Upload
truongcong
View
220
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
Introduo Cidadania, sustentabilidade e crise global do ambiente: o
estado da arte
1. Apresentao do tema da Dissertao, objectivos e estado da arte
As implicaes globais da crise ambiental contempornea nas esferas social e poltica
nas ltimas trs dcadas trouxeram novos desafios conceptuais s cincias sociais e
humanas, nomeadamente filosofia e teoria poltica.
Dada a relevncia que assumem as questes ambientais nas agendas polticas
nacionais e internacionais, uma das grandes tarefas da filosofia do ambiente e da
filosofia poltica bem como da cincia poltica do nosso tempo, no que diz respeito a
uma teoria da cidadania, a procura e elaborao de um territrio conceptual que
tenha em conta a relao entre cidadania, ambiente e sustentabilidade ou como
afirma Angel Valencia Saz, um dos autores pioneiros neste campo, determinar a
possibilidade de encontrar um equilbrio entre a reivindicao de direitos ambientais
e a ideia de responsabilidade colectiva1.
Apesar de a relao entre cidadania, ambiente e sustentabilidade sensu stricto ser uma
rea de investigao relativamente recente, iniciada pela teoria social e pela cincia
poltica anglo-saxnica na dcada de 1990 no seguimento do ressurgir do interesse
pelo estudo das questes da cidadania em geral, podemos elencar algumas das
contribuies para o tema em dois ngulos distintos de teorizao:
- Uma perspectiva que, partindo do breve, mas clssico e influente, texto do socilogo
britnico, T. H. Marshall, sobre a cidadania, Citizenship and Social Class (1950),
centra-se na elaborao conceptual da relao entre cidadania e ambiente
privilegiando, sobretudo, um enfoque na esfera dos direitos cvicos, semelhana da
posio adoptada por Marshall. este o caso de autores como Bart Van Steenbergen e
Howard Newby, como teremos oportunidade de analisar;
- Uma outra perspectiva que se demarca da elaborao histrica das etapas da
cidadania efectuada por Marshall e apresenta a relao entre cidadania e ambiente
1 Angel Valencia Saz, Ciudadania Ecologica: una nocin subversiva dentro de una poltica global in M. Alcantara (ed.): Poltica en Amrica Latina. I Congreso Americano de Ciencia Poltica, p. 281.
2
dando um enfse especial esfera dos deveres ecolgicos e da responsabilidade para
com as geraes futuras e com formas de vida no humanas, como so os casos de
Mark Smith, Pete Christoff e John Barry.
No obstante o mrito que estas primeiras contribuies tiveram no desbravar de um
territrio intelectual at ento no trilhado e de contriburem para a ampliao do
debate em torno das questes ambientais, devemos, no entanto, ao cientista poltico
britnico, Andrew Dobson, a mais original e completa teorizao no que diz respeito
construo de um conceito cidadania ecolgica, nomeadamente em trabalhos como o
artigo Ecological Citizenship: A Disruptive Influence (2000), mas, sobretudo, a obra
Citizenship and the Environment (2003), espao que Dobson dedica plenamente ao
desenvolvimento dos seus argumentos nesta matria com mais acuidade e detalhe.
Filiando-se indubitavelmente, na perspectiva da segunda vaga de autores que
referimos acima, o panorama que Dobson nos oferece em termos da relao entre
cidadania, ambiente e sustentabilidade encontra-se, infelizmente, reduzido a uma
espcie de narrativa materialista de produo consumo e troca de recursos naturais.
Sem querermos adiantar muito neste momento, at porque a concepo de Dobson
ser alvo de uma detalhada anlise ao longo desta Dissertao, podemos, no entanto,
afirmar que a sua noo de cidadania ecolgica defende uma abordagem cvica
essencialmente centrada na esfera dos deveres ou, como o prprio afirma, em
comunidades de obrigao, sendo a cidadania ecolgica na sua ptica construda com
base num processo no recproco entre o hemisfrio norte e o emergente hemisfrio
sul do globo.
Nesta Dissertao pretendemos ir bem para l da perspectiva dos autores j citados e
propomo-nos a pensar a cidadania no apenas sob o hipottico prisma do conflito
entre direitos e deveres - at porque a noo de cidadania ambiental que
procuraremos desenvolver postula uma relao de equilbrio entre ambos - e dos
limites disciplinares da cincia e da teoria poltica, mas sim abordar o tema sob um
ngulo conceptual incomparavelmente mais amplo.
3
O principal objectivo desta Dissertao pensar a cidadania e a sustentabilidade do
ponto de vista da complexidade da crise ambiental contempornea, algo que,
estamos em crer, no foi logrados pelos autores que mencionmos e que essencial
para compreender a relao entre cidadania e ambiente.
Assim, num primeiro momento, pretendemos argumentar que, em face da
complexidade das questes envolvidas na crise ambiental global, a noo de cidadania
ecolgica desenvolvida nomeadamente por Dobson, mas tambm por outros autores,
assume um carcter extremamente redutor devido ausncia de uma perspectiva
mais ampla dos seus argumentos no que diz respeito a questes-chave da relao
entre cidadania, ambiente e sustentabilidade.
Num segundo momento, partimos da crise ambiental contempornea como eixo axial
de uma profunda crise civilizacional na contemporaneidade e pretendemos construir
as coordenadas territoriais tericas de uma noo mais ampla de cidadania ambiental
do que at aqui tem sido feito: como possibilidade de construir um novo
enquadramento cvico regulador da relao entre o ser humano e o meio natural.
No pretendemos substituir uma perspectiva antropocntrica por um enfoque
ecocntrico na relao homem/natureza, como fazem alguns autores e correntes de
pensamento da tica ambiental, ou de formular uma viso contratualista ecocntrica
de um hipottico contrato natural para substituir o nosso contrato social na linha de
alguns dos argumentos sustentados, sobretudo, pela ecologia profunda.
Trata-se de, em face da complexidade da crise ambiental contempornea, tomar o
conceito de ambiente como categoria ontolgica fundamental no s para a nossa
sobrevivncia no planeta, mas tambm para a sobrevivncia das formas de vida no
humanas, e repensar as bases do contratualismo moderno atravs da possibilidade de
ampliao do contrato social, enquanto metfora para a gnese das relaes sociais e
polticas humanas, a um Contrato Ambio-Social que contemple as condies do
mundo e dos recursos naturais, do equilbrio ecolgico dos ecossistemas planetrios
ameaados pelas aces tecnocientficas antropognicas e a preocupao para com as
geraes futuras nos limites de um realismo antropocntrico moderado e
responsvel.
4
Por outras palavras, esta Dissertao pretende levar a cabo a tarefa de pensar uma
noo de cidadania ambiental de cariz antropocntrico, isto , na perspectiva dos
direitos ambientais como extenso dos direitos humanos encarados como deveres
para com as geraes futuras e para com o mundo natural, alargando nesse sentido as
bases do contratualismo moderno realidade planetria contempornea.
Recusando a tnica dos discursos quase apocalpticos ou de pedagogias do temor que
muitas vezes surgem associados aos cenrios dos impactos futuros dos problemas
ambientais (nomeadamente no que diz respeito s alteraes climticas) e que, alm
de constiturem uma possvel parlise da aco cvica, como o tentaremos demonstrar,
podem tornar-se ineficazes no intento de comprometer de forma efectiva o indivduo
como uma parte activa e indispensvel na resoluo das questes ligadas ao ambiente,
pretendemos sublinhar igualmente o momento histrico nico que representa a crise
ambiental contempornea e os titnicos desafios que coloca cidadania e
sustentabilidade:
- O de nos incitar a procurar uma noo de cidadania ambiental que, tendo o ambiente
como condio ontolgica da nossa sobrevivncia, promova a reviso do nosso
contrato social com base na reivindicao de modelos polticos baseados na equidade
social e de paradigmas econmicos e tecnocientficos operando dentro das fronteiras
da sustentabilidade planetria, bem como que reflicta a responsabilidade cvica
perante a preservao do mundo natural e o cuidado com as geraes futuras e
formas de vida no-humanas;
- A possibilidade de enriquecer o clssico tringulo conceptual da sustentabilidade
(social, econmico e ambiental), enfocando-a numa perspectiva mais lata como um
possvel mito de mobilizao da sociedade civil face aos desafios ambientais
contemporneos na perspectiva de uma antropologia da esperana e de uma utopia
concreta, cujas ferramentas de pensamento crtico aos paradigmas estabelecidos nos
permitam o rduo, exigente e, igualmente, estimulante exerccio de divisar futuros
modelos sociopolticos alternativos, equitativos e sustentveis. Este argumento
constitui o terceiro momento fundamental desta Dissertao.
5
2. Estrutura temtica dos captulos
Feita que est a apresentao geral das principais linhas temticas da nossa
investigao, consideremos agora mais em detalhe o itinerrio que vamos percorrer ao
longo dos prximos doze captulos.
Antes de nos acercarmos relao entre cidadania e sustentabilidade luz da crise
ambiental contempornea, comeamos por fazer uma incurso histrica, na qual
pretendemos surpreender as etapas mais marcantes do percurso empreendido pelo
conceito de cidadania. esse o objectivo dos captulos 1 e 2, onde pretendemos dar
conta dos momentos-chave histricos cruciais para o desenvolvimento do conceito:
Esparta e Atenas do sculo V a.C., na Grcia Antiga, e as Revolues Inglesa, Americana
e Francesa dos sculos XVII e XVIII.
O captulo 3 aborda a cidadania na contemporaneidade e pretende oferecer uma viso
panormica dos seus principais problemas: desde o renascimento acadmico
cidadania no ps-guerra atravs do clssico texto de Marshall e dos principais autores
que tratam o tema desde a dcada de 1990 at complexidade que representa a
interaco da cidadania com as novas ferramentas de comunicao digital neste incio
de sculo.
Com o captulo 4 entramos propriamente nos temas de fundo desta Dissertao, ao
analisarmos com detalhe a concepo de cidadania ecolgica de Andrew Dobson e de
outros autores e aos expormos as suas insuficincias tericas face representao da
complexidade da crise global do ambiente.
O repensar das bases do contratualismo moderno feito nos captulos 5 e 6, partindo
da natureza na sociedade e na histria como premissas fundamentais para a
possibilidade da sua ampliao a um Contrato Ambio-Social e para a elaborao da
nossa concepo de cidadania ambiental, pensada do ponto de vista da crise
ambiental global.
A procura de novos paradigmas econmicos e tecnocientficos operando dentro das
fronteiras da sustentabilidade planetria como reivindicao do Contrato Ambio-Social
e da cidadania ambiental o tema dos captulos 7, 8 e 9, nos quais abordamos
6
detalhadamente algumas propostas alternativas aos modelos tecnocientfico e
econmicos dominantes.
O captulo 10 confronta-se com os grandes desafios presentes e futuros que a crise do
ambiente imps nossa contemporaneidade e pretende sustentar que, do ponto de
vista da cidadania ambiental, o temor como apresentado por Hans Jonas em o
Princpio de Responsabilidade assim como a transio argumentativa da sua tica
ambiental para um plano de prtica poltica, pode representar uma parlise cvica no
que diz respeito tarefa de comprometer os indivduos nas tarefas da
sustentabilidade.
O captulo 11 pretende pensar a sustentabilidade na ptica do Contrato Ambio-Social e
do conceito de cidadania ambiental estabelecido nos captulos anteriores e alargar o
seu eixo conceptual a um pilar cultural e antropolgico. Formulamos a
sustentabilidade na acepo do que designamos como uma antropologia da
esperana, isto , como possvel mito mobilizador da sociedade civil neste sculo, o
qual no ser concretizvel sem algumas das ferramentas de pensamento crtico que
nos so oferecidas pelo pensamento utpico.
O captulo 12 que encerra a nossa investigao aborda os movimentos ambientais e
sociais na ptica da sustentabilidade como antropologia da esperana e termina por
concluir que a primeira s poder constituir um efectivo mito mobilizador da
sociedade civil na perspectiva da cidadania ambiental se for recuperado para os
movimentos sociais na contemporaneidade o que designamos como o esprito de
68, certas caractersticas que nos foram legadas pelo activismo da dcada de 1960, ou
seja, a ideia de que um outro mundo possvel, de que existem outras alternativas
sociopolticas e socioeconmicas capazes de se oporem aos paradigmas dominantes e
insustentveis.
7
3. A natureza interdisciplinar da Dissertao
Antes de encerrarmos esta Introduo devemos ainda tecer algumas consideraes
sobre outro aspecto importante desta Dissertao. A tarefa a que nos propusemos,
isto , pensar a cidadania e a sustentabilidade do ponto de vista da complexidade da
crise ambiental, longe de constituir a derradeira palavra sobre o tema ou de o esgotar,
pretende sublinhar a natureza especfica da cidadania ambiental e, sobretudo, chamar
ateno para a sua complexidade.
Da, ao longo das pginas que se seguem, insistirmos com uma certa frequncia na
falta de amplitude analtica com que os autores que nos precedem abordaram o tema.
Contrariamente a outros domnios tericos da cidadania, uma concepo de cidadania
que pretenda partir da crise global do ambiente para o seu horizonte de reflexo ser,
ela prpria, igualmente complexa e ter de se haver com problemas que nunca lhe
foram colocados anteriormente.
Mas no s. Alm de complexa, a cidadania ambiental no se pode eximir ao dilogo
interdisciplinar, caracterstico de quem se dedica s questes ambientais. Mais do que
qualquer outro domnio ou rea de saber, o ambiente e a sustentabilidade,
independentemente do seu prisma de anlise, convocam a um dilogo aberto e
riqussimo (embora nem sempre frutfero por fora da compartimentao quase
hermtica ainda existente entre reas de saber), em que a diversidade de perspectivas
presentes fulcral para a obteno de uma viso de conjunto.
, sobretudo, para esse aspecto interdisciplinar que pretendemos alertar. Mais do que
uma investigao especializada e encerrada nos limites de uma dada rea de
conhecimento, esta Dissertao, atravs do rumo temtico que procurou empreender,
constitui uma viso de conjunto e um dilogo cruzado, por vezes panormico, de
diversas disciplinas, de diversos autores e de diversas leituras.
A isto no tambm alheio a prpria natureza interdisciplinar do Programa Doutoral
de Alteraes Climticas e Polticas de Desenvolvimento Sustentvel, cuja frequncia
da parte curricular no ano lectivo de 2010/2011 possibilitou e influenciou, de alguma
forma, as pginas que se seguem.
8
Assim, so mltiplas as Ariadnes que nos guiaram por este labirinto e que nos
ajudaram a sair dele. Estando cientes de que uma linha de anlise to abrangente
quanto possvel pode comportar diversos riscos, eventualmente alguma perda de
profundidade analtica em determinados aspectos, cremos, no entanto, que s desta
forma poderamos concluir com xito, pelo menos assim o esperamos, a tarefa que
pretendemos levar a cabo. Caso contrrio, a no faz-lo, teramos incorrido no erro
que apontmos a outros autores que se debruaram sobre o tema.
A este respeito, e para terminar, reclamamos como inteiramente nossas as palavras de
Lewis Mumford em a Histria das Utopias, que resumem de forma brilhante a
inteno, o mtodo e os objectivos que convergiram nesta Dissertao:
Havendo renunciado s recompensas, embora no ao labor, do especialista, tinha-me lanado
conscientemente na minha carreira de generalista, ou seja, algum que se interessa mais por
combinar fragmentos num padro ordenado e com significado do que por uma investigao minuciosa
dos diversos componentes ()2.
Dito isto, tempo de partirmos em busca da gnese histrica do conceito de
cidadania.
2 Lewis Mumford, Histria das Utopias, p. 13.
9
Captulo 1 Anatomia Sociopoltica de um Conceito I: cidadania na
Grcia Antiga
1. Algumas consideraes prvias em torno da histria da cidadania
Ao procurarmos aferir com um certo rigor a origem histrica do exerccio da cidadania
no dever constituir motivo de admirao se afirmarmos que, semelhana de
muitas das conquistas intelectuais logradas pelo gnero humano, no solo da Grcia
Antiga que se testemunha pela primeira vez, tanto quanto a tradio histrica nos
permite conhecer, a concretizao daquilo que poderemos denominar como um dos
primeiros momentos de maturidade poltica da histria da humanidade.
Porm, antes de indagarmos as origens histricas da cidadania, teamos algumas
consideraes prvias no que diz respeito aos nossos objectivos neste ponto. Alm de
fragmentria, por no podermos dar conta aqui de forma detalhada das diversas
etapas que constituem o desenvolvimento histrico da ideia e da prtica da cidadania3,
a nossa inteno , sobretudo, captar as suas manifestaes essenciais no plano da
histria e que constitui um dos pressupostos da noo de cidadania ambiental que
iremos procurar desenvolver como hiptese de trabalho em pginas mais avanadas
da nossa investigao.
Neste esboo histrico, mais do que uma pura descrio cronolgica, pretendemos
evidenciar uma ideia: surpreender na histria as condies sociais e polticas em que
a cidadania representou um desbravar, obviamente no concretizado luz de uma
marcha progressiva como a prpria histria testemunha, do caminho para a
democracia4. Como teremos oportunidade de observar quando abordamos a
construo terica de uma noo de cidadania ambiental, defendemos que a
democracia um requisito indispensvel para o pleno exerccio da condio cvica.
3 Para esse efeito recomendamos os estudos de Paul Magnette, Citizenship, The History of an Idea (2005), de Derek Heater, A Brief History of Citizenship (2004) e tambm de Jaime e Carla Pinsky, Histria da Cidadania (2003). 4 O argumento que subjaz ao longo das pginas desta tentativa de apreenso histrica do nosso objecto de investigao de que, apenas numa estrutura poltica de cariz democrtico no obstante as suas imensas lacunas e fragilidades -, atravs da participao no espao pblico, o homem capaz de se expressar plenamente como ser poltico.
10
Importa-nos, por isso, esclarecer que neste regresso s origens do conceito de
cidadania, semelhana de Aristteles,
() a nossa definio de cidado , sobretudo, a do cidado num regime democrtico5.
J o afirmmos. naquele que considerado o bero espiritual do pensamento
ocidental que a construo da ideia de cidadania, o seu exerccio e a ideia de
participao poltica no s se vo forjando paulatinamente, bem como comeam a
adquirir algumas das suas caractersticas fundamentais, algumas das quais
permaneceram at contemporaneidade, num quadro de referncia poltica
desenvolvido em algumas cidades-Estado da Grcia clssica, mas que teve o seu
expoente mximo na Atenas do sculo V a.C.
Ao indagarmos as origens histricas do conceito de cidadania, aflora-se-nos uma
questo essencial e que, obviamente, no poderia deixar de ser colocada:
- O que contribuiu decisivamente para que a gnese da ideia de cidadania como a
entendemos hoje, assim como o seu exerccio, se tenha desenvolvido no mundo antigo
na Grcia e no em qualquer outro lugar?
Apesar de a resposta ser complexa e exigir um estudo aprofundado e comparado da
histria poltica da antiguidade que aqui no podemos realizar a no ser de forma
muito sucinta, podemos adiantar que a cidadania, entendida como concretizao de
certas potencialidades sociais e polticas do ser humano, isto , como o vnculo a uma
comunidade poltica em que se detentor de direitos e deveres para com a mesma6,
s poderia surgir numa fase j adiantada de consolidao do processo civilizacional no
longo caminho intelectual percorrido pela humanidade desde os seus primrdios.
Isto porque, como afirma Derek Heater:
A cidadania () exige a capacidade para uma certa abstraco e sofisticao de pensamento. Um
cidado tem de compreender que o seu papel implica estatuto, um sentido de lealdade, o cumprimento
5 Aristteles, Poltica, Livro III, 1275b5. 6 Diderot e DAlembert, na Encyclopdie (1753), no verbete dedicado a cidado, definem-no como () celui qui est membre d'une socit libre de plusieurs familles, qui partage les droits de cette socit, et qui jouit de ses franchises.
11
de deveres e a posse de direitos primeiramente no em relao a outro ser humano, mas em relao a
um conceito abstracto, o Estado7.
Aqui reside, quanto a ns, uma das peas essenciais que nos permite discernir com
um pouco mais de clareza este complexo enigma8 que continua a ser at hoje o
conceito de cidadania:
- So precisamente a capacidade de abstraco e a sofisticao de pensamento
inerentes ao esprito cultural helnico que fecundam e desenvolvem de um modo
intelectualmente refinado na antiguidade ideias que encontraram nos ltimos trs
sculos solo sagrado para a sua plena expresso: a ideia de democracia, a participao
no espao pblico, a soberania popular e a liberdade individual.
Depois destas primeiras breves consideraes introdutrias, foquemos a nossa
ateno mais detalhadamente nas condies sociais e polticas que permitiram a
gnese histrica do conceito de cidadania no mundo antigo.
7 Citizenship () requires the capacity for a certain abstraction and sophistication of thought. A citizen needs to understand that his role entails status, a sense of loyalty, the discharge of duties and the enjoyment of rights not primarily in relation to another human being, but in relation to an abstract concept, the state. Derek Heater, Citizenship The Civic Ideal in World History, Politics and Education, p. 2. A traduo das citaes ao longo de toda a Dissertao da nossa autoria, excepto onde indicado. 8 Apesar de conseguirmos abarcar de forma algo clara o que representa a cidadania para um grego clssico, convm referir que o tema se encontra longe de estar esgotado. o que sustenta Ifigenija Radulovic, no artigo intitulado, Citizenship in Ancient Greece Athens and Sparta: Terms and Sources, p. 25: The notion and problem of citizenship in ancient Greece is very complex and it continues, in different contexts, to be the object of scientific research even very recently ().
12
2. Cidadania: anatomia sociopoltica de um conceito. A Grcia Antiga dos sculos IX e
VIII a.C.
Apesar de a ideia de cidadania, bem como a de democracia, serem nativas dilectas do
labor terico do horizonte intelectual grego clssico no as podemos pensar, nem
sequer viver, na contemporaneidade como foram pensadas e vividas pelos gregos9.
Comeamos por afirmar isto precisamente para tentar tornar mais claro algo que ainda
subsiste profundamente enraizado quando se procuram estabelecer analogias entre a
democracia grega e a democracia contempornea, tentando evidenciar um certo
padro de continuidade entre ambas. O que pretendemos , como tentaremos
demonstrar nas pginas que se seguem, o contrrio: demarcar as caractersticas da
cidadania grega clssica e enfatizar o seu carcter de singularidade.
Onde comea esta singularidade que cria irremediavelmente uma barreira de
significado histrico entre ns e os nossos antepassados gregos?
A primeira diferena, e tambm a mais significativa, est no modo de organizao
social e poltico legitimamente adoptado pelos gregos como sendo o que mais se
adequava s suas necessidades: a plis, isto , a cidade-Estado. absolutamente
fundamental compreender a emergncia da mesma no contexto histrico para
podermos surpreender com mais clareza a gnese do conceito de cidadania, dado que
ambos esto intrinsecamente associados.
Alm de ser impossvel reproduzir de forma absolutamente fiel o que ter sido a
cidade-Estado10 ou representar com exactido a relao de um grego para com a
mesma11, por s conseguirmos de forma indirecta conhecer a poca histrica a que
9 a tese que sustenta Norberto L. Guarinello, no artigo intitulado Cidades-Estado na Antiguidade Clssica em Jaime e Carla Pinsky (Org.), Histria da Cidadania: A cidadania nos Estados-nacionais contemporneos um fenmeno nico na Histria. No podemos falar de continuidade no mundo, de repetio de uma experincia passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporneo ao antigo. Cf., op. cit., p. 29. 10 () to difcil oferecer uma definio cabal da cidade-Estado como () definir Estado nacional. Guarinello, op. cit., p. 30. Tambm H.D.F. Kitto, eminente historiador sobre a Grcia Antiga, sustenta o mesmo ponto de vista: Sem uma noo clara do que era a plis, e do que ela significa para os Gregos, impossvel compreender devidamente a Histria Grega, o esprito grego, ou as realizaes gregas. Kitto, Os Gregos, p. 107. 11 A este respeito recomendamos a obra citada de H.D.F. Kitto, captulo 5 e o excelente estudo de Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, Livro Terceiro.
13
nos referimos, a sua dimenso territorial e densidade populacional que nos chamam
de imediato a ateno para o abismo que se interpe entre a nossa condio
contempornea e a Grcia clssica.
Para alm de se caracterizarem por uma predominncia mormente rural12, a maior
parte das cidades-Estado no ultrapassava os cerca de cinco mil habitantes, algumas
de maior dimenso tendo vinte mil habitantes, exceptuando, por exemplo, Atenas,
grande entreposto comercial, ou Esparta, cidade-Estado de cariz essencialmente
militar, que albergavam cem mil habitantes13.
Outra caracterstica que deve ser salientada sobre a estrutura das cidades-Estado a
sua diversidade e fragmentao poltica, social e cultural:
() sob o termo cidade-Estado abarcamos povos distintos, culturas diferentes, com os seus prprios
costumes, hbitos quotidianos, leis, instituies, ritmos histricos e estruturas sociais ()14.
Localizadas, sobretudo, nas margens do Mediterrneo15, as cidades-Estado emergem
numa poca de francas transformaes histricas16 a nvel social e econmico em
territrio grego, caracterizada por um perodo de crescentes migraes populacionais
e trocas comerciais17 em que o aparecimento da moeda importada da Ldia a partir de
625 a.C.18, e o posterior estabelecimento de colnias no norte de frica, sul de
Espanha, Mar Negro e Itlia por parte de gregos e fencios19, permite, paulatinamente,
12 Guarinello esclarece que: O termo cidade-Estado no se refere ao que hoje entendemos por cidade, mas a um territrio agrcola composto por uma ou mais plancies de variada extenso, ocupado e explorado por populaes essencialmente camponesas (). Op. cit., p. 32. Veja-se tambm a este respeito Maria Helena da Rocha Pereira, Estudo de Histria da Cultura Clssica : Volume I Cultura Grega, p. 173 e ss. 13 Guarinello, op. cit., p. 30. 14 Guarinello, op. cit., p. 30. 15 A histria das cidades-Estado , em primeiro lugar, geograficamente localizada e circunscrita. No parte da histria universal, como a entendemos hoje, mas de uma regio especfica do planeta: as margens do mar Mediterrneo. Guarinello, op. cit., p. 31. Cf. igualmente os artigos de A.J.Graham, The colonial expansion of Greece e The western Greeks in Cambridge Ancient History 3.3. The Expansion of the Greek World Eight to Sixth Centuries B.C., pp. 83-162 e 163-195. 16 Entre os sculos IX e VIII a.C. Cf. M.H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 174. 17 Guarniello, op. cit., p. 31. Como afirma M.H. Rocha Pereira: A criao de colnias contribui poderosamente para desenvolver o comrcio martimo e a indstria, qual se abriram novos escoadouros. Op. cit., p. 176. Registe-se que o estabelecimento de colnias se d entre cerca de 775 a.C. e 560 a.C., perodo que os historiadores da Grcia designam como perodo arcaico. Cf. M.H. da Rocha Pereira, op. cit., pp. 174 e 175. 18 M.H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 176. 19 Guarniello, op. cit., p. 31.
14
uma difuso do modelo grego de cidade-Estado nos territrios colonizados, o que
provocar com o decorrer das dcadas e dos sculos uma profunda alterao no
tecido social dos mesmos.
As metamorfoses, contudo, so lentas. A introduo da propriedade privada prova ser
fundamental nesta transformao. As cidades-Estado comeam por ser comunidades
agrrias, associaes de proprietrios privados de terra20. A partir deste momento
acentua-se uma tendncia que ganhar eco nos sculos seguintes e que constituir um
trao decisivo da vivncia cvica grega, at mesmo no esplendor do sculo de Pricles:
a excluso.
O acesso s terras direito exclusivo dos membros da comunidade, estando vedado
aos que no fazem parte dela21, ou seja, os estrangeiros. Vo-se assim consolidando
progressivamente as estruturas das primeiras cidades-Estado.
A defesa comum das propriedades agrcolas contra agresses externas, assim como a
arbitragem de disputas entre proprietrios de terras cada vez mais agudizadas,
demandam a necessidade de criao de mecanismos pblicos e colectivos para o
efeito. Preconiza-se o espao pblico, que se constitua nos lugares comuns como os
templos ou os mercados, como cenrio de mediao de conflitos sob o denominador
de uma lei comum que, segundo Guarniello
() obrigava a todos e que se imps como norma escrita, fixa, publicizada e colectiva22.
Poder-se- afirmar, em consonncia com Moses I. Finley, que mediante um processo
de transformaes sociais e econmicas moroso, gradual e que no decorreu
seguramente com a fluidez cronolgica como o apresentamos nestas pginas, que os
gregos inventaram a poltica23?
A identidade comunitria constri-se atravs da participao no espao pblico.
atravs deste que a relao dos indivduos, muitas vezes sem qualquer unidade tnica 20 Guarinello, op. cit., p. 32. 21 Guarinello, op. cit., p. 32. 22 Guarinello, op. cit., p. 33. Mantemos a ortografia do portugus brasileiro do texto. 23 Finley, em Poltics in the Ancient World, afirma que a poltica () is an invention made separately by the Greeks and the Etruscans. Cf. op. cit., p. 89. Na mesma ordem de ideias, a este respeito, Guarinello considera que Aqui reside a origem mais remota da poltica, como instrumento de tomada de decises colectivas e de resoluo de conflitos (). Cf. op. cit., p. 33.
15
ou de qualquer outra ndole24, com a comunidade adquire vnculos fortes e se solidifica
o exerccio da vivncia cvica.
Como afirma, Guarinello,
Pertencer comunidade era participar de todo um ciclo prprio da vida quotidiana, com os seus ritos,
costumes, regras, festividades25, crenas e relaes pessoais26.
Nesta passagem encontramos j delineados alguns dos traos principais daquilo que
constitui a vida numa cidade-Estado. Abordemos agora os dois modelos clssicos de
cidades-Estado que a antiguidade nos legou: o de Esparta e o de Atenas. Comecemos
por aquela que ficou conhecida como a Repblica da Lacedemnia.
24 Para l da ausncia de um denominador comum, Guarinello afirma que a identidade comunitria foi () criada e recriada, reforada e mantida por mecanismos que produziram o cidado ao mesmo tempo que faziam nascer cultos comuns, moeda cvica, lngua, leis, costumes colectivos (). Op. cit., p. 34. 25 Nomeadamente, as festividades religiosas onde os cidados prestavam culto s divindades de cada cidade-Estado. Os cultos eram comuns e estavam, na sua larga maioria, sob a organizao da prpria comunidade. Para uma anlise mais profunda sobre o fenmeno religioso na antiguidade clssica veja-se a obra de Jean Pierre Vernant, Mito e Religio na Grcia Antiga que constitui uma excelente introduo a este tema. 26 Guarinello, op. cit., p. 35.
16
3. Esparta nos sculos VII e VI a.C.: a participao pblica num Estado oligrquico
Segundo Werner Jaeger,
A criao mais caracterstica de Esparta o seu Estado, e o Estado representa aqui, pela primeira vez,
uma fora educadora no mais vasto sentido da palavra27.
A criao do Estado espartano, bem como a sua constituio (conhecida como a
Grande Retra), est associada a uma figura de contornos lendrios: Licurgo, legislador
espartano que ter vivido no sculo IX a.C. e que, segundo Plutarco28, bigrafo e
ensasta do sculo I d.C., reformou o sistema poltico, as leis e a forma de governo na
sua cidade-Estado semelhana das leis que vigoravam em Creta29.
Sem podermos, contudo, aferir da sua originalidade, de acordo com W.G. Forrest,
Licurgo adaptou tanto quanto criou e muito do que ele produziu tinha sido alterado ou substitudo
muito antes dos estudiosos dos sculos V e IV a.C. comearem a estudar a sua Esparta Licrgia
contempornea30.
Alm da constituio espartana, Licurgo teria estabelecido as bases polticas e
administrativas da cidade-Estado, criando novas instituies31 e um modelo social que
no , de todo, semelhante s caractersticas que enumermos na gnese das cidades-
Estado. Isto porque o Estado espartano um Estado essencialmente militar onde at
as refeies so comunitrias.
27 Werner Jaeger, Paideia A formao do homem grego, p. 109. 28 Saliente-se que no existem fontes histricas fidedignas que nos permitam conhecer plenamente a vida de Licurgo. Um dos seus bigrafos mais conhecidos na antiguidade Plutarco que inicia a sua obra, Licurgo Reformador de Esparta, dizendo que Nada se pode afirmar com segurana do legislador Licurgo. A sua origem, as suas viagens, a sua morte, finalmente as suas prprias leis e a forma de governo que estabeleceu so relatadas diferentemente pelos historiadores; (). Cf. igualmente W.G. Forrest, A History of Sparta: 950/192 BC, p. 40 Lykourgos himself is a shadowy, possibly even a mythical figure (..). 29 Na sua obra, Plutarco afirma que Licurgo viajou para Creta: () onde observou cuidadosamente o governo e teve frequentes conferncias com os homens de maior reputao. Concordou plenamente com algumas das suas leis e coligiu-as para as aplicar quando regressasse a Esparta; outras houve que rejeitou. Plutarco, op. cit., p. 18. 30 Lykourgos adapted as much as he created and much of what he produced had been altered or even superseded long before fifth-or- fourth-century scholars began to study their contemporary Lykourgan Sparta. W.G. Forrest, op. cit., p. 40. 31 Para uma descrio detalhada das instituies espartanas e das funes desempenhadas por cada uma delas veja-se W.G. Forrest, op. cit., pp. 40-50.
17
Numa sociedade de governo oligrquico32 fechada ao comrcio e entrada de
estrangeiros, e cuja educao ministrada pelo Estado com o objectivo fundamental
de dotar os seus cidados de qualidades militares33 atravs de um rigoroso regime de
preparao fsica desde os sete anos de idade visando o adestramento blico e a
defesa da cidade, a participao dos cidados na administrao pblica considerada
uma homologao de virtude cvica34, imprescindvel at para a manuteno do
exerccio de direito poltico.
aos homoioi35, cidados espartanos de pleno direito, que cabe a administrao
pblica da cidade. Permaneciam-lhe adstritos de modo permanente quer para o
exerccio de cargos polticos, quer para a participao na guerra, sendo
impossibilitados por lei de se dedicarem a outro tipo de actividade que no as
actividades blica ou poltica.
Considerados como iguais perante o Estado e possuindo todos os cidados espartanos
parcelas de terra pblica em exacto nmero (outra das reformas que teria sido
introduzida por Licurgo36), este princpio de igualdade que lhes garante um vnculo
de pertena territorial bem como um estatuto social.
Segundo W.G. Forrest:
Se no a criou, Licurgo difundiu amplamente entre os espartanos a noo de ser cidado e um
elemento essencial nesta noo era a igualdade de todos os cidados, no como humanos, mas como
cidados. Como cidados, os espartanos possuam um lote de terra (kleros) semelhante que significava a
vrios nveis um modo de vida padro, eram vistos como iguais perante a lei ()37.
Apesar de ser um regime poltico de cariz oligrquico, conseguimos j percepcionar
com mais clareza o que representa o exerccio da cidadania para um grego da poca
32 O governo espartano era composto por dois reis e a sucesso hereditria. 33 As trs grandes virtudes criadas por Licurgo, na opinio de Forrest, eram: a habilidade e a eficincia militares e a austeridade. Cf. op. cit., p. 50 34 Derek Heater, op. cit., p. 11. 35 Termo que em grego significa iguais. Cf. Forrest, op. cit., p. 50. 36 Cf. Forrest, op. cit., p. 51. 37 Lykourgos vastly enlarged, if he did not create, for Spartans the idea of being a citizen and an essential element in this idea was the equality of all citizens, not as human beings but as citizens. As a citizen the Spartan had an equal kleros form which he supported what was in many respects a standard way of life, he had an equal standing in the eyes of the law (). Forrester, op. cit., p. 51.
18
clssica: alm de constituir um modo de vida, algo que penetra todas as esferas do
homem.
De acordo com Paul Magnette:
A cidadania definia todos os mbitos da vida dos cidados. Os antigos no distinguiam entre o que viria
a ser denominado como esfera pblica e esfera privada38.
Mas isto no tudo. Uma outra caracterstica da vivncia cvica espartana, e que
inerente esfera poltica de outras cidades-Estado na Grcia da poca, o que os
gregos designavam por atimia, ou seja, o no cumprimento dos deveres cvicos que
acarretava a perda do estatuto de cidado39. A excluso da actividade cvica a que,
como iremos ver mais adiante, estavam sujeitos todos aqueles que no possuam
direitos de cidadania e que representavam uma grande leque da populao
alargava-se aos que se demitiam, voluntaria ou involuntariamente, de tal tarefa.
Apesar de amplamente louvada na antiguidade como modelo de cidade-Estado40, seria
em Atenas, territrio que testemunhou a primeira experincia democrtica da histria
humana de forma sistemtica, que a vivncia cvica se associa noo de soberania
popular.
38 Citizenship defined all aspects of citizens lives. The ancients made no distinction between what would come to be called public and private spheres. Paul Magnette, Citizenship, The History of an Idea, p. 7. 39 Cf. Derek Heater, A brief history of citizenship, p. 11. 40 Por exemplo a cidade ideal que Plato procura construir na Repblica claramente influenciada por Esparta.
19
4. Atenas no sculo V a.C.: A democracia
A primeira referncia palavra democracia que se conhece surge pela primeira vez
com Herdoto41, historiador grego, cerca de 450 a.C. Neste ponto em particular, como
afirma M.H. da Rocha Pereira, estamos perante
() uma das muitas conquistas gregas de que a cultura ocidental continua a viver ()42.
Existiro, provavelmente, poucas passagens que resumam de forma to brilhante o
porqu de o regime democrtico ateniense ter permanecido vivo na memria
intelectual do Ocidente como os trs seguintes trechos da Poltica de Aristteles e que,
em nosso entender, demarcam-no de forma crucial da estrutura poltica de outras
cidades-Estado, precisamente no mbito mais caro nossa investigao: o exerccio da
cidadania. Sigamos a lucidez analtica do Estagirita.
Referindo-se principalmente a Atenas, Aristteles da opinio de que
() no h melhor critrio para definir o que o cidado em sentido estrito, do que entender a
cidadania como capacidade de participao na administrao da justia e no governo43,
ao passo que num outro tipo de regime poltico,
() nalgumas cidades, o povo no tem funes: no se instituem assembleias regulares mas apenas se
convocam pontualmente conselhos, sendo as decises judiciais atribudas a juzes especficos44.
A terceira passagem a que depe mais claramente a favor do regime ateniense:
Chamamos cidado quele que tem o direito de participar nos cargos deliberativos e judiciais da
cidade. Consideramos cidade, em resumo, o conjunto de cidados suficiente para viver em autarquia45.
A palavra autarquia, que devm do grego u e que significa o comando de si
mesmo, a pedra de toque que explica o motivo da Atenas do sculo V a.C., tanto na
41 No Livro IX das suas Histrias. Cf. Magnette, op. cit., p. 10, bem como M. Oswald, Nomos and the Beginnings of the Athenian Democracy, p. 120. 42 M. H. Rocha Pereira, op. cit., p. 180. 43 Poltica, Livro III, 1275a20. 44 Poltica, Livro III, 1275b5. 45 Poltica, Livro III, 1275a20. O bold nosso. Informe-se a este respeito que, para Plato, a cidade ideal no poderia exceder o nmero aproximado de 5000 habitantes. Cf. Leis, 5 737e-738 e 771a-772d. No adiantando nmeros, Aristteles, em tica a Nicmaco, afirma o seguinte: Nem dez homens constituem uma plis, nem com cem mil existe j plis. Cf. tica a Nicmaco, 9, 1170b 31-32.
20
antiguidade como no decurso da histria posterior, ter sido considerada um modelo de
governo exercido pelos prprios cidados de forma autnoma.
Esse trabalho de aperfeioamento do sistema poltico ateniense , sobretudo, obra de
um homem: Pricles (495 429 a.C.). Mas isto no tudo. Antes de nos determos na
sua figura convm recuar um pouco no desenrolar da histria sociopoltica de Atenas
para compreendermos melhor a aco deste fulgurante estadista.
A democracia ateniense no emerge por pura gestao espontnea no sculo V,
ancorando antes as suas razes nas reformas de dois legisladores anteriores a Pricles,
de seu nome, respectivamente, Slon (638 - 558 a.C.) e Clstenes (570 507 a.C.).
O sculo VI, de um modo geral, marcado por um declnio da hegemonia da
aristocracia que, excepo de Esparta46, baseava a sua forma de governo
primordialmente em regimes tirnicos predominantes em muitas das cidades-Estado
gregas face a novos modelos de organizao poltica e social. A perda de privilgios
por parte da aristocracia permitiu uma ampliao do espao pblico a outras classes
sociais, o que permitiu um fortalecimento da coeso das prprias comunidades47.
Em consonncia com o declnio da aristocracia, surgem as primeiras figuras
importantes na construo da democracia ateniense. A primeira delas Slon, a partir
de 594 a.C., atravs das suas reformas a nvel econmico e social - a abolio da
escravatura por dvidas, a criao de medidas de proteco agricultura, indstria e
ao comrcio, bem como a criao de um sistema monetrio prprio48 -, abre espao
para reformas de teor poltico a criao de quatro classes de cidados, a instituio
do tribunal de Helieia, ao qual todos os cidados podiam apelar face s sentenas dos
magistrados49.
Clstenes, na senda de Slon, ainda em pleno sculo VI, altera a distribuio do poder,
criando as dez tribos de Atenas, as quais dota de administrao prpria passando
46 M. H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 178. 47 Guarinello, op. cit., p. 39. 48 M. H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 189. 49 M. H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 189.
21
assim o poder a estar equilibrado entre a esfera local e a esfera da cidade-Estado e,
mais do que tudo, instaura definitivamente a liberdade de falar em pblico50.
At que chegamos a Pricles e ao apogeu da ideia de democracia na antiguidade.
4.1. Pricles: o elogio da democracia
Alm de o perodo temporal em que decorreu a existncia de Pricles (495 429)
representar o apogeu da cultura grega clssica51, o estadista ateniense edificou, pelo
menos em teoria, as bases do que representa a democracia (no do que ela , mas do
que ela devia ser) e a sua defesa face a regimes tirnicos.
No tendo legado qualquer obra escrita, a sua apologia da democracia encontra-se
exposta no Discurso de homenagem aos mortos da Guerra do Peloponeso, reproduzido
integralmente pelo historiador grego Tucdides52. Por limitaes inerentes ao espao
de que dispomos, deixamos em esboo apenas os pontos fundamentais do Discurso
em que Pricles se revela importante para a histria da democracia.
Pricles comea por elogiar a Constituio ateniense53 face a outros regimes e, pelo
facto de ela ser democrtica, garante um princpio essencial para o exerccio da
cidadania: a soberania popular. Por esse facto, a administrao do Estado feita com
base no interesse do povo e no de uma minoria54.
Alm de administrado de acordo com os interesses soberanos da maioria, o governo
rege-se pelo primado das liberdades: da liberdade de expresso e de pensamento de
todos os cidados (isegoria)55.
50 M. H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 190. 51 Cf. M.H. da Rocha Pereira, op. cit., pp. 386-388 para uma descrio sumria, mas elucidativa, do que representou a figura de Pricles na Histria da Grcia. 52 Em Histria da Guerra do Peloponeso, Livro II, 37 a 42. 53 Tenemos um rgimen de gobierno que no envidia las leyes de otras ciudades, sino mas que somos ejemplo para otros que imitadores de los dems. Tucdides, Histria de la Guerra del Peloponeso, II, 37, p. 90. 54 () por no depender el gobierno de pocos, sino de numero mayor (...).Tucdides, op. cit., p. 90. 55 Y nos regimos libremente no solo en lo relativo a los negocios pblicos, sino tambin en lo que se refiere a las sospechas recprocas sobre la vida diria, no tomando a mal al prjimo que obre segn su gusto, ni poniendo rostros llenos de reproche, que no son un castigo, pero s penosos de ver. Tucdides, op. cit., p. 90.
22
Pricles estabelece o princpio de igualdade entre todos os cidados
independentemente da sua classe social56, a igual submisso de todos s leis do
Estado (isonomia que para os gregos assume um significado semelhante ao de
democracia), bem como a possibilidade de participao em cargos pblicos mediante o
mrito e no a classe social a que se pertence. Face s caractersticas que acabmos de
deixar patentes, Pricles no tem pejo em afirmar que Atenas a escola da Grcia57.
Alm de delineados de forma magistral por Pricles os princpios fundamentais para o
exerccio da cidadania numa sociedade aberta e democrtica, possvel constatar
pelas suas palavras o percurso percorrido pelo esprito grego ao longo de cerca dos
quatro a cinco sculos de que aqui tentmos apreender os pontos fundamentais.
No obstante no conseguirmos compreender na totalidade a forma como um grego
vive a plenitude da sua condio cvica dentro da cidade-Estado, a importncia que
decorre do Discurso tambm a sua profunda actualidade. impossvel no
reconhecer contemporaneamente o modo como Pricles caracteriza os princpios da
democracia que continuam a ser ainda, para ns, marcos de referncia incontornveis.
Como afirma Diogo Freitas do Amaral em relao ao legado do estadista ateniense:
Este discurso de Pricles () marcou para sempre a histria da civilizao ocidental: democracia,
liberdade, igualdade, participao cvica, dignidade de todos () eis o grande programa poltico que,
h quase 25 sculos, Pricles apontou a toda a humanidade58.
Mais do que a verdadeira aplicao prtica, o que ressoa, em Pricles, uma ideia de
democracia na sua forma ideal. Que no se reflecte inteiramente no quotidiano da
Atenas do sculo V a.C.
56De acuerdo com nuestras leyes, cada cual est en situacin de igualdad de derechos en las disensiones privadas (); y no tanto por la clase social a que pertence como por su mrito, ni tampoco, en caso de pobreza, si uno puede hacer cualquier beneficio a la ciudad, se le impide por la oscuridad de su fama. Tucdides, op. cit., p. 90. O que, como j iremos ver, na Grcia no significa um princpio de igualdade natural. 57 En resumen, afirmo que la ciudad entera es la escuela de Grcia. Tucdides, op.cit., II, 41, p. 92. 58 Diogo Freitas do Amaral, Histria do Pensamento Poltico Ocidental, p. 30.
23
4.2. Algumas vicissitudes da democracia grega
Apesar dos princpios defendidos por Pricles, a democracia grega prima pela
singularidade em determinados aspectos que a demarcam profundamente do sistema
democrtico actual, alm de se encontrar enredada em algumas contradies sob o
prisma do nosso olhar contemporneo.
Comecemos por abordar a sua principal caracterstica: o governo directo. Os gregos
desconhecem em absoluto a noo de representatividade que a base das
democracias actuais. luz do modo de pensar grego da poca, tanto quanto nos
possvel aproximarmo-nos dele a uma distncia temporal de 2500 anos, o conceito de
representatividade choca profundamente com um dos conceitos fundamentais da
cultura helnica: o conceito de autonomia.
Como afirma Jos Ribeiro Ferreira em a Grcia Antiga,
() os gregos no concebiam tal tipo de governo [representativo] que se lhes afigurava coartactador da
liberdade e da autonomia59.
A autonomia, bem como a liberdade, so inerentes ao ADN social, poltico e cultural
grego:
Para o grego ser livre era exercer ele prprio, pessoalmente, os seus direitos civis, sem os delegar a
outros60.
Convm aqui recordar a clebre definio de Aristteles como animal poltico (Zoon
Politikon). E isso que define essencialmente o homem grego: para ele no existe
outro modo de vida que no o de participar directamente na administrao dos
assuntos do Estado.
Estado esse que, contrariamente ao entendimento moderno do conceito, no detm
qualquer personalidade jurdica na poca clssica. Para os gregos, o Estado, ou a Plis,
59 Jos Ribeiro Ferreira, A Polis Grega Sistema de Vida e Mestra do Homem in A Grcia Antiga, p. 32. 60 Jos Ribeiro Ferreira, op. cit., p. 34.
24
o conjunto total de cidados61, delimitador de todas as esferas da sua vida. Escapou
ao pensamento poltico helnico a distino entre esfera pblica e esfera privada62.
Evidentemente que a democracia directa dos gregos resultou por duas razes de
ndole diferente. A primeira de ordem demogrfica. Apesar de no podermos
apresentar nmeros que garantam exactido, o nmero de habitantes de Atenas na
poca Pricles deveria rondar os cerca de 300 000 habitantes63, dos quais apenas 10%,
isto , cerca de 30 000 detinham o estatuto de cidadania64, o que nos remete para a
segunda razo do xito da democracia grega, mas que permite tambm questionar at
que ponto poderemos falar dela como sendo efectivamente democrtica65: o seu
carcter de excluso.
Alm de ser hereditria66, o exerccio da cidadania em Atenas estava absolutamente
vedado a mulheres e crianas, escravos, estrangeiros e habitantes das zonas rurais67.
Qualquer destes extractos da populao grega no tinha qualquer possibilidade de
participar activamente na vida poltica de Atenas, nem beneficiava do to proclamado
princpio de igualdade introduzido por Pricles como vimos anteriormente.
O princpio de igualdade natural entre todos os seres humanos desconhecido na
Grcia do sculo V68. A igualdade apenas de natureza social e poltica entre cidados.
Teremos que aguardar at ao sculo XVIII para que todos os homens nasam livres e
iguais em direitos e isso seja um direito consagrado em constituio.
61 M.H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 181. 62 Paul Magnette, op. cit., p. 7. 63M.H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 182. Os nmeros que a so apresentados so meramente conjecturais. 64 M.H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 182. 65 Alguns autores contestam a atribuio do termo democracia ao regime poltico grego pelo facto de apenas uma pequena percentagem da populao dispor de facto dos direitos de cidadania. Entre eles, encontra-se o historiador Victor Ehrenberg, autor da obra The Greek State. Cf. op. cit., p. 50. 66 Data de 451 a.C, aprovada por Pricles, uma lei que restringe a concesso da cidadania ateniense, acentuando o seu carcter hereditrio. Contradies de um grande homem de Estado. Cf. Heater, op. cit., p. 4. 67 Heater, op. cit., p. 4. 68 Refira-se que ele foi proposto pela primeira vez no sculo IV a.C. por um sofista, de seu nome Alcidamante, antecipando em vinte e um sculos a essncia dos princpios das revolues francesa e americana. Cf. M.H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 185.
25
Captulo 2 Anatomia Sociopoltica de um Conceito II: A Era das
Revolues - Da Gloriosa Revoluo Revoluo Francesa
1. Para uma gnese histrica da(s) revoluo(es): os alvores da modernidade
Consagrada na histria como um evento mpar quando comparada com outros
regimes polticos posteriores69, a democracia ateniense do sculo V a. C. e os direitos
de cidadania que ela fecundou, no encontraram paralelo na histria poltica do
Ocidente no milnio seguinte. Apesar dos desenvolvimentos registados,
nomeadamente, na poca romana70 e no Renascimento, em Florena e Salamanca71,
seria preciso aguardar at ao sculo XVII para que a histria da cidadania registasse um
novo impulso profcuo.
A Gloriosa Revoluo de 1688, ocorrida em Inglaterra, prenuncia j alguns ventos de
mudana, mas uma profunda renovao do impulso cvico e democrtico s ocorreria
no sculo XVIII em que o conceito de revoluo, vivenciado nos EUA (1776) e em
Frana (1789), anuncia uma aurora de transformao radical da condio humana.
Antes de nos acercarmos mais de perto das trs revolues Inglesa, Americana e
Francesa -, necessrio apreender em traos essenciais as grandes coordenadas que
norteiam o clima intelectual e histrico do incio da modernidade, pois foi nele que se
comearam a desenhar as condies para as revolues do sculo XVIII.
O advento da Idade Moderna representa, na sua formulao mais radical, uma ruptura
com a viso tradicionalista e teolgica pela qual se pautou a medievalidade. De forma
progressiva, Deus, conceito central das indagaes filosficas da Idade Mdia, cede o
lugar ao Homem, como paradigma essencial. O humano passa a ser o centro do
universo em detrimento do plano divino.
69 Pedro Paulo Funari, no artigo Cidadania Moderna e o Legado Romano, afirma: Para muitos estudiosos do sculo XX, a Repblica romana foi encarada como uma oligarquia corrupta, uma aristocracia endinheirada, comparada negativamente com a Atenas democrtica do sculo V a.C.. Cf. Jaime e Carla Pinsky (Orgs.), Histria da Cidadania, p. 76. 70 Cf. o artigo de Funari citado na nota anterior, Cidadania Moderna e o Legado Romano, em Jaime e Carla Pinksy (Orgs.), op. cit., pp. 49-81, para uma melhor compreenso da cidadania na poca romana, bem como as seguintes obras: Moses I. Finley, Poltica no Mundo Antigo e Jane Fisher Gardner, Being a Roman Citizen. 71 Cf. o artigo de Carlos Zeron, A cidadania em Florena e Salamanca em Jaime e Carla Pinksy (Orgs.), op. cit., pp. 97-113.
26
A liberdade renascentista e moderna permite a emancipao humana do jugo
teolgico/medieval. Sem querermos incorrer numa simplificao redutora, o homem
seculariza-se, individualiza-se, racionaliza-se e autonomiza-se dos paradigmas
fundamentais da Idade Mdia.
Como afirma Marco Mondaini:
O homem passou no apenas a traar o seu destino mas tambm a ter a total capacidade para explic-
lo72.
Outros factores fundamentais que contriburam para a emancipao humana registada
no incio da modernidade so os seguintes:
- O advento da cincia moderna de Galileu (1564-1642), Kepler (1571-1630) e Newton
(1643-1727). J em 1543, o astrnomo polaco, Nicolau Coprnico (1473-1583) em De
revolutionibus orbium coelestium73, sustentava a teoria heliocntrica que punha em
causa a teoria geocntrica de origem ptolemaica;
- Os descobrimentos martimos iniciados por Portugal e Espanha, no sculo XV, e que,
alm de representarem o primeiro processo de globalizao, ampliaram o
conhecimento geogrfico e os horizontes do mundo at ento conhecido;
- A crtica interna religiosa exercida pela Reforma protestante iniciada por Lutero em
1517 que conduziu a Europa nos dois sculos seguintes a um clima de intolerncia
religiosa e a sua importncia para as reivindicaes cvicas posteriores74.
O processo de secularizao introduz igualmente transformaes significativas no
campo social, conduzindo lenta, mas paulatina, dissoluo das estruturas assentes na
hierarquia da servido do regime feudal que era legitimada por direitos de nascena.
Os acontecimentos de 1789, em Frana, ditariam o definitivo dobre a finados do
72 Marco Mondaini, Revoluo Inglesa O Respeito aos Direitos dos Indivduos in Jaime e Carla Pinsky (Org.), Histria da Cidadania, p. 115. 73 A palavra revoluo, antes penetrar no mbito poltico, estava confinada astronomia. 74 No que concerne a este tema, V. Soromenho-Marques, no artigo Religio e Cidadania Da luta pela tolerncia religiosa afirmao dos direitos humanos na obra A Era da Cidadania, afirma que: Os actuais direitos fundamentais do homem e do cidado () foram o desenvolvimento e o esclarecimento de um direito fundamental que funcionou como um autntico embrio de todos os outros: o direito liberdade religiosa, ao livre e pblico exerccio do culto de profisses de f minoritrias, sem a perda de quaisquer direitos civis (). Cf. op. cit., p. 78. O bold do autor.
27
feudalismo na Europa. Tornar-se-ia uma das peties de princpio do iderio da
revoluo. Porm, as estruturas feudalistas sofreram o seu primeiro revs, ainda no
sculo XVII. A Inglaterra foi o primeiro palco de algumas dessas transformaes.
28
2. A Gloriosa Revoluo Inglesa de 1688: a soluo conciliadora
A Revoluo Inglesa, alm de ser marcada pela slida implementao de uma nova
classe social, a burguesia75, segundo Marco Mondaini,
() um modelo de transio ao capitalismo industrial76.
Para esse efeito o mesmo autor enumera trs transformaes fundamentais levadas a
cabo na estrutura da economia inglesa, a saber:
1) A produo industrial toma o lugar da agricultura como principal meio de produo;
2) A construo de uma fivel rede de transportes;
3) A superproduo e a baixa de preos substituem-se a crises de subsistncia durante
a poca feudalista77.
A ascenso da burguesia seria preponderante para o processo de transformao da
sociedade inglesa da poca e tambm para o papel incontornvel que a Revoluo de
1688 desempenhou na histria da cidadania. Vejamos porqu.
Alm de romper com os ditames do feudalismo, a burguesia inglesa prope uma nova
tica, de pendor protestante78, assente no trabalho que se contrape ao cio
praticado pela aristocracia latifundiria79, classe que, ademais de se caracterizar por
um certo parasitismo, detm a maior percentagem de riqueza e de direitos80.
O que est em causa a nvel econmico e social, e dois sculos antes do pensamento
de Karl Marx sobre o tema, a oposio de classes sociais com vises diametralmente
75 Principalmente da gentry, a baixa nobreza agrria constituda por agricultores capitalistas, como explica um dos mais eminentes estudiosos da Revoluo Inglesa, o historiador Christopher Hill. Veja-se a sua obra, O Mundo de Ponta-Cabea (The World turned upside down), nota da p. 29 para uma definio mais ampla de gentry. 76 Marco Mondaini, op. cit., p. 120. 77 Marco Mondaini, op. cit., p. 119. 78 A relao entre a tica protestante e o capitalismo seria explorada pelo socilogo alemo, Max Weber, em a tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. 79 Marco Mondaini, op. cit., p. 120. 80 O reinado de Carlos I (1600-1649) primou pelo cenrio que descrevemos acima. Proclamado rei em 1626, governaria autocraticamente entre 1629 e 1640, seguindo-se depois um perodo de guerra civil at que a Cmara dos Comuns, em 1649, o deps e o condenou morte por decapitao no mesmo ano. Seria o primeiro monarca na Histria da Inglaterra a ser condenado pena capital. Cf. Christopher Hill, A Revoluo Inglesa de 1640 in Fundo Poltico da Revoluo Inglesa, pp. 49-77.
29
antagnicas: monarquia e aristocracia, classes sociais proprietrias de terras e
ancoradas herana secular de uma tradio feudal que no pretendiam abrir mo
dos seus privilgios e fazer concesses a um novo sujeito social pujante e dinmico, a
burguesia mercantil e comercial, agrria e urbana, tendo em vista a criao de um
sistema econmico de mercado livre.
Como afirma Modaini:
Um sistema que pressupunha um mercado local e esttico () no poderia mais ser tolerado tendo em
vista a fora implacvel de uma concepo de mercado sem limites de toda e qualquer ordem81.
A nvel poltico, aquele que mais interessa nossa investigao, o regime
predominante na Inglaterra do sculo XVII, apesar de ter sido o primeiro pas europeu
a frear as tendncias despticas da monarquia de poder absoluto atravs da Magna
Carta82, uma monarquia absolutista de direito divino83, na senda do que pensadores
como Jean Bodin ou Jacques Bossuet teorizaram respectivamente em Os Seis Livros da
Repblica (1576) e A Poltica tirada da Sagrada Escritura (1709).
Face a este estado de coisas a concepo do direito divino dos monarcas era um
conceito obsoleto face s aspiraes da burguesia emergente. A Petio de Direitos de
1628 tentava j obstaculizar a natureza absolutista do regime de Carlos I. Mas isto no
tudo.
A modernidade trouxera consigo uma aura de renovao ao pensamento poltico
atravs de uma das suas figuras mais proeminentes, Thomas Hobbes (1588-1679), com
a publicao da sua obra principal, o Leviathan (1651).
Sendo um defensor acrrimo do absolutismo, Hobbes introduz porm uma novidade
essencial: o Estado absoluto no deriva j de um monarca institudo pelo poder divino,
mas sim do consentimento dos indivduos que, ao renunciarem a certos aspectos da
81 Marco Mondaini, op. cit., p. 124. 82 Documento assinado em 1215 por Joo, o Papa, que limitou o exerccio de poder dos monarcas ingleses. Segundo a Magna Carta, o rei devia renunciar a certos direitos e respeitar certos procedimentos legais. 83 Teoria que defende que o poder dos reis vinha de Deus. Os monarcas ingleses do sculo XVII Carlos I, Carlos II e Jaime II eram todos partidrios da monarquia absolutista. A excepo foi o Protectorado de Oliver e Richard Cromwell, entre 1649 e 1660, que se caracterizou por um cariz republicano e depois por uma ditadura, devido instabilidade civil dos primeiros anos do seu governo.
30
sua liberdade pessoal, passam do estado de natureza, caracterizada pela guerra de
todos contra todos e dirigida pelas pulses egostas do ser humano, ao estado de
sociedade, onde predomina o bem comum84. No sculo seguinte, Rousseau
denominar este consentimento de contrato social.
Segundo Mondaini,
Estavam abertas as portas para a ofensiva de uma tradio que se pautasse pela defesa da liberdade do
indivduo, limitando politicamente os poderes estatais85.
A autoria do desbravar intelectual desse caminho que conduzia defesa do liberalismo
e dos direitos civis esteve a cargo de John Locke (1632-1704). No Segundo Tratado
sobre o Governo Civil (1689), o filsofo ingls defende veemente que o homem possui
naturalmente direitos fundamentais o direito vida, liberdade e propriedade -,
conferindo ao povo o direito de revolta contra qualquer governo que no respeitasse
esses direitos86.
Se em Hobbes, a relao entre Estado absolutista e indivduos era um acto de
submisso, Locke nega por completo esta tese e, com isso, desvenda a clareira das
revolues do sculo seguinte.
Para ele o poltico
() tem a sua origem unicamente num pacto ou conveno, e no consentimento mtuo daqueles que
constituem a sociedade87.
Eis um dos trechos fundamentais para a histria da cidadania moderna.
A Gloriosa Revoluo iria, em parte, realizar o que Locke defendeu. A destituio de
Jaime II, em 1688, representou o fim do absolutismo e a criao da primeira
monarquia constitucional da histria. Baseada numa soluo de compromisso, depois
das tumultuosas dcadas anteriores, a Inglaterra conheceria doravante
84 Cf. Leviathan, I, 13 e 14 e II, 17 e 18 para uma leitura das teses fundamentais do pensamento hobbesiano nesta matria. 85 Marco Mondaini, op. cit., p. 129. 86 Cf. Segundo Tratado sobre o Governo Civil, II, 6 e 8. 87 Locke, op. cit., XV, 171. O bold nosso.
31
() a estabilidade poltica sob a nova direco de uma classe burguesa que toma para si o poder estatal
(...)"88.
Os 13 pontos da Bill of Rights de 168989 expressam a soluo de consenso encontrada
pelos ingleses para limitar o poder absoluto do monarca assente na () soberania
parlamentar, monarquia limitada ()90.
Trata-se do corolrio dos acontecimentos de quase cinco dcadas tumultuosas e,
acima de tudo, representa uma certa continuidade em relao a outros documentos
polticos elaborados anteriormente, como os j citados Magna Carta, Petio de
Direitos de 1628 ou o Habeas Corpus Act (1679)91.
Mais do que uma revoluo propriamente dita, uma vez que no conduziu alterao
radical de uma forma de governo por outra92, a Revoluo Inglesa, nas palavras de
Viriato Soromenho-Marques
() trata-se antes do termo do contrato entre o povo e o seu monarca ()93.
Contudo, despertou uma centelha emancipatria e o seu rastilho propagou-se s
colnias britnicas nos EUA que, no sculo seguinte, iriam acrescentar uma outra
dimenso - nova, indita e absolutamente radical - palavra revoluo.
88 Marco Mondaini, op. cit., p. 120. 89 Pode ser lida na traduo que V. Soromenho-Marques efectuou da mesma na obra Direitos e Revoluo. Cf. pp. 90-92 da mesma. 90 Christopher Hill, O Mundo de Ponta-Cabea, p. 31. 91 V. Soromenho-Marques, op. cit., p. 89. 92 A este respeito evocaremos Hannah Arendt quando abordarmos a revoluo francesa. 93 V. Soromenho-Marques, op. cit., p. 89.
32
3. A Revoluo Americana de 1776: a emergncia de um cvico admirvel mundo
novo
Momento laminar na histria do sculo XVIII, a Revoluo Americana, que culminou na
separao das treze colnias dos EUA da coroa inglesa, abre um novo captulo no
domnio da democracia e da luta pela liberdade.
Uma revoluo que inicialmente no era para o ser94 e que autonomizaria territrios
povoados apenas 150 anos antes95 por indivduos que aportavam ao Novo Mundo
buscando sobretudo tolerncia religiosa para a sua profisso de f e a melhoria das
suas condies materiais de vida.
A questo fundamental que se deve colocar a seguinte: como que no espao de
cerca de 150 anos, um territrio para onde foram enviados elementos indesejveis em
solo britnico96 produziu homens da estatura intelectual de um Thomas Jefferson, de
um George Washington ou de um Benjamin Franklin, apenas para citar alguns dos
Founding Fathers, e se constituiu numa experincia nica no contexto poltico da
histria da humanidade?
A resposta mesma deve-se a uma variao de comportamento da coroa britnica
face s suas possesses coloniais em matria de direitos e de liberdade. No sculo XVII,
e tambm na primeira metade do sculo XVIII, com a Inglaterra envolvida nas disputas
internas que levariam deposio e exlio de Jaime II em 1689, as colnias americanas
vivem sob um clima de quase total liberdade.
94 Num panfleto intitulado A Summary View of the Rights of British America, Thomas Jefferson apela justia do monarca britnico para com os seus sbditos nas colnias americanas. O hiato que medeia entre esta petio, escrita em Julho de 1774, e a Declarao da Independncia, adoptada a 4 de Julho de 1776, de apenas dois anos. A gestao revolucionria em solo americano, personificada em Jefferson, consumou-se de forma breve. Cf. V. Soromenho-Marques, Cidadania no Novo Mundo Thomas Jefferson e a Revoluo Americana in A Era da Cidadania, p. 168. 95 Os primeiros colonos desembarcaram definitivamente em solo americano apenas em 1620. At ento a coroa inglesa nunca tivera um plano bem definido para a colonizao do territrio norte-americano. Para uma anteviso do processo de formao do territrio americano, veja-se o breve, mas excelente ensaio, de Leandro Karnal, Estados Unidos A Formao da Nao e tambm a obra de Daniel J. Boorstin, Os Americanos A Experincia Colonial. 96 Leandro Karnal, op. cit., pp. 35-36.
33
Como afirma Leandro Karnal:
Tanto para os colonos do Massachusetts como para os colonos da Virgnia, a tradio de liberdade foi
reforada ao longo de todo o sculo XVII pela quase ausncia total da Inglaterra97.
Sem a superviso e a tutoria das autoridades britnicas, o processo de crescimento
da identidade das colnias foi feito quase de forma autnoma. Ainda antes da
independncia, as colnias americanas edificaram a concretizao da liberdade em
vrios domnios: do religioso98 liberdade de comrcio99.
Porm, a partir da segunda metade do sculo XVIII, registou-se uma mudana de
atitude da coroa britnica face s possesses americanas. Fruto principalmente de dois
motivos:
1) Dos encargos gerados para a Inglaterra pela sua participao na French and Indian
War100;
2) Das exigncias econmicas suscitadas pela Revoluo Industrial que estava a dar os
seus primeiros passos em solo britnico101.
A alterao de comportamento traduz-se num conjunto de medidas polticas,
inicialmente de carcter econmico102, que limitam a soberania econmica das
colnias americanas suscitando uma onda de descontentamento cada vez maior dos
sbditos contra a coroa britnica e a afirmao de um sentimento de identidade
nacional que culminaria na independncia.
No perodo crtico de 1763 a 1776, a insurgncia dos colonos e o completo autismo da
Inglaterra face aos interesses e direitos norte-americanos culminaria em diversas
peties e na ecloso de conflitos armados no incio da dcada de 1770.
97 Leandro Karnal, Revoluo Americana Estados Unidos, Liberdade e Democracia in Jaime e Carla Pinsky (Org.), Histria da Cidadania, p. 138. 98 A este respeito leia-se a primeira parte da obra citada de Boorstin. 99 Leandro Karnal, op. cit., p. 138. 100 Conflito que ops britnicos e franceses entre 1754 e 1763 em solo norte-americano. 101 Leandro Karnal, op. cit., p. 138. 102 Entre elas encontram-se os Navigation Acts, Writs of Assistance ou o Stamp Act. Todas elas limitavam a liberdade dos colonos americanos face colonizao britnica. Com o decorrer da dcada de 1760 e incio da de 1770, as imposies britnicas fizeram recrudescer a tolerncia dos colonos americanos face metrpole. Para uma descrio mais detalhada destas medidas, cf. V. Soromenho-Marques, op. cit., p. 167.
34
Que direitos reivindicavam os sbditos americanos a Jorge III, monarca ingls?
Em primeiro lugar, o mesmo grau de igualdade que possuam todos os outros sbditos
da coroa britnica. Os colonos insurgem-se contra a prepotncia manifestada pela
metrpole na sucesso das medidas adoptadas entre 1763 e 1774 e a ausncia de
representantes no Parlamento de Londres103. Segundo o que foi expresso no Segundo
Congresso Continental de Filadlfia, em 1774, o que estava em causa era nada mais
nada menos que a violao dos direitos bsicos da liberdade104.
atravs desta mesma liberdade, gravemente usurpada pela intolerncia britnica,
que as treze colnias iro forjar o sentimento de identidade para a construo de uma
nova nao. Ela ir ser o denominador que agregar as colnias americanas na
constituio dos independentes Estados Unidos da Amrica.
Segundo Karnal,
S a construo de um determinado conceito de liberdade poderia unir fazendeiros escravocratas da
Virgnia, comerciantes e manufactureiros da Nova Inglaterra, puritanos de Boston, catlicos do
Maryland, quacres da Pensilvnia, moradores de cidades como Nova York e muitos alemes das colnias
centrais. A liberdade passou a ser constituda como factor de integrao nacional e de inveno de um
novo Estado105.
ela que vai inspirar a luta de homens como Jefferson, Washington e Franklin ou as
ardentes elocues de Thomas Paine nos seus escritos panfletrios e que conduzir,
por exemplo, George Mason, poltico da Virgnia, a exultar em 1776, na Declarao de
Direitos da Virgnia106
Que todos os homens so por natureza igualmente livres e independentes, e tm certos direitos que
lhe so inerentes ()107.
No entanto, o que a posteridade histrica registaria no seria este, mas sim um outro
documento ratificado semanas mais tarde pelo Congresso. A Declarao da
103 V. Soromenho-Marques, op. cit., p. 166. 104 Leandro Karnal, op. cit., p. 138 105 Leandro Karnal, op. cit., p. 141. 106 Adoptada a 12 de Junho de 1776 e precede a Declarao de Independncia. 107 Ponto 1 da Declarao de Direitos da Virgnia (1776). Traduo de Viriato Soromenho-Marques em Direitos Humanos e Revoluo, p. 93.
35
Independncia dos Estados Unidos da Amrica, fruto do gnio literrio e filosfico
mpar de Thomas Jefferson, consagra, a 4 de Julho de 1776, uma janela descerrando
um novo mundo na luta pelos direitos de cidadania e da conquista da liberdade:
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens so criados iguais,
dotados pelo Criador de certos direitos inalienveis, que entre estes esto a vida, a liberdade e a
procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos so institudos entre os homens,
derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de
governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alter-la ou aboli-la e instituir novo
governo []108.
Para os Founding Fathers, em 1776, no se tratava j apenas da separao da coroa
inglesa.
Como afirma Leandro Karnal,
No havia apenas uma luta para enfrentar, havia uma memria e uma identidade a construir109.
Os ditames intelectuais dessa identidade expressa no texto da Declarao assentam no
contedo da Bill of Rights inglesa de 1688, mas ecoam, sobretudo, fiel e
profundamente, a herana de John Locke110, exaustivamente lido nas universidades
norte-americanas e os princpios fundamentais do Segundo Tratado sobre o Governo
Civil: o governo como um acto de consentimento pela vontade do povo, os direitos
naturais inalienveis, um governo criado para preservar os direitos naturais dos
indivduos e o direito a depor um governo que atentasse contra os direitos
fundamentais.
108We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. That to secure these rights, Governments are instituted among Men, deriving their just powers from the consent of the governed, That whenever any Form of Government becomes destructive of these ends, it is the Right of the People to alter or to abolish it (). Declaration of Independence. 109 Leandro Karnal, op. cit., p. 138. 110 No sendo a nica influncia, , pelo menos, a mais notria e directa. Herbert Aptheker, autor de American Revolution 1763-1783, identifica, entre outros, Beccaria, Burlamaqui, Puffendorf, Voltaire e Diderot. Cf. Karnal, op. cit., nota 17, p. 154.
36
Subscrevemos inteiramente esta afirmao de Karnal:
Raras vezes na histria um autor teve uma influncia to clara em um texto elaborado em outro
pas111.
A constituio da identidade norte-americana na ps-independncia tem, quanto a
ns, o seu marco de referncia no modo como se procedeu construo da
arquitectnica institucional da democracia nos Estados Unidos nos anos subsequentes
revoluo. Reconhecida a independncia por parte da Inglaterra, em 1783 atravs do
Tratado de Paris, urgia agora criar e consolidar a sustentabilidade das estruturas
polticas americanas de forma a harmonizar a convivncia entre os treze Estados.
Envolto na atmosfera e no esprito das ideias iluministas, melhor dizendo,
concretizando o desgnio das Luzes, o debate poltico que se gerou nesses anos e que
levou ratificao da Constituio na Conveno de Filadlfia, em 1787, dos quais os
Federalist Papers de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay nos do conta,
constitui um edificante exemplo de maturidade cvica e poltica dos norte-americanos,
raras vezes ao alcance na histria dos povos.
Os vestgios coloniais haviam sido removidos na sua totalidade: a Constituio
Americana de 1787 inicia-se com We, the People of United States. Ainda que quando
elaborou o pequeno opusculo Resposta pergunta: Que o iluminismo? (1784), Kant
no tivesse como destinatrios directos os norte-americanos pode no ser de todo
injustificado afirmar que os debates em torno da aprovao da Constituio norte-
americana representam uma conquista e um amadurecimento do homem no sentido
da sua emergncia da menoridade poltica.
Mas a arquitectnica democrtica no se quedou por aqui. Como forma de preservar a
garantia das liberdades individuais, e em adenda Constituio, os Estados aprovaram,
em Dezembro de 1791, os dez aditamentos constitucionais da Declarao de Direitos e
Garantias da Constituio Federal Norte-Americana que, entre outros, consagrava a
liberdade de petio, a liberdade de expresso, a necessidade de julgamentos com jri
e a proibio de torturas e penas cruis.
111 Leandro Karnal, op. cit., p. 141.
37
Para alm de aniquilar qualquer precedncia da experincia colonial inglesa, tratava-se
de garantir a proeminncia do indivduo sobre o Estado, contra o qual j autores
como Thomas Paine, em Common Sense, haviam manifestado a sua inteira
desconfiana.
De forma loquaz, Paine, o publicista por natureza da Revoluo Americana e que ainda
antes da Declarao da Independncia j se mostrava a favor de uma ruptura com o
jugo britnico, declara em relao ao Estado, distinguindo-o da sociedade:
A sociedade produzida pelas nossas necessidades e o Governo pela nossa maldade; a primeira
promove a nossa felicidade positivamente unificando os nossos afectos, o ltimo negativamente
restringindo os nossos vcios. Uma encoraja as relaes, o outro cria distines112.
De vocao universal e emancipatria da humanidade113,
() os Estados Unidos da Amrica tinham criado a mais ampla possibilidade democrtica do planeta na
poca da sua independncia. Poderes equilibrados como desejava Montesquieu, presidentes eleitos
regularmente, uma Constituio escrita com princpios de liberdade muito slidos e reforada pelas
emendas da Bill of Rights114.
Motivo de admirao e curiosidade por parte de europeus como o francs Alexis de
Tocqueville (1809-1854), autor do monumental Da Democracia na Amrica (1835-40) e
partidrio do liberalismo ingls que verificou de perto o sistema democrtico
americano em 1831 e 1832, referia-se nestes termos realidade dos EUA:
A Amrica apresenta, em suma, na sua situao actual, o mais estranho fenmeno: os homens surgem
nela mais iguais pela sua fortuna pela sua inteligncia (), do que em qualquer outro pas do mundo, ou
em qualquer sculo da histria que nos seja conhecida115.
112 Traduo de V. Soromenho-Marques em Cidadania no Novo Mundo Thomas Jefferson e a Revoluo Americana in A Era da Cidadania, p. 176. 113 John Adams, segundo Presidente dos EUA, ao falar sobre a experincia norte-americana, considera-a nestes termos: Eu sempre considerei a colonizao da Amrica com grande reverncia e admirao, como a abertura de uma grande vista e desgnio da Providncia para o esclarecimento e emancipao da parte ignorante e escravizada da humanidade em toda a Terra. Cf. V. Soromenho-Marques, A Revoluo Federal Filosofia poltica e debate constitucional na fundao dos E.U.A., p. 12. Traduo do autor. 114 Leandro Karnal, op. cit., p. 143. 115 Alexis de Tocqueville, Da Democracia na Amrica, p. 92.
38
Apesar de que nos EUA, seguindo Tocqueville
() todos amam, com um amor eterno, a igualdade ()116,
no contexto de uma cidadania de matriz liberal117 como a que inspirou a democracia
americana, essa igualdade no foi efectivamente extensvel a todos.
Alm de pactuar com uma realidade que, sob o olhar retrospectivo de um observador
do sculo XXI, prima pela repugnncia moral como o caso da escravatura118, a
democracia americana no conferia, poca, o direito de voto s mulheres e aos
indivduos pobres de raa branca119.
Os direitos de cidadania e de liberdade tambm no seriam aplicados s populaes
indgenas, eles sim os nativos originais do territrio norte-americano. Com o decorrer
da