2
CRESCER ABRIL/2010 A sensação de que hoje mais crianças são medica- das com algum distúrbio, como déficit de aten- ção e hiperatividade (TDAH) e transtorno bipo- lar, é tão forte que esse sentimento levou a jornalista norte-americana Judith Warner a aceitar um convite pa- ra escrever um livro sobre a supermedicação em crian- ças. “Eu era defensora dessa opinião”, diz em entrevista exclusiva à CRESCER. Ela começou as pes- quisas seis anos atrás, logo depois de vender milhares de exemplares de Mães que Trabalham – A Loucura Perfeita (Ed. Campos). No iní- cio, esperava encontrar pais que medicavam seus filhos para conseguir controlá-los e psiquiatras que diagnosti- cavam transtornos infantis sem critério. Mas não foi isso que viu. Em We’ve Got Issues – Children and Parents in the Age of Medication (Nós Temos Problemas Por Thais Lazzeri CRIANçAS NA ERA DA MEDICAçãO A jornalista norte-americana Judith Warner, autora do best-seller Mães que Trabalham – A Loucura Perfeita, acaba de lançar um livro ainda mais polêmico: estamos diagnosticando demais crianças com distúrbios de comportamento e dando remédios sem necessidade? PRESSãO SOBRE A FAMíLIA Os pais que optam por dar remédios para os filhos, ainda que tenham sofrido muito para tomar a decisão, são julgados como preguiçosos, insensíveis e irresponsáveis pela opinião pública. – Crianças e Pais na Era da Medicação, sem previsão de chegar ao Brasil), ela mostra a vida de pais desespe- rados para tratar os filhos e resistentes a dar remédios, médicos que se aprofundavam nessas doenças para então fazer um diagnóstico (que poderia levar meses para acontecer) e crianças que não são tratadas, so- frem preconceito e não têm a infância que merecem. Confira aqui a íntegra da entrevista: CRESCER: Muitas pesquisas e reportagens dizem que a ansiedade dos pais poderia causar distúrbios do comportamento em crianças. É errado dizer isso? Judith Warner: Sem dúvida, é verdade que a ansiedade pode provocar problemas nas crianças. Mas dizer que a sociedade e os pais podem causar algum transtorno é ir longe demais (exceto em casos de abuso ou negligência). Os cientistas pensam assim: a biolo- gia carrega a arma, e o meio ambiente aperta o gatilho. Outros dizem que as crianças nascem com predisposi- ção e aí o que acontece ou não faz com que expressem esses distúrbios em diferentes graus. 64

criancaemedicacao

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: criancaemedicacao

c r e s c e r A B r I L / 2 0 1 0

Asensação de que hoje mais crianças são medica-das com algum distúrbio, como déficit de aten-ção e hiperatividade (TDAH) e transtorno bipo-

lar, é tão forte que esse sentimento levou a jornalistanorte-americana Judith Warner a aceitar um convite pa-ra escrever um livro sobre a supermedicação em crian-ças. “Eu era defensora dessa opinião”, diz em entrevista

exclusiva à CRESCER. Ela começou as pes-quisas seis anos atrás, logo depois de

vender milhares de exemplares deMães que Trabalham – A Loucura

Perfeita (Ed. Campos). No iní-cio, esperava encontrar paisque medicavam seus filhospara conseguir controlá-lose psiquiatras que diagnosti-cavam transtornos infantis

sem critério. Mas não foi issoque viu. Em We’ve Got Issues –

Children and Parents in the Age ofMedication (Nós Temos Problemas

Por Thais Lazzeri

crIAnçAsnA era damedicação

A jornalista norte-americana Judith Warner, autora dobest-seller Mães que Trabalham – A Loucura Perfeita,acaba de lançar um livro ainda mais polêmico: estamosdiagnosticando demais crianças com distúrbios decomportamento e dando remédios sem necessidade?

PressãosoBre A fAmíLIA

Os pais que optam por darremédios para os filhos, ainda

que tenham sofrido muitopara tomar a decisão, são

julgados como preguiçosos,insensíveis e irresponsáveis

pela opinião pública.

– Crianças e Pais na Era da Medicação, sem previsãode chegar ao Brasil), ela mostra a vida de pais desespe-rados para tratar os filhos e resistentes a dar remédios,médicos que se aprofundavam nessas doenças paraentão fazer um diagnóstico (que poderia levar mesespara acontecer) e crianças que não são tratadas, so-frem preconceito e não têm a infância que merecem.Confira aqui a íntegra da entrevista:

CRESCER: muitas pesquisas e reportagens dizem

que a ansiedade dos pais poderia causar distúrbios do

comportamento em crianças. É errado dizer isso?

Judith Warner: Sem dúvida, é verdade que aansiedade pode provocar problemas nas crianças. Masdizer que a sociedade e os pais podem causar algumtranstorno é ir longe demais (exceto em casos de abusoou negligência). Os cientistas pensam assim: a biolo-gia carrega a arma, e o meio ambiente aperta o gatilho.Outros dizem que as crianças nascem com predisposi-ção e aí o que acontece ou não faz com que expressemesses distúrbios em diferentes graus.

64

CF197_64A65.indd 64 23/3/2010 21:36:08

Page 2: criancaemedicacao

6 5

em Nós TemosProblemas, aautora Judith

Warner fala dasdificuldades queos pais de filhos

com distúrbios docomportamentoenfrentam todos

os dias

mAIsvIsIBILIdAde

Os diagnósticos nãoaumentaram. Antes eles nãoexistiam. Agora, as crianças,que antes só viviam reclusasem casa ou internadas, estão

tomando remédios, e nósconvivemos com elas.

C: Quantas crianças têm mesmo algum distúrbio do com-

portamento? fala-se em epidemia...

J.W.: O governo norte-americano estima que en-tre 5% e 20% das crianças têm algum, sendo que 5%são severos (sem uma vida normal) e 20% têm algumproblema, como dificuldade de aprendizado. Isso seriaconsiderado uma epidemia se tivesse um surto inespe-rado dessas desordens – e eu não acredito nisso. Doisterços dos adultos com doenças de saúde mental dizemque começaram a ter os sintomas na infância. Uma ge-ração atrás esses sintomas não eram reconhecidos ounomeados como hoje, mas não significa que não exis-tiam. O número de crianças diagnosticadas certamen-te aumentou, em parte porque muitas desordens fo-ram redefinidas, como autismo, TDAH etc. Até 1970não se acreditava que as crianças poderiam ter depres-são. Quando esse pensamento mudou, a quantidade dedagnósticos explodiu.

C: sabe-se mais sobre esses problemas, mas também au-

mentou o descrédito sobre a existência deles. Por quê?

J.W.: Isso sempre existiu. O que contribuiu para essabanalização foram as indústrias farmacêuticas, cujaspropagandas mostram os altos e baixos desses distúr-bios de um jeito “menor” e sem tanta preocupação, co-mo se fosse um problema de todas as pessoas. Isso dá aimpressão – retransmitida por alguns jornalistas e crí-ticos de psiquiatria – que pessoas normais estão sendodiagnosticadas e depois “drogadas” por problemas cor-riqueiros. Isso fez com que muitos pais se recusassema tratar as crianças com problemas reais e a destratarqualquer pessoa que dissesse que elas têm problemas.Muitas crianças que têm distúrbios comportamentaisnão conseguem nenhum tipo de ajuda, e a resistênciados pais é uma parte grande do porquê. Por isso é im-portante mostrar que não existe supermedicação.

C: Há quem decida não medicar. Qual é o impacto?

J.W.: O custo pode ser a morte. No caso do autismo,sabemos que as intervenções precoces podem mudartotalmente o curso de vida de uma criança. Estudostêm mostrado que crianças com TDAH não tratadaspodem ter depressão, ansiedade, evasão escolar etc.

C: Quando os pais podem ter certeza que os remédios

são necessários? comos escolher um bom médico?

J.W.: Todo esse processo custa caro e leva muito tem-po. É preciso pagar por uma avaliação completa com

um psiquiatra, um teste psicoedu-cacional feito por um psicólogoespecializado, que investigaos fatores que poderiamcontribuir para o proble-ma. O pediatra tem dechecar os problemas vi-suais ou auditivos. Vo-cê não quer usar medi-camentos para tratar deuma deficiência de apren-dizagem que primeiramentedeve ser abordado por um espe-cialista, de um problema de audi-ção, ou da infelicidade causada por con-dições de vida difíceis. Pelo menos, você gostaria detentar outras intervenções antes. As crianças têm deser vistas de forma holística e suas histórias têm deser ouvidas. Infelizmente, leva tempo e muito dinhei-ro, e seguros e planos de saúde, em geral, não chegamperto de cobrir esse tipo de tratamento. É onde nósprecisamos desesperadamente ver uma mudança.

C: faltam iniciativas públicas específicas?

J.W.: Precisamos de pressão sobre as companhiasde seguros, para que cubram totalmente problemasrelacionados aos distúrbios, de incentivos para queestudantes de medicina se tornem psiquiatras infan-tis, e de mais psiquiatras nos planos de saúde. Aquinos Estados Unidos significa que os pais pagam ta-xas como US$ 375 (R$ 670) do próprio bolso parauma visita a um psiquiatra. Os tipos de avaliaçõesque eu falei agora há pouco custam cerca de US$1.000 (R$ 1.799). E tudo deveria ser reembolsado –ou, melhor ainda, pago – pelo seguro.

C: você diz também que os pais das crianças diagnos-

ticadas precisam de compaixão. o que podemos fazer?

J.W.: Podemos tentar deixar de lado os estereóti-pos que nos levam a estigmatizar os pais de crian-ças com distúrbios. Podemos parar de repetir os cli-chês que sustentam que crianças sem problemas sãodiagnosticadas e medicadas, e que os pais, inúteis,estão “drogando” seus filhos para controlar o com-portamento deles ou dar uma vantagem competitivana escola. Podemos reconhecer que os problemas desaúde mental das crianças são reais, e muitas vezes,terrivelmente sérios. E que não são novidade!

foT

os:

1d

IvU

LGA

çã

o;2

JeA

n-L

oU

IsA

TLA

n

1

2

CF197_64A65.indd 65 23/3/2010 21:36:10