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Relatório final Consumo de Mídias: Intermidialidade Laura Graziela Gomes São Paulo, 2007 CENTRO DE ALTOS ESTUDOS DA ESPM

Consumo de Mídias: Intermidialide - espm.br fileda TV aberta e, conseqüentemente, do desempenho da emissora líder. De fato, já existem excelentes trabalhos e pesquisas qualitativas

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Relatório final

Porto Alegre, 2012 CENTRO DE ALTOS

ESTUDOS DA ESPM

Relatório final

Consumo de Mídias: IntermidialidadeLaura Graziela Gomes

São Paulo, 2007 CENTRO DE ALTOS

ESTUDOS DA ESPM

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RELATÓRIO FINAL

Projeto: CONSUMO DE MÍDIAS: INTERMIDIALIDADE

Autora: Profa. Dra. Laura Graziela Gomes

Entidade apoiadora: CAEPM

Data: 03/10/2006

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Gomes, Laura Graziela

Consumo de mídias: intermidialidade / Laura Graziela Gomes. –

São Paulo, 2007.

59 p. : il., tab.

Relatório Final de Pesquisa Concluída em dezembro de 2007,

desenvolvida junto ao CAEPM – Centro de Altos Estudos da Escola

Superior de Propaganda e Marketing, 2007.

1. Mídia. 2. Produtos midiáticos. 3. Estratégia. 4. Branding

5. Comunidades virtuais I. Título. II. CAEPM – Centro de Altos Estudos

da ESPM. V. Escola Superior de Propaganda e Marketing.

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ESPM-SP – Escola Superior de Propaganda e Marketing CAEPM – Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing

Projeto "Consumo de Mídias: Intermidialidade"1

Relatório final

Laura Graziela Gomes

1. Introdução: contexto e definição justificada dos objetivos da pesquisa

O principal objetivo desta pesquisa foi avaliar, a partir de um

levantamento etnográfico, algumas mudanças já apontadas em relatórios

especializados,2 em relação a comportamentos de mídia, tendo em vista a

expansão da TV por assinatura e da internet (banda larga) na sociedade

brasileira contemporânea.

A justificativa para essa investigação encontra-se no fato de, no Brasil,

os estudos de audiência televisual ainda permanecerem reféns do paradigma

da TV aberta e, conseqüentemente, do desempenho da emissora líder. De fato,

já existem excelentes trabalhos e pesquisas qualitativas publicadas sobre a TV

aberta, mas, em contrapartida, há muito pouca pesquisa qualitativa realizada e

publicada sobre TV por assinatura, especialmente, no que se refere às

mudanças que ela vem operando no gosto do telespectador brasileiro. Além

disso, ainda é pequena a presença da TV por assinatura na mídia impressa

brasileira. São poucas as oportunidades em que a programação da TV por

assinatura é comentada ou mesmo discutida no contexto da mídia brasileira. O

mesmo não se observa em relação à internet que possui vários sites dedicados

à programação da TV por assinatura.

1 Pesquisa realizada no período de janeiro a agosto de 2006, financiada pelo CAEPM. A autora

gostaria de agradecer aos Professores Piratininga, Zagallo e Lívia Barbosa pelo apoio recebido

2 Sobre a expansão da TV por assinatura no Brasil, tomamos como base e referência os dados

apresentados no relatório produzido pela ABTA (Associação Brasileira de Televisão por

Assinatura), Mídia Fatos 2005/2006. Sobre a expansão da internet, utilizamos como fonte

material recolhido em vários veículos tais como Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo,

Wikipidia, etc.

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Diante disso, é preciso qualificar melhor de que mudanças estaremos

tratando e como elas se refletem no comportamento de consumo em geral,

uma vez que a TV por assinatura é um serviço pago. Em um recente relatório

de pesquisa publicado pela ABTA (Associação Brasileira de Televisão por

Assinatura), Mídia Fatos, obtivemos informações de que, a partir de 2004, “o

meio cresceu significativamente. Crescimento da base de assinantes,

investimento publicitário, expansão do volume de anunciantes, da presença

desses anunciantes no meio...” (ABTA: Mídia Fatos, 6).

Além disso, o mesmo relatório informa que:

A TV por assinatura concentra o mercado brasileiro sem (ou com as

menores) restrições ao consumo. São aqueles que proporcionalmente

têm mais acesso ao crédito bancário, apresentam os maiores gastos

médios em shoppings, supermercados, com cartão de crédito, as

maiores posses de valores expressivos como imóveis e automóveis e

estão na vanguarda do consumo, atualizada em relação à tecnologia

[...] (idem, p. 6)

Do ponto de vista dos investimentos,

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Do ponto de vista ainda do consumo, o relatório apresenta os 10

maiores setores anunciantes, além de uma relação dos 30 maiores

anunciantes, mostrando, assim, o poder de compra dos telespectadores:

Uma outra mudança importante apresentada no relatório diz respeito

ao tempo dedicado diariamente ao meio que ultrapassou duas horas, ou seja,

em dois anos e meio a TV por assinatura passou a reter o assinante por mais

aproximadamente um programa inteiro, e este aumento ocorreu em todos os

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targets, sendo que com maior concentração entre os teens, na faixa de 12 a 17

anos. Além disso, a dispersão do meio é mínima, já que praticamente 80% da

audiência é composta de pessoas das classes AB.

Além dos dados relativos ao crescimento da audiência, o relatório

apresenta ainda uma classificação dos que consomem de diferentes formas a

TV por assinatura. São ao todo sete perfis de pessoas, assim distribuídos:

Diante destes dados – que já apresentam números bem expressivos –

impôs-se uma primeira pergunta: quais os motivos para essa preferência que

vem crescendo e se expandindo cada vez mais, já que, de acordo com uma

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publicidade veiculada nos canais pagos, esses números não são nada

irrelevantes, pois o público/audiência da TV por assinatura no Brasil hoje já

corresponde a 14% da população. Além disso, confirmando os dados do

relatório, a mesma publicidade ressalta que nesta audiência de 14%,

encontram-se 27% dos telespectadores brasileiros com poder real de compra,

ou seja, sem maiores restrições ao consumo.

Somando-se a esta informação, há ainda uma outra de caráter

qualitativo, obtida durante minha pesquisa de campo: a maioria de meus

informantes disse não se acostumar mais a ficar sem a TV por assinatura.

Mesmo para aqueles que ainda continuam assistindo aos canais abertos, o

acesso à TV por assinatura representa um upgrade definitivo em termos de

qualidade.

Cabe ressaltar que a categoria qualidade foi usada por todos os

informantes que responderam à minha pergunta inicial: Por que você se tornou

um assinante e consumidor de TV por assinatura? O que o levou a optar por

este serviço? Houve uma unanimidade nas respostas, todas elas se reportando

a uma “busca por maior qualidade”. É bem verdade que logo em seguida os

sentidos atribuídos a esta “busca por qualidade” não foram mais consensuais.

Para os informantes mais jovens – e estes representam o maior grupo de

minha amostragem –, a qualidade está intimamente associada à variedade e às

diferentes alternativas de programação que a TV por assinatura oferece. Poder

escolher mais, dentro de um cardápio maior de opções é para este segmento

um atrativo fundamental e um critério importante de atribuição de qualidade.

Para o segmento mais adulto, aqueles telespectadores que já se encontram em

faixas superiores aos 25-28 anos de idade, a qualidade aparece mais

associada aos formatos, aos gêneros, enfim, aos conteúdos dos programas

propriamente ditos.

Documentários exibidos por canais como GNT, BBC, Eurochanel,

HBO, Discovery Channel, National Geographic filmes do Telecine, Cinemax e

outros canais similares, e até mesmo reality shows transmitidos pelo GNT e

People and Art são os programas preferidos deste público, por apresentarem

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conteúdos bem variados e possibilitarem discussões que dificilmente

encontrariam na TV aberta. Uma outra forma de atribuição de qualidade foi por

intermédio das críticas feitas à TV aberta. A maior parte dos entrevistados

afirmou não se sentir representada ou mesmo contemplada, de acordo com

seus interesses, pela programação da TV aberta. Ao contrário das demais

mídias tradicionais, como a imprensa e o rádio, a TV aberta não se revela

comprometida com as discussões e temas de interesse do público que optou

pela TV por assinatura.

É interessante notar que esta insatisfação em relação à TV aberta

atinge a todas as faixas etárias. Para os mais jovens, a maior responsável pelo

descontentamento geral é a “mesmice” da líder de audiência, a TV Globo, que

não consegue propor nada de novo em termos de programação.

Só novela, novela naum dá... Mesmo as minisséries hj, tão

completamente viciadas pelo sentimentalismo das novelas... Vc vê

por exemplo uma minissérie como JK, virou uma novela sobre a vida

pessoal, sentimental e conjugal do JK... naum é nada disso q eu

queria ver! (informante, 19 anos, estudante de medicina em grupo de

discussão).

Para os mais velhos, além da “mesmice” do formato, há ainda o

conteúdo que baixou de nível:

Tudo bem, yes, nós temos novelas! mas elas estão se tornando

insuportáveis... não há um diálogo interessante... Em Belíssima a

única coisa que se aproveita é o guarda-roupa, os modelitos das

personagens... rs... então tem um problema sério no ar! (informante,

43 anos, gerente de recursos humanos).

Diante do exposto, é importante ressaltar que a migração para a TV por

assinatura não está apenas alterando os hábitos de consumo televisual de

cerca de 14% dos telespectadores brasileiros, mas reflete novas tendências

quanto a valores e padrões de gosto que, evidentemente, já começam a

ganhar visibilidade e a ferir o establishment televisual brasileiro, até então

liderado e comandado pela TV Globo. Essa mudança de cenário já começa a

ser apontada pela imprensa, ainda que de forma sutil e discreta. Nesse sentido,

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os dados da ABTA confirmam minhas observações sobre os motivos pelos

quais este público composto por pessoas das classes AB vem aderindo à TV

por assinatura: programação. Mais exatamente, qualidade da programação.

É a partir deste ponto que nossa pesquisa se inicia, especialmente

quando sabemos que o público da TV por assinatura é também aquele que

está mais exposto a uma outra “mídia” da qual é um dos principais

consumidores: a internet (banda larga). O resultado desta dupla exposição

produz um tipo de convergência de mídia que vem estimulando ainda mais a

segmentação e especialização das audiências, em ambos os meios, por meio

das formas de intermidialidade instauradas. Embora o relatório da ABTA só se

dedique à TV por assinatura, ele apresenta dados objetivos que dão conta do

grau de exposição deste público à Internet, que também é bem diferente dos

demais grupos sociais.

Conforme podemos observar no quadro abaixo, o relatório não se

ocupa das formas de intermidialidade praticadas por esse mesmo público em

relação aos dois meios e, que nesse caso, constitui para mim a principal

motivação além da programação, ao mesmo tempo que é o principal vetor que

orienta a busca por uma segmentação e especialização maiores.

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Na realização desta etnografia, utilizei a programação como critério,

selecionando um determinado gênero e seu respectivo público, no caso, o

público de seriados ou séries norte-americanas. Por que esta escolha?

Uma pesquisa exploratória realizada por mim mostrou que, ao contrário

do que o relatório da ABTA sugere, o grande divisor de águas para o

crescimento e a expansão da TV por assinatura vem a ser o aumento do

interesse pelas séries norte-americanas. São elas que efetivamente estão

atraindo mais audiência e público para o meio, especialmente entre as

crianças, teens e jovens adultos que, por sua vez, acabam influenciando os

mais velhos. Embora documentários e filmes sejam muito apreciados, eles

estão presentes na programação da TV por assinatura desde o seu início.

Enquanto isso, as séries se renovaram e passaram a ser criadas e produzidas

com foco em públicos diferenciados, tornando-se uma tendência forte em

termos de consumo televisual não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Por

conta dessa experiência anterior, verifiquei que nem sempre o público das

séries correspondia exatamente aos perfis apresentados no relatório da ABTA.

É nesse contexto que uma pesquisa qualitativa se faz necessária, justamente

para apurar e refinar os dados quantitativos obtidos.

Mas isso não é tudo. Na medida em que a presente pesquisa visa

investigar as formas de intermidialidade instauradas entre TV por assinatura e

internet, restringi ainda mais meu campo de observação empírico ao

selecionar, dentro da faixa de público que assiste às séries e é usuário da

internet, os fãs, exatamente porque são eles que tomam a iniciativa de

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promover esta intermidialidade, o que significa dizer que muitos deles não

apenas freqüentam, mas são também os proprietários, criadores e

administradores dos principais fansites, blogs, fóruns e listas de discussão

brasileiros dedicados às séries norte-americanas transmitidas no Brasil pela TV

por assinatura.

É importante ressaltar que esta escolha não se deveu apenas à paixão

que estes fãs devotam às suas séries preferidas, nem aos motivos que

orientam seus interesses por elas, bem como por determinadas personagens,

enredos e situações que apresentam. Ao tomar os fãs de séries norte-

americanas como meus informantes privilegiados e qualificados, pretendi

colocar em evidência o papel do fã como divulgador e agente involuntário no

processo de marketing e divulgação desse tipo de produto e,

conseqüentemente, do próprio meio.

O fato de a audiência da TV por assinatura ser composta de pessoas

majoritariamente pertencentes às classes AB me faz acreditar que é mais

sensível a essa forma de relação eletiva, fidelizada, singularizada, portanto,

mais apaixonada em termos afetivos e emocionais, da mesma forma que é

aquela que mais tem potencial para sensibilizar os demais grupos. É essa

postura de “formadores de opinião” e de early adopters que marca o

rompimento desta audiência com o padrão estabelecido pela mídia de massa e

tradicional que impõe ao “telespectador” uma grade de programação

compulsória, lembrando que ele faz parte de uma grande engrenagem

comercial e mercadológica.3

Paralelamente, na medida em que os fãs também usam a internet para

comentar e completar seu processo de consumo da programação da TV por

assinatura, eles inovam ao produzir narrativas, conteúdos e objetos

3 Isso não significa dizer que na TV por assinatura também não seja assim. Entretanto, pelo

fato de a dispersão ser mínima e cada canal estar voltado para um determinado segmento,

particularizado, isso acaba gerando um tipo de acolhimento diferenciado em relação ao

assinante. Ele se sente sempre mais especial e mais próximo dos produtores.

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relacionados às séries, utilizando-se de softwares, linguagens e tecnologias

novas para se apropriarem e efetivarem seu processo de consumo. Este fato

demonstra cabalmente o que já vem sendo afirmado por muitos especialistas

do consumo, ou seja, que ele é muito mais do que apenas uma atividade de

compra apenas, restrita ao econômico, ou mercadológica. O consumo passou

a ser, sobretudo, uma atividade cultural ligada à aquisição de informação,

conhecimento, construção de identidades, busca de experiências, produção de

sentido, entre outros aspectos.

Em resumo, situando-me próxima à fronteira de atuação de um cool

hunter, cujo trabalho pode ser assemelhado ao de um antropólogo, procurei

registrar as mudanças que estão ocorrendo no consumo de mídia,

aproximando informações e dados obtidos em pesquisas de mercado, de

tendências observadas por mim durante meu trabalho de campo na internet.

Assim, na minha perspectiva, tomei alguns desses fãs como early adopters4,

ao mesmo tempo que tomei outros como trend-setters.5 Minha teoria é que

parte das características ou qualidades de um early adopter é o fato de ele se

apresentar ao mesmo tempo como um consumidor artesão (Campbell, 2005) e

um fã, apaixonado ou devoto. É esta capacidade que lhe permite criar novos

conteúdos, cujos significados são capazes de preencher algumas lacunas

deixadas pelos produtores. Na medida em que constituem a linha de frente em

termos do consumo, eles são os grandes responsáveis pela trajetória de um

bem ou produto. Desse modo, suas experiências passam a ser fundamentais

para a trajetória futura de um determinado produto, podendo inclusive ser

responsáveis por mudanças importantes em sua biografia, no sentido de

4 Segundo o próprio mercado, os early adopters representam os 3 ou 4% da população que

constituem aquela parcela inicial de adesão na tradicional curva em “S” do consumo. De

acordo com o relatório da ABTA, tomamos no perfil dos Absolutos.

5 Vem a ser o segmento que se segue, cerca de 17 ou 18%, que adotam as idéias dos early

adopters e começam a transferir a tendência para a massa. Do ponto de vista do relatório da

ABTA que estamos tomando como base para nossa pesquisa, os trend-setters encontram-se

distribuídos nos demais perfils apresentados.

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transformar esses bens ou produtos em ícones culturais de primeira linha,

retirando-os da vala comum de um mero commodity.

É sempre importante lembrar que, na biografia dos objetos ou dos

bens, a trajetória ascendente de alguns deles no sentido de alcançarem um

determinado status de grandeza e de excelência não foi feita exclusivamente

graças às suas qualidades intrínsecas ou inoculadas apenas por seus

criadores e produtores. Nenhum artesão, artista ou designer pode pretender

semelhante façanha. As melhores coisas da vida dependem também da

existência daqueles que se dispuseram a descobri-las, aprenderam a apreciá-

las como tais, isto é, seus consumidores iniciais que souberam transmitir aos

demais e às gerações seguintes as excelências de tal ou qual produto,

singularizando-o. Esta é uma variável que precisa ser definitivamente

incorporada na mente dos produtores e dos profissionais de marketing: o papel

dos consumidores e, especialmente, dos consumidores iniciais na criação de

um produto, de uma marca ou, pelo menos, no seu aperfeiçoamento. Se não o

fazem em termos materiais ou tangíveis, o fazem, sobretudo, nos aspectos

intangíveis, na medida em que fornecem todos os elementos narrativos e

imagéticos para que produtores e profissionais de marketing criem novas

associações com eles.

É bem verdade que existem alguns produtos em que esta “contribuição

criativa” dos consumidores iniciais, ou dos early adopters e trend-setters é já

vista como indispensável e fica bem mais explícita ou mesmo visível, chegando

a ser observável em termos espaciais e temporais. Creio que a arte, a cultura e

mesmo a indústria cultural são territórios onde o ponto de vista da audiência é

tomado sempre como uma dimensão inalienável do próprio bem, ou seja, suas

relações com ele são consideradas indissolúveis, sem as quais ele não existe

como tal.6 Ninguém pode discutir um grande escritor ou obra literária, ou

6 A esse respeito, podemos pensar no conceito de “obra aberta”. Muitas vezes, a “obra aberta”

foi confundida com serialidade e interatividade. Entretanto, guiando-me pelas argumentações

de Eco, creio que a “obra aberta” é aquela que conduz à reflexividade ou a um tipo de

experiência de fruição que estimula alguma forma de interpretação e de intervenção por parte

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mesmo um grande cineasta ou filmes se não pensar imediatamente no impacto

que suas obras produziram no(s) público(s) em diferentes épocas. Querer

abstrair isso ou traduzir essa experiência somente em números é deixar de

lado o aspecto mais importante do consumo, qual seja, sua dimensão

simbólica. Até mesmo a autoridade dos críticos é posta à prova, quando se

analisa um bem dessa natureza, como a obra literária e o cinema, à luz de

seus respectivos públicos. São inúmeras as circunstâncias em que graças ao

público e não aos críticos especializados, autores e artistas se tornaram

consagrados e alçaram posições de grandeza no campo cultural.

Em todo o caso, essa experiência, antes mais restrita ao campo da arte

e dos bens culturais, começou a se difundir para os demais produtos. A

midiatização do consumo, na medida em que transforma todo produto em

signo, tornando-o passível de ser consumido apenas imaginariamente (por

meio da peça publicitária), abriu a possibilidade de tornar consumidores

simultaneamente em audiência. Entretanto, do ponto de vista da mídia de

massa, as ações dos consumidores como audiência nunca foram muito

reconhecidas e difundidas, salvo exceções em que os anunciantes buscavam

intencionalmente a opinião dos consumidores para conceber suas campanhas

publicitárias. No entanto, graças às TIC’s (tecnologias da informação),

especialmente à internet, um conjunto de ferramentas passou a estar

disponível para captar as opiniões, percepções, narrativas e conteúdos

simbólicos construídos pelos consumidores, independentemente do controle

dos anunciantes. Elas vêm permitindo ao consumidor veicular seus pontos de

vista, suas impressões e mesmo suas associações com os produtos e marcas,

independentemente de produtores e anunciantes, de forma rápida e cada vez

mais fácil de ser captada pelos outros consumidores, bem antes da publicidade

institucional. Com isso, a publicidade não só perde um pouco de sua soberania,

como deixa de ser progressivamente um assunto somente de profissionais

peritos. Hoje grupos de discussão compostos fundamentalmente de early

do público. Mais ainda, pelo fato de tais ações não serem naturalizadas por ambas as partes –

criadores e público –, elas passam a ser incorporadas ao processo criativo como um todo.

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adopters, formadores de opinião, são mais eficazes do que a publicidade na

divulgação de filmes, programas de televisão, livros e outros produtos culturais.

Esta eficiência começa a atingir outros produtos, o que está intimamente

relacionado com o aumento do número de fóruns de discussão, listas e

comunidades virtuais no orkut.

É Este o caso das séries televisivas norte-americanas,7 cujos fansites

nos EUA já foram até incorporados e utilizados pelos próprios produtores para

aperfeiçoamento dos programas, o formato das séries vem sendo repensado,

ressignificado e recriado a partir de outras lógicas – principalmente a do jogo –

não mais seguindo apenas o modelo do melodrama tradicional.8

A meu ver, foi essa consciência de que as séries americanas

propiciavam novas formas de recepção e consumo, assim como permitiam uma

maior manipulação e intervenção por parte dos consumidores, que constituiu

um importante critério para que alguns informantes declarassem sua opção

definitiva pela TV por assinatura em detrimento da TV aberta.

Embora muitos deles reconhecessem e admitissem que a telenovela

possui uma grande penetração na sociedade brasileira, exercendo sobre ela

um forte impacto e influência, afirmavam que, ainda assim, elas não permitiam

ou favoreciam esse tipo de recepção, no qual o consumidor exerce um papel

ativo. Por quê? Evidentemente, as razões para este “impedimento” tornaram-

se, ao longo da investigação, uma questão etnográfica bastante interessante.

De todo o modo, o tipo de recepção das novelas não está relacionado apenas

ao formato, mas também ao perfil da grande maioria dos consumidores do

gênero, que continua concentrado nas classes populares.

7 É importante destacar que nos EUA as séries são produzidas e transmitidas pelos canais

abertos. Entretanto, na maioria dos demais países, elas são transmitidas pelas TV por

assinatura. No Brasil, existem vários canais especializados em séries: Sony, AXN, Fox,

Universal, TNT, Warner Bross, HBO, etc.

8 A esse respeito, ver Steven Johnson

(2005).

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Sendo assim, é preciso ressaltar que a pesquisa foi realizada a partir

da ótica do fã, no caso, fãs de séries americanas, e nas práticas de

intermidialidade levadas a efeito por eles. Segundo os informantes, estas

práticas de intermidialidade apresentam três características fundamentais:

1) Na condição de assinantes e consumidores da TV por assinatura,

eles também reservam um tempo bastante significativo de suas vidas para

estarem conectados, interagindo virtualmente. Ou seja, eles possuem uma vida

virtual que, se não é considerada mais importante do que a chamada vida real,

assume contornos de extrema relevância para eles.

2) Independentemente de outros usos que façam da internet para

trabalho ou estudo, empregam boa parte do tempo em que permanecem

conectados na busca de informações e arquivos relacionados às séries para,

em seguida, trocarem-nos em sites, fóruns ou blogs criados por eles com essa

finalidade.

3) Não se apresentam mais como telespectadores da TV aberta e têm

em relação a ela uma perspectiva crítica.9

2. Marco conceitual, sua discussão e diferencial do projeto

• Comunidades virtuais:

Durante a primeira etapa da pesquisa, o foco conceitual recaiu sobre a

noção de “comunidade virtual”. Em função dos avanços ocorridos na internet

nos últimos anos, era preciso repensar esta categoria, tendo em vista o nosso

campo empírico de observação. Para tanto, tornou-se necessário estabelecer

9 Estou ciente do fato de que ao se apresentarem como não consumidores da TV aberta, isso

não significa que não assistam a seus programas. Uma coisa é o discurso, outra é a prática.

Entretanto, no que se refere às representações e classificações advindas deste discurso, a

prática torna-se irrelevante.

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alguns critérios para definirmos o quem e o onde que fariam parte da

investigação. Como já assinalamos, nossa pesquisa seria feita com fãs

brasileiros de séries norte-americanas, ou seja, pessoas que são, ao mesmo

tempo, consumidoras de TV por assinatura e internet (banda larga). Quanto ao

onde, era importante localizarmos os sites e endereços nos quais pudéssemos

observar esses fãs em ação.

Embora a maioria dos sites de relacionamento possa ser chamada

genericamente de “comunidades virtuais”, nem todos eles se mostraram

apropriados à nossa pesquisa, porque muitos são administrados por empresas

e organizações de comunicação, com fins comerciais, de forma que as

relações de interação entre os usuários são controladas e orientadas para fins

específicos. Assim, sites e páginas institucionais ou corporativas mantidos por

emissoras de TV, da mesma forma que páginas de servidores como Terra,

UOL, Globo.com e outros não foram incluídos, embora contenham e

apresentem muito material e conteúdos relacionados às séries e até

mantenham fóruns de discussão sobre elas.

Já em relação ao orkut, devido às características deste site de

relacionamento, as comunidades virtuais foram amplamente consultadas

durante a pesquisa. Embora pertença ao Google, as comunidades são

formadas a partir da livre iniciativa e decisão dos usuários, que também se

responsabilizam pela moderação das mesmas. Entretanto, o sistema do orkut

restringe determinadas ações. Sendo assim, além de comunidades do orkut,

listas de discussão, fóruns e blogs foram incorporados. Nestes casos, manteve-

se sempre o mesmo critério: a iniciativa da criação da página ou do site deveria

ser dos fãs, e a administração da comunidade deveria ser uma atividade

essencialmente sem fins lucrativos. Em suma, como já foi mencionado, nosso

interesse recaiu basicamente sobre os fansites cuja iniciativa fosse dos

próprios fãs.

Uma vez delimitado o universo da pesquisa e tendo em vista a noção

de “comunidades virtuais” que acompanha a história da internet desde o seu

início, uma questão teve de ser imediatamente considerada, no que diz

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respeito ao uso dessa expressão: Qual o estatuto destas comunidades virtuais

de que estou tratando?

Se retomarmos os conceitos sociológicos de “comunidade” e

“sociedade” tal como foram inicialmente discutidos por Ferdinand Tönnies e

Max Weber veremos que, do ponto de vista empírico, a noção de “sociedades

virtuais” seria mais adequada à internet do que a de “comunidades virtuais”, já

que estar conectado à rede implica fazer um contrato de adesão voluntário,

individual, cada vez mais privado e que não depende de laços de sangue, etnia

ou mesmo de religião. Além disso, todo o entendimento e a noção de confiança

instaurada e difundida na rede não são tácitos, ao contrário, são objetos de

reflexão e exame constantes, algo que, na perspectiva de Bauman (2003),

inviabiliza a existência da comunidade. Para este autor, a comunidade só

existe enquanto ela não é objeto de reflexões, isto é, quando ela é

naturalizada. Para ele, uma vez discutida, ela não é mais ou ainda não é uma

comunidade.

Ora, sabemos que a Internet, embora bastante difundida e em contínua

expansão, ainda não se naturalizou a ponto de estabelecer um sistema de

confiança completamente tácito. A confiança e a liberdade fundamentais para o

funcionamento da internet baseiam-se na reciprocidade indireta, contratual, e

não nas relações pessoais e de proximidade, ou seja, fundamenta-se em

valores morais e sociais que correspondem à idéia de sociedade, e não de

comunidade, tal como foi definida por Tonnies, Weber e Durkheim. Diante

disso, é interessante entendermos a preferência pela expressão “comunidades

virtuais”, em vez de “sociedades virtuais”, para nos referirmos a este tipo de

relação social que, na maior parte das vezes, se desenvolve a longa distância,

de forma intangível, imaterial, abstrata e privada. Assim, vale perguntar o que

esta expressão – comunidade – evoca a ponto de ser consensual e

universalmente adotada por informantes e usuários em geral para designar e

englobar os múltiplos aspectos da vida virtual.

Em princípio, o fato de serem comunidades imaginadas, mais uma vez

me faz reportar à questão da utopia. De fato, neste sentido, o uso do termo

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encontra-se mais próximo das conotações idealistas que sempre estiveram

ligadas à noção de comunidade. Assim, uma das questões teóricas importantes

suscitadas pela pesquisa é o significado que a noção de “comunidade virtual”

tem para nós, brasileiros, tendo em vista o outro uso político e instrumental do

conceito em nossa sociedade para designar espaços, populações e grupos

sociais que vivem objetiva e concretamente uma situação de privação,

pobreza, exclusão social, sofrimento, insegurança. No Brasil, o termo

comunidade é, portanto, usado eufemisticamente para substituir favela,

significando a falta de liberdade, o isolamento, bem como a ausência de

reconhecimento a que seus habitantes estão submetidos.

Diante desse uso bastante difundido do termo “comunidade ” ,

praticamente como sinônimo de populações carentes, pareceu-me que seu

emprego no ambiente virtual pudesse talvez provocar algum tipo de questão

entre os meus informantes, já que ali reporta-se a um lugar aconchegante,

cálido, seguro, confortável. Um lugar onde as pessoas compartilham coisas

boas, especialmente conhecimentos e informações, onde são livres,

cosmopolitas, desfrutam de prazeres, revelam boa vontade umas para com as

outras e estão dispostas a se reconhecerem mutuamente.

No entanto, em nenhum momento de minhas conversas houve

qualquer questionamento em relação ao uso do termo. Ainda assim, continuei a

refletir sobre o que justificaria o emprego em situações tão distintas. Uma pista

em uma passagem de Bauman me forneceu uma resposta sucinta e sugestiva:

“Uma vida dedicada à procura da identidade é cheia de som e de fúria”

(Bauman, 2003:21). E ainda Bauman, citando Barth sugere a idéia de que o

uso do termo "comunidade" na rede pode estar associada a duas questões que

tomam conta de nosso cotidiano: a identidade como uma arma simbólica

importante contra a massificação e a busca da segurança numa sociedade que

vive às voltas com este dilema.

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“Identidade” significa aparecer: ser diferente e, por essa diferença,

singular – e assim a procura da identidade não pode deixar de dividir

e separar”.10

Estas reflexões levaram-me a examinar mais detidamente o duplo uso

da palavra "comunidade" no Brasil. De um lado, o uso do termo para conferir

uma identidade positiva àqueles que se encontram em estado de privação,

sofrimento, exclusão e pobreza; de outro, seu emprego associado à para

reforçar a identidade daqueles que se destacam da massa porque não

possuem nenhuma forma de restrição ou impedimento, ao contrário, ou como

afirmou uma informante, ao dizer que preferia as séries “pq é para um público

segmentado e fazer parte desse público é tudo de bom!”.

De toda a forma, no nosso caso, importa destacar a relação direta que

existe entre comunidades virtuais e produção de identidades, produção de

sentidos e busca de experiências. Na verdade, nossa pesquisa sobre o mundo

virtual seguiu esta direção: a rede, a Internet, compreendida como um campo e

um pretexto para a produção e busca de determinadas identidades sociais,

bem como de experiências relacionadas a elas. Assim, em nossa pesquisa,

privilegiamos uma destas identidades que são os fãs. Como será mostrado

mais adiante, muitos fansites apropriam-se da idéia de comunidade

exatamente como refúgio, tal como ressaltado por Bauman, mas também pelo

fato de esta identidade – a do fã – implicar a produção de uma grande

quantidade de artefatos e narrativas que para adquirirem significados especiais

precisam ser devidamente circulados, partilhados e trocados.

• O Fã:

Como definir um fã? O fã é um apaixonado, mas, na minha perspectiva e

especialmente no caso aqui estudado, tem muitos pontos em comum com o fiel

10 Bauman, 2003:21

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e o devoto11. Ele é capaz de se dedicar infatigavelmente a um conjunto de

tarefas, deveres e obrigações e até mesmo fazer sacrifícios para poder

expressar seu amor e devoção pelo seu ídolo. Aliás, a existência do ídolo só é

possível graças ao fã. Como veremos mais adiante, o fã contribui para a

construção do ídolo enquanto tal, ao praticar estes atos de devoção, para ele,

verdadeiros atos de felicidade, porque lhe permitirão estar em contato,

imaginariamente, com seu objeto de devoção ou ídolo.

Mas o que é um ídolo? No mundo antigo, a “fama” ou a “glória” estão

presentes na tradição clássica, tanto em Homero quanto nos trágicos,

associada ao tema do herói e do heroísmo. O herói podia ser um semideus ou

não, mas era, sobretudo, o guerreiro que escolheu morrer em combate, no

auge de sua juventude, força e beleza, para ser lembrado e cultuado pela

posteridade.

Cabe aqui ressaltar que entre gregos e romanos o culto dos heróis era

um componente importante da vida social, por conta dos significados morais e

benéficos que ele possuía. Em função disso, boa parte dos rituais religiosos

nessas sociedades incluía práticas de culto, adoração, idolatria, devoção e

homenagem (honras) aos heróis que eram representados através de imagens

11 Embora reconheça a excelente contribuição de Maria Claudia Coelho (1999) para o estudo

desse importante fenômeno de massa que é o fã, no meu entendimento, há uma linha de

continuidade entre o campo religioso e o da cultura de massas que precisa ser mais explorado.

No Brasil, nossa tradição católica e mediterrânea, levou a uma mistura de práticas devocionais

e sincretismos, permitindo um ambiente favorável para uma relação ídolo versus fãs, bem

diferente daquela verificada entre os norte-americanos, por exemplo, numa sociedade com

práticas mais segregadas. Embora as relações entre fãs e ídolos no Brasil sejam assimétricas,

há situações e momentos em que esta assimetria é bastante relativizada, seja do ponto de

vista dos artistas, seja do ponto de vista dos fãs, levando em conta um modelo relacional e

contextual, holístico e de complementaridade. No Brasil, há um conjunto de situações que

permite sim uma proximidade maior entre o fã e o ídolo. No caso do rádio e da televisão, os

fãs-clubes e as emissoras facultam e promovem, com freqüência, alguns desses mecanismos

de encontros entre os fãs e seus ídolos. Assim, no Brasil existem artistas que se relacionam

com seus fãs de modo intenso, contínuo e bastante próximo. Há hierarquias entre os artistas e

entre os próprios fãs, e estas não são, de forma alguma, imutáveis.

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em inúmeros objetos (estátuas, frontões, pinturas, vasos, cerâmicas com as

mais diferentes formas e utilidades). Os heróis eram divinizados. Mais ainda,

no contexto das sociedades européias e ocidentais, a própria idéia de culto

religioso provém do culto aos heróis e, para além do campo da religião

propriamente dito, rituais e práticas relacionados à fama e glória dos heróis

sempre influenciaram outros domínios sociais como a política e a economia.

Já entre os hebreus e, inicialmente, entre os próprios cristãos esses

cultos relacionados aos heróis não ocorriam por causa do monoteísmo e

porque a imagem possuía um sentido negativo em função da lei mosaica.

Entretanto, apesar deste contexto inicial de hostilidade, Carlo Ginzburg (2001)

escreve que ela foi atenuada nos primeiros séculos do estabelecimento do

cristianismo como religião independente. As razões para essa mudança não

são tão difíceis de entender. É que tendo se separado do judaísmo, o

cristianismo teve de se voltar para um público de pagãos cultos e helenizados

para conquistar seus novos adeptos. Conforme Werner Jaeger (1991)

destacou, esse movimento de tradução do cristianismo para os quadros do

pensamento grego exigiu uma tolerância maior dos missionários cristãos em

relação à cultura grega, a começar o domínio da língua, da filosofia e da

literatura gregas cheias de imagens a respeito de deuses, mitos e heróis.

Embora não seja meu objetivo neste trabalho aprofundar esta discussão,

chamo atenção para o fato de que ela é fundamental para pensarmos a

construção social do ídolo e da idolatria no contexto da cultura de massas

contemporânea. Enfim, pretendo salientar que o ídolo e a idolatria moderna e

contemporânea não são apenas um fenômeno midiático. Eles trazem consigo

uma discussão teológica, portanto, eles contêm uma carga religiosa muito

forte12. Para efeitos deste trabalho, mais adiante voltarei a este ponto para

12 O que explica em parte a condenação moral e intelectual de que a própria cultura de massas

é objeto, por parte dos intelectuais e da chamada alta cultura. Em todo o caso, exatamente por

tratar-se de um debate historicamente cheio de polêmicas e controvérsias, ele não será tema

da presente investigação. Deixo apenas como indicação a leitura do livro Personas sexuais

(1992), no qual a autora Camille Paglia chama atenção para o fato de que no Ocidente, a

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destacar duas distinções importantes que se fizeram presentes na minha

etnografia.

Diante do exposto, é preciso agora situar o fã no contexto propriamente

midiático. Desse ponto de vista ele pode ser observado desde o surgimento da

imprensa. O historiador Robert Darnton (1986) escreveu a respeito dos

primórdios dessa nova relação de idolatria, intermediada pela mídia, que

passaria a caracterizar os tempos modernos, enfocando um escritor em vias de

se tornar celebridade, uma personalidade pública, e seu leitor, um fã ardoroso.

Em “Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação da sensibilidade

romântica”, Darnton descortina a experiência da fama, no caso, o processo de

popularização de um philosophe, Jean-Jacques Rousseau, juntamente com a

contrapartida de seus fãs, leitores, pelas cartas que estes escrevem sobre seu

ídolo e mestre. Tomando como base para sua análise o dossiê de cartas

escritas por um fã, Jean Ranson um rico comerciante de La Rochelle,

encontradas nos arquivos da Societé Typographique de Neuchâtel (STN), uma

importante editora suíça de livros franceses do período pré-revolucionário,

Darnton examina as encomendas de livros feitas por Ranson aos editores da

STN, ao longo de 11 anos. Segundo Darnton, estes documentos fornecem um

panorama razoável sobre os gostos e hábitos de leitura de Ranson. Após

apresentar a relação de pedidos de livros classificados por critérios

bibliográficos da época, Darnton chama a atenção para o destaque que

Ranson deu à obra de Jean-Jacques Rousseau, tendo os livros deste

philosophe não só ocupado bastante espaço em sua biblioteca, mas também

nas discussões e cartas que enviava à STN. Ranson referia-se a Rousseau

como “l’Ami Jean-Jacques”, embora, de acordo com Darnton, Ranson jamais

tenha conhecido o escritor. Segundo Darnton,

cultura de massas tornou-se, em certo sentido, a herdeira do "paganismo" greco-romano em

relação a alguns de seus dispositivos simbólicos importantes. Realmente, a leitura de

especialistas como Jean-Pierre Vernant e outros vem me mostrando que muitos desses

dispositivos encontram-se subjacentes à iconofilia moderna, justamente aquela desenvolvida

pela cultura de massas.

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Ranson devorava tudo que conseguia encontrar de Rousseau.

Encomendou duas edições das obras completas e uma série

de doze volumes das obras póstumas [...] Tinha tanta fome de

informações sobre o escritor quanto de exemplares de seus

trabalhos [...] Ranson era o perfeito leitor rousseauísta .

No texto de Darnton, é importante destacar o papel das cartas e da

escrita como forma de aproximação entre o fã e o seu ídolo, fato que estará

presente até os tempos atuais, conforme escreveu Maria Claudia Coelho

(1999) que também chamou a atenção para as cartas dos fãs. Em ambos os

casos, constata-se a curiosidade em relação à vida do ídolo, associada à busca

de uma identidade com ele.

Mas, sem dúvida alguma, apesar de a escrita continuar a ser

importante até hoje, o aparecimento do cinema e do rádio colocarão a imagem

no centro como uma forma de aproximação fundamental entre ídolos e fãs,

afetando sobremaneira as práticas de idolatria modernas. De certa forma,

ambos – cinema e rádio – constroem e institucionalizam de um lado, o star

system e a figura do artista – ator, cantor, dançarino – como ídolo, galã, diva,

vamp e, de outro lado, a figura do fã e do fã-clube. No Brasil, o sucesso obtido

pelos artistas nacionais cinema e rádio nos programas de auditório (Rádio

Nacional, na década de 1940) deu origem a inúmeros fãs-clubes e a toda uma

imprensa de fofocas, cujo ponto alto foi a Revista do Rádio (1948) que tinha

uma seção intitulada “Mexericos da Candinha”. No que se refere ao culto no

Brasil dos astros do cinema norte-americano, o papel da imprensa e do rádio

não foi menos importante. No Brasil, em relação à imprensa, destacou-se

especialmente a revista O Cruzeiro que publicou continuamente reportagens

sobre os astros de Hollywood, desde notícias sobre os últimos filmes

estrelados por eles, até o modo como viviam em suas mansões maravilhosas,

as festas que freqüentavam, seus casamentos, romances, divórcios etc.

Com o advento da televisão, não foi diferente. Além de trazer os

artistas do rádio para a TV e basear-se na programação radiofônica para

montar sua própria grade de programação, formatos e linguagem, a televisão

também mobilizará seu público e fãs pela imprensa e pelo rádio. Em menos de

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uma década depois de sua criação, praticamente todas as emissoras de rádio

e os jornais das grandes capitais brasileiras apresentarão uma sessão

dedicada à televisão, anunciando não apenas a programação televisual, mas

também a comentando. A criação da TV Globo, em 1965, e o sucesso

crescente das telenovelas dão início aos cadernos de TV, ou seja, um encarte

semanal que passa a ser produzido e publicado com regularidade pelos jornais,

tendo como alvo não só a programação da emissora, mas também, para

deleite dos fãs, as fofocas em torno das gravações das novelas e dos artistas,

acompanhadas de muitas fotos e informações visuais que serão objeto de

consumo.

O sucesso crescente das telenovelas promoverá o efeito de uma “

hollywoodinização” entre nós, tendo a TV Globo e o Rio de Janeiro como

cenários principais, com a criação de inúmeras outras revistas totalmente

dedicadas à exploração dos bastidores das gravações e dos romances vividos

pelos artistas. Amiga e Fatos & Fotos, além de inúmeras outras revistas “

femininas” irão explorar cada vez mais esse filão: a admiração, o interesse e a

curiosidade que levam o público a querer se aproximar dos seus artistas.

Esta breve abordagem sobre o fã e sua relação com seus ídolos teve

como objetivo mostrar que não se trata de um fenômeno apenas

contemporâneo, mas antigo e recorrente. Entretanto, a recorrência, a repetição

e a familiaridade não o tornaram mais conhecido do ponto de vista sociológico

ou cultural, mas, ao contrário, fizeram com que fosse perigosamente

naturalizado, o que acabou impedindo que sua existência fosse devidamente

examinada. Além disso, esta familiaridade fez com que muitos aspectos

fundamentais das ações e atitudes dos fãs frente aos seus ídolos se

mantivessem na sombra, isto é, inteiramente desconhecidos e sequer

identificados e mapeados. Por exemplo, menciono aqui a relação com a

imagem fundamental para compreendermos a idolatria no contexto da cultura

midiática contemporânea.

Isso significa dizer que as ações dos fãs não são muito conhecidas.

Além das cartas como forma de aproximação com o ídolo, já tratadas pelos

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autores mencionados, a condição de fã envolve para mim outras práticas que

podem ser assim resumidas:

1) O fã é, sobretudo, um colecionador. Primeiramente, de tudo o que se

refere aos seus ídolos. Na época moderna e graças à cultura de massas, esta

é a primeira e mais básica forma de manifestação e expressão da idolatria:

guardar informações, objetos, obras, de seu artista preferido. É importante

possuir todas as suas obras, especialmente colecionar material visual sobre ele

(como fotografias, vídeos, filmes), além de artigos, reportagens, entrevistas,

publicações variadas etc. Esta é uma atividade importante, porque distingue o

fã do público em geral. Com isso, todo fã acaba se tornando um arquivo vivo de

seus ídolos, além de muitos produzirem e manterem todo um acervo sobre

eles.

2) Com todo este material à sua disposição, o fã acaba se tornando

também um especialista na biografia e nos fatos relacionados à trajetória e

obra de seus ídolos.

3) Todo fã procura estar próximo ou ter algum tipo de contato presencial

com seus ídolos. Entretanto, nem sempre esta proximidade física é possível,

daí o fã buscar contato com outros fãs na tentativa de estes promoverem esta

proximidade ou contato, mesmo que indiretamente. Muitos fãs-clubes surgiram

para viabilizar essa relação a distância entre o ídolo e os demais fãs. Assim, os

fãs mais próximos ou aqueles que possuem algum tipo de contato com o ídolo

tornam-se um agente de divulgação, um intermediário entre o ídolo e o seu

público. Como vimos, muitos fãs comunicam-se com seus ídolos por

correspondência, mas muitos estabelecem essa conexão por intermédio dos

fãs-clubes oficiais, ou seja, aqueles fãs-clubes que recebem a chancela do

ídolo. Todos os grandes astros, personalidades e celebridades possuem seus

fãs-clubes oficiais e reconhecem o trabalho dos fãs como divulgadores de sua

imagem.

Afora essas ações, existem todas aquelas que formam um extenso

anedotário de extravagâncias e que, por sua singularidade, podem tornar as

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relações entre fãs e ídolos algo bastante bizarro. Há também casos

patológicos, como o que envolveu John Lennon, que acabou sendo

assassinado por um fã.

Como não poderia deixar de ser, a internet tornou-se imediatamente

uma tecnologia que favoreceu o aumento e a difusão dos fãs-clubes e da

indústria do star system em geral. Na verdade, ela redefiniu completamente

este tipo de associação, o fã-clube e suas atividades, bem como as próprias

relações entre ídolos e fãs mundo afora, congregando muito mais gente de

diferentes procedências. No ambiente virtual, os fansites proliferaram com uma

rapidez incrível e imediatamente se transformaram em instrumentos

importantes de divulgação dos próprios astros e celebridades. Ao contrário do

que observou Maria Claudia Coelho, hoje em dia, a relação entre fãs e ídolos

não é mais tão assimétrica como antes. Quem tem acesso à rede e dispõe de

conhecimento e ferramentas adequadas pode rapidamente fazer um site,

fórum, blog, fotolog ou mesmo lista de discussão sobre seu ídolo favorito, e

acabar por transformá-lo num veículo de divulgação importante do próprio astro

ou celebridade. O empoderamento do consumidor associado ao maior acesso

às TIC’s vêm tornando esta relação cada vez menos assimétrica.

Foi com essas considerações e preocupações em mente que me

aproximei dos fãs de séries norte-americanas, ao mesmo tempo assinantes de

TV por assinatura e usuários de internet para investigar se os tipos de

admiradores e adoradores que estas séries suscitam são diferentes dos fãs

que conhecia até então; em que medida as ações de devoção implementadas

por eles são também distintas e, finalmente, mas não menos importante, se a

experiência proveniente desses relacionamentos privilegiados que se formam

ao longo do tempo entre estes fãs contribuem de alguma forma para as

mudanças significativas relacionadas ao consumo de mídia.

No caso do meu universo de informantes, e tendo em vista a situação

de intermidialidade praticada por eles, a resposta para todas essas questões foi

afirmativa no sentido de que, muito embora os comportamentos e sentimentos

sejam semelhantes aos dos fãs tradicionais, o fato de disporem de tecnologia e

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de conhecimentos faz com que a relação seja modificada, conseqüentemente,

conduzindo a outros modos de relacionamento, experiência e fruição. Cada

série é experimentada como constituindo um universo imaginário e moral à

parte, com seus personagens e situações particulares. É este ingrediente

imaginário que associado às fantasias dos fãs constituem a motivação principal

para as práticas de intermidialidade neste caso. É bem verdade que muito do

sucesso dessas personagens depende dos atores que as desempenham, o

que leva a práticas de devoção e adoração também destes atores, fazendo

com que alguns fãs organizem ou participem de fansites relacionados a eles,

mas isso não constitui uma regra geral. Há casos em que a série e suas

personagens se tornam tão ou mais importantes do que os próprios atores,

portanto, tão ou mais idolatradas e admiradas do que eles, que podem ficar em

segundo plano.

Com estas questões em mente, a pergunta seguinte foi que tipo de “

intermidialidade” exatamente estas séries promoviam entre os meus fãs

informantes. Mais uma vez é bom lembrar que existem poucos estudos sobre o

tema da recepção televisual no Brasil e sobre a atividade dos fãs. Conforme

sugeriu Maria Claudia Coelho, embora seja uma personagem constante da

indústria cultural, portanto óbvia para todos, o fã é pouco discutido no âmbito

das ciências sociais e mesmo da comunicação, especialmente seu papel como

agente de divulgação e de reprodução da própria lógica do star system.

Além disso, a maioria dos estudos existentes dedica-se a analisar a

programação da TV aberta, especialmente as telenovelas, que acabam sendo

enfatizadas e merecendo todo o destaque (Gomes, 1998; Buarque de Almeida,

2004; Hamburguer, 2005). Há pouquíssimas referências às séries norte-

americanas (Gomes, 1998) que, no entanto, sempre foram consumidas em

nosso país, desde os primórdios da televisão na década de 195013. De

13 A esse respeito, já na etapa final desta pesquisa a TV Record divulgou que acabara de

comprar várias séries norte-americanas, dentre elas, algumas das séries estudadas por mim e

que já são transmitidas regularmente pelos canais por assinatura tais como CSI Las Vegas,

CSI Miami e CSI New York, além de outras. Voltarei a este ponto mais adiante.

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qualquer modo, mesmo sobre as ações dos fãs de telenovelas brasileiras ainda

existe pouca coisa produzida.

Embora já soubesse que as séries norte-americanas eram muito

discutidas na internet pelos fãs, eles continuavam relativamente invisíveis para

mim. Para conhecê-los melhor, além de passar a assistir a algumas destas

séries, tornou-se imperativo acompanhá-los no mundo virtual, observar onde

eles se encontravam, como se apresentavam, agiam e se relacionavam nas

comunidades virtuais: do orkut aos sites, blogs, fóruns, etc., a partir das

práticas e experiências cotidianas de interação que cada uma dessas

ferramentas instituía. Com este intuito, foram selecionadas várias séries.14

Entretanto, ao longo do tempo, passei a me dedicar mais a algumas delas: CSI,

CSI Miami, CSI NY, Lost, Desperates Howsewives e Grey´s Anatomy.

Nesse ponto, cabe estabelecer uma distinção importante para o

prosseguimento desta pesquisa: é preciso diferenciar o que se pode chamar,

de uma maneira geral, de fenômeno da “convergência das mídias” e a

intermidialidade propriamente dita. Embora do ponto de vista tecnológico elas

sejam equivalentes, a intermidialidade, de acordo com o contexto investigado,

possui um caráter de intencionalidade maior por parte das pessoas envolvidas.

Assim, a intermidialidade implica, além da iniciativa, um controle de todo o

processo de interação e mediação por parte dos consumidores, enquanto a

idéia de “convergência das mídias” não parte deste pressuposto, ao contrário,

ela opera com a idéia de que o consumidor ainda pode ser conduzido e que ele

não possui autonomia e escolhas no processo comunicacional.

Esta distinção se evidencia bem nas comparações que podem ser

feitas entre os sites institucionais de emissoras e os fansites. Numa primeira

observação, poder-se-ia dizer que os primeiros conduzem a uma interatividade

maior com os usuários. De fato, há uma tecnologia mais sofisticada percebe-se

14 Para se ter uma idéia do conjunto das séries transmitidas no Brasil pela TV por assinatura,

veja-se http://seriesonline.terra.com.br/

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um grande empenho de algumas emissoras em promover a convergência entre

as duas mídias – televisão por assinatura e internet – para, desta forma,

incentivar a fidelização do assinante, mantendo-o ligado ao canal, seja pela TV,

seja conectado ao site do canal, interagindo com ambos ao mesmo tempo.

Entretanto, observa-se que, na verdade, todo este empenho não promove o

que estamos identificando como intermidialidade, porque a interatividade

proposta é conduzida o tempo todo pelo canal, não havendo espaço para o

assinante/consumidor se apresentar a partir de seus próprios interesses,

motivações e, mais ainda, intervenções. Embora haja um cardápio muito

variado de opções de interatividade, ela é fechada, preestabelecida. O

assinante sabe que não pode fazer nada que não esteja previsto, inclusive o

acesso a determinados conteúdos do site é restrito, mesmo para os assinantes

do canal.

Curiosamente, no caso de alguns outros sites institucionais não se

observa nenhum empenho por parte da emissora de cativar o assinante. Tem-

se praticamente uma página apresentando somente a programação da

emissora, com algumas notícias relacionadas às séries que transmite. Isso

pode sugerir pouco empenho dela nesta relação de intermidialidade. Esse é o

caso da página da Sony Pictures, um dos canais de assinatura especializados

em séries. De fato, ela não parece estar interessada em conduzir processo

algum de intermidialidade, preferindo deixar que ele ocorra por conta e risco

dos próprios assinantes interessados.

Assim, de acordo com as observações realizadas, a forma de

intermidialidade a que estou me referindo é totalmente conduzida pelos fãs.

Eles agem o tempo todo de forma autônoma, mesmo em relação aos canais de

televisão que transmitem as suas séries preferidas. Quando se dirigem ao

canal, via internet, são eles que tomam à frente, sugerem, demandam, enfim,

eles sabem o que querem, o que estão procurando, colocam-se inteiramente

como sujeitos – e não objetos – dos processos de intermidialidade. Em resumo,

eles possuem uma atitude proativa em relação à informação sobre seus ídolos:

diferentemente da situação anterior, eles buscam, reúnem e, portanto,

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produzem toda a informação partilhada, não dependendo, da mídia massiva

para obtê-las. Assim sendo, um aspecto importante do que estou chamando de

intermidialidade é que em momento algum essas pessoas delegam a outrem –

emissoras, empresas, organizações – a função de dizer ou propor o que elas

vão discutir, debater, trocar e partilhar na rede a respeito de suas séries e

ídolos preferidos. Na maioria das vezes, elas se adiantam em relação à própria

mídia massiva, disponibilizando para ela material sobre seus ídolos. Aliás, um

aspecto interessante é que muitas vezes são procuradas por esta como

informantes qualificados.15

Podemos dizer, então, que estamos diante de uma atitude que

combina um componente de auto-referencialidade – na medida em que o

pretexto é falar de programas de televisão, ou seja, falar da própria mídia –

com um forte sentimento de autonomia que, vinculado ao tema da comunidade

e da identidade, conduz a outras discussões que não apenas sobre as séries,

corroborando uma ideologia do compartilhamento e da troca. Disso decorre

uma certa forma de igualitarismo no sentido de que todos se consideram

“produtores”, “autores”, ao mesmo tempo que “consumidores” de informação

sobre um determinado assunto, no caso, as séries de televisão. Em suma,

nesta forma de intermidialidade de que estou tratando não conta apenas a idéia

de uma “convergência das mídias” do ponto de vista operacional e tecnológico,

mas, sobretudo, ela é percebida e praticada como fruto de uma atitude

ideológica e moral frente à informação, visto que para as pessoas implicadas o

direito e o livre acesso à informação passa a ser algo inquestionável e

irreversível. Dessa forma, quaisquer obstáculos ao exercício deste direito é

encarado como suspeito, portanto, uma forma de controle ou mesmo de

ameaça. Cada vez mais vem-se formando um consenso de que quaisquer

15 Este é o caso de uma publicação recente intitulada Séries de TV. No terceiro número, ela

produziu uma matéria sobre as novidades das próximas temporadas de algumas das séries

favoritas do público brasileiro e, para tanto, convidou alguns fãs, todos eles responsáveis e

atuantes em fansites, para fazerem a matéria. Cada um participou trazendo novidades e

material relativo às séries a que muito provavelmente esta publicação não teria acesso.

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restrições ao livre acesso à informação, mesmo com base legal, ferem por

princípio este direito inalienável da pessoa.

Por conta dessa questão, surge alguns desdobramentos importantes

que afetam, sobretudo, a dimensão prática da gestão da internet nos dias de

hoje, com implicações imprevisíveis para o futuro, seja do ponto de vista

político e ético, seja do ponto de vista econômico: em primeiro lugar, temos de

repensar neste contexto a própria idéia de negócio e comércio. Isso não

significa dizer, de forma alguma, que não exista lugar para eles na vida digital,

mas a experiência da pesquisa me obriga a afirmar que a moral da

intermidialidade contemporânea não é apenas mercadológica. Não. Os limites

e fronteiras do comércio estão sendo cada vez mais repensados em função

das acusações de “pirataria” e das questões da propriedade intelectual que

precisam ser resolvidas. Para isso, no entanto, é preciso compreender este

fenômento cultural mais amplo, vinculado a mudanças de atitude e de

mentalidade frente à informação.

Quanto a isso, é preciso salientar que “pirataria” não é uma categoria

nativa dos meus informantes, mas é vista por eles como uma categoria de

acusação que vem sendo imposta aos usuários e nativos da internet que

reagem aos dispositivos do mercado, na medida em que este encontra

obstáculos para impor a lógica mercadológica na rede. Do ponto de vista

nativo, o que existe é uma “acusação de pirataria”, identificada por muitos

informantes como uma tentativa de cerceamento ao livre acesso à informação

por parte do mercado, das instituições e organizações que, segundo eles,

consideram a informação algo passível de ser controlado, seja para fins

econômicos (comerciais), seja por questões políticas, morais ou religiosas.

A pesquisa tem-me revelado que uma nova mentalidade e mesmo

moralidade e ética sociais estão emergindo e sendo construídas na e a partir

da Internet, tendo como ponto de partida a questão dos direitos e do acesso à

informação, sendo que liberdade cada vez mais se confunde com acesso livre

à informação. Para os defensores desta concepção, a informação, a despeito

do que muitos teóricos afirmam (Sodré, 2005), não é simplesmente uma

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mercadoria. Esta nova ética defende que a informação deve circular livremente,

sem restrições e ser preferencialmente objeto de trocas e compartilhamento. O

comércio é algo que pode acontecer ou vir a reboque deste processo, mas

como uma dimensão sempre secundária e não como a pedra de toque dele. É

importante ressaltar, ainda uma vez, que a lógica da internet está fundada,

portanto, numa idéia de compartilhamento.

Diante do exposto, uma nova pergunta se impõe: afinal, quem são os fãs

de séries americanas? Qual é o seu perfil? Embora o relatório da ABTA os

inclua majoritariamente no tipo “Descoladas” (13%), isto é, situando-os

basicamente entre o público mais jovem, teen e feminino por excelência, não

foi esta a realidade que encontrei. A observação qualitativa permitiu-me

constatar que, dependendo da série – e aí temos uma outra discussão

interessante –, os fãs podem ser incluídos nos outros perfis apresentados no

mesmo relatório da ABTA, como as “Dedicadas” (18%) ou mesmo os “Boa

Gente” (18%), as “Mulheres Atuais” (16%), os “Bem Informados” (16%), os “

Ligados” (15%) e, finalmente, os “Absolutos” (4%), estes últimos mais

qualificados e exigentes que os demais.

Com a ajuda de meus informantes e tomando como base a classificação

dos tipos da ABTA e as séries que acompanhei, montei o quadro abaixo. Isso

significa que, além da programação associada a cada tipo, segundo o relatório,

eles também consomem algumas séries e eventualmente se posicionam até

como fãs de algumas delas. De todo o modo, para efeitos da etnografia, os

tipos cujas práticas de intermidialidade foram observadas por mim concentram-

se entre os quatro últimos, com especial atenção para os Absolutos, Ligados e

Descoladas.

Tipo Séries Canais

Dedicadas: 18% According to Jim

Charmed

Sony

Sony

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Concentram as donas de casa de alta

qualificação econômica. Interesses:

fa-mília, culinária, medicina alternativa

e dietas.

Desperates Howsewives

Grey’s Anatomy

Lost

Sony

Sony

AXN

Boa Gente: 18%

Homens maduros e chefes de família,

bem-sucedidos. Interesses: curtem as

horas de folga em casa vendo TV:

programas esportivos e noticiários.

24 Horas

Alias

Commander in Chief

Crossing Jordan

ER

Grey’s Anatomy

Las Vegas

Law & Order

Lost

Fox

AXN

Sony

Universal

Warner

Sony

AXN

Universal

AXN

Mulheres Atuais: 16%

Casa, trabalho e filhos, maridos e elas

próprias. Interesses: entrevistas,

docu-mentários, shows, noticiários e

turismo.

According to Jim

Commander in Chief

Crossing Jordan

Desperates Howsewives

ER

Grey’s Anatomy

Lost

Will & Grace

Sony

Sony

Universal

Sony

Warner

Sony

AXN

Sony

Bem Informados: 16%

Elite cultural, alta escolaridade,

econo-micamente ativos, com

renda própria. Interesses: filmes,

documentários e no-ticiários.

Bones

Criminal Minds

Crossing Jordan

CSI

CSI Miami

CSI NY

House

Law & Order

Lost

Fox

AXN

Universal

Sony

AXN AXN

Universal

Universal

AXN

Ligados: 15%

Jovens esportistas e mais qualifi-

cados que a média. Interesses: es-

portes, humor e música

Bones

Criminal Minds

CSI

House

The L Word

Will & Grace

Fox

AXN

Sony

Universal

Warner

Sony

Descoladas: 13%

Jovens ávidas por consumir e por se

Alias

Charmed

AXN

Sony

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divertir. Interesses: seriados, mu-

sicas/clipes, minisséries e programas

infantis.

Desperates Howsewives

ER

Grey’s Anatomy

House

Las Vegas

Lost

Smallville

Veronica

Mars Will &

Grace

Sony

Warner

Sony

Universal

AXN

AXN

Warner

TNT

Sony

Absolutos: 4%

Especialmente diferenciados. Têm

interesses variados, do cuidado da

casa à ecologia. Gostam de livros,

viajar etc.

Bones

Criminal Minds

CSI

House

The L Word

Fox

AXN

Sony

Universal

Warner

• As séries:

Desde 2005 venho acompanhando grupos de discussão e

comunidades virtuais sobre séries norte-americanas, especialmente fansites

brasileiros. Entretanto, no decorrer deste período, passei a concentrar minha

atenção em duas séries em particular: Lost e CSI Las Vegas.

As razões para esta escolha devem-se ao fato de CSI e Lost

apresentarem características que as distinguem das demais séries e de uma

forma muito complementar. Conforme é possível observar no quadro anterior,

Lost vem fazendo muito sucesso junto ao público brasileiro. É grande o

contingente de pessoas que assiste à série, inclusive na TV aberta, desde que

a TV Globo comprou os direitos de transmissão no início de 2006 e exibiu a

primeira temporada. Na verdade, é a única série atual a que assistem todos os

segmentos e tipos presentes no relatório da ABTA, com exceção de alguns

informantes que fazem parte dos Absolutos, por motivos que explicarei mais

adiante. O tema e as personagens vêm estimulando muitas discussões e

teorias por parte dos fãs brasileiros. Como não poderia deixar de ser, os

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fansites da série no Brasil são os maiores em relação ao número de fãs: tanto

no orkut quanto o fórum Lost Brasil, este com quase 100 mil usuários inscritos.

Lost chama a atenção porque acaba rompendo com a idéia de segmentação

proposta pelo formato, ao se apresentar como uma série totalmente

seqüencial, diferente da maioria das demais. Isto explica grande parte de seu

sucesso no Brasil, já que neste sentido ela se aproxima mais do formato de

uma telenovela. Lost tem a vantagem de reunir e não dispersar (segmentar) o

público.

Entretanto, diferentemente das telenovelas brasileiras, Lost apresenta

algumas das mudanças recentes ocorridas nesse gênero, resultado da mistura

da lógica do jogo, com alguns ingredientes retirados da filosofia e da ciência e

com os elementos e as motivações românticas do melodrama tradicional. A

série possui todos os ingredientes para se tornar um fenômeno de grande

sucesso no Brasil, a partir da transmissão da segunda temporada, em fevereiro

de 2007, pela TV Globo, ainda mais depois da contratação do ator brasileiro,

Rodrigo Santoro, para fazer parte do elenco na terceira temporada.

Ao contrário de Lost, CSI não faz o mesmo sucesso no Brasil. Seu

público é bem mais restrito aqui, apesar de ser uma série de grande audiência

e sucesso nos EUA, desde a sua estréia em 2000, chegando a ter mais de 30

milhões de telespectadores, sendo transmitida para mais de 200 países. No

entanto, com todo esse currículo e já tendo chegado à sétima temporada, ela

não se tornou no Brasil um grande sucesso de público. Entretanto, isso não

constitui um problema para os fãs brasileiros da série que se concentram

praticamente entre os Bem Informados, Ligados e os Absolutos. Para eles,

justamente o fato de ela não agregar, não reunir como Lost, mas sim

segmentar o público, é visto como uma qualidade a mais, como se pode

depreender das citações que se seguem:

Pq é para um público segmentado e fazer parte desse público é tudo

de bom! (mulher, 22 anos, estudante, SP)

Pq estimula a observação, a percepção e o pensamento lateral.

(mulher, 15 anos, estudante, RJ)

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Pq estimula a molecada a gostar de ciências. Minha afilhada é uma

que azucrina a cabeça da prof. de ciências dela, falando do que viu

em CSI. (mulher, 28 anos, arquiteta, RJ)

Pq os Geeks e Nerds comandam! (homem, 26 anos, estudante, RJ)

Porque o Gil Grissom também é surdo leve; porque a série equilibra o

lado pessoal e profissional dos personagens; porque a série tem os

personagens mais originais do mundo! (homem, 16 anos, estudante,

Brasília-DF)

Temos ciência, ação, intelectualidade e romance (mulher, 23 anos,

estudante, SP)

A série é processual. (mulher, 17 anos, estudante)

Todas estas citações são importantes não só por mostrarem o caráter de

distinção que a série possui para o seu público brasileiro, mas, sobretudo, se

consideramos este público como um segmento de early adopters, por

revelarem as tendências que eles estão adotando na condição de

telespectadores e consumidores de um determinado tipo de produto cultural.

Uma qualidade importante mencionada nas citações acima sobre as

duas séries é que elas estimulam a pensar16. Sendo assim, é importante

observar o modo como as pessoas são estimuladas a pensar, enquanto

assistem à série e, em seguida, como elas transportam esse modo de pensar,

expões suas teorias e argumentos para a discussão da série nos fóruns e

fansites.

Realmente se há uma diferença notável entre as séries norte-

americanas e as telenovelas brasileiras é o fato de estas últimas estarem

16 Em Lost há uma discussão sobre a existência da própria ilha, com muitas teorias sobre ela,

desde a possibilidade de ser o purgatório (Divina Comédia, Dante), um mundo/universo

paralelo, do tipo a Terra Oca e outras especulações a respeito da condição dos sobreviventes –

se continuam vivos ou mortos – com muitas alusões a livros de ficção científica. Afora isso,

existe uma referência aos filósofos contratualistas, já que existem personagens com seus

nomes: Locke, Rousseau e David Hume. Esse conjunto de possibilidades, associado ao

enredo da história – um avião que cai numa ilha deserta – vem promovendo um enorme

sucesso da série.

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fundamentalmente centradas no drama familiar e sentimental (romance),

ambos entendidos tacitamente como se fossem a única forma de sociabilidade

possível, enquanto algumas séries norte-americanas apresentam estruturas de

narrativas com enredos múltiplos e redes sociais complexas, não centrando

suas narrativas na família, no parentesco e/ou vida amorosa das personagens

somente. CSI e Lost são um exemplo nítido desse tipo de narrativa. Nelas o

telespectador pode encontrar estas características que, emprestam uma

grande agilidade, realismo e interesse à narrativa. Ora, esse tipo de narrativa

estimula aquilo que Steven Johnson (2005), em um estudo sobre a televisão e

o videogame, denomina de aprendizado colateral, ou seja, um aprendizado

para além do conteúdo explícito veiculado. Segundo Johnson, "algumas

narrativas forçam você a se esforçar para compreendê-las ... compreender as

informações que foram deliberadamente retidas ou deliberadamente deixadas

obscuras" (Johnson, 2005:51). Estas séries não se limitam a apresentar uma

sociedade, com hábitos, valores e costumes, mas, diferentemente das

telenovelas, utilizam uma estrutura de jogo. Algumas delas exigem que o

telespectador, para acompanhar a trama, desenvolva um tipo de raciocínio

similar àquele empregado ao participar de um jogo de videogame. Em seu

estudo, Steven Johnson distinguiu duas formas diferenciadas de participação

num videogame: a sondagem e a investigação telescópica, ambas igualmente

presentes nas séries de que estamos tratando.

Para o autor, a sondagem decorre do fato de que, ao contrário de um

jogo de xadrez – em que o jogador deve conhecer as regras do jogo antes de

começar a jogar, e o melhor jogador será o que melhor utilizar estas regras –,

no videogame, o jogador começa a jogar sem ter todas as regras definidas. Ele

recebe apenas algumas instruções básicas e conhece os objetivos imediatos.

Somente ao explorar o ambiente do jogo, ele terá acesso às outras metas.

Logo, o jogador precisará sondar as profundezas da lógica do jogo para

entendê-lo e, como na maioria das expedições investigadas, só por meio de

tentativas e erros, seguindo até suas intuições, obterá resultados.

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Já a investigação telescópica, é o trabalho mental de gerenciar

simultaneamente todos os objetivos do jogo, desde aqueles que são dados

inicialmente até os que vão sendo descobertos pelas sondagens: buscas,

experiências e explorações. Este trabalho consiste em exercitar a habilidade de

saber focar os problemas imediatos, estabelecer hierarquias, e ao mesmo

tempo manter uma visão ampla de conjunto e a longo prazo. Segundo Steven

Johnson, a investigação telescópica não se confunde com a multitarefa, que

consiste em lidar com uma torrente caótica de objetivos não-relacionados. A

investigação telescópica tem a ver com ordem, hierarquia e saber tomar

decisões estratégicas que envolvem prioridades.

Como podemos depreender, não conhecer todas as regras do jogo faz

parte da experiência de jogar esses jogos eletrônicos. É este o principal atrativo

dos videogames e o motivo pelo qual eles são mais auto-referenciais, uma vez

que a pergunta constante que acompanha o jogador é: como este jogo é ou

deve ser jogado? No caso das séries, elas tomaram emprestada esta

modalidade de aprendizado colateral que é a sondagem. Tanto em Lost quanto

em CSI Las Vegas, ela está encarnada, inclusive, em alguns personagens que

simbolizam bem este processo: o grupo de sobreviventes em Lost; Gil Grisson,

o cientista entomologista do crimelab da Polícia de Las Vegas. Em Lost, cuja

narrativa promete ser ainda mais próxima do videogame, a sondagem está

presente e é compartilhada por todas as personagens. Em CSI, Gil Grisson e

seus pupilos dramatizam todas as variações da sondagem, todas as formas de

explorações, experiências, além de se apresentarem sob atenção constante.

Em outras palavras, indo ao encontro do estudo de Steven Johnson, estes

programas estão levando para o telespectador comum os procedimentos

básicos do método científico. E não é por acaso que a própria ciência, na forma

de laboratórios, práticas e experiências científicas encontram-se cada vez mais

presentes nos enredos e cenários destas narrativas.

Quanto a investigação telescópica é o trabalho mental de gerenciar

simultaneamente todos os objetivos do jogo, desde aqueles que são dados

inicialmente até os que vão sendo descobertos pelas sondagens: buscas,

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experiências e explorações. Este trabalho consiste em exercitar a habilidade de

saber focar os problemas imediatos, estabelecer hierarquias, e ao mesmo

tempo manter uma visão ampla de conjunto e a longo prazo. Segundo Steven

Johnson, a investigação telescópica não se confunde com a multitarefa, que

consiste em lidar com uma torrente caótica de objetivos não-relacionados. A

investigação telescópica tem a ver com ordem, hierarquia e saber tomar

decisões estratégicas que envolvem prioridades. Em narrativas com enredos e

redes sociais múltiplas verifica-se essa questão muito claramente. É nesse

contexto que, ao contrário das telenovelas, as relações familiares e amorosas

tendem a perder o seu primado, sendo substituídas por outras formas de

inserção social que implicam outros espaços sociais, tais como: empresas,

organizações cada vez mais complexas, trabalho, profissão, carreira, fato que

empresta um maior realismo a essas narrativas.

Aliás, este é um dos temas principais de CSI, responsável pelo seu

enorme sucesso nos EUA e no mundo: o dia a dia do trabalho de um grupo de

peritos forenses, ou seja, a vida profissional deles, e não a sua vida familiar ou

amorosa. Além disso, o grupo liderado por Gil Grisson está sempre sendo

levado a gerenciar os objetivos da investigação, avaliar os rumos que ela está

tomando, distinguir suas prioridades, definindo o que deve ser feito a curto

prazo para se chegar aos objetivos de mais longo alcance. Todos os episódios

apresentam algum tipo de problema que ameaça estes objetivos. No caso de

Lost,17 definir prioridades tem sido um dos principais motivos de conflito entre o

grupo de sobreviventes, especialmente entre Sawer e os demais – Jack

(médico), Sayid (militar) e Locke (livre-pensador). Sawer não consegue

distinguir prioridades por ser individualista ao extremo, enquanto Jack, por

conta da própria profissão como médico, é quem consegue defini-las.

No entanto, é importante acentuar que, embora as séries utilizem cada

vez mais as estruturas lógicas do jogo, elas continuam sendo histórias com

enredos definidos. Sendo assim, as lacunas existentes nelas estimulam a

17 Essas observações foram feitas tomando como referência a primeira temporada de Lost.

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imaginação e a fantasia acarretando muitas especulações e interpretações por

parte do público. Durante a primeira temporada de Lost, o público na tentativa

de preencher as lacunas deliberadamente deixadas na narrativa produziu uma

grande quantidade de especulações, interpretações e teorias extremamente

interessantes e ricas, ou seja, inúmeras narrativas paralelas como resposta às

afirmações de Johnson de que "para acompanhar a narrativa, você não deve

apenas se lembrar. Você tem que analisar" (Johnson, 2005:51), pois são

muitas as demandas cognitivas que as narrativas colocam para seus

telespectadores. Como conseqüência deste trabalho mental e intelectual de

preenchimento das lacunas, temos as fanfics, isto é, peças de ficção escritas

pelos fãs, postadas e publicadas na Internet, em vários sites disponíveis com

este objetivo. Ler e analisar estas fanfics é uma tarefa a que venho me

dedicando no momento.

De um modo geral, estas fanfics podem ser classificadas em duas

categorias: 1) aquelas cujos autores deliberadamente pretendem reafirmar uma

representação icônica da realidade, na medida em que buscam trazer as

personagens mais para a realidade do seu aqui e do agora, do mundo real; 2)

aquelas que deliberadamente investem na lógica da narrativa proposta e do

jogo buscando um aprofundamento dos aspectos auto-referenciais, isto é, nas

estruturas lógicas e formais maximizando os enredos múltiplos, os enigmas e

para isso complexificando as redes sociais nas quais os personagens terão de

se mover – caso de Lost e CSI.

Diante do exposto, cabe perguntar: por que a intermidialidade vem-se

tornando a tendência dominante do consumo de mídia? Na década de 70, um

seriado como Dallas girava em torno de uma única pergunta – Quem matou

JR? o mesmo ocorrendo numa novela brasileira, que indagava: Quem matou

Odete Roitman? Se nos anos 70 Dallas, assim como as telenovelas brasileiras

moviam-se no contexto de uma única família extensa, nos tempos atuais, as

redes sociais são extremamente complexas, como se evidencia nos crimes de

CSI, nas trajetórias dos personagens de Lost, nos episódios de ER, com o

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entra-e-sai de pacientes e profissionais18. Acompanhar uma temporada destas

séries exige tempo e atenção. Se o telespectador não dispõe de tempo para

assistir a todos os episódios, a internet vem em seu socorro por intermédio dos

fansites – onde se pode ficar sabendo o que aconteceu na noite anterior – ou

ele pode até mesmo buscar o arquivo do próprio episódio e baixá-lo no

computador. Temos, então, uma convergência entre duas mídias que não é

apenas oportunista do ponto de vista de mercado, mas cognitivamente

necessária no sentido de dar sustentação para que uma determinada forma de

recepção seja possível, ou seja, para que uma determinada lógica e tendência

de programação possa ser desenvolvida e reproduzida. A esse respeito,

Johnson afirma que a relação de intermidialidade entre televisão e internet se

faz cada vez mais necessária, "não apenas porque o mundo on line propicia

recursos que ajudam a sustentar a programação mais complexa em outros

meios de comunicação, mas porque o processo de acostumar-se à nova

realidade das comunicações em rede teve um efeito salutar em nossas

mentes" (Johnson, 2005:92).

Uma síntese desse relacionamento cada vez mais complexo entre as

mídias e a internet pode ser conhecido quando tratamos do fenômeno da

autopublicação. Citando a expressão de Douglas Rushkoff, screenagers,

Johnson refere-se a este fenômeno para falar não apenas de uma geração que

aprendeu a fazer manipulação das imagens da televisão, do cinema ou

proveniente de qualquer outra mídia, mas também para falar de algo bastante

comum entre os meus informantes – os blogs: "a tela não é apenas algo que

você manipula, mas algo no qual você projeta sua identidade, um local para

trabalhar do começo ao fim a história de sua vida à medida em que ela se

desenrola" (Johnson, 2005:95).

18 Mesmo uma série como Família Soprano, cujo tema ainda é a família e as relações de

parentesco, esta ganhou mais complexidade, dada as diferentes articulações de Tony Soprano,

o chefe da familia e a sua própria condição como líder mafioso em um contexto social e

econômico para lá de complexo, variado, múltiplo.

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Para fins desta pesquisa, não tratei dos blogs, dos diários e fotologs,

mas tão somente da manipulação do material visual proveniente, no caso de

filmes e das séries televisivas que eles assistem, tanto na televisão quanto na

internet. Toda essa manipulação traduzida num conjunto grande e variado de

objetos – avatares, icons, banners, wallpapers, vídeos – revelam a meu ver um

diálogo e uma negociação intensa entre a cultura midiática e essa busca por

identidade.

• Imagens: representificação e performance:

O primeiro fator que chama atenção em relação às séries norte-

americanas é a forma de recepção ou consumo que elas instauram, distinta do

modo de recepção das telenovelas. Como já foi observado, esta recepção ou

consumo não se resume em assistir e seguir os episódios. Há todo um

processo de engajamento em relação à série que se reflete nas inúmeras

manipulações e intervenções que os fãs realizam. Assistir, às séries, comentá-

las, discuti-las e conversar sobre elas é apenas um momento do processo de

consumo. Estas intervenções são variadas em termos de qualidade e

quantidade. Em nossa pesquisa, nos deparamos com as seguintes formas de

intervenção e manipulação: as imagens (avatares ou icons, banners ou

assinaturas e os wallpapers), os vídeos e as fics. Cada uma destas

intervenções exige um olhar diferente e habilidades específicas por parte do fã.

Nem todos conseguem ter todas as habilidades e realizar todas as

manipulações, mas alguns conseguem, e isso se torna um atributo importante,

valorizado entre eles. Segue um resumo das respostas obtidas à pergunta: “O

que um fã deve fazer ou estar disposto a fazer?”

• Assistir aos episódios religiosamente, sem perdê-los. Mesmo

quando repetidos (reprises), discutí-los, comentá-los

exaustivamente, fundamentalmente, memorizá-los e interpretá-

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los. Há todo um processo de arquivamento (mnemotécnico) no

qual o fã se torna um homem-arquivo relativo à(s) série(s) e aos

fenômenos e fatos a ela(s) relacionados.

• Buscar na internet todas as informações e imagens disponíveis

sobre a(s) série(s), as personagens e os artistas. Predominância

de uma lógica do inventário.

• No momento presente, tomar posse dos episódios é

fundamental: ou seja, baixá-los da internet e tê-los arquivados e

disponíveis na sua máquina. Há todo um procedimento (ritual)

para encontrá-lo na rede e baixá-lo, possuí-lo de fato.

• A partir da captura dos episódios, selecionar as imagens e fazer

os caps e, assim, dar início às intervenções e manipulações

propriamente ditas, no sentido de realizar a representificação

desse algo que se deseja e se busca. Disso decorre toda uma

experiência que é também comunicada e trocada, plena de

sensações e emoções.

• O objeto resultante dessa manipulação – seja um icon ou avatar,

um banner, um wall, um vídeo ou uma fic – deve ser

imediatamente trocado, partilhado. O resultado desse

compartilhamento é uma outra forma de experiência que é

usufruída em conjunto com os demais fãs.

Conforme pude observar, os passos quatro últimos passos acima não

se restringem apenas aos fãs das séries investigadas. Tendo em vista a

tecnologia disponível e cada vez mais acessível, as manipulações ou

intervenções sobre o material visual, seja de uma determinada obra (filme,

série ou mesmo livro), seja de determinadas celebridades (atores, cantores,

músicos, personalidades públicas, modelos etc) estão se tornando uma

tendência entre os fãs de um modo geral. O que ocorre de especial em relação

aos fãs das séries é que, no meu entender, eles estão na linha de frente desse

processo e tendência que vem se disseminando pela cultura de massas e,

dessa forma, modificando bastante a relação com a programação de TV, com o

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cinema, enfim com a imagem e as próprias fronteiras entre a criação, produção

e consumo dessas imagens.

Se tradicionalmente havia uma separação rigorosa entre criadores e

produtores de imagens, emissores e os consumidores – público, platéia,

audiências – que, como tais, limitavam-se ao papel de assistir, contemplar,

admirar e quando muito colecionar essas imagens (cópias, réplicas, etc), hoje

essa relação mudou completamente, na medida em que os próprios

consumidores passaram a manipular e a interferir diretamente nas imagens

como uma forma de consumi-las. Em suma, cada vez mais consumir imagens

na cultura de massas não implica uma contemplação passiva, mas a produção

de uma outra imagem, não exatamente uma cópia da imagem original, mas

uma recriação dela de acordo com a ótica do consumidor – público, platéia,

audiência. Como parte de um fenômeno mais amplo – a autopublicação – a

manipulação de imagens aponta para uma mudança significativa que poderá

ter conseqüências imprevisíveis no futuro da internet, particularmente em

relação à interface visual.

Assim, como toda tendência de comportamento que implica o uso de

tecnologias novas ainda relativamente pouco difundidas, essas práticas

encontram resistências e são encaradas com muitas reservas por amplos

setores da mídia tradicional que vêm nelas uma forma de concorrência desleal

(pirataria) ou de rompimento com padrões éticos que asseguram direitos de

propriedade intelectual. Minha experiência com essa questão vem me

mostrando que esta tendência não poderá ser interrompida, ao contrário, ela

está sendo cada vez mais estimulada pela própria industria de softwares que

vem se posicionando favoravelmente a um processo de autonomização

crescente do consumidor. A demanda pela inclusão digital que começa

aparecer como item prioritário nas agendas sociais de vários paises vai de

alguma forma acelerar mais ainda este processo. Estamos diante de uma luta

de titãs, entre um processo industrial da informação e outro. De acordo com a

lógica digital, a hegemonia do Broadcast tradicional acabou. Com o lema do

Youtube, Broadcast yourself, podemos ter certeza de que não se trata de um

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rompimento apenas com a idéia do primetime (horário nobre), mas que ele será

substituído pela lógica da autopublicação.

Contudo, na medida em que se trata de um fenômeno que ainda

carece de visibilidade ao ponto de provocar uma discussão mais ampla, a

manipulação das imagens como parte do processo de recepção de programas

de cinema, TV, no caso, as séries norte-americanas e também da relação entre

fãs e ídolos sugere algumas especulações interessantes sobre o processo

mesmo de idolatria que é um dos alicerces do star system atual. Afinal de

contas, ele nos remete para um debate legado pela história religiosa: a

diferença entre imagem e ídolo, um debate ao que tudo bastante pertinente.

Em um ensaio intitulado Ídolos e Imagens, Carlo Ginzburg (2001)19

toma como ponto de partida um trecho de Orígenes no qual o autor estabelece

a diferença entre ídolo e imagem:

...Se alguém, por exemplo, reproduz num material qualquer – ouro,

prata, madeira, pedra – o aspecto de um quadrúpede, de uma cobra

ou de uma ave, e decide adorá-lo, não constrói um ídolo, mas uma

imagem. E também se o reproduz em pintura pelo mesmo motivo,

deve-se dizer que fez uma imagem...

...Mas o que é o que não existe? Algo que os olhos não vêem, mas que

a mente imagina. Por exemplo, suponhamos que alguém imagine uma

cabeça de cachorro ou de carneiro com membros humanos, ou um

homem com duas cabeças, ou conjugue a parte inferior de um cavalo

ou de um peixe com um busto humano. Quem faz coisas

assim não faz imagens, mas ídolos...20

Segundo Ginzburg, Orígenes seria assim a fonte de uma distinção cara

ao pensamento ocidental, a partir da teologia cristã: a diferença entre imagem

como representação de uma coisa existente (similitude, mimesis) e o ídolo

como uma imagem compósita, resultante da fantasia e da imaginação

19 Ginzburg, Carlo. "Ídolos e Imagens. Um trecho de Orígenes e sua sorte". In Olhos de

Madeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.122 – 138.

20 Ginzburg, Carlo, 2001:124

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humanas. É preciso chamar atenção para o fato de que boa parte da

condenação moral e intelectual que pesa sobre a chamada cultura de massas

tem como premissa esse viés teológico e toda a tradição do debate entre

iconoclastas e iconófilos. Não é preciso dizer que a própria história da arte

oscilou entre uns e outros. É estimulante pensar que a difusão de uma nova

tecnologia como a internet reedite novamente o debate, agora não mais entre a

alta cultura e a cultura de massas somente, mas no seio da própria cultura de

massas que começa a ter áreas e domínios enobrecidos e assimilados à alta

cultura, como é o caso do cinema, da fotografia e mesmo alguns setores do

design e da publicidade que começam a ser museografados e

patrimonializados.

De qualquer forma, independente de um aprofundamento maior sobre as

essa questão, a distinção apresentada por Ginzburg foi bastante útil para eu

entender tecnicamente falando, o que os meus informantes fazem. Para mim,

eles tomam imagens, consideradas representações ficcionais, porém realistas

do mundo, e transformam em ídolos, isto é, imagens compósitas, híbridas, nas

quais é predominante a fantasia e a imaginação do autor, além de outras

qualidades e características subjetivas dele. Temos aí um processo de

apropriação que consiste basicamente numa operação de deslocamento de

uma imagem pública, que é produzida para um público, em direção a uma

imagem que, ao passar por um processo de singularização, via manipulações

digitais, acaba por tornar-se única, privada e íntima.

O que me chama atenção é que estamos diante de um processo de

manipulação e customização da imagem que está em vias de se tornar

massivo, dominante, numa escala cada vez maior e intensa para um grande

público e não apenas para alguns poucos privilegiados. O que esse processo

nos ensina é que muito em breve não teremos mais um filme X ou Y para

todos, mas que cada um poderá a partir dessas matrizes disponibilizadas na

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internet fazer o seu próprio filme ou a sua própria série doméstica, com base na

tecnologia digital21.

De qualquer modo, esse processo não é desconhecido do ponto de vista

religioso. Para quem foi socializado na religião católica sabe que essa é a

relação que os fiéis possuem com as imagens dos santos. Há uma diferença

entre as imagens públicas cultuadas e reverenciadas publicamente nas Igrejas

e aquelas reverenciadas privadamente. Há um processo de customização e de

apropriação da imagem que implica também sua manipulação no sentido físico,

desde a sua localização no altar doméstico, até composições várias que podem

acontecer de acordo com o santo, o estilo de devoção e os objetivos a serem

alcançados, como é o caso de Santo Antônio que pode ser manipulado de

várias formas pelos devotos e as moças casadoiras. Esta vertente da fé e do

catolicismo popular pouco discutida nos tempos atuais, mas que tem

repercussões bastante profundas no imaginário popular brasileiro e de outros

paises católicos, é importante porque ela nos remete novamente ao debate

sobre as fronteiras entre aquilo que a Igreja considera fé, devoção e aquilo que

ela reprova como idolatria.

Voltando aos fãs das séries americanas, é preciso apresentar as formas

de manipulação existentes. Todas estas intervenções merecem destaque e

atenção, embora tenham papéis e funções um pouco diferentes. Os icons, ou

ícones, são utilizados pelos fãs como avatares, isto é, substituem os próprios

fãs no ambiente virtual, sendo, portanto, uma apresentação do fã por meio da

imagem do ídolo (personagem) que ele admira. O icon reflete a perspectiva

com a qual ele se apropria da série e/ou de uma personagem dela. São muito

usados em fóruns. Os banners são usados em e-mails, listas de discussão e

nos próprios fóruns como assinatura. O banner é explicitamente um statement,

21 Do ponto de vista técnico isso já é rigorosamente possível e fácil de ser feito por qualquer

pessoa que tenha uma conexão de banda larga para fazer downloads de arquivos torrents,

tenha um gravador de DVD, além de softwares como o windows movie maker para cortar e

reeditar sequências de filmes e séries. Aliás, isso já é feito regularmente pelos meus informantes.

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ou seja, uma declaração ou uma afirmação de princípios que o fã faz

visualmente sobre a série, uma determinada situação ou personagem com a

qual ele se identifica ou algo que ele deseja que ocorra. Os wallpapers também

podem ser declarações e funcionam como murais ou mesmo como uma

pequena narrativa construída com imagens selecionadas, manipuladas e

dispostas segundo critérios que estão relacionados igualmente com os modos

de apropriação daquele fã. Por serem maiores, são feitos para serem usados

nos desktops. São muito apreciados e cobiçados. É difícil fazer um wallpaper

bonito e geralmente quem sabe fazê-los é objeto de admiração.

Ao contrário dos demais objetos que podem ser usados de várias formas

e substituídos por outros,22 os vídeos e as fics são feitos para o puro deleite

dos fãs, objetivando, portanto, a troca e o compartilhamento para futuros

comentários e discussões. Os videos, como já disse, são montagens feitas com

trechos ou sequências dos próprios episódios que, após serem baixados da

internet, tornam-se matéria prima para vários tipos de manipulação. Depois de

feitos, esses vídeos podem ser hospedados em vários sites, entre eles, o

próprio Youtube para apreciação e comentário dos demais fãs.

As fics merecem um destaque especial. Por se tratarem de narrativas

escritas e muitas vezes extensas, elas têm uma existência paralela à série. As

fics são histórias que os fãs escrevem usando as personagens e situações

originais de uma série. Nos EUA, elas já são um fenômeno bastante comum e

muito difundido entre os fãs, conforme se pode depreender na citação abaixo:

…For our purposes, fan fiction is a community of writers writing

compulsively about characters that they admire-everybody from

singers like John Mayer to science fiction heroes like Doctor Who to

addictive television shows like Lost. Just looking at these three sites,

you can see the love and obsessiveness that goes into these

22 Os fãs costumam variar de icons, banners e wallpapers. A cada dia ou semana, podem se

apresentar com objetos diferentes sobre a mesma série.

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stories. These people are writing a story for a tough audience, and

they created bustling writing communities in the process.

Web writers like us are CRAZY if we don't think fan fiction and fan

fiction communities matter. It's time to start paying attention...23

...Para nossos propósitos, fan fiction é uma comunidade de escritores

escrevendo compulsivamente sobre personagens que todos admiram,

desde cantores como John Mayer, a ficção científica como Doctor

Who, a séries televisivas viciantes como Lost. Olhando para estes

três sites você pode ver o amor e a obsessão que existe nessas

histórias. Estas pessoas estão escrevendo para uma audiência

robusta... Escritores de web como nós são loucos. Se você não pensa

em fan fictions é bom prestar atenção.

Apesar de todo esse processo de singularização que ocorre, é

importante destacar que nenhum destes objetos tem sentido, se for usufruído

apenas privada e individualmente. Eles só se justificam, se forem

compartilhados entre o grupo de fãs daquela série.

CSI destaca-se entre as séries atuais pela grande produção iconográfica

que estimula e promove entre os fãs. Isso talvez se explique pelo fato de ser

transmitida para cerca de 200 países, além dos EUA, e já se encontrar na

sétima temporada com sucesso absoluto de audiência no primetime da CBS.

São muitos os fansites dedicados à série, em vários idiomas, e em todos eles é

possível ter acesso a uma grande quantidade de objetos e materiais visuais e

narrativos produzidos pelos fãs.

• Narrativas: seqüencialidade e processualidade:

23 http://www.thepublishingspot.com/fan_fiction/. É importante ressaltar que as fanfics não se

referem apenas a produtos culturais, como filmes, séries ou livros ou mesmo a personagens,

artistas ou celebridades. O fenômeno vem se estendendo a um conjunto cada vez maior de

itens, inclusive produtos como carros, grifes etc.

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Diante de toda essa variedade de formas de recepção e consumo que

as séries promovem, evidentemente, em um determinado momento passei a

me perguntar o que permite e facilita esse modo de apropriação? Acostumada

com as formas de recepção instauradas pelas telenovelas, mais controladas

pelas próprias empresas de comunicação e emissoras de TV, sabia que elas

não promovem essas formas de recepção com toda essa variedade

intervenções, profusão de imagens, narrativas escritas e objetos relacionados.

No caso das telenovelas, a participação dos consumidores é um fenômeno que

ocorre quase que exclusivamente no plano da oralidade, portanto, ao contrário

das séries, se realiza na presencialidade, como tema de conversação, de

sociabilidade, discussões do dia-a-dia, comentários os mais diversos.

Já no caso das séries, há um constante estímulo à produção de

imagens e narrativas paralelas aos episódios o que impulsiona a circulação dos

mesmos, e acaba por levar ao consumo voraz destas intervenções – caso das

fics, por exemplo – que chega a ser tão intenso quanto o dos próprios

episódios.

A resposta inequívoca, no entanto, me foi dada pelos próprios fãs

informantes em um tópico de discussão intitulado “processual versus

seqüencial”. O tópico havia sido introduzido por um fã que postara uma matéria

traduzida, que citava um dos criadores e produtores de CSI, Anthony Zuiker,

comentando o sucesso da série:

Nós simplesmente não queremos algemar os telespectadores nas

suas televisões de semana em semana, disse ele. Nós queremos

fazer uma ótima televisão, ganhar a confiança dos telespectadores e

saudá-los novamente 24 vezes ao ano. O que funciona melhor para

CSI e várias séries processuais hoje são os episódios “únicos” com

lampejos seriais das vidas dos personagens. Isso diminui a pressão

do telespectador para sintonizar a cada semana, ainda que encoraje

os telespectadores leais a verem pelos toques seqüenciais das vidas

dos personagens.

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Nós preferimos ter você assistindo a 20 ou 24 (episódios) do que

perder dois episódios na seqüência e deixar de assistir para sempre.

Rick Kushman, crítico de TV do Sacramento Bee, diz que séries

processuais são mais cômodas, mas que as seqüenciais permitem

um roteiro melhor e tendem a ser as séries que mais atraem a

atenção dos telespectadores. As seqüenciais permitem aos roteiristas

escreverem histórias melhores. Elas oferecem o tamanho e a

profundidade de uma novela.

As seqüenciais abrem todos os tipos de porta, continuou ele. Os

enredos podem se revirar, se partir, e então se acelerar. Os mistérios

podem se expandir e se aventurar em um território novo, inesperado,

como portais. Os personagens podem crescer, se adaptar,

lentamente fluindo em todas as suas complexidades, ou apanharem –

descansem em paz metade dos personagens de 24 horas.

A discussão que acompanhou a matéria me mostrou que para os meus

fãs, as lacunas das narrativas processuais, como CSI, na medida que os

forçava a pensar, os estimulavam a fazer suas intervenções, especialmente

escreverem suas fics. Quanto mais processualidade, mais lacunas, quanto

mais lacunas, mais interpretação ou mesmo ruminação e, em seguida, mais

narrativas (fics) e imagens.

Isto se aplica maravilhosamente bem ao caso de CSI e Lost, por se

tratarem de séries focadas em alguns aspectos da vida das personagens

somente: no caso de CSI, no trabalho e na vida profissional das personagens;

no caso de Lost, os problemas que a vida em comum impõem às personagens

que estão vivendo na ilha após a queda do avião. Nesse caso, as lacunas de

CSI dizem respeito à vida pessoal delas, sobretudo, às relações afetivas, ou

seja, ao romance, enquanto em Lost dizem respeito ao passado, à vida

pregressa das personagens antes do vôo, da mesma forma que se referem à

misteriosa ilha onde se encontram. É interessante observar que tanto os fãs

americanos como os brasileiros – mesmo aqueles que são mais críticos em

relação às telenovelas pelo excesso de romance – em sua grande maioria

estão bastante interessados em saber sobre os relacionamentos e as vidas

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pessoais das personagens. Quando questionados sobre esse paradoxo,

admitiram que no Brasil romance e amor fazem parte da vida.

De qualquer modo, cabe ressaltar que, no presente momento, as duas

séries de maior sucesso nos EUA são Grey’s Anatomy, uma série seqüencial, e

CSI, uma série processual. Depois de duas temporadas, no final da passada,

os produtores de Grey’s e os executivos da ABC decidiram transmiti-la no

mesmo dia e horário de CSI. Há claramente a busca de um enfrentamento pela

conquista da liderança no horário, o que poderá acarretar algumas mudanças

em ambas as séries. Em relação a CSI, estas mudanças já se fazem sentir.

Ainda no final da sexta temporada, em maio próximo passado, os produtores,

sabendo da existência das fics, decidiram inspirar-se nelas e brindaram os fãs

da série com o romance entre Gil Grissom e Sara Sidle. Esta reviravolta foi

suficiente para criar um enorme rebuliço entre os fãs da série em todo o

mundo.

Conclusão:

As conclusões não são definitivas e os desdobramentos da pesquisa

podem ser vários. De imediato, a pesquisa sugere uma continuidade em

relação ao tema da vida digital ou da “segunda vida”. Um grande número de

informantes e fãs de séries americanas, especialmente aqueles que praticam a

forma de intermidialidade investigada, possui uma vida digital e não se limita

apenas a participar dos fansites das séries. Assim sendo, uma das conclusões

deste trabalho é quanto à fronteira ou diferenças entre as identidades de

“nativos” e “usuários” da internet. De um modo geral, a pesquisa mostrou que a

construção de uma identidade “nativa” não se caracteriza somente pela

quantidade de tempo que se permanece conectado à internet, mas,

fundamentalmente, pela existência de uma agenda virtual, o que implica um

conjunto de pertencimentos a diversos sites, engajando-se neles através de

atividades, compromissos e mantendo relacionamentos. Ao mesmo tempo, é

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entre os nativos que se percebe uma forte tendência para uma naturalização

maior em relação ao ambiente virtual, enfim, o estabelecimento de um

entendimento tácito de que a rede, se não é a própria realidade, é parte

fundamental dela. Para essas pessoas, estar conectado é fazer parte desta

realidade, fundamentalmente entendida como um complexo sistema de redes

de trocas.

Nesses termos, existir é estar conectado e pertencer a estas redes de

troca, participando com a troca tanto de informações e dados, quanto de

afetos, emoções e experiências, traduzidas em narrativas e objetos (virtuais),

enfim, conteúdos simbólicos altamente valorizados. Na base destas trocas,

encontram-se a escrita e a imagem (o audiovisual).

Nesse sentido, a pesquisa apresenta um outro desdobramento

interessante em termos de investigação, qual seja, os modos de reinvenção e

de ressignificação da escrita e da própria imagem na internet, que não servem

apenas para apresentar, dizer, narrar ou representar algo. Como mostrei no

item anterior, a distinção entre imagem e ídolo, no contexto estudado,

aparecem fundamentalmente para marcar as segundas como atos

performativos, por meio dos quais os sujeitos se transformam e desempenham

suas múltiplas identidades na rede, além de garantirem a proximidade com o

que buscam. Mas, afinal, o que se busca?

Em meio a tudo o que se busca na internet, o que mais me chamou a

atenção é o que denominarei – na ausência de uma categoria mais precisa no

momento – de autogozo, ou seja, poder estar consigo mesmo e usufruir de si

próprio sem limitações ou restrições, por meio dos vários recursos, estímulos e

possibilidades que a rede disponibiliza, a começar pela multiplicidade de

identidades e papéis que ela permite. Poder dar vazão a áreas ou mesmo

aspectos pessoais que muitas vezes a vida real e as relações face a face não

permitem. Evidentemente, que estamos tocando numa questão controvertida e

bastante problemática, uma vez que muitas dessas áreas ou zonas misteriosas

das pessoas podem ser consideradas sombrias. Entretanto, o fato é que elas

existem e a rede favorece esse contato ou essa relação consigo mesmo e isso

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vem se tornando inevitável, irreversível, ao mesmo tempo que fascinante. Ao

mesmo tempo, estar consigo mesmo, não exclui o contato freqüente com "os

outros", o que significa poder cultivar diferentes pertencimentos e filiações a

grupos eletivos os mais variados. Na verdade, este é de longe o maior prazer

que a rede proporciona aos seus nativos e é o que os distingue

fundamentalmente dos usuários, a saber, ter uma relação menos instrumental

com a rede e, assim, experimentarem, para seu próprio gozo, as inúmeras

experiências que uma tela de computador oferece, um pouco como Alice no

país das maravilhas, tendo a seu dispor milhões de mundos e realidades a

serem exploraradas. A vida virtual está situada entre o devaneio, o sonho e a

vida real, com uma pitada de ficção (novela, romance etc) e ficção científica.

Ela não é apenas sonho, fantasia, tem sua dose de realidade, mas também

não é sinônimo de vida real no sentido tradicional do termo. Por não apresentar

a mesma materialidade ou se submeter as mesmas restrições que o corpo, a

corporalidade impõe, ela permite às pessoas terem o que elas próprias

denominam de "vidas paralelas", "segunda vida" ou viverem em "mundos

alternativos". Não é preciso dizer que estamos às voltas com velhas utopias –

vidas paralelas, mundos paralelos e realidades alternativas. O que muda em

relação às discussões filosóficas e literárias sobre o tema, é que de alguma

forma elas se provaram possíveis, não apenas para um número reduzido de

pessoas, mas para um número cada vez maior delas.

Enquanto para os usuários, a internet é percebida como um meio, uma

ferramenta de trabalho ou de comunicação para fins muito objetivos (trabalho,

estudo) e instrumentais, para os nativos, a internet passa a ser um fim em si

mesma. Estar conectado é, em suma, poder estar consigo mesmo, é poder

viver uma outra forma de existência, que implica poder explorar e fruir todas as

facetas de um “eu” que se percebe como sendo cada vez mais multifacetado.

Em relação ao consumo, a pesquisa colocou-me diante de uma outra

mudança importante, a saber, a grande valorização dos objetos imateriais

juntamente com uma ideologia de distanciamento do mundo, entenda-se o

mundo material. Associada a crenças espirituais renovadas pela contracultura,

pelos movimentos sociais e culturais alternativos da nova era, esta valorização

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e busca da imaterialidade apresentam-se expressamente como uma crítica ao

que essas pessoas consideram como um excessivo materialismo, pragmatismo

e consumismo da vida real contemporânea que, segundo elas, vêm causando

grandes malefícios ao planeta e aos seres humanos, tais como poluição,

destruição dos recursos naturais etc. Nesses termos, a opção por uma

segunda vida pode assumir também significados semelhantes às formas de

renúncia, de afastamento e distanciamento inteligente do mundo,

especialmente em relação àquilo que consideram pernicioso e decadente nele

e que o tornam cada vez mais inseguro e perigoso.

De fato, analisando esse ideal de distanciamento do mundo levado a

efeito por muitos nativos e que muitas vezes tem implicações com a própria

corporalidade, com o contato presencial, cheguei à conclusão de que ele

possui alguns pontos de contato com o sentimento de renúncia observado em

ordens religiosas estudadas pelos historiadores do período medieval, quando a

vida monástica foi instituída: a utopia do claustro ou da retirada para um plano

de vida considerado superior e acima das questões prosaicas deste mundo. A

esse respeito, cumpre lembrar o livro de Georges Duby, As três ordens do

Imaginário Feudal (1982). Neste livro, Duby, retomando a teoria de George

Dumezil, chama a atenção para o fenômeno da tripartição e de como ele foi

concebido como um modelo de ordem social na França.

Não se trata de estabelecer, neste momento, semelhanças ou paralelos

entre o imaginário medieval e o contemporâneo, mas colocar em evidência que

a ideologia tripartite está presente e pode estar sendo novamente reeditada. É

algo que precisa ser mais investigado, mas diante de alguns depoimentos que

me foram fornecidos pelos meus informantes, é quase impossível não fazer

esta relação. De fato, muitos informantes que cultivam uma segunda vida

possuem pontos em comum que os aproximam dessa concepção de ordem

social e da vida monástica, a saber: a busca de um distanciamento inteligente

do mundo, em que o mosteiro medieval é substituído pelos grupos e

comunidades virtuais, a tecnologia e a incorporalidade; a imaterialidade que ela

proporciona – estar em vários lugares ao mesmo tempo e não estar

exatamente em lugar nenhum –, ou seja, uma busca de transcendência por

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meio de um tipo de atividade ligada ao conhecimento, à pesquisa, à leitura, à

reflexão; uma certa reclusão e imobilismo espacial em relação ao entorno, mas

que, ao mesmo tempo, possui muito contato com o mundo extralocal, pelas

trocas de informação e conhecimento.

Poder-se-ia dizer, então, que, em seus desdobramentos tecnológicos e

sociais, a rede tem possibilitado a construção de um tipo de imaginário que

pode conduzir a essa aproximação com a ideologia das três ordens, o que

explicaria, em parte, a permanência do uso do termo “comunidade”. A

insistência em se utilizar esta expressão em detrimento de outras categorias

reafirma que a noção de “comunidade imaginada” ou utópica e, nesse sentido,

a noção de “comunidade virtual”, refere-se a um lugar aconchegante, cálido e

seguro, organizado de acordo com uma determinada lógica e tecnologia que

permite partilhar formas de experiências bastante singularizadas e particulares,

de modo semelhante ao que ocorria nos monastérios e nos mosteiros em meio

às turbulências do mundo medieval.

Finalmente, diante do quadro apresentado, é possível dizer que as

mudanças no comportamento de mídia não refletem transformações

localizadas ou identificáveis apenas para este segmento do consumo. As

mudanças tratadas neste relatório apontam para uma significativa

transformação em relação ao consumo em geral, a começar com a posição

assumida pelo consumidor. De acordo com a investigação realizada, este se

coloca inteiramente como o centro e o sujeito normativo de todas as ações de

consumo. Não é mais o mercado que decide ou decidirá aquilo que o

consumidor deseja. De qualquer maneira, para não correr o risco de fazer

inferências apressadas, seguem algumas das mudanças constatadas

empiricamente:

1) A desmaterialização: não se trata apenas da desmaterialização do

produto, a substituição por bens imateriais, mas a desmaterialização do próprio

processo de compra e venda. Como chamou atenção Kellen Cristina Bogo

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(2000)24, trata-se da substituição do movimento e contato físico por

informações e contatos virtuais. Entretanto, essa mudança vem afetando a

idéia mesma de produto e de compra, conseqüentemente de consumo.

Estamos diante de uma perspectiva cada vez mais construtivista e sígnica do

consumo, ou seja, a consciência de que ele é uma relação entre coisas

(referentes) e conteúdos (conceitos) e que não se consome apenas o referente,

mas fundamentalmente os conteúdos a ele associados. Essa perspectiva

sígnica do consumo e da própria realidade virtual se tornou senso comum na

internet para qualquer usuário.

O que a pesquisa demonstra claramente é que esta tarefa – escolher os

conteúdos e fazer as associações – cuja iniciativa maior era do marketing e da

publicidade feita com ênfase nos interesses corporativos, vem sendo realizada

pelo consumidor que tomou a frente neste processo, através das diferentes

formas de manipulação da informação, inclusive a manipulação visual relativa

às imagens dos produtos e marcas. O uso de imagens de produtos e de

marcas nos conteúdos ficcionais – videos, fanfics e outras formas de narrativas,

só vem corroborar esse processo de apropriação.

Seja ele lícito ou não, de direito ou não, o fato é que uma das

experiências mais gratificantes que a intermidialidade tem proporcionado aos

seus praticantes é essa possibilidade de transferir, deslocar e substituir os

significados e conteúdos corporativos ou estabelecidos pelos agentes do

mercado, por conteúdos próprios de interesse daquele grupo ou pessoa. Essa

forma de singularizar o produto, customizá-lo aqui e agora, incessantemente, é

um fato novo. Ela é possível graças a essa desmaterialização da compra que

levou a outra mudança, segundo Bogo.

2) Desintermediação: segundo Bogo, a desmaterialização levou à

desintermediação que é a eliminação dos intermediários na cadeia de venda do

produto. Uma das consequências do consumo virtual é exatamente a abolição

24 Ver artigo em http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=11&rv=Vivencia

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da figura do vendedor e de sua retórica muitas vezes circunscrita a lógica

comercial. Comprando na internet, o consumidor conquista uma outra

autonomia, seja para escolher, selecionar ou mesmo escolher outros

intermediários para ajudá-lo no processo de decisão da compra. Essa

autonomia inclui também formas de apropriação antecipadas e imaginárias do

bem, tais como baixar informações extras sobre o produto, visitar páginas que

contenham mais informações ou conteúdos que podem ser associados a eles.

Por exemplo, se estou interessada em adquirir uma câmera digital posso entrar

numa comunidade que discute sobre o assunto exaustivamente, mas que não

vende as câmeras. As pessoas podem me instruir ou me dar informações

detalhadas a respeito, exatamente porque são consumidores e usuárias daquele

produto, não vendedores. Além disso, posso visitar sites de fotógrafos ou

videomakers para ver o resultado de seu trabalho realizado com determinado

modelo ou marca de câmera. O próprio fotógrafo, usuário e consumidor, me

orienta a fazer isso. Esse fato remete a uma terceira mudança importante,

também apontada por Bogo.

3) Grupos de afinidades: a desmaterialização e a desintermediação por

abolirem os aspectos referenciais (materiais) das coisas e reforçarem os

vínculos simbólicos e conceituais do consumo acaba levando o consumidor a

estabelecer de forma mais consciente e intelectual seus grupos de afinidades

em termos de consumo e experiências de consumo. Embora esse totemismo

como procedimento classificatório e racional tenha sempre existido, no sentido

do consumidor selecionar e escolher produtos e serviços que possuem

similiaridades entre si e consigo, nesse contexto, ele tornou-se um processo

altamente consciente e, portanto, mais passível de ser elaborado, manipulado,

ou mesmo, construído. Mais uma vez, um exemplo desse processo pode ser

observado nas fanfics, onde novas similaridades e associações entre seres,

coisas e conteúdos podem ser buscadas e construídas independentemente dos

canais de compra. Não se trata de fazer algo totalmente arbitrário, já que as

fanfics terão de contar com a aprovação do público em questão. Mas o

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importante é que elas sejam feitas e a aprovação será um sinal importante para

que novas associações sejam feitas. Na série CSI, os carros usados pelos

peritos são da marca Denali, mas muitas fanfics apresentam e introduzem

outras marcas. Da mesma forma, a personagem pode estar vestindo uma grife

completamente diferente do que aparece na série real e consumir coisas que

sequer aparecem na série. O fato é que essas escolhas obedecem a critérios de

associações e similaridades que não tem nada a ver com os interesses ficcionais

e corporativos dos produtores da série em questão. O consumidor joga para o

alto essas associações e coloca outras no seu lugar.

Finalmente, as compras por afinidade sugere ainda uma outra mudança

importante: grupos e comunidades virtuais passam a ser referências para

outros consumidores, porque passam a ser vistas intencionalmente como early

adopters em relação a determinados segmentos ou nichos de produtos. Assim

sendo, quando uma pessoa quer saber das novidades sobre aquele segmento,

em vez de ela ir ao shopping ou mesmo buscar o mercado, ela vai visitar uma

comunidade virtual ou um fórum e conversar diretamente com quem ela pensa

ser o seu melhor conselheiro a respeito.

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