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Olhando para nós mesmos: alfabetização da diáspora e Educação das Relações Étnico-Raciais - Neab Livro PDF Digital

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Eis que se faz presente aqui o segundolivro da Coleção Cadernos NEAB:Olhando para nós mesmos: alfabetizaçãoda diáspora e educação dasrelações étnico-raciais. Se no primeirovolume reuniram-se textos da parte inicialdo curso de Especialização em Educaçãodas Relações Étnico-Raciais, este volumereúne os artigos da segunda metade. E seguindoo que fora proposto anteriormente,os textos foram organizados como materialde leitura para a formação continuada napós-graduação.Esta publicação, como asseveradona apresentação do primeiro livroda coleção, possui um caráter duplo: deum lado, aglutinar sínteses de pesquisas,de estudos das pessoas envolvidas com odo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros daUniversidade Federal do Paraná (NEAB--UFPR); de outro a preocupação em colaborarcom a formação continuada de profissionaisda educação. Assim sendo, o presentevolume é constituído por seis artigospreocupados em trazer análises empíricasacerca do funcionamento da discriminaçãoétnico-racial no Brasil para fornecer instrumentosteóricos e metodológicos parase pensar as relações étnico-raciais e paraatuar nas escolas.

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Olhando para nós mesmos: alfabetização da diáspora e

Educação das Relações Étnico-Raciais

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ReitorZaki Akel Sobrinho

Vice-ReitorRogério Andrade Mulinari

Pró-Reitoria de GraduaçãoMaria Amélia Sabbag Zainko

Coordenação de Estudos e Pesquisas Inovadoras na GraduaçãoLaura Ceretta Moreira

Núcleo de Estudos Afro-BrasileirosJosafá Moreira da Cunha

Coleção Cadernos NEAB-UFPRConselho Editorial

Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – UNILABDr. Alex Ratts – UFGDr. Ari Lima – UNEB

Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPGDra. Conceição Evaristo – UFF

Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBADra. Florentina da Silva Souza – UFBA

Dr. José Endoença Martins – FURBDra. Lucimar Rosa Dias – UFPR

Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG – UNILAB

Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso – UDESCDra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – UFSCAR

Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA

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Hilton Costa Paulo Vinicius Baptista da Silva

(Orgs.)

Coleção Cadernos NEAB-UFPR

Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (NEAB-UFPR)

Curitiba 2014

Olhando para nós mesmos: alfabetização da diáspora e

Educação das Relações Étnico-Raciais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.SISTEMA DE BIBLIOTECAS.

BIBLIOTECA CENTRALCOORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS.

Olhando para nós mesmos : alfabetização da diáspora e educação das relações étnico-raciais / Hilton Costa, Paulo Vinícius Baptista da Silva (orgs.). – Curitiba : NEAB-UFPR, 2014. 123p. : il. algumas color. – (Cadernos NEAB-UFPR) ISBN 9788566278040 Inclui referências Vários autores 1. Discriminação racial. 2. Discriminação na educação. 3. Brasil – Relações raciais. 4. Brasil – Relações étnicas. 5. Igualdade na educação. 6. Racismo. 7. Arte negra. I. Costa, Hilton. II. Silva, Paulo Vinícius Baptista da, 1965-. III. Universidade Federal do Paraná. Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. IV. Série.

CDD 305.896081

Andrea Carolina Grohs CRB 9/1384

© Hilton Costa e Paulo Vinicius Baptista da Silva

Coordenação editorial

Paulo Vinicius Baptista da Silva

Revisão, projeto gráfico e editoração eletrônica

Reinaldo Cezar Lima

Capa

Símbolo “Hwehwemudua”, extraído de Adinkra: sabedoria em símbolos africanos, livro de autoria de

Elisa Larkin Nascimento e Luis Carlos Gá, cujo significado é bastão de procura ou de medida.

Símbolo da excelência, da perfeição, do conhecimento e da qualidade superior.

Criação da capa: Artes & Textos Editora Ltda.

Direitos desta edição reservados ao

NEAB UFPR

Praça Santos Andrade, 50 – Centro

Tel.: (41)3310-2707 / Fax: (41)3360-5000

80020-938 – Curitiba – Paraná – Brasil

www.neab.ufpr.br

[email protected]; [email protected]

2014

Olhando para nós mesmos: alfabetização da diáspora e

Educação das Relações Étnico-Raciais

ISBN 978-85-66278-04-0

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SUMÁRIO

ApresentaçãoAinda sobre a educação das relações étnico-raciais no NEAB-UFPRHilton Costa e Paulo Vinicius Baptista da Silva

Sociologia dos grupos raciais no Brasil“Questão nacional” e “Questão racial” no pensamento social brasileiro Alexandro Dantas Trindade

Educação e desigualdades raciais no BrasilPesquisas sobre desigualdades educacionais e relações raciais no BrasilDébora Oyayomi Cristina de Araujo

Negros e brancos nos livros dirigidos à infânciaNegros e brancos na literatura e literatura infanto-juvenilPaulo Vinicius Baptista da Silva

Representações midiáticas de negros e brancos no BrasilDesigualdades raciais na mídia impressa paranaenseWellington Oliveira dos Santos

Literatura africana e afro-brasileira“Transidades” textuais: literatura afrodescendente e pós-colonialismoJosé Endoença Martins

A “mão afro-brasileira” nas artesA mão afro-brasileira – arte africana”Marco de Oliveira

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Apresentação

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Eis que se faz presente aqui o se-gundo livro da Coleção Cadernos NEAB: Olhando para nós mesmos: alfabe-tização da diáspora e educação das relações étnico-raciais. Se no primeiro volume reuniram-se textos da parte inicial do curso de Especialização em Educação das Relações Étnico-Raciais, este volume reúne os artigos da segunda metade. E se-guindo o que fora proposto anteriormente, os textos foram organizados como material de leitura para a formação continuada na pós-graduação. Esta publicação, como as-severado na apresentação do primeiro livro da coleção, possui um caráter duplo: de um lado, aglutinar sínteses de pesquisas, de estudos das pessoas envolvidas com o do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (NEAB- -UFPR); de outro a preocupação em cola-borar com a formação continuada de pro-fissionais da educação. Assim sendo, o pre-sente volume é constituído por seis artigos preocupados em trazer análises empíricas acerca do funcionamento da discriminação étnico-racial no Brasil para fornecer ins-trumentos teóricos e metodológicos para se pensar as relações étnico-raciais e para atuar nas escolas.

O processo de formação continuada de professores para educação das relações étnico-raciais tem avançado na medida em que passam os anos, com fomento do MEC, especialmente da SECADI, com par-

ticipação das universidades públicas, em especial dos núcleos de estudos afro-brasi-leiros (NEABs). A formação de especialistas visa promover o acesso ao conhecimento produzido pelo NEAB-UFPR e pelas pesqui-sas brasileiras e internacionais da área que possam subsidiar gestoras/es, pedagogas/os e docentes nas ações de promoção de igualdade racial. Para além do objetivo de ser uma obra de leitura para os discentes do curso de especialização em andamento, a publicação em livro eletrônico e impres-so visa divulgar em espaços mais amplos (web, bibliotecas) os frutos de pesquisas desenvolvidas no NEAB-UFPR.

Dos seis capítulos que compõem este volume, o primeiro trata de questões vinculadas à Sociologia dos Grupos Sociais no Brasil. Ele foi denominado de “Questão nacional” e “Questão racial” no pensamen-to social brasileiro e sua elaboração ficou a cargo de Alexandro Dantas Trindade. O capítulo, segundo o autor, tem por “objeti-vo [...] percorrer algumas leituras do pen-samento social brasileiro desde o século 19, tendo como foco central a formação da nação e a ‘questão racial’ no Brasil” (TRIN-DADE, 2014). Deste modo, o artigo visa denotar como a dimensão racial da nação “foi pensada por autores como Florestan Fernandes, Roger Bastide, Oracy Nogueira, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento” (TRINDADE, 2014). Ademais, o texto pro-cura estabelecer como a “chamada ‘ques-

Ainda sobre a educação das relações

étnico-raciais no NEAB-UFPR

Hilton Costa1

Paulo Vinicius Baptista da Silva2

1 Doutor em História pela UFPR; mestre em História pela UFRGS; pesquisador colaborador no NEAB--UFPR.

2 Doutor em Psicologia Social pela PU C/SP; pesquisador do CNPq; pesquisador do Programa de Pós--Graduação em Educação da UFPR e do NEAB-UFPR.

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12 Ainda sobre a educação das relações étnico-raciais no NEAB-UFPR

tão racial’ foi compreendida ao longo do século 20 no Brasil, tanto pelo pensamen-to social mais amplo como pelas análises sociológicas comprometidas em entender nossa complexa formação social” (TRINDA-DE, 2014). O autor propõe a discussão de “pesquisas mais recentes sobre as relações raciais, o papel e a trajetória dos movimen-tos sociais de combate às desigualdades, assim como os efeitos das recém-implan-tadas políticas públicas que visam reduzi--las” (TRINDADE, 2014).

O segundo capítulo deste volume foi denominado de Educação e desigualdades sociais no Brasil e o mesmo foi construído por Débora Oyayomi Cristina de Araujo. A autora apresenta neste capítulo a discus-são sobre a educação e as desigualdades sociais e raciais no Brasil, destacando o papel da escola na manutenção do racismo no Brasil, bem como a necessidade de esta mesma escola ser um mecanismo de com-bate à discriminação racial. Assim, o traba-lho de Araujo foca como o maior empenho na adequação dos currículos e práticas es-colares ao artigo 26A da LDB (modificado pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08) pode ser um ponto central para a constituição de uma “outra” identidade negra – descolada dos estereótipos racistas.

O terceiro capítulo deste volume, Negros e brancos na literatura e literatu-ra infantojuvenil, foi escrito por Paulo Vi-nicius Baptista da Silva. O “artigo trata de relações entre brancos(as) e negros(as) em discursos brasileiros” (SILVA, 2014) e ofe-rece ao leitor, a leitora uma síntese de pes-quisas realizadas no âmbito do NEAB-UF-PR. A análise realizada por Silva das pes-quisas sobre produção literária brasileira, sobretudo aquela dirigida à infância, releva não só a sub-representação da população negra, como também as outras formas de estabelecer hierarquias entre brancos/as e negros/as que os discursos propõem. Assim, a análise denota que a imagem de sociedade isenta de discriminação ra-

cial, predominante na literatura brasileira, de fato seria “uma estratégia para manter uma hegemonia branca” (SILVA, 2014).

As estratégias de negação da pre-sença negra no Brasil também são foco da análise de Wellington Oliveira dos Santos no quarto capítulo, denominado Desigual-dades raciais na mídia impressa para-naense. Para tal, o autor destaca “algumas das formas de inclusão/exclusão do negro na mídia impressa paranaense” (SANTOS, 2014). A proposta de Santos é a de “discu-tir como essa mídia tem atuado de modo a desprezar a presença negra no Estado do Paraná, ao mesmo tempo em que afirma a presença branca como padrão de racio-nalidade, beleza e humanidade” (SANTOS, 2014). Santos investigou esta situação em três dos principais jornais impressos do Paraná nos anos de 2006 e 2007 (Gazeta do Povo, O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná). Desta investigação, o autor pôde concluir que, mesmo em meio a avanços significativos, tanto em termos de presen-ça como de representação da população negra na mídia paranaense, “diversas for-mas de hierarquização racial entre brancos e negros” permanecem (SANTOS, 2014). E mais: Santos consegue pontuar que “essas formas de hierarquização não são, via de regra, explícitas; pelo contrário, elas po-dem ser consideradas manifestações do racismo nacional. Esse racismo atua de modo a desprezar a presença negra no Es-tado do Paraná, ao mesmo tempo em que afirma a presença branca como padrão de racionalidade, beleza e humanidade.” (SANTOS, 2014).

O quinto capítulo deste volume fi-cou a cargo de José Endoença Martins. Em “Transidades” textuais: literatura afro-descendente e pós-colonialismo, procu-ra destacar como os modelos binários de análise e de interpretação podem limitar uma melhor apreensão da produção literá-ria afrodescendente. Sem necessariamente descartar a existência de posições assimi-

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13Hilton Costa; Paulo Vinicius Baptista da Silva

lacionistas (assume-se a cultura do colo-nizador) e posições nacionalistas (recusa a cultura do colonizador), Endoença, em grande medida, propõe que “a perspecti-va pós-colonial da junção entre transidade e tradução evita as limitações binárias dos antagonismos entre o mundo cultural do negro e o do branco para aí introduzir um terceiro elemento que tende a superar as restrições impostas pelo binarismo” (MAR-TINS, 2014).

O sexto e último capítulo deste vo-lume foi produzido por Marco de Oliveira e é intitulado A mão afro-brasileira – arte africana. Dentre as preocupações do autor neste texto, pode-se destacar a discussão acerca de como as pessoas responsáveis pelos currículos escolares, mesmo depois da Lei 10.639/03, demonstram pouco em-

penho em inserir a arte africana (notada-mente, as artes visuais) como parte efetiva do conteúdo. Ademais, existe a dificulda-de em se admitir a arte produzida na Áfri-ca como tal, ou seja, como arte. Oliveira traz ainda informações bastante relevan-tes acerca de uma História da Arte Africa-na, bem como um panorama da produção contemporânea em Artes Visuais na África.

Como mencionado anteriormente, estes textos preocupam-se tanto em forne-cer instrumentos teóricos e metodológicos para se pensar as relações étnico-raciais como também em trazer análises empíri-cas acerca do funcionamento da discrimi-nação étnico-racial no Brasil, discrimina-ção esta que nem sempre opera de manei-ra explícita e direta, optando muitas vezes pela discrição e pela dissimulação.

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Sociologia dos grupos raciais no Brasil

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1. Introdução

O objetivo deste texto de apoio é percorrer algumas leituras do pensamento social brasileiro desde o século 19, tendo como foco central a formação da nação e a “questão racial” no Brasil. Ao longo do módulo específico deste curso, explorare-mos como esta dimensão foi pensada por autores como Florestan Fernandes, Roger Bastide, Oracy Nogueira, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento. Isto é, como es-pecificamente a chamada “questão racial” foi compreendida ao longo do século 20 no Brasil, tanto pelo pensamento social mais amplo como pelas análises socioló-gicas comprometidas em entender nossa complexa formação social. Além disso, nos propomos a discutir as pesquisas mais re-centes sobre as relações raciais, o papel e a trajetória dos movimentos sociais de combate às desigualdades, assim como os efeitos das recém-implantadas políticas públicas que visam reduzi-las – como as ações afirmativas, por exemplo. Neste sen-tido, o alcance do módulo será bem mais amplo do que este breve texto e o curso será amparado por uma bibliografia mais específica.

No entanto, para que possamos co-meçar a discutir os assuntos acima propos-tos, acreditamos que uma breve introdu-ção aos temas da construção da nação, da escravidão e das interpretações elaboradas

pelo pensamento social acerca da miscige-nação e da formação do povo são funda-mentais para entendermos tanto o alcance e os limites das pesquisas sobre as rela-ções raciais como o papel dos movimen-tos sociais e as respostas do Estado frente a esse fenômeno. Assim, esperamos que este texto possa contribuir para uma leitu-ra preliminar para esta tarefa.

2. Peculiaridades da formação social brasileira: o Brasil-nação como ideologia

Para entendermos o alcance e o sentido que o tema das relações raciais teve e ainda tem na sociedade brasileira, não poderíamos deixar de compreender um aspecto que tem apresentado desafios às ciências sociais e à historiografia con-temporâneas: o processo de construção da identidade nacional. Como entender, afi-nal, o “Brasil-nação”? Mais precisamente, o que entender por nação?

A rigor, não há uma definição unívo-ca, unânime e universalmente aceita para o termo “nação”. Embora saibamos que a humanidade subdivide-se em diversas culturas, que se diferenciam por línguas, costumes, religiões, e que comportam uni-dades políticas, cujos grupos comprome-tem-se com a ajuda mútua e submetem-se a estruturas de autoridade, nem por isso

“Questão nacional” e “Questão racial” no

pensamento social brasileiro

Alexandro Dantas Trindade1

1 Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP; pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR e vice-coordenador do NEAB/UFPR.

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18 “Questão nacional” e “questão racial” no pensamento social brasileiro

podemos identificar, com nitidez absoluta, suas fronteiras culturais ou políticas: tradi-ções culturais como linguagem, devoção religiosa ou costume popular frequente-mente se entrecruzam; as jurisdições polí-ticas podem sobrepor-se umas às outras e, de maneira geral, as fronteiras políticas e culturais raramente são convergentes. De acordo com um teórico político contempo-râneo, Ernest Gellner, num verbete para o Dicionário do Pensamento Social do Sécu-lo XX (1996), “é impossível aplicar o ter-mo ‘nação’ a todas as unidades que são cultural ou politicamente caracterizáveis”, já que isso implicaria tanto num número excessivo de nações, como no fato de que vários indivíduos teriam múltiplas identi-dades nacionais (OUTHWAITE; BOTTOMO-RE, 1996, p. 507). A pergunta sobre como um grupo que compartilha uma identidade linguística, cultural, religiosa, étnica, etc. poderia se constituir numa nação, ou em que medida uma unidade política pudes-se representar uma ou mais identidades culturais, a rigor, só teria sentido a partir de um processo histórico específico. Mais precisamente, com o advento da moderni-dade e do Estado-nação. Isto é, a socieda-de urbana e industrial, palco da mobilidade social e de um estado organizado, ao subs-tituir comunidades locais, tribais, basea-das em grupos de parentesco ou despro-vidas de uma autoridade central, construiu igualmente a ideia de nação como aspecto central para garantir a legitimidade diante destas transformações na estrutura social. Foi na virada do século 18 para o 19 que o termo “nação” passou a ter uma impor-tância central para a vida de milhões de indivíduos, a ponto de legitimar rebeliões em massa, processos de independência política, domínio de outros povos, formas de resistência a outros grupos e assim por diante.

Segundo a filósofa Marilena Chauí, a etimologia da palavra “nação” remonta ao verbo latino nascor (nascer) e a um subs-

tantivo derivado deste verbo, natio ou na-ção. Originalmente significou “indivíduos nascidos ao mesmo tempo de uma mes-ma mãe, e, depois, os indivíduos nascidos num mesmo lugar” (CHAUÍ, 2006, p. 14). No final da Antiguidade e no início da Idade Média, a Igreja Católica passou a usar na-tiones, no plural, para se referir aos pagãos e distingui-los do populus Dei, o “povo de Deus”. Ou seja, enquanto a palavra “povo” designava um grupo de indivíduos organi-zados institucionalmente, obedientes a re-gras e leis comuns, traduzindo, portanto, um conceito jurídico-político, a “nação” era um conceito biológico, que significava ape-nas um grupo de descendência comum, usado para referir-se tanto aos pagãos (em contraposição aos cristãos) como aos estrangeiros (os judeus, que eram os “ho-mens da nação” em Portugal, por exemplo, ou as “nações indígenas” que viviam “sem fé, sem rei e sem lei”, segundo a ótica dos colonizadores). Assim, antes da invenção histórica da nação, como fruto do proces-so de unificação política e do advento do Estado-nação, os termos políticos empre-gados eram “povo” e “pátria”. Esta última era derivada do vocábulo latino pater, pai, entendido não como genitor dos filhos, mas como “senhor”, “chefe” ou aquele que possui a propriedade absoluta da terra e do que nela existe, isto é, do patrimonium (CHAUÍ, 2006, p. 15). A partir do século 18, com as revoluções norte-americana, holan-desa e francesa, “pátria” passou a significar o “território cujo senhor é o povo organiza-do sob a forma de Estado independente” e este vocábulo esteve presente também nas revoltas que antecederam o processo de Independência no Brasil, quando se fa-lava em “pátria mineira”, “pátria pernam-bucana”, e não em uma “pátria brasileira” (CHAUÍ, 2006, p. 16).

Todavia, o significado etimológico de palavras como nação, nacionalidade, nacionalismo, em si mesmas, nos diz mui-to pouco acerca dos usos políticos, das re-

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19Alexandro Dantas Trindade

presentações com que foram usadas, em suma, dos processos históricos que as tor-naram uma referência ideológica central no mundo moderno. A escassez de teorias plausíveis sobre o fenômeno da nação e do nacionalismo, contudo, não tem sido obs-táculo para que autores como Eric Hobs-bawm (1990) e Benedict Anderson (2008), para citarmos talvez os mais influentes, re-alizassem estudos importantes visando à sua compreensão.

Para o primeiro, além da ênfase quanto à ideia de vincular a nação ao de-senvolvimento do Estado moderno, o ele-mento de “artefato, da invenção e da en-genharia social que entra na formação das nações” é de fundamental importância. Em boa medida, a visão da nação como algo “natural”, “divino” ou como “destino político” de um povo, presente em muitos discursos nacionalistas, não passa de um “mito”. Na verdade, o discurso nacionalista do Estado é o que cria as possibilidades para se pensar a nação, e não o oposto. (HOBSBAWM, 1990, p. 19).

Esta ideia de construção, invenção ou artefato é, digamos, radicalizada em Benedict Anderson (2008), para quem tan-to a condição nacional quanto o naciona-lismo são entendidos enquanto “produtos culturais específicos” do final do século 18. Mais precisamente, o autor propõe definir nação, antropologicamente, como sendo uma “comunidade política imaginada”: ela é imaginada, “porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais co-nhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (ANDERSON, 2008, p. 32). Neste exercício de imagina-ção da nação, os intelectuais desempenha-ram e continuam a desempenhar um pa-pel destacado, pois são os “artífices dessa construção de imaginários coletivos” (COS-TA, 2008, p. 10).

Seguindo a última ideia acima, cabe--nos agora indagar sobre como teria sido o processo de constituição do Brasil-nação, sendo um caminho possível o estudo das distintas representações elaboradas pelos intelectuais. Na verdade, um tema que tem intrigado sociólogos, historiadores, econo-mistas, cientistas políticos e outros pesqui-sadores neste quadrante do planeta tem sido o tema do descompasso entre a cria-ção do Estado e a formação da Nação brasi-leira, ou, mais exatamente, da complexida-de da nossa “identidade nacional”. O fascí-nio pela chamada “questão nacional” é algo que perpassa a história do pensamento brasileiro. Sobretudo em épocas de crise, a questão nacional mobiliza diversos intelec-tuais, gerações inteiras que se voltam para tentar “repensar” a nação, esboçar-lhe um sentido, dar-lhe alguma coerência.

Algumas representações têm sido mais vigorosas, mais frequentes ou hege-mônicas, tais como o “motivo edênico”, isto é, a visão paradisíaca do Brasil. Esta visão, presente pelo menos desde a carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500, foi ex-pressa de modo exemplar por Rocha Pita, em História da América Portuguesa, publi-cado em 1730:

Em nenhuma outra região se mos-tra o céu mais sereno, nem madru-ga mais bela a aurora; o sol em ne-nhum outro hemisfério tem raios tão dourados, nem os reflexos noturnos tão brilhantes; as estrelas são mais benignas e se mostram sempre ale-gres; os horizontes, ou nasça o sol, ou se sepulte, estão sempre claros; as águas, ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povo-ações nos aquedutos, são as mais puras; é enfim o Brasil Terreal Paraí-so descoberto, onde têm nascimen-to e curso os maiores rios; domina salutífero clima; influem benignos astros e respiram auras suavíssi-mas, que o fazem fértil e povoado de inumeráveis habitadores (ROCHA PITA, 1730, p. 3-4, apud CARVALHO, 1998, p. 2).

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20 “Questão nacional” e “questão racial” no pensamento social brasileiro

A ideia de que o Brasil é “gigante pela própria natureza”, terra de um povo pacífico e ordeiro, sem revoluções, terre-motos ou grandes rupturas, é igualmente parte deste grande “mito” sobre a identida-de nacional. Da mesma forma que a ideia de sermos um povo formado pela mistura de três raças unidas por uma “democracia racial”.

Entretanto, ao lado destas, houve diversas outras representações, corres-pondentes a momentos distintos do nosso processo de formação social. Foram vá-rios os símbolos e emblemas criados pe-las elites intelectuais ao longo do tempo. Em momentos de crise das instituições, de mudanças sociais intensas ou em tempos de incerteza, elas podem ser vistas como tentativas de se criar uma narrativa que dê sentido e uma certa homogeneidade ao que, na verdade, é caótico e contraditório, sujeito a várias leituras possíveis. Segundo Octávio Ianni, visto numa perspectiva his-tórica ampla, o Brasil se revela uma forma-ção social caleidoscópica, um arquipélago, uma espécie de

labirinto de elementos culturais e étnicos, simultaneamente às dife-rentes formas de organização do trabalho e da produção. Essa é uma formação social em que convivem formas de sociabilidade constituídas em distintas épocas e em diferentes regiões; regiões que por muito tem-po, até meados do século 20, com-punham uma espécie de arquipéla-go, em lugar de um país socialmente articulado (IANNI, 2004, p. 160).

Uma nação em busca de um concei-to: ainda segundo o autor, “o Brasil ainda não é propriamente uma nação”, embora possa ser um Estado nacional, no sentido de um aparelho estatal organizado, abran-gente e forte, que acomoda, controla ou dinamiza tanto estados e regiões como grupos raciais e classes sociais (IANNI, 2004, p. 199). Em suma, o Brasil se revela

uma “vasta desarticulação”, a despeito de seus símbolos, como a língua, a bandei-ra, a moeda, o mercado, seus santos e he-róis, etc. Apenas aparentemente podemos pensar “uma” cultura brasileira. Todavia, a “identidade nacional” é forte o suficiente a ponto de naturalizarmos nossa condição de “brasileiros”.

Este aspecto contraditório é, na ver-dade, produto de uma situação paradoxal que se verificou não apenas no Brasil, mas que foi extensivo às nações do Novo Mun-do. É que, diferentemente das nações eu-ropeias, “cuja estratégia fora a de estreitar os vínculos com um passado tanto mais glorioso quanto mais remoto, na América a Independência significou o rompimento político com metrópoles que eram impor-tantes matrizes identitárias” (COSTA, 2008, p. 4). Ou seja, ao mesmo tempo em que os países americanos rompiam com suas metrópoles, não podiam renunciar à sua li-gação com o mundo europeu do ponto de vista cultural e político, tampouco afastar--se do sistema mundial de Estados-nações, mas teriam que pertencer a ele de outra maneira.

No caso brasileiro, o paradoxo deste processo de Independência foi até mais evi-dente, pois a manutenção da unidade terri-torial do domínio português correspondeu muito mais a uma visão da antiga metró-pole do que a uma demanda dos próprios colonos, ao contrário do que aconteceu no restante do continente sul-americano. A América Espanhola se fragmentou em tantos países independentes quantas eram suas antigas subdivisões administrativas coloniais. Além disto, enquanto aqueles países experimentaram processos mais ou menos intensos de balcanização, caudilhis-mo e instabilidade política, embora com maior mobilização popular, o Brasil assis-tiu a um processo de redução do conflito nacional, juntamente com a limitação da mobilidade social e da participação políti-ca. O resultado foi que o Estado brasileiro

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21Alexandro Dantas Trindade

se constituiu numa espécie de “flor exótica” no contexto latino-americano ao manter--se, ao longo da maior parte do século 19, como uma monarquia e um país escravista ao lado de repúblicas formalmente livres.

Uma explicação para o fenômeno é dada por José Murilo de Carvalho, para quem tal quadro teria sido o resultado da maior unidade ideológica da elite política brasileira, em comparação com as dos de-mais países (CARVALHO, 1996, p. 209). Se-gundo o autor,

a maior continuidade com a situ-ação pré-independência levou à manutenção de um aparato estatal mais organizado, mais coeso, e tam-bém mesmo mais poderoso. Além disso, a coesão da elite, ao reduzir os conflitos internos aos grupos do-minantes, reduziu também as possi-bilidades ou a gravidade de conflitos mais amplos da sociedade. A ausên-cia de conflitos políticos que levas-sem a mudanças violentas de poder tinha também como consequência a redução de um dos poucos canais disponíveis de mobilidade social ascendente. Em vários outros paí-ses da América Latina, os caudilhos eram frequentemente recrutados em camadas populares. A manuten-ção da escravidão, um compromisso da elite com a propriedade da terra, reforçou mais ainda o aspecto de re-dução da mobilidade social (CARVA-LHO, 1996, p. 36).

É exatamente sobre esta questão que Carvalho aponta um traço singular do processo político brasileiro: tratar-se--ia do paradoxo de o canal de mobilidade mais importante para os elementos não inseridos no sistema econômico agrário--escravista ter sido a própria burocracia. O Estado, ao mesmo tempo em que depen-dia da manutenção da grande agricultura e da escravidão, tornava-se refúgio para os “elementos mais dinâmicos que não en-contravam espaço de atuação dentro dessa agricultura”. Tal quadro, entretanto, tendia a favorecer a atuação da própria elite polí-

tica: “Instalava-se dentro do próprio Estado uma ambiguidade básica que dava à eli-te política certa margem de liberdade de ação” (CARVALHO, 1996, p. 38). Isso per-mitiu a concordância acerca de pontos bá-sicos, tais como a manutenção da unidade do país, a condenação dos governos mili-tares, a defesa do sistema representativo e da monarquia e, sem dúvida, também a necessidade de preservar a escravidão.

Tais questões estavam no cerne da reflexão e da ação política de um funcio-nário de alto escalão do Império Português que, pela força das circunstâncias, acabou ficando à frente do processo de indepen-dência do Brasil, em 1822: José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). Podemos dizer que o pensamento político e social de Bonifácio é exemplar de um tipo de refle-xão, ou de um estilo de pensamento, que tem como pressuposto uma sociedade civil que carece de formas de auto-organização, dependendo, por sua vez, de um Estado forte. Nesta representação, a sociedade, o povo, a nação, devem ser orquestrados, tu-telados por este ator político fundamental que é o Estado.

Vejamos um pouco o contexto em que este autor formulou questões poste-riormente retomadas pelos intelectuais. Entre 1808 e 1821, o Rio de Janeiro fora a capital de Portugal e das possessões por-tuguesas na África e na Ásia. Este aconte-cimento, sem precedentes na história co-lonial, marcaria profundamente a evolução nacional brasileira. A transferência da ad-ministração e da Coroa portuguesas lan-çava as bases da Independência do Brasil, numa relação direta com o enfraquecimen-to do sistema colonial metropolitano. Além disto, assolada pelas guerras napoleônicas, a Dinastia de Bragança só pôde ser salva mediante a intervenção da Inglaterra e isto traria graves desdobramentos políticos, o principal deles incidindo sobre a manuten-ção do tráfico negreiro. Um fato até então incomum no mundo colonial seria respon-

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sável por meio século de atritos diplomá-ticos entre Inglaterra, Portugal e Brasil: a internacionalização da questão do tráfico negreiro. As pressões britânicas pela sua abolição deslocariam aquele comércio do âmbito exclusivo da política colonial por-tuguesa para um domínio internacional, sujeito à covigilância britânica. Pressões essas que levaram Portugal a coibir o co-mércio de escravos, mas que tiveram uma consequência imprevista: sua clandestini-dade (ALENCASTRO, 1986, p. 430). Ao lon-go da primeira metade do século 19, e a despeito da máquina de guerra naval bri-tânica, a “síndrome da falta de africanos” do Brasil levou o comércio negreiro “ilíci-to” a proporções jamais vistas até então. Desde o século 16, o Brasil era, de longe, o agregado político e econômico que re-cebeu o maior número de escravos africa-nos. Todavia, entre 1810 e 1850, o Brasil exerceu um quase monopólio na compra de escravos: do século 16 até 1850, perto de 10 milhões de africanos foram transpor-tados para o outro lado do Atlântico, sendo que, desta cifra, perto de 38% vieram para o Brasil, 17% para a América espanhola, 17% para as Antilhas francesas, 17% para as Antilhas britânicas, 6% para as Antilhas holandesas e 6% para os Estados Unidos. No período entre 1810-1850, dos cerca de 1.900.000 africanos clandestinamente desembarcados na América, o Brasil cap-tou 80% daquele conjunto (ALENCASTRO, 1986, passim).

A importância do tráfico negreiro e da escravidão, mais do que simples heran-ça da era colonial, repercutiria diretamente sobre a ordem política da nova nação. O projeto civilizador de José Bonifácio pre-tendia viabilizar este novo país e tinha que contar com a adesão dos proprietários de terra e de escravos e com os traficantes de escravos, isto é, a base econômica essen-cial de uma economia agrícola montada sobre o trabalho escravo africano. E isso num momento em que esta mesma base

de sustentação política e econômica come-çava a ser posta em causa pelo contexto internacional, fator que trazia problemas para a legitimidade da soberania nacional.

Assim, de um lado, como obter o consenso dos poderosos proprietários ru-rais e dos traficantes de escravos? De ou-tro lado, como viabilizar uma ordem polí-tica com a presença de escravos africanos de diversas procedências, escravos estes que, ao compor a essência das relações de trabalho e, portanto, fator constitutivo dos interesses da classe senhorial, isto é, inte-resses privatistas por excelência, punham em causa a própria sobrevivência do Esta-do moderno e da ordem liberal, calcada na igualdade política? Em suma, como fazer com que estes interesses, que se excluíam mutuamente e, mais do que isto, expressa-vam a mais gritante heterogeneidade e de-sigualdade, constituíssem uma só e mes-ma nacionalidade?

Assim é que a reflexão de José Bo-nifácio situa-se num momento ímpar da história do Brasil. Nos dois anos em que esteve à frente dos principais aconteci-mentos políticos – entre 1821 e 1823, como ministro de Estado –, Bonifácio teve um “papel fundamental na articulação da Independência, da construção de um Esta-do nacional e da conquista de um império brasileiro” (DOLHNIkOFF, 1998, p. 19).

O conjunto fragmentado de seus escritos, reunidos sob o título de Projetos para o Brasil, expressa muito bem suas oscilações e ambiguidades, mas também suas convincentes certezas. Em sua Repre-sentação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura, escrito em 1823, Bonifácio atenta para a essência do que seria uma “nação homogênea”. Sua crítica dirige-se diretamente contra o tráfico negreiro para, a partir de sua extinção, ir constituindo uma ordem social e política que subvertes-se, gradualmente, o legado da escravidão. Afirma Bonifácio:

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É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bár-baro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravi-dão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nun-ca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando tanta hete-rogeneidade física e civil; cuidemos pois desde já em combinar sabia-mente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política (ANDRADA E SILVA, 1998, p. 48-49, grifos no original).

O sistema colonial teria fomentado um povo “mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade e sem irmandade” porque interessava à sua própria manutenção. To-davia, uma vez nação independente, como “poderia haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente ha-bitado por uma multidão imensa de escra-vos brutais e inimigos?” (ANDRADA E SILVA, 1998, p. 48). Com efeito, Bonifácio com-preende que sem a abolição do tráfico ne-greiro e a gradual emancipação da escra-vatura não apenas a “liberal Constituição”, mas também a própria estrutura do Estado moderno, ficariam comprometidas.

No entanto, o que nos parece ilus-trar melhor sua argumentação, embora não se esgote nela, está na sua perspectiva sobre a formação nacional. O incentivo à miscigenação, a proteção à família – num sentido amplo, fosse ela composta por es-cravos, por negros livres, brancos ou índios –, bem como o incentivo à imigração eu-ropeia, delineiam uma política populacio-nal que deveria estabelecer os parâmetros da nacionalidade. Nesse sentido o Estado, para Bonifácio, deveria ser uma espécie de “escultor prudente, que de pedaços de pedra faz estátuas. Misturemos os negros

com as índias e teremos gente ativa e ro-busta – tirará do pai a energia, e da mãe a doçura e bom temperamento” (ANDRADA E SILVA, 1998, p. 155-156).

Esta preocupação também está presente nos seus Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Impé-rio do Brasil, apresentado à Assembleia Constituinte em 1823. Dentre as medidas do Tribunal Conservador dos Índios, que também postula, está a de introduzir nas aldeias já civilizadas “brancos e mulatos morigerados para misturar as raças, ligar os interesses recíprocos dos índios com a nossa gente, e fazer deles todos um só cor-po da nação, mais forte, instruída e empre-endedora, e destas aldeias assim amalga-madas [ir] convertendo algumas em vilas [...]” (ANDRADA E SILVA, 1998, p. 119)

Bonifácio considerava que o Estado deveria ser o gerenciador dos conflitos e das relações de trabalho, anulando o ar-bítrio senhorial. Defende uma espécie de “despotismo esclarecido” que daria ao go-verno a legitimidade da “tutela” de uma so-ciedade que, a seu ver, era profundamente heterogênea, disforme e incapaz de guiar--se por si mesma.

Algumas reflexões de José Bonifá-cio seriam recuperadas no final do século 19 por um político e intelectual que, com-prometido em recriar o país à altura do que se considerava a “civilização”, buscou compreender as condições e possibilida-des de progresso, de industrialização, ur-banização, modernização; em suma, bus-cou explorar as diversas possibilidades de “civilizar” o país. Assim, Joaquim Nabuco (1849-1910) fez da análise sobre os efeitos sociais e políticos da escravidão seu prin-cipal tema. Em seu livro O abolicionismo, escrito em 1883, Nabuco percebia a neces-sidade de um projeto civilizatório nos tró-picos. A escravidão, segundo ele, operava uma cisão social, política e jurídica entre a “boa sociedade”, assimilada ao modelo eu-ropeu e projetada como o que deveria ser

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a nação, e sua base social real, identificada com a natureza e a “barbárie”. Mais impor-tante, Nabuco percebeu que a escravidão produzia efeitos perversos não apenas so-bre o escravo, mas principalmente sobre as camadas livres da sociedade, resultando com isso a ausência efetiva de cidadania. Nabuco entendia a escravidão como uma instituição totalizante e tal interpretação era, em si, uma intuição quase sociológica. Mais do que isso, tratava-se de uma pers-pectiva radical, reveladora de um pensa-mento liberal democrático: ao compreen-der a escravidão como um fato global e de-mandando, portanto, uma reforma global, Nabuco teria introduzido, segundo Marco Aurélio Nogueira, uma novidade política: “considerando com inteligência a distinção entre escravidão visível e ‘escravidão que não se vê’, [Nabuco] realizou uma devasta-dora crítica da instituição e de seu regime social, dando ao abolicionismo uma con-sistência doutrinária até então inexistente” (NOGUEIRA, 1984, p. 111).

Segundo Nabuco, a escravidão em si constituía o principal obstáculo à cons-trução da nação. Citando José Bonifácio, afirmava que com a escravidão não haveria “patriotismo nacional, mas somente pa-triotismo de casta, ou de raça”. Assim, o “sentimento que serv[iria] para unir todos os membros da sociedade” subverter-se-ia com a presença da escravidão, passando a ser “explorado para o fim de dividi-los”:

Para que o patriotismo se purifique, é preciso que a imensa massa da população livre, mantida em estado de subserviência pela escravidão, atravesse, pelo sentimento da inde-pendência pessoal, pela convicção da sua força e do seu poder, o longo estágio que separa o simples nacio-nal – que hipoteca tacitamente, por amor, a sua vida à defesa voluntária da integridade material e da sobe-rania externa da pátria – do cidadão que quer ser uma unidade ativa e pensante na comunhão a que per-tence (NABUCO, 1999, p. 188)

Entretanto, a perspectiva de Nabu-co, a despeito de sua plataforma política liberal-democrática, de sua esperança na difusão da cidadania e do diagnóstico dos entraves para a modernidade, recai no mesmo dilema de José Bonifácio: diante de uma sociedade civil dilacerada por in-teresses conflitantes, amorfa e fragilizada, não restaria senão ao Estado a incumbên-cia de destruir a escravidão, instaurar a ci-dadania e formar a nação. Na verdade, o poder da escravidão era de tal magnitude que o “Governo” não seria mais do que o resultado da “abdicação geral da função cívica por parte do nosso povo”. Contudo, mesmo sendo o resultado desta apatia po-lítica, o “Governo” seria a única força capaz de destruir a escravidão,

da qual, aliás, dimana, ainda que, talvez, venham a morrer juntas. Essa força, neste momento, está avassalada pelo poder territorial, mas todos veem que um dia en-trará em luta com ele, e que a luta será desesperada, quer este peça a abolição imediata, quer peça medi-das indiretas, quer queira suprimir a escravidão de um jato ou, somente, fechar o mercado de escravos (NA-BUCO, 1999, p. 211).

A representação do Brasil-nação em José Bonifácio e Joaquim Nabuco, para ficarmos apenas com estes dois autores emblemáticos do século 19, figurava numa perspectiva modernizadora, ainda que em compasso de espera: diante de uma socie-dade em processo de formação, de uma nacionalidade heterogênea e amorfa, sem identidade, restava a promessa de um fu-turo moderno a ser conduzido pelo Estado, Estado este “tutelar” para Bonifácio, “civi-lizador” para Nabuco. Apesar do diagnós-tico negativo sobre a sociedade, não lhes ocorria deixar de apostar numa perspectiva positiva de superação do “atraso”.

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3. Motivos ibéricos e a modernidade no Brasil

Contudo, outro conjunto de repre-sentações sobre o povo e a nação sinali-zava para algo diverso ao desta perspec-tiva progressista. Embora também possua raízes nos momentos-chave da construção do Estado brasileiro – isto é, durante a In-dependência e ao longo dos anos 1850, quando o Estado consolidou-se, viabiliza-do mediante um processo de centralização política e administrativa –, tal representa-ção foi melhor exposta ao longo das pri-meiras décadas do século 20.

Em geral, atribui-se a certas repre-sentações que avaliam positivamente a he-rança portuguesa e o legado colonial, ou ainda que os consideram como ilustração inequívoca de uma cultura “genuinamente” luso-brasileira, o nome de “iberismo”. Sin-teticamente, podemos entender o iberis-mo como sendo a valorização ou a recupe-ração das “raízes ibéricas” da nacionalida-de brasileira, caminho trilhado por autores que desconfiavam que a modernização das relações sociais, que o liberalismo político ou que o princípio da representação políti-ca e mesmo da democracia pudessem ser adotados no Brasil, uma vez que estas ins-tituições não corresponderiam à realidade das nossas tradições e costumes políticos. O iberismo pressupõe a ideia de que Por-tugal e Espanha não teriam sido forma-ções culturais e políticas tipicamente “eu-ropeias” ou “ocidentais”, mas regiões nas quais valores centrais do mundo moderno, como o individualismo, o contratualismo, o mercado, a competição, o conflito de in-teresses e a democracia burguesa não te-riam sido importantes no estabelecimento de suas tradições políticas. Ao invés destes valores, estabelece outros ideais para a so-ciedade, tais como a cooperação, a integra-ção, o predomínio do interesse coletivo e comunitário sobre o individual, o persona-lismo, o patriarcalismo, etc. Pode-se dizer

que o iberismo é uma tradição alternativa ao “Ocidente” anglo-saxão, puritano, calca-do numa ética do trabalho de matriz pro-testante (CARVALHO, 1991, p. 89). Trata-se, portanto, de uma tese antiliberal.

Um dos autores mais influentes des-ta linha de reflexão foi Paulino José Soares de Souza, o visconde de Uruguai (1807-1866). Escrevendo e atuando politica-mente em meados do século 19, Uruguai foi uma das principais figuras do “núcleo duro” do Partido Conservador durante o Império, Partido este que tinha também Rodrigues Torres e Eusébio de Queiróz como os membros do que se entende por “Trindade Saquarema”: este grupo se notabilizou como um árduo defensor do processo de centralização do Estado e da manutenção da unidade territorial, contra as ideias federalistas e as teses liberais re-presentadas pelas elites regionais (FERREI-RA, 1999). Para estadistas como Uruguai, os “usos, costumes, hábitos, tradições, ca-ráter nacional e educação cívica” de cada povo eram particularidades que deveriam ser levadas em conta para a ação política. Isto é, os povos tinham diferentes tradi-ções políticas, e “implantar instituições de uns em outros podia ser desastroso ou, no mínimo, inócuo” (CARVALHO, 1991, p. 87).

Um autor muito representativo desta tradição “saquarema” já nos anos 1920 foi Oliveira Viana (1883-1951). Pode-se dizer que sua obra revela orientações comuns a vários intelectuais do período compreen-dido entre a Abolição da Escravatura, em 1888, e os primeiros anos da República Velha. Em várias interpretações do Brasil, embora com resultados analíticos diversos, os intelectuais se debruçaram sobre a co-lonização portuguesa procurando os nexos fundamentais que constituíram a formação do País. A pergunta fundamental era esta: somos ou não uma efetiva nação? A origi-nalidade de Oliveira Viana foi a de, ante ao desafio de desvendamento colocado aci-ma, ter elaborado uma análise da realidade

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que transcendeu os limites do discurso de seu tempo, predominantemente de caráter jurídico, debruçando-se antes num amplo leque de disciplinas que ia da Antropolo-gia à História, da Sociologia ao Direito e à Etnologia. Neste sentido, poderíamos si-tuar a mesma pergunta sob dois registros diferentes: o que constitui uma nação? e, concomitantemente a ela, quais as tarefas necessárias para a sua constituição?, de tal forma que a originalidade do autor esta-ria em equacioná-las e elaborar uma visão prospectiva e de conjunto do Brasil.

Ao lado de uma atitude fatalista e racialista, ponto comum do debate inte-lectual daquele contexto, Viana superou alguns dos dilemas de seu tempo. De uma forma geral, apontou soluções mais “otimistas”, dadas particularmente pela “eugenia” e pelo papel destinado às eli-tes. Vem dele uma atitude nova perante a heterogeneidade da população brasileira. Além disto, prescreveu uma nova ordem social que pudesse superar o que enten-dia ser o divórcio entre o “Brasil legal” e o “Brasil real”, isto é, entre as instituições e a realidade, entre a letra da Lei e a frágil e amorfa sociedade. Para isso, Viana criti-cou os pressupostos do evolucionismo de cunho darwinista, que concebia uma linha evolutiva única para a humanidade, com povos “superiores” e “inferiores”.

Na verdade, o autor descarta esta vertente universalista ao postular uma plu-ralidade de linhas evolutivas, cujas raças se desenvolveriam a partir de um conjun-to de causas, como o espaço geográfico, a história, as instituições, a cultura, além do aspecto propriamente biológico. Deste par-ticularismo, Vianna concluía ser impossível uma perfeita integração interétnica: “cada agregado humano é hoje, para a crítica contemporânea, um caso particular, impos-sível de assimilação integral com qualquer outro agregado humano”, e a atuação de todo um complexo causal acabaria por pro-mover “entre eles diferenças irredutíveis,

mesmo entre os que vivem mergulhados na mesma atmosfera de civilização” (VIANA, 1933, p. 19-24). É que das diferenças de estrutura social, histórica, etc. surgiriam di-ferenças “sutis de mentalidade” que o autor denomina de “complexos”. Uma decorrên-cia fundamental desta afirmação é a crítica à “transplantação” das ideias e das institui-ções. A defesa que faz do “realismo” e da objetividade frente às soluções “idealistas” e “liberais” é desta ordem. Da ação podero-sa de uma complexidade de agentes resul-taria a singularidade de um povo e, portan-to, a não intercambialidade de seus valores e modos de vida; consequentemente, de suas instituições políticas:

O grande movimento democrático da Revolução Francesa; as agitações parlamentares inglesas; o espírito liberal das instituições que regem a República Americana, tudo isto exerceu e exerce sobre os nossos dirigentes políticos, estadistas, le-gisladores, publicistas, uma fascina-ção magnética, que lhes daltoniza completamente a visão nacional dos nossos problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do Brasil real e criam para uso de-les um Brasil artificial, e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europe – sorte do cosmo-rama extravagante, sobre cujo fun-do de florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e re-passam cenas e figuras tipicamente europeias (VIANA, 1987a, p. 19).

Por fim, a defesa da eugenia foi ou-tro aspecto importante nas teses de Olivei-ra Viana: através dela, fez considerações sobre a potencialidade do branqueamen-to da população (via imigração europeia) e estabeleceu uma interpretação sobre a formação da sociedade brasileira que pas-sava pela valorização positiva do papel do latifúndio. Este, por exemplo, era assim concebido por Vianna, em sua obra mais conhecida, Evolução do Povo Brasileiro, escrita em 1923:

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O latifúndio cafeeiro, como o lati-fúndio açucareiro, tem uma orga-nização complexa e exige capitais enormes: pede também uma admi-nistração hábil, prudente e enérgica. É, como o engenho de açúcar, um rigoroso selecionador de capacida-des. Só prosperam, com efeito, na cultura dos cafezais as naturezas solidamente dotadas de aptidões organizadoras, afeitas à direção de grandes massas operárias e à con-cepção de grandes planos de con-junto. O tipo social dela emergente é, por isso, um tipo social superior, tanto no ponto de vista das suas aptidões para a vida privada como no ponto de vista das suas aptidões para a vida pública. Daí formar-se, nas regiões onde essa cultura se faz a base fundamental da ativida-de econômica, uma elite de homens magnificamente providos de talen-tos políticos e capacidades adminis-trativas (VIANA, 1933, p. 104).

Com base nestas considerações, a identidade nacional brasileira passaria pela própria história do latifúndio, como orga-nizador e selecionador dos indivíduos não brancos, de acordo com suas “potenciali-dades”. O latifúndio seria, assim, o “grande medalhador” do povo brasileiro, cuja es-sência era e permaneceria rural aos olhos de Viana. Além disto, em função mesmo do papel do latifúndio, o autor elabora uma história do Brasil na qual não existem rupturas, conflitos, revoluções, e que cul-minaria na fixação de uma particular “psi-cologia política” no povo. Ou seja, Oliveira Viana defende explicitamente a adoção de formas autoritárias de poder político, com base num suposto diagnóstico de fragilida-de da sociedade, das instituições liberais, da ausência de espírito de associação. Se-não, vejamos:

O nosso homem do povo procura um chefe, e sofre sempre uma como que vaga angústia secreta todas as vezes que, por falta de um condutor ou de um guia, tem necessidade de agir por si, autonomamente. [...]. É

essa certeza íntima de que alguém pensa por ele e, no momento opor-tuno, lhe dará o santo e a senha de ação, é essa certeza íntima que o acalma, o assegura, o tranquiliza, o refrigera. Do nosso campônio, do nosso homem do povo, o fundo da sua mentalidade é esta. Esta é a base de sua consciência social. Este o temperamento do seu caráter. Toda a sua psicologia política está nisso (VIANA, 1987b, p. 67).

Há um aspecto importante a ser ana-lisado aqui. As chamadas ideias “raciológi-cas” ou racistas tiveram sua origem por vol-ta de 1840, mas estavam sendo severamen-te questionadas já no final do século 19 na Europa, de onde também haviam surgido. Elas haviam exercido uma forte influência intelectual e política nos discursos naciona-listas de então, discursos estes que fizeram dos “estudos” raciais uma chave importante de legitimação para a valorização de uns e inferiorização de outros povos. Mas, o que dizer a respeito de autores brasileiros que escreveram ainda em 1920, como no caso de Oliveira Viana, com base em pressupos-tos questionados cientificamente?

Segundo Renato Ortiz, tais teorias raciológicas se tornavam precisamente he-gemônicas no Brasil no mesmo momento em que entravam em declínio na Europa, onde a explicação sociológica e cultural ganhava força frente ao discurso biológico das “raças humanas” (ORTIZ, 2006, p. 29). É que parte da elite intelectual brasileira preocupava-se, na passagem do século 19 para o 20, em efetivamente “construir uma identidade nacional” e, para isso, tinha que se reportar às “condições reais de existên-cia do país”, isto é, a Abolição, o aprovei-tamento do ex-escravo como proletário, a imigração estrangeira, a consolidação da República, questões particulares daquele contexto no Brasil. Se a nação vivia, por exemplo, a questão da imigração estran-geira, até como forma de resolver a transi-ção para a ordem capitalista,

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a questão da raça [era] a linguagem através da qual se apreend[ia] a re-alidade social, ela reflet[ia] inclusi-ve o impasse da construção de um Estado nacional que ainda não se consolid[ara]. Nesse sentido, as teo-rias “importadas” [tinham] uma fun-ção legitimadora e cognoscível da realidade (ORTIZ, 2006, p. 30).

Este cenário começa a mudar ain-da na década de 1920, com a ascensão do modernismo enquanto movimento intelec-tual, e se cristaliza ao longo da década de 1930. Com a Revolução que levou Getúlio Vargas ao poder, o Brasil viveu uma espé-cie de precipitação das potencialidades das crises e controvérsias herdadas do passa-do, delineando mais claramente distintas correntes de pensamento.

A marcha do processo político e das lutas sociais, de par com a crise da cafeicultura, os surtos de industria-lização, a urbanização, a emergên-cia de um proletariado incipiente, os movimentos sociais de base agrária, tais como o cangaço e o messianis-mo, tudo isso repunha, desenvolvia e criava desafios urgentes para cada setor e o conjunto da sociedade na-cional (IANNI, 2004, p. 24).

Assim, ao longo daquela década, al-gumas das interpretações clássicas sobre a sociedade brasileira foram desenvolvidas, tendo como fio condutor um processo de sistematização do conhecimento socioló-gico acerca da identidade nacional. Para-lelamente, aquela década foi decisiva para a reorientação da historiografia e das ciên-cias sociais. Ao lado de grandes transfor-mações políticas, de aceleração do proces-so de urbanização, de complexificação das relações sociais, um Estado centralizado procurava então orientar o próprio desen-volvimento social e econômico. Neste qua-dro, as teorias raciológicas tornavam-se obsoletas, precisavam ser superadas em razão de novas demandas sociais e polí-ticas.

Precisamente naquele contexto his-tórico, um autor se destacava no conjunto dos chamados “intérpretes do Brasil” por recuperar e revalorizar a representação da nação nos termos do iberismo: Gilber-to Freyre (1900-1987). Com a publicação de seu Casa-grande & senzala, em 1933, Freyre reeditou a temática racial e a iden-tidade nacional, constituindo-as em chave para a compreensão do Brasil. Contudo, não as faz a partir do critério racista, ou raciológico, como na abordagem de Olivei-ra Viana. Tampouco elegeu o Estado como o agente central do processo de formação social. Ao contrário, Gilberto Freyre opera uma dupla inversão de termos: ao invés da raça, pensa a cultura; ao invés do Estado, pensará a sociedade.

No que diz respeito à questão “ra-cial”, a utilização do conceito de cultura permite a superação de uma série de di-ficuldades anteriormente encontradas a respeito da “herança atávica” negativa da mestiçagem, e Freyre a transforma em valor extremamente positivo. Na verdade, muito mais do que ter superado alguns te-mas anteriores baseado em novos recur-sos metodológicos, Freyre foi o primeiro a lançar mão de uma visão positiva sobre o país, tal qual ele era de fato. De um lado, rejeita as considerações de ordem racial, particularmente a sociobiologia, e intro-duz novos instrumentos teóricos, como as análises culturalistas. Não é sem razão que grande parte de sua popularidade tenha advindo da desconstrução, ao menos em tese, do discurso racista da inferioridade atávica por conta da hereditariedade bioló-gica de negros e índios. Ao menos em tese porque, na verdade, há um remanejamen-to da questão racial: Freyre adota, segun-do Ricardo Benzaquem Araújo, uma noção “neolamarckiana” de raça, segundo a qual admite-se a hereditariedade de caracteres adquiridos, isto é, a possibilidade de “raças artificiais ou históricas” (ARAÚJO, 1994, p. 39). Por exemplo, Freyre alude à experiên-

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cia colonial portuguesa no Brasil atribuin-do ao brasileiro o caráter de ser “quase outra raça”, com apenas um século de dis-tância da península ibérica (FREYRE, 2005, p. 36). Além disto, supõe uma hierarquia não mais racial, mas cultural, vale dizer, tendo como parâmetro a maior ou menor complexidade cultural ou grau de cultura. Assim sendo, empreendeu um estudo das etnias africanas presentes no Brasil, tendo em vista a caracterização deste grau cul-tural. Ser escravo “ladino” ou “boçal” (isto é, já aclimatado ou recém-chegado) seria precisamente uma referência à origem e ao grau desta cultura. Daí a refutação do argumento racista que, todavia, repunha a desigualdade, embora aparentemente dis-farçada. Diz ele, revelando sua ambiguida-de em relação a esta temática:

Fique bem claro, para regalo dos arianistas, o fato de ter sido o Bra-sil menos atingido que os Estados Unidos pelo suposto mal da “raça inferior”. Isto devido ao maior nú-mero de fula-fulos e semi-hamitas – falsos negros e, portanto, para todo bom arianista, de estoque superior ao dos pretos autênticos – entre os emigrantes da África para as plan-tações e minas do Brasil (FREYRE, 2005, p. 388).

Evidentemente, permanece a distin-ção entre maior e menor capacidade inte-lectual, a menção a vocações profissionais, a valores e orientações religiosas como marcas e elementos que não se alteram, mas que, postos em contato com outros povos e etnias, resultam numa composição híbrida. Isto porque outra particularidade da análise gilbertiana acerca da miscigena-ção é precisamente a ideia de que não ha-veria uma fusão de valores e aptidões entre etnias distintas: a miscigenação seria antes de tudo um processo de hibridização, sob a qual permaneceriam as características e propriedades de cada agrupamento huma-no (ARAÚJO, 1994, p. 44).

Outra questão importante refere-se à reinterpretação da eugenia. Percebe-se que a preocupação com a mobilidade e o caráter eugênico da participação do negro na sociedade brasileira é constantemente colocado. Concorreria para isso o caráter “liberal” do patriarcalismo, liberalidade esta entendida no sentido de certa frouxi-dão moral, promovendo o livre

intercurso sexual de brancos dos melhores estoques – inclusive ecle-siásticos, sem dúvida nenhuma, dos elementos mais seletos e eugênicos na formação brasileira – com escra-vas negras e mulatas [...]. Resultou daí grossa multidão de filhos ilegí-timos – mulatinhos criados muitas vezes com a prole legítima, dentro do liberal patriarcalismo das casas--grandes; outros à sombra dos en-genhos de frades; ou então nas “ro-das” e orfanatos (FREYRE, 2005, p. 531).

A miscigenação teria promovido ainda a construção de um elemento social e “eugenicamente superior”, que seria o mestiço. Percebe-se, todavia, que a ques-tão da inter-relação entre etnias e culturas acompanha a caracterização que o autor faz da família patriarcal. Sua importância concorreria para a constituição no país de uma “democracia racial” e questões como a eugenia podem ser lidas a partir da aná-lise do papel da “família patriarcal”, preci-samente, do sistema patriarcal e do “com-plexo da casa-grande”. A importância deste sistema decorreria de sua capacidade sin-gular em, face à escravidão, ter mantido a harmonia e o equilíbrio sociais.

Para Gilberto Freyre, a escravidão no Brasil, longe de fortalecer a desigualda-de e estabelecer um fosso intransponível entre dominantes e dominados, teria sido desenvolvida de maneira singular, diferen-ciando-se, por exemplo, daquela praticada no sul dos Estados Unidos, aliás, compa-ração bastante recorrente. Freyre chama a atenção para a “leniência”, ou brandura,

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do regime escravocrata por conta da ação eficaz da “família senhorial” em contempo-rizar dominantes e dominados, brancos e não brancos, reduzindo as distâncias entre a “casa-grande” e a “senzala”.

Em suma, para Freyre, a história da formação do povo brasileiro confunde-se com a história da família patriarcal. Res-ponsável pelo clima edulcorado do regime escravo, teria sido a base essencial para a miscigenação em larga escala, criando “zo-nas de confraternização” entre vencedores e vencidos, e promoveu a eugenia dos ne-gros “ladinos” ou islâmicos, bem como a das mulheres, possibilitando sua ascensão social. A menção ao equilíbrio pode ser lida aqui como a evidência de uma cultura polí-tica da “conciliação”: ela seria expressão da competência da família senhorial em não permitir que momentos de crise desem-bocassem em rupturas profundas. Aliás, o próprio “método” de análise de Freyre con-diz com esta interpretação: foca sempre o espaço da casa, a esfera íntima, as cartas e diários deixados pelas grandes famílias senhoriais. Assim, as transformações que culminaram na República são interpreta-das por Freyre tendo como referência não a mudança vinda das ruas, dos movimentos sociais, das novas relações sociais advindas com a transição para a modernidade, mas tão somente os indícios da “decadência” da família patriarcal frente aos processos de urbanização. Embora profundas, tais trans-formações não chegariam a romper com esta cultura da conciliação. Pelo contrário, para Freyre a “casa-grande” não desapare-ceu, mas continuou influenciando, como nenhuma outra força, a formação social do brasileiro, agora no espaço urbano.

Por fim, há um último aspecto em Gilberto Freyre que revela seu compromis-so com certos motivos ibéricos, qual seja, a defesa da “rusticidade” como um traço, “aparentemente ingênuo”, dos portugue-ses vindos ao Brasil. Através da rusticida-de, Freyre revela sua resistência à homo-

geneização burguesa, admitindo contudo a “aceitação de inúmeras formas culturais dificilmente assimiláveis dentro do gabari-to estreito da civilização” (BASTOS, 1998, p. 51), conforme definida pelas sociedades industriais. Assim, para Freyre o analfabe-tismo não seria um problema, na medi-da em que culturas “ágrafas”, isto é, sem escrita, seriam transmitidas oralmente e mesmo beneficiadas pelo rádio e pela TV. A rigor, o processo de alfabetização em mas-sa era visto por Freyre como potencial des-truidor da “riqueza” imaginativa de formas culturais pré-modernas.

Por um lado, como resultado da lei-tura leniente da escravidão e da ação sábia do patriarcado em contemporizar domi-nantes e dominados, pode-se perceber o quanto para Freyre a democracia política seria desnecessária, substituível pela “de-mocracia racial”, resultado, esta sim, da sa-bedoria com que o patriarcalismo exerceu a conciliação entre dominantes e domina-dos; por outro lado, resultante da defesa da “rusticidade”, encontramos uma leitura desconfiada da modernização, entendida por Freyre como destruidora de formas culturais mais ricas em nome da homoge-neidade e igualdade entre os indivíduos. Em suma, trata-se da formulação de que haveria certas “vantagens do atraso”, tais como a conciliação e a acomodação fren-te a processos que poderiam desencadear rupturas e conflitos agudos na sociedade.

Todavia, vale a pena observar que tanto a tese de que o Estado seria o forma-dor da sociedade, presente, por exemplo, em Oliveira Viana, como a de que a socie-dade civil seria patriarcal, como a exposta em Gilberto Freyre, complementam-se e servem-se reciprocamente. Como afirma Octávio Ianni, “se a sociedade é inocente, logo se depreende que o Estado se defron-ta com uma missão excepcional: construir, orientar, administrar ou tutelar a socieda-de, isto é, o povo, os setores sociais subal-ternos. Justifica-se que o Estado seja pa-

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triarcal, oligárquico, benfeitor, punitivo, de-liberante, onisciente, ubíquo” (IANNI, 2004, p. 46). Em suma, são ambas manifesta-ções distintas de uma mesma perspectiva iberista quanto à formação do Brasil-nação e que, como tal, impõem resistências às mudanças e rupturas em direção à ideia de um Brasil moderno.

4. Modernismo e identidade nacional

Como pudemos notar, desde as úl-timas décadas do século 19, quando im-portantes teorias científicas foram incor-poradas pelos intelectuais, estes se em-penharam em compreender as condições de modernização do país. Tornava-se cada vez mais evidente a preocupação com as implicações sociais, econômicas, políticas e culturais da extinção do regime de tra-balho escravo, do término da monarquia, da imigração europeia, da implantação da República.

As diferentes ideias de Brasil moder-no se tornam ainda mais explícitas confor-me determinadas regiões do país se indus-trializavam, se urbanizavam e se tornavam cada vez mais complexas em sua estrutura social. Na passagem do século 19, assiste--se ao avanço do capital nas florestas da Amazônia, com a extração da borracha, a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, a urbanização de Manaus e Belém; a econo-mia cafeeira expande-se para além do Vale do Paraíba e do oeste de São Paulo; o Rio de Janeiro vivencia sua primeira grande reforma urbana, expulsando da urbe a po-pulação pobre para dar lugar ao panorama de uma “higiênica” e “saneada” capital do país; a cidade de São Paulo crescia a taxas galopantes, dobrando de tamanho a cada ano (20.000 habitantes em 1872, 70.000 em 1890, 300.000 em 1919, 1 milhão em 1931), tornando-se o destino da maioria dos estrangeiros que ingressavam no país;

também em São Paulo assistem-se às pri-meiras greves gerais de 1917 a 1919 e à emergência da “questão social”. Diversas regiões do país engrenavam na esteira da Segunda Revolução Industrial, ou revo-lução científico-tecnológica, iniciada em meados do século anterior na Europa, cuja base eram os avanços tecnológicos que tornaram possível a utilização de novas fontes de energia, sobretudo petróleo, gás e eletricidade.

Vivenciava-se, ao menos naquelas regiões do país melhor sintonizadas com o capitalismo internacional, um novo ritmo: feérico, galopante, cosmopolita. Mas tam-bém explosiva, revelando novos mecanis-mos de exploração da força de trabalho e reiterando padrões históricos de desigual-dades. Uma nova forma de compreensão igualmente se fazia presente, uma atitude melhor condizente com esse espírito do tempo. O centro da vida nacional também se deslocava com o avanço do capital: do nordeste, simbolicamente Recife, para o centro-sul, simbolicamente São Paulo.

Em certa medida, a realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo, em 1922, simboliza a emer-gência de outras inquietações e pro-postas, que passarão a predominar. Mas o deslocamento não é nem rá-pido nem drástico. Alguns escritores revelam dúvidas, ambiguidades, va-cilações, falta de clareza. Foi compli-cado esse processo de deslocamen-to do centro da vida nacional, desde o nordeste até o centro-sul, simbo-lizado por Recife e São Paulo (IANNI, 2004, p. 32).

O ano de 1922 é uma data carrega-da de dramaticidade e peso simbólico: ano do Centenário da Independência, da fun-dação do Partido Comunista e do Centro Dom Vital, de orientação católica, do epi-sódio do Forte de Copacabana, indicando a ascensão do movimento tenentista, da Semana de Arte Moderna. Episódios que demandavam aos intelectuais uma nova

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narrativa da nação. O movimento moder-nista surge neste contexto e, de certa for-ma, pode ser visto como a expressão de uma ruptura histórica.

É como se a sociedade como um todo, e em alguns de seus setores em especial, estivesse entrando em outro patamar, quando se abrem outros dilemas e horizontes. Está em curso o desafio de compreender, esclarecer ou explicar a formação da sociedade brasileira. Procuram-se as raízes do que teria sido o “Bra-sil Colonial”, quais as peculiaridades do “Brasil Monárquico” e quais as di-ficuldades e perspectivas do “Brasil Republicano”. Escritores, cientistas sociais e filósofos buscam as ori-gens e as transformações, de modo a esclarecer os momentos decisivos da formação sociocultural e político--econômica do Brasil. São várias e notáveis as narrativas que expres-sam e instituem o Modernismo na arte e no pensamento (IANNI, 2004, p. 181).

Estar sintonizado com este espírito do tempo é, na verdade, abraçar a moder-nidade. Esta pode ser lida como uma de-terminada experiência de tempo e espaço, de situações, vivências, etc., que têm unifi-cado a espécie humana desde o momento em que um conjunto de grandes transfor-mações permitiu aos homens e mulheres reinterpretarem o mundo, a natureza e a própria ideia de indivíduo e humanidade. Segundo o Dicionário do Pensamento So-cial do Século XX, a modernidade é um “conceito de contraste”: extrai seu significa-do tanto do que nega como do que afirma e seu dinamismo implica necessariamente conflito. Ao contrário das sociedades tra-dicionais, a sociedade moderna sente que o passado não tem lições para ela, seu impulso é constantemente em direção ao futuro, ao novo, às potencialidades trans-formadoras do homem, ainda que esse mesmo movimento ponha em risco todas as conquistas materiais, científicas e cul-

turais criadas em virtude da modernidade (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996, p. 473).

Este aspecto contraditório já se ma-nifestava nos primeiros textos dos jovens escritores modernistas: compreender a exi-gência de modernização com uma caracte-rização mais precisa da própria identidade nacional, ou, em suma, conciliar a moder-nidade com a tradição, o universal com o particular. Tratava-se de acertar as contas com o passado, no caso, representado pe-las manifestações artísticas classicistas, como o parnasianismo e o romantismo, assumindo muito do que as vanguardas estéticas europeias elaboravam (futurismo, cubismo, impressionismo, etc.). Vejamos melhor como se deu esta configuração.

De um lado, a exigência da incor-poração à ordem moderna requisitava o acesso à racionalidade. Nesse sentido, os primeiros escritos modernistas faziam uma crítica ao Romantismo, interpretando-o como o estágio pré-moderno da civilização e como sentimento irracional.

O Romantismo brasileiro pode ser lido como o início de uma literatura na-cional, cujo traço mais marcante foi o “in-dianismo”. Por exemplo, José de Alencar, alicerçado no ideário romântico europeu, expunha em Iracema, de 1865, uma re-presentação heroicizada do índio, sacrali-zando uma historiografia que, ao idealizar os tipos formadores da nação brasileira, o alçava à condição de símbolo de origem do nosso povo. Outra característica do romantismo era a valorização do amor à terra, à paisagem ancestral, à comunida-de, em suma, a formulação de um “caráter nacional”. Nesse sentido, o romantismo de José de Alencar aproveitava essa valoriza-ção do passado mítico “para fundamentar o sentido de identidade do brasileiro, que, assim, poderia se orgulhar de sua ascen-dência (nobre e bela)” (BALBO, 2006, p. 2). Também Silvio Romero e Euclides da Cunha podem ser inscritos neste contexto romântico, ao elegerem, respectivamente,

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o “mestiço” e o “sertanejo” como símbolos da nação.

Já em seus primeiros desdobra-mentos, o movimento modernista propu-nha construir outra narrativa, não mais a da valorização deste passado mítico e pa-radisíaco, mas a captação do próprio fluxo desconexo, caótico e intenso da vida mo-derna. Estar sintonizado com a moderni-dade enquanto o “espírito de uma época” era captar a vida em movimento, “marcada de forma impressionista pelo ritmo da ci-dade onde se abrigam desordenadamente os mais variados elementos. Velocidade e variedade são atributos da vida urbana e moderna e como tal positivamente qua-lificada” (MORAES, 1988, p. 225). Assim, num primeiro momento, o modernismo se propunha a estabelecer uma literatura que pudesse inscrever o Brasil no concerto das nações, alçá-lo à altura das exigências da condição moderna, daí a crítica ao passa-dismo, ao romantismo, etc.

Contudo, não podemos entender o movimento modernista como uma corren-te de pensamento homogênea, sem con-flitos internos. Havia inúmeras polêmicas acerca do sentido da modernidade, assim como da missão que deveria ser empreen-dida pelos intelectuais, e aos poucos o mo-dernismo foi ganhando novas dimensões.

Na ótica de Mário de Andrade, um dos expoentes do movimento modernista, o que estava em jogo era a necessidade de “dessacralizar” ou desconstruir, sobretudo, o “olhar estrangeiro” com que se imagina-va o Brasil e os brasileiros. Por exemplo, ao escrever Macunaíma, em 1928, Mário de Andrade retratava o brasileiro como sen-do o “herói sem nenhum caráter”, criado a partir da integração entre os mitos indíge-nas e africanos e a presença do colonizador branco. Na verdade, a ausência de caráter do herói brasileiro indicaria um caráter ainda em formação, “que representaria a cultura brasileira e seu caráter inacabado. Em Macunaíma inexistem, portanto, tra-

ços inalteráveis de caráter, nele, como na mentalidade cultural brasileira, o escritor vê inúmeras possibilidades de mudança” (BALBO, 2006, p. 10). Enquanto o “índio”, o “mestiço” ou o “sertanejo” eram conce-bidos como personagens-modelo exclusi-vamente virtuosos, o anti-herói modernista possuía virtudes, mas, igualmente, defei-tos, pois, supostamente livre de ideolo-gias, não precisaria se restringir a nenhum modelo preconcebido. Esta destruição de modelos ritualizados foi uma das primeiras propostas do movimento modernista, ca-racterizando a “Antropofagia”:

termo utilizado pelos modernistas, cujo sentido metafórico consistiu em “devorar” e “digerir” os valores culturais herdados dos colonizado-res, ou seja, sob uma visão crítica, assimilar ou rejeitar estes valores e ainda destacar os valores nacionais anulados pela situação de depen-dência cultural do Brasil (BALBO, 2006, p. 10).

Entretanto houve, ao longo da dé-cada de 1920, uma reorientação do mo-vimento modernista. Recuperava-se aos poucos um ideário nacionalista e uma pro-posta de brasilidade, mantendo, contudo, o reconhecimento da dimensão moderna da ordem mundial. Era como se o ingresso do Brasil nesta ordem exigisse uma pro-dução cultural própria, tornando sua lite-ratura um caso particular e específico de modernidade. Era assim que se expressava Mário de Andrade em 1924, numa carta a Joaquim Inojosa:

[...] nós temos que criar uma arte brasileira. Esse é o único meio de sermos artisticamente civilizados. [...]Veja bem: abrasileiramento do bra-sileiro não quer dizer regionalismo nem mesmo nacionalismo = o Bra-sil pros brasileiros. Não é isso. Signi-fica só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia dirigem

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a civilização da Terra, tem que con-correr pra esse concerto com a sua parte pessoal, com o que o singula-riza e individualiza, parte essa única que poderá enriquecer e alargar a Civilização. [...] nós teremos nosso lugar na ci-vilização artística humana no dia em que concorrermos com o contingen-te brasileiro, derivado das nossas necessidades, da nossa formação por meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e clima, pro concerto dos homens ter-restres (MÁRIO DE ANDRADE, apud MORAES, 1988, p. 232-233).

Este impulso levou escritores, artis-tas, cientistas sociais e historiadores a ela-borarem uma série de “retratos do Brasil”, valorizando a dupla sensibilidade: quan-to ao sentido de modernidade e quanto à releitura da nossa história cultural. Era preciso, portanto, desvendar os próprios fundamentos da nacionalidade e atingir o país para além das aparências, da super-fície e da visão calcada na importação de ideias estrangeiras. Como prova da impos-sibilidade de concebermos o modernismo como uma corrente homogênea de pensa-mento, é possível perceber que, apesar de suas diferenças explícitas, autores como Oliveira Viana e Gilberto Freyre podem ser entendidos como beneficiários desta pro-dução de “retratos do Brasil”. Todavia, tal-vez o autor que na década de 1930 pode ser considerado um representante tardio do modernismo seja Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).

Em seu livro Raízes do Brasil, publi-cado em 1936, Sérgio Buarque procurou identificar quais traços “arcaicos” e tradi-cionais estavam sendo superados e quais perspectivas de mudança se avistavam no horizonte. Sérgio Buarque não reconstruiu historicamente a sociedade brasileira, mas examinou, em cada período histórico dis-tinto, formas de sociabilidade, padrões culturais, inquietações intelectuais, insti-tuições e mentalidades que tiveram con-

tinuidade e/ou foram ou estavam sendo superados. Buscou compreender a “cultu-ra personalista”, presente nas sociedades ibéricas (Portugal e Espanha), e como ela foi difundida por intermédio da coloniza-ção nas Américas; os efeitos da ausência de uma “ética do trabalho” e o predomínio de uma “ética da aventura” sobre as rela-ções sociais, originando com isso formas de associação extremamente frágeis entre os indivíduos; o peso que o “patriarcalis-mo” teve na cristalização de nossas heran-ças rurais; o valor dado pelos brasileiros às relações pessoais em detrimento dos va-lores tipicamente burgueses, tais como o princípio da impessoalidade, do individu-alismo, etc., os quais tinham pouco a ver com uma sociedade tipicamente liberal e burguesa. Sérgio Buarque preocupava-se com a implantação efetiva e segura de uma ordem social e política plenamente demo-crática. No Brasil, afirma o autor, a demo-cracia sempre foi um “mal-entendido”, visto predominarem traços personalistas, clientelistas, autoritários e, portanto, “ibé-ricos”, distantes de um padrão ideal anglo--saxão democrático e universalista. “Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida” (HO-LANDA, 2006, p. 21), dizia o autor.

Contudo, uma lenta revolução acon-tecia. Propiciada pela independência políti-ca, pelo contínuo processo de urbanização, pela substituição da aristocracia açucareira pela cultura empresarial da cafeicultura, pela abolição da escravatura, Sérgio Buar-que percebia uma nova mentalidade emer-gindo, deixando para trás as

[...] sobrevivências arcaicas, que o nosso estatuto de país independen-te até hoje não conseguiu extirpar. Em palavras mais precisas, somente através de um processo semelhante teremos finalmente revogada a ve-lha ordem colonial e patriarcal, com todas as consequências morais, so-ciais e políticas que ela acarretou

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e continua a acarretar (HOLANDA, 2006, p. 199).

Em suma, pudemos notar o quan-to a temática da identidade nacional tem sido não apenas uma construção simbóli-ca, mas, igualmente, uma questão políti-ca, implicando, tanto no passado quanto no presente, perspectivas que remetem a distintas formas pelas quais é possível con-ceber formas de solidariedade ou conflito, manutenção ou mudança. O próximo item tem como objetivo, de um lado, concluir este texto, e, de outro, iniciar nossa discus-são sobre o alcance das pesquisas sobre as relações raciais, entendendo que elas não podem ser desvinculadas do debate acerca da identidade nacional e do processo de modernização por que passou a sociedade brasileira.

5. Os dilemas do Brasil Moderno e a gênese das pesquisas sobre as “relações raciais”

Acompanhamos nos itens anteriores o seguinte fato: entre o início do século 19 e meados da década de 1930, um conjunto de representações, ideias e teorias sobre a sociedade brasileira foi formulado por es-critores dos mais distintos campos do co-nhecimento (Direito, Medicina, Engenharia, História, Geografia, etc.). Esses indivíduos não tinham preocupações puramente inte-lectuais, mas também políticas. Também vimos as primeiras reflexões de caráter só-cio-histórico ou “pré-sociológico” presen-tes nas grandes sínteses sobre o Brasil no início do século 20. Em todas elas, os dile-mas a respeito da formação da sociedade, da identidade nacional e das expectativas de um futuro a ser construído se cruzavam com as cogitações que se faziam a respeito do processo de modernização do Brasil.

Esse processo de modernização foi acelerado entre o final da década de 1930

e 1970. Neste período, o Brasil passou por várias transformações políticas: a ditadura do “Estado Novo” (1937-1945), a redemo-cratização a partir de então, os sucessivos governos com perfil industrialista e moder-nizante (segundo governo de Vargas, go-verno Jk) e a instauração de uma ditadura militar em 1964. Nessa mesma tempora-da, sofremos profundas modificações em nossa dinâmica demográfica, duplicamos nossa população e nos tornamos urba-nos em pouco mais de 30 anos: em 1940, éramos 41,2 milhões de habitantes, já em 1970, 93 milhões; em 1940, 28 milhões de pessoas (68,7%) viviam no campo, contra 12,8 milhões nas cidades (31,2%); Já em 1970 a população urbana ultrapassaria em 11 milhões a população rural (55,9% urba-na, 44% rural). Além disso, vivenciamos um in tenso processo de migrações internas, principalmente do Nordeste para o Sudeste, mas também do Sul para o Centro-Oeste.

No plano econômico, o Brasil diver-sificou sua produção, deixando de ser uma economia exclusivamente agrária: no final da década de 1950, completou-se o pro-cesso de substituição de importações de bens de consumo não duráveis e uma infra-estrutura de transportes e energia foi cons-truída. Durante o governo Jk (1956-1961), intensificou-se a produção industrial, que cresceu a uma taxa média de 10% ao ano e se ramificou em setores como produção de aço, petróleo, metais, celulose, papel, química pesada, etc. Esse processo se de-sacelerou no início da década de 1960 e foi retomado de forma intensa entre os anos 1969 e 1973, quando se assiste ao que fi-cou conhecido como o “milagre brasileiro”, período em que o PIB cresceu a uma mé-dia anual de 11,2%.

Podemos refletir aqui não tanto so-bre essas mudanças em si (assunto prefe-rencial da economia, da demografia ou da geografia urbana), mas sobre a compre-ensão sociológica que se construiu sobre elas.

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A análise sociológica foi uma das formas privilegiadas para a compreensão desse processo todo de modernização. A partir dos anos 1930, a Sociologia passou a ter um discurso próprio, não mais com-prometido com preocupações filosóficas, morais, jurídicas ou políticas. A Sociologia brasileira converteu-se num tipo de análise crítica, realizada através de instrumentos metodológicos de alcance universal. O que ela buscava era, basicamente, explicar as dimensões estruturais do processo de mu-dança social do país.

Neste sentido, cabe a pergunta: como a Sociologia acadêmica interpretou o processo de modernização capitalista do Brasil? A partir da obra de Florestan Fer-nandes (1920-1995), pode-se dizer que um novo estilo de pensar a realidade so-cial, bem como os dilemas da mudança so-cial, é inaugurado entre nós.

Seus primeiros estudos, ainda na década de 1940, são reveladores desse interesse: ao pesquisar o papel do “folclo-re” na cidade de São Paulo, Florestan se preocupava com a função social dos an-tigos costumes, trocadilhos, brincadeiras infantis, cantigas, práticas de cura numa cidade que se urbanizava rapidamente e congregava imigrantes das mais distintas nacionalidades (italianos, japoneses, sírio--libaneses, etc.).

Os estudos anteriores sobre o fol-clore valorizavam costumes e práticas an-cestrais como se esses fossem representa-tivos apenas de pessoas analfabetas e das áreas rurais. Para Florestan, ao contrário, o folclore era parte do conjunto maior da so-ciedade e deveria ser analisado a partir de suas funções para o processo de socializa-ção dos indivíduos. Assim, através de pes-quisas sobre o folclore na cidade de São Paulo, de urbanização recente e de popu-lação heterogênea, Florestan demonstraria que sua presença tinha uma função preci-sa: garantir a ordem social.

Numa sociedade cuja estrutura so-cial não correspondia mais aos laços de parentesco, vizinhança e identidades lo-cais, mas que se abria para novas formas de convivência (maior individualismo, ra-cionalização, secularização, etc.), o folclore permitia, por exemplo, integrar os imigran-tes, reproduzir certos estereótipos, manter e recriar hierarquias sociais. Longe de ser uma mera sobrevivência do passado, um resto cultural, ou se restringir às pessoas pobres e analfabetas, o folclore perpassa-va todas as classes sociais, embora com funções diferentes em cada uma delas. Um dos aspectos do folclore que mais tarde receberia um tratamento aprofundado por Florestan Fernandes seria o preconceito racial.

A sociologia da mudança social não se restringiu ao estudo das cidades. Além de Florestan Fernandes, autores como An-tonio Candido (1918-) e José de Souza Martins (1938-) também focaram as trans-formações por que passava o mundo rural.

No caso de Antonio Candido, seu li-vro Os parceiros do Rio Bonito, publicado em 1964, mas reunindo pesquisas feitas entre 1948 e 1954 no interior do Estado de São Paulo, é um estudo clássico sobre o lugar ocupado pela cultura tradicional camponesa, mais precisamente “caipira”, no processo de modernização. Segundo Antonio Candido, a sociedade caipira se caracteriza por sua estrutura simples, pela precariedade dos recursos materiais, pelo cunho coletivo das invenções, pela obedi-ência estrita a certas normas religiosas. A sociedade caipira tradicional no Brasil, ten-do assimilado traços culturais indígenas e portugueses, havia elaborado técnicas que permitiam estabilizar as relações do gru-po com o meio, através do conhecimento satisfatório dos recursos naturais, de sua exploração sistemática e de uma dieta compatível com o mínimo vital, formando em seu conjunto uma economia de subsis-tência de tipo fechado, isto é, sem trocas

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37Alexandro Dantas Trindade

com o exterior. A convivência, o auxílio mú-tuo e as atividades lúdico-religiosas (festas, principalmente) eram componentes funda-mentais da sociedade/cultura caipira.

Essa cultura caipira de subsistência, contudo, convivia em graus diversos de contato com as primeiras vilas e, sobretu-do, com as grandes fazendas de cana, gado e, depois, café, cujos proprietários tinham uma relação mais direta com as cidades e seus circuitos de troca. A grande agricultu-ra mercantil, embora predominantemente de base escravista ao longo da Colônia e do Império, abrigava também essa catego-ria de sitiantes, posseiros e agregados que define a economia caipira de subsistência. O caipira, vivendo sem garantias jurídicas mínimas quanto à ocupação da terra, tam-bém não conseguiu desenvolver uma cul-tura que o predispusesse ao progresso e à mudança. Ou seja, o acesso à terra era fundamental para a manutenção da cultura camponesa em seu estado tradicional de isolamento, trabalho doméstico, coopera-ção, lazer, etc. Com a expansão da lavoura cafeeira e mais tarde das cidades médias em seu entorno, e diante da impossibili-dade da posse ou ocupação de fato da ter-ra, o caipira ou se tornava agregado nas grandes fazendas, ou era empurrado para as áreas despovoadas do sertão, ou ainda se tornava retirante, vivendo nos subúrbios das grandes cidades. Tais condições eram responsáveis pela desestruturação social que, em linguagem sociológica, se conhe-ce por “anomia social”.

No imaginário social, a figura do cai-pira preguiçoso, desleixado, morando em seu casebre precário, desconfiado e res-sentido em relação ao comércio do “turco” ou à operosidade do “italiano”, é uma re-presentação forjada pela literatura de Mon-teiro Lobato (1882-1948), particularmente em seu livro Urupês (1918), e ganha ampla repercussão nos filmes de Amâncio Mazza-ropi (1912-1981).

Ao longo dos anos 1950 e 1960, o pensamento sociológico paulista proble-matizou as razões, o perfil e os efeitos do atraso no Brasil. Em linhas gerais, as várias pesquisas dessa escola tinham como pres-suposto a recusa da visão dualista. A visão dualista concebia o processo de moderni-zação a partir da oposição entre princípios básicos: o tradicional e o contemporâneo; o atrasado e o adiantado; o rural e o ur-bano; o industrial e o comercial, etc. Es-ses princípios dessemelhantes seriam es-sencialmente antagônicos e o desenvolvi-mento de um (da economia industrial, por exemplo) implicaria a decadência de outro (da economia rural, no caso).

Segundo a visão dualista, haveria dois Brasis, um “atrasado” e outro “moder-no”. Para a escola sociológica paulista, tal distinção era incorreta: as transformações afetavam de maneira desigual as classes, os grupos sociais e as diferentes regiões do país, e isso tanto no espaço urbano como no rural. Assim, a reprodução da de-sigualdade social, mesmo num contexto de mudança estrutural intenso, era o “x” da questão.

Em A integração do negro na socie-dade de classes (1964), Florestan Fernan-des voltou a um tema caro aos intérpretes do Brasil que escreveram na década de 1930: a questão racial. Nessa obra, Flores-tan entende que a integração do negro é um problema numa sociedade de classes como a brasileira. O autor busca explicar por que a própria sociedade de classes no Brasil foi, ela mesma, problemática. Para isso, analisa o entrelaçamento entre a sociedade de castas e a sociedade de classes, pois uma não teria sucesso sem a outra. Assim, a integração precária dos ex-escravos na sociedade de classes se deu em função de obstáculos estruturais à plena vigência daquilo que Florestan de-nomina de “ordem social competitiva”, isto é, uma ordem social que contemplasse as virtudes da meritocracia, da igualdade de

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38 “Questão nacional” e “questão racial” no pensamento social brasileiro

oportunidades, da competição justa, etc. Ao contrário, o que o Brasil conheceu logo após a abolição da escravatura foi a com-pleta desatenção ao antigo contingente de trabalhadores cativos que, sem condições materiais e morais para competir com os trabalhadores imigrantes já acostumados à ética do trabalho, tiveram o pior ponto de partida no contexto de emergência da sociedade capitalista. Segundo Florestan:

Evidencia-se, aí, como a moderni-zação tem ocorrido, na esfera das relações raciais, como um fenôme-no heterogêneo, descontínuo e uni-lateral, engendrando um dos pro-blemas sociais mais graves para a continuidade do desenvolvimento da ordem social competitiva na so-ciedade brasileira. Por conseguinte, a análise converte-se em um estudo da formação, consolidação e expan-são do regime de classes sociais no Brasil do ângulo das relações raciais e, em particular, da absorção do ne-gro e do mulato (FERNANDES, 2008, p. 22).

O verdadeiro dilema do processo de transição para a modernidade no Bra-sil é que, para Florestan, nossa sociedade nunca chegou a se constituir, efetivamente, como uma sociedade de classes. Isto é, a ordem social competitiva enfrentou obs-táculos quase intransponíveis. No caso da pesquisa, ela revelou que o “negro” encon-trou pela frente toda sorte de dificuldades em seu processo de ascensão social. Entre tais dificuldades, talvez a principal fosse o preconceito racial, que se traduzia em re-sistências abertas ou dissimuladas para sua admissão em pé de igualdade com os brancos. Em outras palavras, o preconcei-to de cor e a discriminação racial atuaram como elementos impeditivos, verdadeiros obstáculos, à formação de uma sociedade de classes. Na verdade, tais manifestações eram indicadores de padrões sociocultu-rais tradicionalistas, conservadores, muitas vezes opostos à racionalidade capitalista. Contudo, atuavam como mecanismos sutis de reprodução de desigualdades em meio ao processo de modernização.

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Educação e desigualdades raciais

no Brasil

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43

Diante da gama de estudos produzi-dos ao longo da história brasileira na área da educação, pouco tem sido enfatizado sobre o reconhecimento da discriminação racial/racismo como fator de extrema im-portância para a compreensão, a elabora-ção e a implementação de políticas públi-cas no âmbito da educação. Dito isso, tor-na-se necessário compreender essa lacuna e as consequências para as/os negras/os2.

Estudos sobre educação e relações raciais

As diversas concepções e tendências educacionais brasileiras, tanto as mais pro-gressistas como as mais positivistas, cos-tumaram relegar pouca importância aos

estudos sobre relações raciais. Contudo, concomitantemente a essas produções (e embora escassas), pesquisas realizadas ao longo das décadas do século 20 e início do século 21 apresentam dados extremamen-te relevantes e graves do ponto de vista do racismo institucionalizado no ambiente es-colar e nos materiais produzidos para esse espaço3. Alguns exemplos de destaque são: a) a realização do I Congresso Nacional do Negro Brasileiro, em 1950, organizado pelo Teatro Experimental do Negro, cuja pauta de discussões propunha alternativas de acesso à educação para a população negra; b) estudos sobre estereótipos raciais em materiais didáticos, desenvolvidos por Dan-te Moreira Leite (19504 apud Paulo Vinicius Baptista da SILVA, 2008) e, posteriormen-te por Guy A. Hollanda5 (1957 apud SILVA,

Pesquisas sobre desigualdades educacionais e

relações raciais no Brasil

Débora Oyayomi Cristina de Araujo1

1 Mestre em Educação pela UFPR; doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. pesquisadora colaboradora no NEAB-UFPR. Professora de língua portuguesa na rede estadual do Paraná.

2 Por defender uma educação não sexista, que se baseia num “conjunto de atitudes acadêmicas, que se expressa, sobretudo, na forma escrita” (Jimena FURLANI, 2009, p. 134), neste artigo, além de utilizar o gênero feminino e masculino para me referir às pessoas em geral, adoto também outra postura originada dos Estudos Feministas: o destaque das/os autoras/es citadas/os. Sendo assim, na primeira vez em que há a citação de uma/um autora/or, transcrevo seu nome completo para a identificação do sexo e, consequente-mente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas. Assim também por todo o texto a linguagem de gênero far-se-á presente: em alguns momentos por meio de barras (/) e em outros pelo registro total dos vocábulos: “alunas e alunos”, por exemplo.

3 De acordo com o artigo “Uma abordagem sobre a história da educação dos negros”, de Mariléia dos Santos Cruz (2005), há informações de estudos que versavam sobre a educação de crianças negras desde o século 19, como afirma a autora: “Alguns trabalhos levantaram informações sobre o Colégio Per-severança ou Cesarino, primeiro colégio feminino fundado em Campinas, no ano de 1860, e o Colégio São Benedito, criado em Campinas, em 1902, para alfabetizar os filhos dos homens de cor da cidade (MA-CIEL, 1997; BARBOSA, 1997; PEREIRA, 1999); ou aulas públicas oferecidas pela irmandade de São Benedito até 1821, em São Luís do Maranhão (MORAES, 1995)” (p. 28). Ver mais em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001432/143242por.pdf>. Acesso em: 25/01/2011.

4 LEITE, Dante Moreira. Preconceito racial e patriotismo em seis livros didáticos primários brasileiros. Psicologia, São Paulo, n. 3, p. 207-231, 1950.

5 HOLLANDA, Guy. A. A pesquisa dos estereótipos e valores nos compêndios de história destinados ao curso secundário brasileiro. Boletim do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, mar. 1957.

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44 Pesquisas sobre desigualdades educacionais e relações raciais no Brasil

2008) e Waldemiro Bazanella6 (1957 apud SILVA, 2008); c) a organização de oficinas com o tema “O negro e a Educação” nas dé-cadas de 1970-80 e a produção de artigos com o mesmo tema na revista de educação da Fundação Carlos Chagas, entre outros.

Além de estudos como esses, consi-derados clássicos, pesquisas originárias da sociologia, economia e direito, por exem-plo, contribuíram para o que hoje podemos chamar de “estudos sobre relações raciais no Brasil”. A opção neste artigo é apresen-tar resultados provenientes das áreas eco-nômicas e das ciências sociais.

Discorrendo sobre a “dialética do bom aluno” e apontando quem seria, no contexto brasileiro, a/o aluna/o dotada/o de características essenciais ao merecimento desse título, Marcelo Paixão (2008) analisa indicadores de pesquisas nacionais a fim de apontar, por meio de dados quantita-tivos e qualitativos, a assimetria existente entre estudantes brancas/os e negras/os. Um aspecto apontado por Paixão é que a concepção balizadora de muitos projetos educacionais brasileiros pouca ou nenhu-ma atenção deu ao racismo como promo-tor de desigualdades sociais. Trata-se, no campo teórico, da concepção de que as desigualdades podem ser explicadas pela Teoria do Capital Humano. Para essa teo-ria, todos os indicadores sociais de desi-gualdade teriam relação com os anos de investimento em formação escolar e o grau de experiência profissional. Assim, para ser uma pessoa bem-sucedida bastaria que se investisse em formação de qualidade.

[...] o núcleo essencial das dispari-dades sociais no Brasil residiria na

dotação desigual de escolaridade e, mais secundariamente, na expe-riência no trabalho, insumos bási-cos da formação do capital humano dos indivíduos. Os demais vetores (especialmente os de natureza his-tórico-estrutural), assim, acabariam assumindo caracteres meramente subsidiários (PAIXÃO, 2008, p. 44).

Como bem afirma o autor, vetores de natureza histórico-estrutural como o racismo, por exemplo, seriam marcas in-significantes diante da escolarização. Tal teoria, defendida por diversos pesquisa-dores no Brasil7, contudo, não conseguiu produzir argumentos suficientes para pro-var disparidades como as demonstradas no Gráfico 1.

Embora seja possível verificar al-terações sistêmicas no tocante a gênero, evidenciando as mulheres com os melho-res resultados de escolaridade do que os homens nos últimos anos8, ainda assim a disparidade entre os grupos branco e ne-gro é bastante relevante. Ao buscar expli-car as consequências do racismo para o in-sucesso de negras/os, teóricos como Paes e Barros e Mendonça (1995 apud Paixão, 2008) demonstram limitações analíticas decorrentes de um exame superficial das relações raciais no Brasil:

[...] Paes e Barros e Mendonça (1995) chegaram à conclusão de que a va-riável cor/raça explicaria somente 2% das desigualdades verificadas entre os patamares de rendimentos do trabalho no Brasil. [...] Por outro lado, quando se trata de apontar os motivos pelos quais os negros são justamente os menos escolarizados, a explicação padrão é que isso ocor-

6 BAZZANELLA, W. Valores e estereótipos em livros de leitura. Boletim do Centro Brasileiro de Pes-quisas Educacionais, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, mar. 1957.

7 Langoni (1973); Paes e Barros e Mendonça (1995) entre outros.8 E mesmo esses resultados não são suficientes para diminuir a desigualdade entre mulheres e

homens: “Mesmo com maior escolaridade e com uma carga horária de trabalho superior à dos homens, as mulheres brasileiras têm menores rendimentos que eles e quase 70% das jovens de 16 a 24 anos trabalham na informalidade” (disponível em: <http://www.sepm.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2010/09/dados-do-ib-ge-revelam-as-desigualdades-entre-homens-e-mulheres-no-brasil>. Acesso em: 25/01/2011).

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re pelo fato de eles terem condições materiais de vida inferiores às dos brancos. Ou seja, são menos esco-larizados porque são mais pobres. Mobilizando um autor não ligado ao meio acadêmico, temos nas pa-lavras de Ali kamel (2005, p. 7) um bom exemplo acerca da perspectiva desse argumento: “os brancos ga-nham o dobro do que os pretos e os pardos, mas nada nos permite dizer que o motivo seja o racismo; o mo-tivo é sempre a menor escolaridade de pretos e pardos, porque são po-bres” (PAIXÃO, 2008, p. 44-45).

Contudo, é possível verificar a fragi-lidade de tais argumentos ao se fazer um exercício simples de análise de causa-con-sequência. Segundo o autor, com estes ar-gumentos estamos diante de um “círculo vicioso”:

Se é verdade que as desigualdades raciais são produzidas socialmente pelas desigualdades em termos de anos de estudo, elas acabam sendo explicadas por fatores de caráter es-tritamente social, ou seja, a pobre-za. Ora, então podemos chegar à seguinte conclusão: as assimetrias

nas condições econômicas dos ne-gros e dos brancos são explicadas pelas disparidades nas escolarida-des médias de cada grupo. Porém, essas diferenças raciais de escolari-dade são explicadas pelas assime-trias nas condições econômicas dos jovens negros e brancos e de seus respectivos pais. Então, quando se trata de explicar as desigualdades raciais, essas seriam geradas pelas desigualdades no acesso à escola, que é, por sua vez, gerada pela assi-metria nas condições de vida (e pela pobreza), que, por seu lado, é expli-cada pelas desigualdades no acesso à escola. Desse modo, parece mais ou menos evidente que nos encon-tramos em um raciocínio de tipo cir-cular que não nos permite entender verdadeiramente o motor dinâmico nem das assimetrias entre brancos e negros no mercado de trabalho e, tampouco, das disparidades existen-tes em termos do acesso aos espa-ços escolares (PAIXÃO, 2008, p. 45).

Mesmo sendo óbvia a ausência de explicações plausíveis para as desigual-dades entre as populações negra e bran-ca, seja no âmbito educacional ou social como um todo, concepções como as de-

GRÁFICO 1 – MÉDIA DE ANOS DE ESTUDO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA ACIMA DE 25 ANOS SEGUNDO OS GRUPOS DE RAÇA/COR E SEXO (BRASIL – 1980-2000)

FONTE: PAIXÃO, 2008, p. 24.

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46 Pesquisas sobre desigualdades educacionais e relações raciais no Brasil

senvolvidas pela Teoria do Capital Humano estão bastante difundidas em produções acadêmicas, tanto de vertentes conserva-doras como algumas das mais progressis-tas, bem como no senso comum. Diante de tais construções teóricas, torna-se pre-ponderante, portanto, que estudos mais críticos voltados à interpretação das desi-gualdades raciais no Brasil sejam desen-volvidos em âmbito acadêmico, sobretudo, mas também na educação básica, para que a sociedade em geral (re)conheça a in-fluência do racismo nos planos estrutural e simbólico. Assim, poderíamos, inclusive e possivelmente, ampliar nossas perspec-tivas, reconhecendo outros elementos que compõem os estudos sobre desigualdade, como defende Paulo Vinicius Baptista da Silva (2008, p. 89):

A produção da desigualdade inicia--se na educação infantil, com de-sigualdades de custeio, de nível educacional dos profissionais, de condições gerais de atendimento: “a socialização de crianças pobres e

negras para a subalternidade se ini-cia no berçário [...] onde as crianças vivem rotinas de espera” (ROSEM-BERG, 2000, p. 149). As políticas de expansão da educação infantil imprimiram, contraditoriamente, um componente de discriminação racial.

Como não há a possibilidade nesse momento de explorar com maior profun-didade tal tema, a proposta a seguir é de compilar importantes resultados do Censo IBGE/2010 que apontam assimetrias entre a população negra (preta e parda) e a po-pulação branca. Embora haja significativas mudanças (que se explicam grandemen-te pela própria conjuntura econômica do país, que possibilitou melhoria nas condi-ções de vida de toda a população brasilei-ra), tais resultados servirão para elucidar as consequências “atualizadas” de políticas públicas falhas, que desconsideraram ou minimizaram por décadas o racismo como fator preponderante para as desigualdades educacionais (Quadro 1).

Em 2009 os segmentos pretos e pardos ainda não haviam atingido os indicadores que os brancos já apresentavam em 1999 no que se refere aos indicadores educacionais;Em 2009 as taxas de analfabetismo para as pessoas de cor preta (13,3%) e parda (13,4%) eram mais que o dobro da taxa dos brancos (5,9%);O analfabetismo funcional (pessoas de 15 anos ou mais de idade com menos de quatro anos completos de estudo) diminuiu de 29,4% em 1999 para 20,3% em 2009. Essa taxa, que para os brancos era de 15%, continua alta para pretos (25,4%) e pardos (25,7%);Em 2009, 62,6% dos estudantes brancos de 18 a 24 anos cursavam o nível superior (adequado à idade), contra 28,2% de pretos e 31,8% de pardos;Em relação à população de 25 anos ou mais com ensino superior concluído, houve crescimento na proporção de pretos (2,3% em 1999 para 4,7% em 2009) e pardos de (2,3% para 5,3%). No mesmo período, o percentual de brancos com diploma passou de 9,8% para 15%.Os percentuais de rendimentos-hora de pretos e pardos em relação ao dos brancos, em 2009, eram, respectivamente:de 78,7% e 72,1% para a faixa até 4 anos de estudo,de 78,4% e 73% para 5 a 8 anos, de 72,6% e 75,8% para 9 a 11 anos,de 69,8% e 73,8% para 12 anos ou mais.

FONTE: SIS – SÍNTESE DE INDICADORES SOCIAIS – IBGE – 17/09/2010 (Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1717&id_pagina=1>. Acesso em 25/01/2011).

QUADRO 1

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Discriminação racial na escola

Após a leitura da seção anterior, a pro-posta neste item é discutir sobre elementos do plano simbólico responsáveis pela ma-nutenção do racismo. Um dos aspectos que estão no bojo das mais diversas propostas educacionais brasileiras sobre a Educação das Relações Étnico-Raciais é a necessidade urgente do combate à discriminação racial. Do ponto de vista da implementação da Lei 10.639/2003, o combate à discriminação (mesmo não estando explícito em seu tex-to) representa o primeiro passo para a sua real aplicabilidade: ao se instituir um proje-to educacional que contempla, nas diversas disciplinas do conhecimento, uma história da presença da população afro-brasileira para além das aulas sobre escravização9, mas, ao contrário, apresenta uma história do continente africano condizente com sua importância para a humanidade, espera-se um movimento de mudança no olhar de profissionais que pensam a educação, bem como de profissionais que pensam a produ-ção midiática e outras tantas áreas.

Assim, um movimento que tem sua base no espaço escolar pode contribuir para alterações sistemáticas na sociedade, ao mesmo tempo em que produz mudan-ças na sua própria estrutura, pois colabora para a formação de estudantes que conhe-cem, respeitam e valorizam a presença e a influência africanas no Brasil. Espera-se, portanto, que elementos próprios da dis-criminação racial, como a noção de infe-rioridade/superioridade entre os grupos negros e brancos, seja suprimida diante do conhecimento e da valorização dos povos africanos e suas descendências no Brasil. A construção de uma sociedade mais jus-

ta e equitativa torna-se, dessa forma, mais tangível. O texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004), produzido a partir da necessidade de for-necer subsídios à implementação da Lei 10.639/2003, aponta que:

Reconhecer exige que os estabe-lecimentos de ensino, frequenta-dos em sua maioria por população negra, contem com instalações e equipamentos sólidos, atualizados, com professores competentes no domínio dos conteúdos de ensino, comprometidos com a educação de negros e brancos, no sentido de que venham a relacionar-se com respei-to, sendo capazes de corrigir postu-ras, atitudes e palavras que impli-quem desrespeito e discriminação (BRASIL, 2004, p. 12).

Embora essas sejam as perspecti-vas que devam circundar a implementa-ção de uma efetiva Educação das Relações Étnico-Raciais, ainda há muito que se fa-zer. Uma das ações, inclusive, é identificar e reconhecer a discriminação racial como elemento latente no espaço escolar e cons-truir, coletivamente, formas de combatê--la de modo emergencial, já que o racis-mo tem sido, ainda, um fator que expulsa, exclui e segrega crianças, adolescentes e pessoas adultas da educação formal.

O racismo na escola: resultados de pesquisas

A proposta aqui não é apresentar de modo cronológico algumas das importan-

9 A opção pela utilização do termo escravização ao invés de escravidão não é desvinculada de intenções. Defendo que do ponto de vista da significação, escravizado/a ou escravização parecem atuar de modo a representar um período, um momento histórico pontual, ao passo que escravidão e escravo exer-cem sobre nós a ideia de que eram condições definitivas e impostas a um grupo, condição essa inerente a sua própria existência como ser humano. Assim, uma pessoa seria escrava e não estaria escravizada. Portan-to, nego essa tendência, pois compreendo a história da população afro-brasileira para além da colonização do continente africano.

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tes pesquisas realizadas no espaço escolar sobre a discriminação racial/racismo. A op-ção é compilar resultados relevantes para a compreensão de que a escola exerce papel preponderante nos movimentos de reprodução ou de superação do racismo. Certamente outros tantos estudos pode-riam ser inseridos neste artigo como mos-tras de que algumas conquistas (mesmo que tímidas), advindas, sobretudo, da Lei 10.639/2003, estão exercendo influência nas produções acadêmicas.

Discorrendo sobre os eixos educa-ção, raça e gênero, por exemplo, uma pes-quisa de Nilma Lino Gomes (1996) apon-tou resultados de “como o contexto escolar vivenciado por mulheres negras contribuiu para a reprodução do preconceito e da dis-criminação racial e de gênero, e a interfe-rência destes na prática pedagógica dessas mulheres.” (GOMES, 1996, p. 68). Em seu percurso teórico, a autora aponta quatro concepções presentes na escola relaciona-das ao que ela chama de “ideologia racial”, que nada mais é do que um sistema de pensamento e visão de mundo tendo como base a ideia de superioridade/inferioridade racial:

Incapacidade intelectual do ne-gro – cuja concepção remonta a estudos como os desenvolvidos por Nina Rodrigues no final do século 19 e que “evidenciavam” a inferioridade de homens e mulheres ne-gras por suas características biológicas e culturais. Para Gomes, a ênfase negativa ou positiva a atributos de pessoas negras são marcas dessa concepção no discurso escolar:

Assim, quando os professores se mostram admirados com o bom de-sempenho intelectual de um aluno negro, ou quando demonstram uma baixa expectativa em relação à com-petência dos seus colegas e alunos

negros, podemos observar resquí-cios dessa corrente teórica ainda presente em nosso imaginário so-cial (GOMES, 1996, p. 70).

Ideologia do branqueamento – baseada em resquícios de teorias de pen-sadores como Oliveira Vianna, que pregava a ideia de mestiçagem rumo a uma maior aproximação do modelo “ideal” de huma-nidade, a população europeia:

[...] percebe-se na escola a presen-ça da ideologia do branqueamento, que se revela através de uma tenta-tiva em “suavizar” o pertencimento racial dos/as alunos/as e professo-res/as negros/as, apelando para as nuances de cor como moreninho, chocolate, marronzinho, cor de jambo, ou até mesmo em expres-sões como “clarear a raça” (GOMES, 1996, p. 70-71).

Primitividade da cultura negra – destaque assimétrico à contribuição das “três raças” formadoras do povo brasileiro:

Ainda assistimos nas festas escola-res, principalmente na comemora-ção do dia do folclore, a números em que os/as alunos/as represen-tam a contribuição das “três raças formadoras”, enfatizando a cultura europeia como a matriz e a índia e a negra como meros adendos, ou seja, algumas “contribuições” nos costumes, no vestuário, nas cren-ças. Nega-se, portanto, a riqueza de processos socioculturais tão im-portantes e que são constituintes da formação da sociedade brasileira (GOMES, 1996, p. 71).

Democracia racial – bastante di-fundida por Gilberto Freyre10, essa teoria defende que há uma harmonia entre os di-versos grupos (sobretudo negro, indígena e branco), proporcionando certo “‘alívio’ à

10 Em 1944, Freyre utilizou a expressão “democracia étnica e social” para descrever o Brasil. No mes-mo ano, num artigo de jornal em que relatava uma entrevista com Freyre, Roger Bastide grafou pela primeira vez a expressão “democracia racial” (Cf. SILVA, 2008).

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49Débora Oyayomi Cristina de Araujo

consciência da sociedade brasileira” (GO-MES, 1996, p. 71):

Na escola, observamos a presença ideológica dessa teoria ao presen-ciarmos uma acrítica admiração pelo processo de miscigenação da sociedade brasileira e quando muitos educadores resistem a uma discussão sobre a questão racial afirmando que, no Brasil, as opor-tunidades são dadas a todos, inde-pendentemente da sua raça/etnia, e que se existe uma diferença a ser eliminada esta é a de classe social (GOMES, 1996, p. 71).

A pesquisa de Letícia Passos de Melo Sarzedas (2007) relata alguns dos típicos comentários acerca das dificuldades que a Lei 10.639/2003 enfrenta no ambiente escolar, marcas do racismo institucional. Coletando depoimentos de professoras de séries iniciais do ensino fundamental, Sar-zedas (2002, p. 103) apresenta:

Em um outro momento no corredor, enquanto olhávamos os livros didá-ticos que tinham acabado de chegar, uma professora reflete sobre a obri-gatoriedade do Ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira: [...]– Você viu, agora nós somos obriga-das a ensinar a História da África? Como se a gente já não tivesse mui-ta coisa pra ensinar. Se eu termino o ano com eles conseguindo escre-ver um pouquinho já estou satisfei-ta. Não sei por que isso agora. Acho que é porque o Lula quer se mostrar. Ele que venha dar aula aqui, então. Aí sim eu acho que eles (crianças) vão começar a ser racistas, pois a gente vai ficar falando assim: Olha, não pode ser racista, todo mundo é igual, a cor não faz diferença. (Paula)

Rozani Clair da Cruz Reis (2008), re-alizando pesquisa na rede pública estadu-al de Cascavel – PR, demonstrou em seus resultados o quanto ainda são escassas as informações sobre como e o que se espera

com a legislação de promoção da educa-ção para as relações étnico-raciais. A in-vestigação, por meio de estudo de caso de duas escolas e 14 professoras e um profes-sor, apontou que:

Os dados obtidos na pesquisa pare-cem demonstrar que as atividades desenvolvidas de modo a aplicar a lei no município de Cascavel iden-tificam-se com as perspectivas que McLaren (2000) denomina como multiculturalismos de tendência li-beral, nas quais as questões rela-tivas à diversidade são abordadas num enfoque folclórico, de celebra-ção da diversidade. Assim, na edu-cação das relações étnico-raciais no espaço escolar, é preconizado que deve haver o respeito, uma vez que todos são iguais. A pesquisa não ob-servou reflexões críticas nas quais os alunos fossem levados a refletir sobre a origem das diferenças, os meios pelas quais essas diferenças são mantidas na sociedade e de que modo elas beneficiam ou prejudi-cam diferentes grupos sociais (REIS, 2008, p. 7).

Débora Cristina de Araujo (2010) desenvolveu um estudo em turmas de quarta série do ensino fundamental, sob a perspectiva de interpretação da ideolo-gia, termo que para essa pesquisa possuiu um conceito negativo: formas pelas quais se estabelece uma relação assimétrica. Tal estudo consistiu em analisar “os discursos sobre os grupos raciais brancos e negros, produzidos a partir de leituras de obras infanto-juvenis em salas de aula” (ARAUJO, 2010, p. 8). Dentre os resultados obtidos, alguns se relacionam ao racismo “diluído” nas produções literárias infanto-juvenis e na atuação de professoras em aulas de lei-tura:

Foram observadas várias estratégias ideológicas na interpretação das mensagens dos livros, em especial a diferenciação, que se relacionou, neste estudo, ao cânone estabele-cido por meio de um modelo eu-

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rocêntrico de currículo e literatura infanto-juvenil, conferindo às aulas analisadas nesta pesquisa uma ca-racterística de artificialidade, por serem direcionadas única e exclu-sivamente a obras que tematizam a cultura africana. Outra estratégia recorrente foi a estigmatização, responsável por reforçar pré-con-cepções e estereótipos a respeito da história e cultura afro-brasileira e africana. (ARAUJO, 2010, p. 8).

Contudo, indicando diferenças em relação a outros resultados de pesquisas da mesma natureza, a autora verificou ino-vações no que se refere às ações de uma educação antirracista por parte de pessoas que não vivenciaram diretamente o racis-mo:

No que se refere à branquidade (en-quanto categoria de análise das rela-ções raciais), resultados ambíguos e divergentes foram encontrados: em alguns momentos, a postura da pro-fessora atuou no sentido de reforçar estereótipos, ora por meio do silên-cio e omissão diante de práticas dis-criminatórias, ora através de concei-tuações restritivas e estigmatizantes sobre a população africana; e, em outros, avanços foram verificados por relacionarem-se a alterações na atuação pedagógica de professoras brancas que, diante do compromis-so em atender às expectativas desta pesquisa, desenvolveram leituras e posteriores debates que operaram de forma a promover rupturas de um modelo depreciativo de repre-sentação da cultura africana. Este resultado, em específico, represen-tou um diferencial em comparação com resultados de outras pesquisas sobre o mesmo tema, as quais iden-tificaram que a branquidade como norma agiu de forma latente no for-talecimento do racismo no espaço escolar (ARAUJO, 2010, p. 8).

Com essa breve apresentação de resultados de pesquisas realizadas no am-biente escolar, elucidando as formas pe-las quais a/o discriminação racial/racismo

opera, a proposta a seguir é discutir sob outra perspectiva, relacionada muito mais a elementos subjetivos, porém não menos importantes, as relações raciais no Brasil.

Identidade da criança negra

É uma constante em cursos de for-mação de profissionais da educação rela-cionados à Educação das Relações Étnico--Raciais ouvirmos diversos relatos de cole-gas negras e negros sobre suas experiên-cias na escola como crianças negras. Gros-so modo, dois grupos de narrativas podem ser identificados nesses relatos: a) pessoas que quando crianças faziam de tudo para chamar a atenção da professora, transfor-mando-se “na/o melhor aluna/o da turma”; b) pessoas que faziam de tudo para chamar a atenção agindo de forma indisciplinada e desrespeitosa. Esses dois grandes grupos apresentam trajetórias de vidas diferencia-das em vários aspectos, mas que conver-gem em um: a dor de serem excluídos e a necessidade de inserção.

Do ponto de vista psicológico, uma sociedade estruturada em base racializan-te, como a nossa, pode ser responsável por construir indivíduos com visões distorcidas sobre suas origens e pertencimentos. Elia-ne Cavalleiro (2006), analisando a forma-ção das identidades de crianças, aponta para o seguinte aspecto:

Numa sociedade como a nossa, na qual predomina uma visão nega-tivamente preconceituosa, histori-camente construída, a respeito do negro e, em contrapartida, a identi-ficação positiva do branco, a identi-dade estruturada durante o proces-so de socialização terá por base a precariedade de modelos satisfató-rios e a abundância de estereótipos negativos sobre negros (CAVALLEI-RO, 2006, p. 19).

Considerações parecidas também são apontadas por Stefânie Arca Garri-

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do Loureiro (2004) quando em análise da construção da identidade de adolescentes negras/os:

A dinâmica escolar pode ser desas-trosa ao indivíduo e à sociedade de-mocrática como um todo, quando barra ou dificulta, por vários meca-nismos de discriminação, o sucesso ou mesmo a continuidade da vida escolar (do processo de aprendiza-gem de algumas crianças). Pois, em uma sociedade em que alguns gru-pos étnico-raciais são discriminados (tratando-se aqui dos grupos de et-nias negras ou o segmento negro da população brasileira), as crian-ças submetidas a essa ideologia de desqualificação passam a se sentir “inabilitadas” para a participação li-vre no mundo das edificações. Não dispondo de meios para avaliar as contradições existentes na ideologia vigente e, assim, desconhecendo os reais motivos de seu aparente “insu-cesso”, desenvolvem um sentimento de menos valia (LOUREIRO, 2004, p. 24).

Observando sob outra perspectiva de análise, o estudo de Neusa Santos Sou-za (1983) apresentou um elemento bastan-te importante na representação dúbia que envolve a construção da identidade de uma criança negra: a ideia de se negar para em-branquecer. Sua pesquisa representa um marco para os estudos sobre relações ra-ciais no Brasil e reflete resultados ainda co-mumente encontrados em pesquisas mais atuais. No trecho a seguir, Souza apresenta o relato de Luísa, médica há 23 anos:

Na minha turma tinha negros. Eram negros rebeldes, geralmente de fa-vela. Eu era negra-branca: eu era como aquelas pessoas mas não queria ser igual a elas de jeito ne-nhum. Mas também, eu não era como os outros, os brancos: eles eram filhos de professores. Minha mãe não ia na reunião de pais e mestres – estava trabalhando. Mi-nha afirmação sempre foi o estudo.

[...] Estudar numa escola muito mis-turada... Tinha muita gente pobre. Eu tinha nove anos, já podia entrar no ginásio e já estava meio claro pra mim que eu não gostava de pobre e preto. Então, eu me sentia superior a todo mundo: intelectual-mente e porque não era tão pobre. Conheci uma menina que era filha de brigadeiro e éramos amigas... Era do meu nível.

Meu pai dizia que a gente era rico. Minha mãe dizia que a gente era pobre. [...] Aí, eu não sabia o meu lugar, mas sabia que negro eu não era. Negro era sujo, eu era limpa; negro era burro, eu era inteligente; era morar na favela e eu não mora-va e, sobretudo, negro tinha lábios e nariz grossos e eu não tinha. Eu era mulata, ainda tinha esperança de me salvar. Em termos de classe continuava a dúvida. Em termos de negritude, não. (SOUZA, 1983, p. 48, destaques da autora).

Seriam diversas as pesquisas rea-lizadas que poderiam ser arroladas nesse artigo com o objetivo de evidenciar os im-pactos do racismo. Contudo, é importante também apontar outros elementos rele-vantes para a compreensão do que se con-cebe sobre a identidade da criança negra.

Torna-se importante, também, rela-tivizar o impacto das influências externas para a construção da identidade positiva de um indivíduo. O caminho mais adequa-do para isso, do ponto de vista psicológico, é a crença de que a resiliência (capacidade de lidar com problemas e superá-los) atua de modo a “suavizar” o racismo sofrido e a desenvolver sujeitos “bem resolvidos”.

Nesse sentido, algumas pesquisas têm se dedicado a estudos de trajetórias de superação, buscando apresentar que, embora o racismo atue de forma nociva à construção identitária de negras/os, algu-mas alternativas podem atuar para ressig-nificar essa influência negativa e superá-la. Um exemplo é o estudo demonstrado na

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dissertação de Carla Marlise Silva Nadal (2007), cujo objetivo foi:

[...] a compreensão de como, ao longo das suas vidas, os afrodes-cendentes participantes da pesqui-sa desenvolveram a sua resiliência, bem como o reconhecimento dos fatores que influenciaram e possi-bilitaram esse processo de desen-volvimento diante das adversidades que lhes foram impostas diuturna-mente (NADAL, 2007, p. ix).

Por meio de “Análise Textual Discur-siva”, a pesquisadora analisou três homens negros e três mulheres negras, com idade acima de 39 anos de idade, pertencentes às classes média e média alta. Os resul-tados da pesquisa apontaram para as se-guintes considerações:

As análises realizadas através dos aportes teóricos mencionados e dos discursos produzidos pelos sujeitos da pesquisa demonstram que a pro-moção do desenvolvimento da resi-liência, considerando a sua nature-za sistêmica, é de responsabilidade dos diversos níveis de sistemas, são eles: ontossistema (características internas), o microssistema (família), o exossistema (comunidade) e o ma-crossistema (cultura e sistema polí-tico). [...] apontam, também, muitas semelhanças nas trajetórias dos su-jeitos da pesquisa, sendo possível identificar algumas características comuns entre eles. São elas: deter-minação, persistência, bom uso da memória e do esquecimento, bom humor, solidariedade, altruísmo, empatia, motivação, objetivos defi-nidos a curto e a longo prazos, su-peração das adversidades, aprender da experiência, autotransformar-se, a busca de um sentido, respeito, ética, autoestima, valorização dos

estudos, persuasão, ascensão pro-fissional constante, competitividade, autorrealização e intuição (NADAL, 2007, p. ix).

Embora seja evidenciado pela pes-quisa que houve um êxito nos objetivos profissionais das pessoas entrevistadas, proporcionado em grande parte pelo in-centivo da família (NADAL, 2007, p. 133), um dado bastante relevante demonstra a pouca ação da escola enquanto instituição preocupada com a formação da identidade de um povo e, quando houve tal ação, essa partiu de algumas/uns professoras/es:

A escola nada contribuiu para o en-sino das culturas afro-brasileira e africana, pois quando essas eram estudadas em aula, eram mencio-nados aspectos que desconstituíam e menosprezavam todo o advindo dos afrodescendentes. Mais que “ausências”, a escola reforçou o pre-conceito racial, fazendo com que a autoestima dos alunos negros fosse espezinhada constantemente. Reer-guer-se diante desse paradigma da exclusão foi o que os participantes da pesquisa conseguiram fazer.[...] muitos professores e professo-ras foram referidos como os respon-sáveis pelo desenvolvimento pes-soal, profissional e da resiliência dos sujeitos da pesquisa. Professores e professoras que foram sensíveis, empáticos, atenciosos, amigos, companheiros, compreensivos, con-siderados luzes que fizeram brilhar as luzes que habitavam e habitam as almas dos entrevistados e das entre-vistadas (NADAL, 2007, 158).

Diante de estudos como esse11, é inevitável considerar que a resiliência pode atuar de modo sistemático na formulação positiva da identidade de uma pessoa que

11 Outras pesquisas apresentam resultados convergentes com os indicados por Nadal (2010). Ver, por exemplo: CARVALHO, Liandra Lima. Mais do que “levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima”: um estudo sobre a autonomia superativa e emancipatória de mulheres negras cariocas. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense, 2008. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/22/TDE-2008-11-21T142712Z-1759/Publico/Liandra%20Carvalho-Dis-

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foi vítima do racismo. Contudo, não é pos-sível aceitarmos que esse processo psico-lógico aconteça em todos os indivíduos da mesma forma e que exerça a mesma influência. Assim, muito mais que “aguar-dar” as consequências e o possível sucesso de cada criança negra quando se transfor-mar em adulta, devemos atuar nas causas e combater os problemas em seu início. Em outras palavras, todas as teorias, se-jam do campo da psicologia ou das ciên-cias sociais, por exemplo, que nos ajudam a compreender como o racismo opera em nossa sociedade, só têm validade de exis-tência se estiverem a serviço da constata-

ção de quadros e situações e estimularem transformações. E neste artigo o espaço de transformação defendido refere-se à escola, local privilegiado por reunir faixas etárias diversas, os mais diferentes perten-cimentos étnico-raciais e as variadas cultu-ras que compõem o modo de ser dessa so-ciedade. Também é um espaço privilegia-do por ser o ambiente da educação formal, aquela que pode proporcionar mudanças em concepções do senso comum e pro-porcionar, consequentemente, a formação de sujeitos emancipados que conhecem a verdadeira história de seu país e de suas próprias origens.

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54 Pesquisas sobre desigualdades educacionais e relações raciais no Brasil

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Negros e brancos nos livros dirigidos

à infância

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Esse artigo trata de relações entre brancos(as) e negros(as) em discursos bra-sileiros. A sociedade brasileira construiu, a partir do início do século XX, para si mes-ma e para o exterior, uma imagem de so-ciedade livre da discriminação racial. Tal imagem, no entanto, foi e é uma estraté-gia para manter uma hegemonia branca. Ativistas e pesquisadores demonstraram, em especial a partir do final da década de 1970, as profundas desigualdades entre brancos(as) de um lado e negros(as) e in-dígenas de outro. O “mito da democracia racial” deixou de ser hegemônico no Bra-sil, pelo menos na academia e no discur-so público. Mas, ao mesmo tempo, formas antigas e novas de produzir e reproduzir desigualdades raciais se mantêm. Trato no artigo de como a literatura e a literatura infantojuvenil brasileiras têm atuado para manter e atualizar o “complexo de Próspe-ro” do colonialismo (FANON, 1983, p. 88). Irei abordar o tema a partir da coragem, desobediência e amor à vida de Sherazade.

Narradora doce e resoluta, a jovem mulher da fábula confia na rique-za das mil e uma histórias, e assim vence o conto único e sanguinário de Shahriyar, o potente que sobre a morte de seus súditos mesmos – e ainda mais sobre a sua “uniformida-de narrativa” – funda a própria me-

donha/horrível legitimidade (ESCO-BAR, 2001, p. 10-11).

A hipótese central com a qual ope-ro, portanto, é que o principal desafio é passar de narrativas, na literatura, na lite-ratura infantojuvenil, nos livros didáticos, que vão além da homogeneidade que tem sido apontada pelas pesquisas brasileiras. Os nossos discursos, da literatura, da lite-ratura infantojuvenil e de livros didáticos, trazem muito mais marcas de uma história única, fundada no(a) branco(a) como repre-sentante “natural” da espécie humana que discursivamente coloca a “outros” como “desviantes”. O desafio final é “zumbíleo2”: que sejam mil e uma as histórias (ou seja, sempre mais uma); que a hegemonia da hierarquia branca (em particular sobre ne-gros/as e indígenas) dê lugar a discursos plurais. O que indicam as pesquisas é que as narrativas se multiplicam e formas di-versas de rupturas se apresentam, mas a hegemonia branca (masculina, heterosse-xual, adulta e de classe média) se mantém.

Ao falar de relações raciais no Bra-sil sempre se fazem necessárias algumas reafirmações, posto que fomos formados sob a égide do “mito da democracia racial” e o mesmo continua atuante e atualizado por alguns discursos. Um pressuposto é

Negros e brancos na literatura e

literatura infantojuvenil

Paulo Vinicius Baptista da Silva1

1 Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP; pesquisador do CNPq; pesquisador do NEAB-UFPR e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR.

2 Tarefa para Zumbi dos Palmares, líder do grande e longevo quilombo que ficou conhecido como “República dos Palmares”. O neologismo é emprestado de Edna Roland, então Coordenadora de Combate ao Racismo e a Discriminação da UNESCO, em palestra em Curitiba no ano de 2005, referindo-se à tarefa de implantação do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas do país, logo após a aprovação de lei federal sobre o tema, a Lei 10.639/03.

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que vivemos numa sociedade na qual o ra-cismo é estrutural e estruturante (GOMES, 2008), ou seja, as desigualdades sociais têm como um dos seus eixos estruturais a hierarquia entre raças3. A população bran-ca tem maior acesso a bens materiais e simbólicos, ao passo que negros(as) indí-genas e ciganos(as) têm menor acesso a esses bens. Esse artigo discute em espe-cífico o acesso distinto a bens simbólicos por brancos(as) e negros(as)4 nos meios discursivos citados.

O Brasil tem cerca da metade de população negra e a outra metade branca, sendo indígenas e asiáticos menos de 1%. O país é a segunda nação negra do mundo em número de indivíduos, somente abai-xo da Nigéria. No entanto, nos espaços de poder, tanto no que se refere a bens mate-riais como a bens simbólicos, a população branca mantém uma hegemonia incontes-tável.

Neste artigo, discuto sobre tal reali-dade e sobre possíveis alternativas de mu-danças, a partir de atualização de análise sobre a pesquisa brasileira em dois meios discursivos, que será explicitada a seguir.

Negros(as) e brancos(as) na literatura brasileira

As hierarquias raciais são profusas e profundas em grande parte e, em alguns momentos ou movimentos literários, em toda parte, na literatura brasileira. As análi-ses sobre “o negro como objeto” da litera-tura apontam a presença pouco marcante e os poucos personagens presentes com tendência à subalternidade e à inferiorida-de:

Desde o primeiro texto escrito nesta e sobre esta terra de vicioso desti-no, a unilateralidade se repete. Vi-são caolha a enxergar tão somen-te os interesses de apenas um dos segmentos sociais; e não precisa-mos apontar qual deles. Se Édipo vaza seus olhos para melhor enxer-gar a verdade, a literatura brasilei-ra manteve por vários séculos seus olhos intactos e cegos. Não vazou os olhos, não enxergou sua realidade de país estruturado, inegavelmente, por três etnias que constituem três culturas em sua formação. Não va-zou os olhos, não vislumbrou a to-talidade de sua expressão e por isso foi até o início do século XX uma li-teratura manca. Manca como Édipo, neste país de claudicante destino (NASCIMENTO, 2006b, p. 57).

Na literatura brasileira moderna, Dalcastagnè (2008) analisou a totalidade das primeiras edições de romances (258) publicados entre 1990 e 2004 por três ca-sas editoriais consideradas, em enquete com literatos, como as mais importantes na publicação de prosa brasileira de ficção. Identificou 80% de personagens brancas contra 14% de personagens negras5. Entre os protagonistas, a concentração de perso-nagens brancas subiu para 85%, ao passo que as negras recuaram para 12%. As nar-radoras identificadas foram 87% brancas e somente 7% negras. Os brancos foram 92% da elite econômica e 88% das clas-ses médias, mas o percentual recuou para 52% dos pobres e 50% dos miseráveis. O cruzamento com gênero foi significativo: “é possível observar a ampla predominância de homens brancos nas posições de prota-gonista e narrador, enquanto as mulheres negras mal apareceram” (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 91, grifos da autora). As persona-

3 Para discussão um pouco mais detalhada sobre relações raciais no Brasil, ver Silva e Rosemberg (2008, em específico, p. 74-79).

4 A partir desse ponto o texto passa a adotar, via de regra, o genérico masculino.5 Utilizamos a categoria negra/negro como correspondente ao agrupamento das categorias negra e

mestiça utilizadas pela autora.

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gens negras apresentam menores índices de relações familiares ou amorosas. En-tre as personagens adolescentes do sexo masculino, negros representaram 58,3% das ocupações de “bandido/contraventor”, ao passo que brancos foram 11,5% des-sa ocupação e a mais frequente para esse grupo foi a de “estudante”, com 44,2%. Ou seja, as personagens brancas foram a norma social e vários indicadores apontam para seu tratamento literário mais comple-xo que o das personagens negras.

A representação literária da mulher negra permanece, via de regra, ancorada nas imagens de seu passado escravo “de corpo-procriação e/ou corpo-objeto de pra-zer do macho senhor” (EVARISTO, 2006, p. 1). Na literatura brasileira, as mulheres ne-gras surgem como infecundas e, portanto, perigosas.

Caracterizadas por uma animalida-de como a de Bertoleza que morre focinhando, por uma sexualidade peri gosa como a de Rita Baiana, que macula a família portuguesa, ou por uma ingênua conduta sexual de Ga-briela, mulher-natureza, incapaz de entender e atender determinadas normas sociais (EVARISTO, 2006, p. 1).

Para Evaristo (2006), a análise das personagens negras na literatura aponta o apagamento de determinados aspectos, ocultando sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira e do papel da mu-lher negra na formação da cultura nacio-nal. Este apagamento das relações familia-res e particularmente do papel de mãe em diversos meios discursivos contrasta com os papéis assumidos pela mulher negra

na sociedade brasileira. Além dos postos de trabalho diversos nas cidades brasilei-ras, particularmente no pós-abolição (final do século XIX), responsáveis pela subsis-tência dos grupos, para o núcleo familiar exerceram e exercem o papel aglutinador as responsabilidades de manter os núcle-os familiares, mediar as relações afetivas, portar e transmitir valores e bens culturais. Olhemos para as mulheres de nossas fa-mílias e vejamos o quanto se afastam dos lugares-comuns criados no discurso lite-rário6. A antropologia brasileira descreve um modelo familiar denominado matrifo-cal. Muito comum nas camadas populares, o homem é a figura de poder, mas a mu-lher é a figura de estruturação e coesão do núcleo familiar. Além disso, são inúmeros os exemplos de mulheres negras que so-maram ao papel de ponto de sustentação da organização familiar o de atuantes e líderes de movimento de resistência, pas-sando por formas diversas de resistência à escravidão – participação ativa em re-voltas, liderança em quilombos, liderança em irmandades; pela participação e pelo comando de comunidades tradicionais e organizações religiosas; pela organização e manifestação em movimentos culturais; pela estruturação de inúmeras organiza-ções negras femininas após o final da di-tadura militar (anos 1980). A conclusão é bastante óbvia: o discurso público brasi-leiro produz espaços sociais racializados, nos quais personagens brancos e negros são levados a atuar de formas específicas, que são mais que a mera reprodução de desigualdades raciais presentes na socie-dade. São criações ativas, no plano simbó-lico, de realidades; “peças de ficção” que,

6 No meu caso, os exemplos mais marcantes são minha avó, a “Dona Quininha”, e suas irmãs, Tias Lourdes, “Dêca” e Teresa, todas operárias e operárias do cotidiano, mulheres intensas e múltiplas. Para além da força forjada nas duras jornadas de trabalho, impossível não lembrar dos afagos e segurança trans-mitidos pelo abraço de cada uma delas. Conhecimentos de ervas e plantas, de benzições e preces mil, de receitas outros milhares, agilidade mental, memória admirável, comentários argutos, cortantes, por vezes mesmo cruéis. As lembranças se multiplicam. Em uma palavra? Pilares! As que já foram fortes o suficiente para permanecerem sempre.

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no caso específico, nada têm a ver com a “materialidade” das relações. O argumento é que tais formas são ideológicas (na acep-ção que atribui Thompson, 1995), ou seja, operam como atribuição de sentidos deter-minados a serviço da distribuição desigual de poder. No caso específico, a criação de um discurso de desvalorização da mulher negra opera socialmente para restringir o acesso aos bens, materiais e simbólicos, ao criar uma atmosfera de descrédito e desconfiança em relação a tal grupo social. Ou seja, os discursos (nesse caso literários) não somente reproduzem, mas também produzem desigualdades raciais.

As rupturas ficam, via de regra, por conta dos escritores cuja produção vem comprometida com a busca de uma iden-tidade afro, nos quais os traços de inferio-ridade deixam de figurar. O primeiro ro-mance escrito por uma mulher no Brasil, Úrsula, da escritora negra Maria Firmina dos Reis, publicado em 1859, denunciava mazelas da escravidão, colocando a nar-rativa na perspectiva de uma velha cativa num período no qual muitos não conce-diam aos negros a condição de ser huma-no. No mesmo ano, o “Orfeu de Carapinha” Luiz Gama publicou suas Trovas burlescas, usando da ironia como forma não somente de expressão da crítica à escravidão, mas mesmo como ferramenta de luta política pela liberdade.

Domício Proença Filho (1997) e Gi-zêlda Nascimento (2006b) propõem uma distinção similar, entre a condição negra como objeto, numa visão distanciada e o negro como sujeito, numa atitude com-promissada (PROENÇA FILHO, 1997, p. 159, grifos do autor). O estudo precur-sor de David Brookshaw (1983) é dividido em duas partes: na primeira, sobre o es-critor branco, analisa os estereótipos; na segunda, sobre o escritor negro, discute a conscientização. O pertencimento ra-cial do autor por vezes foi tomado como condição (necessária, mas não suficiente)

para a proposição de uma Literatura negra brasileira voltada para as condições de ser negro na sociedade brasileira (IANNI, 1988, p. 209). Para Bernd (1988), “o fator que se constitui no divisor de águas é o sur-gimento de um eu-enunciador, que reve-la um processo de tomada de consciência de ser negro entre brancos” (1988, p. 26). Proença Filho propõe uma dupla acepção de Literatura negra, considerando a litera-tura feita por negros ou descendentes que se caracteriza pelo intuito de singularidade cultural, abrindo a possibilidade de a lite-ratura negra ser “feita por quem quer que seja, desde que centrada em dimensões peculiares aos negros ou aos descen-dentes de negros” (PROENÇA FILHO, 2004, p. 185, grifos meus). Eduardo de Assis Du-arte (2008) propõe que a “literatura afro--brasileira” é, a um tempo, parte da lite-ratura brasileira, pois se utiliza da mesma língua e formas de expressão, mas, por ou-tro lado, está fora da mesma porque não se enquadra na missão de “instituir o advento do espírito nacional” (p. 22), estando em-penhada num projeto suplementar ao da literatura brasileira canônica, “o de edificar, no âmbito da cultura letrada produzida pe-los afrodescendentes, uma escritura que seja não apenas a sua expressão enquanto sujeitos de cultura e arte, mas que aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civilização” (DUAR-TE, 2008, p. 22). Destaca como critérios de configuração dessa literatura a temáti-ca, sendo o negro o tema principal; a au-toria, proveniente de afrodescendente, ou mais, fundada num sujeito de enunciação que se afirma e se quer negro; o ponto de vista, a assunção de uma visão de mun-do identificada à história e cultura africana e africana da diáspora; a linguagem, fun-dada numa discursividade específica, com uso de ritmo, significados e vocabulário no qual as africanidades são comuns; na in-tencionalidade de formação de um público leitor afrodescendente. Aponta para a ado-

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ção de um “critério pluralista” calcado em “orientação dialética” e aberto à diversida-de, sendo os critérios tomados de forma interativa, não isolada.

As classificações guardam algu-ma flexibilidade e diversas polêmicas. Por exemplo, no caso de Machado de Assis, Nascimento (2006a) descreve a presença ínfima de personagens negros e anulação de alteridade do negro Prudêncio em Brás Cubas, que reproduz com perfeição as atrocidades das quais foi vítima. Em outro escrito, a autora analisa a ausência de per-sonagens negros em obras machadianas e afirma que tal falta é reveladora: o autor omite o negro como ser ficcional para me-lhor denunciar o modelo social vigente e não em saídas para uma sociedade na qual o modelo patriarcal e escravocrata se ar-raigou tão profundamente (NASCIMENTO, 2002, p. 61). Proença Filho (1997) afirma que não se encontra em sua obra ficcio-nal a assunção de uma perspectiva afro, mas uma coletânea de textos nos quais está marcado o Machado de Assis afrodes-cendente (DUARTE, 2007) e uma série de argumentos sobre a manifestação de uma perspectiva crítica à ordem que imperava e ao sistema escravocrata:

Cronista, crítico literário, poeta e fic-cionista, em nenhuma página de sua vasta obra encontramos qualquer referência a favor da escravidão ou da pretensa inferioridade de negros ou mestiços. Muito pelo contrário. E, mesmo descartando a retórica pan-fletária, a ironia, por vezes sarcás-tica, e a verve carnavalizadora com que trata a classe senhorial dão bem a medida de sua visão de mundo. O lugar de onde fala é dos oprimidos e este é um fator decisivo para incluir sua obra no âmbito da afrobrasilida-de. Apesar de fundador da Academia Brasileira de Letras e de ter sido ca-nonizado como escritor branco, Ma-chado escapa ao papel normalmen-te destinado aos homens livres na ótica escravocrata: o de ventríloquo e defensor das ideias hegemônicas,

provenientes das elites senhoriais (DUARTE, 2008, p. 15).

A poesia negra foi, para Brookshaw (1983), o real movimento literário de sin-gularização do negro no Brasil, embora o autor aponte algumas obras em prosa que o realizam. Vejamos exemplo de discurso da negra que se diz, em poema de Concei-ção Evaristo:

Vozes-Mulheres

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio de uma infância perdida. A voz de minha mãe ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela.

A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue

e fome.

A voz de minha filha recorre todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo.

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Bezerra (2007, p. 128-132) analisa esse poema como manifestação da disso-nância, como forma de elaboração de uma genealogia que rompe a lógica colonial do racismo e sexismo. As rupturas e o desafio ao silêncio vêm ocorrendo e se intensifican-do. Por exemplo, desde 1978, vêm sendo publicados os Cadernos negros, coletânea de textos de autores negros que passou a se denominar Quilombhoje. Dalcastag-né (2008) examina as exceções à regra de não trazer personagens negras às tramas e afirma que “personagens negras talvez aju-dem leitores brancos a entender melhor o que é ser negro no Brasil” (p. 108). Sobre o romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, aponta que “busca fugir do mo-delo ‘pobre escravo da senzala’ e apresenta a vida e as possibilidades de uma escrava instruída, que aproveita todas as brechas para aprender e conquistar sua liberdade, inclusive como mulher” (p. 101). Ponciá Vi-cêncio, de Conceição Evaristo, faz da dor o elo entre personagem e leitor, represen-tando a dor de nosso povo negro. Ferréz, nos contos de Ninguém é inocente em São Paulo, apresenta o realismo de uma favela que foge do modelo do noticiário policial: “no lugar de tiros e conversas o que ouvi-mos é o escritor digitando em seu barraco, ou rapazes discutindo sobre alguma pos-sibilidade de emprego” (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 105). Aspectos da obra literária de Henrique Cunha Júnior, um dos auto-res que publicou nos Cadernos negros, são apontados como exemplo de intelec-tual que assume a voz de sua coletividade (OLIVEIRA, 2008).

Além disso, alguns autores têm de-fendido que a ruptura em relação ao câ-none deve se apropriar de uma acepção mais abrangente de cultura e de literatura. Uma perspectiva de análise aponta como os relatos orais são carregados de traços literários e os depoentes são chamados de “poetas no limiar entre o testemunho e a criação poética” (NASCIMENTO, 2006b,

p. 8). O rap é destacado como expressão de narrativa insurgente (SALLES, 2004) e Inácio (2008) destaca traços de literatura identitária no rap do grupo musical paulis-tano Racionais MC’s. A oralidade das casas de candomblé é analisada como expressão literária afro-brasileira por Adolfo (2007).

Pereira (2008) afirma que tais pro-duções têm gerado seminários, suscitado diálogos com pesquisadores estrangeiros, são temas de dissertações e teses. Pesqui-sas e autores em específico “têm contri-buído para a formulação de livros didáti-cos” (p. 38); ampliado o leque de questões estéticas contempladas nos currículos de Letras e “sugerem a alteração do cânone literário brasileiro” (p. 38).

A afirmação parece-me otimista em exagero e prefiro tomar tais manifestações como mudanças em direção aos desafios que se interpõem. Como havíamos formu-lado anteriormente:

A literatura negra, mesmo nessa acepção mais abrangente, é ainda minoritária no Brasil, em termos de autores que a ela se dedicam e do interesse que desperta na críti-ca e na academia. Aqui, também, tem se utilizado o qualificativo de silêncio: trata-se de uma “literatura silenciosa” pois, via de regra, não penetra os cursos de Letras, os ma-nuais de literatura, os livros didáti-cos, as editoras e livrarias, as listas de livros exigidos para o exame de vestibular, etc... A exclusão do fazer literário, salvo as iniciativas como a que apontamos, se mantém atuan-te para a população negra brasileira (SILVA; ROSEMBERG, 2008, p. 90).

A literatura brasileira publicada pe-las casas editoriais de maior prestígio, rei-teradamente, opta por conjunto de obras que continua operando o silêncio sobre as relações raciais no país.

Ficam de fora a opressão cotidiana das populações negras e as bar-reiras que a discriminação impõe

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às suas trajetórias de vida. O mito, persistente, da “democracia racial” elimina tais questões dos discursos públicos – entre eles, como se vê, o romance (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 46).

Negros(as) e brancos(as) na literatura infantojuvenil brasileira

Eu sou uma contadora de histórias. Eu gostaria de falar para vocês hoje sobre aquilo que eu chamo de “o pe-rigo da história única”. Eu cresci num campus universitário na parte orien-tal da Nigéria. A minha mãe diz que eu comecei a ler aos 2 anos embora eu pense que aos 4 provavelmente esteja perto da verdade. Por isso eu fui uma leitora precoce. E o que eu li eram livros para crianças britânicas a americanas. Eu também fui uma escritora precoce. E quando come-cei a escrever, por volta dos 7 anos, histórias a lápis com ilustrações a lápis de cor que minha pobre mãe era obrigada a ler, eu escrevia exata-mente o tipo de histórias que eu lia. Todas as minhas personagens eram brancas e de olhos azuis. Brincavam na neve. Comiam maçãs. E falavam do tempo, como era maravilhoso o sol ter aparecido. Isto apesar de eu viver na Nigéria. Eu nunca tinha es-tado fora da Nigéria. Nós não tínha-mos neve. Nós comíamos manga. E nós nunca falávamos sobre o tem-po, porque não havia necessidade. [...] o que isto demonstra, penso eu, é o quão impressionáveis e vulnerá-veis somos face a uma história, par-ticularmente as crianças. ADICHIE, Chimamanda7.

Inicio com esta longa citação da es-critora nigeriana porque seu tema e sua argumentação estão em pleno acordo com

o tema e argumentação aqui adotados. Histórias únicas nos conduzem ao erro, à generalização ingênua, à estereotipia, ao exercício do autoritarismo. Persigamos as mil e uma histórias.

Examinemos as afirmações da auto-ra com um pouco mais de detalhe. Os livros que lemos, no Brasil, em nossas infâncias, não são os mesmos para as crianças ingle-sas ou norte-americanas. Também não são os mesmos para as crianças portuguesas. Todas as nossas personagens são brancas e de olhos azuis? Brincam na neve? Co-mem maçãs? Vejamos o que nos informam as pesquisas brasileiras.

Ao analisar a literatura infantojuve-nil publicada no início do século XX, Maria Cristina S. Gouvêa deparou com formas de discriminação contra a personagem negra que saltavam aos olhos, o que a levou a analisar a questão com mais detalhe e a dedicar ao tema um capítulo específico de sua pesquisa (GOUVÊA, 2004; 2005). Na li-teratura infantojuvenil produzida no Brasil entre 1900 e 1920, as personagens negras praticamente não existiam e os exemplos raros eram remetidos ao passado escravo-crata. Na década posterior, passaram a ser mais frequentes, mas construídos como resgate folclorizado de características na-cionais, com personagens apresentando estereotipia e simplificação característi-cas; com referências marcadamente etno-cêntricas, associados à simplicidade, ao primitivismo, à ignorância, ao meio rural e passado, com características corporais animalizadas (GOUVÊA, 2004, p. 219-262). Personagens negros passam a figurar em algumas narrativas, por vezes cumprindo o papel de transmitir uma ideia de convivên-cia e integração racial, mas sempre despo-jados de sua identidade étnico-racial, redu-zida a diferenciações físico-raciais. “A pos-

7 Palestra proferida pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie sobre “O perigo da história única”. Disponível em: <http://www.ted.com/talks/lang/por_pt/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html>. Agradeço ao Beto Borges que postou o link na lista “Consórcio NEABs”.

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sibilidade de tal convivência dava-se por meio do embranquecimento dos persona-gens negros [...] Na verdade, faz-se pre-sente em quase todos os textos um ideal de embranquecimento tão característico na análise sociológica das relações inter--raciais no Brasil” (GOUVÊA, 2005, p. 89).

Em pesquisa na qual foi analisada amostra da literatura infantojuvenil publica-da entre 1955 e 1975, foram identificados nos textos 72% de personagens brancas e 7% de personagens negras e, nas ilustra-ções, 69% de brancas e 5% de negras (RO-SEMBERG, 1985). Pesquisa que atualizou o estudo de Rosemberg (1985), analisando o período posterior (1975-1995), observou mudanças tênues (BAZILLI, 1999). Verifi-cou-se menor proporção de personagens não brancos antropomorfizados e um ligei-ro aumento de personagens pretos exer-cendo profissão de tipo superior (BAZILLI, 1999). Mas as tendências gerais de privi-légio aos personagens brancos se manti-veram: personagens negros sub-represen-tados, com posição menos destacada nas tramas, literariamente menos complexos, exercendo profissões menos valorizadas. Lima (1999, p. 102 e ss.) também aponta a invisibilização de personagens negros e o tratamento estereotipado. Além da des-proporção, algumas dessas obras também trazem outras formas de hierarquização entre brancos e negros. A análise de de-terminados personagens negros aponta que alguns deles passaram a ganhar cer-to destaque nas tramas e mesmo chegam a ocupar o papel de protagonistas (LIMA, 1999; SOUZA, 2005). Mas a condição natu-ralizada dos brancos e a subordinação dos negros a estes se manteve. Em pesquisa recente, foi analisado um “acervo” (con-juntos de 20 livros) de livros distribuídos pelo Programa Nacional de Biblioteca na Escola (PNBE) em 2005 (VENÂNCIO, 2009). Do total de 7.259 personagens identifica-dos nos textos, foram classificados como brancos 3.077 (42,4%) e como pretos ou

pardos 448 (6,1%). A sub-representação de personagens negras manteve-se, mas a tendência em apresentar tais personagens negros como personagens menos elabora-dos (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999) se modificou: foram mais presentes os perso-nagens negros narradores e os com pro-fissões indicadas; personagens principais, personagens com relações de parentesco; personagens com ação própria passaram a ser menos raros que nas amostras anterio-res; os traços de estereotipia tornaram-se raros. No acervo analisado, a razão entre personagens brancos e negros, que cha-mamos de “índice de branquidade”, foi de 6,9 (significa que cada personagem negro correspondeu a 6,9 personagens brancos), índice mais elevado que o de 3,6 detectado na amostra de Bazilli (1999). No caso do acervo do PNBE analisado, parece que a in-clusão de um ou dois livros de valorização de negros(as) e indígenas em cada “paco-te” de 20 livros foi acompanhada de uma ausência ou silêncio sobre negros nas ou-tras obras, levando a esse índice mais alto para os livros do PNBE 2005 que o detec-tado no estudo de Bazilli (1999, amostra de literatura infantojuvenil publicada em primeira edição entre 1975 e 1995). Des-ta forma, a desigualdade se manteve alta quando comparada com estudos anterio-res. Pode-se interpretar tal resultado como indicativo da solidez da branquidade que se faz norma, apesar dos movimentos rei-vindicatórios de grupos engajados na luta social, de leis que determinam a explora-ção da riqueza da cultura africana (BRASIL, 2003) e da atuação de órgãos como a SE-CAD, que atuou para inserir em cada “acer-vo” do PNBE obras valorizando negros(as) e/ou indígenas. As conclusões de Rosem-berg (1985) a esse respeito nos parecem ainda válidas.

Dentre as formas latentes de discri-minação contra o não branco, tal-vez seja a negação de seu direito à existência humana – ao ser – a mais

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constante: é o branco o representan-te da espécie. Por esta sua condição, seus atributos são tidos como uni-versais. A branquidade é a condição normal e neutra da humanidade: os não brancos constituem exceção. [...] A neutralidade do branco tam-bém aparece na ilustração, quando segmentos de uma parte do corpo são usados como símbolo de huma-nidade (o dedo indicador que apon-ta a direção, a mão representando pessoa, etc.): nestes casos a cor é sempre a mesma, o branco sempre presente. É importante que se note que esta branquidade paradigmáti-ca não se restringe ao universo fic-cional presente no texto, pois ela é estendida à humanidade exterior à narrativa: por exemplo, nas falas emitidas pelo narrador e destinadas ao leitor infantil, o modelo de crian-ça, quando explicitado, é branco (ROSEMBERG, 1985, p. 81-83).

O desafio que se interpõe: como operar mudanças nessa realidade. Res-pondendo à indagação que propus a partir das reflexões de Chimamanda: os perso-nagens das histórias que lemos em nos-sas infâncias comem manga há mais de um século, falam da realidade brasileira pelo menos desde a década de 1930 e, se para quem realizou o ensino fundamental nos anos 1970, como eu, a maioria dos li-vros de literatura infantojuvenil disponíveis eram ainda narrativas didático-didatizantes e moralistas, a partir desta década a cons-trução de histórias e personagens cada vez mais literárias e vivazes fez-se movimen-to, deixou de ser ruptura para ser norma (COELHO, 1995). Os personagens “com a pele cor de chocolate”, no entanto, entra-ram muito timidamente nessa produção renovada e somente por esses dias obser-vamos movimentação mais significativa na difusão da alteridade afro. A literatura in-fantojuvenil própria e multifacetada desse país parece não ter fugido ao “perigo da história única” no que se refere ao trata-mento desigual dos grupos raciais brasilei-ros. Alternativas?

Na esfera da produção, uma reflexão de Michael Apple (1995) me parece bastan-te pertinente. Discutindo como os “artefa-tos de currículo”, livros para uso escolar, produzem e reproduzem desigualdades sociais nos eixos de gênero, raça e classe social, o autor afirma que interessa per-guntar e saber como se distribuem essas desigualdades nas diversas esferas de pro-dução, ou seja, como se distribuem as de-sigualdades nas empresas que produzem e distribuem o objeto livro, que os avaliam, no público “consumidor”. Poucas pesqui-sas têm sido produzidas e os dados sobre o mercado editorial brasileiro são disper-sos e muitas vezes inconsistentes (como o caso dos “Diagnósticos do Setor Editorial Brasileiro” da Câmara Brasileira do Livro). Talvez com análises das políticas de leitura e das políticas de educação possamos en-contrar resultados que importem para dis-cutir as desigualdades raciais. Na ausência de tais dados, podemos inferir: nos diver-sos espaços sociais de produção, avaliação e distribuição dos livros as desigualdades raciais são importantes: teremos sobrer-representação de negros nas esferas de apoio (cuidando do café, da limpeza e da segurança) e sub-representação nas esfe-ras de produção, diretamente proporcional às hierarquias nos diferentes espaços: edi-tores, diretores de arte, redatores-chefe, projetistas, leitores especialistas, copides-ques, revisores e revisores de provas, com-positores, artistas de layout, fotógrafos, impressores, encadernadores, ilustradores e autores, são homens ou mulheres, são brancos, negros ou indígenas? As mesmas perguntas devem ser feitas para gestores de políticas do livro, de políticas educacio-nais, processos e comissões de avaliação, sindicatos e associações de editores, de autores e de ilustradores. Por que importa quem produz?

Podemos dizer, taxativamente, que nenhum escritor poderá criar um universo literário significativo, orgâ-

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nico e coerente em suas coordena-das básicas (estilísticas e estruturais) e em sua mensagem, se não tiver a orientar sua escritura uma determi-nada consciência de mundo ou certa filosofia de vida (COELHO, 1995, p. 50. Destaque da autora).

A produção de literatura infantoju-venil elegeu temas brasileiros e nacionalis-tas, mas marcadamente numa perspectiva única de mundo, por isso eurocentrada, quando não eurocêntrica. Interessantes movimentos de cisão ocorrem atualmen-te. Venâncio (2009) identificou em obra do escritor indígena Daniel Munduruku narra-tiva que alia qualidades estéticas, de frui-ção/prazer, com ruptura de percepção de mundo. Ou seja, outra história, um ir além de visão única de mundo, muito além da estereotipia do indígena Tibicuera insis-tentemente repetida em minha formação escolar. Outra voz e perspectiva hoje fala aos jovens leitores. Nesses dias, o mesmo escritor esforça-se na promoção e divul-gação do 7º Concurso Tamoios de Textos de Escritores Indígenas, promovido pela Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil (FNLIJ) e pelo Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI). No-vas vozes estão por vir.

Em relação aos autores de Litera-tura Infantojuvenil sujeitos de enunciação que se afirmam e se querem negros, com temática, linguagem e busca de público leitor (conforme os critérios estabeleci-dos por Duarte, 2008, discutidos anterior-mente), observo também movimentações importantes. Afirmamos em outro escrito que “no âmbito da literatura infantojuve-nil, não se nota a mesma movimentação da literatura adulta, que, mesmo parcimo-niosamente, ostenta produção de escrito-res negros” (SILVA; ROSEMBERG, 2008, p. 104). Talvez falte a continuidade de déca-das de movimentação como nos Cadernos negros, mas a afirmação de uma negri-tude na literatura infantojuvenil brasileira

vai bastante além dos reconhecidos e pre-miados Geni Guimarães e Joel Rufino dos Santos. Merecem também alusão Heloisa Pires Lima, Edmilson de Almeida Pereira, Rogério Andrade Barbosa (e desculpas aos esquecidos), que fazem parte de um mo-vimento que se amplia e se acentua, um tanto impulsionado pela Lei 10.639/03. Ganham corpo e, cada vez mais, reverbe-ram e se expressam as vozes africanas e africanas da diáspora que nos compõem, no caminho e na busca das mil e uma his-tórias. Novamente as palavras de Chima-manda são esclarecedoras: a esperança é que os livros de autores africanos (e afri-canos da diáspora, e indígenas), mesmo poucos e difíceis de encontrar, possibilitem uma mudança em nossa percepção men-tal, que possamos nos identificar na lite-ratura, acreditar que possamos existir no plano simbólico (para além das posições de subalternidade), nos salvem de ter uma história única daquilo que os livros são.

Para além dessas possíveis ressigni-ficações, formados que somos pelo racismo ambíguo e sob a égide da branquidade nor-mativa e do mito da democracia racial, den-tre as múltiplas vozes que nos compõem está a do colonizador e permanece que “al-guns intentos de produzir literatura infan-tojuvenil antirracista ainda são desajeita-dos ou inadequados” (SILVA; ROSEMBERG, 2008, p. 104). As contradições se expres-sam de forma múltipla, por exemplo, com estereotipias em obras de autores e/ou ilus-tradores que têm intenções antirracistas. Em produções de escritores consagrados que se dedicaram à “desconstrução de este-reótipos negativos dos negros”, observa-se, por exemplo, que a atribuição de beleza e positividade à cor dos personagens de Me-nina bonita do laço de fita e O menino mar-rom convivem com a idealização da relação inter-racial em ambas as obras (FRANÇA, 2006) e com a presença de formas de hie-rarquização branco/negro mais elaboradas em Menina bonita (PESTANA, 2008).

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Teria ainda que tratar de dois temas: a obra de Monteiro Lobato, escritor da pri-meira metade do século XX que continua sendo dos mais lidos no país e que é, a um tempo, revolucionária, ao passo que no que se refere à raça (e a gênero tam-bém) é conservadora no pior sentido, pois os discursos trazem muitas marcas de ra-cismo, em formas implícitas e explícitas. Pela envergadura do autor, mereceria uma discussão aprofundada, para a qual não disponho de espaço nesse texto, apresen-tando somente este alerta. Outro ponto é a afirmação de Chimamanda Adichie de que particularmente as crianças são impressio-náveis face a uma história: o que as pes-quisas dizem disso?

Algumas palavras finais

Permanecem desafios diversos para as reflexões e para a pesquisa. Na análise dos textos propriamente ditos, de como as narrativas, personagens e ilustrações pro-duzem e/ou reproduzem formas simbólicas que hierarquizam a brancos de um lado, negros(as) e indígenas de outro, ou em que medida operam para a emancipação e para o respeito à diferença. Nos diversos âmbitos de produção e avaliação, como es-tão distribuídos os atores sociais e se estão escalonados por raça, gênero, sexualidade, idade e classe; quais as possíveis consequ-ências em termos de visão de mundo, he-gemônica ou não, nos discursos. Especial atenção às autorias, que perspectivas são hegemônicas e/ou contra-hegemônicas.

Faz falta também o diálogo, dentro da própria academia, com as áreas de li-teratura e literatura infantojuvenil e com a complexa rede de atores sociais envolvidos nos processos de produção, avaliação, di-fusão e leitura dos livros. Para isso, a con-cepção de racismo como estruturante, no plano estrutural e no plano simbólico, aju-da a minorar possíveis posições de defesa.

Em outras palavras, não se trata de acusar de racista a fulano ou beltrano, dado que o racismo constitui a todos nós e os nossos discursos. Trata-se de enfrentarmos o tema numa postura crítica e aberta, ao invés de esconder a cabeça na areia como fazemos muitas vezes (diversas delas como estraté-gia de manutenção de poder).

Além de tudo isso, continuam nos-sas tarefas zumbíleas. No campo de inter-pretação das formas simbólicas, temos ou-tro ponto de inflexão e de complexidade. As leituras possíveis e vadias são sempre presentes. Em contextos específicos po-dem se manifestar formas de resistências aos discursos colonizadores. Em outros, textos de expressão da diferença e da di-versidade podem gerar incompreensões e eliciar comentários racializadores ou racis-tas. Os resultados de Araujo (2010) contêm passagens deste tipo, nas quais a diversi-dade de adereços de mulheres africanas é discursivamente construída como símbolo de feidade e de “primitividade”. O papel de mediador de professores é bastante atuan-te, tanto com a possibilidade de, a partir de discursos racistas, promover a capacidade de análise crítica, quanto de, partindo de narrativas que propõem e promovem a di-versidade, subverter e expressar discursos, nas salas de aula, racistas (ou sexistas), conforme apontam os resultados de Oli-veira (1992), Lopes (2002) e Araujo (2010). Portanto, a formação de professores mais uma vez reveste-se de importância.

No plano da pesquisa, no plano da produção, divulgação e interpretação de formas simbólicas via discursos da litera-tura, da literatura infantojuvenil e de livros didáticos, o grande desafio é a recriação dos discursos, incluindo outras visões de mundo. Em especial, superar as contínu-as formas de atualização das hierarquias entre brancos e negros, principalmente a branquidade normativa, a norma de huma-nidade branca que, silenciosa, insistente e insidiosamente se mantém hegemônica.

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68 Negros e brancos na literatura e literatura infantojuvenil

Numa perspectiva de emancipação e liberdade, novos discursos precisam de mais espaço e importância social.

Os Sonhos

Os sonhos foram banhados nas águas da miséria e derreteram-se.

Os sonhos foram moldados a ferro e a fogo e tomaram a forma do nada.

Os sonhos foram e foram. Mas crianças com bocas de fome ávidas, ressuscitaram a vida brincando anzóis nas correntezas profundas.

E os sonhos, submersos e disformes avolumaram-se engrandecidos anelando-se uns aos outros pulsaram como sangue-raiz nas veias ressecadas de um novo mundo.

Conceição Evaristo

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Representações midiáticas de negros e

brancos no Brasil

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Introdução

Nesse texto, buscaremos apresen-tar, de forma breve, algumas das formas de inclusão/exclusão do negro na mídia impressa paranaense. A proposta é discutir como essa mídia tem atuado de modo a desprezar a presença negra no Estado do Paraná, ao mesmo tempo em que afirma a presença branca como padrão de raciona-lidade, beleza e humanidade.

Em busca do negro na mídia

No contexto sócio-histórico contem-porâneo, as relações raciais no Brasil, prin-cipalmente as que envolvem dois dos prin-cipais grupos de cor da população brasilei-ra, brancos e negros/as2, vêm sendo obje-to de intensa discussão em vários setores da sociedade, em especial na política, na academia e na mídia. Na discussão pare-ce existir consenso quanto à existência de desigualdades sociais entre os dois grupos de cor; o que não existe é consenso sobre as causas e soluções para tais desigualda-des sociais que, mesmo mais de um sé-culo após o final da escravidão, conti nuam separando negros e brancos. Setores da sociedade civil, do movimento negro e o Estado vêm trabalhando para que o projeto de uma nação que valorize a diversidade

racial e cultural possa realmente sair do plano das ideias e/ou do discurso para o plano das relações sociais e finalmente se efetive.

A mídia nacional, historicamente, tem atuado geralmente de dois modos em relação ao grupo negro: na exposição este-reotipada do negro/a3, como aponta Mar-tins (2000) ao falar da publicidade nacional da maior parte do século XIX, que trazia o grupo negro como mercadoria do período escravocrata, ou da publicidade do sécu-lo XX, que trazia o negro associado a po-sições subalternas, de delinquência e, no caso dos estereótipos positivos, ligado às expressões da cultura popular brasileira (tais como carnaval e futebol); e na cons-trução de um país em que o branco é re-ferência de humanidade, ao anular a exis-tência do grupo negro, tratando-o como outro diante dos brancos, que tendem a ser considerados modelos de beleza, como aponta Iara Beleli (2005) ao falar da posi-ção de publicitários acerca dos modelos escolhidos para campanhas. Diante desse quadro, pesquisadores das relações raciais no Brasil e o movimento negro têm defen-dido que a mudança da situação subalter-na do negro no Brasil, país no qual corres-ponde a praticamente metade da popula-ção (IBGE, 2006), estaria atrelada a uma mudança no modo como a mídia nacional apresenta o negro. A análise é que trans-

1 Mestre em Educação pela UFPR; doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. Pesquisador colaborador no NEAB-UFPR.

2 Neste texto, o termo negro equivale ao conjunto da população brasileira classificada como pretos e pardos pelo IBGE (IBGE, 2006).

3 No restante do texto será utilizado o genérico masculino, como forma de tornar mais fluida a lei-tura.

Desigualdades raciais na mídia

impressa paranaense

Wellington Oliveira dos Santos1

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formações estruturais (socioeconômicas) são necessárias para vencer as distâncias entre negros e brancos na sociedade, uma vez que o negro apresenta piores índices de educação, saúde e renda que o branco (PAIXÃO; CARVANO, 2008), mas essas mu-danças isoladamente não bastam se deter-minadas práticas culturais (ou simbólicas) que ocultam ou estereotipam a participa-ção do grupo negro na sociedade não fo-rem modificadas.

Intelectuais e ativistas do movimen-to negro há algumas décadas têm denun-ciado as desigualdades simbólicas existen-tes na apresentação dos negros nas várias mídias. Tais desigualdades são marcadas pelo racismo de status nacional, segundo Antônio Guimarães (1997) e por práticas que contribuem para a manutenção do grupo racial na base da sociedade. A mo-bilização desses grupos intelectuais e ati-vistas, que representam “minorias” (de po-der), começou a ter resultados expressivos na última metade do século XX. As mobi-lizações dos grupos representando as mi-norias podem ser consideradas lutas pelo direito à diferença ou reconhecimento. Tais lutas, encabeçadas pelos movimentos so-ciais, ganharam tanto destaque quanto as lutas pela igualdade, encabeçadas pela classe trabalhadora, o que não significa que as relações de produção do sistema capitalista não sejam relevantes para en-tendermos o tecido social, e sim que não são as determinantes de todas as relações de poder existentes (THOMPSON, 1995).

Com a reabertura política dos anos de 1980, e com maior representação no legislativo, propostas de leis foram feitas para que uma maior presença de negros na mídia fosse garantida. Isso não seria possível no período ditatorial, uma vez que

não interessava ao governo militar desta-car qualquer tipo de desigualdade entre os brasileiros. Em 1994, por exemplo, a en-tão senadora Benedita da Silva apresentou projeto de lei propondo a obrigatoriedade de 40% de negros em comerciais governa-mentais e em produções nacionais televi-sivas, como novelas e minisséries, provo-cando polêmica (ARAÚJO, 2000).

No dia 20 de novembro de 1995, na “Marcha Zumbi dos Palmares – Con-tra o racismo, pela cidadania e a vida”, o Movimento Negro brasileiro entregou ao então presidente da República Fernando Henrique Cardoso um documento4 com as suas principais reivindicações, denuncian-do o racismo, defendendo a inclusão dos negros na sociedade brasileira e apresen-tando propostas concretas de políticas pú-blicas. A escolha da data não poderia ser mais oportuna: tratava-se da celebração dos 300 anos da morte de Zumbi dos Pal-mares5, símbolo maior da resistência dos negros brasileiros.

Entre as propostas contidas no pro-grama de superação do racismo e da desi-gualdade racial estavam aquelas voltadas para a cultura e para a comunicação. Elas cobravam o papel do Estado em dar mais visibilidade e incentivo a manifestações da cultura negra, além da preservação desta, e garantir a representação proporcional dos grupos étnico-raciais brasileiros nas campanhas de comunicação do governo e de entidades que com ele mantenham re-lações econômicas e políticas. Assim como as demais propostas do documento, essas se apoiam na interpretação da Constituição brasileira de 1988 que, ao tratar a igualda-de, impede o tratamento desigual, assim como permite a adoção de medidas para criar condições materiais de igualdade.

4 Texto disponível em: <http://www.leliagonzalez.org.br/material/Marcha_Zumbi_1995_divulgacaoU-NEGRO-RS.pdf>. Acesso em: 19/01/2011.

5 Foi em 20 de novembro de 1695 que Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência e luta dos ne-gros pela liberdade no Brasil, foi assassinado.

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Wellington Oliveira dos Santos 75

Na ocasião, o então presidente da República criou, por meio de decreto pre-sidencial, um Grupo de Trabalho Intermi-nisterial (GTI) com a finalidade de desen-volver políticas para a valorização da popu-lação negra. Segundo Paulo Silva e Fúlvia Rosemberg (2007), algumas das principais ações foram: inclusão de maior número de negros na publicidade do Governo Federal e de empresas estatais; valorização, por meio de financiamento, de programação que valorize a população negra; e apoio de iniciativas aos profissionais negros da mídia.

O ano de 1995 também ficou mar-cado como o ano em que o governo brasi-leiro reconheceu que vivemos em um país estruturalmente racista, assumindo sua dí-vida histórica para com os negros (SILVA; ROSEMBERG, 2007). Esse reconhecimento foi uma vitória do movimento negro, pro-duto de reivindicações que se iniciaram nos anos de 1980 (em torno do centenário da abolição da escravatura, em 1988). Ape-sar disso, a resistência a políticas racialis-tas para os negros se manteve na socieda-de civil, que teve como porta-vozes alguns intelectuais e os meios de comunicação de massa, até meados de 2001, quando se re-aliza a Conferência de Durban.

A III Conferência Mundial de Comba-te ao Racismo, Discriminação Racial, Xeno-fobia e Intolerância Correlata, realizada na cidade de Durban, África do Sul, em 2001, foi outro momento importante na mobili-zação em torno da representação do negro na mídia. Lamentando que certas mídias, ao divulgarem imagens estereotipadas ne-gativamente de indivíduos e grupos, con-tribuem para o racismo e a discriminação, a conferência reconheceu que os meios de comunicação devem representar a di-versidade de uma sociedade multicultural e desempenham papel importante na luta

contra o racismo. O plano de ação volta-do para a mídia convidava os Estados e o setor privado a adotarem políticas contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata na mídia (MOURA; BARRETO, 2002) e a adotarem medidas concretas para incentivar o acesso das co-munidades marginalizadas às mídias tradi-cional e alternativa.

Por sua vez, o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/00, de autoria do depu-tado federal Paulo Paim), previa a imple-mentação de ações afirmativas nas áreas de educação, saúde, lazer, esporte, cultu-ra, meios de comunicação de massa, entre outras (SILVA Jr., 2003). No caso especifico da televisão, ele previa que 25% do elen-co de filmes e programas seriam compos-tos por afrodescendentes. Também previa que a herança cultural e a participação dos negros na história do país seriam garanti-das pela produção veiculada pelos órgãos de comunicação. Apesar de muitos pontos do Estatuto não terem sido aprovados, o fato de ele permanecer em discussão du-rante quase uma década já pode ser con-siderado uma vitória do movimento negro, ainda que parcial, pois até pouco tempo projetos de lei que promoviam igualdade racial afundavam no início do processo le-gislativo, quando passavam pela Comissão de Constituição e Justiça. Segundo Hédio Silva Jr. (2003), o argumento utilizado era que essas propostas eram incompatíveis com o princípio de igualdade contido na Constituição de 1988 (de acordo com o autor, esse argumento é apoiado mais em fatores ideológicos do que jurídicos).

As reivindicações para aprovação de legislação específica6, assim como denún-cias do movimento negro contra a presen-ça de estereotipias nos discursos midiá-ticos, tiveram influência no modo como personagens negros são representados,

6 Poderíamos incluir aqui também as inúmeras tentativas de formulação de algumas diretrizes do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH I, II e III).

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76 Desigualdades raciais na mídia impressa paranaense

embora ainda estejamos longe de uma de-mocracia racial no campo simbólico. A se-guir, apresentaremos uma breve revisão de literatura contemporânea sobre o negro na mídia impressa.

Pesquisas sobre o negro na mídia impressa

Nas pesquisas sobre a presença de negros na mídia nacional, estudos recentes indicam que esses se encontram ausentes ou sub-representados. Por exemplo, Paulo Vaz e Ricardo Mendonça (2002) apresenta-ram resultados de uma pesquisa acerca de como os negros aparecem nas fotografias dos jornais impressos Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de Minas. Eles escolheram uma amostra aleatória de 1º de junho a 19 de julho do ano de 2001 (49 dias), esco-lhendo, a cada semana, um dia de coleta das edições dos três jornais. Segundo os pesquisadores, há uma invisibilidade do negro em seções dos jornais impressos que tratam de temas relacionados a po-sições de poder, tais como as seções de Economia, Política e nas colunas sociais, o que nós interpretamos, entre outras coi-sas, como parte da hierarquização racial brasileira que considera os traços negros de baixo status para ocuparem essas se-ções (GUIMARÃES, 1997). Apontam que existem exceções, “fendas simbólicas”, ou seja, pontos em que o negro aparece nes-ses espaços, o que não desfaz a sub-repre-sentação desse grupo racial. O negro apa-receu de forma contundente relacionado ao sofrimento (ex.: reportagem que falava do grande número de miseráveis da capi-tal mineira, que utilizou uma mulher negra como símbolo) e a violência, seja como au-tor, seja como vítima. Enquanto os negros apareceram de forma intensa em espa-ços de delinquência e quase desaparece-ram dos pontos de poder, os personagens brancos apareceram tanto em espaços de

prestigio social, como maioria esmagado-ra, como em espaços de delinquência.

Rogério Christofoletti e Marjorie Basso (2007) apresentaram estudo sobre a participação de personagens negros em fotografias nos principais jornais impres-sos do Estado de Santa Catarina: A Notícia, Diário Catarinense e Jornal de Santa Ca-tarina. Pertence ao senso comum a ideia de que o Estado catarinense é um Esta-do brasileiro branco, quase europeu, com pouca ou nenhuma participação de outros grupos raciais (o mesmo tende a ser dito acerca dos outros Estados da região sul). Entretanto, os dados da PNAD 2006 apon-tam que a presença de negros no Estado corresponde a 12,5% da população total e não pode ser ignorada. Como amostra, uti-lizaram 777 edições desses jornais, no pe-ríodo de agosto de 2005 a maio de 2006. A presença de negros foi verificada na pesquisa, entretanto, essa foi menor que a participação dos negros na população do Estado: foram publicadas 53.634 fotos nas edições analisadas, das quais ape-nas 4.995 traziam personagens negros. A maioria (69,50%) dessas fotografias com negros estava nas seções de esporte e cul-tura/variedades, enquanto que nas seções consideradas nobres, tais como Econo-mia, Política e Coluna Social, a presença de negros correspondeu a 6,18%. Certa regularidade na participação de negros foi observada na amostra durante os meses analisados, com exceção de um aumento do número de negros no mês de fevereiro, o que os pesquisadores atribuem ao mês do carnaval. Segundo os pesquisadores, a baixa participação de negros é resultado de mecanismos sutis de segregação exis-tentes na mídia catarinense. A imprensa catarinense pouco contribuiria para uma democracia midiática, uma vez que não contempla a diversidade étnica, religiosa, ideológica e cultural do Estado (CHRISTO-FOLETTI; BASSO, 2007).

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Em outra pesquisa, Laura Corrêa (2006) realizou estudo sobre a represen-tação do negro em dois anúncios de tele-fonia divulgados em revistas semanais de informação do Estado de Minas Gerais. Em um dos anúncios, um homem negro aparece ocupando a posição central, numa paisagem natural, entre dois homens bran-cos. Esse espaço valorizado, entretanto, abre espaço para a estereotipia, pois o ne-gro é o único dos personagens que está sem camisa, com os músculos destaca-dos. Apesar de ocupar a posição central da peça, não é o negro quem comanda a ação, pois os olhares de todos os perso-nagens são guiados pela direção em que um dos personagens brancos, sentado, aponta. A autora interpretou esse persona-gem como uma representação do branco enquanto ser intelectual, a estudar a natu-reza, enquanto que ao negro cabe o papel de entrar em contato com a natureza se desfazendo de suas vestes e exibindo for-ça e sexualidade. Também diríamos que se trata de um exemplo de branquidade nor-mativa (GIROUX, 1999), em que o branco aparentemente divide espaço com outras raças, enquanto continua a ser o referen-cial de humanidade. Uma das estratégias do discurso do poder (e do senso comum), historicamente, é relacionar aos homens brancos a razão e a atividade intelectual, enquanto que as mulheres e os não bran-cos são relacionados aos instintos, à natu-reza e às emoções (CORRÊA, 2006). Para a autora, a maneira pela qual os corpos negros são expostos, em contraste com a imagem dos corpos brancos, abre espaço para reflexões sobre estereótipos raciais e relações de poder reafirmadas por essas representações.

Paulo Silva e Fúlvia Rosemberg (2007) realizaram revisão de literatura so-

bre o discurso racial na mídia brasileira, analisando pesquisas nos seguintes cam-pos: literatura e cinema, imprensa, televi-são, literatura infantojuvenil e livro didá-tico, que foram publicadas entre 1987 e 2002. Eles sistematizaram os resultados encontrados na pesquisa em quatro pon-tos: a) a evidente sub-representação do negro nas diversas mídias; b) o constante silenciamento das mídias sobre as desi-gualdades raciais, que, segundo os auto-res, exerce um duplo papel: negar os pro-cessos de discriminação racial, buscando ocultar a racialização das relações sociais, ao mesmo tempo em que propõe uma ho-mogeneidade cultural ao brasileiro; c) o branco é tratado como representante “na-tural” da espécie humana; d) a estereotipia na representação do homem e da mulher negra, adulto ou criança, é recorrentemen-te assinalada nas diversas mídias. Segundo os autores, as pesquisas relatam modifica-ções nos discursos sobre negros, mas es-sas modificações ainda são limitadas.

As pesquisas com jornais paranaenses

Apresentamos aqui alguns resul-tados de pesquisas inseridas no trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro--Brasileiros (NEAB) da UFPR que têm como objeto a representação do personagem negro na mídia impressa paranaense. Nos anos de 2006 e 2007, os bolsistas do NEAB organizaram um banco de dados que tem como fonte três jornais impressos de circu-lação na grande Curitiba: Gazeta do Povo, O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná7. Na leitura completa dos jornais, foram se-lecionadas e arquivadas em categorias pre-determinadas aquelas unidades de infor-

7 Segundo Zuniga (2000), juntamente com o jornal Folha do Paraná, esses são os quatro mais im-portantes do Paraná, não apenas pelo volume de tiragens, mas também por estarem presentes em quase todo o Estado.

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mação que traziam o personagem negro textualmente (palavras que caracterizem certo personagem como moreno, negro, mulato, entre outros, e referências a perso-nagens da cultura popular brasileira reco-nhecidos como negros, como o Saci), em fotografias, ilustrações e outras imagens; e em contextos que se referem à cultura afro--brasileira (como as religiões de matriz afri-cana e as festas populares). Paralelamente, um banco de dados da publicidade desses jornais também foi organizado.

Na análise das edições do ano de 2006 do jornal O Estado do Paraná8, foram contadas 2.000 unidades de informação com a presença de negros. Essas unida-des de informação foram organizadas em categorias de análise, como resumidas na Tabela 1 abaixo:

TABELA 1 – CATEGORIAS UTILIZADAS E FRE-QUÊNCIA DE UNIDADES DE IN-FORMAÇÃO ENCONTRADAS NA AMOSTRA

Categoria frequência %comportamento 5 0,25África 7 0,35políticas afirmativas 11 0,55coluna social 20 1educação 22 1,1drogas 23 1,15religião 23 1,15ambiente 28 1,4economia e trabalho 35 1,75direito e justiça 36 1,8saúde 40 2mídia 59 2,95violência 73 3,65desenhos e quadrinhos 75 3,75cultura 82 4,1política 93 4,65publicidade com negros 181 9,05esportes 1.167 58,35sem categoria 20 1total 2.000 100

FONTE: Tabulações do autor.

A categoria que contou com mais unidades de informação foi a categoria es-porte. Das 2.000 unidades de informação, 1.167 (58,35%) pertencem a essa catego-ria. Esses resultados são similares aos en-contrados por Christofoletti e Basso (2007) com os jornais de Santa Catarina – um dos três Estados da região sul. O jornal O Esta-do do Paraná conta com a mesma equipe editorial da Tribuna do Paraná e, por essa razão, a ênfase que o segundo dedica ao esporte, por ser um jornal popular, é re-fletida no jornal O Estado (ZUNIGA, 2000). Outro ponto importante é que o ano de 2006 foi ano de Copa do Mundo – e a se-leção brasileira de futebol, com diversos jogadores negros, foi destaque nas ima-gens do jornal durante meses. Guimarães (1997) afirma que em certos setores so-ciais os negros são encontrados com maior frequência. Podemos dizer que o setor es-portivo – e principalmente o futebolístico – é o que permite a maior participação de personagens negros. Acreditamos que a superexposição de negros nas colunas fu-tebolísticas, combinada com a subexposi-ção desses em outras colunas (principal-mente as relacionadas às profissões mais intelectualizadas), age de forma a reificar (THOMPSON, 1995) espaços ocupados por negros (e em consequência por brancos) na sociedade brasileira.

Publicidade (9,05%) e política (4,65%) ocuparam o segundo e o terceiro lugares no número de unidades de infor-mação, respectivamente. Em análise qua-litativa, pudemos observar que as publi-cidades que traziam personagens negros muitas vezes os traziam em contextos gru-pais, com personagens brancos, forman-do a diversidade racial exigida nas peças publicitárias de empresas estatais, ou ne-

8 De acordo com Zuniga (2000), a primeira edição d’O Estado do Paraná data de 1951. Em 1964, Paulo Pimentel, político conservador que ocupou vários cargos no Paraná, adquire o jornal, sendo o pro-prietário do mesmo até 2011. No início do ano de 2011, o jornal deixou de circular na forma de periódico impresso, passando a veicular suas notícias somente em portal de notícias. No mesmo ano foi adquirido pelo Grupo Paranaense de Comunicação (GRPCom), dona do Jornal Gazeta do Povo e da RPC TV.

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gros em publicidades de produções cine-matográficas norte-americanas – como os filmes do ator Will Smith (observamos que o negro tendeu a aparecer individualmente com mais frequência em casos como esse). Em política, observamos aspecto similar: muitas vezes, políticos negros apareciam em imagens junto de outros políticos bran-cos – a não ser as unidades de informação com políticos negros estrangeiros, tanto dos Estados Unidos (representados muitas vezes por uma mulher, a então braço direi-to da presidência Condoleezza Rice) quanto da África. No caso dos políticos brasileiros, apesar de estarem presentes nas fotogra-fias que acompanhavam os textos jornalís-ticos, poucas vezes os políticos negros ti-nham voz nesses textos. Nos casos em que a secretária de estado Rice aparecia, muitas vezes a parte textual se dirigia diretamente a ela e lhe dava voz, com citações diretas de seus discursos. Os textos em nenhum momento destacavam a cor-etnia da mi-nistra. As fotografias valorizavam a ministra na maior parte dos casos, colocando-a em foco, e os textos lhe davam o status de re-presentante de seu país diante do mundo. A falta de situações em que políticos negros (principalmente brasileiros) são apresenta-dos dessa forma na mídia nacional, acredi-tamos, acaba por auxiliar na distribuição de poder na sociedade brasileira.

Em cultura (4,1%), a presença de negros na maior parte foi consequência da participação de músicos negros, o que por um lado valoriza a tradição musical negra ao redor do mundo, como quando o mú-sico americano Chuck Berry foi destacado como criador do rock. A cultura largamen-te influenciada pelos negros brasileiros foi destacada em alguns momentos, como nas manifestações do carnaval. Vale dizer que o carnaval foi um exemplo de manifestação cultural apresentado muitas vezes como uma manifestação da cultura nacional – do brasileiro como um todo. Por outro lado, ainda que o espaço cultural seja uma fenda

simbólica, como apontam Vaz e Mendonça (2002), que permite maior participação de negros, acreditamos que a grande partici-pação de negros em espaços como este e o esportivo acaba por reforçar estereótipos que, como aponta Corrêa (2006) em sua análise da publicidade, o relacionam aos instintos, à natureza e às emoções, o que, em uma sociedade que valoriza a razão, acaba no final das contas deixando-o em status inferior ao do branco.

A categoria violência (3,65%) con-tou com unidades de informação em que personagens negros apareciam ou como bandidos portando armas, ou algemados e exibidos pela polícia, ou como corpos es-tendidos no chão, vítimas de assassinatos ocorridos na maioria das vezes na Região Metropolitana de Curitiba, ou mesmo tran-seuntes convivendo com a guerra ao trá-fico nos morros da cidade Rio de Janeiro. Descrições textuais de criminosos procu-rados também foram encontradas – tais descrições evitavam usar o termo negro, preferindo descrever os criminosos como morenos, como no exemplo seguinte:

FIGURA 1 – Exemplo de unidade de informação da categoria violência que descreve o negro textualmente da seguinte forma:

“[...] O acusado tem pele morena, cerca de 30 anos, 1,60m, e cabelos escuros. O que chama a atenção é que ele tem olhos verdes e sotaque nordestino, com fala semelhante ao do lutador de boxe Maguila”. FONTE: O Estado do Paraná, 16 de dezembro de 2006, p. 10.

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O uso do termo moreno na par-te textual, combinado com um retrato fa-lado (imagem), pode ser uma espécie de dissimulação que oculta processos sociais existentes, pois destacar a cor do persona-gem como negra poderia significar admitir as desigualdades raciais existentes – ain-da que a imagem apresentada seja a de um negro, com os traços do rosto apre-sentados quase de maneira caricaturada. A apresentação de negros em casos como esse acaba por auxiliar na manutenção da hierarquização racial presente na socie-dade brasileira: é “normal” encontrarmos negros nessas reportagens. Através da es-tigmatização, o grupo racial negro perde simbolicamente o direito de exercer sua humanidade (THOMPSON, 1995).

A categoria religião (1,15%) foi a que trouxe unidades de informação contendo tanto manifestações religiosas chamadas de afro-brasileiras quanto casos de ma-gia negra e macumba. Em alguns casos, negros apareceram em unidades de infor-mação relacionadas às outras religiões, o que causa-nos estranheza. Por que será que em um país em que a maior parte da população negra é cristã, seja compondo a maioria católica, seja a emergente pen-tecostal, as manifestações religiosas rela-cionadas à população negra muitas vezes se restringiram às citadas? Inferimos que a mídia nacional atua de maneira ideológica (THOMPSON, 1995), isto é, ajuda a man-ter as relações de poder existentes entre brancos e negros na sociedade, quando re-laciona o negro à magia negra – conside-rada magia maligna –, colocando-o como potencialmente perigoso para a sociedade.

Em educação (1,1%), observamos que os negros muitas vezes eram destaca-

dos em contextos de pobreza ou necessi-tando de amparo social. Não contestamos que parte da população negra do Brasil se encontra nessas situações, tendo aces-so ao ainda precário ensino público, mas acreditamos que parte da ainda existente exclusão do negro de áreas de prestígio acadêmico está relacionada a uma apre-sentação estereotipada desse nas produ-ções simbólicas, que reifica desigualdades existentes entre negros e brancos, pois na hierarquia racial (GUIMARÃES, 1997) ne-gros são superexpostos em espaços onde supostamente prevalece o corpo, como o futebol e a dança, mas são sub-represen-tados em espaços onde prevalece a razão. Já as ações afirmativas (0,55%), tanto na educação quanto no mercado de traba-lho, constantemente foram tratadas como “polêmicas”, o que pode indicar uma bus-ca por uma homogeneidade do brasileiro, algo que a mídia com frequência faz de acordo com a análise de Silva e Rosemberg (2007).

Além de pesquisarmos os espaços ocupados por negros, realizamos também pesquisas que analisavam a presença de brancos e negros. Uma delas foi a pesqui-sa realizada com os seguintes suplemen-tos dominicais de dois jornais impressos paranaenses: Viver Bem, do jornal Gazeta do Povo9, e Revista, do jornal O Estado do Paraná10. São cadernos que têm, presumi-velmente, o público feminino como prin-cipal alvo e tratam de assuntos relaciona-dos à família paranaense. Além disso, os jornais de domingo tendem a ser os mais lidos, pois as vendas avulsas aumentam nesses dias, parte do hábito mantido por muitas pessoas de ler os jornais domini-cais (ZUNIGA, 2000). Selecionamos como

9 A primeira edição da Gazeta do Povo data de 1919, sendo o grande jornal mais antigo da cidade de Curitiba (ZUNIGA, 2000). Tende a ser descrito como um jornal conservador que apoia o Estado e o capital.

10 Os mais bem-sucedidos jornais impressos do Paraná fazem parte de grandes grupos midiáticos. A concentração das diversas formas de mídia (televisão, jornais impressos, emissoras de rádio, revistas, etc.) nas mãos de poucos grupos já era algo observado há décadas, e Thompson (1995) alertava para a dimi-nuição do poder de escolha a que estaríamos sujeitos em um mundo onde poucos controlam os principais veículos da mídia.

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amostra dois meses de edição de cada um desses suplementos: dezembro de 2007 e fevereiro de 2008 do Revista (totalizando 9 edições) e novembro de 2008 e janeiro de 2009 do Viver Bem (totalizando 9 edições). O objeto de análise foram os personagens humanos contidos em ilustrações (carica-turas, fotografias, charges e outros) encon-trados nesses suplementos.

Contamos 743 personagens na amostra selecionada. Destes, 337 nas pá-ginas do suplemento Revista e 406 nas páginas do suplemento Viver Bem. Entre os 743 personagens contados, o número de personagens brancos foi de 688, cor-respondendo a 92,6% do todo; o número de personagens negros (pretos e pardos) foi de 31, correspondendo a 4,1% do todo; personagens amarelos somaram 5, corres-pondendo a 0,7% do total. Não encontra-mos na amostra personagens indígenas. No caso dos personagens-grupo, encon-tramos 15 nos quais mais de uma cor--etnia estava presente (no caso, brancos e negros), correspondendo a 2,0% do todo. A taxa de branquidade, isto é, a divisão do número de personagens brancos pelo nú-mero de personagens negros, foi de 22,1. A sub-representação do negro pode indi-car que ele é tratado, em nossa socieda-de, como um grupo de status social baixo (GUIMARÃES, 1997) em relação ao grupo branco, o que dá o privilégio a este último de ser mais representado que o negro na mídia, principalmente em uma mídia que trata de assuntos relacionados a moda, be-leza, comportamento e saúde.

O suplemento que apresentou maior participação de personagens ne-gros, percentualmente, foi o Revista, do jornal O Estado do Paraná: dos 337 perso-nagens contados, 308 (91,4%) eram bran-cos e 14 (4,2%) negros, com uma taxa de branquidade de 22, praticamente a mes-ma da amostra geral. O suplemento Viver Bem, do jornal Gazeta do Povo, apesar de contar com um número maior de perso-

nagens (entre outras coisas, provavelmen-te por possuir mais páginas que o outro suplemento analisado), percentualmente apresentou menor participação de perso-nagens negros em relação ao outro suple-mento analisado: de 406 personagens, 380 (93,6%) eram brancos e 17 (3,0%) negros, com uma taxa de branquidade de 22,3, um pouco acima da taxa de branquidade da amostra como um todo. Com relação aos resultados referentes à participação de negros e brancos em cada caderno, verifi-camos que percentualmente o número de negros no suplemento Viver Bem foi me-nor que no suplemento Revista, apesar de este último contar com um número menor de personagens humanos. Isso pode indi-car que não é aumentando a participação de personagens humanos que se aumenta, percentualmente, a participação de negros – é necessário um aumento significativo na participação do grupo racial e esse aumen-to pode ou não ser acompanhado com um maior acréscimo de personagens huma-nos.

Esperávamos uma participação maior de personagens negros na amostra do suplemento Viver Bem, pois um dos me-ses selecionados foi novembro de 2008. O mês de novembro é o mês em que se cele-bra, desde 1995, o Dia da Consciência Ne-gra, no dia 20. Além disso, em novembro de 2008 um fato amplamente difundido pela mídia nacional e internacional ocor-reu: a eleição do primeiro presidente ne-gro dos EUA. A amostra de novembro apre-sentou maior participação de negros: dos 17 personagens negros da amostra desse suplemento, 12 apareceram nas edições de novembro. Tal participação, entretanto, está mais vinculada aos Obama – uma fa-mília negra estrangeira – que ao 20 de no-vembro, em nossa opinião. Possivelmente, abordar diretamente o Dia da Consciência Negra seja reconhecer desigualdades ra-ciais, o que Silva e Rosemberg (2007) afir-mam que a mídia nacional costuma não

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fazer. Os eventos do mês de novembro de 2008 não foram suficientes para represen-tar uma participação mais expressiva de personagens negros no caderno Viver Bem em comparação ao caderno Revista.

Nossa análise também buscou ve-rificar se o contexto jornalístico em que as personagens foram encontradas fazia qualquer referência à raça, cor ou etnia. De 31 personagens negros na amostra, sete apareceram em contextos que destacavam sua cor de pele. Isso significa que de cada cinco negros presentes nos suplementos, pelo menos um terá sua presença justifi-cada pela referência textual do contexto à sua cor-etnia. Como aponta Beleli (2005), a cor do negro tende a aparecer marcada na mídia, o que o torna o outro em nossa sociedade. Se a presença do negro tende a ser justificada pela alusão à sua cor, então isso provavelmente indica que os brancos são tratados como “sem cor” pelo discur-so midiático, o que favorece uma aproxi-mação deles ao modelo de humanidade, como o exemplo a seguir:

Black is so beautiful. A influência rap na moda de rua é tão grande que fica impossível não babar ao ver um look destes. O ca-samento da moda com a música cria aqui um fruto e tanto. Inspire-se nele. (Gazeta do Povo - Viver Bem, p. 19, 16/11/2008).

Esse texto encontrava-se juntamen-te com dois personagens negros, mas-culinos, vestidos como “rappers” (os dois usando óculos escuros grandes, boné e roupas largas). A seção tratava de moda e, no mar de personagens femininas bran-cas, os dois negros eram exceção. O títu-lo do pequeno trecho aponta diretamente para a cor-etnia das personagens: “Black is so beautiful”. Parece existir uma preo-cupação em destacar a cor das persona-gens apresentadas nesse título de forma positiva (o “beautiful” indica que a cor está

sendo valorizada) e o texto em si parece indicar certa apropriação da cultura de rua pela moda. O que pode ser interpretado em relação entre a cor dos personagens e as roupas que vestem é uma naturalização de traços culturais como se fossem traços biológicos, o que Corrêa (2006) defende que ocorre no discurso, quando o negro é associado à natureza e aos instintos, uma vez que a pouca participação de negros na amostra pode indicar que a mídia apresen-ta os personagens negros apenas quando tem de referenciar a cultura dita negra – e não para tratar de modelos de humanida-de.

Como esses cadernos supostamente têm um maior número de leitores do sexo feminino, não causa estranhamento que a maioria das personagens encontradas foi mulheres (encontramos 306 homens e 397 mulheres). Porém, se o número de mulhe-res brancas foi maior que o número de ho-mens brancos (281 homens brancos e 379 mulheres brancas), o número de mulheres negras foi menor que o número de ho-mens negros: 20 homens negros para 11 mulheres negras. Além disso, poucas vezes personagens negros foram encontrados em ilustrações que faziam alusão a casal. A baixa participação de personagens femini-nas negras, como a elevada taxa de bran-quidade no caso feminino, causa estranha-mento, pois esses cadernos parecem ter como público alvo justamente o público feminino. Isso provavelmente indica que a mulher negra brasileira não é tratada pelo discurso midiático como representante do gênero feminino e menos ainda como re-presentante de humanidade. Considera-mos que a situação social da mulher negra também é produzida e reproduzida pelo espaço simbólico ao qual é destinada.

Poucas vezes as personagens mu-lheres negras nas ilustrações foram en-contradas em contextos que faziam alusão textual à mulher (isto é, o artigo jornalís-tico ou a publicidade falava de forma ex-

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plícita para o público feminino). O número de personagens femininas negras que se encontravam em contextos que faziam alu-são à mulher correspondeu a 6, enquanto o número de personagens femininas bran-cas na mesma situação foi de 99, o que indica uma taxa de branquidade de 16,5. Apresentamos, a seguir, um exemplo de personagem feminina negra em contexto que faz alusão ao feminino.

Trata-se da publicidade da Herba-rium, empresa do ramo de produtos na-turais de emagrecimento e beleza física. Uma jovem negra aparece, sorrindo. Sua cor de pele é destacada pelo fundo branco do anúncio e por estar nua da cintura para cima. O texto fala da celulite que, segundo consta, atinge a maioria das mulheres, e de como os produtos da empresa podem ajudar a resolver o problema. A jovem re-mete à beleza que os produtos proporcio-nariam: a pele lisinha e brilhante está ao alcance de todas, basta adquirir os produ-tos da empresa. Em nenhum momento o texto faz referência à cor-etnia da jovem, o que indica que ela está sendo utilizada para representar o gênero feminino, ou seja, a publicidade é destinada a todas as mulheres, independentemente da cor, algo que raramente ocorre na publicidade de beleza com personagens negros, que ten-de a utilizar atores e modelos negros ape-

nas quando o produto é destinado ao pú-blico negro (BELELI, 2005). Consideramos esse um exemplo de valorização dos traços da mulher negra – uma exceção na amos-tra analisada. Por outro lado, apresenta o estereótipo muito comum de mulher negra de forma erotizada, representando o corpo negro seminu, numa aproximação com a natureza (CORRÊA, 2006).

Os negros da amostra na maior par-te das vezes apareceram individualmente, ou seja, sem a necessidade de um perso-nagem branco para compor um quadro de diversidade. Isso pode indicar que certa mudança esteja ocorrendo: o negro co-meça a aparecer com existência individual nas representações simbólicas, atenuando a representação baseada na branquidade normativa (GIROUX, 1999), que discursi-vamente apresenta o branco como norma. No entanto, se a taxa de branquidade de 15,5 personagens brancos individualmen-te para cada personagem negro é abaixo da média do estudo, de 22,1, ela permane-ce alta, superior, por exemplo, à das ima-gens de jornais catarinenses analisadas por Christofoletti e Basso (2007).

Os cadernos têm um público leitor explicitamente adulto, o que justificaria a maior presença de personagens adultos nas ilustrações. Os adultos somaram 636 (85,6% do todo), enquanto as crianças/ado-

FIGURA 2 – Exemplo de personagem negra em contexto que faz alusão ao feminino.FONTE: Gazeta do Povo, Caderno Viver Bem, 18 jan. 2009, p. 16.

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lescentes somaram 68 (9,2% do todo) e os personagens idosos somaram 28 (3,8%). A taxa de branquidade variou: no caso adul-to, igual a 24,7, um pouco mais alta que a média do estudo, apontando ligeiro au-mento da hegemonia branca para o grupo dominante de idade; entre os personagens na faixa etária da infância-adolescência, foi de 15,5; entre personagens idosos, a taxa de branquidade foi de 8,3. A menor taxa de branquidade entre os idosos e as crian-ças/adolescentes já havia sido observada em nosso trabalho anterior (SILVA; SAN-TOS; ROCHA, 2010), a respeito da partici-pação de negros e brancos na publicidade dos jornais paranaenses. Considerando as características dos suplementos domini-cais da amostra, que têm como alvo um público adulto, podemos inferir que exis-te uma maior aceitação de personagens negros entre as outras faixas etárias, uma vez que o leitor/consumidor tende a ser tomado pela mídia nacional como branco (SILVA; ROSEMBERG, 2007) e adulto. Infe-rimos que provavelmente exista certa hie-rarquia implícita nesse ponto (GUIMARÃES, 1997): negros podem ocupar espaços que não estão diretamente relacionados com o suposto público, adulto e branco, dos ca-dernos.

Verificamos uma ausência de perso-nagens negros desempenhando papéis de pai, mãe, filho ou qualquer outro que faça alusão à família nas ilustrações. Inferimos que possa existir uma relação entre esse fato e a baixa participação de mulheres ne-gras nos cadernos analisados e na mídia, uma vez que nossa cultura tende a atribuir à mulher o papel materno – isto é, a base familiar. A ausência de personagens negros em relações familiares e, como consequ-ência, a hipervalorização da família branca, revela a branquidade normativa (GIROUX, 1999), pois o branco foi a norma exclusiva de família.

Apesar de não estar presente em ilustrações que remetem à família, per-

sonagens negros foram encontrados em contextos em que o textual destacava rela-ções familiares. Os Obama, família do en-tão presidente negro dos Estados Unidos, por exemplo, apareceram em imagens no caderno Viver Bem do dia 16/11/2008 (na verdade, apenas Barack e Michele aparece-ram em imagens separadas). O texto que os acompanhava fazia alusão às filhas do casal (mas elas não apareciam nas ilustra-ções) e ao estilo de Michele, que, segundo o texto, tem porte de jogadora de basque-te. O texto também fez alusão à cor de Mi-chele:

O vermelho cai munto [muito] bem para pessoas de tez morena, caso dos Obama. “Michelle usa bastan-te cores vibrantes, que realçam seu tom de pele”, diz a consultora de imagem Adriana Izum (Gazeta do Povo - Viver Bem, p. 28, 16/11/2008).

O headline “Novo ícone fashion? Michelle, mulher de Barack Obama, atiça a opinião pública com seu jeito simples, moderno, colorido e até barato de se ves-tir” acompanha a presença da primeira dama dos EUA na imagem. As imagens que acompanham certo texto jornalístico são tão importantes quanto o título do texto, pois, assim como o título, permitem ao lei-tor saber do que se trata o texto. Em nossa pesquisa, nas imagens os negros não apa-recem em relações familiares e, no entanto, estiveram em contextos nos quais o texto fazia referência à família. Provavelmente a família negra tenha sua existência negada na mídia que trata de imagens justamente porque é através da imagem que os leito-res/consumidores percebem qual é a cor dos personagens. Provavelmente o exem-plo da família Obama, em que a cor-etnia da primeira dama é destacada, seja um exemplo de como a mídia impressa trata a questão do negro: a presença da família negra em imagens tende a ser justificada por uma referência à cor-etnia dos perso-

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nagens no texto. Ao mesmo tempo em que abre espaço para uma valorização do fenó-tipo do negro, um destaque a sua cor de pele, algo que tende a não acontecer com personagens brancos, parece torná-lo um estranho a ser contemplado.

Considerações finais

Resumidamente, podemos dizer que permanecem no discurso midiático paranaense diversas formas de hierarqui-zação racial entre brancos e negros. Essas formas de hierarquização não são, via de regra, explícitas; pelo contrário, elas po-dem ser consideradas manifestações do racismo nacional. Esse racismo atua de modo a desprezar a presença negra no Es-tado do Paraná, ao mesmo tempo em que afirma a presença branca como padrão de racionalidade, beleza e humanidade.

Mas exceções existem, e ao que pa-rece o espaço que o negro vem conquis-tando na mídia está aumentando – ainda que de maneira tímida. Ainda há resistên-cia em apresentar o negro em papéis não racializados ou em família, assim como no

papel de consumidor. A situação parece piorar quando consideramos o espaço que a mulher negra possui em relação ao ho-mem negro. Considerando a contribuição das mulheres negras para a sociedade on-tem e hoje, é lamentável que situações de exclusão de sua existência no campo sim-bólico ainda ocorram.

As iniciativas para aprovação de pro-jetos de leis podem não ter gerado resul-tados tão incisivos, mas pelo menos atu-aram como denúncias das desigualdades existentes na apresentação de negros e brancos na mídia nacional. A alternativa aos leitores dessas mídias não é rejeitá-las, e sim observá-las com um olhar critico. O professor pode ter um importante papel nesse processo, ao possibilitar aos alunos leituras críticas das diversas mídias com as quais têm contato, a partir das propostas da Lei 10.639/03. Diversas vezes os pró-prios alunos já são críticos o bastante para detectarem formas de hierarquização exis-tentes e cabe ao professor o papel de me-diador do processo em busca de uma so-ciedade antirracista. Esperamos que esse pequeno texto contribua para isso.

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Literatura africana e afro-brasileira

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Este ensaio servirá de base para o Módulo 11 – Literatura Africana e Afro-Bra-sileira, sugerido para integrar o conteúdo do Curso de Especialização Educação das Relações Étnico-Raciais. O texto apresenta cinco partes e cada uma alia teoria à práti-ca: (1) a primeira discute os aspectos teó-ricos que vão dar conta das relações entre narratividade, identidade e pós-colonialis-mo no contexto literário afrodescendente; (2) a segunda relaciona narrativas às iden-tidades assimilacionistas; (3) a terceira gira em torno das narrativas e identidades na-cionalistas; a (4) quarta aborda as narrati-vas em relação às identidades catalistas; a (5) última amplia o escopo das narrativida-des identitárias para também incluir textos e personagens de autores não afrodescen-dentes, ausentes nas partes dois a quatro. Ao lado de comentários teóricos específi-cos, as partes dois a cinco vão encontrar exemplificação literária entre personagens ficcionais e personae poéticas dentro um grande número de textos de autores afro e eurodescendentes provenientes da Áfri-ca, Estados Unidos, Brasil, Caribe e Euro-pa. Sob esta perspectiva, o presente arti-go se torna uma versão revista e ampliada do ensaio “Negritice; interculturalidades e identidades na literatura afrodescendente”, publicado na antologia Notas de história e cultura afro-brasileiras, sob a responsabili-dade editorial de Costa e Silva (2007).

1. Narratividades identitárias pós-coloniais

E o escuro. Todo mundo acha que o escuro é uma cor só, mas não é verdade. Há cinco ou seis tipos de escuro. Uns sedosos, outros pelu-dos. Alguns não passam de vazios. Outros são como dedos. Ele ele não fica quieto. Está sempre se mexendo e muda de um tipo preto para ou-tro [...] Bem, a escuridão da noite é mais ou menos a mesma coisa. Pode ser um arco-íris (MORRISON, Toni. A canção de Solomon, 1994, p. 51-52).

As cinco partes procuram situar a produção literária afrodescendente no âm-bito do pós-colonialismo, aproximação já insinuada no título. A relação entre afro-descendente, pós-colonialismo e literatu-ra é um fenômeno aceito pelos teóricos destes campos do conhecimento. Tyson (1999), por exemplo, explica esta aproxi-mação assim:

A crítica pós-colonial e a literatura afrodescendente são particularmen-te eficazes em nos ajudar a ver as relações entre todos os aspectos da nossa experiência – psicológica, ide-ológica, social, política, intelectual e estética – através de maneiras que nos mostram como estas categorias são inseparáveis na nossa experiên-cia e no nosso mundo [...] As críti-cas pós-colonial e afrodescendente

“Transidades” textuais: literatura

afrodescendente e pós-colonialismo

José Endoença Martins1

1 Dr. em Letras: Inglês e Literatura (2002) e Dr. em Estudos da Tradução (2013) pela UFSC. Professor da FURB – Blumenau. Pesquisador colaborador do NEAB-UFPR.

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também compartilham uma série de pressupostos teóricos e preo-cupações políticas, porque os dois campos englobam a experiência e a produção literárias de povos cuja história é marcada pela opressão política, social e psicológica extrema (TYSON, 1999, p. 363).

Já Bandia (2008) esclarece a respei-to da literatura afrodescendente, dizendo que

pode-se supor que a literatura afro-descendente permanece a literatura que transmite o pensamento africa-no e afrodescendente tradicional e moderno, e lida com a experiência africana e afrodescendente antiga e contemporânea. É a soma de to-das as literaturas nacionais e étnicas (BANDIA, 2008, p. 13).

Com base nas palavras de Tyson e Bandia, em especial, na ênfase na “opressão política, social e psicológica extrema” que caracteriza a vida de negros e colonizados espalhados pelo mundo, e no pensamento e experiência atuais e passados que negros e colonizados têm protagonizado nos conti-nentes, pode-se aceitar que o encontro dos dois campos – a afrodescendência e o pós--colonial literários – projeta uma discussão da literatura negra que se distingue pela presença de uma “trans-idade”. No âmbito desta reflexão, a transidade engloba uma adjetivação profícua e criativa, cujo prefi-xo recorrente é o “trans”, como em trans-nacional, transcultural, translinguístico e transidentitário. Pela transnacionalidade, nos conscientizamos que as nações negras edificadas nos vários continentes apresen-tam aspectos comuns; através da transcul-turalidade, sabemos que nossas diferenças culturais se autoalimentam reciprocamen-te; por meio da translingualidade, somos instados a lidar com nossas semelhanças e diferenças transnacionais e transculturais em nossas várias línguas específicas; por fim, pela transidentitaridade, descobrimos

que nos construímos e nos reconstruímos a partir de encontros e desencontros trans-nacionais, transculturais e translinguísti-cos. Como consequência desta transidade multifacetada, as experiências negras rea-firmam os contornos pós-coloniais deste fenômeno cultural, sugerindo que autores, textos e personagens afrodescendentes

Não estão primeiramente ocupados com a criação de uma polaridade en-tre os chamados modos ocidentais e não ocidentais de existência, mas estão bastante preocupados com as negociações que ocorrem entre os dois modos de articulação de exis-tência – eles exploram o toma-lá--dá-cá entre as culturas e as línguas, entre os ensinamentos étnicos e preocupações universalizadas, e en-tre a história colonial e uma história de autodeterminação. Esta relação entrelaçada pode ser mais bem en-tendida quando se pensa nos textos literários como a tradução contínua contra os discursos dominantes uní-vocos (STEINER, 2009, p. 2).

Nesta tradução cultural proposta por Steiner (2009), os quatro adjetivos e os qua-tro substantivos da transidade têm a força de nos convidar a refletir sobre a produção literária afrodescendente sob a perspectiva teórico-prática do pós-colonial, na qual as contribuições entre nações, culturas, lín-guas e identidades se encontram em per-pétuo movimento de ida e volta, isto é, de trocas e empréstimos. Esta movimentação, marcada pela “dispersão física ou mental”, é característica da literatura diaspórica, de-finida por Foster (1997), nestes termos:

Em seu sentido mais amplo, então, quando aplicada à diáspora africa-na, a literatura diaspórica é toda a literatura, oral ou escrita, produzida pelo povo negro que sofreu a disper-são física ou mental. Tal definição, especialmente quando aplicada à li-teratura da diáspora africana, é con-troversa. Alguns definem a literatura diaspórica como incidindo sobre o patrimônio africano ou as experiên-

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cias étnicas e raciais de um negro, e assuntos como a escravidão, a raça, a colonização ou a linha da cor. Ou-tros argumentam que qualquer lite-ratura criada por qualquer indivíduo exilado ou emigrado pode ser consi-derada diaspórica, em parte porque os padrões de fala, a escolha de pa-lavras, os padrões estéticos e outras influências culturais nunca são com-pletamente obliterados (FOSTER, 1997, p. 218-219).

Considerando as palavras de Foster, associa-se a produção literária afrodescen-dente à dinâmica diaspórica da literatura, uma vez que ambas se alicerçam sobre “o patrimônio africano” ou de matriz africana e se amparam “nas experiências étnicas e raciais de um negro”. Geralmente, incluem também a literatura do negro “exilado ou emigrado”.

O ponto de partida para a nossa discussão deve ser o fenômeno da cons-trução de identidades negras, africanas e afrodescendentes. Ora, sabe-se que tema, linguagem, autor, ponto de vista e leitor contribuem, direta ou indiretamente, com a roteirização das identidades das persona-gens presentes num texto literário negro. Por isso, creio que a definição de Appiah (1997) para identidade se encaixa no rotei-ro que pretendemos criar para a discussão. O filósofo africano afirma que

Toda identidade humana é construí-da e histórica; todo o mundo tem seu quinhão de pressupostos falsos, erros e imprecisões que a cortesia chama de “mito”, a religião, de “he-resia”, e a ciência, de “magia”. Histó-rias inventadas, biologias inventadas e afinidades culturais inventadas vêm junto com toda identidade; cada qual é uma espécie de papel que tem que ser roteirizado, estruturado por con-venções de narrativa à qual o mundo jamais consegue conformar-se real-mente (APPIAH, 1997, p. 243).

É importante ressaltar a expressão utilizada por Appiah: que uma identidade

é “estruturada por convenções de narrati-va”. Ora, esta confluência entre identidade e narratividade é colocada de forma mais bem explicitada por Somers (1994):

É através da narratividade que che-gamos a conhecer, entender e dar sentido ao mundo social, e é atra-vés das narrativas e da narratividade que constituímos nossas identida-des sociais [...] Não importa se so-mos cientistas sociais ou sujeitos de pesquisa histórica, mas que todos nós chegamos a ser o que somos (embora efêmeros, múltiplos e em mudança) porque estamos localiza-dos ou nos localizamos (quase sem-pre inconscientemente) em narra-tivas sociais quase nunca de nossa própria fabricação (SOMERS, 1994, p. 606).

Baker, por sua vez, em consonância com as palavras de Appiah e Somers sobre a interdependência envolvendo narrativa e identidade, sugere que a literatura é o lo-cus da narratividade por excelência, ao es-crever que “a literatura constitui uma insti-tuição poderosa para disseminar a narra-tiva pública [ontológica, privada, também] em qualquer sociedade” (BAkER, 2006, p. 33).

Diante destas reflexões, vamos em busca de três identidades negras nas nar-ratividades literárias de africanos e afro-descendentes espalhados pelo mundo: as-similacionista, nacionalista e catalista.

2. Identidades e narratividades assimilacionistas

Essas pessoas evitam arriscar-se a questionar os estereótipos aos quais são submetidos por medo de perderem a aceitação, efetiva ou de-sejada, das pessoas brancas e pelas vantagens imaginadas passíveis de ocorrer se perderem o status (FER-REIRA, 2004, p. 74).

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As dinâmicas narrativas – na poesia, drama e ficção – permitem que perceba-mos a construção da identidade assimila-cionista afrodescendente. O que nos aguar-da, nesta parte do texto, é a percepção de como autores negros, da África à Europa, fazem seus personagens migrarem, físi-ca ou mentalmente, de uma cultura para outra e ensejam que negrice, ou seja, a idealização de valores brancos, os leve a construir identidades assimilacionistas, isto é, identificações com produtos e bens culturais ocidentais. Na verdade, a assimi-lação de valores brancos não é desejo ex-clusivo de negros, mas um fenômeno que acomete certos grupos de colonizados. Em A tempestade, de Shakespeare (1999), por exemplo, Ariel desenvolve uma identidade assimilacionista ao aderir ao projeto colo-nialista de Próspero. Suas palavras de ade-são são enfáticas:

Salve, meu amo! Meu senhor, cá’stou Pra atender seu prazer, seja voar, Nadar, entrar no fogo, cavalgar As nuvens; pra cumprir as suas or-dens, Eis, Ariel e seus pares (SHAkESPEARE, 1999, p. 26-27).

A partir do atestado adesista de Ariel, alguns intelectuais negros e não negros têm discutido a assimilação como expe-riência do colonizado, negro ou não. Rodó (1991) descreve o espírito shakespeariano como o personagem-metáfora do negro – colonizado e assimilacionista – enfatizando sua imagem ocidentalizada: “Ariel, gênio do ar, representa no simbolismo da obra de Shakespeare a parte nobre e alada do espírito. Ariel é o império da razão e do sentimento sobre os baixos estímulos da irracionalidade” (RODÓ, 1991, p. 13). Ou-tros intelectuais seguem na mesma linha. Fanon (2005), por exemplo, afirma que, como o shakespeariano Ariel, o colonizado “aceitava a justeza” das ideias colonialis-tas “e podia-se descobrir, num recanto do

seu cérebro, uma sentinela vigilante encar-regada de defender [valorizar] o pedestal greco-latino [ocidental]” (FANON, 2005, p. 63). Este “pedestal” cultural ocidental, se-gundo Memmi (2007), simboliza “um mo-delo tentador muito próximo [que] se ofe-rece e se impõe a ele [colonizado]” e o leva a querer “mudar de condição mudando de pele” (MEMMI, 2007, p. 162). Compatível com as palavras de Fanon e Memmi, apa-rece a visão de West (1993). A vontade de usufruir do modelo cultural prestigioso do branco – colonizador ou não – se repete nas palavras deste filósofo afro-americano, para quem grupos de negros existem que procuram depositar seu futuro “numa dis-posição deferente ao pai ocidental” (WEST, 1993, p. 85). Du Bois (1986), por sua vez, faz eco a todos esses pensadores, enfati-zando a indagação negra: “afinal, o que sou eu? Sou um branco? (DU BOIS, 1986, p. 821). As palavras de Glissant (2005) e Ferreira (2004) nos ensinam que o negro assimilacionista constrói “uma identidade com raiz única” (GLISSANT, 2005, p. 27), unidirecional, em favor “de uma idealiza-ção da visão dominante do mundo branco” (FERREIRA, 2004, p. 70). Como se trata de um movimento em uma única direção – sem trocas – ainda não podemos falar em tradição. Hall (2006) acredita que, neste tipo de deslocamento de uma herança cul-tural negra para a branca, persiste o pro-pósito de um dia voltar à tradição original. Aqui, ele fala de negros tradizidos, aqueles que acham “tentador pensar na identida-de, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando as suas ‘raízes’ ou desapa-recendo através da assimilação e da homo-geneização” (HALL, 2006, p. 88).

Toda essa exaustiva formatação te-órica da assimilação negra pode ser enun-ciada numa palavra-conceito: negrice. Ela serve para nos referirmos à discussão das atitudes assimilacionistas de personagens negros. Borba (2002) dicionariza o vocá-

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bulo negrice como (1) negritude e (2) epi-sódio desagradável. Na literatura, negrice simboliza a competência social que o ne-gro aciona quando migra para o mundo branco. Negrice vem sendo utilizada em textos que escrevo desde o início deste sé-culo. Na peça de teatro O olho da cor, alu-do às “configurações negativas da negrice” (MARTINS, 2003, p. 15). Aqui, é preciso redimensionar o termo para neutralizar a carga negativa a ele associada. Negrice não é apenas negatividade. Representa a maneira como um personagem negro lida com os valores da cultura branca. Teóri-cos já mencionados neste artigo atestam a abrangência e a diversidade da experiência do negro no mundo branco. Por isso, na-quilo que o conceito negrice pode abran-ger, envolver-se com valores brancos não implica necessariamente negligenciar os valores negros, mas enfatizar os brancos, pontualmente. A aliança com a cultura oci-dental não é, em si, negativa ou positiva. O elemento negativo, assim como o posi-tivo, depende das motivações que animam o ser negro. Os resultados derivam do nível de energia ativado. A negrice será negativa se, e quando, o negro se afastar dos valo-res negros. Ou se a experiência de assimi-lação se eternizar.

À exemplificação literária da negri-ce, agora.

A literatura africana abriga em sua manifestação nacional, cultural, linguística e identitária a transidade ficcional, poética e dramatúrgica escrita nas línguas inglesa, francesa e portuguesa. A produção literá-ria se encontra matizada pela presença de situações em que as personagens ficcio-nais, as personae poéticas, os autores e os leitores aderem ao modelo ocidental de cultura, em função das línguas ocidentais que utilizam para a comunicação. Bandia (2008) explica o recurso aos idiomas euro-peus dominantes como uma atitude realis-ta, dizendo que

A multiplicidade das línguas locais no continente tem limitado a comu-nicação entre as línguas, e [...] pou-cas pessoas podem se orgulhar de possuir conhecimento aprofundado da escrita de várias línguas nativas [...] É verdade que os escritores do-minados que utilizam as grandes línguas literárias como o inglês, o francês e o português têm a vanta-gem e o potencial para promover suas literaturas nacionais no contex-to do espaço literário internacional (BANDIA, 2008, p. 1-2).

Na ficção, o nigeriano Chinua Ache-be (2009) escreve seu romance O mundo se despedaça em inglês. Um dos persona-gens é Nwoye, um jovem igbo que se con-verte ao Cristianismo, logo após a chegada dos ingleses. A atitude arielista que esboça na conversão reforça as palavras dos inte-lectuais negros e brancos que pensaram a questão do colonizado que se encanta com os valores culturais do colonizador. Nwoye não apenas se declara “sou um de-les” (ACHEBE, 2009, p. 164), isto é, um dos cristãos, ele também renega a paternidade de Okonkwo: “ele não é meu pai” (ACHEBE, 2009, p. 164). Porém, o jovem convertido não abandona a mãe e as irmãs, prome-tendo voltar ao clã para convertê-las à nova fé, quando aprender a ler e escrever sobre o Cristianismo. Se considerarmos a solida-riedade existente entre Nwoye e Ikemefuna vamos notar que a negrice do jovem igbo não é a única proposta de vida que Nwoye tem. Na literatura africana de língua fran-cesa, a senegalesa Diome (2003) escreve o romance Le ventre de l’Atlantique [O ventre do Atlântico], onde a personagem central Salie narra sua relação com o irmão Madi-cké, um jovem que adora futebol e vê no jogador italiano Maldini um ideal de atle-ta. A vitória da França sobre a Itália, du-rante a Copa da Europa de 2000, deixa o jovem Madické entristecido. A identificação de Malické com o branco Maldini é descrita pela irmã Salie: “eu compreendia a decep-

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ção de Malické, mas achava sua tristeza, as lágrimas na sua voz e sua raiva contra os seus amigos [...] um pouco excessivas [...] Ele carregava em seus ombros todo o peso da derrota italiana e sofria mais que os napolitanos” (DIOME, 2003, p. 223). O angolano arielista na língua portuguesa é António, personagem do romance Bom dia, camaradas, de Ondjaki (2006). A ide-alização que António faz dos tempos co-loniais de Angola o posiciona em favor da administração portuguesa. Afirmando que “no tempo do branco isto não era assim...” (ONDJAkI, 2006, p. 17), António, que ha-via trabalhado para um português, elogia as melhorias efetuadas pelos brancos na capital Luanda, enumerando-as: “a cidade estava mesmo limpa... tinha tudo, não fal-tava nada... era livre sim, podia andar na rua e tudo...” (ONDJAkI, 2006, p. 18).

O tipo de identificação com a vida ocidental que seduz os jovens africanos de Achebe e Diome e o maduro angolano de Ondjaki vai se repetir na experiência de uma jovem negra americana. No conto Uso diário, de Alice Walker (1998), Dee trilha os mesmos passos arielistas de Nwoye, Madi-cké e António. A diferença é que a busca da jovem no mundo ocidental não se pauta pela religiosidade, não se aproxima do fu-tebol, nem da administração de um país. Estriba-se na educação. Como Nwoye, Dee também se afasta da família e sai em bus-ca do conhecimento que vai distanciá-la da irmã Maggie e da mãe. Dee desafia as duas com palavras fortes: “a sua cultura [...] Você também, Maggie, devia fazer alguma coi-sa da sua vida. Os tempos são outros para nós. Mas do jeito que você e mamãe ain-da vivem nem dá para acreditar” (WALkER, 1998, p. 63).

Ao lado de Nwoye, Madické e Dee, podemos incluir outros afrodescenden-tes que, no Brasil, também espelham o encontro como “o pedestal greco-latino”, expressão utilizada por Fanon (2005) para se referir ao Ocidente. No romance Úrsula,

a brasileira Reis (2004) constrói o escravo Túlio de forma cristianizada que, ao salvar da morte certa um homem branco desco-nhecido, sente-se feliz e reconfortado pe-las palavras de agradecimento do jovem branco. A narradora reflete este momento de realização cristã de Túlio: “era o primei-ro branco que tão doces palavras lhe havia dirigido; e sua alma, ávida de uma outra alma que a compreendesse, transbordava agora de felicidade e de reconhecimento” (REIS, 2004, p. 29). Na minha peça de te-atro O olho da cor (2003), a jovem Bertília também encontra seu modelo “greco-lati-no” em Vera Fischer, a loura blumenauense que, em 1969, foi eleita Miss Brasil. Costu-reira nas tecelagens da cidade, Bertília vê a miss representada em qualquer mulher galega de Blumenau e “jurava que um dia seria igual a ela, teria olhos azuis. Iria fa-zer qualquer coisa para ter aqueles olhos azuis porque achava que a força, a cora-gem e a arrogância que ela mostrava, mas, especialmente, a beleza, vinham dos olhos e da cor deles” (MARTINS, 2003, p. 34). Na poesia do brasileiro Trindade (2008), uma persona poética assinala a investida do ne-gro na religião dos brancos:

De Bíblia na mão [...] Do rei Salomão Os cantares eu lia [...]. Cheguei a Diácono Presbiteriano (TRINDADE, 2008, p. 54).

No Caribe francês, Cathy Gagneur aumenta o panteão arielista, colocando-se na companhia de Nwoye, Madické, Antó-nio, Dee, Túlio e Bertília. Personagem do romance Corações migrantes, de Maryse Condé (2002), Cathy casa com o rico plan-tador de cana Aymeric Linsseuil. Abando-na sua casa em L’Engoulvent e vai morar em Belles-Feuilles, a mansão do marido branco. Em contato com a branquidade dos Linsseuils, sua transformação é total: aprende francês, “um pouco de leitura, um pouco de caligrafia, mas sobretudo a

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bordar, a costurar e a ter boas maneiras” (CONDÉ, 2002, p. 31-32). Na Inglaterra, o romance Uma margem distante, escrito por Phillips (2006), cobre a vida de Solo-mon na vila de Weston. Refugiado africa-no que foge da guerra em seu país, So-lomon procura se integrar à vida inglesa, trabalhando como motorista e lavador de carros. A relação bem cordial de Solomon com a inglesa branca Dorothy esclarece a respeito disposição arielista do africano na branca Weston. Dorothy expressa ligação a Solomon, dizendo que ela “só queria ser feliz [...] e sabia que Solomon era um ho-mem que poderia me fazer feliz” (PHILLIPS, 2006, p. 75). Sobre ela ele pensa: “essa é uma mulher para quem eu poderia contar minha história” (PHILLIPS, 2006, p. 333).

3. Nacionalismo negro: narratividades identitárias

Até esse momento, a pessoa esta-va submetida a uma visão do negro determinada pela cultura branca, e sua maneira de agir ainda é estere-otipada, sendo a referência da pes-soa negra uma referência de grupo definida externamente, levando-a a pensar, sentir e comportar-se de acordo com padrões idealizados de como a pessoa negra “deve” agir (FERREIRA, 2004, p. 80).

Como vimos, a identidade assimi-lacionista descreve a adesão do negro aos valores culturais do Ocidente. Alguns desses valores incluem nobreza de espíri-to, racionalidade e sentimentos elevados (RODÓ, 1991, p. 13); outros listam bele-za, genialidade, trabalho e bondade (DU BOIS, 1998, p. 30); Memmi (2007) realça que o branco tem direitos, bens e prestí-gios. Além disso, “dispõe das riquezas e das honras, da técnica e da autoridade” (MEMMI, 2007, p. 163). Por outro lado, a nacionalista é a identidade que explica a aceitação e a vivência dos valores de ma-

triz africana por parte do afrodescendente. Sua base cultural negro-africana se opõe ao modelo branco-europeu da assimila-ção. Em A tempestade, de Shakespeare (1999), a metáfora branco-europeia Ariel cede lugar a Caliban, negro-africana. Em vez do apoio ao projeto colonialista de Próspero, como faz Ariel, Caliban articula a destituição do europeu que se apoderou da ilha, da qual os dois – Ariel e Caliban – são donos e herdeiros por direito. Em três momentos, a derrubada do colonizador europeu está presente na resistência de Caliban. Na primeira ocasião, Caliban rei-vindica a posse da ilha, bradando “a ilha é minha, da mãe Sycorax, que você me tirou” (SHAkESPEARE, 1999, p. 35). Em seguida, a reivindicação se dá através da maldição que lança sobre Próspero:

Maldito seja! Todos os encantos de Sycorax – sapos, escaravelhos, e morcegos, te ataquem todos juntos! [...] Agora eu sei falar, e o meu proveito é poder praguejar. Que a peste o pegue, por me ensinar sua língua!” (SHAkESPEARE, 1999, p. 35-36).

Por fim, Caliban planeja a morte de Próspero, juntamente com os colaborado-res que o acompanham: “com uma acha amassa o crânio, ou rasga com pancada, ou corta a goela com a faca” (SHAkESPEA-RE, 1999, p. 85).

A luta de Caliban pela autonomia e independência de colonizado, através do desejo de retomada da ilha de Sycorax, encontra paralelo em textos de vários pen-sadores negros e brancos. Com maior ou menor veemência, agressividade ou deter-minação, os novos calibans espalham nas letras negras sua negritude nacionalista. Retamar (1988), por exemplo, reclama Ca-liban, com paixão, afirmando que “nosso símbolo, então, não é Ariel, como pensou Rodó, mas Caliban [...] Não conheço outra metáfora mais adequada para nossa situa-

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ção cultural, para nossa realidade [...] O que é a nossa história, o que é a nossa cul-tura senão a história, senão a cultura de Caliban?” (RETAMAR, 1988, p. 29). Fanon (2005) olha para a busca de autodetermi-nação de Caliban como um desejo de des-colonização. E esclarece que a descoloni-zação impregna, no negro colonizado, “um ritmo próprio, trazido pelos novos homens, uma nova linguagem, uma nova humani-dade. A descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos” (FANON, 2005, p. 53). Esta “nova humanidade” negra de que fala Fanon é retomada por Memmi (2007) como a “ruptura” através da qual o colonizado se pergunta: “como sair disso a não ser por meio da ruptura, da explosão, cada dia mais violenta, desse círculo infer-nal? A situação colonial, por sua própria fa-talidade interna, chama a revolta” (MEMMI, 2007, p. 169-170, grifos nossos). De mãos dadas, a nova humanidade e a ruptura ne-gras encontram em West (1993) uma for-mulação mais propositiva, não mais dire-cionada contra o colonizador ocidental ou o opressor branco, mas ativada em favor dos valores culturais de matriz africana. Trata-se, pensa West, de “uma busca nos-tálgica do pai africano” (WEST, 1993, p. 85). Busca que se concretiza na resposta que a nova humanidade negra reconquis-tada consegue articular à pergunta de Du Bois (1986): “afinal o que eu sou: sou um Negro?” (DU BOIS, 1986, p. 821). Imbuí-do dessa nova humanização autodetermi-nada e independente, o novo ser imerge completamente na cultura negra, atitude que para Ferreira (2004) se caracteriza por um “mergulho na negritude e libertação dos valores bancos [...]. O interesse pela ‘Mãe África’ torna-se evidente” (FERREIRA, 2004, p. 81). Porém, sair da assimilação de valores brancos e passar a valorizar e vivenciar os valores negros ainda é uma atitude reativa, necessária, mas incomple-ta para a deflagração de uma “humanidade negra” construtiva. Assim entendida e vivi-

da, a negritude é denunciada por Glissant (2005) como proveniente de uma cultura atávica. “As culturas atávicas”, ensina Glis-sant, “tendem [...] a defender de forma fre-quentemente dramática [...] o estatuto da identidade como raiz única [...] e excluem o outro” (GLISSANT, 2005, p. 27). Identida-des excludentes, como a assimilacionista, apoiada nos bens culturais ocidentais, e a nacionalista, baseada somente nos valores de matriz africana, se tornam “identidades purificadas”. “A pureza identitária”, escreve Robins (1991), “procura assegurar tanto a proteção contra como a superioridade de posição sobre o outro externo” (ROBINS, 1991, p. 42). Como se trata de uma iden-tidade marcada pela polaridade entre dois mundos antagônicos, duas tradições opos-tas, Hall (2006) acredita que o negro que nela se constrói acha “tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro” (HALL, 2006, p. 88), no Ocidente ou na África. Ele que já foi branco, tendo excluído o negro, agora, é o negro que ex-clui o branco.

A discussão do nacionalismo negro desenhada até aqui pode ser apreendida numa palavra-conceito: negritude. Ela ser-ve para nos referirmos às atitudes naciona-listas de personagens negros, ou seja, às posturas de autoafirmação e de valorização da experiência negra. No artigo “Negritice: repetição e revisão”, associo à negritude “os aspectos positivos” (MARTINS, 2003, p. 15) de se viver os valores negros. His-toricamente, negritude foi um movimento literário desencadeado por escritores e in-telectuais negros a partir dos anos 30 na França, que, segundo Damasceno (2004), “enfatiza a questão de como expressar li-terariamente o mundo social, os pensa-mentos e os sentimentos não europeus em uma língua europeia” (DAMASCENO, 2004, p. 18). Pessanha (2003), por sua vez, esclarece que um desses escritores ativos no movimento, “Aimé Césaire criou o vocá-

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bulo negritude [a partir do adjetivo francês nègre de conotações pejorativas] no senti-do de afirmação do ser negro, auferindo--lhe uma significação positiva” (PESSANHA, 2003, p. 151).

À negritude no texto literário, então.Na África de língua inglesa, a negri-

tude nacionalista é simbolizada pela figura de Okonkwo, personagem do romance O mundo se despedaça, do nigeriano Ache-be (2009). Diferente do filho Nwoye, que se converte ao Cristianismo, Okonkwo resiste à presença dos cristãos ingleses na zona de influência do clã igbo. Ele reage violenta-mente à ocidentalização do filho, hostiliza e ataca os cristãos ingleses quando pode, participa da destruição da pequena igreja, é preso pelos ingleses e chega a matar um soldado inglês. “Imediatamente, Okonkwo desembainhou o facão. O guarda agachou--se para evitar o golpe. Foi inútil. O facão de Okonkwo abateu-se sobre ele duas ve-zes, e a cabeça do guarda rolou pelo chão ao lado do corpo” (ACHEBE, 2009, p. 226), conta o narrador. Na língua portuguesa, o romance de Ondjaki – Bom dia, camaradas – é onde vamos encontrar o jovem negro Ndalu. Nacionalista como Caliban, Ndalu é o arauto da administração negro-ango-lana do país. Suas diferenças com o assi-milacionista António indicam sua posição crítica ao passado colonial. Suas palavras contra o colonialismo branco são claras. “Quem fosse negro não podia ser director [...] ninguém era livre [...] não eram ango-lanos que mandavam no país, eram portu-gueses... E isso não pode ser...” (ONDJAkI, 2006, p. 18).

Na poesia africana de língua portu-guesa, a persona da poeta Rinkel (2006) se identifica com a África sofrida, quando diz que chora com o choro do continente africano:

Tuas lágrimas serão a água e a chuva que O povo tanto precisa. Chora África minha

Porque eu sou África E eu também choro (RINkEL, 2006, p. 7).

A identificação com a África também atinge o afrodescendente na poesia de Hu-ghes (2004), quando reafirma laços étni-cos com o continente:

Sou Negro. Escuro como escura é a noite, Escuro como as profundezas da minha África (HUGHES, 2004, p. 5).

Ou, com a cultura afro-americana, através da batida sofrida do Blues:

No som cansado do Blues

Com suas mãos de ébano sobre cada tecla de marfim Ele fez esse pobre piano gemer com a melodia. Oh Blues! Balançando para frente e para trás em seu banquinho frágil Ele tocou a melodia triste e brinca-lhona como palhaço.

Doçura de Blues! Vinda do fundo da alma de um ho-mem negro (HUGHES, 2004, p. 13).

Na ficção afro-americana, Milkman protagoniza a afrodescendência calibanista no romance A canção de Solomon, escrito por Morrison (1994), repetindo a trajetória nacionalista de Okonkwo, Ndalu e bluesei-ros. Como aqueles, Milkman representa a cultura de matriz africana quando viaja ao Sul para descobrir a verdadeira história do bisavô escravo que, segundo os comen-tários de amigos da família, voltou para a África voando. A alegria e o entusiasmo de Milkman com a descoberta do ato heroico do bisavô se manifesta nas palavras que dirige à namorada Sweet: “meu bisavô sa-bia voar e toda a cidade tem o nome dele [...] voltou para a África [...] deixou todos no chão e saiu voando como uma águia negra” (MORRISON, 1994, p. 350). Entu-

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siasmo semelhante ao de Milkman pela cultura negra se encontra no texto teatral do afro-brasileiro Nascimento (1979). Em Sortilégio II, o advogado negro Emanuel se reconcilia com a negritude, depois de anos de experiência de assimilação de va-lores brancos. Sua conversão à negritude é enunciada assim: “sou um negro liberto da bondade. Liberto do medo. Liberto da caridade e da compaixão de vocês. Levem todos esses molambos civilizados brancos” (NASCIMENTO, 1979, p. 122). A poesia de Trindade (2008), mais um afro-brasileiro, reafirma a ligação do negro com o mundo cultural da negritude. No poema, a perso-na canta esta aproximação dizendo:

Outra linda negra me levou à macumba no Xangô da Baiana da Praia da Pina (TRINDADE, 2008, p. 54).

Nos Cadernos negros, importante aglutinador do movimento negro literário desde 1978, encontramos o poema “Res-surgir das cinzas”, de Ribeiro (2004), que, em seus versos, estabelece a filiação da persona da poeta. Ribeiro enumera sua an-cestralidade guerreira, marcada pela pre-sença de mulheres negras que, em algum momento da história brasileira, deixaram suas marcas de luta em favor de afro-brasi-leiros. Por isso, o canto da guerreira é força que se fortalece na ratificação da própria força:

Sou guerreira como Luiza Malin, Sou inteligente como Lélia Gonzáles, Sou entusiasta como Carolina Maria de Jesus, Sou contemporânea como Firmina dos Reis. Sou herança de tantas outras ances-trais (RIBEIRO, 2004, p. 63).

A identificação com valores negros também se encontra presente no roman-ce Ponciá Vicêncio, de Evaristo (2003). Em

dado momento da trama, a narradora re-alça a identificação racial entre a menina Ponciá e o avô com quem a neta viveu por pouco tempo. Quando começa a andar, a menina imita o andar do avô. “Ele andava encurvadinho com o rosto quase no chão”, conta a narradora para, logo a seguir, esta-belecer comparação entre o andar da neta e o do velho:

Surpresa maior não foi pelo fato de a menina ter andado tão repentina-mente, mas pelo modo. Andava com um dos braços escondido às costas e tinha a mãozinha fechada como se fosse cotó [...] Todos se assustavam. A mãe e a madrinha benziam-se [...] Só o pai aceitava. Só ele não se es-pantou ao ver o braço quase cotó da menina. Só ele tomou como natu-ral a parecença dela com o pai dele (EVARISTO, 2003, p. 13).

No Caribe francês, vamos encontrar o romance Eu, Tituba, feiticeira... Negra de Salem, de Condé (1997). Neste texto ficcional, a personagem mítica Ti-Noel re-presenta a resistência negra contra a ex-ploração colonialista em Barbados. A po-pulação negra acredita na invisibilidade de Ti-noel, dizendo que “o fuzil do branco não é capaz de matar Ti-Noel. Seu cão não é capaz de mordê-lo. Seu fogo não é ca-paz de queimá-lo. Papai Ti-Noel, abre-me os caminhos” (CONDÉ, 1997, p. 1988). Na Europa inglesa, a música Rap e a cultura Hip-Hop reúnem os afro-britânicos ao re-dor do orgulho racial. O rapper Ray, líder da banda Positive Negatives e personagem central do romance Gangsta rap, do afro--britânico Zephaniah (2006), representa esta manifestação de negritude no mundo da música negra. Ele explica a força negra do Hip-Hop:

No fundo, o rap é só o que nós fa-zemos. Você pode fazer um rap no noticiário, um rap em cima de uma batida de rock, de um rythm’n’blues ou de música folk. O rap é só um jei-

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to de falar. Não é o rap que é impor-tante, e sim o hip-hop. O hip-hop é a filosofia, é o nosso jeito de viver, nossa forma de ver a vida. Somos marginais, e precisamos sobreviver criando novas tribos pra gente (ZE-PHANIAH, 2006, p. 171).

4. Identidades e narratividades catalistas

A partir do momento em que o in-divíduo deixa de considerar como antagônicos os valores associados a matrizes étnico-culturais distin-tas, sua internalização deixa de ser conflitiva, tornando a pessoa mais calma, mais relaxada. As estruturas cognitivas tornam-se mais flexíveis, vindo a determinar avaliações de as-pectos fortes e fracos da cultura ne-gra (FERREIRA, 2004, p. 83).

Como já vimos, metaforicamente, Ariel e Caliban representam polaridades antagônicas. Importantes, mas insuficien-tes para a formação identitária afrodes-cendente. Os efeitos de sua ação também se polarizam, opondo-se uns aos outros. Como na lógica colonialista binária, os va-lores brancos e negros se antagonizam. Vimos, também, com ampla exposição te-órica, que quando um negro viaja para o mundo branco ele assimila a, e se integra à, cultura branca. Descobrimos, igualmen-te, que quando se volta para mundo negro ele rejeita a cultura ocidental. Isolado no extremo branco ou na extremidade negra, o afrodescendente permanece um sujeito tradizido, isto é, se torna um Self que se apega, de forma essencialista, à tradição na qual se encontra inserido momentane-amente. Domesticado em trincheiras cul-turais distintas, o afrodescendente não se traduz culturalmente. O sujeito tradizido, isto é, o sujeito imerso em uma única tra-dição, insiste “na manutenção da ilusão protetora, na luta pela completude e a coe-rência através da continuidade [...] na bus-

ca da pureza e da identidade purificada” (ROBINS, 1991, p. 41-42).

Qual a alternativa para o arielismo e o calibanismo negros?

Daqui para adiante, adicionaremos ao negro tradizido assimilacionista ou na-cionalista, ou seja, apegado a uma única tradução cultural/racial, o afrodescendente traduzido. Ao puro juntaremos o impuro, à identidade purificada uniremos a identida-de contaminada. A tradução racial se ajus-ta melhor à ideia de literatura diaspórica, melhor do que à tradição cultural. A tradu-ção racial, resultante de encontros interra-ciais, é uma categoria da tradução cultural. “A tradução cultural”, Steiner (2009) ensi-na, “procura estabelecer principalmente as múltiplas e diversificadas filiações que migrantes e exilados negociam fora de suas coletividades singulares e específicas” (STEINER, 2009, p. 155). É como tradução – não como tradição – que introduzimos, aqui, o termo catalismo para nos referir à crioulização cultural, na qual o negro e o branco operam tática e conjuntamente, num processo de “dar e receber, onde no-vos significados culturais e raciais surgem no local dos encontros das humanidades comuns” (STEINER, 2009, p. 7).

Esta reciprocidade cultural e racial só pode ser metaforizada por Exu. Esta di-vindade afrodescendente não se encontra em A tempestade de Shakespeare (1999), mas aparece em Une tempête, de Césaire (1969), durante a festa de casamento de Miranda com Ferdinando. Com humor, ele saúda os convidados: “Deus para os ami-gos, O diabo para os inimigos! E a diversão para todos” (CÉSAIRE, 1969, p. 68). Dotado da capacidade de fundir mundos opostos, Exu metaforiza a futura aproximação entre Próspero e Caliban, presente nas palavras do europeu: “bem, meu velho Caliban, so-mos só nós dois nesta ilha, só você e eu. Você e eu! Eu sou você! Você sou eu!” (CÉ-SAIRE, 1969, p. 92). As expressões “eu sou você” e “você sou eu” sugerem tradução

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pontual entre colonizador e colonizado, re-presentados por Próspero e Caliban.

Gates (1988) enaltece a imagem de tradutor cultural presente na divindade de Exu. E argumenta que, de um lado, Exu tra-duz a cultura dos deuses para os homens e, do outro, interpreta a cultura dos ho-mens para os deuses. A tradução do divino para o humano e do humano para o divi-no é possível porque, segundo Gates, Exu “mantém uma perna ancorada no reino dos deuses e a outra neste nosso mundo humano” (GATES, 1988, p. 6). Ocupando esta posição mediadora – o entre-lugar da encruzilhada – Exu é “aquele que traduz, que explica” (GATES, 1998, p. 9) o conheci-mento. Gates enxerga em Exu um tradutor racial também, ao afirmar que “podemos tomar” Exu “como esta forma de signifi-cação perpétua ou ambulante”, ou seja, “como um emblema do processo da trans-missão cultural e racial que sempre acon-tece com uma frequência extraordinária quando culturas africanas e de matriz afri-cana se encontram com as culturas euro-peias do Novo Mundo e, juntas, geram uma nova cultura” (GATES, 1988, p. 19), a afro-descendente. Devido à capacidade de in-termediar os deuses e os homens, os afri-canos e os europeus, como afirma Gates, Exu é capaz de juntar Ariel e Caliban, como deseja Retamar (1988). Ariel, argumenta Retamar, pode “se unir a Caliban, em sua luta pela verdadeira liberdade” (RETAMAR, 1988, p. 65), e pode, desta forma, “com seu próprio exemplo, luminoso e aéreo como poucos”, pedir “a Caliban o privilégio de um lugar em suas fileiras sublevadas e gloriosas” (RETAMAR, 1988, p. 73).

A insistência de Exu na reciprocidade deve redundar na construção de identida-des catalistas. Conectado a Exu, o catalista afrodescendente concilia, com consciên-cia, sua cultura com a do branco-europeu. Fanon (2005) a caracteriza como a conci-liação entre o nacional e o internacional, dizendo que “é no coração da consciência

nacional que se eleva e se vivifica a cons-ciência internacional. E essa dupla emer-gência é apenas, definitivamente, o núcleo de toda cultura” (FANON, 2005, p. 283). E Memmi (2007) acredita que a liberdade virá desta reciprocidade interracial e intercultu-ral. “Uma vez reconquistadas todas as suas dimensões”, Memmi explica, “o ex-coloni-zado se terá tornado um homem como os outros. Ao sabor da fortuna dos homens, é claro; mas será enfim um homem livre” (MEMMI, 2007, p. 190). Livre da assimilação e do nacionalismo essencialistas, o novo afrodescendente desenvolve uma postura que se alimenta de “uma negação crítica, de uma preservação sábia e de uma trans-formação insurgente desta linhagem negra que protege a terra e projeta um mundo melhor” (WEST, 1993, p. 85). A construção de um mundo melhor só é possível com a união dos dois mundos, como Du Bois (1986) parece sugerir, ao perguntar-se: “afinal, o que sou eu? Posso ser os dois?” (DU BOIS, 1986, p. 821), negro e branco. A pergunta de Du Bois recoloca a alteridade de Exu na experiência afrodescendente. Al-teridade que Ferreira (2004) define como “coalizão” ativa, pois, “neste estágio, o in-divíduo negro, enquanto mantém relações com pares negros, deseja estabelecer rela-cionamentos significativos com não negros de seu conhecimento, respeitando suas autodefinições” (FERREIRA, 2004, p. 83). O ato cooperativo, recíproco, entre as duas subjetividades, a branca e a negra, é cele-brado por Glissant (2005) como identidade rizomática, ou seja, “como raiz indo ao en-contro de outras raízes” (GLISSANT, 2005, p. 2). Como um entrelaçamento de várias raízes, a catalista não se configura como uma identidade pura ou purificada igual à assimilacionista e à nacionalista. Robins (1991) sugere que “é na experiência da di-áspora” [...] e da migração que “a diferen-ça é confrontada: fronteiras são cruzadas; culturas são misturadas; identidades são borradas” (ROBINS, 1991, p. 42). Esta tra-

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dução identitária coloca o afrodescendente na seguinte situação: “ele é obrigado a ne-gociar com as novas culturas em que vive, sem simplesmente ser assimilado por elas e sem perder completamente suas identi-dades. Ele carrega os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histó-rias particulares pelas quais foi marcado” (HALL, 2006, p. 88-89).

Essa longa tentativa de caracteri-zar o catalismo negro pode ser resumida na palavra-conceito negritice. Ela auxilia o nosso entendimento da discussão das ati-tudes catalistas de personagens negros. Negritice é neologismo criado em 2003 para fundir, em uma só palavra, os ter-mos NEGRITude e negrICE [NEGRIT+ICE]. Na ocasião, defini o termo assim: “negriti-ce – combinando os aspectos positivos da negritude e as configurações negativas da negrice – é o conceito que marca as discus-sões de raça na literatura” (MARTINS, 2003, p. 15). O modelo literário da negritice é Ca-pitu, personagem central do romance En-quanto isso em Dom Casmurro (MARTINS, 2009). Branca no romance Dom Casmur-ro, de Machado de Assis (2007), Capitu vira negra no meu romance. “A raça de Capitu, negra. Nem mulata, nem crioula. Capitu era negra” (MARTINS, 2009, p. 11)). Na li-teratura, a negritice descreve a harmonia, a cordialidade e a solidariedade interfaciais de negros e brancos. Hughes (1944) já co-locava, na metade do século passado, esta questão da mútua solidariedade, ao enfati-zar o que brancos e negros queriam alcan-çar em seus encontros. Ele afirma que

Nós não queremos nada que não seja compatível com a democracia e a Constituição, nada incompatível com o Cristianismo, nada incompa-tível com uma vida sensível e civiliza-da. Queremos simplesmente opor-tunidade econômica, oportunidade de educação, vida decente, partici-pação no governo, justiça perante a lei, cortesia normal e igualdade nos serviços públicos. Não há nada

de errado em querer essas coisas, não é? [...] Somos homens de boa vontade em busca da boa vontade de outros (HUGHES, 1944, p. 265).

Agora, ao catalismo na literatura.Na literatura africana, uma demons-

tração da “boa vontade” entre um negro e um branco, de que fala Hughes, acontece no romance O mundo se despedaça, do nigeriano Achebe (2009). No texto, o igbo Akunna e o inglês Brown, líderes religiosos dos seus cultos, estabelecem relações de harmonia recíproca entre as culturas africa-na e ocidental. No auge dos conflitos entre o clã e os ingleses, o religioso estrangei-ro decide controlar “os excessos de zelo” cristão e, “graças à maneira suave com que sabia atuar”, é até respeitado pelo clã. Do lado do clã, o religioso igbo permite que um de seus filhos aprenda “na escola do senhor Brown a ciência do homem branco” (ACHEBE, 2009, p. 201). Nos Estados Uni-dos, as ações de cordialidade que unem os negros Childs e os brancos Streets são mediadas pela jovem negra Jadine, no ro-mance Pérola negra, de Morrison (1994). Sobre os Streets Jadine diz: “me educaram. Pagaram minhas viagens, minhas estadas, minhas roupas e minha escola” (MORRI-SON, 1994, p. 146). A respeito dos Childs ela esclarece: “Sydney e Ondine sãos meus únicos parentes vivos” (MORRISON, 1994, p. 146). Em sua postura catalista, Jadine, então, conclui que os brancos são “pessoas decentes. Como Nanadine e Sydney, todos ali eram decentes, e aquela casa, cheia de gente decente respirando o ar puro da ilha, era exatamente o lugar onde desejava es-tar naquele momento” (MORRISON, 1994, p. 84).

No Brasil, identidades catalistas também ocorrem na literatura de autores afro-brasileiros. A minha peça de teatro O olho da cor hibridiza a Bertília negra e a Bertília branca numa única mulher. A ela cabe personificar a fusão das duas raças, fundindo as culturas alemã e negra em

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Blumenau. Suas palavras são claras neste sentido: “será que vou saber conviver co-migo mesma? Com o meu olho azul sem furá-lo, quando for negra? Com meu olho negro sem desprezá-lo, quando for bran-ca? Com os dois, quando as duas cores me cobrirem? Será que vou conseguir? Será que vou conseguir aceitar outras pessoas em iguais, ambíguas e múltiplas situações” (MARTINS, 2003, p. 124). No Caribe, Tituba emblematiza o catalismo negro. Persona-gem central do romance Eu, Tituba, feiti-ceira... negra de Salem, a jovem negra se alia à senhora branca Elizabeth Parris e, juntas, arquitetam ações para dar um fim aos constantes espancamentos perpetra-dos contra elas pelo Pastor Parris. Elizabe-th apanhava porque era esposa do pastor; Tituba, porque era a empregada. A solida-riedade entre as duas mulheres é descrita assim:

Ele bateu nela [...] Ela também sangrou. Esse sangue selou nossa aliança. Às vezes, uma terra árida e desolada dá uma flor com colorido suave que embalsama e ilumina a paisagem em sua volta. Não posso usar outra comparação para a ami-zade que não demorou a me unir à dona Parris e à pequena Betsey. Juntas, inventamos mil artifícios para nos mantermos a distância da-quele demônio, o reverendo Parris (CONDÉ, 1997, p. 60).

Na Europa, mais especificamente, na Inglaterra, o catalismo solidário entre negros e brancos, proposto por Exu, se en-contra desenhado no romance Uma mar-gem distante, de Phillips (2006). Aqui, os brancos são os Andersons e os negros são representados por Solomon. Como clan-destino africano no país ele precisa regu-larizar a sua situação. Diz que “meu nome era Solomon e que eu precisava conseguir documentos para poder trabalhar e per-manecer na Inglaterra” (PHILLIPS, 2006, p. 309). A Sra. Anderson se incumbe de regu-larizar a situação de Solomon no país. O

próprio Solomon conta que “mamãe [sra. Anderson] assumiu o desafio de legalizar a minha situação na Inglaterra. Toda manhã o sr. Anderson ia para o trabalho, e deixa-va mamãe enfrentar o difícil problema da minha situação” (PHILLIPS, 2006, p. 314). Ainda na Inglaterra, mas agora no roman-ce Gangsta rap, de Zephaniah (2006), a ex-periência catalista envolve o rapper Ray e o sr. Lang, diretor do colégio do qual Ray havia sido expulso por indisciplina. O dire-tor sugere uma aproximação curricular que contemple os interesses musicais de Ray e as propostas educacionais da escola. O sr. Lang explica:

Vejam, eu acho que poderiam se be-neficiar muito aderindo a um projeto de inclusão social. Vocês precisam frequentar todos os dias, terão de ir às aulas de inglês e matemática e outras matérias que estão no cur-rículo, mas também podem cursar tecnologia da música como assunto principal. Poderão estudar música e ter acesso a pessoas e equipamen-tos que normalmente custariam muito caro (ZEPHANIAH, 2006, p. 62).

5. Branquidade escreve afrodescendências

A afrodescendência literária não é monopólio exclusivo de escritores negros, mas desperta interesses ficcionais, poéti-cos e dramatúrgicos entre autores euro-descendentes. Na África do Sul, o romance Cry the beloved country, de Paton (1988), é um exemplo do interesse de escritores brancos em abordar as identidades negras. Escrito em inglês, ainda sem tradução no Brasil, o romance distribui parte da família kumalo – Absalom, John e Stephen – entre as três identidades: alia a experiência assi-milacionista de Absalom ao nacionalismo do líder operário John e ao catalismo do reverendo Stephen. O arielismo de Absa-lom se manifesta na maneira como ele as-

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simila o lado mais trágico da vida branca: a criminalidade urbana de Johannesburg. Ele próprio reage, dizendo ao pai, quando está para ser enforcado pela morte de um branco: “Johannesburg é um lugar perigo-so. A gente nunca sabe quando vai ser ata-cado” (PATON, 1988, p. 88). Por outro lado, o calibanismo de John faz com que “toda África se encontre” (PATON, 1988, p. 158) e veja nele uma representação do seu futu-ro. Quando se dirige aos trabalhadores das minas sul-africanas, se coloca como um líder que sabe como canalizar os anseios do continente oprimido e para onde con-duzi-lo. Suas palavras de orientação são claras: “é por esta liberdade que travamos esta luta. Foi por esta liberdade que mui-tos dos nossos soldados africanos comba-teram” (PATON, 1988, p. 160). Por fim, o catalismo exuísta do pastor negro Stephen, pai de Absalom e irmão de John, encon-tra expressão no texto de Paton, ao lado do fazendeiro branco James. Juntos, catalis-tas os dois, o pastor negro e o fazendeiro branco trabalham para melhorar a vida dos habitantes de Ndotsheni, a pequena aldeia onde nasceram e moram. Stephen traba-lha com os jovens negros, “ensinando-os na escola a cuidar da terra. Então pelo me-nos alguns permaneceriam em Ndotshe-ni” (PATON, 1988, p. 196). James colabora com Stephen, providenciando água para a lavoura. “A água vai sair através da com-porta, e vai regar esta terra e vai molhar as pastagens plantadas” (PATON, 1988, p. 216), explica ao povo.

Nos Estados Unidos, o romance Co-elho em crise, de Updike (1992), descre-ve a presença do negro Skeeter no mundo branco, simbolizado na casa de Coelho, um conservador branco. Diferente dos arielis-tas negros – Nwoye, Madické, António, Dee, Pecola, Túlio, Bertília, Cathy e Solomon, já apresentados acima, na seção 2 – que mi-gram para ambientes brancos para assimi-lar as energias culturais ocidentais, Skeeter é o calibanista afrodescendente que invade

a casa do branco Coelho para ensinar-lhe – o filho de Coelho, Nelson, a namorada de Coelho, Jill, igualmente – um pouco da cul-tura negra. Um dos temas utilizados para a educação de Coelho é a luta de resistência do escravo Douglass ao capataz Covey. De-pois da luta com o capataz e a vitória, Dou-glass esclarece que seu ato de resistência, iniciado na luta, alcança seu ponto alto na fuga do cativeiro. “A partir daí, até o mo-mento em que fugi da servidão”, Douglass escreve em sua autobiografia, “nunca mais fui realmente açoitado. Várias tentativas foram feitas, mas nenhuma teve sucesso. Ainda que me ferissem, nunca mais, des-de o episódio que relatei, fui sujeito à bru-talização da escravatura” (UPDIkE, 1992, p. 250). Skeeter não apenas se manifesta como um calibanista e portador de identi-dade nacionalista. É igualmente um cata-lista. Esta identidade, que resulta da hibri-dação racial, aproxima o jovem revolucio-nário negro de dois jovens brancos – Jill e Nelson – que, na casa de Coelho, se juntam numa única missão: reeducar racialmente o branco conservador. É Jill quem explica a Coelho a decisão tomada por ela, Skeeter e Nelson, filho do anfitrião:

Todos nós concordamos, eu acho, que o seu problema é que você nun-ca teve oportunidade de formular as suas ideias [...] A sua vida não tem reflexão [...] O Skeeter irrita e assus-ta você porque ele é opaco, você não sabe nada sobre o passado dele. E não estou falando sobre o passado individual dele, mas dos negros, por que é que ele chegou a esse ponto [...] por isso achei que hoje seria in-teressante a gente falar um pouco, fazer uma espécie de seminário so-bre a história afro-americana (UPDI-kE, 1992, p. 202).

No Brasil, a peça de teatro Anjo ne-gro, de Rodrigues (1981), projeta o jovem negro Ismael como detentor de identida-de assimilacionista. Médico, Ismael recorre ao casamento com a jovem branca Virgí-

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nia para catapultar sua ascensão social no mundo branco. Ismael adere à branquida-de de Virgínia para dominá-la. A branqui-dade está circunscrita à mansão que ele constrói, totalmente branca:

Se eu quis viver aqui, se fiz estes muros; se juntei dinheiro, muito; se ninguém entra na minha casa [...] Se mandei abrir janelas muito altas, muito, foi para isso, para que você esquecesse, para que a memória morresse em você para sempre [...] Virgínia, olha para mim, assim! Eu fiz tudo isso para que só existisse eu. Compreende, agora? Não existe rosto nenhum, nenhum rosto bran-co! – só o meu, que é preto” (RODRI-GUES, 1981, p. 134).

No Haiti, o exemplo é fornecido por Allende (2010), romancista chilena, no ro-mance A ilha sob o mar. Três personagens negras se enquadram nas experiências me-taforizadas por Ariel, Caliban e Exu. Zarité, a escrava jovem que trabalha na casa do sr. Valmorain, dono de canaviais em Saint Do-mingues, assimila muitas das práticas reli-giosas da patroa Eugenia, uma espanhola que vive em Cuba antes de casar-se com Valmorain. É a própria Zarité quem conta como faz as orações cristãs com a patroa:

Quando terminei, ela se ajoelhou no seu oratório e rezou em voz alta um rosário completo, repetido por mim, como era minha obrigação. Eu havia aprendido as orações, ainda que não entendesse seu significado. Nesse tempo eu já sabia várias pala-vras em espanhol e podia lhe obe-decer, porque ela não dava ordem em francês nem em créole (ALLEN-DE, 2010, p. 66).

No mesmo grupo das amizades de Zarité, vamos encontrar o calibanista Ho-noré, um velho escravo que ensina à me-nina a respeito da África e dos rituais de vodu, através da dança e do tambor que sabe tocar como ninguém. Zarité conta

que “Honoré sempre me falava da Guiné, dos loas, do vodu, e me advertiu de que eu nunca pedisse ajuda aos deuses brancos, porque são nossos inimigos. Explicou-me que, na língua dos seus pais, vodu quer di-zer espírito divino. Minha boneca represen-tava Erzuli, loa do amor e da maternidade” (ALLENDE, 2010, p. 49). Além da assimi-lacionista Zarité e do nacionalista Honoré, nos deparamos com a catalista Tante Rose. Ela é a detentora de muito conhecimento, negro e branco. É também a curandeira e a parteira da região ao redor da fazenda Saint-Lazare, do sr. Valmorain. E atende, nos dois ofícios, a escravos e brancos, sem distinção. É requisitada, também, pelas duas classes. É ela quem faz o parto de Eu-genia, na primeira gravidez da esposa de Valmorain. Porém, antes que o parto ocor-ra, precisa negociar com Baron Samedi, “loa do mundo dos mortos” para que o es-pírito permita a vinda ao mundo do bebê. Zarité descreve a negociação que Tante Rose estabelece com o Baron: “cumpri-mentou-o com uma reverência, agitando o asson com seu chocalhar de ossinhos, e lhe pediu permissão para se aproximar da cama” (ALLENDE, 2010, p. 98). Quando a permissão é dada, o Baron se afasta do quarto e a parteira, então, se aproxima da sra. Eugenia. Zarité conta que “Tante Rose explicou a situação para a patroa: o que ti-nha na barriga não era carne de cemitério, mas um bebê normal que Baron Samedi não levaria” (ALLENDE, 2010, p. 99). O re-cém-nascido, saudável, é entregue a Zarité que, daquele momento em diante, se torna responsável pelo menino dos Valmorains.

6. Implicações teóricas e práticas

Que implicações podem surgir da longa e exaustiva discussão desenvolvida até este momento, a respeito da mobilida-de racial e movência identitária no âmbito

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das experiências afrodescendentes prota-gonizadas por afrodescendentes arielistas, calibanistas e exuístas, da África à Europa, nas línguas inglesa, francesa, espanhola e portuguesa? Pode-se afirmar que o estu-do projeta um olhar sobre uma potencial comunidade afro-americana imaginada na diferença. Através da noção de diferença, a experiência afrodescendente é mediada por um conjunto complexo de diferenças, apoiadas por conceitos, metáforas, iden-tidades e personagens: conceitos de ne-grice, negritude e negritice; metáforas de Ariel, Caliban e Exu; identidades assimila-cionista, nacionalista e catalista; persona-gens africanos, afro-americanos, afro-bra-sileiros, afro-caribenhos e afro-britânicos, respectivamente. O respeito às diferenças é preponderante porque, para Hall (2006), o que marca uma comunidade transcultu-ral/transracial – local, ou nacional – não é um repertório de igualdades, mas, ao con-trário, um conjunto de diferenças. Ele re-comenda que “em vez de pensar as cultu-ras nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um disposi-tivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade” (HALL, 2006, p. 62, grifos nossos). Tomando a diferen-ça como o elemento constitutivo de um grupo cultural, como aconselha o autor, pode-se se pensar que, nesta comunida-de imaginada de personagens africanos e afrodescendentes nas obras de escritores negros e brancos, a diferença identitária é seu aspecto mais característico. Nela, complementam-se – suplementam-se – as identidades de assimilação, nacionalismo e catalismo.

As “profundas divisões e diferenças internas” (HALL, 2006, p. 62), associadas aos contínuos deslocamentos identitários que se interpelam no seio de uma comuni-dade não a paralisam. Ao contrário, a toni-ficam, porque suplementares, e favorecem atitudes abertas ao diálogo dos diferentes. Por isso, é possível esperar que arielistas,

calibanistas e exuístas negros conversem entre si e se completem, sem exclusão de qualquer um deles. Em outras palavras, que se crioulizem, como pensa Glissant (2005), e, assim, se tornem agentes de uma co-munidade de cultura compósita, que nos conclama a “entrarmos na difícil comple-xão de uma identidade relação, de uma identidade que comporta uma abertura ao outro, sem perigo de diluição” (GLISSANT, 2005, p. 28, grifos nossos). Pensar que nesta comunidade descortinada nos textos – romances, peças de teatro, poemas – um assimilacionista negro vá ao encontro de um negro nacionalista, sem medo de rejei-ção ou de estigmatização, e os dois cami-nhem na direção de um catalista, é pensar em um tipo de conversão política cujo elo agregador é o amor, em sua dupla mani-festação de autoamor e amor dos e pelos outros. Este caminhar na direção do outro é uma mudança radical de agência identi-tária e política que, segundo West (1994) “se faz por meio da afirmação, pela pes-soa, de seu próprio valor – afirmação essa alimentada pela consideração dos outros. Uma ética do amor tem de estar no cen-tro da política de conversão” (WEST, 1994, p. 35).

A conversão política alia-se a duas mobilidades: a identitária e a textual. Hall (2001) alerta para o fato de que a identida-de se constrói no movimento que transfor-ma os atores políticos, esclarecendo que a identidade é “formada e transformada continuamente em relação às formas pe-las quais somos representados ou interpe-lados nos sistemas culturais que nos ro-deiam” (HALL, 2006, p. 13). As identidades de assimilação, nacionalismo e catalismo, deslocadas nas interações culturais, se afinam com o deslocamento textual que aproxima textos literários, permitindo di-álogos e conversas intertextuais. Gates (1988) enxerga nos diálogos intertextuais a significação negra, ou seja, o tipo de in-tertextualidade que “mostra como textos

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negros ‘conversam’ com outros textos ne-gros” (GATES, 1988, p. xxvi). Para ele, esta conversa não é pura repetição, mas admi-te revisão e diferença. “A significação”, ele acrescenta, “é uma metáfora da revisão textual” porque permite que “um texto sig-nifique sobre o outro texto, por meio da revisão, ou repetição e diferença tropológi-cas” (GATES, 1988, p. 88).

A visão que se alcança deste emba-te entre diferença, mobilidade, criouliza-ção, conversão e significação é a de que os negros – amparados por conceitos, me-táforas e identidades – são capazes de se construírem sujeitos das margens, ativos e produtivos, que se introduzem “no cenário político e cultural” (HALL, 2003, p. 338) e dele se apossam. Nas posturas intercul-turais e inter-raciais, pode-se vislumbrar suas atitudes existenciais aproximando-os do pós-moderno pela pluralidade, dos es-tudos culturais pela ênfase na diferença e do existencialismo sartreano pela respon-sabilidade: a do arielista para com os valo-res brancos; a do calibanista pelos valores negros; a do catalista pelos dois conjuntos de valores. Para Sartre (1984), “o homem [não] é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas ele é responsável por todos os homens” ou, dito de outra forma, cada um deles se escolhe, mas “escolhen-do-se, ele escolhe todos os homens“ (SAR-TRE, 1984, p. 6).

No âmbito da grande comunidade da intercontinental diáspora negra, a res-ponsabilidade da tríade de personagens se avulta ainda mais, uma vez eles repre-sentam respostas individuais a cada uma das três situações do dilema que Du Bois (1986) coloca diante do negro americano, quando se pergunta:

O que, afinal, sou eu? Sou um Ame-ricano ou sou um Negro? Posso ser os dois? Ou é minha obrigação dei-xar de ser um Negro imediatamente para ser um Americano? Se me es-forço para ser um Negro, não estarei

perpetuando o mesmo abismo que ameaça e separa a América Negra da América Branca? Não será meu único objetivo prático submeter ao que é Americano tudo o que é Ne-gro em mim? O meu sangue negro coloca sobre mim mais responsabi-lidade para afirmar minha naciona-lidade do que o sangue Alemão, ou o Irlandês, ou o Italiano faria? (DU BOIS, 1986, p. 821).

Como os arielistas, Martin Luther king também responde positivamente à pergunta de Du Bois “sou um ocidental?”; como os calibanistas, a resposta de Mal-colm X é um sim à indagação de Du Bois “sou um Negro?”; como os catalistas, Oba-ma diz um sim à terceira alternativa de Du Bois “posso ser os dois?”.

Considerações finais

A instabilidade da significação iden-titária entre negros arielistas, calibanistas e exuístas marca a transidade na afrodes-cendência de maneira significativa. As de-zenas de personagens e personae negros assimilacionistas, nacionalistas e catalistas presentes na análise desenvolvida, a partir de vários textos poéticos, ficcionais e tea-trais de autores negros e brancos dos vá-rios continentes, atestam a transnacionali-dade da experiência negra. Bhabha (1998) argumenta que uma experiência é transna-cional quando

Os discursos pós-coloniais contem-porâneos estão enraizados em his-tórias específicas de deslocamento cultural, seja como “meia-passa-gem” da escravidão para a servidão, como “viagem para fora” da missão civilizatória, a acomodação maciça da migração do Terceiro Mundo para o Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, ou o trânsito de refugiados econômicos e políticos dentro e fora do Terceiro Mundo (BHABHA, 1998, p. 241).

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Porém, a transidade pós-colonial negra não se caracteriza apenas pela ques-tão transnacional. Ela embute também um fator inerente à dispersão intercultural, a tradução, algo que Bhabha (1998) descre-ve sugerindo que “a cultura é tradutória porque essas histórias espaciais de deslo-camento – agora acompanhadas pelas am-bições territoriais das tecnologias ‘globais’ de mídia – tornam a questão de como a cultura significa, ou o que é significado por cultura, um assunto bastante complexo” (BHABHA, 1998, p. 241).

A perspectiva pós-colonial da junção entre transidade e tradução evita as limi-tações binárias dos antagonismos entre o mundo cultural do negro e o do bran-co para aí introduzir um terceiro elemento que tende a superar as restrições impostas pelo binarismo. Nos textos analisados, vi-mos, de um lado, como arielistas se opu-seram a calibanistas, como assimilacionis-tas se distanciaram de nacionalistas. Do outro, percebemos como exuístas negros e brancos compartilharam experiências, como catalistas afrodescendentes e euro-descendentes hibridizaram posturas. No caso dos catalistas exuístas, a tradução se fez presente. A tradução ocorreu porque os

negros e os brancos que se juntaram para resolver um problema comum – Jill, Nelson e Skeeter, durante o processo de educação de Coelho – descobriram seus exus. Gates (1988) esclarece que ações compartilhadas acontecem porque os personagens envol-vidos percebem a presença de seus exus. “Exu é a soma das partes, tanto quanto é aquilo que conecta as partes” (GATES, 1988, p. 37). Quando negros e brancos se separam, como fica demonstrado entre arielistas e calibanistas, isto acontece pela ausência de Exu na vida daqueles negros. Gates explica a inexistência da tradução entre eles, dizendo que “uma pessoa que não tem a um Exu em seu corpo não pode existir, nem sabe que está vivo” (GATES, 1988, p. 37).

Entre Ariel, Caliban e Exu – e os sig-nificados étnico-raciais que contemplam – o negro não precisa optar, mas crer que viver como afrodescendente é vida vária, que se arieliza, se calibaniza e se exuíza, sempre e alternadamente, na diferença. “A noção de diferença”, nos ensina Paterson (2007), “é fundamental para nossos pro-cessos cognitivos” e “nos permite construir sentido do mundo” (PATERSON, 2007, p. 13) e de nós mesmos.

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A partir de 2003, com a aprovação da lei 10.639, que instituiu a obrigatorie-dade do ensino da história e cultura africa-na e afro-brasileira na educação básica nas escolas públicas e privadas (BRASIL, 2003), notamos um impulso nas discussões que envolvem as questões étnico-raciais no processo de educação (PRUDENTE, 2007).

No entanto, são avanços tímidos e os livros didáticos2 e os currículos esco-lares ainda tratam de forma superficial as contribuições africanas na formação de nosso país. No ensino da arte, alguns estu-dos apontam para uma omissão quase ab-soluta que acaba reforçando a ideia de que a África era um continente sem nenhum conhecimento (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 11); outros afirmam que, quando o assun-to é discutido, opera no sentido de recupe-rar a visão preconceituosa do europeu em relação à estética africana, onde “o sujeito é branco e o negro é objeto” (CARVALHO, 2005), “o branco civilizado e o negro primi-tivo” (MENESES, 2007, p. 62).

Tais afirmações estão diretamente ligadas a uma visão etnocêntrica3 de so-ciedade, que coloca a Europa como única matriz de nossos saberes e nega à popu-lação africana qualquer contribuição. Nos-sa intenção nesse trabalho é questionar de forma aberta essas afirmações a partir da análise, ainda que sucinta, da arte africana,

nos posicionando a favor das teorias que afirmam que diferenças estéticas e cultu-rais não justificam a hierarquização dos grupos humanos, como fizeram os euro-peus em relação à população indígena e africana, além de apontar as contribuições da estética africana para o desenvolvimen-to da arte moderna europeia e brasileira.

Arte Africana

Por ser um assunto bastante amplo e ocupar um vasto espaço de tempo, não há, neste trabalho, condições para se fazer uma abordagem muito detalhada, portan-to, nossa discussão será superficial e por isso vamos destacar as características mais específicas da Arte Africana. Vamos chamar de Arte Africana toda produção plástica – arquitetura, pintura, escultura, desenho, tapeçaria, máscaras e outros objetos que apresentem valores estéticos – oriunda do continente africano.

Muitos desses objetos que hoje são classificados como obra de arte e assim estudados foram criados com outras inten-ções; no entanto, os africanos viam o belo como uma das muitas funções que um ob-jeto deveria cumprir (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 26). É necessário lembrar que a ideia de beleza não é a mesma em todas as socie-

A mão afro-brasileira – arte africana

Marco de Oliveira1

1 Mestre em Educação pela UFPR; doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. Pesquisador colaborador no NEAB-UFPR.

2 Os livros didáticos, bem como o embasamento teórico presente no sistema educacional do país, enfatizam a matriz europeia da formação histórica brasileira (SILVA; CALAÇA, 2006).

3 O etnocentrismo é um jeito de ver o mundo no qual um determinado povo (etnos) está no seu centro geográfico e moral, ponto a partir do qual todos os outros povos são medidos e avaliados. O etno-centrismo chega mesmo a afirmar que os limites do humano são os limites daquele povo.

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dades e também não é estática, estando em constante transformação.

Nas civilizações tradicionais africa-nas, a arte ocupa um papel importante na vida das pessoas, nobres ou não, sendo ob-servada em espaços públicos ou privados, em situações cotidianas ou específicas; as-sim, o conceito de belo é sempre coletivo. A ideia presente em um objeto deve ser acessível a todo o grupo, ainda que em al-gumas situações esse objeto só possa ser acessado por alguns poucos eleitos.

Por ocupar um lugar de destaque, o artista é respeitado e temido, pois, além de estar em contato com forças reprodutoras e reguladoras do universo de onde deriva sua força criativa, também manipula ele-mentos sagrados, como o metal, o fogo e a madeira (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 35).

A Arte Africana explora diversas pos-sibilidades estéticas e materiais, sendo que, muitas vezes, a pintura, a escultura e a arquitetura estão integradas de tal ma-neira que acabam compondo uma única obra. A escultura, no entanto, representa sua principal forma de expressão, sendo observada em todos os reinos, caracte-rizada principalmente pela estilização e geometrização. Por tratar-se de uma arte que transmite ideias, conceitos e valores grupais, o artista deve sugerir e não repre-sentar e, assim, revelar a essência presente nas formas (SILVA; CALAÇA, 2006). A rela-ção entre a arte e o sagrado também se verifica em todas as populações africanas em maior ou menor proporção.

O contato dos europeus com a Arte Africana se efetiva durante o regime escra-vocrata, época em que a população negra teve sua humanidade questionada de for-ma totalmente explícita. No entanto, antes mesmo desse contato já havia descrições fantasiosas e aterradoras a respeito do

continente africano, com afirmações de que era habitado por pessoas com um olho só e/ou pernetas, ou que tinham cabeça de animal e que dos céus jorrava fogo, e os estrangeiros seriam recebidos por serpen-tes e ogros (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 12).

Descrições como essas alimenta-vam o imaginário de cronistas, desenhis-tas, pintores, ilustradores e escultores, que produziam textos e imagens alegóricas4 que ajudavam a construir os conceitos de civilização a partir da realidade europeia, enquanto a população negra era descrita e retratada como primitiva, vivendo em esta-do natural no meio de animais selvagens.

A pele negra da população africana passou a ser interpretada como um defeito pelos europeus, que foram buscar nos tex-tos bíblicos algumas das explicações, que por sinal eram bastante adequadas aos in-teresses escravagistas. Uma delas associa-va a pele negra ao Mito da Pele Assinalada.

Esse mito está associado a Caim, que matou seu irmão Abel e depois saiu pelo mundo para povoá-lo. Como castigo divino, teve uma marca impressa na pele e que seria transmitida a seus descendentes, possibilitando que fossem identificados e apartados dos justos que seguiam os en-sinamentos de Deus (SEVCENkO, 2006, p. 121). A pele escura dos africanos seria então vingança de Deus (SILVA; CALAÇA, 2006).

Outra passagem bíblica, a Maldição de Cã, também se assemelha a esse mito e também foi usada para justificar a escra-vização da população africana. De acordo com Marcos Rodrigues da Silva (1987, p. 122), o Padre Nóbrega afirmava que os afri-canos eram “descendentes de Cã, filho de Noé, que descobriu as vergonhas do pai. Por isso são negros e sofrem outras misé-

4 A palavra alegoria é de origem grega, composta por alos, que significa outra coisa, e agareio, que significa dizer. Alegoria, então, significa dizer uma coisa através de outra ou simplesmente representar (SEVCENkO, 1996).

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rias. Portanto, são condenados por Deus a serem sempre escravos dos brancos”.

Essas explicações não só isentavam a população europeia de qualquer culpa em relação ao criminoso regime escravo-crata, mas o transformava numa missão evangelizadora, ao mesmo tempo em que se procurava afirmar o branco como o mo-delo de humanidade, já que o “homem” era uma criação divina.

Não só a religião, mas também a ciência e a arte vão operar no sentido de confirmar a suposta superioridade euro-peia e as imagens que vão sendo produ-zidas ajudam a compor “estereótipos, uns celebratórios, outros extremamente pejo-rativos, racistas e dolorosos da população africana” (MENESES, 2007, p. 58).

Assim, tudo o que estava associa-do ao modo de vida do branco europeu é apontado como sinônimo de civilidade. A estética africana que não tinha nenhuma relação com a arte europeia pôde então ser classificada como deformada e primitiva (SILVA; CALAÇA, 2006) e o artista africano visto como incapaz de reproduzir imagens figurativas com características realistas, como faziam os europeus.

A desqualificação da Arte Africana não impediu que milhares de objetos – es-culturas, máscaras, peças em metal, ma-deira, marfim, etc. – fossem saqueados e levados aos milhares para a Europa e co-mercializados como fetiches noires (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 27), tratados como obje-tos “de análise antropológica, sociológica e etnológica e não como arte propriamente dita” (PRUDENTE, 2007, p. 13).

Somente no final do século XIX e iní-cio do século XX é que a produção artística africana passou a ser considerada obra de

arte e suas qualidades estéticas estudadas. Várias exposições são realizadas na França e nos Estados Unidos da América nas dé-cadas de 1920 e 1930, porém sem a preo-cupação de identificar a autoria das obras, contribuindo para difundir a ideia errônea de que o anonimato seria uma das carac-terísticas da Arte Africana. A diversidade de estilos não impediria a identificação dos autores, pois estão ligados a determinados ateliês onde esse estilo seria transmitido de pai para filho (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 29), como a Escultura Makonde5, que resis-tiu à presença europeia, mantendo até os dias de hoje suas características originais.

Apesar do reconhecimento, nessa época ainda, “as construções sociais como tribo, etnia e cultura irão predominar na descrição da realidade africana, enquanto a Europa se classificava como civilizada, desenvolvida” (MENESES, 2007, p. 59), re-forçando o discurso de sua suposta supe-rioridade racial.

A ideia de “raças humanas” nasceu quando os cientistas europeus tentavam categorizar as diferenças entre as popula-ções que viviam afastadas da Europa e usa-ram a aparência física para justificar uma suposta diferença biológica. Assim, a ideia de superioridade da raça branca, suposta-mente comprovada pela ciência, passou a justificar procedimentos de dominação de outros povos, como a escravidão e o colo-nialismo (NASCIMENTO, 2006, p. 34).

É Leo Frobenius o primeiro estu-dioso europeu a reconhecer as qualidades estéticas da arte produzida no continente africano e também foi o primeiro a ques-tionar as classificações de bárbaro atribuí-das a seus habitantes, abrindo espaço para

5 A Escultura Makonde é feita a partir de um único tronco de madeira, resultando em uma com-posição que lembra uma coluna ou uma torre onde se identificam figuras de pessoas ou animais, ou os dois, de maneira estilizada ou realista. Os Makondes são um povo da África oriental, que habita três planaltos do norte de Moçambique e sul da Tanzânia. Tem como atividades principais a agricultura e a escultura, sendo apreciados mundialmente pelas suas belas máscaras e esculturas em madeira, que refletem a sua estética e cultura ricas (http://makonde.wordpress.com/cultura-makonde/).

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discutir o conceito de tribo utilizado para se referir às organizações sociais africanas.

Na verdade, a África com a qual os navegantes europeus se depararam era constituída por reinos, alguns anteriores à formação dos países europeus, como o Egito, que existe há mais de 5.000 anos. Outros foram extintos antes da chegada dos europeus, como o Reino de Ghana (700 a 1.200), conhecido como a terra do ouro e que teve um dos soberanos mais poderosos de toda a história da humani-dade, o Rei Tunka Manin, considerado, no início do século XI, o governante mais rico da terra, tendo um exército com mais de 200 mil homens e mais de 1.000 cavalos somente para o seu uso pessoal (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 14-15). “O império era formado por diversas etnias, governado por um rei que possuía o título de Ghana – senhor do ouro” (OLIVEIRA, 2003, p. 31).

Outros reinos, no entanto, entraram em declínio após a chegada dos europeus,

como o Império do Mali, onde predomina-va a etnia Sosso, que resistiu até o século XVI (OLIVEIRA, 2003, p. 35). De acordo com o sábio egípcio Uthman Ed-Dukkali, o rei-no era formado por cerca de 400 cidades e media de comprimento quatro meses de viagem e outros quatro meses de viagem para a largura. A capital Nianni tinha uma população estimada em 100 mil habitantes (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 17).

A maioria dos reinos africanos se de-senvolveu ao longo de bacias hidrográficas importantes, como as do Rio Nilo, Rio Zam-beze, Rio Níger e Rio Congo, e isso talvez explique por que as técnicas de navegação usadas pelos africanos fossem superiores às dos navegadores europeus, que não conheciam inclusive a longitude.

Os egípcios foram os primeiros a projetar barcos pensando previa-mente no destino que eles teriam. Modelos militares eram diferentes dos cargueiros, que por sua vez não se pareciam com os utilizados para lazer ou cerimônias religiosas. Eles criaram os melhores barcos milita-res e a frota mais veloz. A chamada Nau de Quéops, com 47 metros de comprimento e datada da Quarta Dinastia (2589 a 2566 a.C.), é a mais antiga embarcação desse porte en-contrada até hoje (CUNHA, 2011).

É bem provável que as avançadas técnicas de navegação dos africanos tenham possibilitado sua chegada nas Américas bem antes dos europeus. Os pri-meiros espanhóis que visitaram o Istmo do Panamá e o México no início do século XVI registraram a existência de povos negros vivendo na floresta. O pesquisador Ivan Van Sertima (1983), natural da Guiana Inglesa, aponta dois períodos de contato entre a África e as Américas. Primeiro, quando a Núbia6 reinava como principal poder marí-timo mundial. O segundo contato seria na

ILUSTRAÇÃO 1 – Escultura Makonde.FONTE: <http//makonde.wordpress.com/cultura-makonde>.

6 É dessa época a Escultura Olmeca, que retrata, entre outras formas, cabeças humanas de dimensões colossais que lembram marinheiros núbios com indumentárias típicas.

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7 Segundo relato de Mansa kankan Musa, imperador de Mali em 1324, o antecessor dele, Príncipe Abu-Bakari II, havia lançado duas expedições para explorar os limites do Oceano Atlântico. Na primeira, ele enviara 200 navios com guerreiros e outros 200 abarrotados de comida, água e mercadorias para comércio. Um dos barcos teria conseguido retornar e, no relato de seu capitão, Abubakari II tomou conhecimento da existência de uma corrente tão forte que mais parecia um rio em pleno Oceano Atlântico. Com base nisso, o príncipe teria levado a efeito outra expedição, desta vez com 1.000 navios carregados de guerreiros e outros 1.000 com mercadorias, comida e água.

ILUSTRAÇÃO 2 – Escultura Olmeca – México (Aprox. 1.200 a.C.)FONTE: <http://pt.encydia.com/es/Idade_de_Pedra>.

época do príncipe Abu-Bakari, impera dor do Mali, um império sem litoral, por isso mandou construir frotas e lançou expedi-ções ao Atlântico. O próprio Abu-Bakari de-cidiu embarcar em uma dessas expedições e nunca mais retornou. No livro de tradi-ções dos Maias, o Popol-Vuh, há registros de um príncipe trajando branco vindo de onde nasce o Sol (1311 d.C.). O período coincide com a aventura marítima de Abu-Bakari7, que resultou em seu desapareci-mento (NASCIMENTO, 2006).

Cristovão Colombo notou a pre-sença de descendentes de africanos no Pa-namá e Honduras, sendo que alguns ame-ricanos nativos fizeram relatos de comba-tes e afundamento de barcos africanos em vários pontos da costa. O espanhol Gregó-rio Garcia disse ter observado a presen-

ça de negros em Cartagena, na Colômbia (http://waves.terra.com.br, 2011).

A África como palco dos maiores avanços tecnológicos da história – agricul-tura, criação de gado, mineração e metalur-gia, comércio, escrita, medicina, arquitetu-ra e engenharia na construção de grandes centros urbanos, sofisticação na organiza-ção política, avanço do conhecimento e da reflexão intelectual (NASCIMENTO, 2006, p. 35) – foi percebida pelos invasores euro-peus, que se depararam com cidades mais urbanizadas que as europeias (OLIVEIRA, 2003, p. 39). No entanto, para justificar suas ações de invasor e para sustentar o discurso de uma suposta superioridade – racial e civilizatória –, o europeu redimen-sionou para menos a importância da cultu-ra africana a partir de discursos omissos e/ou depreciativos que procuravam associar os povos africanos a um estágio primitivo de desenvolvimento, onde seria possível a utilização, sem nenhum constrangimento, dos conceitos de tribo e de bárbaro.

Egito

“É no vale do rio Nilo que se de-senvolveu a maior civilização clássica afri-cana, a egípcia, cujas origens estão na mi-gração de africanos vindo do oeste, sul e sudoeste, provocada em parte pela deser-tificação do Saara” (NASCIMENTO, 2006, p. 40). São os egípcios os inventores da escri-ta, os primeiros a estudarem e praticarem a medicina (3.200 a.C.) e os responsáveis pelo desenvolvimento de um calendário mais exato que o ocidental moderno qua-tro mil anos antes de Cristo (NASCIMENTO, 2006, p. 40).

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ILUSTRAÇÃO 3 – Família Egípcia – Período Pré-dinásticoFONTE: <http://www.biblioteca.templodeapolo.net>.

8 No início, o escultor, desprestigiado socialmente – o trabalho manual era desonroso – permanecia como um artífice anônimo a serviço da vaidade do contratante. É no antigo Egito que os escultores passam a ser valorizados, tendo o seu prestígio aumentado no ritmo das conquistas políticas e econômicas do reino (SALUM, 2000).

A arte egípcia é o mais longo de to-dos os capítulos da história da arte e de-senvolveu-se ligada à religião e à crença na vida após a morte. Ao contrário das demais expressões artísticas africanas, não foi con-siderada primitiva ou deformada, uma vez que a ideologia etnocêntrica europeia a classifica como cultura mediterrânea (SIL-VA; CALAÇA, 2006, p. 13).

A arquitetura egípcia, sobretudo a funerária, agregava elementos da escultura e da pintura e também do mobiliário.

O uso da escultura, em especial o baixo relevo, foi largamente utilizado como “instrumentos de propaganda destinados a servir à fama dos imortais ou à fama póstu-

ma de seus representantes na terra” (HAU-SER, 1995, p. 29).

A Lei da Frontalidade era a regra principal a orientar o escultor8 egípcio. De acordo com ela, a figura deveria estar sempre olhando para frente e era planeja-da para ser vista ou analisada somente de frente. Por este motivo, as esculturas eram concebidas a partir “de um eixo vertical, que, passando pelo nariz e entre as duas pernas, divide o corpo em duas metades idênticas ou quase iguais” (BOZAL, 1995, p. 41), independentemente de as figuras estarem sentadas, de joelhos ou em pé. Os braços estão sempre colados ao corpo, es-tendidos ou com as mãos sobre as coxas

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ILUSTRAÇÃO 4 – Estatueta funerária.FONTE: NEYT; VANDERHAEGHE (2000, p. 39).

ou cruzados sobre o peito. Quando repre-sentam pessoas em pé, mesmo quando um dos pés se adianta simulando uma marcha, o efeito ainda é essencialmente estático.

Na pintura, a Lei da Frontalidade também se constitui no elemento mais im-portante. A figura humana é sempre retra-tada seguindo rígidos cânones impostos pela religião. A cabeça e os pés são mos-trados de perfil, o olho e o tronco são mos-trados de frente e os braços podem cair ao longo do corpo ou ter um ou os dois bra-ços cruzados sobre o peito. São comuns imagens onde as pessoas possuem dois membros direitos ou esquerdos, tanto na parte superior quanto na parte inferior do corpo. “Na representação frontal da figura humana, a parte superior do corpo vista de frente é a expressão de uma relação defi-nida e direta com o observador [...] é uma arte que pede e mostra respeito pelo públi-co” (HAUSER, 1995, p. 39).

O pintor egípcio não usava a pers-pectiva e nem os valores de luz e sombra, pois não havia interesse em dar profundi-dade às suas composições, afinal de con-tas, descrever detalhadamente um aconte-cimento era mais importante do que retra-tá-lo de forma realista. Era o lado direito da figura retratada que deveria ficar voltado para o observador, sendo essas tradições, regras e leis observadas com extremo ri-gor pela classe sacerdotal, pela corte, pela aristocracia feudal e pela burocracia (HAU-SER, 1995).

Por um curto período, durante o go-verno de Amenhotep IV, essas regras são quebradas e a arte egípcia, tanto na pin-tura quanto na escultura, explora o rea-lismo de forma mais aberta. Há pinturas em que a figura humana estende o braço e mãos e pés são desenhados com mais precisão anatômica, mas ainda assim o fa-raó é retratado com o peito voltado para o observador e exibe uma estatura que é duas vezes superior à dos mortais comuns (HAUSER, 1995).

Kongo

O Reino kongo ou Império kongo estava localizado no sudoeste da África no território que hoje corresponde ao noroes-te de Angola e à parte centro-sul do Gabão.

O império, governado por um mo-narca, o Manicongo, consistia de nove províncias e três reinos (Ngoy, kakongo e Loango), mas a sua área de influência es-tendia-se também aos estados limítrofes, tais como Ndongo, Matamba, kassanje e kissama.

O reino Kongo, fundado por volta de 1400, tem na escultura sua principal forma de expressão artística, podendo estar ou não relacionada a questões de ordem re-ligiosa. O escultor kongolês utilizava uma série de materiais como pedra, madeira, vidro, prata, latão, cobre, marfim, fibras ve-getais, pérola, penas e tecidos.

A pedra era utilizada para esculpir a imagem de um rei (Ilustração 4), sempre de maneira bastante simplificada e geome-trizada, preservando apenas no rosto algu-ma semelhança com o modelo, já que de modo geral, assim como toda a arte africa-na, a arte kongolesa se caracteriza por for-mas concebidas “para sugerir e não para reproduzir” (SILVA; CALAÇA, 2006, p. 25). A função dessa escultura era estabelecer a relação material entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Depositada sobre

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o túmulo real, passava, a partir daí, a ser o próprio rei, o seu duplo imortalizado.

A escultura em madeira tinha fun-ções variadas e podia ser utilizada para retratar pessoas influentes que morreram ou para retratar o casal real em peças de pequenas dimensões. No primeiro caso, a escultura seria depositada sobre o túmulo do homenageado e, no segundo, a escul-tura seria utilizada em cultos domésticos.

Já as esculturas com pregos, tam-bém em madeira, representavam as forças do mundo invisível que deviam ser invoca-das através de certos rituais. Determinadas substâncias mágicas eram introduzidas nes sas peças pelos sacerdotes. Substitutas do rei, sua função era caçar as forças do mal e restabelecer a verdade. A lâmina ou prego cravado na escultura, pelo próprio rei, depois de analisar um fato envolvendo disputas entre pessoas de seu reino ou de-pois de intervir para curar um mal físico ou espiritual de um dos seus súditos, encerra-va a questão.

Kuba

No reino kuba, fundado no século XVII reunindo 19 grupos étnicos diferen-tes, os governantes adotavam a prática do mecenato9, possibilitando o desenvol-vimento de várias expressões artísticas, principalmente a escultura e a tapeçaria. As máscaras, os cálices antropomórficos e os tecidos de ráfia, utilizados como moeda de troca ou como símbolo de ostentação, são os elementos mais destacados da arte kuba.

As máscaras, consideradas objetos sagrados, são repletas de simbolismos, obrigando o escultor a conhecer o signifi-cado das formas e dos materiais que utili-za. Uma máscara que apresentava alguma semelhança com um elefante representava prosperidade, assim como o uso de con-chas de madrepérolas e de pérolas. As pe-nas vermelhas de papagaio são o “símbolo de discernimento, de apreensão e de direi-to de vida e de morte” (NEYT; VANDERHAE-GHE, 2000, p. 50). Já os cálices sagrados esculpidos em madeira, em forma de ca-beça humana – que podia ser o retrato de um rei –, estão associados à época da cen-tralização do poder real Bushoong e eram destinados a receber o vinho da vitória,

ILUSTRAÇÃO 5 – Escultura com pregos.FONTE: NEYT; VANDERHAEGHE (2000, p. 42)

9 Mecenato, termo relativo a Mecenas, ou seja, a pessoa que garantia as condições de trabalho a um artista, como moradia e alimentação, custeando também as despesas com a produção das obras. Algumas obras eram “doadas” ao Mecenas.

ILUSTRAÇÃO 6 – Cálice antropomórfico.FONTE: NEYT; VANDERHAEGHE, 2000, p. 52.

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privilégio dos integrantes da corte (NEYT; VANDERHAEGHE, 2000).

Os tecidos de ráfia, conhecidos como Veludos de kasai, eram confecciona-dos nos ateliês do palácio, destinados ao uso do rei e de sua família ou de pessoas li-gadas à corte. Alguns tecidos eram criados especificamente para que fossem ofereci-dos aos mortos ou usados como moeda. As Tangas de Dança Ntshak eram usadas exclusivamente pelas mulheres ligadas ao rei – mãe, filhas e esposas – em cerimônias que lembravam a origem do mundo. Essas tangas, medindo cerca de oito metros de comprimento, eram enroladas ao redor da cintura, cobrindo apenas a parte inferior do corpo (NEYT; VANDERHAEGHE, 2000).

Iorubá

O reino Iorubá, com aproximada-mente 20 milhões de habitantes, era estru-turado por 16 cidades-estado, sendo Ilê-Ife a cidade sagrada onde o poder real era le-gitimado e aprovado. Cada cidade-estado era cercada por um muro de proteção e ti-nha forma de uma cabaça representando o universo. Quatro portas estavam dirigi-das para os quatro pontos cardeais, dando origem a quatro linhas que se cruzavam. Neste cruzamento era construído o palácio real, todo de matéria orgânica.

A escultura também é a principal forma de expressão artística Iorubá, estan-

do associada, na maioria dos casos, ao sa-grado e procura estabelecer um elo com os ancestrais de onde advém toda a energia sagrada, o Axé. A relação com os orixás re-sultou na confecção de uma infinidade de objetos, como bandejas e cálices para adi-vinhação, cetros, máscaras, altares e figu-ras masculinas e femininas que podiam ser expostos em público ou não (NEYT; VAN-DERHAEGHE, 2000).

A diversidade de objetos produzidos pelos mestres iorubanos revela um domí-nio técnico bastante apurado, seja em pe-ças grandes que decoravam as fachadas dos palácios, seja em peças de marfim de pequenas proporções aplicadas em vesti-mentas cerimoniais, como as cabeças de carneiro em forma de fivelas que garan-tiam a proteção e o sucesso de quem as usasse, geralmente chefes militares.

Entre os diversos estilos escultóricos observados entre os iorubanos, o estilo de-senvolvido pelos escultores do reino Owo para trabalhar o marfim ficou bastante co-nhecido, assim como as máscaras cerimo-niais Gueledés.

A sociedade Gueledés prestava ho-menagem às forças femininas e acreditava que as mulheres tinham um poder igual ou superior aos deuses e aos ancestrais, que tanto podia ser benéfico ou maléfico. Durante as celebrações que evocavam o poder das forças femininas do universo, o uso de máscaras era obrigatório e podiam retratar uma pessoa ou um animal, ser re-alistas ou estilizadas, usadas no rosto ou acima da cabeça em forma de máscaras capacete (NEYT; VANDERHAEGHE, 2000).

Arte africana contemporânea

Assim como a arte tradicional, a arte contemporânea africana é um assunto muito extenso, portanto, nossa discussão será bastante resumida.

ILUSTRAÇÃO 7–Máscara pendente –

MarfimFonte: NEYT;

VANDERHAEGHE (2000, p. 69)

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Muito da estética observada na arte contemporânea, principalmente na escul-tura, tem origem secular, nas sociedades tradicionais, justamente porque a simpli-ficação, a geometrização e a estilização da forma são anteriores aos movimentos modernistas europeus, influenciados di-retamente pela estética africana, sendo o Cubismo o exemplo mais explícito, tendo em Pablo Picasso o seu representante mais importante.

Esta valorização, no entanto, não re-sultou no reconhecimento do artista africa-no, que continuou no anonimato. Somente a partir da década de 1960 é que essa situ-ação começa a mudar e alguns escultores que trabalhavam com pedra, no Zimbábue, conseguem ter seu trabalho reconhecido. Entre eles, Henry Munyaradzi (1931-1998), Bernard Matemera (1946-2005) e Sylvester Mubayiz (1942-). Depois deles, outros ar-tistas africanos também conquistaram es-paços importantes no concorrido mercado internacional de arte.

Malick Sidibé

Em 1968, a Bienal de Veneza pre-miou o fotógrafo Malick Sidibé, do Mali, com o prêmio Lion d’Or, tornando-se o primeiro artista africano a receber este prêmio.

Esther Mahlangu

Esther Mahlangu, da etnia Ndebele (África do Sul), transpôs os murais pintados nas paredes das casas de sua comunidade para as telas e levou o seu trabalho para outros públicos. A artista começou a ganhar visibilidade após um grupo de pesquisadores franceses conhecerem seu trabalho em 1986. Em 1989, Esther viajou até Paris para criar os murais da exposição “Magiciens de la Terre” e a partir daí ficou bastante conhecida (PALOMINO, 2009, p. 46).

ILUSTRAÇÃO 10 – Ester Mahlangu – Pintura (2007) FONTE: <http://mamboxx.blogspot.com/2009/01/esther-mahlangu.html>.

ILUSTRAÇÃO 8 – Esther Mahlangu– Esta é Minha Casa – Pintura - (2007)Fonte:http://mamboxx.blogspot.com/2009/01/esther-mahlangu.html

ILUSTRAÇÃO 9 – Casa Ndebele (África do Sul)

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123Marco de Oliveira

Rosemary Karuga

Rosemary karuga nasceu no kê-nia, em 1930. Estudou em uma das pou-cas escolas para negros em Nairóbi, onde começou a se interessar por arte. Tentou tornar-se uma artista comercial, fazendo esculturas e pinturas, mas não conquistou o sucesso que esperava. Então, decidiu de-sistir e tornar-se professora. O reconheci-mento só aconteceu no final da década de 1980, quando passou a trabalhar com co-lagens. Sua primeira exposição aconteceu em 1990.

ILUSTRAÇÃO 11 - Rosemary karuga – Colagem.FONTE: <http://outandaboutafrica.blogspot.com/2009/11/art-scene-rosemary-karuga.html>.

Frank Arroni Ntaluma

O escultor Frank Arroni Ntaluma é um escultor Makonde, natural de Nanha-gaia, distrito de Nangade, em Moçambique. Aprendeu os segredos da Escultura Makon-de com o Mestre Crisanto Bartolomeu Am-belikola. Em 1990, fez sua primeira expo-sição no Museu de Etnologia de Nampula. Em 1992, mudou-se para Maputo, onde fundou com um grupo de amigos a Favana Grupo de Escultores Makonde. Em 2002, mudou-se para Portugal onde reside atual-mente.

ILUSTRAÇÃO 12 – Frank Arroni Ntaluma – Escultura Makonde – Madeira.FONTE: <http://makonde.wordpress.com/cultura-makonde>.

O destaque conquistado individual-mente por esses e outros artistas africanos está diretamente ligado à crescente valo-rização da Arte Africana, que se confirma com a realização de inúmeras exposições e eventos em várias partes do mundo, in-clusive no Brasil, como a “Conferência Áfri-ca Contemporânea”, que aconteceu em 2010 no Museu de Arte Moderna da Bahia em Salvador, e a Exposição 13 Artistas Sul-Africanos, realizada em 2011 no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Rio de Ja-neiro.

Na Europa acontecem várias expo-sições específicas, como a África Remix, além de os artistas africanos terem um pavilhão exclusivo na Bienal Internacional de Veneza. Em Lisboa, Portugal, funciona o Centro de Arte Africana Contemporânea.

A visibilidade conquistada pela Arte Africana também é resultante de ações empreendidas pelos próprios africanos e que hoje têm sua importância reconheci-da internacionalmente, como a Bienal de Arte Africana de Dakar, que teve sua pri-meira edição em 1992, a Trienal de Luanda e a criação da Fundação Sindika Dokolo,

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124 A mão afro-brasileira – arte africana

em Angola, que reúne o maior acervo de Arte Africana contemporânea da atualidade e que atua em todos os continentes divul-gando a produção atual dos artistas africa-nos.

Embora seja crescente o interesse pela produção artística africana, tradicional ou contemporânea, ainda são tímidas as iniciativas no sentido de se desconstruir os discursos eurocentristas, que insistem em

colocar a Europa como única matriz para os nossos saberes, inclusive os estéticos. Nesse sentido, a atuação de instituições como universidades e escolas se torna da maior importância no processo de visibi-lização das contribuições africanas para a formação de nossa sociedade para além da visão estereotipada de negras e negros como simples força de trabalho associada ao regime escravocrata.

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125Marco de Oliveira

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Este livro foi impresso na Imprensa Universi-tária da Universidade Federal do Paraná para o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR, em julho de 2014. Foram utilizadas as fontes Benguiat Book-BT, tamanhos 8, 9, 10, 11, 12 e 18.

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