Constituicao Do Sujeito Dialogico

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Artigo publicado na Revista Bem Legal. Trata-se da descrição reflexiva de um projeto pedagógico de língua portuguesa aplicado em uma turma de Ensino Fundamental da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

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  • paginas.ufrgs.br/revistabemlegal REVISTA BEM LEGAL Porto Alegre v. 5 n 1 2015 65

    A CONSTITUIO DO SUJEITO DIALGICO NA VISO INTERCONTINENTAL:

    COMPREENDENDO REPRESENTAES SOCIAIS E LINGUSTICAS NAS AULAS DE

    LNGUA PORTUGUESA

    Alexandre Ferreira Martins

    Renata Blessmann Ferreira

    Fotografia do Varal da Lngua Portuguesa, produto gerado no Projeto de Ensino

    Este relato fruto de um perodo de estudos na Universidade de Coimbra,

    Portugal, onde tivemos contato com disciplinas de estudos variacionistas e de

    literaturas portuguesa e luso-africanas. Aps retornarmos nossa universidade de

    origem, tivemos de preparar um projeto de ensino para o Estgio de Docncia em

    Lngua Portuguesa a ser aplicado em uma turma de stimo ano da rede pblica de

    ensino de Porto Alegre. Influenciados por nossa vivncia em territrio lusitano,

    optamos pela expanso do portugus como tema central do nosso projeto,

    juntamente com subtemas que dialogassem com as realidades sociais dos alunos.

    Em funo do tema de nosso projeto, e por assumirmos o sujeito como

    dialgico, nosso corpus foi constitudo por obras de origem angolana, moambicana,

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    brasileira e portuguesa. Nesse sentido, preparamos nossas aulas com o objetivo de

    que nossos alunos entendessem a lngua para alm dos aspectos intralingusticos,

    compreendendo a legitimidade de uma variedade de lngua perante os laos que a une

    a outras, em funo das identidades inerentes a cada uma delas. Como perspectivas

    epistemolgicas situadas em outro locus de enunciao, as obras selecionadas

    opunham-se a quaisquer hegemonias e propunham ao leitor desmistificaes tnicas,

    raciais, sociais e (socio)lingusticas, na constituio de um sujeito capaz de pensar a

    partir de e sobre as fronteiras das problemticas advindas da condio socio-histrica

    particular, ou mesmo comum aos pases contemplados na aplicao do nosso projeto

    de ensino.

    Assim, primeiramente nos ancoramos em Bakhtin/Volochnov (2013), por

    acreditarmos que nenhum enunciado atribudo a apenas um locutor, uma vez que o

    homem, o sujeito, emerge do outro e, num sentido amplo, seu enunciado produto

    de uma situao social mais complexa e nos apresenta um sujeito dialogicamente

    constitudo. Tambm nos apoiamos em Brait (2001), que prope, luz do primeiro

    autor, que um texto escrito aponta, em uma primeira orientao, para si mesmo,

    relativamente aos aspectos intralingusticos e, em uma segunda orientao, esse

    mesmo um texto seria singular em funo da primeira orientao e apontaria [...]

    para fora, para o momento histrico, cultural, social recortado, apreendido, entrevisto

    e a expresso (p. 79).

    A AVALIAO DIAGNSTICA: REPRESENTAES SOCIAIS E LINGUSTICAS

    Para que sondssemos as competncias de escrita de nossos novos alunos e

    soubssemos quais eram as suas impresses relativamente s aulas de Lngua

    Portuguesa, propusemos uma primeira produo escrita a partir da qual eles nos

    fornecessem um diagnstico para que pudssemos repensar o projeto de ensino que

    tnhamos em mente. A atividade que compusemos apresentava duas tirinhas, nas

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    quais as personagens manifestavam uma opinio crtica sobre o aprendizado ao qual

    estavam sendo expostas, por elas considerado insuficiente.

    A avaliao diagnstica foi elaborada na considerao das representaes

    sociais e lingusticas mais recorrentes em diferentes esferas sociais: a ttulo

    exemplificativo, para a primeira tirinha, na qual a personagem Mafalda, do cartunista

    argentino Quino, ironiza o seu tipo de aprendizagem, indagamos os alunos o porqu

    de, mesmo nos comunicando em portugus brasileiro, ainda escutarmos e afirmarmos

    no sabermos portugus. Seguido das perguntas relativas ao imaginrio escolar e s

    representaes sociais e lingusticas, introduzimos a temtica do projeto de ensino

    com perguntas acerca da denominao terminolgica de portugus brasileiro e das

    razes socio-histricas implicadas no processo de mudana lingustica.

    Quanto segunda tirinha, o personagem Calvin, do norte-americano Bill

    Watterson, tambm demonstra uma insatisfao com a escola, ressaltando o abismo

    existente entre a cultura institucional e a experincia fora daquele contexto, outro

    ponto que pretendamos tocar em virtude de termos observado a forte coero da

    tradio escolar sobre as prticas em sala de aula.

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    A CONSTITUIO DO PROJETO DE ENSINO E A INTERLOCUO DE SABERES

    Nossas aulas buscavam atender necessidade de expor os alunos escrita

    como encontrada no mundo, qual seja, na forma de gneros do discurso. Como

    princpio fundante de nosso projeto, procuramos proporcionar-lhes o contato com

    uma diversidade de gneros secundrios, optando, em especial, por textos literrios e

    por crnicas. Alm disso, tendo em mente que todo texto um modelo regulado pela

    audincia social e que, em sua arquitetura, opera uma intertextualidade

    composicional, nosso projeto apresentou uma proposta interdisciplinar conjugada

    disciplina de Educao Artstica, oportunizando uma atividade de interveno social a

    partir da interao com diferentes formas discursivas. Conjuntamente,

    confeccionamos com os alunos um material a ser exposto na escola: o Varal da Lngua

    Portuguesa, elaborado continuamente no tempo de estgio e que, ao fim de nossas

    aulas, pde ser apreciado pela comunidade escolar. Envolvemo-nos, pois, em uma

    interdisciplinaridade direta, no contato com outra disciplina da grade curricular, e,

    igualmente, uma indireta, manifestada na necessidade de trabalharmos, por exemplo,

    com dados histricos e geogrficos, para os momentos expositivos das aulas, para as

    discusses sobre os mais diferentes temas suscitados a partir da leitura dos textos e

    para, finalmente, a elaborao dos gneros discursivos.

    Assim, como primeira atividade, propomos que os alunos entrevistassem trs

    pessoas com perguntas relativas ao portugus, como, por exemplo: O que voc sabe

    sobre como a Lngua Portuguesa surgiu?, Voc acha que existe um portugus certo

    e outro errado? Se sim, onde ou em que situaes se falariam cada um deles? ou O

    que voc acha que se aprende nas aulas de portugus?. Intentvamos, com essa

    atividade, proporcionar aos alunos a interlocuo em outros contextos, a partir da

    busca por saberes fora da escola, os quais poderiam ser relacionados com os dos

    prprios aprendizes, adquiridos em classe. J que a referida atividade havia sido

    antecedida de aulas expositivo-dialogadas sobre o surgimento da lngua, a

    possibilidade de confrontarem os saberes da escola com discursos disseminados alm

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    daqueles muros era determinante para que, na leitura que se seguiria,

    compreendessem que todas aquelas opinies ou discursos estavam diretamente

    ligados a acontecimentos histricos pelos quais nossa sociedade passara.

    A IMAGINAO EMPTICA COMO SUPORTE DE LEGITIMAO LITERRIA

    Dos ttulos levados para a sala de aula, o segundo com que trabalhamos foi a

    obra O Bojador, da portuguesa Sophia de Mello Breyner (2014), pea teatral

    ambientada no sculo XV que retrata a expanso martima portuguesa e o papel de Gil

    Eanes para a chamada Era dos Descobrimentos. Relativamente a essa denominao,

    tambm fornecemos turma uma tira de Alexandre Beck, em que seu personagem

    Armandinho questiona o uso do termo descobrimento do Brasil; a partir disso,

    desconstrumos a noo do colonizador ao fornecermos a percepo do colonizado,

    com o termo achamento do Brasil. Tendo sido questionados sobre o que achavam

    dessa expresso, os alunos mostraram ter ou concordado com a designao proposta,

    ou a estranhado, em um movimento suscitado pelo confronto ideolgico, na medida

    em que os discursos hegemnicos e mais difundidos foram atravessados por esses

    novos discursos, os quais, por sua vez, evidenciaram a prpria disperso da realidade,

    ou a contradio, que, para Bakhtin, justamente a gnese de um discurso.

    Em funo da subtemtica contemplada e em contraposio leitura proposta

    de Roteiro Turstico, crnica de Moacyr Scliar (1998), propusemos o trabalho com

    excertos de Quarto de Despejo Dirio de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus

    (2015), escritora brasileira que escreveu sobre o seu dia-a-dia como mulher negra e

    pobre. Selecionado por ns por abordar a temtica do preconceito social e por

    apresentar uma recusa escrita institucionalizada e aos valores literrios da poca, o

    texto atraiu os alunos por, sobretudo, ser escrito em forma de dirio um gnero que

    muitos deles escreviam em seus dias ou liam nos livros da coleo Dirio de um

    Banana. Para o nosso trabalho, portanto, buscamos contrastar tanto o que era

    relatado pela escritora em seu dirio em relao ao que eles prprios percebiam em

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    suas vidas, em uma tentativa de clarificar a sobrepujana do contedo frente forma,

    como tambm salientar a diferena de sua escrita, sem a presena de acentos e com

    algumas inadequaes ortogrficas, em contraponto a textos institucionalizados

    trabalhados anteriormente, como os dos escritores Moacyr Scliar e Lus Fernando

    Verssimo.

    Desse modo, iniciamos o nosso trabalho indagando os alunos a respeito da

    relao do ttulo com o fato de o dirio apresentar o dia a dia de uma mulher que se

    autodenomina favelada. Com isso, intentamos o olhar crtico dos alunos, no que

    concerne ao entendimento de ser a favela a parte da cidade mais estigmatizada da

    sociedade e cujos habitantes so impedidos de integrar ambientes predominados por

    grupos scio-econmicos superiores. Alm disso, os alunos foram induzidos a pensar a

    respeito do preconceito racial que, com frequncia, tangencia tambm a classe social e

    econmica, em uma tentativa de eles perceberem uma mesma raiz scio-histrica

    para ambos.

    Concomitantemente, os alunos foram induzidos a refletir sobre a norma

    escrita e a sua importncia em um texto literrio, bem como sobre Carolina de Jesus

    ser uma boa escritora ou no. Apesar de os alunos provavelmente no terem notado

    grande parte das inadequaes de ortografia e de acentuao cometidas pela autora,

    visto que os prprios escreviam de maneira parecida, eles no a consideraram, a

    princpio, uma boa autora, visto que a escrita por ela utilizada no a mesma dos

    bons autores, como Moacyr Scliar. Entretanto, a sua literariedade, seja pela escolha

    temtica, seja pelo estilo, foi percebida pelos alunos, que ficaram perplexos com as

    histrias narradas de forma to crua: se, em textos institucionalizados com que

    trabalhamos, eles enfrentaram dificuldades para perceber a crtica social, em Carolina,

    pela sua forma sinttica de narrar sobre seus dias, eles compreenderam as barbries

    que estavam sendo criticadas. Assim, os alunos tiveram de enfrentar seus prprios

    preconceitos lingusticos, na medida em que tiveram de buscar justificativas que no

    estivessem to somente baseadas em seus preconceitos sociais e lingusticos para a

    sua opinio contrria autora.

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    Consideramos que a sensibilizao dos alunos perante o dirio de Carolina

    como fruto do que Martha Nussbaum, em sua obra Poetic Justice (1995), designa por

    imaginao emptica. Segundo a filsofa norte-americana, a literatura assume um

    papel privilegiado ao sobrepor imaginao e humanidade, tendo em vista a promoo

    que dela advm da conscincia do mundo do outro, o qual se difere do mundo do eu.

    Tal conscincia abrangeria, muito mais do que to somente a percepo da existncia

    do outro, o reconhecimento da humanidade deste, o que promoveria o respeito por

    aquele que no sou eu. Nossos alunos, ao terem sido seduzidos pelas linguagem e

    histria do dirio, tornaram-se leitores ativos e crticos, por tenderem a ter uma

    melhor compreenso da realidade do outro, no apenas percebendo a sua existncia,

    como tambm reconhecendo a sua humanidade.

    Por fim, a percepo pelo olhar do outro que passa a constituir um eu foi

    tambm retratada no conto A Mo dos Pretos, do moambicano Lus Bernardo

    Honwana (2008), que narra a histria de uma criana que no se percebe como negra

    e, curiosa, pergunta a outros moradores a respeito do motivo de as mos dos negros

    serem brancas. A narrativa provocou nos alunos algum tipo de identificao e,

    considerando que muitos deles se autodenominavam negros ou mulatos em nossas

    discusses, acreditamos que essa identificao tenha acontecido de forma mais

    veemente do que, por exemplo, no texto de Carolina de Jesus. Em ambos os textos, os

    alunos conseguiram colocar-se na posio do outro, o que entendemos como

    evidncia de sua interao com o texto lido; entretanto, acreditamos que a posio

    crtica em relao ao texto moambicano tenha sido mais enrgica, em razo de os

    alunos no s conseguirem colocar-se na posio do outro, como tambm saberem

    que aquela relaciona-se discursivamente com a sua prpria. Assim, observamos que as

    manifestaes orais crticas ao preconceito racial vivenciado pelo protagonista de A

    Mo dos Pretos aconteceram mais espontaneamente, sem que precisssemos induzi-

    los a pensar a respeito do sofrimento da personagem.

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    CONSIDERAES FINAIS

    As atividades aqui explanadas por vezes encontraram obstculos em sua

    realizao, muitos deles em decorrncia da privao daqueles estudantes para com

    hbitos de leitura e de escrita. Apesar disso, o reconhecimento e a legitimao de

    outras variedades do portugus, no contato com gneros do discurso, alcanou-se,

    sem dvida, pela aproximao das subtemticas com a vida dos estudantes. A leitura e

    a escrita passaram de atividades maantes a prticas de reflexo sobre os cotidianos

    alm-mar, os quais correspondiam aos dos prprios alunos.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHNOV, V. N). Marxismo e Filosofia da Linguagem. So Paulo: Hucitec Editora, 2013.

    BRAIT, Beth. Dilogos Produtivos entre Lngua e Literatura. In: PEREIRA, Maria Teresa; VALENTE, Andr C (org). Lngua Portuguesa: descrio e ensino. So Paulo: Parbola Editorial, 2011.

    BREYNER, Sophia de Mello. O Bojador. Lisboa: Porto Editora, 2014.

    HONWANA, Lus Bernardo. As Mos dos Pretos. In: Ns Matamos o Co-Tinhoso e Outros Contos. Lisboa: Cotovia, 2008. (Coleo frica Minha).

    JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo Dirio de uma Favelada. So Paulo: tica, 2015.

    NUSSBAUM, Martha. Poetic Justice: the Literary Imagination and Public Life. Boston: Breacon Press, 1995.

    SCLIAR, Moacyr. Roteiro Turstico. Folha de So Paulo, So Paulo, 28 dez. 1998, p. 2.

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    Alexandre Ferreira Martins

    Graduando em Letras com nfase em Portugus e

    Francs pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    (UFRGS) e graduado em Estudos Portugueses e

    Lusfonos pela Universidade de Coimbra (UC). Foi

    bolsista do Programa de Licenciaturas Internacionais, da

    CAPES, e, atualmente, atua junto ao Programa

    Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia.

    Renata Blessmann Ferreira

    Graduanda em Letras com nfase em Portugus e Latim

    pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

    Na mesma universidade, atuou como monitora junto ao

    Programa de Apoio Graduao. Foi bolsista do

    Programa de Bolsas Luso-Brasileiras, promovido pelo

    Santander Universidades em cooperao com a UFRGS.