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27 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 27-45, jan./abr. 2007 Cotas para negros no Ensino Superior e formas de classificação racial André Augusto Brandão Universidade Federal Fluminense Mani Tebet A. de Marins Universidade Federal do Rio de Janeiro Resumo Este artigo apresenta e discute dados referentes à aplicação de um questionário voltado para variáveis de classificação racial e opinião sobre a política de cotas para negros em uma amostra de 476 alunos do último ano do Ensino Médio da rede pública de um município periférico da região metropolitana do Rio de Janeiro. Buscamos compreender os elementos que informam as classificações de cor ou raça, bem como o posicionamento que esses alunos tomavam frente à política de cotas que poderia beneficiá-los no acesso a uma universidade pública. Deve-se ressaltar que os alunos entrevistados estariam em breve frente à possibilidade de disputar uma vaga no Ensino Superior em um vestibular com cotas raciais numa universidade pública que mantém um campus no próprio município onde estudam e residem. Essa problemática e esse tipo de investigação nos parecem fundamentais na atualidade, pois as cotas para negros que vêm sendo implantadas desde 2003 em várias instituições de Ensino Superior têm sofrido críticas e atravessado controvérsias jurídicas também por conta das formas de classificação propostas. Na pesquisa realizada, foi possível avançar na discussão de como as opções de classificação racial até o momento utilizadas nessas políticas se relacionam com os formatos de auto-identificação e de identificação do outro, comumente presentes no cotidiano das escolas pesquisadas, bem como verificar como a idéia de cota racial é avaliada pelos seus possíveis beneficiários. Palavras-chave Ensino Superior – Cotas – Classificações raciais. Correspondência: André Augusto Brandão Universidade Federal Fluminense Campus do Gragoatá, Bl. E, sala 322 24210-350 – Niterói – RJ e-mail: [email protected]

Cotas para negros no Ensino Superior e formas de classificação …200.129.209.183/arquivos/arquivos/78/NEAB/BRANDaO - MARINS. Cotas... · Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33,

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27Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 27-45, jan./abr. 2007

Cotas para negros no Ensino Superior e formas declassificação racial

André Augusto BrandãoUniversidade Federal Fluminense

Mani Tebet A. de MarinsUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Este artigo apresenta e discute dados referentes à aplicação deum questionário voltado para variáveis de classificação racial eopinião sobre a política de cotas para negros em uma amostra de476 alunos do último ano do Ensino Médio da rede pública deum município periférico da região metropolitana do Rio de Janeiro.Buscamos compreender os elementos que informam as classificaçõesde cor ou raça, bem como o posicionamento que esses alunostomavam frente à política de cotas que poderia beneficiá-los noacesso a uma universidade pública. Deve-se ressaltar que os alunosentrevistados estariam em breve frente à possibilidade de disputaruma vaga no Ensino Superior em um vestibular com cotas raciaisnuma universidade pública que mantém um campus no própriomunicípio onde estudam e residem. Essa problemática e esse tipode investigação nos parecem fundamentais na atualidade, poisas cotas para negros que vêm sendo implantadas desde 2003em várias instituições de Ensino Superior têm sofrido críticas eatravessado controvérsias jurídicas também por conta das formasde classificação propostas.Na pesquisa realizada, foi possível avançar na discussão de comoas opções de classificação racial até o momento utilizadas nessaspolíticas se relacionam com os formatos de auto-identificação ede identificação do outro, comumente presentes no cotidianodas escolas pesquisadas, bem como verificar como a idéia decota racial é avaliada pelos seus possíveis beneficiários.

Palavras-chave

Ensino Superior – Cotas – Classificações raciais.

Correspondência:André Augusto BrandãoUniversidade Federal FluminenseCampus do Gragoatá, Bl. E, sala 32224210-350 – Niterói – RJe-mail: [email protected]

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 27-45, jan./abr. 200728

Quotas for blacks in higher education and forms ofracial classification

André Augusto BrandãoUniversidade Federal Fluminense

Mani Tebet A. de MarinsUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Abstract

This article presents and discusses data obtained with theapplication of a questionnaire focused on variables for racialclassification and opinion about the policy of quotas for blacks;the questionnaire was applied to a sample of 476 pupils fromthe last year of secondary education of the public school systemof a peripheral town in the Metropolitan Area of Rio de Janeiro.We have tried to understand the elements that shape theclassifications of color or race, as well as the stance these pupilswere taking before a policy of quotas that could help them intheir attempts to have access to a public university. It must benoted that the pupils interviewed would soon be facing thepossibility of competing for a place in higher education via anentry exam with racial quotas to a public university that keeps acampus in the same town where they live and study. This problemand this kind of investigation seem to us fundamental nowadays,because quotas for blacks have been put in place since 2003 atseveral institutions of higher education, and have been subjectedto criticism and undergone juridical dispute, as a result, amongother things, of the forms of classification proposed.In the study conducted here it was possible to advance in thediscussion of how the options of racial classification used so farin these policies are related with the forms of self-identificationand identification of the other commonly present in the dailylives of the schools researched, and also to observe how theidea of a racial quota is evaluated by its potential beneficiaries.

Keywords

Higher education – Quotas – Racial classifications.

Contact:André Augusto BrandãoUniversidade Federal FluminenseCampus do Gragoatá, Bl. E, sala 32224210-350 – Niterói – RJe-mail: [email protected]

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Este artigo é resultado de uma pesquisaque buscou compreender, a partir de uma amos-tra específica, os elementos que informam asclassificações de cor ou raça no Brasil. Essaproblemática se mostra emergencial na medidaem que as políticas de ação afirmativa para in-gresso no Ensino Superior que vêm sendo im-plantadas desde 2003 têm sofrido críticas e atra-vessado controvérsias jurídicas exatamente porconta das formas de classificação que utilizam.

Assim, tomamos como alvo alunos deescolas públicas de Ensino Médio situadas nomunicípio de São Gonçalo, na periferia da re-gião metropolitana do Rio de Janeiro. Tais alu-nos estariam em breve frente à possibilidade dedisputar uma vaga no Ensino Superior em umvestibular marcado por cotas raciais.

Nossos objetivos mais específicos eram:

a) Mapear e compreender objetivamente – apartir de uma amostra – as formas de auto-classificação racial e de classificação racial dooutro em sociedade, utilizadas pelos alunosde escolas públicas de Ensino Médio;b) Mapear a opinião desse segmento acercada política de cotas para negros no EnsinoSuperior, bem como a relação entre tais opini-ões e as perspectivas de classificação racialmobilizadas.

A pesquisa foi realizada a partir de umadireção metodológica voltada para a produção,organização e análise de dados quantitativos,por meio da criação de um banco de dados.Nesse âmbito, aplicamos 476 questionários emalunos do último ano do Ensino Médio de cin-co escolas estaduais situadas próximas a áreasde concentração de pobreza no município. Osalunos, portanto, não foram escolhidos de for-ma aleatória, mas estes não eram obrigados aresponder ao questionário. Nesse sentido, nãoabarcamos todos os alunos do último ano. Noentanto, o número daqueles que o responde-ram supera em 80% do total.

Os questionários aplicados procurarammapear as categorias de classificação utilizadas

pelos indivíduos. Trabalhamos com somenteuma pergunta aberta relacionada à cor ou raçado respondente. As demais eram fechadas erelacionadas à cor ou raça pela classificação doIBGE; a cor ou raça por uma classificação bi-racial; afro-descendencia ou não; critérios paraautoclassificação; critérios para a classificaçãodo outro em sociedade; opinião sobre a exis-tência de racismo na sociedade brasileira;autodefinição do racismo; e opinião sobre apolítica de cotas raciais nas universidades.

Por meio do cruzamento das variáveis, foipossível estabelecer uma avaliação quantitativaque em muitos pontos se referenciou a outrasanálises que tangenciavam a questão investigadae, em outros pontos, se apoiou em construçõesteóricas pertinentes à área e ao tema.

A análise dos dados

Faremos agora uma análise pormenori-zada dos dados coletados e organizados emtabelas simples e cruzadas.

Podemos avaliar pelos dados quantitati-vos que a presença feminina na nossa amostraé mais significativa, apresentando aproximada-mente 11 pontos percentuais de vantagem sobrea presença masculina. Esse dado se relacionacom o fato já apontado por estudos recentes deque verificamos na última década um avançosignificativo da escolarização feminina1.

Avaliando um pré-vestibular voluntáriono mesmo município, Brandão (2004) encon-trou majoritária presença feminina tanto entreos alunos que iniciavam o pré-vestibular quanto

1. Também Brandão e Teixeira (2003) já demonstraram que nos cursosda sede da Universidade Federal Fluminense, em 2003, havia mais mu-lheres matriculadas (55,57%) do que homens (44,43%).

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entre aqueles que chegavam até o final do anoe também entre aqueles poucos que consegui-am aprovação.

Em outro estudo, o mesmo autor (Brandão,2004a) encontrou entre a população pobre de SãoGonçalo afirmações e representações que aponta-vam para um padrão diferenciado de investimen-to e expectativa das famílias em relação a filhoshomens e filhas mulheres. Segundo Brandão(2004a), de fato, haveria uma tendência de asfamílias investigadas esperar dos filhos homensjovens um movimento em direção ao mercadode trabalho, enquanto que a carreira escolar setorna uma possibilidade secundária. Já as filhasmulheres poderiam, em alguns casos, ficar maistempo sobre proteção familiar (ainda que emgrande medida presas às tarefas domiciliares) e,portanto, longe de ocupações remuneradas, oque facilitaria sua permanência na escola.

Essa divisão sexual – que se ancora emuma representação essencialista de homens emulheres – aparece como um fenômeno perten-cente a uma ‘ordem natural das coisas’, porquese desenvolve de duas formas no mundo soci-al: na própria objetividade material e tambémna subjetividade dos indivíduos, ou seja, “noscorpos e nos habitus [...], funcionando comosistemas de esquemas de percepção, de pensa-mento e de ação” (Bourdieu, 1999, p. 17). Ohabitus equivale a sistemas construídos social-mente que se encarnam em nossa subjetivida-de e que se configuram como disposiçõesestruturadas na objetividade do mundo social.Tais disposições têm a característica de predis-por os agentes para ações, representações, clas-sificações e escolhas que são adequadas àsestruturas materiais e culturais com as quaisestes se relacionam. Assim, as divisões e os cri-térios de divisões entre os sexos, que são sem-pre arbitrários e tomados como ‘naturais’, podemexplicar o avanço feminino na trajetória escolar.

As escolas de Ensino Médio tomadascomo alvo desta pesquisa apresentam uma con-figuração racial diversa daquela encontrada parao conjunto do município no censo demográficode 2000 (IBGE, 2000). Nesse ano, São Gonçalo

possuía em sua população total 53,07% debrancos, 10,40% de pretos e 35,27% de pardos.

As diferenças existentes provavelmente seexplicam pelo fato de que as escolas escolhidas paraa aplicação do questionário se situam em áreas deconcentração de pobreza dentro do município.Brandão (2004a), também em estudo sobre SãoGonçalo, mostrou que esse município – assim comoqualquer área metropolitana – apresenta um contí-nuo de concentração racial, no qual a presença depretos e pardos vai crescendo na medida em queavançamos em relação à periferia, mesmo quandose trata de um município já periférico em relação aonúcleo da região metropolitana.

Analisando a tabela de classificação aber-ta de cor ou raça, encontramos onze termosclassificatórios utilizados pelos 476 entrevistadosem nossa amostra.

Desses onze termos, cinco são aquelesutilizados pelo IBGE em seus levantamentos(correspondendo à chamada ‘pergunta fechadade cor ou raça’: branca, preta, parda, amarelae indígena). De fato, se somarmos os que uti-lizaram essas cinco categorias, encontramos umpercentual de 63,71% dos entrevistados. Assim,a aparente dispersão classificatória tantas vezes

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apontada como característica da forma brasileirade pensar cor ou raça não é tão profunda. Paraalém dos limites classificatórios utilizados peloIBGE, a dispersão se restringe a aproximada-mente 37% dos respondentes. No entanto, nes-ses 37%, temos nada menos que 28,05% que selimitam a duas categorias: negra (16,24%) emorena (11,81%). As demais quatro categorias(clara, loira, mestiça e mulata) representam so-mente cerca de 6% dos entrevistados, na medi-da em que 2,74% destes não declaram sua corou raça aberta.

Essa configuração em alguma medidaremete àquela encontrada na Pesquisa Nacionalde cor ou raça aberta (como suplemento daPesquisa Nacional por Amostra de Domicílios –PNAD) realizada pelo IBGE em 1976 (Telles,2003) e à encontrada por Brandão (2004a) emum loteamento da periferia de São Gonçalo.

Na pesquisa nacional de 1976, o IBGEencontrou, em uma amostra de 82.577 indiví-duos, 135 termos classificatórios. No entanto,cerca de 95% dos entrevistados se restringiramao uso de seis termos: branco, preto, pardo,negro, moreno e moreno-claro.

Brandão (2004a) encontrou, em umaamostra de 691 entrevistados, 14 classificaçõesabertas e, dentre estas, 60,93% correspondiamàquelas usadas pelo IBGE. Além disso, 24,60%dos respondentes se diziam morenos e 7,38%,negros. Considerando 1,16% de não-declaran-tes, somente 5,97% dos entrevistados se dis-persaram nas demais categorias.

Já o Censo Étnico-Racial da UFF (Brandão;Teixeira, 2003) encontrou 20 categorias de cor ouraça aberta entre aproximadamente 11.000 entre-vistados. No entanto, 62,8% destes apontavampara uma das cinco categorias do IBGE.

Considerando essas tendências, podemosdizer que a tão propagada profusão de catego-rias de classificação racial no Brasil é de fatosomente relativa. Como vimos, apesar de emcada pesquisa o número de termos utilizadosaumentar com o tamanho da amostra ou douniverso, sempre mais de 60% das respostasestão ligadas às categorias branca, preta, par-

da, amarela ou indígena. Vale ressaltar que umdos procedimentos metodológicos básicos paraa coleta da autodeclaração de cor ou raçaaberta é que esta constitui a primeira pergun-ta sobre essa temática no questionário, apósentão aparece a pergunta fechada.

No caso por nós estudado, as categoriasbranca e parda são respectivamente a primeira(com 33,97% das respostas) e a segunda (com23,42% das respostas) mais escolhidas. O fatorelevante é que os autodeclarados negros são osterceiros em freqüência (16,24%), acima até mes-mo da categoria morena (11,81%) que fica emquarto lugar.

Vale ressaltar que encontramos um padrãode preferência pela categoria negra em detrimen-to da categoria (aparentemente correlata) preta.Essa mesma configuração é identificada tanto napesquisa de Brandão e Teixeira (2003) que en-trevistou alunos da UFF, quanto em Brandão(2004a), que tomou como alvo moradores de umloteamento periférico. A pesquisa de 1976 doIBGE encontra tendência diferente, com maiornúmero de entrevistados se autodeclarando pre-tos em relação aos que se declaram negros. Essefato parece significar uma mudança de valoresassociados ao termo negro que teria se proces-sado entre os anos 1970 e 2000.

Assim, na pergunta aberta, aqueles quecomporiam o grupo mais fenotipicamente liga-do à origem africana preferem a classificaçãonegra à preta, ainda que a primeira não compo-nha o rol daquelas presentes nos levantamentoscensitários ou amostrais feitos pelo órgão ofici-al designado para tal. Uma hipótese explicativadessa configuração reside na idéia de que se acategoria negra estivesse mais voltada para aidentidade, ao contrário da categoria preta (maisfenotípica), estaríamos verificando um processode adensamento identitário entre os afro-brasi-leiros. Tal processo foi apontado por Sansone(2004) que o identificou somente entre a popu-lação mais jovem. Não é por acaso, portanto,que na amostra do loteamento periférico queaparece na pesquisa de Brandão (2004a), comentrevistados majoritariamente adultos, a diferen-

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ça entre autodeclarados negros e pretos sejamenor que 2 pontos percentuais a favor dosprimeiros, enquanto que na amostra aqui anali-sada, que entrevistou quase que exclusivamen-te jovens, essa diferença esteja na casa dos 13pontos percentuais.

Por fim, é provável que a relativa acomo-dação da autoclassificação aberta aos princípiosclassificatórios do IBGE esteja relacionada comuma ‘moldagem’ que o censo nacional produzem relação à forma como a sociedade passa ase classificar (ao contrário de supor que o IBGEfez inicialmente escolhas de terminologiasclassificatórias corretas). Essa hipótese se anco-ra no fato de que, apesar de a pergunta aber-ta ser realizada em primeiro lugar, parte signi-ficativa dos entrevistados parece conhecer ascategorias oficiais e se adéquam a estas.

De qualquer forma, o contínuo de cor ébem menos significativo (seja em amostras na-cionais, seja em amostras locais) do que pode-ríamos imaginar ao ler nominalmente a lista declassificações abertas emitidas por entrevistados.

Na tabela acima, seguimos perseguindopossibilidades classificatórias de cor ou raça entreos 476 entrevistados. Testamos então um modelobi-racial de classificação. O que chama a atençãode imediato é o grande percentual de não-decla-rantes. Enquanto estes ficavam na casa dos 6% napergunta fechada com as categorias do IBGE e dos2% na pergunta aberta de cor ou raça, passam aser 20,68% na classificação bi-racial. Parece haver,portanto, uma significativa rejeição ao próprioformato dessa classificação.

De resto, é significativo que os brancosque ficavam em torno dos 34% nas outras duasclassificações, subam agora para 44,73%. Por

outro lado, os pretos e pardos que chegavamà cerca de 50% na classificação do IBGE, fica-ram muito acima do percentual de negros(34,60%) da classificação bi-racial.

Assim, além do grande número de não-declarantes, essa forma de classificação racialpromove um aumento do número de autode-clarados brancos.

Na tabela 5, vemos que nada menos que72,78% dos entrevistados se avaliam como afro-descendentes ou de origem negra. Apesar de so-mente 34,60% se declararem negros em umaclassificação bi-racial. Por outro lado, chama aatenção o pequeno percentual de não-declaran-tes, o que aponta para uma não rejeição da per-gunta acima (Você se considera afro-descendenteou de origem negra?) em relação à pergunta quedeu origem a tabela 4 (Qual sua cor ou raça? [ ]branca ou [ ] negra). Assim parece que os entre-vistados nos dizem que ter origem negra não é omesmo que ser negro, ou seja, apesar de a origemser reconhecida, esta não se traduz a priori emprincípio classificatório (o que nesse nível deanálise parece confirmar as indicações de Noguei-ra [1985], acerca da importância da ‘marca’fenotípica como elemento fundamental para aatribuição de cor ou raça no Brasil).

No Censo Étnico-Racial da UFF (Brandão;Teixeira, 2003), também foram encontrados maisautodeclarados afro-descendentes (42,90%) doque pretos e pardos (31,10%). No entanto, emnossa amostra, essa defasagem é muito maior, jáque temos 50,63% de pretos e pardos e 72,78%de afro-descendentes.

Podemos ensaiar algumas hipóteses paratal configuração. A primeira seria a de que a for-ça ideológica do chamado ‘mito fundador das

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três raças’ explicaria tal configuração. Assim, osbrasileiros poderiam ser levados a se declarar,de acordo com suas convicções subjetivas,como: afro-descendentes, índio-descendentesou mesmo europeu-descendentes.

Voltando à análise de nossa amostra dealunos de Ensino Médio, podemos nos pergun-tar se essa tendência de resposta acerca da afro-descendência também não se relaciona com aquestão da política de cotas para negros noEnsino Superior. A Universidade do Estado doRio de Janeiro (UERJ), primeira universidadepública brasileira a adotar o regime de cotasraciais já no vestibular de 2002/2003, mantémum campus de médio porte em São Gonçalo,onde estão reunidos cursos ligados às chama-das licenciaturas, que em geral possuem maiornúmero de alunos pretos e pardos e se encon-tram entre os menos disputados nas universida-des. Assim, é provável que a reflexão acerca daorigem racial tenha pairado sobre esses alunosde Ensino Médio entrevistados, já que estãoprestes a realizar o concurso do vestibular.

Na tabela 6, vemos que mais de 50%dos entrevistados se colocam contra a políticade cotas para negros nas universidades públi-cas, enquanto que somente 21,94% destes seafirmam totalmente favoráveis. Na medida emque parte significativa dos entrevistados pode-ria se beneficiar dessa política, parece que osvalores e as representações aqui são mais im-portantes que os interesses. Mais adiante nes-te trabalho, faremos análises mais pormenoriza-das a partir do cruzamento de variáveis dessarejeição à política de cotas.

As tabelas 7 e 8 devem ser analisadasem conjunto. Vemos que somente 8,86% dosentrevistados se afirmam como racistas. Noentanto, os mesmos entrevistados reconhecemque há racismo no Brasil (82,07%) ou que há‘mais ou menos’ racismo (13,92%) e somente2,95% destes afirmam que não existe racismoem nossa sociedade. Vale ressaltar que umapesquisa nacional realizada em 1995 pelo ins-tituto DataFolha (Folha de São Paulo, 25/06/1995) encontrou resultados semelhantes.

Essa contradição acontece, muito prova-velmente, porque haveria a perspectiva de queo racismo sempre está no outro ou na idéiaabstrata de ‘sociedade’ e não no próprio indi-víduo. Assim, a prática do racismo é transferidado cidadão para a sociedade, ou seja, do nívelmicrossocial para o nível macrossocial. É comose fosse possível haver um divórcio entre a so-ciedade como entidade coletiva e os indivídu-os que compõem esta e que produzem, pormeio de gestos, representações e ações cotidi-anas de práticas racistas.

Nesse sentido, podemos estar diante deuma situação na qual os entrevistados optampela afirmação ‘politicamente correta’ de quenão são racistas, como se atendessem a uma‘ética’ específica sobre o assunto, sem desco-

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nhecer, porém, o racismo presente nas relaçõesentre brancos e negros.

Nas tabela 9 e 10, os entrevistados opi-naram sobre quais os critérios mais importantespara definir a cor ou raça de outro indivíduobem como a sua própria. No que tange à defi-nição racial do outro, vemos que o critério maissignificativo é a cor da pele (40,08%). Em se-gundo lugar, aparece a origem familiar (35,86%).Se somarmos as duas opções mais diretamentefenotípicas (cor da pele e traços físicos), teremosum total de 57,17% dos respondentes.

Já para a autodefinição, os entrevistadosse apóiam mais na origem familiar. No entanto,se mais uma vez somarmos os que responde-ram cor da pele e os que responderam traçosfísicos, encontraremos um número muito signi-ficativo (48,47%).

A conclusão importante que podemosretirar da análise dessas tabelas é que, apesardo peso atribuído ao fenótipo (e não exclusi-vamente à cor), os entrevistados não deixam dese remeter em medida significativa à origem fa-miliar. Essa descoberta é importante, pois a es-trutura do racismo brasileiro fora definida porNogueira (1985; 1998) como ‘de marca’. Assim,segundo esse autor, os critérios que operam adiscriminação não seriam voltados para a ori-gem do indivíduo, mas sim para os traços

fenotípicos. A maior aproximação fenotípicacom o grupo negro levaria a maiores possibi-lidades de classificação como não-branco e,portanto, de discriminação.

No entanto, como vimos, embora os tra-ços físicos e a cor da pele somados apareçamcomo elemento principal para a auto e a paraa alterclassificação, os entrevistados não per-dem de vista a origem familiar. Isso nos dizque em grande medida o senso comum tam-bém toma a origem como marcador racial emnossa sociedade.

Nas tabelas 11 e 12, podemos verificar queos critérios para auto-atribuição de cor ou raça sãodiferentemente utilizados pelos grupos raciais. Paraos pretos, a cor da pele aparece como caracterís-tica principal, com 55,38% das respostas, seguidoda origem da família, com 33,71%. Se somarmosa cor da pele aos traços físicos, encontraremosmais de 75% das respostas desse grupo.

Já entre os pardos, o elemento maisimportante é a origem da família (50,29%),seguido da cor da pele. Somados os dois crité-rios mais fenotípicos, encontraremos 55,71% deentrevistados.

No caso dos brancos, encontramos tam-bém uma predominância do critério origem dafamília, mas com pouca diferença em relação àcor da pele (4,21%). Mais uma vez, somados osdois critérios fenotípicos, teremos um total deaproximadamente 48% das respostas.

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Em resumo, a preferência pelo fenótipocomo demarcador da autoclassificação aparecenos três grupos, embora seja muito mais acentu-ada entre os pretos. Separando especificamente oitem cor da pele, vemos que este seria menos im-portante que a origem familiar tanto para bran-cos como para pardos (entre esses últimos compeso maior). Entre os pretos, por sua vez, a ori-gem da família apresenta o menor percentual deescolhas se comparados aos brancos e pardos.

Esses resultados parecem nos dizer quepara os pretos a origem familiar é pouco signi-ficativa frente à realidade do fenótipo. Já paraos pardos, o fato de estarem situados numplano fenotípico que no Brasil pode ser toma-do como menos definido, faz com que estespossam se prender menos ao fenótipo e emmaior medida lançar mão da origem familiarcomo critério de autoclassificação. Já os bran-cos quase se dividem entre os dois critérios(exatamente porque sobre estes não recai adiscriminação de cor ou raça).

Esse padrão de respostas, porém, nãopode ser separado da compreensão de como osentrevistados avaliam ser a forma utilizada paraclassificar os outros. Assim, a mesma tendênciaencontrada em cada grupo racial para suaautodefinição se reproduz na forma como es-ses grupos atribuem importância aos critérios declassificação de outro indivíduo: a cor da pelesomada aos traços físicos chega a 53,14% dosrespondentes pardos, a cerca de 60% dos bran-cos e a 70,77% dos pretos.

Mais uma vez vale ressaltar que apesarde os dados confirmarem a predominância doscritérios de ‘marca’ (Nogueira, 1988; 1995), aorigem familiar é sempre referida em quantida-de significativa e, portanto, não é esquecida ouanulada pelos entrevistados.

Em artigo recentemente concluído, Brandãoe Marins (2005) estudaram de forma mais detidaas características dos alunos da UFF que, no CensoÉtnico-Racial realizado naquela instituição em2003, se declararam afro-descendentes. As conclu-sões desse trabalho, em certa medida, proble-matizam as hipóteses anunciadas na análise da

tabela 5, pois os autores encontraram uma re-gularidade de características socio-econômicasque, naquele universo, diferenciavam cadasubgrupo de cor ou raça (ou seja, pretos/afroe pretos/não-afro; pardos/afro; pardos/não-afro;brancos/afro e brancos/não-afro).

Nesse contexto, a declaração de afro-des-cendência não se distribuía aleatoriamente entreos entrevistados. De fato, cruzando as variáveisdisponíveis, a avaliação do Censo da UFF indicouque quanto mais pobre o indivíduo de qualquerdos três grupos raciais, mais próximo este se en-contrava de afirmar sua afro-descendência. Poroutro lado, quanto menos pobre fosse este, tam-bém menos próximo se encontrava da afirmaçãode uma origem africana. E isso valia tanto para ospretos quanto para os pardos e os brancos.

Assim Brandão e Marins (2005) aponta-ram que seria possível supor que os brancos quedeclaram sua afro-descendência possuam umaorigem familiar negra mais próxima e, portanto,herdem parte do conjunto de desvantagenssocioeconômicas cumulativas (Hasenbalg, 1979)produzidas pela operação cotidiana do racismoque se abate sobre a população negra brasilei-ra. No entanto, o que levaria os poucos pretose pardos oriundos de famílias com maior ren-da a se considerarem não afro-descendentes? Oque o estudo indicou foi que, ao alcançaremum status mais elevado (considerando a renda,o acesso à escolarização privada e a escolari-dade dos pais, o que leva a um maior capitalcultural incorporado [Bourdieu, 1998]), essespretos e pardos seriam mais propensos a seaproximar do ‘pólo branco’ que seria mais va-lorizado socialmente.

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Os autores avançam na discussão mos-trando que a aceitação da afro-descendência seprocessa de forma diferenciada entre os trêsgrupos. Pretos e pardos em geral a aceitariampor conta do fenótipo, enquanto que os bran-cos a aceitariam por uma questão de origem,logo, não por acaso, estes eram mais pobresque os brancos/não-afro-descendentes. Apesarde não ser possível ‘fechar’ uma explicação paraa recusa ou aceitação da afro-descendêncianesse nível de análise quantitativa que os au-tores desenvolveram, o importante parece ser ademonstração de que essas escolhas não sãoaleatórias, ou seja, se prendem a fatores econô-micos e sociais tanto no que tange às diferen-ças entre os grupos de cor ou raça quantodentro de cada um destes.

Já havíamos identificado na tabela 4 a exis-tência de uma relativa rejeição dos entrevistados àclassificação bi-racial que lhes fora proposta noquestionário aplicado, o que se expressa no eleva-do percentual de não-declarantes. Considerandoem conjunto as tabelas 14 e 15, podemos obser-var como esses últimos se autodeclaram na per-gunta de cor ou raça com as categorias do IBGE.

Vemos assim que foram principalmenteos pardos que rejeitaram a classificação bi-ra-cial, enquanto que brancos e pretos se recusa-

ram somente em pequena medida a se enqua-drarem como brancos ou negros.

Tomando especificamente a tabela 15, ve-mos que a maior ‘consistência’2 nas escolhas, quan-do cruzadas, aparece no grupo branco (97,58%destes se declaram brancos na classificação do IBGEe mantém a mesma resposta na classificação bi-racial). A ‘consistência’ dos pretos também é signi-ficativa (90,77% destes se declaram pretos na clas-sificação do IBGE e negros na classificação bi-raci-al). Já os pardos, primam pela ‘inconsistência’ (20%se identificam como brancos e 48,57% como ne-gros). No entanto, estes primam também pela rejei-ção à pergunta (31,43% de não-declarantes).

Podemos concluir que a impossibilidadeoperacional da classificação bi-racial se encontraprincipalmente no fato de que esta não consegueacomodar aqueles que se classificam como par-dos na lógica do IBGE e que demandam, portan-to, uma opção de escolha própria.

2. Chamamos de “consistência” a adequação entre duas classificaçõesemitidas pelo mesmo entrevistado.

37Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 27-45, jan./abr. 2007

Ao cruzarmos as duas variáveis na pági-na anterior, verificamos que a maior consistên-cia se encontra naqueles que se autodeclarambrancos na pergunta fechada, pois estes se de-claram brancos em 93,94% das respostas aber-tas (com o restante se dispersando em mais trêscategorias: clara, morena e parda). Os pretos seconcentram em 92% nas categorias abertas ne-gra e preta (com os demais se autodeclarandomorenos). Já os pardos apresentam maior disper-são, pois se 60% destes confirmam a escolha poressa categoria quando da resposta aberta, os de-mais se dispersam em cinco outras categorias(branca, mestiça, morena, negra e preta).

Mais uma vez, verificamos que a categoriaparda tem a característica de agregar indivíduosque, nas respostas abertas, se distribuem por umnúmero maior de perspectivas de autoclassificação,muito embora escolham predominantemente ter-mos que se referem à idéia de mistura racial oufenotípica (migrando em pouca proporção para acategoria aberta branca). Assim, se tomarmos ago-ra a tabela 17, verificaremos que todas as cate-gorias abertas de classificação que se referem amisturas fenotípicas apresentam maior freqüên-cia na categoria fechada ‘parda’ (com exceçãoda categoria aberta ‘mulata’) que aparece semdeclaração na resposta fechada.

Na tabela 6, havíamos verificado que agrande maioria dos alunos de Ensino Médio en-trevistados se colocava contrários à política decotas para negros. Podemos agora verificarcomo essa rejeição se expressa nos três gruposde cor ou raça que estamos avaliando. Chamanossa atenção de imediato o fato de que são ospretos que mais se colocam decisivamente con-tra a política, seguidos dos brancos. Já os par-dos são os que menos a rejeitam.

De início, parece que esses alunos po-dem estar no âmbito de uma ‘farsa ideológica’,muito disseminada no seio da sociedade queafirma a política de cotas como incapaz de re-solver o problema educacional brasileiro, sen-do necessário o investimento mais eficaz no En-sino Fundamental e Médio.

Para além disso, dois outros elementosque foram apontados em Brandão (2004b)parecem orientar esse resultado. Nesse trabalho, oautor analisa entrevistas de campo realizadas comalunos de um pré-vestibular para negros pobres(Pré-vestibular para negros e carentes – PVNC3) si-tuado também no município de São Gonçalo. To-dos os entrevistados eram autodeclarados pre-tos ou pardos e iriam utilizar a política decotas no vestibular para a UERJ naquele ano,mas manifestavam ou não uma concordânciacom a política de cotas raciais ou certo receiode lançar mão desta. Para os entrevistados, osproblemas relacionados a essa política pode-riam ser resumidos na forma abaixo:

a) a cota racial ‘burlaria’ a forma de entrada‘normal’ ou ‘típica’ na universidade;b) o indivíduo negro que acessasse uma vagapor essa via poderia ser alvo de discrimina-ções ou agressões verbais por parte dos alu-nos brancos;c) as discriminações ocorreriam porque esses‘cotistas’ não seriam tomados pelos brancoscomo alunos que teriam o mesmo ‘direito’ deestar ali;d) cotas para ‘pobres’ seriam mais justas enão despertariam discriminação.

Brandão (2004b) conclui que esses alu-nos entrevistados estariam imbricados nas ‘ma-lhas ideológicas’ que perpassam a ordem raci-al brasileira e que afirmam a existência de uma‘democracia racial’ no Brasil. Por outro lado,esses entrevistados também estão enredados na

3. O PVNC em verdade se constitui como um movimento em rede quecongrega atualmente dezenas de cursos de pré-vestibular espalhados pelaRegião Metropolitana do Rio de Janeiro e denominados de núcleos. Emcada um desses núcleos, encontramos em media de 40 a 100 alunos.

38 André A. BRANDÃO e Mani Tebet A. de MARINS. Cotas para negros no Ensino Superior...

‘ideologia do mérito’ que corrobora o funcio-namento das sociedades capitalistas fundadassobre perspectivas liberais. Nesse sentido:

O medo de subverter a noção tão abstrata e in-consistente de mérito se alia entre estes jovens aomedo de serem mais uma vez vítimas das discri-minações que marcaram suas vidas. (p. 155)

Parece que, também entre os alunos deEnsino Médio que responderam ao questioná-rio que aplicamos, a noção abstrata de méritose transforma em elemento que esconde as di-ferenças sociais e as injustiças acumuladas his-toricamente. A disseminação dessa idéia na so-ciedade atinge ao conjunto dos indivíduos egrupos, mesmo aqueles que são as vítimas domesmo racismo que, em última instância, pro-duz as diferenças e reproduz as injustiças.

Como elemento de comparação, podemoscitar a pesquisa realizada pelo Instituto DataFolhaem 1995 que recortou uma amostra de âmbitonacional. Nessa pesquisa, os entrevistados foramperguntados sobre: “O que acha da reserva de va-gas na escola e no trabalho para os negros?” Nadamenos que 40% dos entrevistados negros apoiavamintegralmente tal política e 15% a apoiavam emparte. Podemos perguntar o que terá mudado nes-ses quase 10 anos. Muito provavelmente a implan-tação concreta da reserva de vagas em universida-des públicas tenha colocado o assunto na agendade discussões da imprensa e devido às críticas sis-tematicamente recebidas, principalmente por jornaisde grande circulação, tenha se produzido uma im-portante pressão e uma nova ‘cortina ideológica’que impactou a opinião, até mesmo dos segmen-tos beneficiados, em relação à reserva de vagas.

Quando verificamos a questão dos critéri-os para autoclassificação de cor ou raça entreaqueles que se afirmam afro-descendentes ou não,verificamos que os afro são um pouco mais pro-pensos a afirmar a origem da família como crité-rio mais relevante. No entanto, se somarmos os doiscritérios que remetem ao fenótipo (cor da pele etraços físicos), verificamos que os dois gruposquase se igualam, ainda que a cor da pele isola-damente seja cerca de oito pontos percentuaismais importante para os não afro-descendentes.

Na tabela acima, cruzamos a autodecla-ração de cor no modelo bi-racial com a declara-ção de afro-descendência. Vemos que o percentualde negros afro-descendentes é muito mais signi-ficativo que o de brancos (embora entre estes aafro-descendência ultrapasse muito a casa dos50%). O mais relevante, porém, parece ser a veri-ficação de que, entre o significativo número denão-declarantes de cor bi-racial, a maioria vai seidentificar com a afro-descendência.

O cruzamento da cor ou raça abertacom a declaração de afro-descendência nosleva a visualizar uma importante situação: osautodeclarados negros em maior percentual que

39Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007

os pretos se afirmam afro-descendentes (e es-ses últimos quase empatam com os pardosnesse quesito). Esse dado talvez reflita em al-guma medida um caráter mais identitário daafirmação aberta de cor ou raça entre os negrosque entre os pretos.

Vale ressaltar ainda que morenos, mesti-ços e mulatos (que possuem pouco peso emnossa amostra) tendem predominantemente aafirmação da afro-descendência.

Quando verificamos os percentuais deaprovação da política de cotas para negros noEnsino Superior em relação à declaração deafro-descedência, verificamos que não há subs-tanciais diferenças entre os dois grupos. Aindaque entre os afro-descendentes existam maisentrevistados totalmente favoráveis a tal política(24,64% contra 15,45% dos não afro-descen-dentes), quando somamos os ‘a favor’ com os‘mais ou menos’, chegamos à aproximadamente37% entre os afro-descendentes e 34% entreos não-afro-descendentes. Na mesma direção,vemos uma grande proximidade entre os doisgrupos no que tange à rejeição das cotas raci-ais para a universidade pública.

Conclusão

As diferenças sociais por cor ou raça sãoamplamente conhecidas e documentadas oficial-mente no Brasil. Órgãos federais como o IPEA e oIBGE, além de pesquisadores individuais e gruposde pesquisa atuando nas universidades brasileiras,têm apontado que entre brancos e negros (consi-derando a soma dos autodeclarados pretos e par-dos) se acumulam as mais variadas diferenças deatuação social seja na expectativa de vida, na

mortalidade infantil, no local de moradia, na ren-da, na posição na ocupação, no desemprego etc.

Especificamente no que tange à Educa-ção, também encontramos diferenças enormesentre os dois grupos. Segundo o trabalho deHenriques (2001) – que se apóia nos dadosproduzidos pela PNAD do IBGE –, em fins dosanos 1990, a diferença de anos de escolarida-de média entre um negro e um branco, amboscom 25 anos de idade, era de 2,3 anos deestudo, o que corresponde a uma elevada de-sigualdade, na medida em que a média de es-colaridade dos adultos em geral no Brasil nãoultrapassa os 6 anos. O mais significativo, po-rém, é que tal padrão de desigualdade no quetange aos anos médios de estudo tem se man-tido estável há décadas.

A cada nível de escolarização, tais dife-renças aumentam e chegam ao máximo noEnsino Superior. Neste, o ingresso é alcançadopor somente 7,1% dos brasileiros entre 18 e 25anos, mas entre os brancos, nessa faixa de ida-de, o acesso chega a 11,2%, enquanto queentre os negros não passa de 2,3%.

Na medida em que o ponto fundamen-tal da mobilidade social ascendente no Brasil seencontra na Educação (Pastore; Silva, 2000),essas desigualdades têm sido o motor e a jus-tificativa para a implantação de políticas decotas raciais nas universidades públicas. Essaspolíticas que se encontram no campo das‘ações afirmativas’ pressupõem, para sua im-plantação, uma definição de categorias e clas-sificações raciais.

Se a forma brasileira de classificação éambígua a ponto de possibilitar que um mesmoindivíduo seja classificado de forma diferentedaquela em que se autoclassifica, implantar açõesafirmativas demanda o conhecimento mais espe-cífico dessa nossa complexa lógica de classifica-ções, ou seja, demanda que possamos entenderquais os elementos objetivos e subjetivos que sãoutilizados para relacionar um indivíduo a umgrupo de cor ou raça, tornado-o alvo de discri-minações que afetam sua trajetória social. Foiexatamente isso que buscamos nesta pesquisa.

40 André A. BRANDÃO e Mani Tebet A. de MARINS. Cotas para negros no Ensino Superior...

O problema, portanto, consiste em queas classificações raciais utilizadas pelos brasilei-ros não são tão claramente definidas como asque vemos ser mobilizadas em outras socieda-des, como a norte-americana, por exemplo.Essa nomeada ambigüidade em nossas classifi-cações aparece de imediato na própria noçãode ‘cor’. O senso comum nacional tende a uti-lizar a expressão ‘cor’ e não a expressão ‘raça’para qualificar diferenças fenotípicas entre osindivíduos. A noção de ‘raça’ vem sendo hácerca de três décadas difundida por pesquisa-dores acadêmicos das áreas de ciências sociaise de ciências sociais aplicadas, bem como pe-los militantes do movimento negro, mas não éde fato largamente utilizada na sociedade.

Nossa noção de cor remete como já dis-semos ao fenótipo. Trata-se de um termo quedá conta da combinação de elementos como aprópria cor da pele, a textura do cabelo, o for-mato do lábio e do nariz. Cor, portanto, não serefere à origem, mas sim à marca fenotípica queo indivíduo carrega.

Até o momento, grande parte da literaturabrasileira sobre o tema tem aceitado que a estru-tura do específico racismo brasileiro foi definidapor Nogueira (1998)4 . Segundo esse autor, nossopreconceito racial poderia ser denominado como‘de marca’. Assim, os critérios que operam a dis-criminação não seriam voltados para a origem ét-nica ou racial do indivíduo (como no racismo‘diferencialista’ norte-americano, no qual o pre-conceito seria ‘de origem’ e, portanto, relativa-mente independente da aparência física), mas simpara os traços fenotípicos. A maior proximidadedo indivíduo com o fenótipo africano indicachances maiores de discriminação. Nesse sistema,a noção ‘nativa’ de cor ocupa o lugar privilegiadona demarcação das diferenças e substitui a noçãode raça que se torna, portanto, implícita.

A ordem racial brasileira, nesse sentido,mascara o racismo existente e o dilui na noçãode ‘democracia racial’ e na afirmação de um‘contínuo de cor’. No entanto, nem a primeira –como uma ideologia – nem o segundo impedemque tanto os autodeclarados pretos quanto os

autodeclarados pardos ocupem posições socio-econômicas despri-vilegiadas na sociedade emuito aquém daquelas ocupadas pelos brancos.E isso porque o racismo (ainda que transmutadoem preconceito e discriminação por ‘cor’) encon-tra-se imbricado no senso comum, na própriacultura nacional e atua não somente nas relaçõesde sociabilidade mais gerais, mas também naforma de relação com a população negra, esta-belecida pelos órgãos públicos e pelo setor pri-vado. Exatamente por conta dessa operação, osdiferenciais de atuação social entre brancos enegros no Brasil podem ser constatados em todosos indicadores existentes.

Na medida em que na ordem racial brasi-leira o preconceito opera pela ‘marca física’, oessencialismo que vincula indivíduos a um gruporacial imutável é menos visível. Filhos da mesmaunião inter-racial que carreguem característicasfenotípicas opostas tendem a enfrentar problemasmuito diferentes em seu devir na sociedade.

Como já afirmamos, a PNAD de 1976 cole-tou de forma aberta a autoclassificação de cor ouraça dos entrevistados e encontrou cerca de 100categorias. Na matriz dessa classificação mais flui-da, encontra-se a própria montagem de nossaordem racial. Entre nós, a desigualdade entrebrancos e negros foi mantida e reproduzida apóso fim da escravidão sem que se fizesse necessá-ria a produção de uma legislação discriminatóriae segregadora e mesmo sem que fosse necessá-rio utilizar a noção de raça. Já nos Estados Uni-dos e na África do Sul, a ordem racial desigual sefez por vias legais, o que demandou a confecçãode sistemas de classificação racial específicos e quenão proporcionassem dúvidas acerca das divisõesentre os dois grupos raciais (Marx, 1998).

No caso norte-americano, a regra eraque uma gota de sangue negro definia um in-divíduo como negro independente de seus tra-ços físicos. A origem racial determinava avinculação do indivíduo ao grupo. A legislaçãoque mantinha a segregação oficial nos Estados

4. Vale ressaltar que a obra aqui referenciada foi publicada originalmenteem 1955.

41Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 47-61, jan./abr. 2007

Unidos foi abolida nos anos 1960, porém essalógica de classificação racial pela origem seimiscuiu no senso comum e continua operan-do naquela sociedade (Telles, 2003).

No caso brasileiro, verificamos uma lógi-ca inversa. Podemos dizer que entre nós umagota de sangue branco produz um indivíduoque pode buscar se incluir em uma miríade decategorias e tentar fugir da classificação denegro ou preto que são, via de regra, indicado-res de um posicionamento desprivilegiado ob-jetiva e subjetivamente em nossa sociedade.

Como vimos, as categorias utilizadaspelo IBGE acomodam o senso comum, na me-dida em que apresentam o termo ‘pardo’, tam-bém plenamente ambíguo e que pode represen-tar tanto os ‘mulatos’ quanto os ‘mestiços’ devariadas origens. No entanto, essas categoriascensitárias utilizadas para ‘contar’ a populaçãotambém atuam no sentido de produzir formasde classificação que acabam sendo adotadaspela população em geral.

Acreditamos que em sociedades comple-xas as classificações sociais não se processamem algo como um vazio sociológico. Nessesentido, também as classificações raciais (ou decor) são o produto não somente de formasculturais de diferenciação, mas também da for-ma como os homens se relacionam com asinstituições que os cercam, inclusive o merca-do e o estado.

Assim, a miríade de classificações raciaisexistentes no país não é somente resultado deum dado da cultura, mas sim o produto deinterações políticas e econômicas muito obje-tivas que impuseram suas marcas à subjetivida-de. Como sabemos, logo após o fim da escra-vidão, o Estado brasileiro apostou em umaestratégia de ‘branqueamento’ da população,adotando uma política de imigração européiaem massa. Se o alvo a ser alcançado era umapopulação branca e se a situação atual devia sermodificada exatamente por conta da populaçãonegra, a essa última (marcada pelo estereótipodo atraso e da inferioridade), restava buscarescapar dessa classificação tão negativa.

Acreditamos que a criação de um ‘con-tínuo de cor’ representa a necessidade dosnegros de fugir do tratamento degradante quetanto o Estado quanto a sociedade voltam paraestes. Nesse sentido, qualquer nível de miscige-nação produz a possibilidade de uma classifi-cação intermediária, que em alguma medidapoderia significar menor discriminação.

De fato, vemos uma classificação nãopolarizada entre duas categorias. No entanto, essadespolarização é somente ‘virtual’, pois comomesmo os mais recentes indicadores sociais têmdemonstrado (ver, por exemplo, Henriques, 2001),os autodeclarados pardos das pesquisas do IBGE,que sintetizariam o contínuo de cor, não se en-contram no meio do caminho, do ponto de vis-ta dos indicadores sociais, entre brancos e negros.Os pardos estão pouco melhor situados que ospretos, mas imensamente distantes dos brancos.

Por outro lado, a adoção de políticas decotas para negros deverá impactar a classificaçãoracial brasileira ao positivar a aceitação da negri-tude ou pelo menos da ‘cor’ parda ou negra.

Voltando à questão central para nós, adispersão nas categorias raciais utilizadas pelosbrasileiros para se representarem na vida soci-al, embora marque nossa diferença em relaçãoa outras sociedades, onde a ordem racial édiferencialista, não impede que pretos, negros,pardos, mulatos, mestiços etc. estejam muitodistantes socioeconomicamente dos brancos esejam alvo de discriminações cotidianas.

Assim, reforçamos nossa avaliação acer-ca de um caráter somente virtual dessa despo-larização racial, pois certamente existem meca-nismos muito concretos de identificação de corou raça que possibilitam que os negros (e aquiestamos nos referindo ao contínuo que vai dopreto a todas as categorias que indicam a mis-tura desse grupo com outros) sejam identifica-dos, recebam tratamento discriminatório (aindaque escamoteado em muitos casos e em mui-tos pontos da trajetória de vida) e sofram asconseqüências socioeconômicas deste.

Se nos detivermos ainda mais uma veznos dados que apresentamos acima, podemos

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demonstrar a validade dessas indicações queacabamos de construir.

Na análise das respostas abertas de corou raça, verificamos que, apesar de termos umalistagem variada de classificações, grande par-te destas se concentraram naquelas utilizadaspelos IBGE (63,71%).

Comparando as declarações de cor ouraça aberta e fechada, verificamos que a mai-or consistência nas duas classificações é dosbrancos. Em seguida, aparece a consistência dospretos da pergunta fechada e dos negros dapergunta aberta. Já os pardos da pergunta fe-chada apresentam grande dispersão na perguntaaberta, mas esta se faz em grande maioria nasclassificações que indicam mistura racial oumestiçagem. Esse peso das categorias do IBGEnas respostas abertas de cor ou raça pode in-dicar que os levantamentos estatísticos oficiaisacabam por ‘condicionar’ as formas sociais declassificação. O IBGE tem utilizado um padrãode classificação que, por ser oficial, foi absor-vido por grande parte da população como vá-lido ou correto, criando uma imagem adequa-da de classificação racial. Trata-se, portanto,de uma espécie de condicionamento da termi-nologia oficial sobre o senso comum, que aca-bou se construindo por meio do uso cotidiano.

Nesse sentido, a valorização que parte daliteratura da área faz da dispersão e inconsis-tência de nossa classificação racial pode serdesmistificada por meio das avaliações acima.

Nas análises, verificamos dois problemasna classificação bi-racial (branco/negro). O pri-meiro diz respeito à rejeição a essa categoriapelos três grupos de cor ou raça, mas principal-mente pelos pretos e pardos (o que pode serverificado no percentual de não-declarantes). Osegundo problema consiste em que quandoessa classificação é comparada à do IBGE oumesmo à aberta, cresce significativamente onúmero de brancos, devido ao fato de que ospardos tendem a migrar em larga medida parao grupo branco.

Nesse sentido, a adoção oficial de umaclassificação bi-racial, como defende parte do

movimento negro nacional, acabaria por produ-zir uma situação na qual o peso demográfico des-se grupo (considerando os pretos e pardos daclassificação do IBGE) diminuiria. Concluímos,portanto, que a categoria parda é necessária nosentido de acomodar essa miríade de classifica-ções que se perfaz no chamado ‘contínuo de cor’.

As análises que realizamos indicam que, sehá uma rejeição à categorização bi-racial, nãoexiste uma rejeição à pergunta: “Você se consi-dera afro-descendente ou de origem negra?” Defato, o percentual de afro-descendentes é muitomaior que a soma dos pretos e pardos, exatamen-te porque muitos brancos também se identificamdessa forma. O importante é que pardos e pretosrejeitam em grande percentual a polarizaçãofenotípica (a bi-racial), mas não rejeitam a pola-rização de origem (afro ou não afro).

Podemos concluir que a autodeclaraçãoda afro-descendência não parece se prestar comoparâmetro de inclusão em políticas de ação afir-mativa (seja no campo da Educação Superior oumesmo no campo das demais políticas sociais),que pretendam privilegiar, por meio de uma dis-criminação positiva, grupos que por conta deprocessos de longa duração, ligados à formaçãoe manutenção de nossa ordem racial, forammantidos nos patamares mais baixos da hierar-quia social (Brandão; Marins, 2005).

Vimos que os alunos de Ensino Médioque entrevistamos são em grande medida con-trários à política de cotas para negros na univer-sidade, apesar de muitos serem possíveisbeneficiários desta. Somente pesquisas qualita-tivas podem aprofundar explicações para talconfiguração, porém podemos adiantar que doiselementos são aqui fundamentais. O primeiro éa própria idéia abstrata de mérito que é estrutu-ral nas sociedades capitalistas orientadas pelosprincípios liberais. O segundo problema está nosefeitos da ideologia da democracia racial queencobre como um manto de inverdades a dure-za das relações inter-raciais no Brasil.

Verificamos que os alunos apontam ocaráter racista da sociedade brasileira, mas nãose declaram racistas. Ou seja, apontam o racis-

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mo como algo que está para além da sua indi-vidualidade, como se fosse possível separar onível societário das práticas individuais que, emúltima instância, movimentam a sociedade ereproduzem as suas relações.

Quando investigamos os critérios utilizadospara a autoclassificação de cor ou raça e para aclassificação do outro, verificamos que de fato ostraços fenotípicos aparecem como mais importan-tes, mas a origem não é desprezada, muito pelocontrário, tal demarcação para cor ou raça apare-ce como a segunda mais importante, sempre comgrande peso percentual. Essa conclusão é funda-mental porque põe em cheque a indicação deNogueira (1985; 1998) acerca da ‘marca’ como ele-mento classificatório básico nas relações raciaisbrasileiras, indicação essa que é amplamente aceitapelos estudos raciais elaborados no Brasil.

Enfim, podemos afirmar que, consideran-do os limites de nossa amostra, encontramos umpadrão de classificação racial que corresponde a:a) definição de um pólo branco e de um pólopreto/negro entre os quais se distribui classifica-ções de cor que acabam se reunindo na catego-ria pardo; b) dispersão aberta somente relativa;e c) valorização do fenótipo e da origem fami-liar, com peso maior do primeiro.

Nesse sentido, concluímos que a crítica àspolíticas de ação afirmativa baseada na impos-sibilidade de definição de quem pode ser usu-ário destas no Brasil não é procedente porque,ainda que não tenhamos uma determinação decor ou raça absolutamente fechada, temos, noentanto, uma lógica classificatória que, apesarde sua maior flexibilidade, funda um padrão deidentificação socialmente utilizado.

Para finalizar, podemos nos remeter aoclássico Algumas formas primitivas de classifica-ção de Émile Durkheim e Marcel Mauss (1984),no qual os autores insistem em provar o quedenominam como um caráter absolutamentesocial da forma por meio das quais os homenselaboram suas classificações. Nessa perspectiva:

A sociedade não foi simplesmente um modelode acordo com o qual o pensamento classifi-

catório teria trabalhado; foram os própriosquadros da sociedade que serviram de quadrosao sistema. (p. 198)

Émile Durkheim e Marcel Mauss utiliza-ram, para elaborar seu argumento, reflexõesacerca de formas de classificação mobilizadaspor sociedades tribais (para eles ‘primitivas’) devárias partes do mundo. No contexto do início doséculo XX, quando ainda se construía a afirmaçãoda ciência social como campo independente eválido de estudos, os autores concluíam seu ar-tigo apontando enfaticamente que esse princípiopor eles descoberto poderia ser utilizado para acompreensão não somente das classificações, mastambém de inúmeras outras formas de entendi-mento (tais como as noções sociais de tempo,espaço, substância etc.).

A generalização desse argumento clássi-co para a compreensão das relações raciaisbrasileiras pode levar a conclusão de que aforma aparentemente pouco definida que car-rega nossa lógica de classificação racial seria oproduto de uma forma também pouco precisade diferenciação entre os grupos raciais nasociedade. Daqui podem eclodir duas reflexões.

A primeira depende de aceitarmos a noçãoque aparece em estudos que afirmam a existênciainefável de um contínuo de cor irredutível a umpequeno número de categorias de classificaçãoracial. Partindo desse princípio, de fato, estaríamossob a égide do ‘mito da democracia racial’ que,como mito, é então fundador da forma de relaci-onamento social entre sujeitos fenotipicamentediversos e da forma de classificação das diferençasentre estes. O contínuo ‘serviria’ como re-afirma-ção de uma gradação de cor que poderia serrelativizada por conta de uma não racialização.

A segunda reflexão parte de um pontoalgo além da primeira. Verificando mais a fun-do esse contínuo e o pensando no pano defundo de outras indicações classificatórias pre-sentes no senso comum, percebemos que este,se não aponta em realidade para um modelobi-polar, cabe perfeitamente dentro de ummodelo ‘tríadico’. Mais especificamente existiri-

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am categorias polares definidas: por um lado,a categoria branca e, por outro, as categoriashomotéticas preta e negra. O famoso contínuo,na verdade, reúne tudo o que pode ser pensa-do entre as duas primeiras, ou seja, todas ascategorias que carregam o signo da mistura esão representacionalmente passíveis de se agru-par na classificação parda.

Não é por acaso, portanto, que quandodividimos brancos, pretos e pardos em catego-rias socioeconômicas, verificamos uma demar-cação nada indefinida entre estas5 , e que mos-tra os brancos no topo da hierarquia social,

5. Como mostram os estudos elaborados desde fins dos anos 1970 até oinício do século XXI (por exemplo, HASENBOLG [1979] e HENRIQUES [2001]).

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muito distantes de pardos que ficam na base,mas ainda um pouco acima dos pretos.

Assim se Durkheim e Mauss (1984) esta-vam certos, nossa classificação atende a formaespecífica de uma sociedade na qual as diferen-ças são reconhecidas e se expressam não só na‘taxonomia’ de cor ou raça, mas também nadistribuição dos indivíduos na estrutura social.

45Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 27-45, jan./abr. 2007

SANSONE, L. Negritude sem etnicidadeNegritude sem etnicidadeNegritude sem etnicidadeNegritude sem etnicidadeNegritude sem etnicidade. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

TELLES, E. Racismo à brasileiraRacismo à brasileiraRacismo à brasileiraRacismo à brasileiraRacismo à brasileira. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2003.

Recebido em 07.12.05Aprovado em 22.06.06

André Augusto Brandão é doutor em Ciências Sociais, professor da Universidade Federal Fluminense, atuando noPrograma de Estudos Pós-Graduados em Política Social e coordenador de projetos nacionais de avaliação de políticas sociaispúblicas.

Mani Tebet A. de Marins é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (PPGAS-IFCS-UFRJ) e vencedora do I Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, organizado peloCNPq e pela Secretaria Especial de Políticas para a Mulher.