemunhos inviabiliza a parte que seria a mais preciosado estudo, pois, segundo o próprio historiador, a análise sincrônica seriaapenas uma sonda, enquanto à cronologia caberia explicar os iso-morfismos. Neste sentido, "História Noturna" se aproxima de "O Ramode Ouro" e se afasta dos difusionistas; distancia-se dos historiadores ebebe nas águas dos estruturalistas. Além de reafirmar um famoso dilemade Lévi-Strauss: "ou as nossas ciências se vinculam à sua ordem notempo e se tornam incapazes de traçar-lhe a história, ou procuramtrabalhar à maneira do historiador, e a dimensão do tempo lhesescapa".20

No capítulo seguinte, Ginzburg abandona a perspectiva diacrônicae se inspira na análise estrutural dos mitos para elaborar um estudofascinante. "Ossos e peles" é, sem dúvida, o ponto alto da pesquisa, masnão consegue ultrapassar a antítese entre diacronia e sincronia, muitopelo contrário, reforça a segunda abordagem. A análise estrutural, ou dascaracterísticas internas, tornou-se necessária, afirma Ginzburg, para secompreender a persistência temporal e a dispersão espacial do conjuntode fenómenos examinados.21 Depois de constatados, os isomorfismosmíticos e rituais através de análises estruturais, o autor concluiu que asimilitude não pode ser atribuída à existência de arquétipos ou ao in-consciente coletivo. A relação entre história e morfologia torna-se, por-tanto, o único caminho plausível para explicar o fenómeno. Entretanto,nada se pode provar sobre as relações históricas; a realidade dos con-tatos, das migrações e da possível difusão do conjunto de ritos e mitostambém não pode ser comprovada. Ginzburg finaliza o capítulo da se-guinte maneira: "Na falta de prova contrária, só resta postular, por trásdos fenómenos de convergência cultural que investigamos, um entrela-çamento de morfologia e história — reformulação, ou variante, do antigocontraste entre aquilo que existe por natureza e aquilo que existe porconvenção".22

19 Idem., p. 183. „._20 C. Lévi-Strauss. Antropologia estrutural, (trad.) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, l-p. 15.21 Ginzburg. História Noturna. Op. cit., p. 28.22 Idem., p. 249.

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Por intermédio da exclusão, o historiador defende a tese que temo difusionismo como responsável pelas semelhanças morfológicas; sendoassim, à perspectiva diacrônica caberia explicar os isomorfismos. Noentanto, as conexões históricas são frágeis e raramente comprováveis. C.Ginzburg, de modo curioso, constrói sua tese sobre o ponto mais débilda pesquisa, optando por um caminho há muito abandonado pelaAntropologia. Devido à mesma fraqueza documental, alguns antropó-logos abandonaram a análise cronológica e procuraram pensar assimilitudes entre traços culturais de povos, que não possuem contatosdocumentados, por intermédio das estruturas — o modo de funciona-mento da mente humana seria responsável pelas semelhanças.

O historiador ainda se refere, no mesmo trecho, ao contraste entrenatureza e cultura (convenção). Deste modo, concebe a "naturezahumana" como ponto comum entre os mais variados fenómenosculturais; enquanto a convenção surgiria do entrosamento entre a unatureza humana e o meio ambiente. Tal entrosamento entre natureza ecultura nos remete à concepção de difusionismo empregada porGinzburg. Em "História Noturna", a difusão de um substrato culturalnão se realiza de modo mecânico; a dispersão de núcleo cultural promovea transformação ou metamorfose do mesmo — temas semelhantes sãoexpressos das mais diversas maneiras, revelando, por vezes, a relaçãoentre o homem e o contexto. A partir desta premissa, entende-se commaior clareza a tese e a metodologia empregadas na referida obra: umsubstrato cultural se dispersou entre Ásia e Europa, dando origem ;imitos e ritos variados, o que equivale a dizer que são semelhantes e,logo, comparáveis.

Após esta constatação, percebe-se que Lévi-Strauss é o grandementor intelectual de "História Noturna", seja quando o historiado!emprega a metodologia de análise dos mitos ou quando recorre ;iodifusionismo. Em um artigo de 1983, publicado na revista Annales, Lr v iStrauss comenta que uma enquete histórica se torna profícua quando •.<•atrela a uma análise estrutural. A citação a seguir demonstra o quanioo antropólogo influenciou nosso historiador: "On s'aplique (aniôl .»determiner dês centres de diffusion, tantôt à dégager dês s i i u i u i c .profondes; dans lê deux cãs, il s'agit de trouver lê semblablc sons l.différent, autremente dit d'une quête de 1'invariant".23 Enfim o i u - < i i . 'resume com perfeição os procedimentos de Ginzburg em sua u l i i m . ipesquisa.

Contudo, o historiador ressalta, na introdução, as discordâncias emrelação ao pensamento de Lévi-Strauss. Contesta, em princípio, a funçãomarginal e circunscrita atribuídas à história; não caberia aos histo-riadores a mera tarefa de responder questões propostas pela Antro-pologia. Os estudos históricos e morfológicos cobririam o "âmbito situadoentre a profundidade abstraia da estrutura (...) e a concretude superficialdo evento".24 Ou melhor, a tarefa do historiador, diria Ginzburg, nãoseria refletir sobre a natureza humana, mas se debruçar sobre asvariações de um mesmo tema ou a recorrência de um substrato culturalentre povos díspares.

Apesar das divergências, a relação entre morfologia e históriainaugura um veio da maior importância para o entrosamento entreantropólogos e historiadores. O estudo de Ginzburg, apesar das limi-tações, é um excelente testemunho desta união, trazendo para a Históriaquestões e debates encontrados em outros campos do conhecimento. Ainterdisciplinaridade propalada pelos fundadores da revista Annalestornou-se a principal característica dos historiadores de vanguarda, pro-movendo uma verdadeira revolução nas pesquisas sobre o passado."História Noturna" é, sem dúvida, um estudo instigante e muito polé-mico, capaz de provocar questões nunca antes enfrentadas pela histo-riografia.

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62-99, 1983

23 Lévi-Strauss."Histoire et ethnologie" Annales, 6: 1217-1231, 1983.

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24 Ginzburg. História Noturna. Op. cit., p. 35.

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RESUMOO ensaio pretende percorrer a

trajetória teórica e metodológica dohistoriador italiano Cario Ginzburg.Partindo de seu trabalho sobre osbenandanti e da problemática em tornoda relação entre cultura erudita e culturapopular, até o sua pesquisa em torno deum subtraio cultural comum entre aspopulações da Eurásia.

ABSTRACTThe article analyses the theoretical

and metodological trajectory of CarioGinzburg since his book about "benandanti"and his studies focusing the relationshipbetween popular and erudite cultures, untillhis researches about common culturalsubstract among eurasian populations.

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