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Teorias sociais da infância 1 Este capítulo examina os motivos para o ressurgimento do interesse pelas crianças na sociedade e, sobretudo, na sociologia. Revejo teorias tradi- cionais de socialização e de desenvolvimento infantil e apresento os pressu- postos básicos dessas teorias agora colocadas em cena. Finalmente, apresento uma abordagem teórica alternativa ao estudo da infância, que reconceitua o lugar das crianças na estrutura social e destaca as contribuições exclusivas que as crianças dão ao seu próprio desenvolvimento e socialização. A sociologia redescobre a infância Recentemente, há 18 anos, havia uma quase total ausência de es- tudos sobre crianças na sociologia (Ambert, 1986). Atualmente, a situação é muito diferente. Um grande e crescente número de monografias, obras publicadas e artigos de periódicos abordam questões teóricas e relatam con- clusões empíricas relacionadas ao estudo sociológico das crianças e da infância. A socialização da infância tem recebido extensa cobertura em tex- tos introdutórios básicos da sociologia; novos periódicos e seções de asso- ciações nacionais e internacionais dedicados à sociologia da infância foram criados; e cursos sobre a sociologia da infância são atualmente oferecidos com frequência. Esse desenvolvimento da área demorou a chegar e é muito encora- jador. Mas por que as crianças foram ignoradas por tanto tempo pela so- ciologia? Jens Qvortrup (1993a) observa que as crianças não foram tão

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Teorias sociais da infância

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Este capítulo examina os motivos para o ressurgimento do in te res se pelas crianças na sociedade e, sobretudo, na sociologia. Revejo teo rias tra di-cio nais de socialização e de desenvolvimento infantil e apre sento os pressu-postos básicos dessas teorias agora colocadas em cena. Finalmente, apresento uma abordagem teórica alternativa ao estudo da infância, que reconceitua o lugar das crianças na estrutura social e destaca as contribuições exclusivas que as crianças dão ao seu próprio desenvolvimento e socialização.

A sociologia redescobre a infância

Recentemente, há 18 anos, havia uma quase total ausência de es-tudos sobre crianças na sociologia (Ambert, 1986). Atualmente, a situação é mui to diferente. Um grande e crescente número de monografias, obras publicadas e artigos de periódicos abordam questões teóricas e relatam con- clusões empíricas relacionadas ao estudo sociológico das crianças e da infância. A socialização da infância tem recebido extensa cobertura em tex-tos introdutórios básicos da sociologia; novos periódicos e seções de asso-ciações nacionais e internacionais dedicados à sociologia da infância foram criados; e cursos sobre a sociologia da infância são atualmente ofe recidos com frequência.

Esse desenvolvimento da área demorou a chegar e é muito encora-jador. Mas por que as crianças foram ignoradas por tanto tempo pela so-ciologia? Jens Qvortrup (1993a) observa que as crianças não foram tão

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igno radas quanto foram marginalizadas. As crianças foram marginalizadas na sociologia devido a sua posição subordinada nas sociedades e às con-cepções teóricas de infância e de socialização. Como discutirei mais ple-namente no presente capítulo, é comum que os adultos vejam as crianças de forma prospectiva, isto é, em uma perspectiva do que se tornarão – futuros adultos, com um lugar na ordem social e as contribuições que a ela darão. Raramente as crianças são vistas de uma forma que contemple o que são – crianças com vidas em andamento, necessidades e desejos. Na verdade, na vida atual, as necessidades e os desejos das crianças são muitas vezes con-siderados como causa de preocupação por adultos, como problemas sociais ameaçadores que precisam ser resolvidos. Como resultado, as crianças são empurradas para as margens da estrutura social pelos adultos, (incluindo teóricos sociais), mais po derosos, que se concentram, muitas vezes, nas crianças como potencial e ameaça para as sociedades atuais e futuras.

Outra questão levantada pelo ressurgimento do interesse pela in fân-cia é que outras ideias estão sendo apresentadas, reconsiderando, de sa fian-do, refinando e até transformando as abordagens tradicionais e teóricas so-bre as crianças e a infância. Uma razão para isso é que a con sideração de sociólogos por outros grupos subordinados (por exemplo, mi norias e mulhe-res) chamou a atenção para as vidas infantis. Ao con trário de outros grupos subordinados, as crianças não têm nenhum re pre sentante entre os sociólogos; no entanto, o trabalho de feministas e de acadêmicos sobre minorias sociais, ao menos indiretamente, chamou a atenção para o abandono das crianças. Barrie Thorne observa que, em algumas construções ideológicas, “as mulheres es tão estreita e irrefletidamente vinculadas às crianças; a feminidade tem sido equiparada à maternidade numa mistura de identidades que simplesmente não ocorre para os homens e a paternidade” (1987, p. 96; grifo no original). Na verdade, as feministas rotuladas (sobretudo por políticos conservadores) como egoístas e negligentes em relação às crianças responderam que essas devem ser responsabilidade de homens e mulheres. Em seu discurso sobre o reconhecimento de funções mais diversificadas e equitativas entre homens e mulheres, as feministas demoraram a notar a marginalização das crianças no campo da sociologia. No entanto, as análises feministas de ideologias de gênero forneceram uma lente para aquilo que Thorne (1987) chamou de “reenquadramento infantil”, resultando em importantes estudos recentes sobre as crianças, gênero e identidade (Alanen, 1994; Eder, 1995; Mayall, 2002; Thorne, 1993).

Novas formas de conceitualização de crianças na sociologia também decorrem da ascensão de perspectivas teóricas interpretativas e cons­

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tru tivistas na sociologia (Connell, 1987; Corsaro, 1992; James, Jenks e Prout, 1998). Nessas perspectivas, as suposições sobre a gênese de tudo, da amizade aos conhecimentos científicos, são cuidadosamente exa mina-das como construções sociais, em vez de simplesmente aceitas co mo con-sequências biológicas ou fatos sociais evidentes. Isso significa que a infân-cia e todos os objetos sociais (incluindo aspectos como classe, gênero, raça e etnia) são vistos como sendo interpretados, debatidos e definidos nos processos de ação social. Em suma, são vistos como produtos ou cons-truções sociais. Quando aplicadas à sociologia da infância, as pers pectivas interpretativas e construtivistas argumentam que as crianças, as sim como os adultos, são participantes ativos na construção social da infância e na reprodução interpretativa de sua cultura compartilhada. Em contraste, as teorias tradicionais veem as crianças como “consumidores” da cultura estabelecida por adultos.

Teorias tradicionais: socialização

Grande parte do pensamento sociológico sobre crianças e infância deriva do trabalho teórico sobre socialização, processo pelo qual as crian- ças se adaptam e internalizam a sociedade. A maioria focalizava a so cia-lização inicial na família, que vê a criança como internalização da so-ciedade. Em outras palavras, a criança é vista como alguém apartada da sociedade, que deve ser moldada e guiada por forças externas a fim de se tornar um membro totalmente funcional.

Foram propostos dois modelos diferentes do processo de sociali za-ção. O primeiro é um modelo determinista, no qual a criança de sem-penha basicamente um papel passivo. Nessa vertente, a criança é si mul-taneamente uma “iniciante” com potencial para contribuir para a manu-tenção da sociedade e uma “ameaça indomada”, que deve ser con tro lada por meio de treinamento cuidadoso. No segundo, um modelo cons­trutivista, a criança é vista como agente ativo e um ávido aprendiz. Sob essa perspectiva, a criança constrói ativamente seu mundo social e seu lugar nele. Vejamos primeiro o modelo determinista.

O modelo determinista: a sociedade apropria-se da criança

Os primeiros teóricos da socialização enfrentaram um problema. Naquela época, a filosofia do individualismo era rígida; era comum fo ca-lizar o como as pessoas se relacionam com a sociedade. E, dessa forma,

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também a sociedade era reconhecida como um poderoso determinante do comportamento individual. Como esses teóricos fizeram para resolver o dile-ma (Wentworth, 1980, p. 38-39)? A solução para esse problema foi uma con-cepção teórica que descrevesse a apropriação da criança pela sociedade.

Apropriação significa que a criança é tomada pela sociedade; ela é treinada para tornar-se, finalmente, um membro competente e contribuin-te. Esse modelo de socialização é visto como determinista porque a criança desempenha um papel essencialmente passivo. No modelo determinista, surgiram duas abordagens auxiliares diferenciadas entre si principalmente por suas concepções de sociedade. O modelo funcionalista, por um la do, propunha a ordem e o equilíbrio na sociedade e destacava a importância de for mar e preparar crianças para se enquadrarem e contribuírem com essa or dem. Os modelos de reprodução, por outro lado, enfocavam conflitos e de sigualdades sociais e argumentavam que algumas crianças têm acesso diferenciado a certos tipos de treinamento e outros recursos sociais.

Modelos funcionalistas. Os modelos funcionalistas, populares nas décadas de 1950 e 1960, descreviam aspectos bastante superficiais da socialização: o que a criança precisava internalizar e qual a educação dada pelos pais ou quais estratégias de formação deveriam ser utilizadas para garantir tal internalização. Os funcionalistas preocupavam-se pouco com o porquê e com o como as crianças se tornam integradas à sociedade. Alex Inkeles, por exemplo, defendia que o estudo da socialização deve ser inerentemente “voltado para o futuro”, especificando o que a criança deve se tornar para atender aos requisitos essenciais para o funcionamento con tínuo da sociedade (1968, p. 76-77).

O porta-voz principal da perspectiva funcionalista, Talcott Parsons, definiu o tom para a visão prospectiva da socialização de Inkeles. Do pon-to de vista de Parsons, a criança é uma ameaça à sociedade; ela deve ser apropriada e moldada para se amoldar. Parsons definia a sociedade como “uma rede intrincada de interdependentes e interpenetrantes” regras e va lores consensuais (Parsons e Bales, 1955, p. 36). O ingresso da criança nesse sistema é problemático porque, embora tenha potencial para ser útil ao seu funcionamento contínuo, ela também é uma ameaça até que seja socializada. Na verdade, Parsons comparou a criança a um “seixo ‘lançado’ pelo nascimento ao ‘repositório’ social” (Parsons e Bales, 1955, p. 36-37). O ponto de entrada inicial – a família – sente os primeiros efeitos desse “seixo”, e, conforme a criança cresce, os efeitos são vistos co mo uma sucessão de ondas ampliadoras que irradiam para outras partes do sistema.

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Em um processo cíclico, para lidar com problemas, e por meio de um trei-namento formal, para aceitar e seguir normas sociais, a criança internaliza, por fim, o sistema social (Parsons e Bales, 1955, p. 202).

Modelos reprodutivistas. Como teoria sociológica, a visão funcio na-lista de socialização perdeu a preferência. Alguns teóricos sociais alega-ram que a internalização dos requisitos funcionais da sociedade poderia ser vista como um mecanismo de controle social, levando à reprodução so cial ou manutenção das desigualdades de classe (Bernstein, 1981; Bour-dieu e Passeron, 1977). Esses modelos reprodutivistas, como são co nhe-cidos, são centrados nas vantagens usufruídas por aqueles com maior acesso aos recursos culturais. Por exemplo, os pais oriundos de grupos de classe social mais elevada podem garantir que seus filhos recebam edu-cação de qualidade em prestigiadas instituições acadêmicas. Teóricos re-produtivistas também apontam para um tratamento diferenciado dos in-di víduos nas instituições sociais (especialmente no sistema educativo) que reflete e apoia o sistema de classes dominante.

Pontos fracos do modelo determinista. Os teóricos reprodutivistas for-necem uma confirmação do efeito do conflito social e da desigualdade na socialização das crianças. No entanto, teorias reprodutivistas e funcio nalistas podem ser criticadas por sua preocupação excessiva nos re sul tados da so cia-lização, pela subestimação das capacidades ativas e ino vadoras de to dos os membros da sociedade e por sua negligência em relação à natureza his tórica e contingente da ação social e da reprodução. Em suma, esses mo delos abs-tratos simplificam processos altamente com plexos e, no processo, ignoram a importância das crianças e da infância na sociedade.

Uma pergunta essencial é: onde as crianças e a infância se encaixam nessas teorias abstratas da estrutura social? Como era de se esperar, alguns desses teóricos sociais subestimaram a importância das atividades infantis, que consideravam irrelevantes ou não funcionais. Outros deterministas bus -caram teorias de desenvolvimento e aprendizagem infantil que se en qua -drassem aos seus pontos de vista para explicar os mecanismos da so cialização. Parsons, por exemplo, vinculou suas opiniões sobre socia li za ção à teoria de Freud sobre o desenvolvimento psicossexual. Em seu modelo, a socialização ocorre à medida que a criança aprende a agir em conformidade com as nor-mas sociais e valores, em vez de fazê-lo de acordo com impulsos sexuais e agressividade inatos. Inkeles optou por outro tipo de determinismo, o com-portamentalismo, e apontou a importância de uma formação explícita nas

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habilidades necessárias para viver em sociedade, apoiada por um sistema de recompensas e castigos (1968, p. 97-103).

Tanto o modelo funcionalista quanto o reprodutivista ignoram a ques-tão de que as crianças não se limitam apenas a internalizar a sociedade em que nasceram. Como vimos no exemplo do banco itinerante das crianças da pré-escola italiana, no início desta parte, as crianças agem e podem trazer mudanças à sociedade. Os teóricos reprodutivistas são, no entanto, mais in-ventivos que os funcionalistas em seus pontos de vista sobre a socialização. Bourdieu (1977), por exemplo, oferece a complexa e fascinante noção de habitus para apreender como os membros da sociedade (ou atores sociais), por meio de sua participação contínua e rotineira em seus mundos sociais, adquirem um conjunto de predisposições para agir e ver as coisas de uma determinada maneira. Esse conjunto de predisposições, esse habitus, é exer-citado na socialização inicial e permanece em ação de forma produtiva pela tendência da criança, e de todos os atores sociais, de manter seu sentimento de identidade e lugar no mundo (Bourdieu, 1993).

Bourdieu trilha um caminho que produtivamente nos afasta do determinismo e fornece um papel mais ativo para a criança. No entanto, essa concepção de socialização limita o envolvimento das crianças na participação e reprodução cultural quando ignora as contribuições infantis para o refinamento e a mudança cultural. Para chegar a um modelo que realmente incorpore uma criança ativa, temos de considerar a ascensão do construtivismo.

O modelo construtivista: a criança se apropria da sociedade

Grande parte do estudo sociológico sobre a socialização inicial na infância foi influenciada pelas teorias dominantes da psicologia do de-senvolvimento. As teorias que os sociólogos adotavam com maior fre-quência, especialmente variações do comportamentalismo, relegam a criança a um papel passivo. Essas teorias do desenvolvimento são basi ca-mente unilaterais, com a criança sendo formada e moldada por reforços e punições dos adultos. Muitos psicólogos do desenvolvimento, no entanto, passaram a ver a criança como mais ativa do que passiva, envolvida na apropriação de informações de seu ambiente para usar na organização, e construindo sua própria interpretação do mundo.

Teoria de Piaget sobre o desenvolvimento intelectual. Talvez o melhor representante da abordagem construtivista seja o psicólogo suíço Jean Piaget. Ele estudou a evolução do conhecimento em crianças, o que era

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uma forma de integrar dois de seus principais interesses: a biologia e a epistemologia (o estudo do conhecimento) (Ginsburg e Opper, 1988). Os muitos estudos empíricos de Piaget sobre as crianças e seu desenvolvimento tiveram um grande impacto sobre a imagem da criança na psicologia do desenvolvimento. Piaget acreditava que as crianças, desde os primeiros dias da infância, interpretam, organizam e usam informações do ambiente, vindo a construir concepções (conhecidas como estruturas mentais) de seus mundos físicos e sociais.

Piaget é bem conhecido por haver afirmado que o desenvolvimento intelectual não é simplesmente uma acumulação de fatos ou habilidades, mas, na verdade, uma progressão da capacidade intelectual ao longo de uma série de estágios qualitativamente distintos. A noção piagetiana de es-tágios é importante para a sociologia das crianças porque nos lembra que elas percebem e organizam seus mundos de maneira qualitativamente dife-rente dos adultos. Considere, por exemplo, o seguinte incidente, ocorrido em meu primeiro estudo etnográfico com crianças pequenas. Um menino de três anos, Krister, desenhou uma linha sinuosa sobre um quadro-negro. Perguntei-lhe o que era, e ele respondeu: “Uma cobra”. “Uma cobra!”, repeti e, em seguida, perguntei, “Você já viu uma cobra?” “Claro”, disse Krister, apontando para sua linha sinuosa, “Bem ali!” Em seguida, percebi que mi-nha perspectiva da “linha sinuosa” como representação de uma cobra era diferente da perspectiva de Krister sobre sua criação, ou seja, a linha cons-tituía exatamente o que ele disse que ela era: uma cobra!

Como resultado de muitas experiências semelhantes, aprimorei a adoção de perspectivas infantis em meu trabalho de campo. Cheguei tam-bém a acreditar, em consonância com a teoria de Piaget, que qual quer teoria sociológica das crianças e da infância que tente explicar a com preensão e o uso que elas fazem das informações provenientes do mundo adulto, bem como sua participação e a organização de seus mundos com os pares, deve considerar o nível de desenvolvimento cognitivo da criança.

Embora a concepção de Piaget sobre os estágios do desenvolvimento seja o elemento mais conhecido de sua teoria, o ponto mais importante de seus estudos é a concepção de equilíbrio. Equilíbrio é a força central que impulsiona a criança ao longo das etapas de desenvolvimento cognitivo. Infelizmente, esse conceito não é apenas muitas vezes esquecido, mas também frequentemente mal entendido. Muitos teóricos da sociologia e da psicologia (tal como Parsons) utilizam a ideia de equilíbrio para explicar a mudança social, de comportamento ou de atitude como um retorno a

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um estado de equilíbrio (em outras palavras, um acontecimento que cria desequilíbrio será seguido por tentativas da sociedade ou do indivíduo pa ra recuperar o equilíbrio). Piaget, no entanto, está preocupado com o processo de equilibração, ou as atividades reais que a criança desempenha para lidar com os problemas do mundo externo. Piaget concebe equilíbrio como a “compensação resultante das atividades do indivíduo em resposta às invasões externas” (Piaget, 1968, p. 101). Tais invasões são compensadas apenas por atividades, e o equilíbrio máximo envolve não um estado de repouso, mas sim um máximo de atividade por parte da criança.

Piaget acredita que a tendência para compensar o desequilíbrio é ina ta. Essa hipótese biológica ou inatista não significa, porém, que Piaget seja um determinista biológico. Os deterministas biológicos defendem que ten dências, processos ou conhecimentos inatos são as causas ou os de ter minantes do desenvolvimento infantil. Para Piaget, a tendência ina ta para com pensar desequilíbrios é apenas uma parte de seu modelo com-plexo de desenvolvimento intelectual. Embora Piaget acreditasse que as crianças têm uma tendência inata para compensar as intrusões am bientais, a na tureza das compensações é dependente das atividades infantis em seus mundos socioecológicos.

Podemos obter uma compreensão mais concreta do conceito pia-getiano de equilíbrio, bem como dos estágios de desenvolvimento, con si-derando o estudo de caso. de uma experiência de compreensão infantil de conservação de massa, que se segue.

Compreensão infantil de conservação de massa

Em um experimento clássico, Piaget mostra a uma criança entre 4 e 9 anos duas bolas idênticas de argila. A criança tem que responder se cada bola contém a mesma quantidade de argila. Se a criança achasse que não, seria orientada a retirar ou acrescentar argila para tornar as bolas idênticas. Em seguida, Piaget mudaria o formato de uma das bolas para o de uma salsicha na frente da criança. A criança tem então que responder se a bola e a salsicha contêm a mesma quantidade de argila. Essa experiência pode ser vista como ilustrativa do processo de equilibração, no qual a criança tenta estabelecer o equilíbrio por meio de uma série de estratégias. Pode mos apreender a natureza dos caminhos que cada criança percorre verifi cando como crianças de diferentes idades lidam com o problema:1. A criança muito jovem, de 4 ou 5 anos, concentra-se em uma ca-

racterística ou dimensão dos objetos, geralmente o comprimento, e é capaz de dizer com uma grande convicção. “Este aqui, porque é mais

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com prido!” A criança desconhece o conceito de conservação de massa e refere-se apenas a uma dimensão. A criança demonstra um alto grau de certeza e a atividade mental ou pensamento é limitado. Na verdade, a criança pode ainda afirmar que o problema é muito fácil, bobo ou possivelmente um truque.

2. A criança ligeiramente mais velha, com 6 ou 7 anos, tende a inverter sua afirmação original porque percebe uma segunda dimensão (largura ou finura). Nesse momento, uma nova estratégia torna-se provável, porque a incerteza da criança a leva a uma maior atividade para lidar com a invasão. Ao pensar sobre a invasão, a criança oscila em seu pensamento e pode tornar-se vagamente ciente da interdependência entre o com-primento da salsicha e sua finura. Aqui, uma criança pode começar com confiança: “Este aqui, porque é mais comprido. Não, espera, este aqui por que é mais gordo. Ah, eu não sei!”

3. A criança de 7 a 9 anos age com a percepção da interdependência. Ela coloca a ênfase mental sobre a transformação em vez da configuração estática com dimensões. Ela tomará as duas bolas como a mesma e ago-ra afirmará que são iguais. Aqui a criança muitas vezes será cuidadosa, en rolando a bola em uma segunda salsicha e mantendo as duas lado a la do para ver se correspondem. Em caso negativo, ela volta a trabalhar, encurtando uma ou aumentando a outra até que ela própria se convença de que são iguais. Aqui há um máximo de atividade no processo de equi-libração, à medida que a criança se aproxima da percepção mental de conservação de massa.

4. Dos 9 aos 11 anos, a estratégia começa com a descoberta de compen-sações da transformação (isto é, quando a argila alonga-se, torna-se mais fina; quando se torna mais grossa, seu comprimento diminui). Aqui, a criança pode zombar da pergunta, dizendo: “Obviamente são iguais!” ou “Sabe, não faz nenhuma diferença. Posso tornar esta bola uma salsicha ou fazer da salsicha uma bola”, fazendo o que descreve en quanto fala. Nesse ponto, a conservação é aceita, e a criança com-preende a reversibilidade. A certeza agora retorna, e problemas como es se parecerão simples no futuro.

Adaptado de Piaget (1968, p. 112) e Ginsburg e Opper (1988, p. 150-151).

Visão sociocultural do desenvolvimento humano de Vygotsky. Outro importante teórico construtivista é o psicólogo russo Lev Vygotsky. Como Piaget, Vygotsky destacou o papel ativo da criança no desenvolvimento humano. Vygotsky, no entanto, acreditava que o desenvolvimento so cial da criança é sempre o resultado de suas ações coletivas e que essas ações

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ocorrem e estão localizadas na sociedade. Portanto, para Vygotsky, mudanças na sociedade, especialmente as alterações nas demandas so ciais sobre o indivíduo, exigem mudanças nas estratégias para lidar com essas exigên-cias. Para Vygotsky, estratégias para lidar com alterações nas demandas sociais são sempre coletivas; isto é, elas sempre envolvem interação com outras pessoas. Essas estratégias coletivas são vistas como ações práticas que levam ao desenvolvimento psicológico e social. Nesse sentido, intera-ções e atividades práticas da criança com outras pessoas levam à aquisição de novas competências e conhecimentos, que são vistos como a transfor-mação das habilidades e dos conhecimentos anteriores.

Um princípio-chave da visão de Vygotsky é a internalização ou apro-priação da cultura pelo indivíduo. Especialmente importante nesse pro-cesso é a linguagem, que codifica a cultura e é uma ferramenta de par tici-pação nela. Vygotsky argumenta que a linguagem e outros sistemas de sig nificado (por exemplo, escrita, filmes e assim por diante), assim como sistemas de ferramentas (por exemplo, objetos materiais, tais co mo máqui-nas), são criados pelas sociedades ao longo da história e são alterados com o desenvolvimento cultural. Assim, Vygotsky afirma que as crianças, por meio da aquisição e utilização da linguagem, terminam por reproduzir uma cultura que contém o conhecimento das gerações.

Vygotsky oferece uma abordagem construtivista de desenvolvimento humano bastante diferente da de Piaget. Embora ambos tenham conside ra do o desenvolvimento como resultante das atividades infantis, Vygotsky não fez nenhuma suposição inatista, semelhante à noção de equilíbrio de Piaget, co-mo motivador das atividades da criança. Vygotsky observou as ati vidades práticas desenvolvidas nas tentativas da criança para lidar com problemas cotidianos. Além disso, ao lidar com esses problemas, a criança sempre desen-volve estratégias coletivamente – isto é, na interação com outras pessoas. Assim, para Piaget, o desenvolvimento humano é basicamente individualista, enquanto para Vygotsky é essencialmente coletivo.

Existem outras diferenças entre os dois teóricos. Piaget concentrou--se mais sobre a natureza e as características dos processos e estruturas cognitivas, enquanto Vygotsky enfatizou os contextos de desenvolvimento e a história. Como resultado, em vez de identificar fases abstratas de de-senvolvimento cognitivo, Vygotsky procurou especificar os eventos cul-turais e as atividades práticas que levam à apropriação, internalização e reprodução da cultura e da sociedade.

Como, especificamente, esses processos de internalização, apro-pria ção e reprodução ocorrem? Dois conceitos de Vygotsky são cruciais. O

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primeiro é a noção de internalização. De acordo com Vygotsky, “ca da função no desenvolvimento da criança aparece duas vezes: primeiro no nível social e mais tarde no nível individual; em primeiro lugar, en tre as pes soas (interpsicológico), e, em seguida, dentro da criança (intra psi-cológico)” (1978, p. 57). Com isso, Vygotsky quer dizer que todas as nos-sas habilidades psicológicas e sociais (cognitivas, comunicativas e emocio-nais) são sempre adquiridas a partir de nossas interações com ou tras pessoas. Desenvolvemos e usamos essas habilidades, primeiro em nível interpessoal, antes de internalizá-las em nível individual.

Considere as concepções de Vygotsky sobre o discurso autodirecio-nado e interior. Por discurso autodirecionado, Vygotsky se refere à ten-dência das crianças em falar em voz alta para si, especialmente em situa-ções pro blemáticas. Piaget definiu tal discurso como egocêntrico ou emo-cional, não relacionado com qualquer função social. Vygotsky, por outro lado, viu o discurso autodirecionado como uma forma de comunicação inter pessoal, mas, nesse caso, a criança aborda a si mesma como outra pessoa. Em certo sentido, a criança orienta e aconselha a si mesma sobre co mo lidar com um problema. Em seu trabalho experimental, Vygotsky concluiu que tal evento aumentava quando as crianças tinham uma tarefa, como a criação de um carro com blocos de construção, ou eram solicitadas a fazer um desenho. Vygotsky acreditava que, ao longo do tempo, o discur-so autodirecionado era transformado ou internalizado do interpessoal pa-ra o intrapessoal, tornando-se um discurso interior ou uma forma de pen-sa mento. Podemos compreender suas ideias quando pensamos sobre co-mo aprendemos a ler. A maior parte de nossa leitura inicial, quando crian-ças, era realizada em voz alta, ao lermos para nós mesmos ou para terceiros. Com o passar do tempo, começamos a murmurar e, em seguida, a formar com a boca as palavras à medida que eram lidas, e, finalmente, já éramos capazes de ler inteiramente em um nível mental. Em suma, a função intrapsicológica ou a habilidade de leitura tem suas origens na atividade social ou coletiva de leitura em voz alta para outros e para nós mesmos. Para Vygotsky, a internalização ocorre gradualmente durante um período prolongado de tempo.

Em um segundo conceito importante, Vygotsky constrói sua visão da linguagem como ferramenta cultural. De acordo com ele, a atividade humana é inerentemente mediadora uma vez que é realizada por meio da linguagem e de outras ferramentas culturais. Uma parte significativa das atividades cotidianas da criança ocorre no que Vygotsky chama de zona de desenvolvimento proximal: “a distância entre o nível de desenvol-

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vimento real, determinado pela solução independente de pro blemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado por meio da resolução de problemas, sob a orientação de adultos ou em colaboração com colegas mais capazes” (Vygotsky, 1978, p. 86). Vamos voltar a nosso exemplo do processo de aprender a ler. O nível real da capacidade de leitura de uma criança poderia ser medido por sua capacidade de ler, resumir e falar sobre uma história como Cinderela ou Branca de Neve. Seu nível potencial de desenvolvimento poderia ser estimado por sua capacidade de ler, re-sumir e discutir a história com a ajuda de professores, pais e colegas mais velhos. O primeiro indica o domínio integral da criança de uma capacidade ou habilidade especial, enquanto o último indica seu nível de domínio potencial. A distância entre os dois níveis é a zona de desenvolvimento proximal, conforme ilustra a Figura 1.1.

Níveldedesenvolvimentoreal

Zona de desenvolvimentoproximal

Níveldedesenvolvimentopotencial

Figura 1.1ZonadedesenvolvimentoproximaldeVygotsky.

Como podemos ver nessa exposição, nas interações com outras pes-soas, a criança está sempre um passo à frente em seu desenvolvimento do que se estivesse sozinha. Nesse sentido, as interações na zona de desen-volvimento proximal “são a prova final do desenvolvimento e da cultura, na medida em que permitem que as crianças participem de atividades que seriam impossíveis de realizar por si mesmas, usando ferramentas culturais a que elas próprias devem adaptar-se para efetuar a atividade específica em questão e, assim, passadas adiante e transformadas por novas gerações” (Rogoff, Mosier e Göncü, 1989, p. 211). Assim, o modelo de desenvolvi-mento é um modelo no qual as crianças apropriam-se gradualmente do mundo adulto por meio de processos conjuntos de compartilhamento e criação de cultura (Bruner, 1986).

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Pontos fracos do modelo construtivista. Embora a aceitação geral do construtivismo tenha movido a teoria e a pesquisa em psicologia do de-sen volvimento na direção certa, seu foco principal continua a ser o de-sen volvimento individual. Podemos ver isso nas repetidas referências à atividade da criança, ao desenvolvimento da criança, ao processo da criança de tornar-se um adulto. Na teoria de Piaget, o foco é o domínio do mundo por uma criança isolada em seus próprios termos. O cons tru-tivismo oferece uma visão ativa, mas solitária, das crianças. Mesmo quan-do os outros (pais, colegas e professores) são levados em conta, o foco per manece sobre os efeitos das diferentes experiências interpessoais no de sen volvimento individual. Há pou ca, ou nenhuma, consideração sobre co mo as relações interpessoais são refletidas em sistemas culturais, ou como as crianças, por meio de sua participação em eventos comunicativos, tor nam-se parte dessas relações interpessoais e padrões culturais e como os reproduzem coletivamente.

Outra limitação da psicologia do desenvolvimento construtivista é a preocupação exagerada com o ponto de chegada do desenvolvimento, ou o percurso da criança, da imaturidade à competência adulta. Vejamos, por exemplo, as pesquisas sobre amizade. O foco de quase todas as pes-qui sas é a identificação de estágios nas concepções abstratas da criança sobre a amizade. Essas concepções são obtidas por meio de entrevistas clí nicas, e comparadas às do adul to com petente (Damon, 1977; Selman, 1980). Além disso, alguns psicólo gos es tudam como é ser ou ter um ami-go em mundos sociais infantis, ou como desenvolver concepções de ami-za de está incorporado às interações da criança na cultura de pares.

Essa ênfase sobre o ponto de chegada do desenvolvimento é tam-bém evidente no interesse de muitos psicólogos desenvolvimentistas na noção de internalização de Vygotsky. Como vimos anteriormente, ele des-tacou tanto as interações coletivas infantis com outros, em ní vel inter-pessoal, quanto a internalização dessas interações, ao nível intrapessoal, em sua teoria sobre a apropriação infantil da cultura. Ainda assim, muitas pesquisas cons trutivistas colocam tanta ênfase na segunda fase da in-ternalização que muitos percebem a apropriação da cultura como o des-locamento do externo para o interno. Esse equívoco empurra as ações coletivas da criança com outras pessoas para um plano de fundo e sugere que a participação do ator na sociedade ocorre somente após a inter na-lização individual.

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Extensões de Piaget e Vygotsky. Recentes debates teóricos e pesquisas realizadas por seguidores de Piaget e teóricos socioculturais influenciados por Vygotsky ampliaram a teoria construtivista, concentrando-se mais na agência das crianças na infância e na importância da interação entre pa-res. Por exemplo, Tesson e Youniss (1995) argumentam que houve dema-siada ên fase sobre os detalhes dos estágios na psicologia do desenvolvi-mento. Eles defendem que Piaget não deu muita importância aos estágios e que seu trabalho posterior investigou a inter-relação entre as qualidades sociais e ló gicas do pensamento infantil. Ampliando o trabalho de Piaget sobre de sen volvimento moral, Tesson e Youniss alegam que as operações piagetianas permitem um conjunto de possibilidades de ação para que as crianças cons truam sentidos sobre o mundo. Assim, Piaget atribuiu a agên cia às crianças e alegou que as relações das crianças com seus pares eram mais propícias ao desenvolvimento das operações cognitivas do que os relacionamentos autoritários com adultos. Nesse sentido, Piaget fez uma distinção entre os modos de comportamento práticos e os teóricos. “A prática ocorre no plano de ação direta, o teórico, no plano da consciência. Piaget propôs uma rela ção de desenvolvimento entre os dois. Primeiro, a criança trabalha a concep ção de regras no decurso da interação real com pares e, em seguida, esboça na consciência uma representação simbólica desse conceito uma vez prático” (Youniss e Damon, 1994, p. 277). Como veremos mais adiante, a abordagem interpretativa à socialização na infân-cia dá ênfase especial às atividades práticas da criança, em sua produção e participação na cultura de pares.

Trabalhos recentes realizados por teóricos socioculturais desen-volvem a teoria de Vygotsky numa perspectiva semelhante, destacando tam bém as atividades coletivas das crianças com seus pares e com ou tros. Rogoff, por exemplo, ampliando Vygotsky, argumenta que “o desen vol-

vimento humano é um processo de mudança na participação das pes soas em atividades socioculturais de suas comunidades” (2003, p. 32). Pa ra com-preender a natureza da parti cipação de crianças em atividades so ciocul-turais, Rogoff (1996) sugere que seja estudada em três diferentes planos de análise: a comunidade, o interpes soal e o indivídual. No en tanto, Rogoff observa que esses processos não devem ser analisados sepa-radamente, mas em conjunto, em atividades coletivas. Em consonância com essa visão do desenvolvimento humano, Rogoff introduz a noção de “apropriação parti cipativa”, pela qual quer dizer que “qualquer even to no presente é uma extensão de eventos anteriores e dirige-se a metas que ainda não foram realizadas” (Rogoff, 1995, p. 155). Assim, experiências

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anteriores de ativi dades coletivamente produzidas e compartilhadas não são apenas armaze nadas na memória individual e evocadas no presente; em vez disso, a participação anterior do indivíduo contribui e ativa o even-to atual por tê-lo preparado.

Novamente, nessa ampliação da abordagem construtivista, observa-mos nova ênfase nas ações coletivas no contexto social como essenciais pa ra o desenvolvimento infantil e de todos os seres humanos. Para enten-der mais plenamente a importância da ação coletiva e da construção pelas crianças de suas próprias culturas de pares, teremos agora uma discussão do conceito de reprodução interpretativa.

Reprodução interpretativa: as crianças participam coletivamente na sociedade

As teorias sociológicas da infância devem se libertar da doutrina individualista que considera o desenvolvimento social infantil unicamente como a internalização isolada dos conhecimentos e habilidades de adultos pela criança. Numa perspectiva sociológica, a socialização não é só uma questão de adaptação e internalização, mas também um processo de apro-priação, reinvenção e reprodução. O que é fundamental para essa visão de socialização é o reconhecimento da importância da atividade coletiva e conjunta – como as crianças negociam, compartilham e criam cultura com adultos e entre si (Corsaro, 1992; James, Jenks e Prout, 1998).

No entanto, dizer que uma perspectiva sociológica de socialização destaca a importância de processos coletivos e conjuntos não é suficiente para a construção de uma nova sociologia da infância. O problema é o termo socialização propriamente dito. Ele tem uma conotação individualista e progressista que é incontornável. Qualquer pessoa que ouça a palavra imediatamente pensa em formação e preparação da criança para o futuro (Thorne, 1993, p. 3-6; ver também James, Jenks e Prout, 1998, p. 22-26). Em vez disso, proponho a noção de reprodução interpretativa. O termo interpretativo abrange os aspectos inovadores e criativos da par ticipação infantil na sociedade. Na verdade, como veremos ao longo deste livro, as crianças criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações. O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a in-ternalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a pro-

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dução e mudança culturais. O termo também sugere que crianças estão, por sua própria participação na sociedade, restritas pela estrutura social existente e pela reprodução social. Ou seja, a criança e sua infância são afe ta das pelas sociedades e culturas que integram. Essas sociedades e culturas foram, por sua vez, moldadas e afetadas por processos de mudanças his tóricas.

Vamos detalhar mais essa noção de reprodução interpretativa obser-vando dois de seus elementos principais: a importância da linguagem e das rotinas culturais e a natureza reprodutiva da participação das crianças na evolução de suas culturas.

Linguagem e rotinas culturais. A reprodução interpretativa coloca ênfase especial na linguagem e na participação infantil em rotinas cultu-rais. A língua é fundamental à participação das crianças em sua cultura como um “sistema simbólico que codifica a estrutura local, social e cultu-ral” e uma “ferramenta para estabelecer (isto é, manter, criar) realidades sociais e psicológicas” (Ochs, 1988, p. 210). Esses recursos inter-relacio-nados da linguagem e de seu uso são “profundamente incorporados e con tribuem para o cumprimento das rotinas concretas da vida social” (Schieffelin, 1990, p. 19).

A participação das crianças nas rotinas culturais é um elemento essencial da reprodução interpretativa. O caráter habitual, considerado como óbvio e comum, das rotinas fornece às crianças e a todos os atores sociais a segurança e a compreensão de pertencerem a um grupo social. Por outro la do, essa previsibilidade muito fortalece as rotinas, fornecendo um quadro no qual uma ampla variedade de conhecimentos socioculturais pode ser produ zi da, exibida e interpretada. Dessa forma, rotinas culturais servem como ân coras que permitem que os atores sociais lidem com a problemática, o inespe ra do e as ambiguidades, mantendo-se confortavelmente no confina-mento ami gável da vida cotidiana (Corsaro, 1992).

A participação nas rotinas culturais começa muito cedo, quase que desde o minuto em que as crianças nascem. No início da infância, ao me nos nas sociedades ocidentais, quando as habilidades comunicativas e de lin guagem da criança são limitadas, a interação social segue em con so nância com a suposição “como se”. Ou seja, bebês são tratados como social mente competentes (“como se” fossem capazes de inter-câmbios so ciais). Ao longo do tempo, devido a essa atitude de “como se”, as crianças passam de uma limitada a uma plena participação nas ro tinas culturais.

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Considere, por exemplo, a famosa brincadeira de esconde-esconde entre pais e filhos. Em seu estudo sobre seis díades mãe-bebê, Bruner e Sherwood (1976) identificaram quatro fases básicas do esconde-esconde: (1) contato inicial ou atenção compartilhada (geralmente estabelecido pela mãe por vocalização ou pelo olhar); (2) o desaparecimento (geral-mente a mãe ocultando sua face ou a de seu filho com as mãos ou com um pano, acompanhado por vocalizações como “Onde está meu nenê?”); (3) reapare cimento (remoção das mãos ou do pano, geralmente pela mãe); e (4) o resta belecimento de contato (normalmente com vocalizações, como “buu”, “aqui está o nenê” e assim por diante, pela mãe, e uma res posta como um sorriso ou uma risada da criança). Bruner e Sherwood observaram que o que a crian ça parece estar aprendendo “não se limita às regras bási-cas do jogo, mas ao intervalo de variação possível com o conjunto de re-gras” (1976, p. 283). Assim, ao participar da rotina, as crian ças aprendem um conjunto de regras previsíveis que oferecem segu rança e aprendem tam bém que variações nas regras são possíveis e até desejáveis. Dessa for-ma, as crianças desenvolvem ideias sobre o caráter gerativo ou produtivo da participação cultural em uma rotina de jogo, da qual elas extraem gran de prazer. Além disso, sabemos, a partir de um trabalho posterior (Ratner e Bruner, 1977), que há um movimento da função “como se” desses jogos nos primeiros meses de vida, quando a par ticipação infantil muitas vezes é limitada a uma função responsiva, até um ponto em que as mesmas crian ças com 1 ano de idade iniciam e direcionam os jogos, até mesmo crian do e participando de outros tipos de jogos de escon de-esconde sozi nhos e com outras pessoas.

Dizer que os adultos sempre buscam o entendimento compartilhado com crianças e que a adoção de uma atitude “como se” em jogos entre pais e filhos é crucial para a realização de atividades conjuntas não signi-fica que a compreensão compartilhada seja sempre alcançada e mantida na interação entre adultos e crianças. O importante não é que o enten di-mento compartilhado sempre seja alcançado, mas que haja tentativas, tan to dos adultos quanto das crianças, para chegar a tal entendimento. Mui tas vezes, especialmente na interação adulto-criança, as crianças são ex postas a conhecimentos sociais e demandas comunicativas que elas não compreendem plenamente. A interação normalmente continua de forma ordenada, e qualquer ambiguidade persistente deve ser trabalhada ao lon go das experiências infantis com adultos e pares.

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As batatinhas fritas têm sangue?

Para ilustrar o poder e a importância das rotinas culturais, vamos considerar um exemplo da vida real: a investigação de uma rotina interativa diária entre um menino de 2 anos e meio, Buddy, e sua mãe, gravada na casa da família, como parte de minha pesquisa há alguns anos. Buddy e sua mãe conversavam todos os dias da semana enquanto ela preparava o almoço. Nesta conversa, Buddy ainda está curioso sobre o “sangue” saído de seu dedo cortado na véspera:Mãe: O quê?Buddy: As batatinhas fritas têm sangue nelas? Tem sangue dentro delas?Mãe: Não, acho que não.Buddy: Crianças e pessoas têm.Mãe: Aham.Buddy: E monstros.Mãe: Sim.Buddy: Como o Grover tem sangue dentro dele.Mãe: Bem, o Grover é um monstro de faz-de-conta. Na verdade, ele é um fantoche, sabe?Buddy: Sim.Mãe: Então ele não poderia ter sangue nenhum.Buddy: Mas Harry tem.Mãe: Bem, eles são apenas bonecos. O Garibaldo e o Come-come.Buddy: Sim.Mãe: Eles são feitos de pano e enchimento.Buddy: Sim, como...Mãe: Eles foram construídos por alguém...Buddy: Harry tem sangue.Mãe: Acho que não. Sangue de mentirinha, talvez.Buddy: Sim, pode ser... Pode ser que o Grover e o Come-come e o Harry tenham sangue de mentirinha. Pode ser... Mas pode ser que eles tenham sangue de verdade.Buddy: Mamãe, um dia eu quero ir para a Vila Sésamo e nós poderemos ver se aqueles monstros têm sangue.Mãe: Você quer?Buddy: Sim.Mãe: Eu não sei. Teremos que pensar sobre isso. Mas você sabe o que mais? A Vila Sésamo é realmente uma terra de faz-de-conta.Buddy: Oh, eu não sabia.Mãe: Você pode fingir um monte de coisas sobre a Vila Sésamo.

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Uma série de questões relevantes para a reprodução interpretativa é levantada nesse curto episódio:

1. Por que essa é uma rotina?Conversas diárias desse tipo e nessa hora do dia são recorrentes e

previsíveis nessa família. Na verdade, essa recorrência e seu caráter co-mum oferecem uma oportunidade de rever questões que são problemáticas e confusas na atividade cotidiana de “almoçar”. Por sua participação muito ativa nessa rotina cotidiana, a mãe e a criança reafirmam sua re lação com o outro e resolvem os problemas e confusões sobre o mundo.

2. Como Buddy está usando a rotina?Em primeiro lugar, Buddy usa a oportunidade para abordar sua

curiosidade sobre o sangue e quem o tem ou não. Em um nível superficial, sua confusão sobre sangue refere-se a uma distinção entre objetos ani-mados e inanimados. Mas logo a discussão vai além dessa distinção, pa ra uma discussão sobre objetos animados “reais” e “de mentirinha”. Em se-gundo lugar, a rotina dá a Buddy uma oportunidade de exibir seus conhe-cimentos e discutir seus interesses com um responsável adulto, receptivo e encorajador. Nesse sentido, a repetição de tais rotinas reafirma esses la-ços e o status de Buddy como um membro ativo da família.

3. Como a mãe do Buddy usa a rotina?Em primeiro lugar, em um nível, a rotina fornece a ela informações

so bre um conceito confuso que Buddy está tentando compartilhar (a dis-tinção en tre objetos animados e inanimados). Em outro nível, porém, a mãe de Buddy percebe o vínculo (para Buddy) entre essa distinção e uma distinção mais geral e complexa entre a realidade e o faz-de-con ta na cul-tura moderna. Considere a complexidade: animado versus ina nimado, ob-je tos de simulação de animação (bonecos, marionetes e as sim por diante) versus objetos inanima dos (batatas, maçãs, um vaso de flor) e os perso na-gens de um seriado infantil de televisão. Em segundo lugar, a mãe consi-dera que o problema tem um sig nificado cultural maior quan do Buddy propõe uma visita à Vila Sésamo. Ela percebe que seu conhecimento da cul tura da Vila Sésamo é diferente do de seu filho: ela sabe que é uma cultura de te levisão, fictícia; ele, não. Ela deve decidir agora até onde pode ir para re solver essas distinções, dados os valores e crenças de nossa cultura (e sua interpretação e compromisso com tais crenças e valo res) relativos à exis tên cia de certas figuras fictícias (tais como Papai Noel, a Fada do Dente e Garibaldo). Em terceiro lugar, a mãe usa a rotina para rea fir mar a relação próxima e o laço existente com seu filho. Ela tem a

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oportunidade de mos trar abertura para a curiosidade e preocupa ções dele. Na verdade, es sa rotina de “conversar no almoço” pode ter sido criada pela mãe de Buddy exatamente por isso.

4. A natureza emergente das rotinasEsse exemplo demonstra como a previsibilidade extrema das ro ti nas

fornece um quadro para a produção, exibição e interpretação de co nhecimento, de valores e de crenças culturais. Vemos como os par ti cipantes se movem rapidamente de uma questão fundamental sobre o san gue para uma discussão de uma grande variedade de fatos, valores e relações culturais. Embora o qua dro geral da rotina em si (falar à hora do almoço) seja recorrente e pre-visível, o que emerge dessa conversa (ex tensões e variações da rotina) não o é. O que vemos aqui é que as crian ças, à medida que se tornam parte de suas culturas, têm ampla liberdade interpretativa para dar sentido aos seus luga-res no mundo. Assim, pra ticamente qualquer interação na rotina diária é pro pícia para que as crian ças aperfeiçoem e ampliem seus conhecimentos e competências culturais em desenvolvimento.

5. Ambiguidades remanescentesComo na maioria dos casos envolvendo crianças, as confusões são

abor dadas, mas não resolvidas, na rotina. Em alguns casos, a confusão po de aumentar. No entanto, a estrutura das rotinas permite que os parti-ci pantes sigam adiante (nesse caso, almoçar), enquanto as confusões são deixadas para esclarecimento posterior.

Da progressão individual às reproduções coletivas

Como discutimos anteriormente, muitas teorias de desenvolvimento infantil concentram-se na criança isolada. Essas teorias adotam uma visão linear do processo de desenvolvimento. Na visão linear, supõe-se que a criança deva passar por um período preparatório na infância antes de poder evoluir para um adulto socialmente competente. Nessa perspectiva, o período da infância consiste em um conjunto de estágios de desenvolvimento em que habilidades cognitivas, emoções e conhecimentos são adquiridos na preparação para a vida adulta (veja a Figura 1.2).

A reprodução interpretativa encara a integração das crianças em suas culturas como reprodutiva, em vez de linear. De acordo com essa vi são repro-dutiva, as crianças não se limitam a imitar ou internalizar o mun do em torno delas. Elas se esforçam para interpretar ou dar sentido a sua cultura e a partici-parem dela. Na tentativa de atribuir sentido ao mun do adulto, as crianças pas- sam a produzir coletivamente seus próprios mun dos e culturas de pares.

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Fase 4: Habilidades cognitivas, emoções e conhecimento

Fase 3: Habilidades cognitivas, emoções e conhecimento

Fase 2: Habilidades cognitivas, emoções e conhecimento

Fase 1: Habilidades cognitivas, emoções e conhecimento

Figura 1.2Avisualizaçãolineardodesenvolvimento.

inFânCiA

Vida adulta

nascimento

O modelo de teia global

A noção de reprodução interpretativa pode ser apresentada grafi ca -mente de uma forma que abrange suas características produtivas e re pro-dutivas. A chave é utilizar um modelo que inclui a reprodução in terpretativa como uma espiral em que as crianças produzem e participam de uma série de culturas de pares incorporadas. Descobri que a “teia de aranha” é um dispositivo investigativo eficaz ou uma metáfora para con ceitualizar a re-produção interpretativa (Corsaro, 1993). Dos diferentes tipos de teias que as aranhas produzem, a teia global, produzida por aranhas co muns de jar-dins, é a mais útil para minhas necessidades conceituais. Uma série de re-cursos da teia global a torna uma metáfora útil para conceitualizar o pro-cesso de reprodução interpretativa. Vamos dar uma olhada na Figura 1.3. Os braços ou raios do modelo representam uma faixa de locais ou campos que compõem diversas instituições sociais (familiares, econômicas, culturais, educacionais, políticas, ocupacionais, comunitárias e religiosas). Os campos ilustram os diversos locais em que o comportamento ou interação institu-cio nal ocorre (Bourdieu, 1991). Por exemplo, a interação familiar acontece em uma ampla variedade de locais reais, como a casa, o carro da família,

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parques de bairro e reuniões subsequentes da família, como ca samentos, funerais e assim por diante, enquanto atividades educativas se dão em salas de aula, bibliotecas, ginásios, salas de prática de música e muitos outros lo cais. É importante observar que esses campos institucionais (os raios da teia) existem como estruturas estáveis, mas em mudança, nas quais as crianças tecerão suas teias. Informações culturais fluem para todas as partes da teia ao longo desses raios.

Figura 1.3 O modelo de teia global.

Cam

pos e

duca

iona

isCampos ocupacionais

Campos

políticos

Campos relig

iosos

Cam

pos c

ultu

rais

PRÉ-ESCOLA

PRÉ-ADOLESCÊnCiA

ADOLESCÊnCiA

iDADE ADULTA

Campos econômicos

Campos familia

res

Campos comunitários

Família de origem

No eixo ou centro da teia está a família de origem, que serve como uma ligação de todas as instituições culturais para as crianças. Elas in-gressam na cultura por meio de suas famílias, ao nascerem. Assim, as fa-mílias são muito importantes para a noção de reprodução interpretativa. As crianças nas sociedades modernas, contudo, começam a interagir em outros locais institucionais com outras crianças e adultos que não são membros da família, em uma idade precoce. É nesses domínios ins titu cio-nais, bem como na família, que as crianças começam a produzir e a parti-cipar de uma série de culturas de pares.

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As espirais sombreadas de forma diferente representam quatro cul-tu ras de pares distintas, que são criadas por diferentes gerações de crianças de uma determinada sociedade: pré-escola, pré-adolescência, adolescência e idade adulta. Embora aspectos da cultura de pares possam ser transferidos para crianças menores por crianças mais velhas, as culturas de pares não são estruturas preexistentes que as crianças encontram ou enfrentam. É nesse sentido que essas culturas diferem nos campos institucionais (raios) nos quais são tecidas. Ainda que sejam afetadas por muitas experiências que ocorrem por meio de interações com o mundo adulto e se encontrem em campos institucionais (ou passagens de vários raios), as culturas infan-tis de pares são produções coletivas inovadoras e criativas. Nesse sentido, as teias ou espirais de culturas de pares são co letivamente tecidas sobre o quadro de conhecimentos culturais e ins tituições aos quais as crianças se integram e que ajudam a constituir.

Esses recursos coletivos, produtivos e inovadores das culturas in fantis de pares são capturados pelos recursos básicos do movimento es pi ral e inte-grados no modelo de teia global. As culturas de pares não são fa ses que cada criança vive. As crianças produzem e participam de suas cul turas de pares, e essas produções são incorporadas na teia de ex periên cias que elas crianças te cem com outras pessoas por toda a sua vida. Por tanto, as experiências in-fantis nas culturas de pares não são abandonadas com a maturidade ou o desenvolvimento individual; em vez disso, elas per manecem parte de suas histórias vivas como membros ativos de uma determinada cultura. Assim, o desenvolvimento individual é incorporado na produção coletiva de uma série de culturas de pares que, por sua vez, con tribuem para a reprodução e alteração na sociedade ou na cultura mais am pla dos adultos.

Finalmente, é a estrutura geral do modelo que é mais fundamental. Como no caso das aranhas de jardins, cujas teias variam em termos de número de raios e espirais, quando usamos a teia como um modelo para reprodução interpretativa, o número de raios (campos institucionais ou locais) e a natu-reza e número de espirais (a diversidade da constituição ou idade dos grupos de pares e amigos, a natureza dos encontros e os cru zamentos de locais ins-titucionais e assim por diante) variam entre culturas, entre grupos subculturais dentro de uma determinada cultura e ao longo do período histórico.

As duas culturas das crianças

Embora o modelo de teia global seja útil para visualizar a natureza da reprodução interpretativa, como qualquer metáfora ele tende a ma te-rializar um processo altamente complexo; em outras palavras, ele con si dera

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como concreto algo que é, na verdade, um conceito abstrato. No entanto, o modelo captura a ideia de que a criança está sempre par ticipando de e in-tegrando duas culturas – a das crianças e a dos adultos – e essas culturas são complexamente interligadas. Para entender a com plexidade da integração evolutiva das crianças nessas duas culturas, precisamos examinar suas ativi-dades coletivas com as outras crianças e com os adultos. Também precisamos considerar as crianças como parte de um grupo social que tem um lugar na estrutura social mais ampla. Aqui, nosso foco será na infância como uma forma estrutural que tem um lugar permanente na sociedade. Neste livro, transitaremos continuamente entre esses níveis macro e micro, analisando as crianças e a infância.

Resumo

Até recentemente, a sociologia prestou relativamente pouca atenção às crian-ças e à infância. A negligência ou a marginalização das crianças na sociologia está cla ra mente relacionada às visões tradicionais de socialização, que as relegam a uma função essencialmente passiva. A maioria dessas teorias era baseada em visões deri-va das de uma concepção comportamentalista do desenvolvimento in fantil que têm sido severamente contestadas pela ascensão do construtivismo con temporâneo na psicologia do desenvolvimento. Representado pela teoria cognitiva de desen volvi-mento de Piaget e pela abordagem sociocultural de Vygotsky, o construtivismo destaca o papel ativo da criança em seu desenvolvimento e sua eventual parti cipação no mun-do adulto. Embora as teorias construtivistas do desenvolvimento humano individual forneçam à sociologia uma lente pa ra reorientar as imagens de crianças como agentes ativos, essas teorias até re centemente fo ca lizaram principal mente o desenvolvimento de resultados, e fa lharam na con sideração da complexidade da estrutura social e das atividades coletivas das crian ças. A reprodução interpretativa fornece uma base para uma nova sociologia da infância. Ela substitui os modelos lineares de desenvolvimento social individual da criança pela visão coletiva, a visão produtiva-reprodutiva, ilus-trada pelo modelo de teia global. No modelo, as crianças participam espon taneamente como membros ativos das culturas da infância e do adulto.

O Capítulo 2 ampliará a noção de reprodução interpretativa examinando sua relação com as abordagens estruturais e relacionais para crianças e infância.