30
Crimes contra a ordem tributária. Súmula Vinculante n° 24: a função penal do processo administrativo tributário Sumário: Introdução 1; 1. Criminalização da burla tributária no Brasil 1; 2. A tutela penal da ordem tributária de 1988 9; 2.1. (Re)conhecimento do bem jurídico 10; 2.2. (I)novação nos critérios de legitimação 13; 3. A tipicidade especial dos crimes tributários 20; 3.1. A estrutura dos tipos penal-tributários 20; 3.2. Consumação de crime contra a ordem tributária: a função penal do processo administrativo tributário 24; Conclusão 28. Introdução Estuda-se a fundamental e intricada relação entre os direitos tributário e penal nos crimes contra a ordem tributária especialmente nos tipos positivados no Art. 1° da Lei n° 8.137/1990. Nesse campo, categorias da dogmática penal são analisadas, a fim de estabelecer- se um enquadramento do processo administrativo tributário entre elas, especialmente, em decorrência da edição da Súmula Vinculante n° 24 1 : Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1°, incisos I a IV, da Lei n° 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo. 1. Criminalização da burla tributária no Brasil Deixar de recolher o crédito tributário devido caracteriza uma simples infração administrativo-tributária, mas a operacionalização de fraude, ardil, omissão voltada ao prejuízo da Fazenda Pública implica ilicitude criminal: “[...] nos delitos de fundo tributário [...] a fraude-dolo é requisito básico. O não pagamento total ou parcial de tributo não configura delito, porque o delito, necessariamente, se exterioriza em atos ou omissões de falsificação, emissão de documentação inexata ou mentirosa, ou no prévio desconto ou cobrança de tributo devido por terceiros (tudo como condutas necessárias, que objetivem lesar a Fazenda Pública).” 2 A sonegação é gênero que comporta inúmeras condutas ilícitas. E a materialização de tais infrações é norteada por conceitos positivados pela Lei n° 4.502, de 30 de novembro de 1964 3 : Art. 71. Sonegação é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária: I - da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais; II - das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente. Art. 72. Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir 1 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Fonte de Publicação DJe nº 232, p. 1, em 11/12/2009. DOU de 11/12/2009, p. 1. 2 DERZI, Misabel Abreu Machado. Da unidade do injusto no direito penal tributário. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, n. 63, [?], p. 224. 3 Essa lei dispõe sobre o antigo imposto de consumo e trata da sonegação e da fraude como circunstâncias qualificadoras de ilícitos administrativo-tributários, sem criminalizá-las. Cf. ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária e contra a previdência social . São Paulo: Atlas, 2009, p. 40.

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Crimes contra a ordem tributária. Súmula Vinculante n° 24: a função penal

do processo administrativo tributário

Sumário: Introdução 1; 1. Criminalização da burla tributária no Brasil 1; 2. A tutela

penal da ordem tributária de 1988 9; 2.1. (Re)conhecimento do bem jurídico 10; 2.2.

(I)novação nos critérios de legitimação 13; 3. A tipicidade especial dos crimes tributários

20; 3.1. A estrutura dos tipos penal-tributários 20; 3.2. Consumação de crime contra a

ordem tributária: a função penal do processo administrativo tributário 24; Conclusão 28.

Introdução

Estuda-se a fundamental e intricada relação entre os direitos tributário e penal nos

crimes contra a ordem tributária – especialmente nos tipos positivados no Art. 1° da Lei n°

8.137/1990. Nesse campo, categorias da dogmática penal são analisadas, a fim de estabelecer-

se um enquadramento do processo administrativo tributário entre elas, especialmente, em

decorrência da edição da Súmula Vinculante n° 241: Não se tipifica crime material contra a

ordem tributária, previsto no art. 1°, incisos I a IV, da Lei n° 8.137/90, antes do lançamento

definitivo do tributo.

1. Criminalização da burla tributária no Brasil

Deixar de recolher o crédito tributário devido caracteriza uma simples infração

administrativo-tributária, mas a operacionalização de fraude, ardil, omissão voltada ao

prejuízo da Fazenda Pública implica ilicitude criminal:

“[...] nos delitos de fundo tributário [...] a fraude-dolo é requisito básico. O não

pagamento total ou parcial de tributo não configura delito, porque o delito,

necessariamente, se exterioriza em atos ou omissões de falsificação, emissão de

documentação inexata ou mentirosa, ou no prévio desconto ou cobrança de tributo

devido por terceiros (tudo como condutas necessárias, que objetivem lesar a Fazenda

Pública).”2

A sonegação é gênero que comporta inúmeras condutas ilícitas. E a

materialização de tais infrações é norteada por conceitos positivados pela Lei n° 4.502, de 30

de novembro de 19643:

Art. 71. Sonegação é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total

ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária:

I - da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou

circunstâncias materiais;

II - das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária

principal ou o crédito tributário correspondente.

Art. 72. Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou

parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir

1 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Fonte de Publicação DJe nº 232, p. 1, em

11/12/2009. DOU de 11/12/2009, p. 1. 2 DERZI, Misabel Abreu Machado. Da unidade do injusto no direito penal tributário. Revista de Direito Tributário.

São Paulo: Malheiros, n. 63, [?], p. 224. 3 Essa lei dispõe sobre o antigo imposto de consumo e trata da sonegação e da fraude como circunstâncias

qualificadoras de ilícitos administrativo-tributários, sem criminalizá-las. Cf. ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira.

Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária e contra a previdência social. São Paulo: Atlas, 2009, p. 40.

2

ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto

devido a evitar ou diferir o seu pagamento.

Art. 73. Conluio é o ajuste doloso entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas,

visando qualquer dos efeitos referidos nos arts. 71 e 72.

A sonegação é caracterizada legalmente pela finalidade de impossibilitar à

autoridade fazendária o conhecimento dos fatos e circunstâncias relacionados à obrigação

tributária. A fraude é definida nessa mencionada lei por seu conteúdo, designando uma

interferência direta (e ilícita) sobre elementos circunstanciais relacionados com o fato gerador

da obrigação tributária, buscando suprimir ou reduzir o montante a ser recolhido. A fraude4 se

distingue no contexto criminal-tributário por ser um dos meios mais utilizados para

operacionalizar a sonegação, já que o impedimento ao conhecimento pode se materializar

também por outros ilícitos – especialmente por omissão que configure descumprimento de

deveres acessórios de prestação de informações:

“[...] se o contribuinte declara todos os fatos geradores à repartição fazendária, de acordo

com a periodicidade exigida em lei, cumpre todas as obrigações tributárias acessórias e

tem escrita contábil regular, mas não paga o tributo, não está cometendo nenhum crime,

mas mero inadimplemento.”5

Portanto, a sonegação é a conduta que faz uso de fraudes, falsidades, omissões de

informações etc. com o objetivo de lesar o fisco. Já na infração administrativa de

inadimplemento, o Particular registra a operação tributável nos livros e documentos contábeis

e, com isso, possibilita o conhecimento pela autoridade durante a fiscalização6.

É cediço que todos os crimes tributários contêm ilícitos administrativo-tributários,

mas apenas uma parte das infrações administrativas é vertida em ilícitos penal-tributários7: o

princípio da fragmentariedade atua para legitimar a criminalização apenas das formas mais

graves de lesão ao bem jurídico tutelado8. Assim, condutas inseridas neste núcleo conceitual

adotado para a sonegação resultam, todas elas, em ilícitos administrativos pela infração do

dever de não impedir (quiçá, até colaborar9 para) o conhecimento dos fatos tributáveis pela

4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. (V. I: Introdução

ao direito civil; Teoria geral de direito civil), p. 371: “Fraude é [...] a manobra engendrada com o fito de prejudicar

terceiros; e tanto se insere no ato unilateral [...] como se imiscui no ato bilateral [...]. Na fraude, o que estará presente é

o propósito de levar aos credores um prejuízo, em benefício próprio ou alheio, furtando-lhes a garantia geral que

devem encontrar no patrimônio do devedor. Seus requisitos são a má-fé, ou malícia do devedor, e a intenção de impor

um prejuízo a terceiro. Mais modernamente, e digamos, com maior acuidade científica, não se exige que o devedor

traga a intenção deliberada de causar prejuízo (animus nocendi); basta que tenha a consciência de produzir o dano.” 5 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 417.

6 Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. Da unidade ..., p. 223.

7 Cf. BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes ..., p. 418; DERZI, Misabel Abreu Machado. Da unidade ..., p. 219-

220; EISELE, Andreas. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Dialética, 2002, p. 44-47;

MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 28 et seq. 8 Cf. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da Cunha. «Constituição e crime» - uma perspectiva da criminalização e

da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 142. 9 Cf. ZOCKUN, Maurício. Regime jurídico da obrigação tributária acessória. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 118-

119: “O art. 113, § 2°, do CTN [...] faz surgir no mundo fenomênico [...] uma relação jurídica que tem por objeto o

adimplemento, pelo sujeito passivo, de uma conduta (de fazer ou de não fazer) que possibilite à administração

tributária tomar o conhecimento da ocorrência de um fato jurídico tributário ou outro que seja "no interesse da

3

Administração Fazendária – estabelecido para o Particular a par de sua capacidade

contributiva10

e respeitando o „estatuto do contribuinte‟11

.

A partir dessa conceituação genérica positivada através da Lei n° 4.502/1964, a

sonegação fiscal recebeu uma primeira tipificação criminal na Lei n° 4.729, de 14 de julho de

1965, Art. 1°12

– o qual especificou condutas fraudulentas e de falsificação de informes

tributários com vistas a eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributos (incisos I a

IV). Posteriormente, a Lei n° 5.569, de 25 de novembro de 1969, incluiu o inciso V para

incriminar desvios de incentivo fiscal recebido pelo próprio agente ou por outrem.

As condutas-meios de operacionalização do crime de sonegação fiscal eram,

então, subsumidas ao tipo da falsidade ideológica do Código Penal13

, pois a jurisprudência da

época rechaçava, veementemente, a tipificação da sonegação e fraude alegando ausência de

arrecadação ou da fiscalização dos tributos". Desse modo, essa obrigação tributária pretende que o sujeito passivo leve

(consistente num fazer) ao conhecimento da pessoa competente (que figura no pólo ativo dessa relação jurídica)

informações que lhe permitam apurar o surgimento de relações jurídicas de direito tributário material, de tal forma a

instrumentalizar a atividade de arrecadação e de fiscalização de tributos, mas não apenas isso. Pode essa norma

jurídica obrigar que o sujeito passivo suporte (conduta humana de não fazer algo) a atividade de fiscalização efetuada

pela pessoa competente, a teor do disposto no art. 196 do CTN, oportunidade na qual terceiros poderão ser intimados a

prestar esclarecimentos sobre a pessoa fiscalizada de modo a permitir que o ente competente apure o eventual

nascimento de obrigação tributária material (art. 197 do CTN).” 10

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 5 de outubro de 1988, Art. 145. ... omissis § 1º -

Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do

contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar,

respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do

contribuinte. 11

Cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 11. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

Malheiros, 1998, p. 279: “O que vem a ser estatuto do contribuinte di-lo, à maravilha, o publicista Paulo de Barros

Carvalho: "Define-se o estatuto do contribuinte, ao pé de nossa realidade jurídico-positiva, como a somatória,

harmônica e organizada, dos mandamentos constitucionais sobre matéria tributária, que, positiva ou negativamente,

estipulam direitos, obrigações e deveres do sujeito passivo, diante das pretensões do Estado (aqui utilizado na sua

acepção mais ampla e abrangente – entidade tributante). E quaisquer desses direitos, deveres e obrigações, porventura

encontrados em outros níveis da escala jurídico-normativa, terão de achar respaldo de validade naqueles imperativos

supremos, sob pena de flagrante injuridicidade". O estatuto do contribuinte, como vimos, impõe limitações aos

Poderes Públicos, inibindo-os de desrespeitarem os direitos subjetivos das pessoas que devem pagar tributos.

Inexistisse, e o legislador poderia, por meio de uma tributação atrabiliária, até espoliar as pessoas. A Fazenda Pública,

à míngua deste estatuto, não poderia ser impedida de fazer o mesmo.” (grifo do Autor) 12

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei n° 4.729, de 14 de julho de 1965, Art. 1º Constitui crime de

sonegação fiscal: I - prestar declaração falsa ou omitir, total ou parcialmente, informação que deva ser produzida a

agentes das pessoas jurídicas de direito público interno, com a intenção de eximir-se, total ou parcialmente, do

pagamento de tributos, taxas e quaisquer adicionais devidos por lei; II - inserir elementos inexatos ou omitir,

rendimentos ou operações de qualquer natureza em documentos ou livros exigidos pelas leis fiscais, com a intenção de

exonerar-se do pagamento de tributos devidos à Fazenda Pública; III - alterar faturas e quaisquer documentos relativos

a operações mercantis com o propósito de fraudar a Fazenda Pública; IV - fornecer ou emitir documentos graciosos ou

alterar despesas, majorando-as, com o objetivo de obter dedução de tributos devidos à Fazenda Pública, sem prejuízo

das sanções administrativas cabíveis. V - Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário da paga,

qualquer percentagem sôbre a parcela dedutível ou deduzida do impôsto sôbre a renda como incentivo fiscal. (Incluído

pela Lei nº 5.569, de 1969) Pena: Detenção, de seis meses a dois anos, e multa de duas a cinco vêzes o valor do tributo. 13

Idem. Código Penal. Decreto-Lei n° 2.848, de 07 de dezembro de 1940, Falsidade ideológica Art. 299 - Omitir, em

documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou

diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato

juridicamente relevante: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a

três anos, e multa, se o documento é particular. ... omissis

4

um correspondente tipo penal especializante14

. Com a Lei n° 4.729/1965, a especialidade das

condutas instrumentais da sonegação, excludente da aplicação da tipificação geral do Código

Penal, decorre da tipicidade subjetiva (“elemento subjetivo do injusto”15

) indicada pelo exato

propósito de causar prejuízo à Fazenda Pública.

O legislador de 1965 antecipara a tutela penal, pois caracterizara a sonegação

fiscal como crime formal16

, sem exigência da efetiva supressão/redução do quantum tributário

devido, presente a tipicidade com a simples “ação do agente e a vontade de concretizá-lo,

configuradoras do dano potencial”17

. Tratava-se, assim, de crimes de perigo18

(abstrato), já

que a consumação se dava pela mera utilização dos meios fraudulentos, independentemente

de investigar-se ocorrência de prejuízo ao erário.

A Constituição de 1988 inaugurou um Estado de Direito Democrático e Social

cuja operacionalização demanda expressivas reformulações das teorias jurídicas referentes aos

bens jurídicos de caráter coletivo (supraindividual), também para afastar-se dos modelos

construídos sob o paradigma do Estado Liberal. Nesse contexto, a partir da década de 1990,

observam-se verdadeiras revoluções científico-jurídicas com o advento das legislações para

tutela (inclusive penal) do consumidor, à criança e ao adolescente, ao meio ambiente, à ordem

econômica, à ordem social e as correspondentes reformas da ação civil pública (daí em diante

aclamada como principal instrumento processual para proteção de interesses difusos e

coletivos). Neste mesmo momento, os crimes contra o erário também passam por

reformulações teórico-legislativas, aparecendo a Lei n° 8.137, de 27 de dezembro de 1990,

para inovar os crimes contra a ordem tributária (Arts. 1° a 3°)19

, os crimes contra a ordem

14

Cf. ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito ..., p. 40; EISELE, Andreas. Crimes ..., p. 27. 15

PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de sonegação fiscal apud ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito..., p. 42. 16

Cf. BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes ..., p. 415. 17

Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 12. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2008, (Vol. 1: parte

geral), p. 214. 18

Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado ..., p. 213; EISELE, Andreas. Crimes ..., p. 28. 19

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei n° 8.137, de 27 de dezembro de 1990. CAPÍTULO I Dos Crimes

Contra a Ordem Tributária Seção I Dos crimes praticados por particulares

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer

acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades

fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer

natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de

venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar

documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal

ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-

la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de

atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da

maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração

prevista no inciso V.

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos,

ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; II - deixar de recolher, no

prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de

obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte

5

econômica (Arts. 4°, 5°, 6°), os crimes contra as relações de consumo (Art. 7°).

A Lei n° 8.137/1990 adota a nomenclatura „crimes contra a ordem tributária‟ e

não faz menção à sonegação fiscal. Mas, entende-se que essa categoria continua integrada ao

ordenamento através da Lei n° 4.502/1964 (Arts. 71 a 73) e é utilizada pela dogmática para

indicar o ilícito tributário de maior gravidade – a evasão20

. A evolução do gênero, com essa

lei de 1990, resulta em um conjunto ampliado: à supressão/redução de tributos (“sonegação

fiscal” – Art. 1°), são acrescentados outros crimes do Particular (Art. 2°) e especializadas

algumas condutas típicas de funcionário público (Art. 3°) que encontram correspondentes

genéricos no Código Penal.

O Art. 1°, da Lei n° 8.137/1990, reformula a categoria sonegação fiscal, ao

(re)criar o crime de supressão ou redução de tributo, contribuição social ou acessório. É tipo

de conteúdo variado, referente a fraudes prejudiciais ao erário e/ou omissões de deveres

estabelecidos pela legislação tributária, descrevendo as condutas-meio21

nos incisos do caput.

Trata-se, agora, de crime material sancionado com pena privativa de liberdade mais gravosa

(diante da tipificação anterior) e multa. Por isso, somente a efetiva supressão ou redução de

crédito tributário, decorrente da obrigação principal ou de dever acessório, autoriza a

punibilidade de omissões ou fraudes subsumidas às fórmulas dos incisos I a V, do Art. 1°. O

prejuízo fazendário no objetivo da conduta ilícita é o critério para a especialização, que

afasta a tipicidade genérica de: estelionato22

(relacionado ao caput do Art. 1°); de falsidade

beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como

incentivo fiscal; IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de

imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; V - utilizar ou divulgar programa de processamento de

dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei,

fornecida à Fazenda Pública. Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Seção II Dos crimes praticados por funcionários públicos

Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de

dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI, Capítulo I): I - extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer

documento, de que tenha a guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente, acarretando

pagamento indevido ou inexato de tributo ou contribuição social; II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para

outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela,

vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição

social, ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. III - patrocinar, direta ou

indiretamente, interesse privado perante a administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público.

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. 20

Neste trabalho, a evasão tributária é categoria entendida a partir de CALIENDO, Paulo. Direito tributário e análise

econômica do direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 241-242: “Na evasão ocorre o

descumprimento direto da norma impositiva constituindo crime tributário. Havendo a incidência da norma tributária é

necessário o seu cumprimento. Trata-se de uma organização ilícita dos negócios privados. Na elusão, a organização

dos negócios privados ocorre mediante utilização de estruturas negociais válidas que impeçam o surgimento da norma

jurídica.” 21

Cf. EISELE, Andreas. Crimes ..., p. 28. 22

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Penal ..., Estelionato Art. 171 - Obter, para si ou para outrem,

vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer

outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.

6

ideológica (tipo do inciso I); falsidade material de papéis públicos23

ou de documento

público24

ou particular25

(tipos especiais dos incisos II, III e IV); uso de documento falso26

(tipo do inciso IV); duplicata simulada27

(tipo do inciso V). Ademais, o legislador de 1990,

através do parágrafo único do Art. 1°, especializa o crime de desobediência (genericamente

previsto no Art. 330, do Código Penal28

).

O Art. 2° amplia o rol das condutas caracterizadoras de crime contra a ordem

tributária, mas imputa pena privativa de liberdade mais branda diante daquela prevista para os

tipos do Art. 1°, à medida que especifica tipos que não exigem a efetivação do dano ao

erário29

, assim configurando crimes formais. O crime do inciso I, do Art. 2°, é tipo subsidiário

das fraudes e omissões previstas no Art. 1° “porque descreve de forma autônoma uma

conduta que pode caracterizar fase de execução deste fato típico (o que configura sua forma

tentada)”30

. Ou seja: quando a fraude não gerar redução ou supressão de crédito tributário

deve ser tipificado o crime formal do Art. 2°, I. O crime do inciso II, do Art. 2°, retrata

apropriação ou desvio de tributo por agente de retenção, afastando a tipicidade genérica da

apropriação indébita31

. Mas, se o tributo não recolhido é contribuição social, a aplicação desta

lei especial é excluída pela materialização de apropriação indébita previdenciária32

. Os incisos

23

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Penal ..., Falsificação de papéis públicos Art. 293 - Falsificar,

fabricando-os ou alterando-os: I – selo postal, estampilha, papel selado ou qualquer papel de emissão legal, destinado à

arrecadação de imposto ou taxa; I – selo destinado a controle tributário, papel selado ou qualquer papel de emissão

legal destinado à arrecadação de tributo; (Redação dada pela Lei nº 11.035, de 2004) ... omissis V - talão, recibo, guia,

alvará ou qualquer outro documento relativo a arrecadação de rendas públicas ou a depósito ou caução por que o poder

público seja responsável; ... omissis Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa. ... omissis 24

Ibidem. Falsificação de documento público Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar

documento público verdadeiro: Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa. ... omissis § 2º - Para os efeitos penais,

equiparam-se a documento público o emanado de entidade paraestatal, o título ao portador ou transmissível por

endosso, as ações de sociedade comercial, os livros mercantis e o testamento particular. ... omissis 25

Ibidem. Falsificação de documento particular Art. 298 - Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou

alterar documento particular verdadeiro: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa. 26

Ibidem. Uso de documento falso Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se

referem os arts. 297 a 302: Pena - a cominada à falsificação ou à alteração. 27

Ibidem. Duplicata simulada Art. 172 - Emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria

vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado. Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorrerá aquêle que falsificar ou adulterar a escrituração do Livro de Registro de

Duplicatas. 28

Ibidem. Desobediência Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinze dias

a seis meses, e multa. 29

Cf. COSTA JÚNIOR, Paulo José; DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais. 4. ed. rev. São Paulo:

Saraiva, 2000, p. 133. 30

EISELE, Andreas. Crimes ..., p. 169. 31

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Penal. ..., Apropriação indébita Art. 168 - Apropriar-se de coisa

alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. Aumento de pena § 1º -

A pena é aumentada de um terço, quando o agente recebeu a coisa: I - em depósito necessário; II - na qualidade de

tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial; III - em razão de ofício,

emprego ou profissão. 32

Ibidem. Apropriação indébita previdenciária Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições

recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e

multa. § 1° Nas mesmas penas incorre quem deixar de: I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância

destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada

7

III e IV criminalizam o desvio de incentivos fiscais. O inciso V tipifica uma modalidade de

falsidade ideológica instrumentalizada por sistema de informática.

O Art. 3° positiva crimes funcionais33

contra a ordem tributária, mediante tipos

especiais que afastam o enquadramento genérico no Código Penal. Assim, o resultar

„pagamento indevido ou inexato de tributo‟ é a especializante do inciso I, do Art. 3°, que

afasta o tipo geral de „extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento‟34

. O fim de

sonegar tributos também especializa as condutas previstas no inciso II, do Art. 3°, excluindo a

tipicidade genérica de concussão35

ou corrupção passiva36

. Já o inciso III especializa a

advocacia administrativa37

que seja praticada perante a administração fazendária,

referenciando a matéria tributária.

A doutrina tributarista discute a amplitude do gênero tributo, disso surgindo a

polêmica acerca da caracterização e da quantidade38

das espécies tributárias, especialmente

quanto à identificação das contribuições (sociais, interventivas, econômicas) como categoria

peculiar em relação aos impostos. Essa imprecisão espraia-se para o âmbito penal, de modo

do público; II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos

relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços; III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas

cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social. 33

Trata-se de delito cujo agente detém a qualidade de funcionário público: cf. Ibidem. Art. 327 - Considera-se

funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo,

emprego ou função pública. § 1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em

entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de

atividade típica da Administração Pública. § 2º A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes

previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão

da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. 34

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Penal. ..., Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou

documento Art. 314 - Extraviar livro oficial ou qualquer documento, de que tem a guarda em razão do cargo; sonegá-

lo ou inutilizá-lo, total ou parcialmente: Pena - reclusão, de um a quatro anos, se o fato não constitui crime mais grave. 35

Ibidem. Concussão Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou

antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa. 36

Ibidem. Corrupção passiva Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que

fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003) § 1º - A pena

é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar

qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional. § 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou

retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem: Pena - detenção, de

três meses a um ano, ou multa. 37

Ibidem. Advocacia administrativa Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a

administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário: Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

Parágrafo único - Se o interesse é ilegítimo: Pena - detenção, de três meses a um ano, além da multa. 38

Nesse ponto, a polêmica doutrinária é antiga. De um modo geral, as classificações iniciais estabeleceram como

critério a (não)vinculação de uma atuação estatal em favor do contribuinte. Assim, a corrente bipartida ensina que o

tributo tem duas espécies – impostos (tributos não vinculados) e taxas (vinculados); a tricotômica argumenta que as

espécies tributárias são impostos, taxas e contribuições de melhoria – o imposto seria a espécie não vinculada e as

taxas e a contribuição de melhoria seriam os tipos vinculados a uma atuação estatal. Nesse segmento, não havia espaço

para o empréstimo compulsório como espécie autônoma. Em geral, ou se lhe negava natureza tributária ou ele era

indicado como um imposto restituível. Posteriormente, surgem as divisões que levam em conta a finalidade da

exigência, a utilização da receita como elemento de definição do tipo tributário. Nesse plano, aparecem as distinções

entre as contribuições a partir do indicativo finalístico, sem que haja unanimidade sobre a inclusão da contribuição de

melhoria como espécie equiparada às contribuições sociais, de intervenção, corporativas. Cf. AMARO, Luciano.

Direito tributário brasileiro. 11. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 56-74.

8

que o legislador tipifica (na Lei n° 8.137/1990) condutas referentes a “tributo ou contribuição

social” sem abandonar a específica criminalização de condutas lesivas à arrecadação tributária

destinada ao financiamento da seguridade social39

40

. Portanto, a tutela penal da ordem

tributária brasileira adota um reforço para os tributos exigidos para financiamento da

previdência social41

, através da apropriação indébita previdenciária42

e da sonegação de

contribuição previdenciária43

.

39

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição (1988), Art. 194. A seguridade social compreende um

conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos

relativos à saúde, à previdência e à assistência social. 40

Por se tratar de categoria diretamente relacionada a um espécime de contribuição social, tributo que recebeu

delimitação própria na tipificação dos crimes contra a ordem tributária, importa aqui destacar a previdência social no

conjunto da seguridade social. Cf. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo:

Malheiros, 2006, p. 773:”1. REGIME JURÍDICO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. Inclui-se no conceito de prestações

positivas que incumbem ao Estado, a fim de realizar a justiça social. Estrutura-se em forma de seguro social

obrigatório em favor do trabalhador, para atender aos riscos de doença, velhice, invalidez, morte, desemprego. São

prestações, previstas no art. 201, que o Estado deve efetuar; [...] Mas, para que o Estado possa cumprir os encargos de

previdência social, diretamente ou por meio de organismos que institua - como é o caso do INSS -, é necessário que

consiga recursos para seu custeio, que envolve despesas com as atividades-fins e também com as atividades-meios;

despesas que demandam a captação de meios financeiros para sua satisfação - o que se dá pela a arrecadação de

contribuições e de outras receitas, conforme [...] art. 195.” 41

A Lei n° 8.212, de 24 de julho de 1991, dispõe sobre a organização da seguridade social, instituindo o respectivo

plano de custeio, e por isso, tratando das respectivas contribuições sociais. Esse instrumento normativo padecia de uma

inusitada atecnia legislativa, pois dispunha sobre a criminalização sem imputar pena à maioria das condutas

pretensamente “tipificadas” em seu Art. 95. Constitui crime: a) deixar de incluir na folha de pagamentos da empresa os

segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou autônomo que lhe prestem serviços; b) deixar de lançar

mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa o montante das quantias descontadas dos segurados e o

das contribuições da empresa; c) omitir total ou parcialmente receita ou lucro auferidos, remunerações pagas ou

creditadas e demais fatos geradores de contribuições, descumprindo as normas legais pertinentes; d) deixar de recolher,

na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do

público; e) deixar de recolher contribuições devidas à Seguridade Social que tenham integrado custos ou despesas

contábeis relativos a produtos ou serviços vendidos; f) deixar de pagar salário-família, salário-maternidade, auxílio-

natalidade ou outro benefício devido a segurado, quando as respectivas quotas e valores já tiverem sido reembolsados

à empresa; g) inserir ou fazer inserir em folha de pagamentos, pessoa que não possui a qualidade de segurado

obrigatório; h) inserir ou fazer inserir em Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado, ou em documento

que deva produzir efeito perante a Seguridade Social, declaração falsa ou diversa da que deveria ser feita; i) inserir ou

fazer inserir em documentos contábeis ou outros relacionados com as obrigações da empresa declaração falsa ou

diversa da que deveria constar, bem como omitir elementos exigidos pelas normas legais ou regulamentares

específicas; j) obter ou tentar obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo direto ou indireto da

Seguridade Social ou de suas entidades, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, contrafação,

imitação, alteração ardilosa, falsificação ou qualquer outro meio fraudulento. § 1º No caso dos crimes caracterizados

nas alíneas "d", "e" e "f" deste artigo, a pena será aquela estabelecida no art. 5º da Lei nº 7.492, de 16 de junho de

1986, aplicando-se à espécie as disposições constantes dos arts. 26, 27, 30, 31 e 33 do citado diploma legal. ... omissis

§ 3º Consideram-se pessoalmente responsáveis pelos crimes acima caracterizados o titular de firma individual, os

sócios solidários, gerentes, diretores ou administradores que participem ou tenham participado da gestão de empresa

beneficiada, assim como o segurado que tenha obtido vantagens. § 4º A Seguridade Social, através de seus órgãos

competentes, e de acordo com o regulamento, promoverá a apreensão de comprovantes de arrecadação e de pagamento

de benefícios, bem como de quaisquer documentos pertinentes, inclusive contábeis, mediante lavratura do competente

termo, com a finalidade de apurar administrativamente a ocorrência dos crimes previstos neste artigo. 42

A Lei nº 9.983, de 17 de julho de 2000, revogou o problemático Art. 95, da Lei n° 8.212/1991 e incluiu no Código

Penal o tipo da apropriação indébita previdenciária. 43

Tipo criado pela Lei nº 9.983/2000 e incluído no Código Penal: Sonegação de contribuição previdenciária Art. 337-

A. Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I –

omitir de folha de pagamento da empresa ou de documento de informações previsto pela legislação previdenciária

segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem

serviços; II – deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa as quantias descontadas

dos segurados ou as devidas pelo empregador ou pelo tomador de serviços; III – omitir, total ou parcialmente, receitas

ou lucros auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais

9

Tradicionalmente, o legislador equipara à apropriação indébita (crime contra o

patrimônio) a conduta do agente de retenção que omite o recolhimento ao erário do quantum

tributário exigido de outrem. Assim é no Brasil44

desde45

o Decreto-lei n° 65, de 14 de

dezembro de 193746

. Tal tipificação vem sendo corroborada através dos tempos: a Lei n°

3.807, de 26 de agosto de 196047

; a Lei n° 4.357, de 16 de julho de 196448

; a Lei nº 9.983, de

17 de julho de 2000, que incluiu a apropriação indébita previdenciária no Código Penal.

Ademais, a categoria „crimes contra a ordem tributária‟ inclui condutas

referenciadas a incentivos fiscais (benefícios ou estímulos fiscais)49

– Art. 2°, III, IV, da Lei

n° 8.137/1990 – assim indicando ampliação da tutela penal para além da estrita arrecadação

tributária. Por isso, interessa analisar-se o objeto tutelado através do regime jurídico-penal dos

„crimes contra a ordem tributária‟.

2. A tutela penal da ordem tributária de 1988

Um bem jurídico-penal50

é produto da intricada relação entre a dignidade jurídica

do objeto da proteção penal (interesses vitais, direitos subjetivos, valores ético-sociais) e a

ofensividade da conduta51

. Boa parte das discussões sobre os crimes contra ordem tributária

previdenciárias: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. 44

Também em Portugal. Cf. FERNANDES, Petra Monteiro. Breves considerações sobre o crime de abuso de

confiança em relação à segurança social e o seu paradigma na legislação brasileira – o crime de apropriação indébita

previdenciária. In COSTA, José de Faria; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.). Direito penal especial,

processo penal e direitos fundamentais – visão luso-brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 1127-1147. 45

Cf. EISELE, Andreas. Crimes ..., p. 26; ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito ..., p. 49-50. 46

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Decreto-lei n° 65, de 14 de dezembro de 1937, Art. 5º O empregador

que retiver as contribuições recolhidas de seus empregados e não as recolher na época própria incorrerá nas penas do

art. 331, nº 2, da Consolidação das Leis Penais, sem prejuízo das demais sanções estabelecidas neste decreto-lei. 47

Idem. Lei n° 3.807, de 26 de agosto de 1960, Art. 86. Será punida com as penas do crime de apropriação indébita a

falta de recolhimento, na época própria, das contribuições e de outras quaisquer importâncias devidas às instituições de

previdência e arrecadadas dos segurados ou do público. Parágrafo único. Para os fins dêste artigo, consideram-se

pessoalmente responsáveis o titular da firma individual, os sócios solidários, gerentes, diretores ou administradores das

emprêsas incluídas no regime desta lei. 48

Idem. Lei n° 4.357, de 16 de julho de 1964, Art. 11. Inclui-se entre os fatos constitutivos do crime de apropriação

indébita, definido no art. 168 do Código Penal, o não recolhimento, dentro de 90 (noventa) dias do término dos prazos

legais: a) das importâncias do Impôsto de Renda, seus adicionais e empréstimos compulsórios, descontados pelas

fontes pagadoras de rendimentos; ... omissis c) do valor do Impôsto do Sêlo recebido de terceiros pelos

estabelecimentos sujeitos ao regime de verba especial. ... omissis. 49

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso ..., p. 475: “Os incentivos fiscais estão no campo da extrafiscalidade [...] é o

emprego dos instrumentos tributários para fins não fiscais mas ordinatórios (isto, para condicionar comportamentos de

virtuais contribuintes e não propriamente, para abastecer de dinheiro os cofres públicos). Por meio de incentivos

fiscais, a pessoa política tributante estimula os contribuintes a fazerem algo que a ordem jurídica considera

conveniente, interessante ou oportuno (por ex., instalar indústrias em região carente do país). Este objetivo é alcançado

por intermédio da diminuição ou, até, da supressão da carga tributária.” 50

Cf. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos do direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 16: “bens

jurídicos são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua

proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas. O conceito de bem jurídico, assim

sintetizado, resultou de lenta elaboração doutrinária, empenhada na busca de um conteúdo material para o injusto

típico, do qual se pudesse deduzir orientação segura para a aplicação da lei penal.” (grifos do Autor) 51

Cf. BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.

27.

10

questiona a legitimidade da criminalização de condutas evasivas, as quais seriam (por alguns)

justificáveis como uma reação52

ao gravame à liberdade dos Particulares decorrente da

exigência estatal. De fato, as oposições à tributação têm forte conotação ética53

em sua base,

implicando inúmeras discussões jurídicas – especialmente nos ordenamentos que não

positivam expressamente o dever fundamental de contribuir54

. Nesse segmento, a positivação

de tutela penal para “ordem tributária” resulta em polêmica doutrinária na identificação

semântica (conceituação) deste bem jurídico55

, assim interessando delimitar os contornos

constitucionais referidos à matéria.

2.1. (Re)conhecimento do bem jurídico

Uma interpretação (meramente) topológica da Constituição de 1988 indica que o

ordenamento tributário estaria restrito ao Título VI, Capítulo I, Arts. 145 a 162, regendo o

sistema tributário nacional e a repartição das receitas tributárias. Essa especificação delimita a

ordem tributária no segmento maior das finanças públicas (Arts. 163 a 169), distinguindo-a

também do sistema econômico e financeiro (Arts. 170 a 192).

Contudo, a própria estruturação constitucional do sistema tributário extrapola o

círculo da „Tributação e do Orçamento‟: primeiro, ao prever as contribuições de intervenção

no domínio econômico (CIDEs)56

, intrinsecamente vinculadas à ordem econômica pela

52

SOUSA, Susana Aires de. Sobre o bem jurídico-penal protegido nas incriminações fiscais. In COSTA, José de Faria;

SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.). Direito ..., p. 487: “Está hoje mais longínquo o tempo em que a fuga aos

deveres fiscais era considerada ética e moralmente neutra e a fraude fiscal vista como uma espécie de legítima defesa

contra o Estado.” 53

Frente à obrigação tributária, o contribuinte é identificado como “um ser composto de uma «mescla de sentido da

justiça, inveja, irritação e vileza», podendo adotar várias atitudes que configuram tipos ideais de comportamentos

voltados alcançar um modo de desobrigar-se: o homo oeconomicus, o manhoso (“esperto”), o mal-humorado, o liberal,

o elusor legalista, o inexperiente (leigo), o “justo”. Cf. TIPKE, Klaus. Moral tributaria del estado y de los

contribuyentes (Besteuerungsmoral und Steuermoral). Traducción, presentación y notas a cargo de Pedro M. Herrera

Molina. Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 112-121, tradução nossa; TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito

constitucional, financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, (V. II: Valores e princípios constitucionais

tributários), p. 28-31. 54

Cf. NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional

do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Livraria Almedina, 1998; TORRES, Ricardo Lobo. Tratado ..., p. 181. 55

Cf. SALOMÃO, Heloisa Estellita. A tutela penal e as obrigações tributárias na constituição federal. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2001, p. 204-205: “Quanto ao bem jurídico tutelado, a doutrina nacional, a partir desse texto

legal, dividiu-se quanto a sua determinação: "ordem tributária", erário ou patrimônio público, receita tributária,

Administração Pública, pretensão do Estado ao recebimento integral de cada um dos tributos, direito que o Estado tem

de instituir e cobrar impostos e contribuições. Não faltaram, ainda, aqueles que identificaram diferentes "bens

jurídicos" no interior das hipóteses típicas previstas.” 56

Uma das mais conhecidas é a “CIDE-combustíveis” criada pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001 e regida pela

CR 88, Art. 177, § 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de

importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá

atender aos seguintes requisitos: I - a alíquota da contribuição poderá ser: a) diferenciada por produto ou uso; b)

reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b; II - os recursos

arrecadados serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e

seus derivados e derivados de petróleo; b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do

petróleo e do gás; c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes.

11

finalidade da tributação (intervenção estatal no domínio privado); segundo, ao introduzir

tributos no quadro da Ordem Social (Arts. 193 et seq) para tratar das contribuições sociais57

,

especialmente daquelas destinadas à seguridade social58

. Outrossim, o estatuto do contribuinte

e limitações ao poder de tributar são estipulados por dispositivos referentes, à primeira vista, a

matérias estranhas à ordem tributária. Por exemplo, antes de ser tópico do sistema tributário

nacional, a exigência de igualdade está positivada no Título I referenciando os direitos e

garantias fundamentais59

e a organização do Estado60

; a proteção da liberdade, além de direito

fundamental (Art. 5°, caput), é reforçada no Título VII, da ordem econômica e financeira, no

que se refere à ação econômica do Particular face à eventual intervenção estatal61

.

Outro elemento importante na delimitação do bem jurídico tutelado pelos crimes

tributários é a finalidade da tributação de financiar o funcionamento e as obrigações do Estado

Democrático e Social, estabelecidos como objetivos estruturais a partir de 198862

.

Disso se conclui que a ordem tributária sobressai da aplicação da Constituição em

sua integralidade e deve ser entendida como o conjunto sistemático das disposições regentes

dos tributos, incluindo o estatuto do contribuinte, as limitações ao poder de tributar, a

57

Distinguem-se as contribuições sociais genéricas (regime tributário comum do Art. 149, CR 88) das contribuições

para a seguridade social, com regulamentação específica nos Arts. 194 et seq da Constituição. Assim, são exigidas

como contribuições sociais genéricas: a) a contribuição social do salário-educação, prevista no Art. 212, § 5°; b) as

denominadas contribuições do „Sistema S‟ (Art. 240), destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação

profissional vinculadas ao sistema de representação de categorias econômicas: por exemplo, o SESI – Serviço Social

da Indústria e o SESC – Serviço Social do Comércio. 58

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição (1988), Art. 195. A seguridade social será financiada por

toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da

empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos

do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo

empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência

social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de

que trata o art. 201; III - sobre a receita de concursos de prognósticos. IV - do importador de bens ou serviços do

exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. ... omissis § 4º - A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a

manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I. ... omissis § 8º O produtor, o

parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas

atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social

mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos

termos da lei. ... omissis 59

Ibidem. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta

Constituição; ... omissis 60

Ibidem. Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ... omissis III - criar distinções

entre brasileiros ou preferências entre si. 61

Ibidem. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ...

omissis Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente

de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 62

Ibidem. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade

livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir

as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade

e quaisquer outras formas de discriminação.

12

repartição das receitas tributárias (o produto da arrecadação das várias espécies incluídas

no sistema tributário criado em 1988: impostos, taxas, (todos os tipos de) contribuições e

empréstimos compulsórios).

A partir desse apontado quadro principiológico-normativo, identifica-se o bem

jurídico tutelado através do direito penal, de acordo com o modelo funcionalista63

que

justifica a tipificação de crime na ofensa ao regular funcionamento do sistema tributário:

“[...] a violação dos deveres fiscais - reconhecidos pelas normas culturais vigentes -, por

parte do contribuinte, ameaça ou coloca em perigo o funcionamento do sistema fiscal. É

para minorar ou eliminar este perigo que intervêm as normas penais fiscais. O escopo

comum a todas as incriminações fiscais é [...] garantir o exacto funcionamento do

sistema fiscal enquanto um todo orgânico, o que constituiria, na sua óptica, o bem

jurídico genérico comum a todas as incriminações fiscais.”64

Essa apreensão da função da ordem tributária constitucionalizada se contrapõe a

argumentos reducionistas acerca do bem tutelado ser, apenas, a arrecadação tributária65

(modelo patrimonialista66

) ou o cumprimento de deveres de colaboração, de verdade, de

transparência, de obediência67

. Tais perspectivas não explicam a tipificação das condutas

desviantes de benefícios fiscais – incluídas na Lei n° 8.137/1990, Art. 2°, III, IV – mediante

as quais é tutelado, a rigor, o uso correto de incentivos fiscais-econômicos concedidos pelo

Poder Público. Sob a ótica do direito financeiro, os incentivos fiscais constituem (ou são

equiparados a) despesas públicas (saídas de caixa), mesmo quando instrumentalizados por

figuras jurídico-contábeis que implicam redução do quantum tributário gerado na

circunstância, pois aqui se configura uma renúncia de receita68

.

Nesse contexto, crimes contra a ordem tributária devem ser percebidos como

categoria que agrupa todas as infrações penais que afetam objetos jurídicos inseridos na

63

Cf. BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes ..., p. 418-419; MACHADO, Hugo de Brito. Crimes ..., p. 22-23;

SOUSA, Susana Aires de. Sobre ..., p. 495: “Um dos principais representantes desta proposta é Delogu. Em um estudo

de referência sobre o objecto de tutela das normas penais fiscais, o autor entende que o sistema fiscal é composto pelo

conjunto de tributos existentes num país, num determinado momento histórico; considera ainda que a fisionomia do

sistema fiscal é determinada por um conjunto de factores económicos, políticos e sociais. «Assim, não obstante o seu

aparente carácter fragmentário, o sistema fiscal é o bem ou o interesse que se sustenta nas normas vigentes nas

instituições num determinado momento histórico; e também porque no seu conjunto tem em vista um resultado único e

global: procurar o máximo de receitas para o estado com o mínimo de sacrifício para os contribuintes».” 64

SOUSA, Susana Aires de. Sobre ..., p. 495. 65

Cf. ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito ..., p. 75; EISELE, Andreas. Crimes ..., p. 48-49; SALOMÃO,

Heloisa Estellita. A tutela ..., p. 188. 66

Cf. SOUSA, Susana Aires de. Sobre ..., p. 497-500. 67

Ibidem, p. 500-505. 68

Cf. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei Complementar n° 101, de 4 de maio de 2000, Art. 14. A

concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá

estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e

nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias ... omissis § 1° A renúncia compreende

anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou

modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios

que correspondam a tratamento diferenciado.

13

regulação constitucional dos tributos. Daí concluir-se que crimes como o excesso de exação69

e a quebra do dever de sigilo funcional70

, por exemplo, são tipos juridicamente legitimados71

a

partir dessa ordenação constitucional, devendo ser incluídos neste campo conceitual e no

microssistema da criminalidade tributária (mesmo positivados mediante diplomas legais

distintos), por tipificarem condutas relacionadas mais propriamente ao estatuto do

contribuinte do quê à regularidade da atividade administrativa de arrecadação ou aplicação de

receitas tributárias.

Daí se entender que a tutela penal da ordem tributária não se restringe aos tipos

insertos na Lei n° 8.137/1990, sendo mais ampla – exatamente para corresponder à regulação

constitucional da matéria. Nos limites ora dados ao microssistema da criminalidade tributária,

a função da Lei n° 8.137/1990 é a especialização das fraudes (lato sensu, assim incluindo

falsidades e omissões) que visem à lesão do sistema tributário amplamente considerado em

seu funcionamento (entradas e saídas): trata-se de lei especial de tipificação de crimes de

Particulares e funcionais, em relação a condutas antes tipificadas genericamente no Código

Penal.

2.2. (I)novação nos critérios de legitimação

O ordenamento tributário tem um fundamento ético, especialmente quando

encravado na estrutura de um Estado Social: o tributo recebe papel fomentador de

comportamentos e uma eventual criminalização de condutas de oposição à tributação

69

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Penal ..., Art. 316 ... omissis Excesso de exação § 1º - Se o

funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na

cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza: (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990) Pena -

reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990) § 2º - Se o funcionário

desvia, em proveito próprio ou de outrem, o que recebeu indevidamente para recolher aos cofres públicos: Pena -

reclusão, de dois a doze anos, e multa. 70

Ibidem. Violação de sigilo funcional Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva

permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não

constitui crime mais grave. § 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) I –

permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de

pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº

9.983, de 2000) II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) § 2o Se da ação

ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000) Pena – reclusão,

de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000).

Idem. Lei Complementar n° 105, de 10 de janeiro de 2001, Art. 10. A quebra de sigilo, fora das hipóteses autorizadas

nesta Lei Complementar, constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa,

aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. ... omissis. 71

Cf. FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle das normas penais.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 38: “[...] quando cogitamos, genericamente, sobre limites à atuação

legislativa na seara penal, estamos nos referindo às condicionantes materiais que vertem da compreensão da

Constituição em toda sua amplitude funcional, fazendo-a tanto como limite (em sentido estrito) quanto fundamento

normativo da penalização. Significa dizer: em ambos os sentidos (penalização/despenalização) o legislador encontrará,

em determinada medida, vinculações normativas que lhe são externamente conformadoras.” (grifo do Autor)

14

caracteriza a indução (negativa)72

. Nesse contexto, a questão (de base liberal) acerca da

legitimidade73

da tributação amplia-se e transfigura-se em acentuada crítica sobre a

legitimidade da criminalização de ilícitos tributários: “qual o fundamento da imputação de

pena aos sonegadores?”

A justificação para o juízo de desvalor da conduta que objetiva burlar o dever

tributário deve ser feita em estreita relação com os princípios regentes da ordem tributária –

legalidade, capacidade contributiva, igualdade, solidariedade (nos moldes positivados no

ordenamento constitucional74

): se a lei (legalidade) impõe a obrigação (tipicidade) de

contribuir para o financiamento social (solidariedade) àqueles (igualdade) que detêm a

capacidade econômica para fazê-lo (capacidade contributiva), a utilização de fraudes para

fugir a esse dever é ilícito grave, assim legitimando a criminalização, já que tais condutas

infracionais visam atingir a própria organização social75

em seu arcabouço.

A criminalização responde à utilização de fraudes e omissões para evadir-se do

dever de contribuir à coletividade:

“[...] a punição de tais condutas fundamenta-se no dano que sofrem os contribuintes

honestos e não na desobediência frente ao Estado. Os contribuintes constituem uma

comunidade solidária. Cada cidadão somente pode submeter-se ao dever de pagar

tributos se tem a garantia de que o Estado também o exigirá eficazmente dos demais. Por

conseguinte, o tipo penal da evasão fiscal também protege uma repartição justa e

igualitária das cargas tributárias.”76

Daí a similitude dos crimes contra a ordem tributária com o estelionato77

– figura

72

Cf. RÍOS, Rodrigo Sánchez. Das causas de extinção da punibilidade dos delitos econômicos. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2003, p. 34-35. 73

Em uma perspectiva de base liberal, a tributação é considerada „invasão‟ estatal da esfera patrimonial privada. Cf.

MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. Tradução Marcelo Brandão

Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 44-45: “As doutrinas libertárias assumem formas diversas, mas as duas

mais importantes para nossos propósitos podem ser chamadas de libertarismo de direito e libertarismo de

merecimento. A primeira é comprometida com a idéia de um rigoroso direito moral à propriedade; insiste em que cada

pessoa tem um direito moral inviolável à acumulação de bens resultante de trocas verdadeiramente livres. Aplicado à

política tributária, o libertarismo de direito, em sua forma pura ou absoluta, acarreta a idéia de que nenhuma tributação

compulsória é legítima; para que o governo exista, ele deve ser financiado por arranjos contratuais voluntários. Nessa

versão extrema do libertarismo, a questão da justa distribuição das cargas tributárias obrigatórias jamais se levantaria,

uma vez que todas essas cargas seriam ilegítimas”. 74

Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado ..., passim. 75

Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Breves considerações sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas em

direito penal econômico. In COSTA, José de Faria; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.). Direito ..., p.

63:”Tanto no direito penal geral como no direito penal económico temos a ver com a ofensa a verdadeiros bens

jurídicos: só que os daquele se relacionam com o livre desenvolvimento da personalidade de cada homem como tal,

enquanto os deste se relacionam com a actuação da personalidade do homem enquanto fenómeno social, em

comunidade e em dependência recíproca dela. Desta forma, de resto, se ligam uns e outros a ordem de valores, ao

ordenamento axiológico que preside a Constituição democrática do Estado: simplesmente, enquanto os bens jurídicos

do direito penal geral se devem considerar concretização dos valores constitucionais ligados aos direitos, liberdades e

garantias fundamentais dos cidadãos, os bens jurídicos do direito penal económico surgem como concretização dos

valores ligados aos direitos sociais e à organização económica contidos ou pressupostos na Constituição”. (grifos do

Autor) 76

TIPKE, Klaus. Moral ..., p. 131-132, grifo do Autor; tradução nossa. 77

EISELE, Andreas. Crimes ..., p. 139.

15

penal cuja tipificação é considerada legítima78

. Ora, é precisamente o componente de

sociabilidade inerente ao bem jurídico dos crimes contra a ordem tributária que confere um

mais elevado grau de legitimidade a tal tipificação, já que a tutela penal somente se justifica

diante de “condutas que, efetivamente, obstruam o satisfatório conviver em sociedade”79

.

“Ainda que por um lado se repila veementemente a idéia de um Direito Penal a funcionar

como instrumento, mesmo que auxiliar, na realização de políticas públicas e sociais, ao

veraz argumento de que outros instrumentos mais apropriados, e menos invasivos, se

projetam a tal finalidade, por outro, deposita-se nessa disciplina jurídica a missão de

coibir aquelas condutas que revelem hipótese de dano a bens ou interesses que,

mostrando-se vitais à sociedade como tal, receberam, muitos deles, incorporação

constitucional. Estruturas político-normativas como "ordem econômica", "ordem

tributária", "regularidade do sistema financeiro", por exemplo, enfeixam uma relação de

significados na qual se contém, para além do interesse público stricto sensu, o interesse

mediatizado de todos os sujeitos sociais hoje dependentes de seu hígido

funcionamento.”80

E se a pena máxima imputada (in abstracto) ao crime deve ser critério de aferição

da ofensividade social da conduta, o legislador equipara a burla tributária ao estelionato, já

que indica a reclusão por até cinco anos para ambos os crimes. Também por esse fator é que

se vislumbra um fundamento ético nessa criminalização, à medida que a conduta proibida é a

utilização de fraudes para causar prejuízo a outrem – seja a um Particular (estelionato), seja ao

grupo social (crimes tributários). Mas, importa destacar a suposição de um menor potencial

ofensivo nas condutas que atingem patrimônio privado (subsumidas ao tipo do Art. 171, do

Código Penal, com pena mínima de um ano), do que para a burla tributária (com efetiva

supressão/redução do tributo devido – os crimes materiais do Art. 1°, da Lei n° 8.137/1990),

pois, nesta segunda infração, a pena mínima indicada é de dois anos.

Contudo, mesmo que consideremos essa semelhança na base da tipificação, a

recorrente comparação com os crimes patrimoniais deve ser sopesada, exatamente pela

dimensão supraindividual do bem jurídico tutelado nos crimes contra ordem tributária. Haja

vista a finalidade social da tributação estabelecida pela Constituição de 1988, Art. 3°, os

crimes contra ordem tributária devem receber um tratamento dogmático coerente com tutela

de bens coletivos:

“Trata-se de um bem jurídico colectivo cuja titularidade pertence à comunidade dos

indivíduos, por meio do Estado que se compromete a realizar uma gestão adequada e a

prosseguir objectivos económicos e sociais reconhecidos como fundamentais pela

sociedade. O critério por nós utilizado para determinar os contornos de um bem jurídico

colectivo ou supra-individual é importado da economia e traduz-se no princípio da não

78

MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de direito penal. 7. ed. rev. ampl. São Paulo: Atlas, 1993, p. 277: [o tipo refere-

se a] “fatos que, ao invés da clandestinidade ou da violência à coisa ou à pessoa, o agente se utiliza da astúcia, da

mistificação, do engodo, do embuste, da trapaça, da fraude enfim, para obter uma vantagem ilícita. São condutas

praticadas pelo homem civilizado, arguto, que se aproveita das relações complexas da vida moderna para enganar o

próximo, utilizando a malícia humana que não encontra freios que a impeçam de levar ao engano os incautos. Além do

estelionato (art. 171, caput) registra a lei outras formas de fraude, [...]”. 79

BIANCHINI, Alice. Pressupostos ..., p. 29. 80

Cf. FELDENS, Luciano. A constituição ..., p. 55.

16

exclusão, segundo o qual são bens colectivos aqueles cuja utilidade aproveita a todos

sem que ninguém possa dela ser excluído (inexcluibilidade). [...] Ninguém pode ser

excluído dos benefícios que advêm das receitas fiscais; todavia, estes recursos são finitos

e vão-se consumindo ao longo do ano financeiro. É a própria comunidade que vai

absorvendo em cada ano o montante das receitas fiscais descrito no orçamento

comunitário. Em regra, a fruição daquelas receitas não é passível de ser individualizada,

ou seja, não é possível determinar em que medida se dá o consumo individualizado

daquele bem, com a particularidade que cada indivíduo sabe que o seu benefício é

independente da sua contribuição. Não havendo possibilidade de exclusão do uso e dada

a distância quantitativa entre a contribuição de cada um e o montante global das receitas

fiscais, cada indivíduo sabe que a sua não comparticipação não põe em causa a produção

do bem, colocando-se na posição que em economia se designa de free rider servindo esta

expressão para caracterizar a atitude daquele que retira vantagens do comportamento

corporativo dos outros na prossecução de um determinado objectivo comum ou na defesa

de um bem público, aproveitando dos benefícios assim obtidos sem contribuir para os

mesmos. Assim se justifica que cada um seja chamado coactivamente a contribuir, e que

a conduta do free rider seja criminalizada, em determinadas circunstâncias decorrentes

dos princípios e garantias próprios do direito penal.”81

Então, muito mais coerente com essa característica de

coletividade/supraindividualidade do bem jurídico tutelado sob a insígnia „ordem tributária‟ é

a inclusão deste microssistema82

criminal no âmbito do “Direito Penal Econômico”83

, como

integrante de um conjunto complementado pelos crimes contra a ordem econômica, crimes

contra a ordem financeira, contra as relações de consumo, crimes ambientais – todos eles

voltados ao confronto penal da danosidade social84

inserta nesses comportamentos tributários

ilícitos:

“Prescindindo-se do especifico conteúdo ofensivo dos fatos criminosos, pode-se dizer

que a danosidade social - conseqüências negativas e indesejáveis -, na sua dimensão

macrossocial, está vinculada a eventual repetição e difusão do comportamento desviante,

em que pese não haver uma identificação pura e simples. Em síntese, a danosidade

social, como critério significativo à finalidade da criminalização, não é considerada tanto

como sinônimo de genéricas conseqüências sociais negativas do fato desviante, quanto

como a capacidade social da necessidade de adaptação e reação autônoma ao delito, com

a conseqüente necessidade de recorrer à sanção criminal.”85

81

SOUSA, Susana Aires de. Sobre ..., p. 515-516, grifo da Autora. 82

Conjunto de dispositivos normativos com, pelo menos, uma lei especial de positivação dos respectivos crimes.

Nesse quadro, além da Lei n° 8.137/1990 – que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações

de consumo – devem ser incluídas a Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986, que define os crimes contra o sistema

financeiro nacional; e a Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre condutas e atividades lesivas ao

meio ambiente. 83

Cf. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 28: “Esse conceito

de ordem econômica acaba por agasalhar as ordens tributária, financeira, monetária e a relação de consumo, entre

outros setores, e constitui um bem jurídico-penal supra-individual, genericamente considerado (bem jurídico

categorial), o que por si só não exclui a proteção de interesses individuais. Além disso, em cada tipo legal de injusto

há um determinado bem jurídico específico ou em sentido estrito (essencialmente de natureza supra-individual),

diretamente protegido em cada figura delitiva. Tal concepção fundamenta em sede penal um conceito amplo de delito

econômico, mas não totalizador ou amplíssimo.” (grifos do Autor); BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes ..., p.

417. 84

Cf. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da Cunha. «Constituição ..., p. 78: “De todo modo, a determinação do

que é socialmente danoso depende sempre, necessariamente, dos bens que se tenham por socialmente vaIiosos (do que

se considere ser bem jurídico) e estes variam com as condições cuIturais e sociais, espácio-temporalmente situadas.

Por isso, passo prévio em relação à determinação da danosidade social, parece-nos ser a determinação de quais os bens

jurídicos da comunidade em causa, o que implica que se atente no ambiente social, económico e cuItural-valorativo da

sociedade em questão, embora também dependa de uma análise cuidada de todas as (possíveis) consequências de uma

conduta, sua probabilidade, proximidade e gravidade, o que pressupõe um estudo criminológico aprofundado”. 85

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 78. Cf. SOUSA,

Susana Aires de. Sobre ..., p. 511;

17

Estando inserida no contexto referenciado a bens jurídicos coletivos, a

criminalização de ilícitos tributários deve ser sopesada à luz dos paradigmas (de base

sociológica, em princípio) da sociedade de risco86

. Trata-se de categoria de estudo

essencialmente dotada de complexidade87

, cujos modelos teóricos mostram-se essenciais à

compreensão de uma (re)novada função do direito penal nesta ordem social hodierna:

“A alteração da dinâmica atual do tipo penal não consiste na faculdade que a este é

concedida de garantir expectativas de comportamentos, posto que tal função sempre foi

exercida pelo sistema penal. O que se altera, de fato, são as novas estruturas sociais

(instâncias) indispensáveis que o tipo penal de certa forma agora deve manter. [...] No

caso dos atuais bens jurídicos difusos, sua característica diferenciadora é a orientação da

tipicidade penal no sentido de proteger uma determinada instância social ou localidade

social na qual as pessoas interagem com os mais diversos tipos de comportamentos.

Todavia, o próprio funcionamento destas instâncias não pode permitir qualquer maneira

de atuação, mas sim atividades que respeitem, ao mínimo, determinados padrões. Apenas

o respeito concomitante por parte de todos consegue obter desta instância coletiva ou

difusa a sua esperada funcionalidade. Nesse sentido, a própria noção de lesividade é

reinterpretada, uma vez que ao comportamento típico é prescindível sua lesividade

individual. Em seu lugar, coloca-se uma nova constatação do que venha a ser lesividade;

a lesividade à instância, à boa operacionalização de um setor social.”88

A relevância estrutural da tributação em um Estado com fins sociais é patente89

: o

86

GUIVANT, Julia Silvia. A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico e a profecia. Disponível

em <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/dezesseis/ julia16.htm> Acesso em 03 de

outubro de 2009: “Ulrich Beck passou a ser um dos teóricos sociais mais destacados do presente depois da publicação

de Risk Society (em alemão em 1986 e em inglês em 1992). O argumento central desse livro é que a sociedade

industrial, caracterizada pela produção e distribuição de bens, foi deslocada pela sociedade de risco, na qual a

distribuição dos riscos não corresponde às diferenças sociais, econômicas e geográficas da típica primeira

modernidade. O desenvolvimento da ciência e da técnica não poderiam mais dar conta da predição e controle dos

riscos que contribuiu decisivamente para criar e que geram conseqüências de alta gravidade para a saúde humana e

para o meio ambiente, desconhecidas a longo prazo e que, quando descobertas, tendem a ser irreversíveis. Entre esses

riscos, Beck inclui os riscos ecológicos, químicos, nucleares e genéticos, produzidos industrialmente, externalizados

economicamente, individualizados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente. Mais

recentemente, incorporou também os riscos econômicos, como as quedas nos mercados financeiros internacionais.

Este conjunto de riscos geraria “uma nova forma de capitalismo, uma nova forma de economia, uma nova forma de

ordem global, uma nova forma de sociedade e uma nova forma de vida pessoal” (Beck, 1999: 2-7). O conceito de

sociedade de risco se cruza diretamente com o de globalização: os riscos são democráticos, afetando nações e classes

sociais sem respeitar fronteiras de nenhum tipo. Os processos que passam a delinear-se a partir dessas transformações

são ambíguos, coexistindo maior pobreza em massa, crescimento de nacionalismo, fundamentalismos religiosos, crises

econômicas, possíveis guerras e catástrofes ecológicas e tecnológicas, e espaços no planeta onde há maior riqueza,

tecnificação rápida e alta segurança no emprego.” 87

Cf. NEVES, Clarissa Eckert Baeta; NEVES, Fabrício Monteiro. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas

Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias. Porto Alegre, ano 8, nº 15, jan/jun 2006, p. 191: “[...]

complexidade significa a totalidade dos possíveis acontecimentos e das circunstâncias: algo é complexo, quando, no

mínimo, envolve mais de uma circunstância. Com o crescimento do número de possibilidades, cresce igualmente o

número de relações entre os elementos, logo, cresce a complexidade. O conceito de complexidade do mundo retrata a

última fronteira ou o limite último extremo. Sendo que é possível, só é possível no mundo. Essa complexidade extrema

do mundo, nesta forma, não é compreensível pela consciência humana. A capacidade humana não dá conta de

apreensão da complexidade, considerando todos os possíveis acontecimentos e todas as circunstâncias no mundo. Ela

é, constantemente, exigida demais. Assim, entre a extrema complexidade do mundo e a consciência humana existe

uma lacuna. E é neste ponto que os sistemas sociais assumem a sua função. Eles assumem a tarefa de redução de

complexidade. Sistemas sociais, para Luhmann (1990), intervêm entre a extrema complexidade do mundo e a limitada

capacidade do homem em trabalhar a complexidade.” 88

SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade penal e sociedade de risco. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p.

102, grifo do Autor. 89

Cf. SOUSA, Susana Aires de. Sobre ..., p. 487: “A procura do fundamento ético do dever de pagar impostos está

hoje necessariamente ligada às funções que ao Estado cabe cumprir. Qualquer homem, actuando isoladamente, mostra-

se incapaz de reunir as condições necessárias à realização integral da personalidade humana. Só em colaboração

organizada com os outros se reúnem as condições necessárias a uma justa convivência comunitária, seja no plano

18

cumprimento dos objetivos e missões embutidas nesse modelo estatal (efetivação dos direitos

e garantais fundamentais, em especial as prestações sociais) depende de financiamento, cuja

principal fonte é instrumentalizada, exatamente, pelo ordenamento tributário. Daí se entender

que as (i)lícitas oposições à tributação resultam por investir (ou repercutem) na execução das

finalidades indicadas à gestão estatal da sociedade.

Nesse quadro, as contribuições sociais à seguridade social são espécimes

tributários que se destacam pela estrita vinculação à concretização de direitos sociais. Por

isso, se há justificativas90

para a tipificação da burla tributária genericamente considerada,

maior grau de legitimidade deve ser conferido à tutela penal dos tributos previdenciários. É

que as fraudes relacionadas com tributos previdenciários são mais facilmente enquadráveis na

noção de atividade geradora de risco à sociedade, em razão da interação dessa conduta ilícita

com prejuízos a prestações sociais para uma parte expressiva da população.

Sabe-se91

que o próprio Beck incluiu (posteriormente) as atividades econômico-

financeiras dentre as condutas geradoras de risco à sociedade: a manipulação das estruturas do

mercado financeiro contém o risco de causar um colapso do sistema econômico, sendo assim

potencialmente prejudicial à preservação da ordem social em sua amplitude. Mas pressupõe-

se que a especificidade do sistema tributário em face dos sistemas econômico e financeiro não

permite a aplicação desse paradigma teórico para justificação de todos os crimes tributários.

Apesar de se entender inadequada a adoção do paradigma teórico do risco para a

crítica da evasão tributária genericamente considerada, a danosidade social sobressai nesse

tema e legitima a intervenção penal em favor da ordem tributária, também em decorrência do

dano cumulativo:

“[O] dano cumulativo exime de valoração um fato específico, requerendo uma valoração

acerca de uma transcendência global de um gênero de condutas que sejam estimadas

lícitas. Em outras palavras, a pergunta-chave é: “o que aconteceria se todos os

operadores deste setor, desta atividade realizassem a conduta X, quando existe ademais,

uma séria probabilidade ser considerada lícita por muitos deles?””92

econômico, seja no plano social. Com efeito, a partir da sistematização proposta por Richard Musgrave, reconhece-se

que a agenda do Estado de direito social e composta por três grandes funções - a afectação de recursos; a função de

redistribuição e a função de estabilização econômica - cujo cumprimento depende em larga medida do sistema fiscal.” 90

Cf. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da Cunha. «Constituição ..., p. 132: “[...] tal concepção tem influência em

relação aos valores protegíveis pelo Direito Penal, que poderão abarcar o domínio económico, social e cultural. Neste

sentido diz-nos ainda Figueiredo Dias que, num Estado de Direito material se dá a «eticização de uma boa parte das

providências destinadas a melhorar a condição social dos homens» (no domínio do trabalho, saúde pública, economia,

educação, cultura). Tal corresponderá a uma concepção de homem que tem em conta quer «o desenvolvimento da sua

personalidade enquanto tal», «quer a actuação do homem enquanto fenómeno social». Em sentido convergente

considera Roxin que num Estado moderno também é função do Estado assegurar, se necessário através de tutela penal,

prestações públicas, no domínio da assistência social”. 91

Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las

sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999, p. 19 et seq. 92

SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. La expansión ..., p. 104, tradução nossa.

19

Nesse quadro, o dano cumulativo e a danosidade social são categorias relevantes93

na compreensão da criminalização de condutas ilícitas referenciadas aos tributos:

especialmente às contribuições sociais, pois se considera que o perene déficit orçamentário da

seguridade social pode ser ainda mais agravado por ações fraudulentas e omissivas que sejam

generalizadas entre os contribuintes. Com relação a tais espécimes de crimes tributários, a

justificação da tutela penal parece adequada à relevância constitucional das prestações sociais

devidas pelo Estado. De fato, a criminalização dos ilícitos tributários-previdenciários é bem

anterior à renovação tipológica inaugurada pela Lei n° 8.137/1990. Relembre-se que, a par do

reconhecimento político-jurídico de direitos sociais (Constituição mexicana de 1917,

Constituição alemã de Weimer, 1919 e pela Constituição brasileira de 193494

), o legislador

brasileiro criou tipo penal para tutela das contribuições então exigidas dos trabalhadores para

financiamento da previdência que se construía95

.

Então, se por um lado, o ordenamento jurídico garante e permite direitos de

resistência revestidos de razoabilidade – as oposições lícitas à tributação – por outro lado, os

93

Esse entendimento é polêmico. Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. La expansión ..., p. 104 e 106: “o dano

cumulativo é inadmissível como critério para a imputação de responsabilidade penal a um determinado sujeito pelo

concreto significado da conduta isolada que tenha realizado [...] Podemos falar de um segundo exemplo no âmbito

tributário. Uma única fraude tributária, ainda que seja de mais de 15 milhões (caso espanhol) – limite para o

julgamento no âmbito penal – não põe em perigo o bem jurídico representado pelo processo de redistribuição de renda

etc. O perigoso aqui seria o efeito da soma. Logo, não é a conduta individual a lesiva, mas sim sua acumulação e

globalização. Sob a perspectiva da lesividade concreta, não há base para a intervenção penal, ainda que o significado

global, setorial do “gênero” de condutas possa justificar claramente a intervenção do Direito Administrativo (e isso, a

partir de uma fraude de pouca importância que, multiplicada pelo número de contribuintes, poderia alcançar um

enorme significado). Assim, uma fraude por contribuinte de 10.000 moedas, multiplicada por uns 25 milhões de

contribuintes daria a enorme cifra global de 250.000.000.000 moedas. O que implica, obviamente, que a única fraude

de 10.000 moedas deva ser considerada ilícito administrativo e sancionada.” (Tradução nossa) 94

REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Constituição de 16 de julho de 1934, Art. 121 - A lei

promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a

proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. § 1º - A legislação do trabalho observará os

seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: a) proibição de diferença de

salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; b) salário mínimo, capaz de

satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador; c) trabalho diário não

excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei; d) proibição de trabalho a menores

de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres; e)

repouso hebdomadário, de preferência aos domingos; f) férias anuais remuneradas; g) indenização ao trabalhador

dispensado sem justa causa; h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso

antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição

igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de

acidentes de trabalho ou de morte; i) regulamentação do exercício de todas as profissões; j) reconhecimento das

convenções coletivas, de trabalho. § 2º - Para o efeito deste artigo, não há distinção entre o trabalho manual e o

trabalho intelectual ou técnico, nem entre os profissionais respectivos. § 3º - Os serviços de amparo à maternidade e à

infância, os referentes ao lar e ao trabalho feminino, assim como a fiscalização e a orientação respectivas, serão

incumbidos de preferência a mulheres habilitadas. § 4º - O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial,

em que se atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o homem no campo, cuidar da sua

educação rural, e assegurar ao trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas.

... omissis § 8º - Nos acidentes do trabalho em obras públicas da União, dos Estados e dos Municípios, a indenização

será feita pela folha de pagamento, dentro de quinze dias depois da sentença, da qual não se admitirá recurso ex -

offício. 95

Decreto-lei n° 65, de 14 de dezembro de 1937, Art. 5° (vide nota 46).

20

ardis, as fraudes e omissões que impedem a tributação legal devem implicar ilicitudes96

mais

gravosas pela frustração das expectativas sociais decorrente da omissão em si, exacerbada

pelo engodo prejudicial inerente à conduta, assim legitimando a tipificação penal.

Os fundamentos e o sentido aqui adotado para os crimes contra a ordem tributária

podem ser justificados, ainda, na compreensão das estruturas de formação da tipicidade penal-

tributária.

3. A tipicidade especial dos crimes tributários

“A tipicidade é uma decorrência natural do princípio da reserva legal: nullum

crimen nulla poena signe praevia lege. Tipicidade é a conformidade do fato praticado pelo

agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal”97

.

O tipo penal “é a descrição concreta da conduta proibida (do conteúdo da matéria

da norma). É uma figura puramente conceitual”98

. É estrutura positivada de forma segmentada

em elementos objetivos e subjetivos, resultando no tipo complexo, de acordo com a teoria

finalista da ação. Os elementos objetivos referem-se à ação e ao objeto da ação –

eventualmente, ainda tratam do resultado, de circunstâncias externas do fato, do agente e do

sujeito passivo; apresentam-se como (puramente) descritivos ou como normativos (cuja

compreensão exige uma valoração ética ou jurídica). Os elementos subjetivos reportam-se ao

dolo/culpa, intenções específicas, tendências do agente99

.

3.1. A estrutura dos tipos penal-tributários

A estrutura dos tipos dos crimes tributários perfaz-se intricada porque

essencialmente dependente das normas de direito tributário, pois são estas últimas “que

96

Cf. SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade ..., p. 86: “A criação de novas tecnologias importa no

estabelecimento de também novas relações sociais. O mundo atual é estruturado principalmente por riscos

humanamente criados, diminuindo por completo quase que todos os espaços destinados às mágicas e, diante disso,

redundando na assimilação pelo direito de todos os papéis de outorga valorativa de sentido, antes dividido com a ética

ou a tradição. A violência militar (belicismo), agressão ao meio ambiente, as fraudes gigantescas no cerne das

corporações globalizadas não podem ser controladas pela tipificação estabelecida para os crimes de baixa

complexidade. Dizer que a tecnologia chegou ao limite de destruir o mundo, significa dizer que as relações

intersubjetivas estabelecem-se com a potencialidade de, factualmente, destruí-Io. Da mesma forma, os crimes fiscais

ou empresariais utilizam-se das mesmas forças produtivas para serem perpetrados, posto que se a globalização impõe o

distanciamento do homem de seu espaço-temporal, este mesmo processo facilita práticas até então inimagináveis.

Estas mesmas práticas, ao menos para a manutenção do sistema produtivo, deverão ser coibidas e, para tal, será

utilizado o mecanismo de tipificação penal. Este encontro – tipificação e novas formas delitivas – é a pedra de toque de

toda a crise do sistema penal em sua contradição com o estágio atual de desenvolvimento.” 97

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado ..., p. 259. 98

WELZEL, Derecho Penal alemán apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado ..., p. 258. 99

Cf. GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003, p. 185-189;

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 4. ed. rev. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2002, p. 441-453.

21

prescrevem a relação jurídica cujo descumprimento é valorado na hipótese da norma

penal”100

. Tal constatação está na base de muitas perplexidades geradas pela tipicidade penal-

tributária – apesar desse modelo não ser exclusividade dos crimes tributários101

. Isso porque

as inúmeras questões relacionadas ao tributo e aos deveres acessórios, essencialmente de

natureza público-administrativa, são transportadas para o núcleo de tipos penais102

103

. Esta

peculiar referência a tributo e outras figuras de direito tributário104

nesses tipos é percebida

pela dogmática penalista, resultando em discórdia doutrinária105

sobre a classificação de tais

categorias entre as normas penais em branco106

e os elementos normativos do tipo107

.

100

CARVALHO, Aurora Tomazini de. Direito penal tributário (uma análise lógica, semântica e jurisprudencial). São

Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 134. 101

A mesma estrutura é aplicada a crimes contra o sistema financeiro nacional (positivados através da Lei n° 7.492, de

16 de junho de 1986), advindo a necessidade de compreender a regulação (administrativa) e controle do setor

financeiro pelo Banco Central. Cf. CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o

sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492, de 16 de junho de 1986). Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 143: “A

comunicação do Banco Central não se constitui em condição de procedibilidade para instauração de inquérito policial

ou de ação penal, mas na prática condiciona a atuação das demais instâncias”. 102

Parte dos penalistas critica a criminalização e a tipificação especial das condutas de burla tributária, as quais

atestariam uma “administratização” do Direito Penal característico das sociedades pós-industriais, por ele assumir, em

ampla medida, a forma de raciocinar tradicionalmente utilizada pelo direito administrativo. Cf. SÁNCHEZ, Jesús-

María Silva. La expansión ..., p. 97 et seq; FÖPPEL, Gamil; SANTANA, Rafael de Sá. Dos crimes contra ordem

tributária. Salvador: JusPODIVUM, 2005, p. 39-42; FERNANDES, Petra Monteiro. Breves ..., p. 1127 et seq. 103

Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. La expansión ..., p. 100: “3. Com efeito, esta orientação à proteção de contextos

cada vez mais genéricos (no espaço e no tempo) do desfrute dos bens jurídicos clássicos, leva o Direito penal a se

relacionar com fenômenos de dimensões estruturais, globais ou sistêmicas, nos quais as condutas individuais,

autonomamente contempladas são, ao contrário, de “intensidade baixa”. Com isso, produziu-se seguramente a

culminação do processo: o Direito penal que reagia a posteriori contra um fato lesivo individualmente delimitado

(quanto ao sujeito ativo e ao passivo) se converteu em um Direito de gestão (punitiva) de riscos gerais e, nessa medida,

foi “administrativizado”. (grifo do Autor; tradução nossa) 104

Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. Da unidade ..., p. 220: “A lei penal, que descreve delitos de fundo tributário,

como a sonegação fiscal, não pode ser aplicada sem apoio no Direito Tributário porque as espécies penais nela

estabelecidas são complementadas pelas normas tributárias.” 105

Na análise da dogmática penalista, não se observa uma delimitação conceitual (exata) entre a „norma penal em

branco‟ e os „elementos normativos do tipo‟, variando entre os autores a inclusão de um mesmo tipo penal em uma ou

outra categoria. Trata-se de questão oriunda da própria teoria geral da norma penal. Cf. VÁSQUEZ, Manuel A.

Abanto. El principio de “certeza” en las leyes penales en blanco: especial referencia a los delitos económicos. Revista

Peruana de Ciencias Penales. Lima: IDEMSA, año V, n. 9, 1999, p. 13-34; PAVÓN, Pilar Gómez. Cuestiones

actuales del derecho penal económico: el principio de legalidad y las remisiones normativas. Revista Brasileira de

Ciências Criminais. São Paulo: RT, a. 12, n. 48, mai./jun., 2004, p. 147. 106

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral, arts. 1.° a 120. 9. ed. rev. atual. e ampl. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, v. 1, p. 184: “A lei ou norma penal em branco pode ser conceituada como aquela

em que a descrição da conduta punível se mostra lacunosa ou incompleta, necessitando de outro dispositivo legal para

a sua integração ou complementação. [...] o preceito, a hipótese legal (preceito ou prótase) é formulada de maneira

genérica ou indeterminada, devendo ser preenchida, colmatada ou determinada por ato outro normativo (legislativo ou

administrativo), em regra, de cunho extrapenal, que fica pertencendo, para todos os efeitos, à lei penal. Utiliza-se então

de particular técnica legislativa - procedimento de remissão ou de reenvio a outra espécie de norma jurídica -, sempre

em obediência à estrita necessidade.” (grifos do Autor) 107

Ibidem, p. 329: “Entre os elementos do tipo objetivo, faz-se a diferenciação entre: 1) Elementos descritivos ou

objetivos propriamente ditos - são aqueles cuja identificação ressai da simples verificação sensorial. Diz respeito a

objetos, seres ou atos perceptíveis pelos sentidos. [...] 2) Elementos normativos - são aqueles que exigem um juízo de

valor para o seu conhecimento. Dizem respeito a certo dado ou realidade de ordem jurídica ou não. [...] Os elementos

normativos do tipo de injusto têm os mais diversos conteúdos, o que dificulta sua clara sistematização. Referem-se a

valores, e só são compreensíveis quando conexos ao mundo das normas. [...] Em geral, classificam-se em: a)

normativos jurídicos: conceitos jurídicos ou referentes à norma jurídica. Exigem um valor de cunho jurídico

(valoração jurídica) [...] b) normativos extrajurídicos (ou empírico-culturais): juízos de valor fundados na experiência,

na sociedade ou na cultura. Exigem um juízo de valor de cunho não jurídico (valoração extrajurídica), de ordem social,

22

A partir da distinção entre tais classes dogmático-penais, entende-se que a

positivação de normas penais em branco nos crimes contra a ordem tributária é limitada108

aos tipos cuja técnica legislativa positiva expressamente um “procedimento de remissão ou de

reenvio a outra espécie de norma jurídica”. No que respeita à Lei n° 8.137/1990, constata-se a

utilização do método de remissão no Art. 1°, II, através da expressão „exigido pela lei fiscal‟;

no Art. 1°, V, „em desacordo com a legislação‟; no Art. 2°, II, „prazo legal‟. Já no Código

Penal, o crime de apropriação indébita previdenciária (Art. 168-A, caput) e o delito

equiparado do Art. 168-A, § 1°, I, constituem-se como normas penais em branco, pela

referência ao „prazo e forma legal‟.

Diferentemente, entende-se que as referências a „tributo‟, „contribuição social‟,

„acessório‟ (Art. 1°, caput, I; Art. 2°, I); „documento(s) relativo(s) à operação tributável‟ (Art.

1°, III); „renda‟, „bens‟ (Art. 2°, I); „sujeito passivo‟ (Art. 2°); „contribuinte beneficiário‟,

„imposto‟, „incentivo fiscal‟ (Art. 2°, III) na Lei n° 8.137/1990 e no Código Penal, Art. 168-A

e 337-A têm outra implicação dogmático-penal. Os tipos penais estruturados com essas

figuras traçadas no direito tributário exigem a compreensão de conceitos jurídicos ou

referentes à norma jurídico-tributária. E essa valoração de cunho jurídico mostra-se

apropriada aos elementos normativos do tipo109

.

Deduz-se que esse elemento estrutural do tipo penal-tributário fundamenta a

tipicidade especial, afastando fraudes, falsidades e descumprimentos de deveres

genericamente proibidos pelo Código Penal. Condutas fraudulentas, falsárias, dissimuladas,

omissivas instrumentalizam a execução de crimes comuns e de crime tributário. Mas, o

inexorável juízo de valor sobre o ordenamento tributário define, exatamente, os crimes

tributários: quando constatada a finalidade da conduta de desviar-se do dever imposto pela

norma tributária, a aplicação da norma geral110

deve ser afastada, de acordo com o princípio

da especialidade.

Ademais, quando a utilização de meio fraudulento/falso é mera etapa do crime

contra a ordem tributária (crime-fim), sem qualquer outra potencialidade lesiva, a tipificação

do crime especial resulta, também, da absorção da conduta instrumental pela consideração do

princípio da consunção, assim impedindo o agravamento de penas previsto para os concursos

econômica, política, biológica, etc.” (grifo do Autor) 108

Diferentemente, EISELE, Andreas. Crimes..., p. 32. Para este Autor, os tipos tributários seriam normas penais em

branco; como é vedada a integração analógica no Direito Penal, o objeto do crime seria apenas os tributos referidos no

Art. 145, CR 88 (impostos, taxas, contribuição de melhoria) e a contribuição social previdenciária. 109

Cf. PRADO, Luiz Regis. Direito..., passim; VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. El principio ..., p. 28; PAVÓN, Pilar

Gómez. Cuestiones ..., passim; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes ..., p. 423 et seq. 110

Cf. EISELE, Andreas. Crimes ..., p. 40-41; GRECO, Rogério. Curso ..., p. 30-31.

23

de crimes111

. A aplicação do princípio da consunção somente deve ser feita nas hipóteses em

que o crime-meio – localizando-se na mesma linha de desdobramento causal de lesão ao bem

jurídico – integrar o iter criminis do delito-fim, sem extrapolar os limites próprios do tipo

finalmente realizado112

.

É por essa finalidade de exclusiva lesão ao erário que a jurisprudência pátria

admite a aplicação da Súmula STJ n° 17113

aos crimes contra a ordem tributária. Quando a

falsidade é utilizada unicamente como meio de materialização de prejuízo a outrem, o tipo

penal que se configura é o do crime-fim114

: seja o estelionato (lesão a um Particular), seja o

111

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Penal ..., Concurso material Art. 69 - Quando o agente,

mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as

penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de

detenção, executa-se primeiro aquela. § 1º - Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena

privativa de liberdade, não suspensa, por um dos crimes, para os demais será incabível a substituição de que trata o art.

44 deste Código. § 2º - Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente

as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais.

Concurso formal Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos

ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer

caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os

crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior. Parágrafo único - Não

poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.

Crime continuado Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da

mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes

ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se

diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. ... omissis 112

Cf. Idem. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME DE FALSIDADE

IDEOLÓGICA. VERBETES SUMULARES Nos

284 DO STF E 211 DO STJ. NÃO CONHECIMENTO. USO DE

DOCUMENTO FALSO E SONEGAÇÃO FISCAL. CONSUMAÇÃO DO CRIME FISCAL SOMENTE COM O

LANÇAMENTO DEFINITIVO DO DÉBITO. FALSIDADE PRATICADA COM FIM EXCLUSIVO DE LESAR O

FISCO, VIABILIZANDO A SONEGAÇÃO DO TRIBUTO. FALSO EXAURIDO NA SONEGAÇÃO. APLICAÇÃO

DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE,

DESPROVIDO. [...] 2. O delito previsto no art. 1.º, inciso IV, da Lei n.º 8.137/90 não se consuma com a mera inserção

de informações falsas, mas com o lançamento definitivo do débito. 3. No caso, constata-se que o crime de uso de

documento falso – crime meio – foi praticado para facilitar ou encobrir a falsa declaração, com vistas à efetivação do

crime de sonegação fiscal – crime fim –, localizando-se na mesma linha de desdobramento causal de lesão ao bem

jurídico, integrando, assim, o iter criminis do delito-fim. 4. Constatado que o uso do documento falso ocorreu com o

fim único e específico de burlar o Fisco, visando, exclusivamente, à sonegação de tributos, e que lesividade da conduta

não transcendeu o crime fiscal, incide, na espécie, mutatis mutandis, o comando do Enunciado n.º 17 da Súmula do

Superior Tribunal de Justiça, ad litteram: "Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é

por este absorvido", aplicando-se, portanto, o princípio da consunção ou da absorção. Precedentes. 5. Recurso

parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. RESP 200900819991 RESP - RECURSO ESPECIAL – 1114016

Relator(a) LAURITA VAZ Sigla do órgão STJ Órgão julgador QUINTA TURMA Data da Decisão 29/09/2009 Fonte

DJE DATA:26/10/2009. 113

“Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”. Ibidem. Órgão

Julgador TERCEIRA SEÇÃO Data da Decisão 20/11/1990 Fonte DJ DATA:28/11/1990 PG:13963 RSTJ VOL.:00016

PG:00443 RT VOL.:00661 PG:00324. Disponível em <http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf> Acesso

em 31de julho de 2009. 114

Idem. Tribunal Regional Federal (2. Região). PENAL. APELAÇÃO. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO

PARTICULAR. NÃO-EXAURIMENTO DO CRIME DE FALSO EM SEDE DE SONEGAÇÃO FISCAL, CUJA

PUNIBILIDADE FOI EXTINTA. NÃO-APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. APELAÇÃO

IMPROVIDA. - Se os documentos adulterados pela Ré, através de falsificação da assinatura de sua ex-empregada

doméstica, propiciaram, inclusive, a abertura de conta-corrente em instituição financeira, a formalização de contratos

civis e a impetração de ação de mandado de segurança, tudo isso sob a falsa chancela de terceira pessoa, não se

sustenta a tese defensiva de absorção do crime do art. 298, do CP, por crime contra ordem tributária (art. 2°, I, da Lei

nº 8.137/90), cuja punibilidade foi extinta, posto que o falso não se exauriu no suposto crime-fim que a Ré alega ter

ocorrido, não se aplicando, portanto, o princípio da consunção, segundo preceitua o enunciado nº 17, da súmula do

24

crime contra a ordem tributária (prejuízo ao erário).

3.2. Consumação de crime contra a ordem tributária: a função penal do processo

administrativo tributário

“Dá-se a consumação delitiva quando o autor realizou toda a conduta descrita no

tipo de injusto, provocando, ainda, o resultado, quando esse for por aquele exigido”115

. Nesse

sentido, os crimes tributários de tipos formais – Art. 2° da Lei n° 8.137/1990, por exemplo –

se aperfeiçoam com ação do Particular: na data da declaração (falsa ou incompleta) ao Fisco

(Art. 2°, I), no dia de vencimento para o recolhimento do tributo retido de outrem (Art. 2°, II),

no momento da aplicação irregular de incentivo fiscal (Art. 2°, III, IV) etc.

Diferentemente, os tipos penal-tributários materiais, que exigem a efetiva

supressão/redução, instrumentalizada pela fraude, do crédito tributário devido – os crimes do

Art. 1°, da Lei n° 8.137/1990 e do Art. 337-A, do Código Penal – imputam maior relevância à

ação público-administrativa: a consumação116

do crime não mais decorre da realização dos

atos de execução pelo sujeito ativo, dependendo agora de uma valoração jurídico-

administrativa de tais fatos e ações. Somente há crime (resultado materializado) pelo

reconhecimento administrativo da supressão/redução do quantum tributário devido, assim

avultando o papel da configuração administrativa do delito.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante n° 24. A

função normativa e a eficácia erga omnes do juízo uniformizado do Supremo Tribunal

resultam em que, antes do lançamento definitivo do tributo, não se tipifica, não há

STJ. - Recurso a que se nega provimento. ACR 200350010104819 ACR - APELAÇÃO CRIMINAL – 6521 Relator(a)

Desembargadora Federal MARIA HELENA CISNE Sigla do órgão TRF2 Órgão julgador PRIMEIRA TURMA

ESPECIALIZADA Data da Decisão 06/05/2009 Fonte DJU - Data: 01/06/2009 - Página: 61.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). PENAL E PROCESSUAL

PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (ART. 581, I, DO CÓDIGO PENAL). DENÚNCIA. REJEIÇÃO.

JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. PRESENÇA. 1. Em princípio, as condutas de utilizar documentos falsos

durante ação fiscal instaurada para apurar sonegação fiscal praticada por terceira pessoa e prestar declaração falsa ao

fisco com o fim de reduzir ou suprimir tributo são delitos autônomos: um que atenta contra a fé pública e outro contra

a arrecadação tributária. Desse modo, o caso seria de concurso material de crimes e não de conflito aparente de

normas. 2. A certeza de que o documento ideologicamente falso utilizado pelo denunciado em ação fiscal instaurada

contra outra contribuinte serviria de meio para a prática de crime contra a ordem tributária (art. 1°, IV, da Lei no 8.137,

de 1990) e se teria exaurido nesse delito (súmula n° 17 do Superior Tribunal de Justiça) somente pode ser alcançada

com a instrução criminal. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do STJ: HC no 83115/SP, REsp no 503.368/PR

e RHC no 14.635/PR. 3. Precedentes deste TRF: HC no 2.791-PE e HC no 1.207/PE. 4. Precedente do TRF da 1ª

Região: HC no 2007.01.00.008766-1/MG. [...] Processo RSE 200883000036042 RSE - Recurso em Sentido Estrito –

1097 Relator(a) Desembargador Federal Francisco Cavalcanti Sigla do órgão TRF5 Órgão julgador Primeira Turma

Data da Decisão 15/05/2008 Fonte DJ - Data: 14/07/2008 - Página: 302 - Nº: 133 Disponível em

<http://columbo2.cjf.jus.br/juris/unificada/Resposta> Acesso em 12/01/2010. 115

PRADO, Luiz Regis. Curso ..., p. 411. 116

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Penal ..., Art. 14 - Diz-se o crime: Crime consumado I -

consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; ... omissis

25

consumação de crime material117

contra a ordem tributária no sistema jurídico brasileiro.

Fixou-se o entendimento sobre o “lançamento definitivo” – a decisão final do processo

administrativo tributário – dever ser considerada como o marco inicial118

para persecução

penal do crime contra ordem tributária:

“O que verdadeiramente ilide o juízo positivo de tipicidade - quando se cogita de crime

de dano -, é a eficácia preclusiva da decisão administrativa favorável ao contribuinte:

irrevisível essa, corolário iniludível da harmonia do ordenamento jurídico impede que a

alguém - de quem definitivamente se declarou, na esfera competente para a constituição

do crédito tributário, não haver suprimido ou reduzido tributo devido - se possa imputar

ou condenar por crime que tem, na supressão ou redução do mesmo tributo, elemento

essencial do tipo.”119

Nesse quadro, cresce a importância do processo administrativo tributário, pois

somente a partir de seu resultado é que a jurisdição penal pode ser acionada e estará

justificada a persecução do agente da sonegação. A fixação jurisprudencial desse

entendimento desestabiliza um dos pilares do sistema penal processual: aquele que referencia

o Ministério Público como o dominus120

121

da ação penal pública incondicionada, prevista

para os crimes tributários na Lei n° 8.137/1990122

. É a „eficácia preclusiva da decisão

definitiva do procedimento administrativo do lançamento, em favor do contribuinte ou contra

ele‟ que (não)materializa a tipicidade e passa a (não)indicar justa causa para a ação penal pela

prática do crime. Assim, sem que isso implique condicionar o direito de ação do Ministério

Público a uma “representação”123

do agente administrativo, o juízo sobre a (in)existência de

117

A distinção entre crimes materiais (de resultado) e crimes formais fundamenta a restrição expressa no enunciado da

Súmula Vinculante n° 24, cujo âmbito de aplicação é limitado aos tipos penal-tributários materiais. 118

Importante destacar a posição diferenciada adotada pela Suprema Corte brasileira no que respeita aos crimes contra

o sistema financeiro nacional, pois nessa seara, prevalece a tradicional separação entre as vias administrativa e

jurisdicional, sendo desnecessário aguardar a decisão administrativa (do Banco Central, órgão fiscalizador) para iniciar

a persecução penal. Cf. BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes ..., p. 396-397. 119

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 81611 / DF - DISTRITO FEDERAL

HABEAS CORPUS Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE Julgamento: 10/12/2003 Órgão Julgador: Tribunal

Pleno Publicação DJ 13-05-2005 PP-00006 EMENT VOL-02191-1 PP-00084. 120

Idem. Constituição (1988), Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover,

privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; ... omissis 121

Cf. Ibidem. ADI 1571 / UF - UNIÃO FEDERAL AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a):

Min. GILMAR MENDES Julgamento: 10/12/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação DJ 30-04-2004 PP-

00027 EMENT VOL-02149-02 PP-00265. Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 83 da Lei no 9.430,

de 27.12.1996. 3. Argüição de violação ao art. 129, I da Constituição. Notitia criminis condicionada "à decisão final,

na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário". 4. A norma impugnada tem como destinatários

os agentes fiscais, em nada afetando a atuação do Ministério Público. É obrigatória, para a autoridade fiscal, a remessa

da notitia criminis ao Ministério Público. 5. Decisão que não afeta orientação fixada no HC 81.611. Crime de

resultado. Antes de constituído definitivamente o crédito tributário não há justa causa para a ação penal. O Ministério

Público pode, entretanto, oferecer denúncia independentemente da comunicação, dita "representação tributária", se,

por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo. 6. Não configurada qualquer limitação à atuação do

Ministério Público para propositura da ação penal pública pela prática de crimes contra a ordem tributária. 7.

Improcedência da ação. 122

Idem. Lei n° 8.137, de 1990, Art. 15. Os crimes previstos nesta lei são de ação penal pública, aplicando-se-lhes o

disposto no art. 100 do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. 123

Idem. Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996, Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes

contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao

Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário

correspondente.

26

crime em tese para o (não)oferecimento de denúncia deve aguardar a decisão administrativa

sobre a (não)configuração de dano tributário na circunstância124

.

Nos crimes contra a ordem tributária, todos os elementos normativos inseridos nos

tipos – „tributo‟, „contribuição social‟, „acessório‟ (Art. 1°, caput, I), „documento relativo à

operação tributável‟ (Art. 1°, III) na Lei n° 8.137/1990; „contribuição social previdenciária‟

(Art. 337-A, I), „fatos geradores‟ (Art. 337-A, III) no Código Penal – implicam juízos de

valoração que, inicialmente, decorrem da gestão administrativa dos tributos (aplicação da lei

tributária). Assim, por exemplo, a ação livre e consciente de „prestar declaração falsa às

autoridades fazendárias‟ é insuficiente à configuração do crime tipificado no Art. 1°, I, da Lei

n° 8.137/1990. A tipicidade penal desborda da conduta do Particular, pois é exigida à

Administração Pública caracterizar no curso do processo administrativo tributário: 1°) a

falsidade na declaração apresentada ao fisco; 2°) o descumprimento do dever legal-tributário

(voluntariedade, intencionalidade na infração); 3°) a ocorrência de fato gerador de tributo

(mascarado pela declaração falsa). Diferentemente, se fosse admitida apenas a tipicidade

comum da lei geral (por exemplo: tipificação de estelionato ou outra fraude), o crime

resultaria da ação do Particular e o processo administrativo tributário exerceria apenas sua

clássica missão de procedimentalizar a atividade administrativa de lançamento de crédito

tributário.

Então, o processo administrativo tributário sobre fato relacionado a crime contra a

ordem tributária adquire uma determinante função penal: é a validade do auto de infração

(instrumento do lançamento de ofício) e a conclusão do respectivo processo administrativo

que efetivamente constituem a dívida tributária e, assim, consumam o crime e justificam a

ação penal. Somente a declaração administrativa sobre a existência de dívida tributária

caracteriza a tipicidade penal-tributária. A constituição definitiva do crédito demarca a

materialidade criminosa e o termo inicial da prescrição da pretensão estatal – seja na seara

processual civil-tributária125

, seja para a persecução penal126

: a decisão final do processo

124

Nesse sentido, a indicação do próprio Ministério Público Federal, 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, através do

Enunciado nº 20 (Sessão 300ª, de 02.05.2005) Disponível em <http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-

publicacoes/docs_enunciados_recom/enunciados_atuali zados_09062009.pdf> Acesso em 04 de fevereiro de 2009:

Instaurado procedimento investigatório criminal ou inquérito policial para apurar crime tipificado no art. 1º da Lei nº

8.137/90, na hipótese de o membro do MPF decidir por aguardar a decisão administrativa sobre a supressão ou

redução do tributo para promover a denúncia, e mesmo não havendo diligência investigatória que possa ser realizada

antes da decisão administrativa, não se procederá ao arquivamento do investigatório; mas, apenas, o sobrestamento,

com comunicação à Câmara, independentemente de remessa dos autos, devendo estes permanecerem acautelados, para

prosseguimento da persecução penal ou seu arquivamento formal, após solução da pendência administrativa. 125

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966,

Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição

definitiva. ... omissis 126

Idem. Código Penal ..., Termo inicial da prescrição antes de transitar em julgado a sentença final Art. 111 - A

27

administrativo tributário fixa o termo inicial da contagem das prescrições tributária e penal.

Percebe-se que a Súmula Vinculante n° 24 tem uma face dupla: antes de ter

prestigiado a ação fazendária, tratou de reforçar-lhe o ônus de executar o processo

administrativo tributário com regularidade e específica observância do devido processo legal.

Eventual desconstituição do lançamento e a extinção do crédito tributário repercutem

diretamente no crime contra a ordem tributária, invalidando a tipicidade penal-tributária (ou

até excluindo a punibilidade do agente da sonegação).

”[...] em tema de delitos fiscais, o Direito penal não cria uma ilicitude própria, mas sim

seleciona, por meio dos tipos penais incriminadores, os ilícitos fiscais mais graves para, a

partir disso, cominar-lhes uma sanção penal. [...] é que o interesse político-criminal

refere-se muito mais à solvibilidade da dívida fiscal do que, propriamente, à forma como

esta solvibilidade irá ocorrer. Neste caso, o sentido que há de ser dado ao pagamento do

tributo e acessórios, como causa de exclusão da punibilidade, é muito mais relacionado

aos casos em que a lei tributária reconhece a extinção do crédito tributário (art. 156 do

CTN) do que ao sentido de pagamento propriamente dito.” 127

A teoria do delito toma como seu alicerce principal a conduta humana, indicando

a vontade (livre e consciente) como fundamento à responsabilidade penal do indivíduo. Os

ilícitos tributários formam gênero que comporta as infrações administrativo-tributárias e os

crimes tributários, com distintos sistemas de responsabilização. A responsabilização

administrativa por infrações à legislação tributária independe da intenção128

do agente ou da

materialização, natureza e extensão dos efeitos do ato – esta é a disposição do Código

Tributário Nacional, Art. 136. Sendo assim, a validade do lançamento prescinde da indicação

de dolo na respectiva ação infratora do agente. Por isso, a prática administrativa mais comum

é de resumir a imputação da infração tributária a contribuinte – seja pessoa física, seja pessoa

jurídica – desconsiderando a intenção e os atos praticados pela pessoa natural que representa

ou age por conta do ente jurídico.

Diferentemente, a responsabilidade penal somente pode ser imputada a partir da

culpabilidade do agente – nulla poena sine culpa129

130

. A capacidade psíquica de

prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: I - do dia em que o crime se consumou; ...

omissis 127

SCHMIDT, Andrei Zenkner. Exclusão da punibilidade em crimes de sonegação fiscal. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2003, p. 126. 128

AMARO, Luciano. Direito ..., 2005, p. 445: ”Sendo na prática, de difícil comprovação o dolo do indivíduo (salvo

em situações em que os vestígios materiais sejam evidentes), o que preceitua o Código Tributário Nacional é que a

responsabilidade por infração tributária não requer a prova, pelo Fisco, de que o indivíduo agiu com conhecimento de

que sua ação ou omissão era contrária à lei, e de que ele quis descumprir a lei.” 129

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Penal ..., Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o

crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. ... omissis 130

BITENCOURT, Cezar Roberto. Algumas controvérsias da culpabilidade na atualidade. Disponível em

<http://www.novacriminologia.com.br/Artigos/ArtigoLer.asp?idArtigo=2251> Acesso em 28 de julho de 2011:“Em

primeiro lugar, a culpabilidade – como fundamento da pena – refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de

uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal. Para isso, exige-se a presença de uma

série de requisitos – capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade da conduta – que constituem

os elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A ausência de qualquer destes elementos é

28

culpabilidade (vontade de agir) e a consciência da ilicitude do ato são requisitos da lei penal

que somente podem ser verificados em face de pessoa natural. Ademais, os crimes tributários

apenas podem ser materializados mediante conduta dolosa (ação livre e intencionada à

realização da conduta típica), já que não foi positivado nenhum tipo na modalidade culposa.

Então, o sujeito ativo do crime contra a ordem tributária deve ser pessoa natural131

, mesmo

quando o fato gerador e o instrumento do lançamento indiquem pessoa jurídica (contribuinte

autuado) no pólo passivo da obrigação tributária132

. Daí se entender que essa imbricação da

conduta dolosa de pessoa física (gerente, diretor, preposto, mandatário etc. da pessoa jurídica

contribuinte) com o fato gerador de tributo deve ser especificada pelo administrador, já no

auto de infração relacionado a crime contra a ordem tributária. A participação no processo

administrativo tributário da pessoa física relacionada com a pessoa jurídica autuada

(contribuinte)133

pode ser justificada no âmbito da Súmula Vinculante n° 24, a qual imputa ao

administrador o poder-dever de estabelecer os elementos estruturantes do crime tributário – o

que inclui a indicação do agente criminoso.

Com isso, encerra-se indicando que, pelo enunciado jurisprudencial sobre o tema,

é o juízo de valor sobre o ordenamento tributário – atribuição da Administração Pública – que

define a conduta criminosa. Além da ação livre e consciente do sujeito ativo, o tipo penal-

tributário requer a elaboração público-administrativa de sua essência134

. Nesse quadro, a

suficiente para impedir a aplicação de uma sanção penal. Em segundo lugar, a culpabilidade – como elemento da

determinação ou medição da pena. Nesta acepção, a culpabilidade funciona não como fundamento da pena, mas como

limite desta, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de culpabilidade,

aliada, é claro, a outros critérios, como importância do bem jurídico, fins preventivos etc. E, finalmente, em terceiro

lugar, a culpabilidade – como conceito contrário à responsabilidade objetiva. Nesta acepção, o princípio de

culpabilidade impede a atribuição da responsabilidade objetiva. Ninguém responderá por um resultado absolutamente

imprevisível, se não houver obrado com dolo ou culpa.” (grifo do Autor) 131

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei n° 8.137, de 1990, ... Art. 11. Quem, de qualquer modo, inclusive

por meio de pessoa jurídica, concorre para os crimes definidos nesta lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida

de sua culpabilidade. Parágrafo único. Quando a venda ao consumidor for efetuada por sistema de entrega ao consumo

ou por intermédio de outro em que o preço ao consumidor é estabelecido ou sugerido pelo fabricante ou concedente, o

ato por este praticado não alcança o distribuidor ou revendedor. 132

Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Crimes ..., p. 356: “[...] a pessoa física ou natural que, de qualquer modo, inclusive

por meio de pessoa jurídica, concorre para a supressão ou redução do tributo, praticando uma das condutas descritas

em um dos incisos do art. 1 º da Lei nº 8.137/90, incide nas penas nesse dispositivo cominadas, na medida do dolo com

o qual tenha atuado. A participação no cometimento criminoso, no caso, há de ser dolosa. Aquele que concorre

culposamente não pode ser sujeito passivo do crime contra a ordem tributária, que somente existe como crime doloso.” 133

Incluir a pessoa natural no pólo passivo do processo administrativo tributário também finca na circunstância

original a justificação para sua responsabilidade tributária subsidiária, nos termos do Código Tributário Nacional, Art.

134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem

solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: ... omissis III - os

administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes; IV - o inventariante, pelos tributos devidos pelo

espólio; V - o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário; ... omissis VII -

os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas. ... omissis Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos

créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de

lei, contrato social ou estatutos: I - as pessoas referidas no artigo anterior; II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. 134

Essa materialização da tipicidade a partir da filtragem administrativa é criticamente percebida também na

29

crítica aos crimes tributários implica revisão/adaptação de categorias dogmático-penais

construídas para o tradicional modelo de criminalidade individual da sociedade do século

XIX, já que hodiernamente (na sociedade pós-industrial, complexa e com riscos135

) a

estruturação normativo-jurídica dos sistemas sociais reserva à Administração Pública a função

de construir itens essenciais à configuração das infrações tributárias, inclusive quando

delituosas136

. Daí se inferir que a gestão social delimitada pela Constituição de 1988, Art. 3°,

é um dos fundamentos para a apontada função penal do processo administrativo tributário nos

crimes contra a ordem tributária.

Conclusão

1. A Constituição de 1988 indica que a participação do cidadão e a função social de suas

ações são parâmetros indeclináveis na análise da validade do direito positivado. A justificação

para o juízo de desvalor da conduta que objetiva burlar o dever tributário deve ser feita em

estreita relação com os princípios regentes da ordem tributária: se a lei (legalidade) impõe a

obrigação (tipicidade) de contribuir para o financiamento social (solidariedade) àqueles

(igualdade) que detêm a capacidade econômica para fazê-lo (capacidade contributiva), a

utilização de fraudes para fugir a esse dever é ilícito grave, assim legitimando a

criminalização, já que tais condutas infracionais visam atingir a própria organização social em

seu arcabouço. Observa-se uma violação à solidariedade indicada como estrutura e objetivo

do Estado brasileiro de 1988.

2. A conduta de não pagar o quantum tributário devido não configura crime. A criminalização

responde à utilização de fraudes e omissões para evadir-se do dever de contribuir à

coletividade. Daí a similitude dos crimes contra a ordem tributária com o estelionato – figura

penal cuja tipificação é considerada legítima. É precisamente o componente de sociabilidade

inerente ao bem jurídico dos crimes contra a ordem tributária que confere um mais elevado

grau de legitimidade a tal tipificação. E se a pena máxima imputada (in abstracto) ao crime

deve ser critério de aferição da ofensividade social da conduta, o legislador equipara a burla

criminalidade econômica. Cf. CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle ..., p. 287:”No âmbito investigado,

verifica-se que é o Banco Central quem decide, fundamentalmente, quais são os fatos que geram prejuízo ao sistema

financeiro e que pessoas deverão se submeter à repressão penal. A seleção básica é feita mediante o uso de parâmetros

pouco transparentes e dificilmente questionáveis em face do sigilo bancário. A quantificação e a qualificação das

condutas excluídas é impossível. Mas, por alguns exemplos indicados, pode-se inferir que a filtragem é generosa. O

que resta é muito pouco: uma média de 76 casos por ano em todo o Brasil”. 135

Cf. SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade ..., p. 120-121. 136

Assim também, no crime de evasão de divisas (Lei n° 7492/86, Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada,

com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. ... omissis). Se

o Banco Central (autoridade administrativa de fiscalização) reconhece que a operação cambial fora autorizada e

arquiva o procedimento administrativo, não há justa causa para a persecução criminal. Cf. BALTAZAR JÚNIOR, José

Paulo. Crimes ..., p. 383.

30

tributária ao estelionato, já que indica a reclusão por até cinco anos para ambos os crimes.

Também por esse fator é que se vislumbra um fundamento ético nessa criminalização, à

medida que a conduta proibida é a utilização de fraudes para causar prejuízo a outrem – seja a

um Particular (estelionato), seja ao grupo social (crimes tributários). Contudo, os crimes

contra ordem tributária devem receber um tratamento dogmático coerente com tutela de bens

coletivos (supraindividuais), pela danosidade social inserta nesses comportamentos ilícitos.

3. A estrutura dos tipos dos crimes tributários perfaz-se intricada porque essencialmente

dependente das normas de direito tributário. E essa estruturação normativo-jurídica do sistema

tributário reserva à Administração Pública a função de construir itens essenciais à

configuração do delito. Então, além da conduta livre e consciente do sujeito ativo, o tipo

penal-tributário requer a elaboração público-administrativa de sua essência. Todos os

elementos normativos inseridos nos tipos implicam juízos de valoração que, inicialmente,

decorrem da gestão administrativa dos tributos (aplicação da lei tributária). A consumação de

crime material não mais decorre dos atos executados pelo sujeito ativo, dependendo agora de

uma valoração jurídico-administrativa de tais fatos e ações: somente há crime (resultado

materializado) pelo reconhecimento administrativo da supressão/redução do quantum devido.

Com isso, o processo administrativo tributário exerce uma relevante função penal.

4. Fixou-se o entendimento sobre a decisão final do processo administrativo tributário ser

considerada como o marco inicial para persecução penal do crime contra ordem tributária.

Disso se conclui que a Súmula Vinculante n° 24 tem uma dupla vertente: além de ter

prestigiado a ação administrativa, reforçou o ônus de executar o processo administrativo

tributário com regularidade e específica observância do devido processo legal. Eventual

desconstituição do lançamento e a extinção do crédito tributário repercutem diretamente na

seara criminal, invalidando a tipicidade penal-tributária (ou até excluindo a punibilidade do

agente da sonegação).

5. Encerra-se com menção à função institucional de controle de legalidade da atividade

administrativa, indicando à Procuradoria Fazendária atentar para a função penal do processo

administrativo tributário e, se necessário, recomendar à autoridade administrativa: a) a

inclusão no pólo passivo do processo administrativo tributário da pessoa natural que realizar a

conduta típica de crime contra a ordem tributária, mesmo quando contribuinte seja a pessoa

jurídica relacionada; b) a prioridade no julgamento administrativo do caso, se o ordenamento

estadual não contiver previsão de ordem preferencial ou não incluir o crime tributário como

critério distintivo, à consideração de que somente o juízo administrativo pode perfazer a

tipicidade penal na circunstância.