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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO A AUTORIDADE MORAL DA CONSTITUIÇÃO - DA FUNDAMENTAÇÃO DA VALIDADE DO DIREITO CONSTITUCIONAL Luís Pedro Dias Pereira Coutinho Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas (Especialidade: Direito Constitucional) apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em Janeiro de 2008. 2008

COUTINHO A AUTORIDADE MORAL DA CONSTITUIÇAO prof. luis coutinho

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

A AUTORIDADE MORAL DA CONSTITUIO DA FUNDAMENTAO DA VALIDADE DO DIREITO CONSTITUCIONAL

Lus Pedro Dias Pereira Coutinho

Dissertao

de

Doutoramento

em

Cincias Direito

Jurdico-Polticas

(Especialidade:

Constitucional) apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em Janeiro de 2008.

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Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou, Depois que de Tria destruiu a cidadela sagrada. Muitos foram os povos cujas cidades observou, cujos espritos conheceu; e foram muitos no mar os sofrimentos que passou para salvar a vida, para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.

Homero (por Frederico Loureno)

HILDE (olha tensa, para ele) verdade ou no ? SOLNESS HILDE Que eu tenho vertigens? Que o meu construtor no se atreve, no

consegue subir to alto como aquilo que ele prprio constri? SOLNESS HILDE assim que v a coisa? .

Henrik Ibsen

Todo o instante consciente abole o desespero do que foi e torna-se o primeiro instante de uma Outra Histria.

Peter Sloterdijk

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NDICEINTRODUO ............................................................................................................. 11

PRIMEIRA PARTE EM BUSCA DE UMA HISTRIA DE ALMA

Captulo I A tradio contratualista moderna e a sua racionalidade 1. Preliminares................................................................................................................ 17 2. A partir de Hobbes ..................................................................................................... 19 3. Locke, o Criador e a ascendncia tomista .................................................................. 26 4. Uma kantiana emancipao?...................................................................................... 40 5. Rawls e os deuses de Rousseau.................................................................................. 45 Captulo II Um obrigatrio compromisso moral 1. Identidade e poltica ................................................................................................... 58 1.1. Inescapveis enquadramentos morais.................................................................... 58 1.2. Instituies e ideologias, natureza e princpio do governo .................................... 74 1.3. As condies da renncia ...................................................................................... 82 2. A herana de Hobbes ................................................................................................. 84 2.1. A sociedade poltica como sistema de normas ...................................................... 84 2.2. Hobbes em Weimar: a vulnerabilidade da fortaleza .............................................. 90 3. A questo de Arendt: o sculo XX como estado de natureza .................................. 110 4. Uma invivel neutralidade ....................................................................................... 117 5. A perspectiva relativa do Direito ............................................................................. 123 6. Dos direitos naturais aos direitos do indivduo: tradies conflituantes .................. 131 6.1. Um mundo ps-totalitrio.................................................................................... 131 6.2. Uma perspectiva moral ........................................................................................ 145

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Captulo III Quid sit Deus? - Uma breve explorao 1. O que, no entanto, se move................................................................................... 152 2. A identidade moderna e o problema da sua sede ..................................................... 161 3. Um breve regresso ao princpio ............................................................................... 167 4. Espinosa e o destino de Deus no mundo moderno ............................................... 191 5. Hegel e a reconciliao do divino com o humano ................................................ 204 6. O horizonte do Ser em Heidegger ........................................................................ 216 7. Strauss e a manipulao teolgico-poltica .............................................................. 241

SEGUNDA PARTE A AUTORIDADE DA CONSTITUIO

Captulo IV Uma autoridade popular da Constituio? 1. A configurao clssica do problema da autoridade da Constituio ...................... 253 2. Dos dois corpos do Rei aos dois corpos do Povo..................................................... 257 3. A inveno do Povo americano................................................................................ 262 4. A Revoluo Americana segundo Arendt: a fundao americana ........................... 284 5. A Revoluo Francesa e a construo monista ........................................................ 291 6. Um povo responsvel perante Deus e perante os homens .................................... 298 7. A partir do dia 25 de Abril de 1974 ......................................................................... 302 Captulo V A recuperao da vontade geral 1. A falncia do dualismo............................................................................................. 313 2. Recuperando a noo de vontade geral.................................................................... 319 3. Uma concepo comunitria de democracia ........................................................ 331 4. A erradicao da soberania ...................................................................................... 337 Captulo VI Da demanda americana demanda europeia 1. O dinamismo constitucional..................................................................................... 344 2. A demanda americana .............................................................................................. 347 2.1. A partir de Ackerman .......................................................................................... 347 2.2. A morte do constitucionalismo normativo?......................................................... 360 2.3. A fundao americana como lugar parametrizador ............................................. 376 2.4. Razes fundamentadoras e razes causais na linguagem americana dos direitos 381 3. O problema de 1976 ................................................................................................. 391 4. Um compromisso europeu ....................................................................................... 410

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TERCEIRA PARTE VALIDADE E CONSTITUIO

Captulo VII O problema da validade 1. Um modelo de reconhecimento................................................................................ 443 2. A normatividade constitucional como questo de facto em Hart ......................... 446 3. A norma fundamental em Kelsen............................................................................. 454 3.1. Uma norma em branco de competncia constituinte ........................................... 454 3.2. Uma norma de reconhecimento meta-constitucional ....................................... 475 4. A relevncia transformadora da razo prtica em Aarnio, Alexy e Peczenik....... 480 5. O Direito enquanto Direito: o compromisso moral do pensamento jurdico ........... 484 6. Validade, autoridade moral ou legitimidade ............................................................ 501 7. Fundamento de validade e ser do Direito................................................................. 503 7.1. A historicidade do Direito.................................................................................... 504 7.2. A vigncia do Direito........................................................................................... 516 8. A incindibilidade da questo jus-filosfica e da questo metodolgica ........... 520 Captulo VIII Reconhecimento e corpus constitucional 1. O Direito Constitucional enquanto Direito Constitucional ...................................... 525 2. Normatividade escrita e no escrita ......................................................................... 548 3. Um tratado como documento-constituio........................................................... 557 4. O costume constitucional ......................................................................................... 559 5. Critrios normativos de origem jurisprudencial....................................................... 564 5.1. Critrios normativos constitucionais ................................................................... 564 5.2. Juiz e concretizao da Constituio ................................................................... 567 6. Relevncia do fctico? ............................................................................................. 574 Captulo IX Fundamento de validade e acesso ao Direito 1. Preliminares.............................................................................................................. 582 2. A prioridade do ente................................................................................................. 582 3. A prioritria questo ontolgica............................................................................... 586 4. O Direito como coisa humana.................................................................................. 598 5. Ontologia e metodologia: para a recuperao da juris-prudncia............................ 608 6. A normatividade jurdica como ponto de chegada................................................... 625 CONCLUSO ............................................................................................................. 645 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 649

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INDICAES SOBRE A BIBLIOGRAFIA

- A bibliografia citada corresponde a bibliografia disponvel em 30 de Setembro de 2007.

- Quando a edio consultada se trate de edio de obra traduzida, a identificao do tradutor encontra-se feita na bibliografia final.

- A ordenao das referncias bibliogrficas constantes de uma nota no obedece a qualquer critrio alfabtico ou cronolgico.

- As referncias a obras j citadas so feitas por intermdio indicao do seu Autor e palavra ou palavras iniciais do ttulo.

- Da bibliografia final, constam apenas as obras citadas.

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INTRODUO

O estudo que agora apresentamos centrou-se inicialmente no muito identificado problema da eroso temporal da normatividade constitucional. Pensvamos

inicialmente, como muitos antes de ns, que, nesta eroso, se joga o principal desafio colocado ao fenmeno que aqui designamos por constitucionalismo: o fenmeno traduzido na vigncia de uma Constituio normativa, assim efectivamente condicionadora do processo poltico e que, enquanto tal, vincula tanto as minorias como as maiorias, tanto a gerao presente como as geraes futuras. O curso da nossa aprendizagem determinou um recentramento da mesma. Com efeito, verificmos que a herona da histria que descobramos no era a eroso da normatividade constitucional. Uma eroso que, afinal, nem mesmo o verdadeiramente, na mesma medida em que o constitucionalismo no se deva confundir com o imprio de uma normatividade constitucional escrita, posta nalgum momento histrico por um sacralizado legislador constituinte. O constitucionalismo antes se deve pensar como imprio de uma normatividade dinmica que goza de validade. O centro do nosso estudo deslocou-se, deste modo, para a validade ou para a fundamentao da validade de uma normatividade constitucional, passando a nossa questo nuclear a ser a seguinte: perante uma normatividade escrita ou no escrita, originria ou superveniente que apresente uma pretenso de validade enquanto normatividade constitucional, em que termos pode essa mesma validade ser reconhecida e, desde logo, tem sido reconhecida? E a concluso a que chegmos, e que anunciamos desde j, a de que essa validade pode ser reconhecida (tem sido reconhecida) quando

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haja autoridade moral da normatividade constitucional, no sendo, inclusivamente, a validade da Constituio uma categoria distinta da autoridade moral da Constituio. Falar em autoridade moral da Constituio significa, claro est, identificar a respectiva normatividade como boa, como sede de uma Repblica bem regulada ou como projeco de justia. Pelo que o nosso primeiro problema o qual ocupa toda a primeira parte deste estudo prende-se precisamente com a capacidade humana para pensar a justia mais rigorosamente dizendo, para se pensar na justia. Passando-se depois, na segunda parte deste estudo, para a verificao de como e tendo-se sobretudo por referncia o paradigmtico exemplo americano comunidades humanas estruturaram comprometidamente a sua existncia colectiva na justia atravs do Direito Constitucional. E por ltimo, na terceira parte deste estudo, verificando-se quais os termos em que o problema da validade do Direito Constitucional deve ser colocado e respondido, o que acaba por significar tambm uma resposta ao problema de saber o que o Direito Constitucional enquanto Direito Constitucional. Colocada a questo, feito o roteiro e pr-anunciada a concluso, avancemos. Nem consideraes sobre o mtodo como se o como antecedesse o qu, o que precisamente constitui ponto que continuamente questionaremos ao longo do presente estudo , nem um prvio elogio da teoria em que simultaneamente se diga que o nosso trabalho teoria, ainda que assim seja certamente, j que o que est em causa contemplao (contemplatio), o equivalente latino de theoria: uma atitude, uma posio e um estado em que nos demoramos. Um assistir em que aspiramos ao bem de compreender. Os bens deste tipo no pertencem a ningum e, justamente por isso, so para cada um algo em que pode inteiramente tomar parte1. De outro modo, em bens deste tipo, e se o terico merecer o nome de terico, cada um toma o que j seu. Nesse assistir ou estado em que nos demormos, convocmos ensinamentos de muitos que nos precederam na busca desse bem. Ensinamentos pensados no quadro de diferentes disciplinas, assim agrupadas sob nomes como Filosofia Poltica, Filosofia Moral, Filosofia do Direito, Histria das Ideias Polticas, Cincia Poltica, Teoria da Constituio, Teoria do Estado, Sociologia, Hermenutica, Teologia ou Ontologia. O que nada mais constituiu do que uma consequncia de a compreenso do fenmeno da

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Cfr. HANS-GEORG GADAMER, Elogio da Teoria, trad., Edies 70, Lisboa, 2001, p. 34 segs.

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Constituio e da sua validade nos ter obrigado a colocar-nos em zona de confluncia. De resto, verificmos, como outros antes de ns, que o que est em causa em todas aquelas disciplinas nuclearmente o mesmo, ainda que, em muitos casos, tratado por pensadores que permanecem de costas voltadas enquanto exploram igual terreno terreno estranhamente muito abandonado pelos cultores do Direito Constitucional. Como recentemente assinalou GOMES CANOTILHO, a filosofia do

constitucionalismo desapareceu do direito constitucional emigrando para outros campos os da filosofia poltica e os da sociologia. () Precisamente por isso, o direito constitucional sofre de asfixia filosfica porque se purificou juridicamente afastando os pressupostos ticos e filosficos2. Este trabalho deve ser entendido sobretudo como um contributo no sentido de quebrar essa asfixia. Um contributo certamente parcelar e incompleto, pois tudo o que um s homem possa dizer ser sempre, e apenas, aquilo que o mesmo haja conseguido aprender, baseado naqueles com quem tenha tido a felicidade de aprender com e naquilo a que tenha tido a felicidade de aceder a. Sendo que, e em zona de confluncia, as disponibilidades transcendem aquilo que seria possvel apreciar (desfrutada e reflectidamente) numa vida inteira. No se tendo, em qualquer caso, desistido perante to ciclpicas disponibilidades, e porque o Direito enquanto Direito nos imponha hoje, porventura mais do que nunca, uma no desistncia exigindo-nos que o compreendamos e que simultaneamente nos compreendamos, j que ele vive na nossa mente3 , a tese que agora apresentamos poder ser apenas, e to-s, um momento cristalizado da nossa aprendizagem, culminando um percurso cujo prazer esperamos ter sabido partilhar com o leitor.

Cfr. A Teoria da Constituio e as Insinuaes do Hegelianismo Democrtico, in Brancosos e Interconstitucionalidade Itinerrios dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional, Almedina, Coimbra, 2006, p. 163-181, p. 164-165. 3 Formulao de GEORG JELLINEK, Teoria General del Estado, trad. da 2. ed. alem, Editorial Albatroz, Buenos Aires, 1981, p. 249.

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PRIMEIRA PARTE EM BUSCA DE UMA HISTRIA DE ALMA

Eu penso continuamente nos que acreditaram em verdades grandes, Nos que desde a matriz se lembraram de uma histria de alma.

Stephen Spender (por Jorge de Sena)

O mal ameaa a razo humana, pois pe em causa a nossa esperana de que o mundo tenha sentido.

Susan Neiman

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Captulo I A tradio contratualista moderna e a sua racionalidade

A formiga conhece a frmula do seu formigueiro, a abelha a da sua colmeia, certo que no as conhecem ao modo do homem e sim ao seu prprio modo, mas no precisam de mais. Apenas o homem desconhece a sua frmula.

Fodor Dostoievsky

Qualquer sistema poltico que tenha em conta apenas um lado da existncia humana no pode satisfazer o desejo humano de realizao ou apelar em pleno sua lealdade.

Allan Bloom

1. Preliminares

De acordo com o exposto em sede introdutria, este estudo confronta-se primeiramente com um problema perene, o qual se prende com a capacidade humana para discernir o que seja a justia e consequentemente uma Repblica justa. Na leitura da Modernidade, a primeira questo a colocar neste quadro no ser relativa

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identificao, em si mesma, das normas que corporizam uma ordem correspondente. Antes concerne identificao dos enunciados no normativos em cujo mbito seja assegurada a validade, a objectividade ou a correco daquelas normas. Com efeito, para a mentalidade moderna em particular para a mentalidade iluminista este iter o iter processualizado de um sujeito cognoscente emancipado de quaisquer preconceitos4 impunha-se para que assim ocorresse uma transcendncia relativamente a um universo de intuies ou de crenas. Neste contexto, o homem poderia aceder ao conhecimento da norma e sobreporse configurao tradicional das coisas, mas no por via da sua mera percepo ou intuio, no por via das suas crenas. Diga-se, no entanto, que uma das mximas expresses polticas (ditas) do Iluminismo, a Declarao de Independncia dos Estados Unidos, radicou sobretudo na afirmao de algumas verdades como de per si evidentes, ou seja, radicou num conhecimento moral no processualizado, o que conhece uma explicao qual regressaremos. Para j, sublinhe-se ento que a razo da Modernidade muito em particular, da Modernidade iluminista pretendeu-se uma razo radicante do conhecimento moral a ser atingido em mtodos indirectos que assegurariam a correco das normas que fossem apuradas: a racionalidade constituiria sobretudo uma propriedade do processo de pensamento e no uma qualidade substantiva do pensamento5. Os mais difundidos modelos contratualistas modernos tendem a ser identificados como modelos processualizados neste sentido6. O respectivo mtodo, tal como desenhado a partir de HOBBES, destinado a assegurar a racionalidade do processo de pensamento e, desse modo, a objectividade das normas estruturadoras da ordem poltica preconizada reside na configurao de um poder poltico, cuja instituio pudesse merecer o acordo racional de todos aqueles que passariam a submeter-se-lhe7. Diga-se, no entanto, que o contratualismo moderno nem sempre importa uma fundadora emancipao do homem relativamente a qualquer espcie de heteronomia, em termosPara uma exemplar descrio desta mentalidade, cfr. GADAMER, Truth and Method, trad., reimp., Continuum, Londres, 2004, em especial, p. 230 segs. 5 Cfr. CHARLES TAYLOR, Sources of the Self The Making of Modern Identity, Harvard University Press, Cambridge-Massachusetts, 1989, p. 168. 6 Sublinhando este aspecto, cfr. TAYLOR, Sources..., p. 86. 7 Nas palavras de ROGRIO EHRHARDT SOARES, atribui-se ao homem pensante a capacidade de identificar, [aparentemente] dentro de um mundo de objectos ideais, o modelo de Estado perfeito segundo4

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que lhe permitam edificar uma ordem poltica em processualizada ruptura com a ordem (ou a pressuposio da ordem) teolgico-metafsico-cultural transcendente8.

Declaradamente, e como veremos, no isso o que sucede em LOCKE, em cujo mbito o homem que se projecta politicamente por via do contrato fundador no seno um homem que interiorizou como sua a fundamentalmente igualitria parametrizao moral crist. Vale a pena iniciar o nosso trabalho por uma anlise desses dois momentos nucleares da tradio contratualista moderna HOBBES e LOCKE , sendo que o nosso objectivo nuclear, no mbito deste captulo, verificar se, efectivamente, uma processualizada ou contratualizada razo autnoma arvorada em instncia crtica de apuramento de normas se configura ou no como projecto filosfico vivel. Note-se que o que est em causa no uma anlise da tradio contratualista moderna no seu conjunto momentos determinantes desta tradio, como aqueles que relevam do pensamento de ESPINOSA ou de ROUSSEAU, sero objecto de tratamento mais detido noutros captulos9 mas, fundamentalmente, saber se o homem que se prope pensar uma Repblica ordenada na justia pode ou no considerar-se emancipado relativamente a toda e qualquer parametrizadora heteronomia moral.

2. A partir de Hobbes

Ser porventura difcil reconhecer contemporaneamente que a construo poltica de HOBBES seja uma construo constitucional. Tanto mais quanto o poder preconizado por HOBBES seja um poder absoluto e irresistvel, um poder definido a partir da sua mera existncia voluntarstica enquanto poder nu (voluntas, non veritas facit legem). Com efeito, enquanto herdeiros de uma Modernidade poltica pshobbesiana que encontra os seus paradigmas fundamentais no governo civil dea razo, cfr. O Conceito Ocidental de Constituio, Revista de Legislao e Jurisprudncia, 119, 19861987, p. 36-39 e 69-73, p. 38. 8 Formulao de CASTANHEIRA NEVES, que tende a tratar indistintamente tudo o que se constituiu do sculo XVI ao sculo XVIII, cfr. Entre o Legislador, a Sociedade e o Juiz ou entre Sistema, Funo e Problema Os Modelos Actualmente Alternativos da Realizao Jurisdicional do Direito, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LXXIV, 1998, p. 1-44, p. 15 e, por ltimo, A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto Global da Crise da Filosofia Tpicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitao, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 27 segs. 9 No que toca a ESPINOSA, cfr. Infra, III 4; no que toca a ROUSSEAU, cfr. Infra, V, passim.

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LOCKE ou no Estado de Direito construdo a partir de KANT, estamos habituados a pensar a estruturao constitucional do poder poltico enquanto estruturao que o refere a qualidades substantivas limitadoras, que o nega enquanto poder nu. No entanto, a construo de HOBBES no deixa de ser uma construo constitucional. Em HOBBES, o que est em causa firmar uma forma de conhecimento que parte do homem, uma forma de atingir normas estruturantes do poder a que os homens ho-de obedecer concordantes com aquilo que o homem 10. Preconiza-se que a estruturao poltica deva ser determinada por referncia natureza humana11 num sentido inteiramente diverso daquele que se encontrara subjacente tradio aristotlico-tomista12 , procurando-se conferir filosofia moral e poltica uma base cientfica13. Sendo uma construo fundadora da Modernidade poltica, a construo de HOBBES no deixa de ser grandemente tributria, precise-se, de MAQUIAVEL. Ter sido MAQUIAVEL o primeiro a formular uma cincia dos assuntos humanos baseada numa cincia do homem. Mas onde HOBBES superar MAQUIAVEL ser nos propsitos da sua construo e, consequentemente, na estrutura e consequncias da mesma. O que est em causa no Leviat no apenas um manual do governante, que o arvore verdadeiramente em prncipe novo, ensinando-lhe como deve governar e

Assim, LEO STRAUSS, Natural Right and History, reimp., University of Chicago Press, Chicago, 1992, p. 166 segs. Assinala STRAUSS que a construo de HOBBES precedida pela rejeio, por MAQUIAVEL, da viso clssica centrada na questo de saber como deve o homem viver e pela sua substituio por um paradigma centrado no modo como os homens efectivamente vivem, cfr. p. 178. Veja-se tambm What is Political Philosophy? in What is Political Philosophy? and Other Studies, reimp., University of Chicago Press, Chicago, 1988, p. 9-55, p. 48. Afirma STRAUSS, neste ltimo estudo, que HOBBES aceita a crtica de Maquiavel filosofia poltica tradicional: a filosofia poltica tradicional almejara demasiado alto. Agora exige-se que a lei natural seja derivada dos bsicos, das elementares necessidades e urgncias, as quais [cr-se] determinam os homens na maior parte do tempo. No da perfeio ou finalidade do homem. Veja-se ainda On the Basis of Hobbess Political Philosopy, in What is Political Philosophy? and Other Studies, cit., p. 170-196, em especial, p. 174 segs. 11 Ainda antes do Leviat (Leviat ou Matria, Forma e Poder de um Estado Eclesistico e Civil, trad., INCM, Lisboa, 1994), embora aqui se encontre a consumao plena do pensamento hobbesiano, o programa cientfico de HOBBES encontra-se j clarificado em Human Nature, or the Fundamental Elements of Policy, e em De Corpore Politico, or the Elements of Law, in The Collected Works of Thomas Hobbes, org. William Mollesworth, reimp., Routledge, Londres, 1992, respectivamente, p. 1-76, em especial, p. 40 segs. e 77-227, em especial, p. 161 segs. 12 Cfr. Infra, III 3. 13 Cfr. LAURENCE BERNS, Thomas Hobbes, in History of Political Philosophy, org. Leo Strauss / Joseph Cropsey, 3. ed., University of Chicago Press, Chicago, 1987, p. 396-420, p. 396 e 398. O pela primeira vez que BERNS refere no ser inteiramente rigoroso. O que dizer ento de Glaucon, que preconiza um entendimento da justia como emergente de um pacto entre egosmos racionais? V. A Repblica, trad., 8. ed., INCM, Lisboa, 1996, Livro I, 337 segs., p. 21 segs.

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como deve viver14. Isto o que O Prncipe assumidamente ainda , o que se nota logo na respectiva dedicatria15. Ora, em HOBBES, no se pretende um mero manual cientfico do governante. Almeja-se determinao cientfica da configurao ou estruturao normativa do Governo (do Governo-com-G-maisculo) e concomitante definio das relaes, normativamente definidas por via da definio de deveres, dos homens com esse mesmo poder16. Isto , almeja-se, precisamente, ao apuramento cientfico daquilo que hoje designaramos por normatividade

constitucional. Sendo que uma cincia do Governo reflecte necessariamente uma cincia do homem, matria-prima da construo. Perante este ltimo aspecto, compreende-se a centralidade dos pressupostos antropolgicos de HOBBES. Com efeito, a partir da identificao daquilo que move o homem a partir da clarificao daquilo que natural nas inclinaes humanas17 que se pretende descobrir qual a configurao do poder poltico a que o homem deve estar vinculado. Como sabemos, em HOBBES, aquilo que move o homem a sua autopreservao no sentido mais estrito do termo. precisamente este facto que, segundo HOBBES, torna a existncia humana impossvel em estado de natureza, j que aquela auto-preservao se revela mutuamente destrutiva na ausncia de poder poltico, na ausncia de uma fora que contenha os seus imperativos. Em estado de natureza um estado deduzido das paixes humanas18, rejeitando-se virulentamente a ideia de uma razo estranha e superior s inclinaes egostas do homem e capaz de se lhes contrapor19 , cada um no descansar a no ser perante a subjugao dos outros, perante a eliminao de qualquer poder capaz de ameaar a sua segurana20.14

Cfr. STRAUSS, Niccolo Machiavelli, in History of Political Philosophy, org. Leo Strauss / Joseph Cropsey, cit., p. 296-317, p. 300. 15 Cfr. O Prncipe, trad., Guimares Editores, Lisboa, 1996, p. 9 segs. 16 Cfr. BERNS, Thomas Hobbes, loc. cit., p. 396 segs. 17 Cfr. BERNS, Thomas Hobbes, loc. cit., p. 399. 18 Cfr. BERNS, Thomas Hobbes, loc. cit., p. 399. 19 Cfr. PAULO MERA, Surez Grcio Hobbes, in Estudos de Filosofia Jurdica e de Histria das Doutrinas Polticas, INCM, Lisboa, 2004, p. 297-350, p. 333. 20 Cfr. BERNS, Thomas Hobbes, loc. cit., p. 399. Diga-se que o tratamento da natureza humana em HOBBES revela-se extraordinariamente simplificado, em todo o seu pretenso realismo. Neste ponto, alis, o tratamento prvio de MAQUIAVEL em que HOBBES se ter inspirado infinitamente mais revelador, porque no redutor do homem a primrias inclinaes bestiais, em termos que efectivamente o amputam. E, se MAQUIAVEL se pode designar um pessimista, porque ter pretendido criar uma cincia de governo aplicvel aos casos em que os homens se encontrassem j corrompidos. Mas, simultaneamente, nunca ter estado em causa dizer que uma natureza corrompida seria a verdadeira natureza do homem. Esta ltima pensada, em MAQUIAVEL, como pura ou no corrompida. Com efeito, uma natureza humana corrompida tida como uma segunda natureza que arruinou o homem e

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Deste modo, a base do modelo hobbesiano reside na representao de uma situao de carncia de poder poltico, na exposio das consequncias dessa carncia no que preservao humana diz respeito a qual se torna difcil ou mesmo impossvel num estado de guerra de todos os homens contra todos os homens21 e na imputao queles que se encontram nessa situao de uma vontade fundadora22. Sendo a estes conferida uma escolha impossvel entre obedincia autoridade poltica ou perpetuao do mal, os mesmos, no fundador momento contratual um momento lgico, e no histrico23 , no se concentram em nenhuma outra qualidade da autoridade seno aquela que lhes garante a auto-preservao, sendo que aqui se encontra o nico mbil da aco humana24. Fala-se, claro est, de uma soberania voluntaristicamente definida, destinada a ser estritamente obedecida, sob pena de se no cumprir o seu propsito pacificador25.

a qual um prncipe no pode ignorar sob pena de ser exposto fortuna, em termos destrutivos da Repblica. Sobre uma politicamente relevante segunda natureza humana em MAQUIAVEL, cfr., em particular, J.G.A. POCOCK, The Machiavellian Moment Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, 2. ed., Princeton University Press, Princeton, 2003, em especial, p. 179-180. Esta diferena entre MAQUIAVEL e HOBBES articula-se com uma outra, relevada por SHELDON WOLIN: Maquiavel em todo o seu cepticismo e anticlericalismo, ainda acreditou que a vitalidade primordial do Cristianismo [vitalidade tida por correspondente referida primitiva natureza humana] poderia ser recapturada e convertida numa fonte de fora poltica. Mas Hobbes, escrevendo num contexto amargo de controvrsias religiosas, apenas encontrou na religio uma fonte potencial de desunidade poltica, uma rea a ser controlada e no explorada. Destitudo de qualquer dimenso religiosa ou moral que no a traduzida na sua mera existncia, o soberano de Hobbes surgiu assim como desptico num grau mximo, pretendendo-se impossivelmente que os sbditos pudessem ter transferido para o mesmo tudo, includa a sua conscincia privada, cfr. Politics and Vision, 2. ed., Princeton University Press, Princeton, 2004, p. 245. 21 Cfr. Leviat, captulo XIII, p. 111. 22 Cfr. Leviat, em particular, captulos XIII, p. 109 segs. e XVII, p. 143 segs. 23 Conforme assinala L. CABRAL DE MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, I e II, 2. ed., reimp., Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 173. 24 Na esclarecedora sntese de CARLOS PACHECO AMARAL, HOBBES oferece-nos uma filosofia do Estado sistematizada, que acabaria por marcar indelevelmente toda a Modernidade. Nela, o Estado e a soberania so pensados em si mesmos, sob uma perspectiva estritamente materialista e mecanicista da natureza, do homem, e, por conseguinte do Estado tambm, no quadro do mtodo novo de profunda inspirao euclidiana e galilaica que desenvolveu para sua filosofia: o mtodo resolutivo-compositivo de decomposio do homem e da sociedade nos seus elementos mais simples, que se impem como axiomas evidentes, e de subsequente composio racional destes mesmos postulados axiomticos com os seus derivados, num raciocnio estritamente cientfico, mecanicista e lgico, cfr. Do Estado Soberano ao Estado das Autonomias Regionalismo, Subsidiariedade e Autonomia para uma Nova Ideia de Estado, Afrontamento, Lisboa, 1998, p. 67-68. 25 Note-se que, e como assinala ARTHUR KAUFMANN, o Estado soberano em HOBBES no um fim em si mesmo, ainda que seja um produto do medo, cfr. A Problemtica da Filosofia do Direito ao Longo da Histria, in Introduo Filosofia do Direito e Teoria do Direito Contemporneas, org. A. Kaufmann e W. Hassemer, trad., Gulbenkian, Lisboa, 2002, p. 87. Tambm OTFRIED HFFE assinala que o Estado hobbesiano est subordinado justia, com a especialidade de a justia hobbesiana que

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A partir de HOBBES, verifica-se, assim, existir uma correspondncia necessria entre um modelo estruturador do poder poltico que se concentra primordialmente na sua fora ou na sua vontade no seu poder nu e uma antropologia filosfica centrada na auto-preservao (rectius, numa auto-preservao mutuamente destrutiva)26. Perante isto, compreende-se que a superao da construo poltica de HOBBES tenha passado necessariamente pela superao da sua construo antropolgica. Como sabemos, tal superao encontrou um momento determinante em ROUSSEAU. Ao frisar-se isto no se pretende, saliente-se, recuperar os pressupostos antropolgicos deste ltimo, no se pretende contrapor ao pessimismo hobbesiano um qualquer optimismo rousseauniano27. Pretende-se apenas recuperar o ponto fundamental que se encontra na base da construo de ROUSSEAU, precisamente aquele que se contraps construo de HOBBES. Esse ponto, tal como formulado por ALLAN BLOOM28, o de que qualquer sistema poltico desenhado tendo exclusivamente em conta um lado da existncia humana no pode satisfazer o desejo humano de realizao ou apelar em pleno sua lealdade. Um poder poltico lealmente obedecido (um poder poltico estruturado segundo pressupostos antropolgicos aceitveis) um poder configurado de modo a que, ao obedecer-lhe, o homem possa obedecer-se a si mesmo em todas as suas dimenses. Com este ponto de partida, de sublinhar desde j o seguinte: se configurarmos a auto-preservao nos termos hobbesianos, a reduzindo o homem, e, a partir daqui, nos permitirmos configurar o poder poltico enquanto poder nu, temos que negar o auto-respeito ou o sentimento de se valorizar como ser moral (no limite, na sua identidade no fracturada) como dimenso distintivamente humana. Como facilmente se reconhecer, aquele que compelido a obedecer ao poder exclusivamente por razes de auto-preservao no sentido estrito da palavra, contrariando eventualmente aquilo que o move moralmente, perder inevitavelmente as bases que lhe permitem o auto-respeito, ou, pelo menos, no de esperar que o faa com lealdade.

define o poder ter por nico alcance o de legitimar e no o de limitar esse mesmo poder, cfr. La Justice Politique, trad., PUF, Paris, 1991, p. 103. 26 Cfr. Natural..., p. 190. 27 Cfr. Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, trad., 3. ed., PEA, Mem Martins, 1995, p. 44 segs. 28 Cfr. Jean-Jacques Rousseau, in History of Political Philosophy, org. Leo Strauss / Joseph Cropsey, cit., p. 559-580, p. 560.

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Relevar esse auto-respeito no implica necessariamente dizer que os homens sejam mais do que animais auto-interpretados29. Implica apenas dizer que o homem dotado de uma identidade no sentido a desenvolver adiante30 e de uma correspondente auto-compreenso. Ora, tal determina inevitavelmente que o homem apresente, perante os outros e perante o poder, uma pretenso de respeito e, desde logo, uma pretenso de auto-respeito, a pretenso de no ser coagido a desrespeitar-se naquilo em que identitariamente se deposite, em que moralmente se move. E determina que s equacionemos como antropologicamente plausvel uma estruturao normativa do poder poltico ou do sistema poltico que acomode esta dimenso distintivamente humana, aquilo que PAUL RICOEUR designa como dimenso tica e moral do eu31 ou TAYLOR qualifica como inescapvel parametrizao moral do ente32. No contemporneo quadro ocidental, como se ver, tal significa proteger sob a forma de direitos e deveres os aspectos das suas vidas em que os homens se revem a si mesmos e mutuamente como homens num seu valor intrnseco que civilizacionalmente nos parametriza33. Noutros quadros, no entanto, uma qualquer estruturao do poder poltico nunca ignorou esta dimenso. Historicamente nenhum poder poltico se definiu exclusivamente por referncia ao poder que exerce. Nenhum poder poltico deixou de ser estruturado por referncia a uma ideologia a uma parametrizao moral que, uma vez assumida pelos homens (ou pelos homens que constituram a base de apoio que qualquer poder poltico tem de ter) lhes permitiu compreender a sua obedincia ao mesmo poder enquanto obedincia a si mesmos, isto , assimilar a sua experincia de obedincia ao poder poltico em termos que lhes permitissem conservar a sua qualidade de heris e narradores das histrias contadas a si mesmos sobre [si] mesmos34. Com efeito, como desenvolveremos adiante, possvel demonstrar, tendo em conta, por ltimo, os ensinamentos de KARL LOEWENSTEIN, que um poder poltico nu constitui uma aberrao terica, uma impossibilidade antropolgica, face natureza no bestial dos homens e ao poder poltico capaz de convocar a obedincia de29

Cfr. TAYLOR, Self-Interpreting Animals, in Philosophical Papers, I, Human Agency and Language, Cambridge University Press, Cambridge, 1985, p. 45-76, passim. 30 Cfr. Infra, II 1. 31 Cfr. O Justo ou a Essncia da Justia, trad., Piaget, Lisboa, 1997, p. 28. 32 Cfr. Sources, p. 1 segs. Regressaremos detidamente a esta inescapvel parametrizao moral. 33 Cfr. Infra, II e III, passim. 34 Formulao de RICOEUR, O Justo, p. 28.

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homens35. De resto, a monarquia absoluta de HOBBES nunca existiu, correspondendo a uma construo inventada, uma obra de arte36. Na verdade, a histria apenas nos deu a conhecer monarquias absolutas baseadas numa fundamentao transcendente do poder real37 ou em qualquer outro iderio referenciador do poder absoluto de um s a uma ideia de bem que necessariamente transcende a sua mera existncia enquanto poder nu ou enquanto poder meramente temido38. Nas assinalveis palavras de SHELDON WOLIN, o homem hobbesiano constitui matria poltica muito pobre. Falta-lhe o elemento bsico que todos osCfr. Infra, II 1. Recorrendo expresso de ROGRIO SOARES, O Conceito..., loc. cit., p. 37. 37 O que ROUSSEAU no deixou de explorar. Nas suas palavras: Eis ento o que levou sempre os fundadores das naes a recorrer interveno do Cu e a honrar os deuses da sua prpria sabedoria, para que os povos, submetidos s leis do Estado do mesmo modo que s leis naturais, e reconhecendo o mesmo poder na origem da formao do homem e da cidade, obedecessem com liberdade e suportassem docilmente o jugo do bem pblico. Esta razo sublime, que se alcandora muito para alm do alcance dos vulgares humanos, a que o legislador pe nas decises que atribui aos imortais, para arrastar pela autoridade divina aqueles que a prudncia humana no demoveria. Neste passo, em que est em causa dizer que a poltica e a religio no podem ser compreendidas separadamente, servindo uma de instrumento outra, ROUSSEAU inspira-se em MAQUIAVEL, citando as correspondentes palavras do florentino: Na verdade, nunca houve em qualquer povo um legislador de leis extraordinrias, que no recorresse a Deus, pois, de outro modo, essas leis no seriam aceites; pois h muitos bens conhecidos de um homem prudente que no tm em si razes evidentes capazes de persuadir os outros, cfr. O Contrato Social, trad., PEA, Mem Martins, 1989, Livro II, Captulo VII, p. 48-49 (sublinhado nosso). 38 Numa primeira fase, o Estado absoluto continuou a radicar o poder real numa origem divina, assim se perpetuando a teologia poltica medieval de que fala ERNST KANTOROWICZ, cfr. The Kings Two Bodies A Study in Medieval Political Theology, Princeton University Press, Princeton, 1957, p. 7 segs. Sobre o mesmo ponto, entre ns, cfr. por ltimo MARIA DA GLRIA DIAS GARCIA, Da Justia Administrativa em Portugal Sua Origem e Evoluo, UCP, Lisboa, 1994, p. 141 segs. Numa segunda fase, a nvel europeu, o poder real no surgiu desamarrado de um qualquer iderio legitimador, antes se equacionando uma fundamentao racional, em que o monarca o primeiro servidor do Estado, ao qual se atribui a obrigao racional de tudo fazer para prover a felicidade e o bem dos sbditos, cfr. JORGE REIS NOVAIS, Contributo para uma Teoria do Estado de Direito Do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e Democrtico de Direito, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 26 segs. Diga-se que esta fundamentao racional, construo cortes por excelncia, nunca ter conseguido erradicar totalmente os quadros herdados da teologia poltica medieval, como bem assinala ANTNIO TRUYOL Y SERRA, Histria da Filosofia do Direito e do Estado, trad., INP, Lisboa, 1990, p. 105 segs. Particularmente entre ns, no contexto cristo e catlico da cultura peninsular, o ideal do prncipe cristo a que se refere MARTIM DE ALBUQUERQUE (cfr. O Poder Poltico no Renascimento Portugus, ISCSPU, Lisboa, s/d, em especial, p.159 segs. e, por ltimo, A Sombra de Maquiavel e a tica Tradicional Portuguesa Novos Contributos para a Histria das Ideias Polticas em Portugal, in Estudos em Honra de Ruy de Albuquerque, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 221-274) conheceu manifestaes perenes. To perenes que surgiram ainda na nossa histria constitucional moderna. D. Pedro, aquando da outorga da Carta Constitucional, continuou a afirmar-se, tal como todos os seus antecessores, Rei de Portugal por Graa de Deus, assim pretendendo emprestar sacralidade Carta, cfr. PAULO FERREIRA DA CUNHA, Para Uma Histria Constitucional do Direito Portugus, Almedina, Coimbra, 1995, p. 399 segs. A perenidade da construo medieval no se manifestou apenas no oitocentismo portugus. Exactamente nos mesmos termos, Lus XVIII apesar de sucessor de Lus XIV , aquando da outorga da Carta de 1814, ainda se arrogou Rei por Graa de Deus, cfr. STPHANE RIALS, Textes Constitutionnels Franais, 12. ed., PUF, Paris, 1996, p. 48.36 35

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filsofos polticos, desde Plato, nunca negligenciaram. E que Rousseau viria a formular: a matria do poder no pode ser encontrada no sujeito passivamente obediente, mas no sujeito com a capacidade de se identificar activamente com os seus governantes39. No sujeito que se obedece a si mesmo que rev a sua identidade quando obedece ao poder poltico. Como prossegue SHELDON WOLIN, o soberano hobbesiano permanecia impossivelmente fora de uma sociedade constituda por homens, um Arquimedes sem qualquer outra vantagem que no a permitida pelo medo. Ao poder de Hobbes falta o apoio da sociedade, porque a sociedade, ela mesma, nada mais aqui do que um esparso conjunto de indivduos separados e mutuamente amedrontados40. Diga-se, alis, que o prprio HOBBES, revelando toda a sua grandeza, confessou explicitamente a inviabilidade da sua prpria construo enquanto efectivamente estruturadora de um corpo poltico. A passagem de HOBBES que permite este entendimento a seguinte: E agora, considerando como diferente esta doutrina da prtica da maior parte do mundo, especialmente daquelas partes ocidentais que receberam a sua sabedoria moral de Atenas e de Roma, e como necessria uma profunda filosofia moral queles que tm a administrao do soberano poder, estou a ponto de acreditar que este meu trabalho seja intil41.

3. Locke, o Criador e a ascendncia tomista

Se o cerne do modelo hobbesiano reside na identificao do estado de natureza com um estado de guerra (um estado dominado por homens que incontroladamente se empenham numa auto-preservao mutuamente destrutiva), o pressuposto de LOCKE radicalmente oposto. Para este ltimo, o estado de natureza e o estado de guerra encontram-se to distantes entre si como um estado de paz, boa vontade, assistncia mtua e preservao se encontra de um estado de inimizade, maldade, violncia e

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Cfr. Politics..., p. 246. Cfr. Politics..., p. 246. A mesma ideia pode ser encontrada entre ns em JNATAS MACHADO. Afirma este ltimo que, em HOBBES, o povo visto como a pluralidade desarticulada dos sbditos, unificada, ab extra, pelo exerccio do poder soberano, cfr. Povo, Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica, VI, p. 419-447, p. 425. 41 Cfr. Leviat..., captulo XXXI, p. 287.

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destruio mtua42. Assim, a vida humana perfeitamente possvel e mesmo aceitvel num estado de natureza configurado como um estado de igualdade43, como um estado de perfeita liberdade44 (o que no significa liberdade perfeita ou licenciosa, como se ver) e como um estado regido por uma correspondente lei da natureza, em cujo mbito ningum deve prejudicar outrem, a sua vida, sade, liberdade ou haveres, todos se empenhando enquanto seres que constituem obra do Criador, destinados a perdurar enquanto durar o Seu prazer , tanto na sua auto-preservao, como na preservao da humanidade45. isto que, em ltima anlise, explica que o governo civil de LOCKE se encontre vinculado justia e que, para o mesmo, a monarquia absoluta de HOBBES no seja de nenhum modo uma forma de governo civil46. Na verdade, em LOCKE, os homens s concordam em superar o estado de natureza perante a configurao de uma autoridade poltica cuja instituio supere as suas vantagens47. Alis, se o fazem, para superar as dificuldades que, em estado de natureza, podem ser sentidas ao nvel da administrao da justia48. Assim, o poder poltico estadual encontra o seu fundamento, critrio e limite numa justia identificada com a lei da natureza lei em cujo mbito os homens se reconhecem fundamentalmente iguais e no licenciosamente livres

Cfr. The Second Treatise of Government An Essay Concerning the True Original, Extent and End of Civil Government, in Two Treatises of Government, org. Peter Laslett, Cambridge University Press, Cambridge, p. 265-428, 19, p. 280. 43 Cfr. The Second..., 4, p. 269. 44 Cfr. The Second..., 4, p. 269. 45 Cfr. The Second..., 6, p. 271. 46 Cfr. The Second..., 90, p. 326. 47 Afirma LOCKE que a nenhuma criatura racional pode ser atribuda a escolha de alterar a sua condio com vista a ficar numa condio pior, cfr. The Second..., 131, p. 353. 48 Segundo LOCKE, em estado de natureza, j existe um poder executivo da lei da natureza, sendo que a tal designao corresponde a noo de que os cidados cumpridores da lei, indignados perante a transgresso, se juntaro vtima para entregar o vilo justia e de que, juntos, tero o poder para o fazer, cfr. JONATHAN WOLFF, Introduo Filosofia Poltica, trad., Gradiva, Lisboa, 2004, p. 37. Mas este poder executivo no garante uma medida comum para decidir todas as controvrsias, pois os homens podero ter o seu juzo toldado em virtude de serem simultaneamente parte nas mesmas e intrpretes da lei da natureza que as resolve. Por outro lado, o poder de suportar as sentenas quando rectas e de lhes dar execuo falvel, pois nem sempre todos se juntaro vtima com vista a condenar o transgressor, cfr. The Second..., 124 segs., p. 350 segs. esta falibilidade que determinar que todos, em plena liberdade, concordem em superar o estado de natureza. Nas reveladoras palavras de NORBERTO BOBBIO, o governo civil em LOCKE compreende-se assim, no por anttese ao estado de natureza, mas enquanto meio de permitir a sobrevivncia das leis naturais, cfr. Locke e o Direito Natural, trad., Editora Universidade de Braslia, Braslia, 1997, p. 171-172.

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e ilegtimo, negando a sua prpria razo de ser, quando se afaste da mesma finalidade49. Ao empenhar os homens, no apenas na sua auto-preservao, mas tambm na preservao da humanidade, LOCKE socorre-se directamente de um enquadramento teolgico, cuja formulao precede o contrato fundador e que constitui pressuposto de uma adeso humana ao mesmo, sendo, a nosso ver, o pensamento lockeano incompreensvel independentemente daquele enquadramento. No faltam, certo, tentativas destinadas secularizao de LOCKE, em cujo mbito a lei da natureza se torna objecto de uma fundamentao que no apela ao referido enquadramento. Na paradigmtica leitura straussiana de LOCKE, a fonte da lei natural, que impele cada um a auto-preservar-se e a preservar o resto da humanidade, susceptvel de ser encontrada no mais forte desejo do homem, o desejo de auto-preservao, pois cada um, na preservao da humanidade, encontra uma garantia da sua prpria preservao50. A lei da natureza reflectir, nesta leitura, o estado de natureza enquanto estado relevante da estrita natureza humana, isto , das naturais inclinaes humanas enquanto inclinaes no mutuamente destrutivas porque, no limite, no auto-destrutivas. Esta leitura confere uma plausibilidade secular ao modelo de LOCKE. Os vnculos apriorsticos, prvios instituio de um poder poltico definido em razo dos mesmos, passam a ser, eles mesmos, susceptveis de uma sustentao no teologicamente referida, mas antes referida natureza humana enquanto configurao biolgico-instintiva. Segundo GOLDWIN, LOCKE, embora vinculando o homem ao Criador, no tem como relevantes um qualquer amor do homem por Deus ou do homem pelo seu semelhante. Estes no so essenciais para a sua explicao fundadora do governo civil. Para tal explicao, LOCKE apela a outras foras daTal revela-se na prpria definio de poder poltico oferecida por LOCKE, o direito de fazer as leis () com o fim exclusivo de assegurar o bem pblico (cfr. The Second..., 3, p. 268), e vale, em primeiro plano, no que diz respeito ao poder legislativo, onde reside a autoridade suprema, uma vez institudo o governo. Essa autoridade, nos termos de LOCKE, no pode de nenhum modo assumir um poder de governar por intermdio de decretos arbitrrios, antes se encontrando vinculada a dispensar justia, cfr. The Second..., 136, p. 358. Estamos assim perante uma concepo de autoridade suprema bem distinta daquela que posteriormente surgiria em BLACKSTONE, esta ltima hobbesianamente inspirada, por muito que correntemente se pretenda o contrrio, cfr. Commentaries on the Laws of England I Of the Rights of Persons, I, University of Chicago Press, Chicago, 1979, p. 156 segs. 50 Cfr. ROBERT GOLDWIN, John Locke, in History of Political Philosophy, org. Leo Strauss / Joseph Cropsey, cit., p. 476-512, p. 482-483.49

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natureza humana, mais poderosas e universais e, sobretudo, mais fortes. Assim, e para GOLDWIN como para STRAUSS51 , como se LOCKE tivesse dito: no nego que os homens so frequentemente moderados e justos, que muitos lutam pela perfeio; nem nego que alguns so motivados por temor ou amor a Deus ou por amor ao seu semelhante. Apenas afirmo que, quando consideramos as verdadeiras fundaes da sociedade poltica, as origens reais do governo, nenhuma dessas suficientemente importante para merecer ateno. O que pesa o que universal e poderoso, o que existe como fora controladora em todos os homens, o que pode ser confiado enquanto governando o comportamento humano52. A esta luz, a base da lei da natureza encontra-se no mais forte desejo de cada homem. O desejo de auto-preservao que determina como os homens se devem comportar. Como os homens so incapazes de se comportar de outra forma, o seu comportamento nunca pode estar errado a esta luz, no podendo nenhum governo estar seguramente fundado na natureza se no permitir ou mesmo encorajar os homens a agir como eles so incapazes de no agir53. E, segundo GOLDWIN, a esta mesma luz que deve ser interpretada a afirmao de LOCKE segundo a qual as leis s podem ser certas at ao ponto em que se fundem na lei da natureza, em obedincia qual devem ser elaboradas e interpretadas54. A tentativa straussiana destinada secularizao de LOCKE, a ser acertada, aproximaria LOCKE de contemporneas construes ultimamente radicadas na teoria da evoluo55. No se cr, no entanto, que seja inteiramente bem sucedida. Com efeito,Cfr. What is Political, loc. cit., p. 49-50 e Lockes Doctrine of Natural Law, in What is Political Philosophy? and Other Studies, cit., p. 197-220, passim. 52 Cfr. GOLDWIN, John Locke, loc. cit., p. 484. 53 Cfr. GOLDWIN, John Locke, loc. cit., p. 484-485. 54 Cfr. The Second..., 12, p. 275. 55 Em ANTNIO DAMSIO, a realidade biolgica da auto-preservao leva virtude porque na nossa necessidade irreprimvel de nos mantermos a ns mesmos necessitamos de ajudar os outros a se manterem a si mesmos. Se no tivermos essa preocupao, perecemos e, ao perecermos, violamos ao mesmo tempo o princpio fundamental da auto-preservao e a virtude que lhe est ligada. O fundamento secundrio da virtude , assim, a realidade de uma estrutura social e a presena de outros seres vivos, num sistema complexo de interdependncia com o nosso prprio organismo. Deste modo, porque em tal sistema complexo de interdependncia, o processo relativamente simples de obter alimento ou procriar se converta em actividades extremamente complicadas, a vida humana deixa de poder ser apenas regulada por dispositivos naturais e automticos de homeostasia, tais como o metabolismo, os apetites e as emoes. Em tais circunstncias, a nossa vida deve ser regulada no s pelos nossos desejos e sentimentos, mas tambm pela nossa preocupao com os desejos e sentimentos dos outros, a qual culminar em convenes sociais e regras de tica, cuja administrao caber a instituies religiosas, de justia e de organizao scio-poltica, cfr. Ao Encontro de Espinosa As Emoes Sociais e a Neurologia do Sentir, 6. ed., PEA, Mem Martins, 2004, p. 191, 195, 197 e 198. Para outras construes51

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uma coisa afirmar que LOCKE retrata o hipottico homem natural de HOBBES como irrealista, o que em si e independentemente do pensamento de LOCKE inquestionvel, j que a subsistncia necessariamente social da espcie humana nunca poderia permitir-lhe instintos mutuamente destrutivos, pr ou anti-sociais. Outra coisa, pretender encontrar em LOCKE, como os straussianos erroneamente pretendem, um homem natural alternativo ao de HOBBES. Tal leitura de afastar por uma razo simples: o homem natural de LOCKE no verdadeiramente um homem natural, no um ser subsistente num universo pr-convencional em que obedea estritamente s suas inclinaes naturais. Pelo contrrio, o homem natural de LOCKE apreendeu como sua (interiorizando-a, moldando a partir dela a sua razo) a parametrizao moral crist, centrada nuclearmente na ideia de igualdade fundamental dos homens perante Deus56. Um homem natural, desenquadrado da parametrizao moral crist, no pode ser equacionado como subsistente num estado de natureza enquanto estado de igualdade e regido por uma correspondente lei da natureza. Disto tem LOCKE plena conscincia quando apela ao Criador. Dito de outro modo, LOCKE no equaciona a igualdade entre os homens como apreendida pelos seres humanos ao nvel das meras suas inclinaes naturais (da sua configurao biolgico-instintiva), assim

sobre a natureza humana luz da teoria da evoluo, quer a um nvel sociobiolgico, quer a um nvel neurobiolgico, quer ainda ao nvel da psicologia evolutiva, cfr. EDWARD WILSON, Sociobiology-The New Synthesis, Harvard University Press, Cambridge-Massachusets, 1975, p. 547 segs.; On Human Nature, 2. ed., 2004, Harvard University Press, Cambridge-Massachusetts, 2004, p. 149 segs.; JAMES Q. WILSON, The Moral Sense, Free Press, Nova Iorque, 1993, em especial, p. 1 segs. e 121 segs.; STEVEN PINKER, The Blank State The Modern Denial of Human Nature, Viking, Nova Iorque, 2002, em especial, p. 137 segs. Veja-se tambm, por ltimo, o muito desenvolvido The Handbook of Evolutionary Psychology, organizado por DAVID M. BUSS, Wiley, 2005, em particular, os artigos de DAVID M. BUSS, Introduction: The Emergence of Evolutionary Psychology; JOHN TOOBY / LEDA COSMIDES, Conceptual Foundations of Evolutionary Psychology; DENNIS KREBS, The Evolution of Morality; DOUGLAS KENRICK / JON MANER / NORMAN LI, Evolutionary Social Psychology e OWEN D. JONES, Evolutionary Psychology and the Law, respectivamente, p. xxiii-xxv, p. 5-63, p. 747769, p. 803-827 e p. 953-979. 56 Sobre a ideia de igualdade fundamental entre os homens, correspondente respectiva igualdade perante Deus, como ideia nuclear subjacente ao universo moral cristo, cfr., em particular, CASTANHEIRA NEVES, A Imagem do Homem no Universo Prtico, in Digesta Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurdico da sua Metodologia e Outros, I, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 311-336, p. 330; PAULO OTERO, Instituies Polticas e Constitucionais, I, Almedina, Coimbra, 2007, p. 96 segs.; PINTO BRONZE, Lies de Introduo ao Direito, 2. ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 95-96. Sugerindo mesmo a insustentabilidade de radicao do princpio de igualdade fundamental entre os homens ou da sua imprescritvel dignidade fora de uma fundao religiosa, cfr. GEORGE FLETCHER, In Gods Image: The Religious Imperative of Equality under Law, Columbia Law Review, 99, 1999, p. 1608-1629, p. 1609 segs. Regressaremos, detidamente, aqui, cfr. Infra, III 1 e 2.

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independentemente

da

apreenso,

pelos

mesmos,

de

uma

correspondente

parametrizao moral. Trata-se, esta, de leitura hoje cabalmente comprovada por JEREMY WALDRON. Como este afirma, a igualdade no pode ser no limite sustentada, a menos que seja aceite por aqueles que sejam consagrados iguais. Locke acreditava que esta aceitao generalizada seria impossvel fora de uma fundao religiosa. Contemporaneamente, esta fundao tende a ser rejeitada. Locke consideraria que nos encontramos consequentemente em risco. E em face da experincia de um sculo em que a poltica e a razo pblica se afastaram daquela fundao, as suspeitas de Locke parecem encontrar-se confirmadas57. O que est em causa, no limite, e independentemente agora da certeira admonio de WALDRON (que pode tambm ser encontrada no pensamento de ARENDT, conforme verificaremos58), a no auto-suficincia moral de um hipottico homem natural. Uma no auto-suficincia moral que LOCKE apreende plenamente, o que a leitura straussiana desmerece. E em que cumpre hoje confirmar plenamente LOCKE. Com efeito, uma coisa afirmar que as inclinaes de um homem natural o predispem, desde logo luz da teoria da evoluo, apreenso de um universo moral, considerada a sua subsistncia necessariamente social59. Outra, inteiramente diferente, afirmar que o homem, reduzido s suas inclinaes naturais, moralmente autosuficiente, um ente (self) que dispe j da parametrizao moral uma parametrizao assim a-cultural essencial sua subsistncia social60. E se a primeira afirmao verdadeira, a segunda inequivocamente falsa61. Nas palavras de MACINTYRE, o homem sem cultura um mito. A nossa natureza biolgica certamente impe

Cfr. God, Locke and Equality Christian Foundations in Lockes Political Thought, Cambridge University Press, Cambridge, 2002, p. 243. Em termos prximos, rejeitando tambm como filosoficamente inviveis, tentativas contemporneas de justificar a igualdade por via de uma reduo da humanidade s suas caractersticas e afirmando que a igualdade s pode ser, no limite, fundamentada por recurso a uma viso holstica da dignidade humana com raiz bblica, cfr. FLETCHER, In Gods..., loc. cit., em especial, p. 1613 segs. e 1621 segs. Para uma anatomia da igualdade como insight ocidental, embora em termos no to decisivos quanto aqueles que se encontram em FLETCHER, cfr. JOHN COONS / PATRICK BRENNAN, By Nature Equal: The Anatomy of a Western Insight, Princeton University Press, Princeton, 1999, em especial, p. 19 segs. 58 Cfr. Infra, II 3. 59 Veja-se, por ltimo, MACINTYRE, Dependent Rational Animals Why Human Beings Need the Virtues, reimp., Open Court, Chicago, 2005, p. 1 segs. 60 Para a noo de ente, cfr. TAYLOR, Sources, p. 1 segs. 61 Indiciando claramente este ponto, cfr. TAYLOR, Sources..., p. 30 segs. e 340 segs. Veja-se tambm IRIS MURDOCH, Metaphysics as a Guide to Morals, reimp., Vintage, Londres, 2003, em especial, p. 348 segs. e 481 segs.

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constrangimentos a uma qualquer possibilidade cultural; mas o homem que no tenha nada a no ser uma natureza biolgica uma criatura da qual no sabemos nada62. Regressando a LOCKE, interessa pois sublinhar que, quando o primeiro releva um homem natural que se guia pelos seus sentidos e razo aceitando com humildade a natureza que Deus lhe deu63 , releva um homem que j interiorizou a mundividncia crist, habitando a correspondente humanitas. No releva um homem rigorosamente natural que se mova segundo estritas inclinaes naturais64. Estamos, em qualquer caso, perante uma alterao de paradigma relativamente prModernidade. Neste ltimo sentido, de referir o pensamento de LOCKE a uma cristandade interiorizada algo que no coincide rigorosamente com a cristandade racionalizada a que se refere TAYLOR65, Autor que desconsidera a velada continuidade de LOCKE relativamente a ESPINOSA e ultimamente a TOMS DE AQUINO66 , isto , a uma cristandade apreendida pelo homem e moldadora da sua prpria humanidade (estruturante da sua identidade). J no a uma cristandade heteronomamente subordinante porque temida por um homem inquieto relativamente ao destino da sua alma, a qual tenha a virtualidade de o subordinar a elites no escrupulosas que o faam temer por esse mesmo destino e lhe imponham um correspondente preo de obedincia. Com efeito, em LOCKE, a soberania de Deus, no dando rigorosamente lugar a uma soberania do homem j que no o liberta de uma heteronomia , no o condena a uma vida de menoridade servil orientada para a imortalidade. Muito pelo contrrio. O prazer do Criador identifica-se com o prazer dos homens: Deus criou o mundo para o benefcio dos homens67. Neste quadro, para honrar Deus, o homem no pode deixar-se dominar pelos seus medos, pelas suas supersties, pela sua passibilidade de servilismo a elites no escrupulosas, que se arroguem, por exemplo,

Cfr. After Virtue, 2. ed., reimp., University of Notre Dame Press, Notre Dame - Indiana, 2003, p. 160161. Veja-se ainda, em termos substancialmente prximos e aplicados ao sentido de justia do homem enquanto relevante da respectiva moldagem cultural, cfr. WOLFGANG FIKENTSCHER, The Sense of Justice and the Concept of Cultural Justice Views from Law and Anthropology, American Behavioral Scientist, 34, 1991, p. 314-334, em especial, p. 328 segs. 63 Cfr. TAYLOR, Sources..., p. 242. 64 Viso de LOCKE, conforme leitura straussiana, que TAYLOR no supera, cfr. Sources..., p. 236. 65 Regressaremos a este aspecto, cfr. Infra, III 4. 66 Continuidade qual regressaremos detidamente, cfr. Infra, III 4. 67 Cfr. The Second..., 34, p. 291.

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um qualquer direito divino de governar68. Para honrar Deus, impe-se-lhe que projecte politicamente um estado natural de perfeita igualdade, concordante com a parametrizao moral crist. Que assim projecte politicamente um estado vivido por homens naturais que no o so rigorosamente, j que se ordenam segundo um iderio parametrizador de igualdade fundamental69 segundo um iderio que, por assim dizer, transforma todos os homens em tributrios do direito divino que anteriormente o Rei se arrogara para si mesmo. Recorde-se que o contexto em que LOCKE se movimenta , precisamente, um contexto superador da doutrina de direito divino dos Reis. O que est em causa legitimar a Revoluo Gloriosa, assentar que na ordem por esta instaurada uma ordem ditada pelo benefcio dos homens, pelo benefcio de todos os homens , e no na ordem precedente, que se rev a vontade de Deus70. a esta luz tido em conta que LOCKE, na senda de TOMS DE AQUINO e de ESPINOSA71, um dos mximos responsveis pela projeco no universo poltico de uma parametrizao igualitria que s relativamente tarde alcana verdadeiramente tal relevo que se deve compreender a teoria do estado de natureza e a teoria contratualista de LOCKE, esta ltima de nenhum modo presa concepo de uma aleatria e revogvel forma de associao, mas antes concepo de uma forma de associao expressiva de uma pressuposta parametrizao igualitria72. E a esta luz que se deve compreender a doutrina dos direitos naturais. Estes so direitos que os homens cristos iguais perante o Criador e, consequentemente, iguais em diferentes formulaes disso expressivas se reconhecem mutuamente quando chamados ao

Cfr. TAYLOR, Sources..., p. 236. Sobre a ideia de igualdade fundamental, cfr. WALDRON, God..., p. 2 segs. Sobre um correspondente princpio de igualdade abstracta em que est em causa a ideia de que todas as pessoas devem ser encaradas com igual considerao e respeito, cfr. RONALD DWORKIN, Sovereign Virtue The Theory and Practice of Equality, Harvard University Press, Cambridge-Massachusets, 2000, p. 1 segs. 70 Alis o Primeiro Tratado assumidamente contraposto doutrina de direito divino, tal como sustentada no contexto por Robert Filmer. inclusivamente titulado The False Principles and Foundation of Sir Robert Filmer and His Followers Are Dectected and Overthrown. 71 Cfr. Infra, III, passim. 72 Esta preciso necessria, j que o contratualismo de LOCKE tem erroneamente sido considerado conjuntamente com outros contratualismos, os quais concebem o contrato fundador como um pacto aleatrio e revogvel entre indivduos desamarrados. Assim, por exemplo, cfr. RICOEUR, O Justo, p. 34. Muito mais exacta foi a leitura dada a LOCKE por CABRAL DE MONCADA, Autor que assinalou que, em LOCKE, o contrato social j no um princpio meramente explicativo, construtivo-racional e heurstico, mecnico-naturalista, como era em HOBBES. Pelo contrrio, uma tal ideia surge-nos agora, de repente transformada num princpio regulativo, normativo, todo repassado de momentos de uma tica religiosa (). Este o mais alto significado de LOCKE. Achamo-nos perante um personalismo cristo secularizado e transposto no domnio poltico-econmico, cfr. Filosofia, I, p. 218-219.69

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estabelecimento de uma ordem existente para seu benefcio, isto , quando emancipados da sua passibilidade de servilismo a elites no escrupulosas73. Clarificam-se assim, inteiramente, as ressonncias lockeanas e ultimamente crists das palavras iniciais da Declarao de Independncia dos Estados Unidos74:

Consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: que todos os homens so criados iguais; que so dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienveis; e que entre estes, se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Os governos so estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos.

importante precisar que estes mesmos direitos naturais (vida, liberdade e propriedade) tm, em LOCKE, um contedo inteiramente distinto daquele que lhes vir a ser atribudo pelo liberalismo burgus ou pelo libertarianismo contemporneo, sendo inteiramente de recusar a generalizada imputao a LOCKE da paternidade ltima deste sistema. Precisamente porque o homem, em estado de natureza, se parametriza (substancializa a sua identidade, molda-se enquanto ente) em obedincia mundividncia crist, liberdade e propriedade constituem, em LOCKE, direitos intrinsecamente limitados em termos que podemos designar genericamente como altrusticos75. Com efeito, os direitos naturais reflectem uma concepo normativa e no uma concepo individualista ou libertria76. Reflectem um enquadramento valorativo, configuram-se como os direitos que homens que interiorizaram talCfr. TAYLOR, Sources..., p. 236. Neste sentido, afirma ARENDT que quando os assinantes da Declarao de Independncia mutuamente comprometeram as suas vidas, as suas fortunas e a sua honra sagrada, estavam a raciocinar () nos termos da conceptualizao de Locke, cfr. Civil Desobedience, in Crises of the Republic, Harcourt, San Diego, 1972, p. 49-102, p. 87. Pode mesmo dizer-se que, nos termos explicitamente antecipados por LOCKE que identificou a Amrica com um benigno estado de natureza , aqueles que redigiram a Declarao de Independncia, em particular JEFFERSON, assumiram a condio de lockeanos homens naturais, cfr. BERNARD BAILYN, The Ideological Origins of the American Revolution, 2. ed., Harvard University Press, Cambridge-Massachusetts, 1992, p. 83 segs. 75 Utilizamos a palavra altrusticos entre aspas, na medida em que em LOCKE no esteja em causa o exerccio de altrusmo no sentido moderno algo que se contrape a um sujeito configurado como egosta mas antes o exerccio de virtudes crists que moldam o sujeito naquilo que naturalmente . Em geral, para a contraposio entre o discurso centrado na contraposio egosmo-altrusmo e um discurso de virtude, cfr. MACINTYRE, Dependent, p. 160 segs. 76 Para a distino entre uma concepo normativa e uma concepo individualista ou libertria, ao nvel da sustentao filosfica dos direitos do homem, cfr. RICHARD PRIMUS, The American Language of Rights, reimp., Cambridge University Press, Cambridge, 2004, em especial, p. 23 segs.74 73

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enquadramento, que internalizaram os correspondentes limites, se reconhecem mutuamente. Neste quadro, a liberdade o direito de regular as suas aces e de dispor da sua propriedade e da sua pessoa como melhor se queira, dentro dos limites da lei da natureza uma lei insusceptvel de ser compreendida, nos termos expostos, fora da ordenao humana ao prazer do Criador77. E a propriedade encontra-se limitada, quanto ao seu fundamento e sua teleologia, no mbito de um enquadramento ultimamente igualitrio, isto , no mbito de um enquadramento intrinsecamente cristo. Nas palavras de WALDRON, em LOCKE, a propriedade configurada em termos que respeitam a igualdade bsica no seu sentido mais profundo: os recursos naturais existem para uso humano, significando uso humano o uso por qualquer homem (). Se a generalidade for privada do seu uso por algum que no os empregue laboriosamente, nem se disponha a coloc-los ao servio dos homens, ento estamos perante uma directa afronta teleologia dos recursos naturais. Em tais circunstncias, o fundamento de validade da apropriao evapora-se e os recursos devem tornar-se comuns novamente78. Tal compreende-se luz do prprio modo como concebida a fundamentao da propriedade. Em LOCKE, a propriedade funda-se, no na mera ocupao, mas na especificao, isto , na transformao, por via do trabalho, dos recursos naturais de recursos criados por Deus para benefcio dos homens , com vista satisfao de necessidades prprias e dos outros, isto , das necessidades de todos enquanto igualmente dignos perante Deus79. aqui que se encontra a teleologia dos recursos naturais80, a qual releva, no apenas em sede de apropriao, como de uso. Este ltimo encontra-se configurado luz de um imperativo de no perecimento ou de no destruio (spoilation proviso)81, j que nada foi criado por Deus para que perea ou

Cfr. The Second..., 57, p. 304. Mesmo LOUIS ALTHUSSER reconhece que, em LOCKE, a liberdade no licena, antes pelo contrrio: s faz sentido no campo da reciprocidade de deveres, cfr. Politique et Histoire De Machiavel Marx, Seuil, Paris, 2006, p. 285. 78 Cfr. God..., p. 171. Diga-se que em God, Locke and Equality, WALDRON rev a sua leitura do significado da propriedade em LOCKE, anteriormente presa ao paradigma genericamente adoptado, em cujos termos o pensamento de LOCKE nada mais representa do que a paternidade do moderno individualismo possessivo, cfr. Property Law, in A Companion to Philosophy of Law and Legal Theory, org. Dennis Patterson, reimp., Blackwell, Oxford, 1999, p. 3-23, p. 19 segs. 79 Cfr. BOBBIO, Locke, p. 193. 80 Cfr. WALDRON, God..., p. 159. 81 Cfr. WALDRON, God..., p. 170.

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seja destrudo pelo homem82. LOCKE precisa que, numa sociedade agrcola prvia inveno do dinheiro, semelhante imperativo limita fortemente a acumulao da propriedade, determinando a respectiva distribuio igualitria. Noutro quadro dominado pelos mecanismos de mercado ou pela diviso entre capital e trabalho poderia pensar-se que o significado do mesmo imperativo desaparece83. Mas no. Como afirma WALDRON, o imperativo lockeano aplica-se enquanto instrumento de avaliao e correco do funcionamento do mercado: se por qualquer razo se verificar que o mercado falha ao nvel da distribuio equitativa de bens destinados ao uso humano, o imperativo em causa permanece como base para reprovar e corrigir o mercado84. Assim, os direitos naturais de LOCKE direitos subordinados a um enquadramento igualitrio de raiz teolgica, direitos de homens que interiorizaram tal enquadramento pouco ou nada tm em comum com os correspondentes direitos afirmados pelo liberalismo burgus ou pelos libertrios contemporneos. Por muito que estes no se cansem de afirmar tributrios de LOCKE, prestando-lhe homenagens que este seguramente no retribuiria85. Alis, a invocao, por parte do liberalismoCfr. The Second..., 31, p. 290. Esta leitura parece ser a de BOBBIO, Locke, p. 200 segs. 84 Cfr. WALDRON, God..., p. 172. O referido imperativo de no perecimento no constitui o nico limite propriedade configurado por LOCKE. WALDRON infere tambm um imperativo de suficincia (sufficiency proviso), sobretudo da sugesto de LOCKE segundo a qual a apropriao apenas legtima quando haja suficincia, e correspondentemente bom seja deixado em comum para os outros (where there is enough, and as good is left in common for others). Naturalmente que este imperativo deixa de ter aplicao directa a partir do momento em que os recursos se tornam escassos, no se encontrando j disponveis para laboriosa apropriao por todos. Mas, como anota WALDRON, o mesmo imperativo sugere a existncia de um problema no caso de interesses de terceiros serem prejudicados por actos de apropriao individual, sendo que o princpio da igualdade, que domina todo o quadro, exige que aqueles interesses no sejam pura e simplesmente ignorados ou sacrificados (cfr. God..., p. 172-173). Os limites propriedade, em LOCKE, no se resumem a um imperativo de no perecimento e a um imperativo de suficincia. Fundamental ainda o princpio da caridade, um princpio que adscreve aos detentores de propriedade, em qualquer economia, o dever de ceder algumas das suas possesses suplementares, para que estas sejam utilizadas com vista satisfao das necessidades dos pobres, os quais no teriam a possibilidade de subsistir de outra forma. Note-se que este princpio de caridade, claramente formulado no Primeiro Tratado, no constitui, em LOCKE, apenas um dever moral a cargo daquele que o prossegue. A caridade um direito daqueles que a recebem, no podendo ser justamente negada, j que os recursos terrenos existem para a utilidade de todos e j que nenhum homem cristo, enquadrado pela mensagem fundamentalmente igualitria de Cristo, pode deixar de o reconhecer. Como anota WALDRON, e ao contrrio do que genericamente tem sido suposto, se os pobres tiverem os direitos que o Primeiro Tratado diz que os mesmos tm (), um governo civil lockeano estar obrigado a interferir continuamente nos direitos de propriedade, com vista a distribuir os bens suplementares dos abastados pelos mais necessitados, cfr. God..., p. 177-178. Tambm ALTHUSSER assinalara j que, a partir de LOCKE, construdo um ideal de fraternidade, em que justia e caridade so deveres dos homens na sua relao uns com os outros, cfr. Politique, p. 284. 85 Assim, por ltimo, cfr. ROBERT NOZICK, Anarchy, State and Utopia, Basic Books, CambridgeMassassuchets, 1974, p. 10 segs.83 82

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individualista e possessivo ou por parte do contemporneo libertarianismo , da tradio de direitos naturais configura-se como inteiramente abusiva em termos genricos, no apenas tendo em considerao o pensamento de LOCKE. Como afirma BOBBIO, o jusnaturalismo moderno, tal como o jusnaturalismo medieval, no individualista. Hobbes parte, Grotius usa como base do seu sistema o appetitus societatis; Pufendorf recorre ao pressuposto da sociabilidade (sociabilitas) do homem; Locke considera o estado de natureza, ao contrrio de Hobbes, um estado social () Onde esto os individualistas modernos? Os maiores jusnaturalistas so to pouco individualistas, que alguns escritores italianos do sculo XVIII () conheciam-nos como socialistas (). O Direito Natural sempre foi concebido como a tica do homem em sociedade pelos antigos e pelos modernos, quase indistintamente86. Independentemente deste ltimo aspecto, o que agora sobretudo importa sublinhar que de modo nenhum pode dizer-se verificada em LOCKE uma ruptura com a ordem (ou a pressuposio da ordem) teolgico-metafsico-cultural87. Muito pelo contrrio, na mais correcta leitura de LOCKE, plenamente confirmada em WALDRON mas que no original, mesmo entre ns88 , o pensamento lockeano antes se deve compreender em curiosa continuidade relativamente tradio tomista89, na qual o homem encontra a sua unidade acima de si90 e em que, consequentemente, a lei natural no tem por fonte a natureza enquanto situao de facto (enquanto configurao biolgico-instintiva91). Na tradio tomista, a lei natural antes constitui uma lei que informa a razo humana, ento elevada a razoCfr. Locke, p. 53. Cfr. CASTANHEIRA NEVES, Entre o Legislador, loc. cit., p. 15. 88 Vimos j que, em CABRAL DE MONCADA, o mais alto significado de LOCKE encontra-se num personalismo cristo secularizado transposto no domnio poltico-econmico, cfr. Filosofia, I, p. 219. 89 Alis, j BOBBIO afirmou insurgindo-se contra uma cortante distino entre a tradio jusnaturalista clssica exponenciada em TOMS DE AQUINO, e a tradio jusnaturalista moderna, tida por representada em LOCKE que a ideia de que o jusnaturalismo catlico distinto do moderno (...) deve ser considerada com muita cautela, cfr. Locke, p. 52-53. Entre ns, em sentido contrrio, persistindo em contrapor direito natural e direito natural moderno por confessada inspirao straussiana, com inevitveis efeitos no modo, porventura descaracterizador, como encara os mitos ou utopias fundadoras do constitucionalismo, cfr. FERREIRA DA CUNHA, Constituio, Direito e Utopia Do Jurdico-Constitucional nas Utopias Polticas, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 28 e Filosofia do Direito, Almedina, Coimbra, 2006, p. 321 segs. 90 Recorrendo formulao de JACQUES MARITAIN, Le Docteur Anglique, Descle de Brouwer et Cie, Paris, 1930, p. 49. 91 No mesmo sentido, afirma MRIO BIGOTTE CHORO que, segundo a tradio tomista, a natureza humana no expresso de uma pura situao de facto, mas de uma ordem metafsico-teleolgica, cfr. Crise da Ordem Jurdico-Poltica e Proposta Jusnaturalista, in Pessoa Humana, Direito e Poltica, INCM, Lisboa, 2006, p. 71-100, p. 84.87 86

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natural, se o homem enquanto criatura que tende a viver em sociedade e a conhecer a verdade sobre Deus92 prosseguir um habitus para a apreender, descobrindo-se participante. Assim, e em termos simples, nem em TOMS DE AQUINO, nem em LOCKE, ser possvel responder mxima questo Como devemos viver? (O que justo?), afirmando simplesmente que devemos viver segundo as nossas inclinaes naturais. Aqui, encontramos apenas um conhecimento obscuro, no sistemtico, visceral93, dispondo-nos apreenso de uma lei verdadeira, isto , de uma parametrizao moral na qual a nossa razo elevada plenitude de si prpria, a razo que pensa na lei natural94. Parametrizao esta em cujo mbito se possibilita o apuramento das regras gerais e medidas de todas aquelas coisas que o homem deve fazer ou deixar de fazer95. Curiosamente, na leitura straussiana, h tambm uma continuidade entre TOMS DE AQUINO e LOCKE, embora equacionada em termos muito diversos daqueles que aqui preconizamos. Isto , a continuidade que detectamos verifica-se por via da referenciao ltima dos dois Autores a uma identidade natural do homem, relevante da sua perfeio moral do seu alcanar-se pleno lei natural no sentido exposto96 e no da sua configurao biolgico-instintiva. Ora, a continuidade detectada na leitura straussiana verifica-se por via de um reporte dos dois Autores s

Cfr. Tratado de la Ley en General, in Suma de Teologia II Parte I-II, trad., reimp., Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 2001, p. 693-759, Questo 91, Artigo 2., p. 710-711 e Questo 94, Artigo 2., p. 732-733. O contexto desta afirmao um contexto diferenciador do homem relativamente aos outros animais. Se ao primeiro pertence o que comum aos demais animais aquilo que o conserva a si e sua espcie , pertence-lhe ainda, segundo a natureza racional que lhe prpria, a inclinao para completar, segundo a graa divina, a sua mera natureza, recorrendo s palavras de FREITAS DO AMARAL, Histria das Ideias Polticas, Almedina, Coimbra, 1998, p. 171. Tambm sobre a distino entre os homens e outras criaturas em TOMS DE AQUINO, afirma RALPH MCINERNY, que h bens que o homem partilha com todas as outras criaturas, outros bens que apenas partilha com algumas outras criaturas e bens que lhe so peculiares. Se o bem humano o bem que peculiar e proporcional ao agente humano, deve ser aperfeioador do mesmo enquanto agente. Deve implicar que o homem transcenda a sua mera natureza, atingindo a sua verdadeira natureza segundo a graa divina, cfr. Ethica Thomistica The Moral Philosophy of Thomas Aquinas, reimp., The Catholic University of America Press, Washington, 1997, p. 45 segs. 93 Recorrendo formulao de MARITAIN, LHomme et ltat, PUF, Paris, 1953, p. 84. 94 Cfr. JOHANNES LOTZ, Martin Heidegger e So Toms de Aquino, trad., Piaget, Lisboa, 2002, p. 197. Na formulao correspondente de BUDZISZEWSKI, em TOMS DE AQUINO a lei natural reflexo da lei eterna na estrutura da mente racional criada, cfr. Written on the Heart: The Case for Natural Law, Intervarsity Press, Downers Grove, 1997, p. 61 segs. 95 Cfr. Tratado de la Ley en General, Questo 90, Artigo 1., p. 704-705. 96 Regressaremos mais detidamente aqui, cfr. Infra, III 3 e 4.

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meras inclinaes naturais dos homens, tidas enquanto fontes morais (moral sources) no sentido dado expresso por TAYLOR97. Com efeito, vimos que GOLDWIN, ao referir-se a LOCKE, equaciona a lei natural enquanto imediatamente reportvel natureza humana, uma natureza que dita quais os termos em que os homens so incapazes de no agir98. Por seu turno, ao referir-se a TOMS DE AQUINO, ERNEST FORTIN equaciona a razo natural tomista enquanto mera captadora de primrias inclinaes naturais, equacionando-se a lei natural como promulgada pela natureza ela mesma99. O que, tido em conta o exposto, no rigorosamente o caso, s o vindo a ser em HUGO GRCIO100, que, na moderna via hobbesiana, pretende efectivamente extrair consequncias normativas de uma natureza intrnseca do homem, vlidas mesmo que Deus no exista101 porque exclusivamente radicadas numa observao detida e aguda de si mesmo e dos mais102. E, assim, se inicia verdadeiramente um movimento emancipador traduzido na localizao das fontes morais ao nvel da natureza humana ela mesma103, o qual culminaria na respectiva radical subjectivao ou internalizao em ROUSSEAU104.

Cfr. Sources..., p. 91 segs. Cfr. John Locke, loc. cit., p. 484. 99 Cfr. Saint Thomas Aquinas, in History of Political Philosophy, org. Leo Strauss / Joseph Cropsey, cit., p. 248-275, p. 264-265. Esta leitura de FORTIN idntica de STRAUSS, v. Lockes, p. 198-199. 100 Cfr. SOARES MARTINEZ, Textos de Filosofia do Direito, Almedina, Coimbra, 1993, p. 98. 101 Sobre a lei natural em GRCIO como lei que o homem pode apreender por via de uma consulta racional sua natureza intrnseca enquanto natureza racional, uma lei assim vlida mesmo que Deus no exista e os assuntos do homem no Lhe interessem, cfr. RICHARD COX, Hugo Grotius, in History of Political Philosophy, org. Leo Strauss / Joseph Cropsey, cit., p. 386-395, p. 388. 102 Sobre este aspecto, no mbito de uma contraposio entre a tradio jusnaturalista teolgica, exponenciada em TOMS DE AQUINO, e tradio jusnaturalista que se pretende a si mesma como emancipadora da lei natural de qualquer vnculo teolgico, cfr. HANS WELZEL, Introduccion a la Filosofia del Derecho Derecho Natural y Justicia Material, 2. ed., trad., Aguilar, Madrid, 1977, p. 116. 103 Assinala BIGOTTE CHORO que, a partir de GRCIO, verifica-se uma alterao de paradigma: as palavras so as mesmas, desde a palavra-chave natureza, mas muda o seu sentido. A tradio jusnaturalista deixa de ser expresso da vinculao humana a uma ordem csmica, tornando-se vulnervel a um processo de ideologizao. Assinala ainda o Autor que o jusnaturalismo moderno portugus no escapa a este tipo de metamorfoses, a que no so de todo alheias marcas de duplicidade (). No de excluir que, em certos casos, algum se cubra com a capa da velha terminologia para tentar defender-se das suspeitas de heresia. A linguagem artificiosa e o mais incoerente sincretismo doutrinal conjugam-se, enfim, num jusnaturalismo desfigurado e manipulador, cfr. Tpicos sobre o Direito Natural na Cultura Portuguesa, in Pessoa Humana, Direito e Poltica, cit., p. 101-133, p. 106-107. 104 Sobre este ltimo aspecto, cfr. TAYLOR, Sources, p. 355 segs.98

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4. Uma kantiana emancipao?

Se em LOCKE est em causa uma cristandade interiorizada e, como tal, um momento fulcral na emancipao do homem, em KANT num KANT coerente com os seus prprios pressupostos iluministas est em causa uma pretenso de emancipao total. O que se pretende no apenas a libertao do homem de uma menoridade culpada face a Deus105. Pretende-se a libertao do homem de uma qualquer heteronomia enquanto suposto titular de uma razo incondicionada, assim plenamente auto-suficiente106. Mais do que quando contraposta construo de LOCKE, a construo kantiana compreende-se quando contraposta a todas as construes modernas que configuraram a natureza ela mesma como fonte da lei moral, as quais encontram a sua forma mais radical e emancipadora em ROUSSEAU107. Ora, um qualquer apelo natureza intrnseca do homem ou voz da natureza rejeitado por KANT108, para o qual s uma razo incondicionada pode libertar o homem. S essa razo uma razo cujo agente se sobrepe ao resto da criao e assim se contrape ordem da natureza109 ser confivel porque s a o homem poder encontrar uma autonomia perfeita, uma liberdade para obedecer a uma lei auto-prescrita, uma lei que no ditada pela natureza, antes sendo ditada por puro respeito pela universalidade da lei ela mesma110. O que conhece uma inevitvel projeco poltica: o Estado de Direito (Rechtstaat) como reflexo directo da dicotomia nuclear entre particular arbitrariedade e universal legalidade, entre fenmeno e nmeno, entre natureza e liberdade111.

Cfr. KANT, Resposta Pergunta: O que o Iluminismo? (1784), in A Paz Perptua e outros Opsculos, Edies 70, Lisboa, p. 11-19, p. 18. 106 Cfr. PIERRE HASSNER, Immanuel Kant, in History of Political Philosophy, org. Leo Strauss / Joseph Cropsey, cit., p. 581-621, p. 582. 107 Cfr. TAYLOR, Sources, p. 355 segs. 108 Neste sentido, assinala WELZEL ter KANT atacado o ponto mais fraco da tradio jusnaturalista que se pretendeu emancipada de qualquer vnculo teolgico, firmando que do conhecimento da natureza humana () no pode extrair-se nenhuma lei que revista necessidade absoluta, cfr. Introduccion, p. 175. 109 Cfr. TAYLOR, Sources..., p. 83. 110 Cfr. HASSNER, Immanuel Kant, loc. cit., p. 582. 111 Cfr. HASSNER, Immanuel Kant, loc. cit., p. 582.

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Contrapondo-se nestes termos a ROUSSEAU, KANT significa tambm uma continuidade relativamente a ROUSSEAU112. Com efeito, neste ltimo e como j referido, apela-se voz da natureza enquanto fonte da lei moral e, desse modo, procura-se libertar o homem de uma qualquer heteronomia. KANT significa uma outra tentativa filosfica porventura a tentativa filosfica por excelncia de libertao do homem, conferindo uma firme e inteiramente nova base subjectivao ou internalizao das fontes morais que ROUSSEAU inaugurara. Trata-se, assim, de duas formas diferentes de afirmar a soberania do homem, de duas formas diferentes de afirmar que a lei moral vem do interior e no pode ser definida por recurso a uma ordem externa que aprisione ou menorize o homem113. Estando essencialmente em causa a afirmao da soberania do homem ou, de outro modo, a construo de uma tica emancipada de um enquadramento teolgico114, o projecto kantiano no se compreende, ainda assim, em ruptura com os pontos nucleares da moral crist. O que est em causa no verdadeiramente refutar o respectivo qu, mas antes afirmar que esse qu susceptvel de ser apurado no mbito de um emancipado como115. Deste modo, pretende-se que uma razo no assistida uma razo incondicionada capaz, por si prpria, no mbito de um determinado processo de pensamento, de produzir aquele substantivo qu, o qual deixa de ser entendido como algo que informa a razo como sucedia em LOCKE , para passar a ser entendido como um produto da razo. Resta saber se estamos efectivamente perante um projecto emancipador ou antes perante uma tarefa com carcter quixotesco e impossvel, como pretendido por MACINTYRE116. Sendo que o sucesso ou falncia do projecto kantiano, como de todo o projecto iluminista, joga-se em o mesmo ter ou no ter sido capaz de justificar os seus prprios ditames independentemente de um enquadramento teolgico, o que

Este aspecto surge sublinhado, embora a outra luz, em RAWLS que inclusivamente afirma que Kant procurou dar uma fundao filosfica vontade geral de Rousseau, cfr. A Theory of Justice, 2. ed., Harvard University Press, Cambridge-Massachusetts, 1999, em particular, p. 233. 113 Cfr. TAYLOR, Sources..., p. 364. Em KANT, e ao nvel especfico do pensamento moral, ocorre a declarao de independncia da razo relativamente a quaisquer condicionamentos comunitrios ou religiosos que DESCARTES reclamara. Ou a razo impessoal, univ