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6672 CRISE DE IDENTIDADE DO CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE: AJUSTE “DE FUSO” DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE * IDENTITY´S CRISIS OF THE BRAZILIAN´S DIFFUSE WAY ON THE CONSTITUTIONALITY FISCALIZATION: HERMENEUTICAL ADJUSTMENTS Mauricio Martins Reis RESUMO O presente artigo defende a necessidade de se operar a distinção, em termos sistemáticos, com base em precedentes do Supremo Tribunal Federal, entre o julgamento que declara a inconstitucionalidade da lei, suscetível de incidência e aplicação ao caso concreto, e a propriamente dita decisão inconstitucional. Esta última categoria, sob o nome de interpretação conforme, deve ser entendida de maneira autônoma, ensejando uma fiscalização genuinamente concreta, nos marcos de uma interpretação concretizadora jurisprudencialista, ao assumir serem as relações de constitucionalidade bem mais complexas do que o enquadramento binário abstrato – e hermético – de conformidade ou inconformidade de meros textos jurídicos. Propõe-se, pois, uma genuína hermenêutica constitucional insuscetível a reducionismos metodológicos despistadores da diferença ontológica entre texto e norma. PALAVRAS-CHAVES: CONSTITUIÇÃO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE – INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ABSTRACT The present article defends the necessity of operating the distinction, in systematic terms, based on Brazilian’s Supreme Court precedents and regarding to the lines of the proper Constitution, between the judgment that declares the unconstitutionality of the law, susceptible of incidence and application to the concrete situation, and itself the unconstitutional decision. This last category, under the name “interpretation according to the Constitution”, must be understood in an independent way, like a concrete fiscalization genuinely, according to an interpretation that considers a law while connected to its application-to-the-problem, assuming to be that relations of constitutionality are well more complex of what the binary framing abstract conformity of singelous legal texts. Our purpose seems to legitimate a combative constitutional hermeneutics in order to fight against methodological doctrines which decline the substantive difference between norms (interpretations) and legal texts. * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

CRISE DE IDENTIDADE DO CONTROLE INCIDENTAL DE ...de atributos indispensáveis ao sistema misto de constitucionalidade adotado pelo Brasil. ... não é menos acertada a tese de que

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CRISE DE IDENTIDADE DO CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE: AJUSTE “DE FUSO” DO CONTROLE DIFUSO

DE CONSTITUCIONALIDADE*

IDENTITY´S CRISIS OF THE BRAZILIAN´S DIFFUSE WAY ON THE CONSTITUTIONALITY FISCALIZATION: HERMENEUTICAL

ADJUSTMENTS

Mauricio Martins Reis

RESUMO

O presente artigo defende a necessidade de se operar a distinção, em termos sistemáticos, com base em precedentes do Supremo Tribunal Federal, entre o julgamento que declara a inconstitucionalidade da lei, suscetível de incidência e aplicação ao caso concreto, e a propriamente dita decisão inconstitucional. Esta última categoria, sob o nome de interpretação conforme, deve ser entendida de maneira autônoma, ensejando uma fiscalização genuinamente concreta, nos marcos de uma interpretação concretizadora jurisprudencialista, ao assumir serem as relações de constitucionalidade bem mais complexas do que o enquadramento binário abstrato – e hermético – de conformidade ou inconformidade de meros textos jurídicos. Propõe-se, pois, uma genuína hermenêutica constitucional insuscetível a reducionismos metodológicos despistadores da diferença ontológica entre texto e norma.

PALAVRAS-CHAVES: CONSTITUIÇÃO – CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE – INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

ABSTRACT

The present article defends the necessity of operating the distinction, in systematic terms, based on Brazilian’s Supreme Court precedents and regarding to the lines of the proper Constitution, between the judgment that declares the unconstitutionality of the law, susceptible of incidence and application to the concrete situation, and itself the unconstitutional decision. This last category, under the name “interpretation according to the Constitution”, must be understood in an independent way, like a concrete fiscalization genuinely, according to an interpretation that considers a law while connected to its application-to-the-problem, assuming to be that relations of constitutionality are well more complex of what the binary framing abstract conformity of singelous legal texts. Our purpose seems to legitimate a combative constitutional hermeneutics in order to fight against methodological doctrines which decline the substantive difference between norms (interpretations) and legal texts.

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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KEYWORDS: CONSTITUTION – CONSTITUTIONALITY FISCALIZATION – CONSTITUCIONAL INTERPRETATION

O Supremo Tribunal Federal vem negligenciando em suas últimas decisões uma série de atributos indispensáveis ao sistema misto de constitucionalidade adotado pelo Brasil. Por um lado, isto representa sério problema jurisdicional, pela ausência do cumprimento de pressupostos até então solidamente incorporados na prática judiciária e na doutrina especializada. Por outro, nesta alegada crise de identidade, cuja incidência no controle difuso será alvo das presentes linhas, insurge momento e espaço oportunos para cogitar da pertinência e manutenção de algumas premissas metodológicas tidas como absolutas.

Em primeiro lugar, o Tribunal de Cúpula brasileiro começa a cogitar da dispensabilidade de resolução senatorial (artigo 52, inciso X, da Constituição de 1988) para efeito de atribuir efeitos gerais (erga omnes) nos julgamentos particulares (inter partes) nos quais a lei reguladora do caso concreto foi decretada inconstitucional.[1] Nada obstante controvérsias existirem acerca do âmbito de projeção desta medida legislativa, ou seja, se a resolução, uma vez emanada do Senado para generalizar os efeitos de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, resulta tão-só declaratória (retroatividade da decisão, ex tunc) ou de cunho predominantemente constitutivo (prospectivo, ex nunc), o núcleo das indagações aqui formuladas quer abraçar o aspecto interno da própria decisão de constitucionalidade. Ou seja, qual a compreensão dada ao que se convencionou denominar controle incidental, por via de exceção, ou difuso em termos decisórios, naquele comprometimento hermenêutico de resolução efetiva dos casos particulares?

O controle de constitucionalidade almeja por certo aprimorar as leis existentes no ordenamento jurídico, ora repudiando aquelas eivadas do vício maior de inconstitucionalidade,ra maior de inconstitucionalidadeo vja por certo aprimorar as leis existentes no ordenamento jurormativo, resulta declarat ora inoculando outras de reiteradas argüições de desconformidade ao Texto Maior. Note-se bem, a fiscalização de constitucionalidade repousa em firme terreno de abstração, quando a fonte normativa resulta questionada pela sua alegada contrariedade ao texto fundamental. Mesmo quando a questão é suscitada em dado processo, em caráter preliminar ao deslinde da causa sob julgamento, a resposta jurisdicional se resume à ambivalência (código binário) de constitucionalidade / inconstitucionalidade da lei.[2]

Em face disso, passa a ser natural que as denominadas decisões interpretativas, oriundas deste controle abstrato, quando o STF ressalva sentidos ou significados ao texto normativo combalido pela mácula de incongruência à Carta Magna, adquiram formato subsuntivo refratário ao paradigma hermenêutico do século XX. A interpretação conforme a Constituição, por exemplo, foi consagrada de maneira metafísica, para não dizer imprestável, de modo a subsumir do texto de lei, aquele ao qual se atribui a qualidade de plurissignificativo, hipótese unívoca – e vinculante – de adequação aplicadora. Se é certo que o juízo de constitucionalidade não se cinge à manifestação abstrata da procedência do texto legislativo em virtude da força suprema da Constituição, não é menos acertada a tese de que eventual filtragem hermenêutica mereça ser conduzida ao seu lugar natural, qual seja, a própria situação sub judice. Trata-se, pois, de melhor sistematizar o próprio controle de constitucionalidade no âmbito abstrato de seu objeto de análise e coaduná-lo aos esforços interpretativos de compatibilizar as decisões jurídicas ao trato axiológico da Constituição.

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Quando o STF, na hipótese descrita acima, vislumbra abdicar da participação do Senado na chancela de generalização dos efeitos da inconstitucionalidade, há de se desdobrar, pelo menos, duas conseqüências normativas em nada comuns: a) o julgamento defere ser a lei inconstitucional; b) o julgamento defere que a lei tem de ser interpretada de tal forma – tanto para atribuir-lhe quanto para lhe retirar hipóteses de aplicação – para que a sua constitucionalidade se legitime preservada.

Na primeira hipótese, o controle difuso de constitucionalidade nada mais concretiza do que especificar – até atalhar – a idêntica pretensão contida no controle concentrado, qual seja, a de predicar à lei o seu vício congênito, de sorte a evitar qualquer interpretação dela porventura passível. Claro, como já o dissemos, dada a lei inconstitucional, tem-se duas perguntas bastante problemáticas: a) quanto à extensão temporal dos efeitos da inconstitucionalidade, inclusive em vista de decisões transitadas em julgado (tanto no controle difuso quanto no concentrado); b) quanto à qualidade de o controle difuso poder repercutir, sem a resolução do Senado, eficácia contra todos. Ao nosso sentir, no primeiro exemplo, quando a jurisdição constitucional decreta a inconstitucionalidade do texto normativo pela via do controle incidental, no caso concreto, é consectário lógico a natural expansão dos efeitos para todos, porque nos parece absurda a convivência desta realidade com situações várias pendentes de julgamento em que a lei – lá declarada inconstitucional ab initio – preserva a sua aptidão de tutelar os respectivos casos. Outra situação, de difícil ponderação, repousa nas decisões já transitadas em julgado com base naquela lei, ulteriormente declarada como inconstitucional. Existem critérios que hoje informam regras dos mais variados matizes: desde a postura absoluta, aberta (lei inconstitucional autoriza a rediscussão do caso a qualquer tempo) ou fechada (uma vez transitada em julgado a decisão, nada se pode fazer), à relativa, quando se contaria prazo para a propositura de ação rescisória até dois anos após a decretação do vício de inconstitucionalidade.

Portanto, quando a jurisdição constitucional apura, na sua mais autorizada Corte, a incompatibilidade do preceito normativo em virtude da Constituição, seja em controle difuso ou concentrado, nasce idêntico resultado no que se refere à extensão prospectiva daquele efeito para os demais casos nos quais se veicula pretensão aduzida com causa de pedir na lei dita inconstitucional. A distinção consagrada, portanto, entre os dois expedientes não tem, assim, a relevância prática que comumente se lhe confere[3], uma vez que, em se tratando de declaração de inconstitucionalidade, o julgamento levado a efeito pelo Tribunal está plenamente desvinculado do processo originário, como já leciona Klaus Schlaich, citado por Gilmar Ferreira Mendes.[4] A condição de autonomia ou objetividade do controle de constitucionalidade normativo (da lei) já é atributo inerente à fiscalização direta; quando se trata do expediente difuso, releva perquirir se a premissa do alegado vício contamina o ato normativo propriamente dito ou eventual interpretação sua, quando naquela hipótese, e tão-somente nela, a conseqüência jurídica se revela idêntica ao controle concentrado.

Compreender que a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo consubstancia antecedente lógico para a solução da controvérsia não implica afirmar, pelo fato de ali ter incorrido dito contraste entre dois parâmetros normativos, que a inconstitucionalidade nascera na lide e, portanto, redunda circunscrita àquelas partes. O caso concreto foi apenas o ensejador de aparecimento da mácula, cujos efeitos devem transcender aos limites processuais do litígio. Este discernimento inclusive facilita outra conclusão de importância invulgar, qual seja, as decisões que aplicam a

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Constituição pelo aporte interpretativo de sua necessária filtragem diante do ordenamento vigente não se sujeitam ao instituto da suspensão executiva da lei pelo Senado da República. Em virtude das decisões interpretativas emanadas da jurisdição, principalmente em sede de interpretação conforme ou constitucionalmente adequada, exatamente porque se está tratando de uma adjudicação de sentido tendente à resolução eficaz e correta do conflito sob julgamento, não se poderia cogitar de expediente generalizante, exatamente em virtude da especificidade ou concretude hermenêutica a justificar a fiscalização concreta da constitucionalidade na aplicação das leis.[5]

Ressalve-se, contudo, que não se conclui daí serem ambos os formatos de finalidade una, a se cogitar ser um ou outro inócuo, porque ao controle concentrado, em regra, se atribui a capacidade de cassar todos os efeitos, pretéritos inclusive, produzidos pela lei julgada inconstitucional. Já no controle difuso, entretanto, dita generalização erga omnes recebe, ao nosso ver, indispensável corte cronológico, ao assumir doravante ao julgamento particular a propagação subjetiva dos efeitos lá consagrados. Em verdade, nem mesmo a resolução senatorial poderia prescrever à decretação difusa de inconstitucionalidade eficácia retroativa, pois esta é qualidade típica do controle concentrado de constitucionalidade, pelo menos no vértice norte-americano da nulidade da lei inconstitucional.

Assim sendo, a única situação de equiparação possível entre o controle concentrado e o difuso se dá em duas circunstâncias concomitantes: a) quando o controle difuso afasta a incidência da lei pela consideração de sua inconstitucionalidade abstrata; b) quando o controle concentrado sofre a modulação (temperamento) temporal de seus efeitos, por força do artigo 27 da lei 9.868/99, ao possibilitar que oito Ministros do STF se manifestem pela inconstitucionalidade superveniente, optando pela preservação dos atos até então praticado sob a égide daquela legislação.[6]

Muito diferente é a situação ventilada na hipótese b supra, em que o STF contempla ao julgamento uma dimensão hermenêutica de razoabilidade, de modo a fazer valer uma interpretação da lei, em vez de rechaçá-la em abstrato. Nestes casos, pela própria natureza da indissociabilidade entre interpretação e caso concreto, não se pode cogitar, sequer por medida legislativa (resolução), automática replicação de efeitos sem qualquer ponderação com vista a adequar – se for o caso – o estado decidido com o processo pendente de julgamento. Parece-nos ser este o caso do julgamento acerca da Lei dos Crimes Hediondos: nele o STF, fugindo de tendência consolidada há mais de quinze anos, pela mais apertada maioria considerou ser o artigo 2º inconstitucional e, em vista disso, atribuiu ao recorrente o direito de progredir de regime prisional.

O que houve neste caso não foi propriamente a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo em questão. Estamos diante de típica decisão interpretativa ou constitucionalmente adequada – para discernir da opaca e metafísica interpretação conforme tal qual discorrida pela doutrina constitucional – na qual se decidiu – com acerto – que será inconstitucional toda a aplicação mecânica do artigo 2º, como se o condenado por crime hediondo não tivesse a possibilidade de, em atendendo aos pressupostos da execução penal, ter para si o direito fundamental de individualização da pena a propiciar a progressão de regime. Ou seja, o STF, longe de ter abolido as situações em que o apenado cumprirá integralmente em regime fechado a sua sanção, apenas condicionou ditos casos ao exame pormenorizado da peculiar condição do agente, mediante o atendimento das regras e princípios da execução penal

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(inclusive o exame criminológico, ao nosso juízo). A conclusão é dada inclusive por Lenio Streck, ao comentar o julgamento dos crimes hediondos:

(...) o Supremo Tribunal Federal, em termos de modulação da decisão, afirmou que, na hipótese de haver alguém cumprindo pena, o juiz em sede de execução penal, devidamente comprovados os requisitos subjetivos e objetivos, poderá, aferindo o caso concreto, deferir a progressão. (...) é preciso assinalar, independentemente do acerto ou erro da decisão do Supremo Tribunal Federal, que, a partir do julgamento, não basta ao apenado cumprir o requisito objetivo de um sexto da pena e ter bom comportamento carcerário (...) para ter direito à progressão de regime carcerário (...).[7]

O que não pode o STF fazer é confundir o controle abstrato, na sua repercussão difusa, com a interpelação interpretativa inevitável dos sentidos normativos que se possam emanar contextualmente das leis e atos normativos quando de sua aplicação.[8] Atualmente observa-se que em determinados julgamentos o Tribunal força ter havido o controle difuso quando em verdade ocorreu o que denominamos controle concreto ou hermenêutico. Em recente enunciação sumular, com força vinculante, o Tribunal de Cúpula brasileiro fez assentar equívoca presunção, ao tomar inconteste como exercício de controle de constitucionalidade difuso, suscetível das regras de uniformização de jurisprudência, toda e qualquer decisão que contrarie o dispositivo legal, ou melhor, o sentido tomado como incontroverso no tocante à respectiva interpretação.[9] Tudo isto com o objetivo de, ao tornar uma discussão hermenêutica em singela questão de direito, afeta à declaração pura e simples de inconstitucionalidade, para além de pacificar a jurisprudência, destroçá-la às raízes, como se a) de uma lei constitucional apenas nasce uma interpretação constitucional; b) de uma lei inconstitucional, leia-se, que possa permitir outras interpretações, embora razoáveis e de nítido alcance interpretativo constitucional, presume-se a sua imprestabilidade.

Quando o Professor Streck assevera que as decisões do controle difuso não possuem autonomia, porque “dependem do socorro do Poder Legislativo para adquirir força vinculante erga omnes”, temos de diferenciar os julgamentos e as respectivas modulações hermenêuticas.[10] Por exemplo, para citar modelos utilizados pelo próprio autor, a decisão que decreta ser a lei dos crimes hediondos inconstitucional no que tange ao princípio da impossibilidade absoluta de progressão de regime prisional consiste em situação antitética – na cisão entre controle abstrato e concreto – ao julgamento do qual emana a tese de que “somente são hediondos os crimes sexuais cometidos com lesão grave ou morte”.[11] No primeiro caso, estamos diante de uma decisão de inconstitucionalidade abstrata: a tese ora repudiada é a de que a pena por crime hediondo será integralmente fechada para todas as situações.[12] Já o segundo exemplo condecora a) uma decisão interpretativa, b) de índole positiva, cuja valia em termos de precedente vinculante é inclusive questionada no âmbito da fiscalização concentrada pelos próprios precursores da hermenêutica filosófica enfatizada no processo de aplicação do direito (diante da decretação de constitucionalidade da lei por força da procedência da ADC ou da improcedência da ADIN, ou mesmo na situação de interpretação conforme para efeito de salvaguardar o ato normativo no interior do ordenamento jurídico).

A proposta elementar da hermenêutica filosófica, reivindicada por Hans-Georg Gadamer em homenagem à universalidade do “como” existencial heideggeriano, ao atender o caráter antecipador da compreensão em todas as manifestações humanas,

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mormente no saber prático jurídico, coincide com a reviravolta paradigmática da linguagem como condição de possibilidade da constituição dos sentidos. E mesmo quando a sobrecarga da teoria jurídica contemporânea se volta para a decisão, especialmente nos tratados sobre a argumentação jurídica, não se consegue exaurir o suporte de compreensão a partir do qual determinado caminho foi tomado.[13] Toda a explicação se tornou insuficiente para carregar consigo a pretensão de explicitar em plenitude as razões pelas quais se adotou certo sentido: a dobra da linguagem denuncia, aqui, a insuficiência do procedimento, a dicotomia justificação interna e externa, a duplicidade dos níveis de racionalidade e a articulação recíproca entre regras e princípios. Especificamente no plano esmiuçado da aplicação jurisdicional, o controle de constitucionalidade passa a esboçar desdobramentos até então subestimados, como a desincompatibilização da interpretação conforme enquanto diretriz hermenêutica na resolução dos casos concretos (para alguns, interpretação constitucionalmente adequada) em vista dos cânones objetivos de fiscalização abstrata da norma jurídica.

A perspectiva hermenêutica adotada para efeito de se empreender análise da jurisdição constitucional abraça o vetor da “filosofia hermenêutica”, a distanciar-se, então, seja da “teoria hermenêutica”, seja da “hermenêutica crítica”.[14] Isto porque a primeira, ao proclamar-se “teoria”, escorre para o vício metafísico de concluir por uma objetiva e pura metodologia interpretativa. No que tange à hermenêutica dita crítica, contundentemente construída de acordo com as pretensões universais da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, apesar das ótimas repercussões no bojo da teoria democrática do Estado de Direito, parece ser ela tributária em demasia dos cânones procedimentais articuladores do discurso legal.

A genealogia da proposta gadameriana remonta aos seminários de Heidegger acerca da hermenêutica da facticidade, articulados desde os idos da década de vinte.[15] Acontece que a autonomia conquistada, por primeiro, pela fenomenologia hermenêutica e, por segundo, pela hermenêutica filosófica, vem sendo juridicamente desconsiderada por fatores discutíveis contra Heidegger e, conquanto por hipótese comprovados, indevidamente projetados em detrimento do inegável fundamento filosófico cuja contribuição convém aos seus detratores destroçar. A alegada adesão deste filósofo ao nazismo é matéria de contumaz e pujante literatura, tanto num ou noutro sentido, dubiedade já impossibilitadora de qualquer conclusão em caráter definitivo. Contudo, ainda que cogitando desta pessoal vinculação, há de se sublinhar a independência e sobriedade do legado filosófico heideggeriano, do qual se pode, sem qualquer prejuízo para efeito argumentativo, fundar determinada categoria de pensamento em iguais condições de contraposição às demais outras.[16]

Merece total desabono, assim, a categorização epistemológica que Álvaro de Souza Cruz com o intuito de fazer crer que as conjecturas acerca das “colorações nacional-socialistas” em determinado momento de vida de Heidegger possam ser evidenciadas como um corrente de pensamento em relação à sua obra.[17] A polêmica a que o autor se refere apenas se cinge, como dito alhures, às preferências pessoais do filósofo, em nada podendo contaminar as linhas de seu pensamento, sobre as quais, ressalte-se, muito se escreve, por exemplo, como sendo tributárias ao sentido ético do cuidado humano.

A hermenêutica filosófica arraigada nas linhas-mestras do pensamento de Gadamer indelevelmente contrapunha a mais óbvia das críticas, qual seja, a dificuldade

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– suposta ou alegada – em se empreender algum filtro de validade ou senso racional capaz de discernir os prejuízos autênticos dos inautênticos no emaranhado da situação histórica.[18] Nas palavras do próprio filósofo: “Nós temos de nos confrontar constantemente com a pergunta sobre como, em face do começo da consciência histórica, ainda se poderia exigir validade de verdade de uma obra filosófica de pensamento”.[19] No especializado trato da concretização judicial por meio da aplicação, onde os textos se transformam em normas de decisão, sobressai o problema da contenção decisória em termos de limites interpretativos: em que medida o texto da norma resulta subvertido semântica e pragmaticamente através das decisões?

O problema está na estirpe criteriosa dos argumentos dirigidos contra a dimensão constitutiva da interpretação (jurídica) e da indelével genuína vocação normativo-problemática dos casos decidendos, cuja potencialidade hermenêutica permite, fundamentadamente, que mesmo elementos integrantes do ordenamento jurídico, por demais abstratamente exaurientes quanto ao suporte fático neles consagrado, sofram influxos de conformidade interpretativa a lhes capacitar redefinição.[20] Desse modo, identificar o desencontro entre a decisão dos órgãos de aplicação jurídica e as normas passíveis de generalização a partir do respectivo texto normativo a ponto de ali cogitar alguma degradação semântica e pragmática significa a consagração do unívoco sentido da lei da clássica metafísica jurídica de cunho positivista.[21] A desconexão entre regra e decisão, em si, não é impossível nos moldes da hermenêutica filosófica, sendo, aliás, desejável para o filtro de validade das decisões jurídicas, desde que verificada por oportunidade da própria realização interpretativa, e não em juízo preliminar com base nos domínios semânticos da norma jurídica.[22]

Por exemplo, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira reforça tal diferença ontológica – a do plano de validade e a do plano de adequação, também formulada nos discursos de fundamentação e os de aplicação – ao descrever a contumaz confusão de questões argumentativas ligadas à validade das normas jurídicas e à sua adequabilidade para a solução dos casos concretos.[23] No âmbito de uma teoria jurídica contemporânea cujo enfoque aponta para a jurisdição constitucional, bem como para a concretização dos direitos fundamentais, tendo em vista o hodierno cenário da sobrecarga da decisão, pela crescente intervenção pragmática do papel decisório de juízes e tribunais e pelo progressivo interesse teórico-dogmático no tema da argumentação jurídica, parece-nos ultrapassada a controvérsia entre procedimentalistas e substancialistas no que toca à legitimidade do sujeito (instituição) responsável pelas decisões mais emblemáticas nesta tensão ínsita ao Estado Democrático de Direito. Isto porque a decisão passou a incorporar autonomia em termos de razoabilidade conteudística, conquanto por vezes limitada ao questionamento formal, em detrimento de indagações que atrelem à sua genealogia o ponto arquimédico da correspondente viabilidade constitucional-democrática.

Não por outro motivo se encontram vozes despertadoras da realização de uma hermenêutica processual de acordo com a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, de modo a incrementar, além do próprio controle de constitucionalidade das leis, no seu aspecto de incongruência textual e abstrata, o espaço de interpretação das leis de acordo com a Constituição. Nesse sentido, trata-se de conformar o próprio conteúdo das decisões aos princípios constitucionais dotados de fundamentalidade, na esteira da constitucionalidade hermenêutica exigida pela Constituição da República por ocasião da suscetibilidade de decisões que a contrariem serem objeto de recurso extraordinário

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(artigo 102, inciso III, alínea a). Ora, existem hoje trabalhos de processualistas que hoje ressaltam a importância desta genuína hermenêutica constitucional, muito embora não concluam, como o faz Lenio Streck, da necessidade de a interpretação conforme, enquanto figuração interpretativa do existencial caso concreto, ultrapassar a exclusiva competência do controle concentrado (artigo 28, in fine, da Lei 9.868/99), passando a ser condição inerente da aplicação jurisdicional.[24]

Poder-se-á demonstrar não ser trivial a compreensão – quiçá aplicação – do instituto aqui debatido (interpretação conforme na modalidade hermenêutica da interpretação constitucionalmente adequada), na medida em que há autores cujo estudo, embora proficiente do ponto de vista estritamente teórico, resvala em inaceitáveis conclusões. Veja o caso da obra “Por uma Teoria dos Princípios”, quando o autor, ao sufragar a tese – a nosso ver, adequada à luz da hermenêutica filosófica – acerca da ponderabilidade de princípios e regras (p. 49 e XXXIII, quando da nota à segunda edição), padece em contradições ao fazer coro à tese de que a interpretação conforme somente é viável nos casos de polissemia da lei (p. 263), ou, então, ao dizer serem os casos fáceis suscetíveis à “única resposta correta”, em oposição aos casos difíceis, quando é possível propor mais de uma resposta adequada (p. 196).[25] Se as regras, contrario sensu, comportassem exclusivo significado, como se poderia concluir que delas emana, mediante interpretação aplicadora, eventual abertura por meio de ponderação?

A polissemia interpretativa, contudo, ainda se ressente de influências estritamente arraigadas na estrutura literal dos atos normativos, ao ponto de existirem limitações conjugadas sob a forma de princípios hermenêuticos, como se pode verificar na voz eloqüente de J. J. Gomes Canotilho: “o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição mas ‘contra legem’ impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais”.[26] O que se pode observar é o dissídio de conformação constitucional entre o poder judicante (decisão judicial) e o poder legislativo (legislação), ou, noutras palavras, entre a interpretação conforme – entendida como a aplicação constitucionalmente adequada ou correta – e a interpretação da constituição conforme as leis. É claro que não se trata de uma alternativa excludente e peremptória; advirta-se com Ramos Tavares que não se pode confundir a diretriz hermenêutica de supremacia constitucional, segundo o que as leis devem ser interpretadas em consonância ao Texto Maior, “com a possibilidade existente – e de resto jamais contestada – de que a lei pode integrar a vontade da Constituição”.[27]

O tema da interpretação conforme, destarte, assume foro de importância transcendente às técnicas de decisão adotadas pela jurisdição constitucional, quando ali se pode deduzir espectro stricto sensu tendente a modular os efeitos da decretação de inconstitucionalidade, homenageando e preservando as leis aprovadas nos marcos da representatividade democrática de inegável expressão da vontade popular.[28] Ocorre que a interpretação conforme abrange o próprio tema da concretização judicial, quando ao juiz, em derradeiro, compete dar sentido ao caso diante da lei, da realidade (contexto) social e da Constituição, considerando as necessidades de direito material nele envolvidas.[29]

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A trama, a rede, a espiral hermenêutica de cuja universalidade (ubiqüidade) não se pode renunciar, quanto o mais para o panorama jurídico (o Direito), conquanto sua força sistêmica proclame no mais das vezes autonomizar a deontologia em desprestígio do correspondente (e inegável) anteparo axiológico, parece ainda não ter bem repercutido no contexto do controle de constitucionalidade. Quando hoje se convoca, em prol de uma nova teoria das fontes, o potencial hermenêutico dos princípios constitucionais para efeito de melhor irradiar (contaminar) os valores da Constituição no processo judicial, não se está, apenas, fiscalizando a procedência das leis ou atos normativos na sua conformidade com o Texto Maior. A justiça constitucional certamente abriga a própria constitucionalidade das decisões que ultimam o processo, muito além, portanto, da (não menos importante) chancela dos dispositivos legais em vista do teor constitucional. Dizer que todo o juiz é juiz constitucional é tornar redundante o exercício do controle difuso de constitucionalidade, limitável pelo desempenho da fiscalização concentrada ou direta pelo STF, e enfatizar, sobremaneira, a intangibilidade da interpretação constitucionalmente adequada, insuprimível pelo manto da razoabilidade judicativa, pelo atendimento dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da devida fundamentação judicial e, se for o caso, da recorribilidade.[30]

Na tentativa de abolir a meta finalística da melhor exegese, haveria, ao lado da obsoleta teoria da unívoca intentio auctoris ou intentio legislatoris, apenas duas outras estratégias: (a) ou se afirma que todas as interpretações são erradas; (b) ou se sustenta que todas são igualmente boas. Em qualquer das hipóteses, o caminho tomado conduz, fatalmente, a uma idêntica e desenganadora contradição performativa. A teoria de que todas as interpretações são ruins faz dela mesma uma exegese equivocada: se todas erram, também ela, obrigatoriamente, claudica. (...) Já a tese oposta, e bastante liberal, de que todas as exegeses são boas, destrói a si mesma, transformando cada interpretação em regra autônoma, onde o vazio se projeta como o único sentido da lei.[31]

Em percuciente artigo de crítica à tendência do STF em cogitar da dispensabilidade do artigo 52, X, quando do próprio controle difuso emanariam efeitos erga omnes em caráter vinculante, da lavra dos Professores Lenio Streck, Martonio Barreto Lima e Marcelo Cattoni de Oliveira, depreende-se nuclear instigação hermenêutica, a confrontar as possibilidades e os limites interpretativos no âmbito do texto constitucional: “A interpretação da Constituição pode levar a que o STF produza (novos) textos, isto é, interpretações que, levadas aos limite, façam soçobrar os limites semânticos do texto no modo que ele vinha sendo entendido na (e pela) tradição (no sentido hermenêutico da palavra)?”.[32] Encontra-se aqui um jogo de palavras provocador: as interpretações levadas ao limite ou desbordam o texto (limites semânticos) ou destoam dos sentidos que lhe são atribuídos pela tradição?

Qual a diferença metodológica – em termos de procedimento – entre interpretar a Constituição e interpretar a partir da Constituição? Existe alguma especificidade na interpretação constitucional que a distinga da interpretação das leis infraconstitucionais? Ao olvidar o comando constitucional cujo conteúdo aponta para determinada regra condicionante[33], o Supremo Tribunal Federal estaria modificando o próprio texto, procedendo a uma genuína mutação constitucional. Em termos gerais, tal conseqüência seria nefasta, porque se estaria atribuindo à função jurisdicional competência digna do poder legislativo reformador. Neste sentido, ir de encontro ao texto da Constituição (ordem semântica), por mais que argumentos reinem nesta postulação, seria uma impossibilidade, cuja restrição não se encontra, por exemplo, na miríade de

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possibilidades interpretativas – razoáveis – advindas do processo de aplicação do direito, quando as leis infraconstitucionais resultam compatibilizadas ao Texto Maior por oportunidade do melhor julgamento possível (resposta adequada constitucionalmente ao caso).

O descumprimento do artigo 52, X, da Carta Magna de 1988, assim como o descumprimento de qualquer mandamento normativo, ocorre na indelével interpretação que dele se faz para efeito de conformidade ou desconformidade ao sistema jurídico-constitucional vigente. Não existe texto puro e simples; tampouco há interpretações (normas) isoladas dos referenciais oriundos da legislação. Ocorre uma sinergia, ou interação discursiva entre fundamentos ou razões responsáveis por suportar dada inteligibilidade – prática, hermenêutica e normativa – como sendo aquela dotada de suficiente razão autêntica, cuja autoridade repousa menos em apoio de simulacros metafísicos, senão através de determinada interpretação carregada, em detrimento das demais, do melhor juízo de suporte argumentativo a carrear o liame defensável das variantes jurídicas fato, valor e norma. Nesta esteira, como deduzir que o descumprimento do artigo constitucional em questão pode, em dadas ocasiões, ser justificado, e noutras, não? Conforme Streck, o STF, muito embora tenha declarado a inconstitucionalidade de ato normativo em controle difuso, poderá não remeter sua decisão para o Senado, quando referido juízo for tomado por escassa maioria ou quando o entendimento, na matéria relacionada, não estar devidamente assentado, hipóteses em que não se teria descumprido o artigo 52, X, da Constituição.[34] Não nos parece que a remessa para o Senado tenha sido uma faculdade atribuída pelo texto constitucional ao guardião do Texto Maior, tendo em vista que a mácula de inconstitucionalidade, como qualidade objetiva da lei, em sede preliminar de análise divorciada do problema posto em causa (logo, não há o que estar assentado na respectiva matéria, que se liga, mas não se confunde ao prévio juízo de constitucionalidade), será aferida ou não; em caso afirmativo, e independentemente do quórum de votação, o vício restará reconhecido.

Aponta-se, assim, para a existência de opções constitucionais prévias sobre as quais não se pode admitir a propagada ponderação, tratando-se, assim, de enunciados portadores da própria condição forte digna da regra, em se distinguindo dos princípios, porque naquelas recai a condição mesma de obediência (tudo ou nada, na reconhecida lição de Ronald Dworkin). Contudo, especificamente no ponto em comento, não se consegue, por exemplo, mensurar coerência e razoabilidade daqueles que sugerem ser indispensável a manifestação do Senado da República para dar azo aos efeitos erga omnes no controle difuso e, ao mesmo tempo, deduzir que respectivo comportamento daquela Casa parlamentar é de natureza vinculada.[35] Se o Senado estaria vinculado a expedir resolução com o fito de converter a eficácia entre as partes para geral, não estaríamos diante de opção constituinte (originária) firme acerca do natural consectário de que lei inconstitucional resulta em natural (e lógica) medida erga omnes? Os autores não despendem considerações específicas a respeito deste assunto, ao afirmarem que “a discussão sobre se o Senado está ou não obrigado a elaborar o ato é outra coisa”.[36]

Ora, esta conseqüência – substancial – poderia padecer diante de inércia de procedimento, vale dizer, diante da inexistência de expedição resolutiva senatorial? Parece-nos que não. Ademais, o argumento de equivalência entre a fiscalização concentrada e a difusa, a fazer valer a inocuidade do artigo 52, X, da Constituição, no sentido de que os efeitos gerais, supostamente ínsitos ao controle difuso, traduziriam equiparação ao controle objetivo, não merece prosperar, porquanto a extensão temporal

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dos efeitos pretendidos no controle incidental é projetiva (ex nunc), diversa da regra geral do controle direito (ex tunc).[37]

A própria Suprema Corte brasileira apresenta soluções antípodas em relação à existência da diferença ontológica entre a decisão constitucional e o sistema de constitucionalidade da lei. Quando, por exemplo, o STF reconhece que a interpretação constitucionalmente adequada passa ao largo do incidente de reserva de plenário, porque a sua exigibilidade diz respeito à fiscalização da lei, e não da norma (sentido), acentua a autonomia da applicatio em vista do universo normativo abstrato.[38] Ao passo que em outros julgados ocorre metafísica identificação entre as decisões interpretativas e a fiscalização em controle objetivo de lei ou ato normativo.[39]

A vertiginosa mudança proposta ao controle difuso de constitucionalidade por parcela considerável da doutrina, incluindo integrantes do órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional[40], e pelos próprios rumos argumentativos de precedentes do Supremo Tribunal Federal, tem conduzido a uma não menos significativa crítica proveniente da cultura constitucional brasileira. Da inconstitucionalidade verificada no caso concreto, cujos efeitos se presumem tão-só integrantes da respectiva demanda, não se poderia admitir eficácia geral contra todos, até mesmo em virtude do dispositivo constitucional responsável por atribuir ao Senado da República a competência de generalizar doravante dita decisão. Entretanto, desta simplificada ou unilateral versão do controle difuso não resta outra alternativa senão condenar um ou outro discurso, seja tendente à mantença dos efeitos inter partes, seja pela necessidade de sua transcendência aos demais casos submetidos pela idêntica fonte normativa.

Ocorre que o texto constitucional também albergou outra manifestação de contrariedade ao Texto Maior, de cariz interpretativo, quando afetou ao STF a competência de julgar, mediante recurso extraordinário, todas as causas nas quais a decisão supostamente violou a Constituição. Esta hipótese consiste em modalidade absolutamente diversa daquela em que a Corte Suprema confirma ou rejeita a prévia alegação de inconstitucionalidade da lei, quando a decisão, propriamente dita, em seu mérito, não está sendo debatida, senão a preliminar de incidência e validade da norma jurídica em questão. Isto posto, se a decisão do STF inclina-se em declarar a inconstitucionalidade da lei, resulta cogente que esta decisão seja erga omnes, porquanto o dispositivo em abstrato foi alvo de manifestação pelo tribunal supremo. Diferente é o caso de uma decisão que, embora não suscitadora da inconstitucionalidade da norma jurídica, produz a inconformidade em seu mérito de resolução, pela indevida interpretação do direito em causa, em um desvio flagrante ou recalcitrante daquilo que se poderia denominar de resposta constitucionalmente adequada.

Entretanto, convém frisar, a natural e desejável repercussão geral na inconstitucionalidade difusa não pressupõe uma demasiada abstração do controle concreto de constitucionalidade, vale dizer, esculpindo para a interpretação do direito uma congênere métrica de cunho abstrato. Nesse sentido, e respeitado o fato de ser um dos maiores conhecedores da jurisdição constitucional, não se pode defender uma atuação interpretativa vinculante por intermédio de argüição de descumprimento de preceito fundamental, segundo as lições de Gilmar Ferreira Mendes.[41] A contundência de determinada interpretação se coloca no seio democrático da roda do discurso, quando assentado entendimento se legitima por força de sua convincente fundamentação (a violência da coerção transplantada pela atuação dos melhores

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argumentos) e pela tolerância de poder ser combatida com o advento de novas circunstâncias ou razões, ou mesmo pela peculiaridade de fatos até então não problematizadores da até então suposta ratio do dispositivo. O precedentalismo, pois, não se pode confundir com o procedimentalismo, deveras quando este articula, mediante prévio discurso, mecanismos abstratos sonegadores da diferença ontológica cujo aparecimento somente se pode conferir na cultura dos precedentes. O procedimentalismo, então, solapa o concreto às custas de uma indevida fiscalização precedentalista, ao tomar como regra o risco do subjetivismo e do arbítrio ínsitos na própria concepção do devido processo legal e do substancial acesso à justiça.

Quando se tem em conta que o direito à prestação jurisdicional efetiva e adequada constitui consectário dos princípios constitucionais do devido processo legal, do acesso à justiça e da proibição de denegação de justiça, conclui-se pela sua genealogia de um legítimo direito fundamental, inclusive, abarcador, em face de o processo se revelar como instrumento de justiça, de outros direitos fundamentais suscetíveis de violação por uma indevida predileção ao sistema abstrato de fiscalização de normas. Neste sistema abstrato se inclui, nada há de se estranhar, o estrito controle difuso de constitucionalidade, quando este tem por objeto a fiscalização abstrata de constitucionalidade das leis e atos normativos, nada obstante a sua manifestação atomística. Vale dizer, a qualidade de controle objetivo em nada se protrai diante da minúscula ocorrência diante de apenas um caso concreto.

Isto posto, o que torna o controle difuso efetivamente intrínseco apenas às partes é a sua concreta veiculação hermenêutica para efeito de interpretar o direito naquela situação incidente. Não é por outro motivo que esta específica faceta merece ser denominada em pormenores, motivo pelo qual a denominamos de controle concreto de constitucionalidade. Ao abordar o modelo português de controle de constitucionalidade, pelo análogo privilégio, como no Brasil, à fiscalização abstrata de constitucionalidade, Jorge Reis Novais estabelece problema semelhante: as mais significativas e correntes violações de direitos fundamentais ocorrem, dentre outros fatores, através de atos judiciais, por conta de sua interpretação, tratando-se aqui de uma inconstitucionalidade judicada, e não pressuposta de uma mácula inerente à norma legislada, única suscetível de apreciação pelo Tribunal Constitucional.[42] Contudo, ao abordar esta lacuna, o autor também pondera as potencialidades abusivamente dilatórias de uma fiscalização concreta deveras aberta, manipulável, diante da insatisfação de qualquer das partes, à luz de simplória alegação de afronta ao Texto Maior por uma aplicação (decisão) inconstitucional, em especial quando o Tribunal Constitucional de Portugal assumiu competência para também fiscalizar a constitucionalidade quanto à interpretação das normas efetuada pelo juízo recorrido.[43]

Discorrendo sobre esta eclética atuação da Corte portuguesa, Vital Moreira, ao realçar a necessidade de as interpretações inconstitucionais, na própria decisão empreendida de origem, serem dignas da apreciação pelo órgão judicial cúspide do sistema, denomina a respectiva via de recurso de quase-amparo.

Ora, é de salientar justamente que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem permitido, ainda que de forma lateral ou mitigada, alcançar alguns dos efeitos do recurso de amparo, designadamente quando admite a sindicabilidade das normas com uma determinada interpretação, a interpretação acolhida na decisão recorrida. Na verdade, como o Tribunal vem decidindo, através de uma abundante e reiterada

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jurisprudência, a questão de constitucionalidade tanto pode respeitar a uma norma (ou a uma parte dela) como também à interpretação ou sentido com que foi tomada no caso concreto e aplicada (ou desaplicada) na decisão recorrida, ou mesmo a uma norma “construída” pelo juiz recorrido a partir da interpretação ou integração de várias normas textuais (desde que estas sejam devidamente identificadas).[44]

Independentemente de Novais acatar, em sua argumentação, a diferença entre interpretar e aplicar, muitas vezes adotada pela doutrina, no sentido de que antes se interpreta o texto para depois aplicá-lo ao caso (a interpretação ocorreria em partes, de acordo com uma metodologia sucessiva), sua perspicácia merece ser considerada no aspecto das múltiplas incidências atinentes ao suposto caráter simplório (e lógico) do silogismo judicial.[45]

Em princípio, a uma decisão judicial está subjacente uma interpretação da norma aplicada e, obviamente, essa interpretação pode resultar em violação das normas constitucionais. Mas como saber qual a interpretação pressuposta na aplicação da norma? Como saber se foi a interpretação que determinou a aplicação inconstitucional ou se a interpretação da norma foi correcta, mas a sua aplicação é que é errónea e, por isso, inconstitucional? E quando o juiz interpreta a norma de forma não inconstitucional, mas entende que, no caso concreto, ela deve ceder perante uma outra norma ou princípio jurídico; é a avaliação/ponderação do juiz, isto é, a sua decisão, que é inconstitucional ou é a interpretação da norma porque deveria, eventualmente, ter sido interpretada com a atribuição de uma força que lhe permitisse superar, na ponderação, o princípio contrário? E quando o juiz faz, anuncia e fundamenta a sua decisão numa interpretação não inconstitucional, mas quando aplica a norma assim interpretada o faz em desconformidade com essa interpretação, qual é a interpretação que o Tribunal Constitucional deve considerar: a efectivamente anunciada ou a porventura implícita e em conformidade objectiva com o teor da decisão?[46]

Destas variáveis interpretativas capacitantes e enunciadoras da delimitação de fronteiras, movediças casuisticamente (e não manipuláveis casualmente), entre o controle difuso e a fiscalização concreta de constitucionalidade, admite-se, inclusive – e aqui se absolveria a outrora distinção inautêntica de interpretar e aplicar –, a primazia do critério normativo interpretativo (hermenêutico) em vista do vetor semântico textual (apofântico). Isto quer dizer, admitida a cisão entre interpretação e aplicação, que esta última pode invariavelmente arrecadar um diverso sentido, mediante bastantes e relevantes fundamentos, até então não comportável pela reta inteligência abstrata do dispositivo legal invocado, exatamente em virtude de o caso concreto traduzir, naquela sua incidência problemática, dimensão qualitativamente incrementadora do baluarte restrito da interpretação (digna, para este discrímen, de tão-só fidelizar a exegese do texto normativo).

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[1] Gilmar Ferreira Mendes, doutrinador sistemático e ímpar conhecedor dos sistemas de constitucionalidade, Ministro do Supremo Tribunal Federal, um dos elaboradores das Leis 9.868/99 e 9.882/99, defende hoje esta tese com base em julgamentos recentes do próprio tribunal.

[2] Não se confunda o firme terreno da abstração, cujo almejo quer ressaltar a translúcida diferença, que se tenta camuflar, entre a inconstitucionalidade da lei e a da interpretação (decisão), com a impossibilidade de a lei, no seu apanágio de generalidade e impessoalidade, ser guarnecida fora de qualquer contexto, como se parida divorciada de qualquer apego histórico, sem raízes genealógicas deitadas no firme substrato do existencial-concreto. Parece, inclusive, já haver consenso sobre isto entre escolas jurídicas de matriz epistemológica diversa em terrae brasilis, como é o caso das exponenciais críticas gaúcha e mineira ao senso comum teórico dos juristas: “(...) devemos comemorar o fato de duas escolas do constitucionalismo contemporâneo denunciarem de forma uníssona conceitos corriqueiros insertos na maioria dos manuais de Direito Constitucional brasileiro: o controle concentrado de constitucionalidade, sob nenhuma hipótese, pode ser entendido como exercício hermenêutico abstrato!!!” (CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 26).

[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 245.

[4] Idem, p. 246.

[5] Em sentido congruente, Dirley da Cunha Júnior, quando refere a impossibilidade de “confundir a solução da controvérsia, que se exaure entre as partes da relação processual e só a elas interessam com a declaração da inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, que, nada obstante pronunciada para a resolução do litígio, deve transcender os limites processuais da lide e é de interesse de todos” (O princípio do stare decisis e a decisão do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade. In Leituras complementares de constitucional: controle de constitucionalidade. Salvador: JUSPODIVM, 2007, p. 87).

[6] Se esta é a exceção, o sistema brasileiro acata a tese da nulidade do ato inconstitucional, referendada na common law, segundo a qual a norma inconstitucional (veja-se que a própria denominação seria contraditória, pois a inconstitucionalidade implica ser a lei natimorta) não pode produzir efeitos, ou, em os produzindo, haverão de ser cassados.

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[7] Hermenêutica e aplicação do direito: Os limites da modulação dos efeitos em controle difuso de constitucionalidade – o caso da lei dos crimes hediondos. In Constituição, Sistemas Sociais e hermenêutica. Anuário 2006, n. 3. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 114.

[8] Luiz Guilherme Marinoni diferencia as possibilidades interpretativas atreladas à aplicação jurisdicional, sendo-nos suficiente delimitar as duas primeiras: “Quando se trata da argumentação em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental à tutela jurisdicional, é preciso relacionar a argumentação com as modalidades de compreensão da lei: i) interpretação de acordo, ii) interpretação conforme, iii) declaração parcial, iv) concretização da norma geral e v) supressão da omissão inconstitucional” (Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 128). A interpretação de acordo consiste na interpretação constitucionalmente adequada, aquela capaz de atender às necessidades de direito material na conformidade efetiva – e viável – do direito fundamental concretamente sacrificado; já a interpretação conforme significa a específica incidência hermenêutica do controle de constitucionalidade, no sentido de salvaguardar o texto jurídico para não ser expungido do sistema jurídico, em vista de sua inconstitucionalidade. A primeira modalidade é essencialmente interpretativa; a segunda, de viés interpretativo secundário ou incidental, porque se apega aos ditames preponderantemente vinculativos do controle de constitucionalidade. Sublinhe-se, assim, na terminologia de Marinoni, que a interpretação de acordo não se subsume via necessária à interpretação conforme.

[9] Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu editar no dia 18 de junho de 2008 a décima Súmula Vinculante da Corte. Ela impede que órgãos fracionários que não têm a maioria absoluta dos integrantes de um tribunal afastem a incidência, total ou em parte, de lei ou ato normativo do Poder Público. Isso é vedado mesmo que a decisão do órgão fracionário não declare a inconstitucionalidade da norma, mas somente afaste a sua incidência em um caso concreto.

[10] Hermenêutica e aplicação do direito... op. cit., p. 117.

[11] Idem, p. 118. O próprio autor afirma, logo após, com razão, que não é qualquer decisão que pode ser vinculante. Ora, como estamos tentando demonstrar, a decisão de inconstitucionalidade da lei (parcial ou total) revela o típico caso em que a decisão deve ser vinculante erga omnes, independentemente se proveniente do controle difuso ou concentrado.

[12] “Tem-se assim que o Supremo Tribunal Federal, na medida em que retirou o obstáculo à plena individualização da pena (...), proporcionou um substancial avanço hermenêutico, rumo a preservação de cada caso concreto, portanto, do processo aplicativo do direito, isto porque a regra proibitiva da progressão de regime (art. 2º da Lei 8.078/90) – entendida tabula rasa – obnubilava a singularidade dos casos (...)” (Idem, p. 125).

[13] E isto bem explica o corte transversal que a própria linguagem promove contra si quando paradigmas distintos são construídos, como meta-linguagem, através da mesma articulação lingüística objeto de estudo, quando, por exemplo, a decisão, na condição de objeto de análise, ganha relevo para autores cujas conclusões apontam para

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caminhos diametralmente opostos ou, pelo menos, inconciliáveis (veja o caso do procedimentalismo e do substancialismo, por exemplo).

[14] Utilizamo-nos da classificação empreendida por Josef Bleicher (Hermenêutica Contemporânea. Traduzido por Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 13).

[15] O primeiro seminário de Heidegger assistido por Gadamer em 1923 denominava-se “Ontologia, Hermenêutica da Facticidade”, quando os aportes da hermenêutica restavam introduzidos pela reviravolta heideggeriana diante da fenomenologia de Husserl (GADAMER, Hans-Georg. Los caminos de Heidegger. Barcelona: Herder, 2003, p. 358.

[16] Diga-se que Jürgen Habermas acentua a autonomia do pensamento em relação às idiossincrasias pessoais de seu correlato autor. Pensar diferentemente é repristinar, para o direito, teses de cunho subjetivo e metafísico, retomando a interpretação em exegese arqueológica, como se as intenções e peripécias do legislador fossem importantes para o deslinde concretizar na tarefa de conversão da norma ao texto. Constatar ou rechaçar dita aquiescência ao nazismo – implícita ou não – jamais afetaria, é o que nos impende sublinhar, o legado filosófico heideggeriano: como nos acena Habermas, o pensamento se liberta do autor, ao ponderar que “esta rigorosa concepção de unidade entre obra e pessoa me parece que não faz justiça à autonomia do pensamento e sobretudo à história de influências e efeitos que um pensamento gera” (Identidades nacionales y postnacionales. Madrid: Tecnos, 2002, pp. 18-19). Frise-se, ainda, a excelente contribuição de Franca D’Agostini em Analíticos e continentais, quando esta obra consolida sobremaneira o conhecimento maduro da hermenêutica filosófica, de seu nascedouro, suas repercussões atuais, os principais representantes, as principais articulações temáticas, não apenas descrevendo, senão construindo argumentos sérios a respeito das respectivas possibilidades, em cotejo com a filosofia analítica (Analíticos e continentais. Guia à filosofia dos últimos trinta anos. Traduzido por Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003). No que tange ao nosso propósito, enfatizaremos como fio condutor de nossos propósitos a indagação gadameriana sobre a filosofia prática no direito, ou seja, a não identidade necessária entre o abstrato (texto) e o concreto (norma), e, para a repercussão legítima deste último através da realização judicativo-constitutiva pela (e na) applicatio, consubstanciar sua viabilidade em termos de abertura fundamentadora razoável a reanimar a esfera da decisão, nas palavras da autora, “como uma reabertura das condições para uma reflexão racional em âmbito ético” (p. 452).

[17] “A última corrente, e talvez a mais polêmica, é a que percebe colorações nacional-socialistas na vida e na obra de Heidegger, especialmente no período que vai de 1930 até o final da Segunda Guerra Mundial” (Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 33).

[18] É a crítica formulada por Ernst Tugendhat, ao defender a antropologia como filosofia primeira, em vez da hermenêutica como universalidade, ao desincumbir desta algum discrímen crítico ou responsavelmente reflexivo: “A palavra ‘nós’ não representa, nessa proposição, nossa tradição, como o pareceu em Gadamer, senão se trata de ‘nós’ como achando-nos numa reflexão racional que faz um exame crítico tanto

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da própria cultura como das alheias” (Antropologia como filosofia primeira. In Hermenêutica e Filosofia Primeira. Ijuí: Unijuí, 2006, p. 88).

[19] Hermenêutica em Retrospectiva. Heidegger em retrospectiva. Hermenêutica e diferença ontológica. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 95.

[20] Humberto Ávila, por exemplo, exemplifica nos princípios e nos postulados aplicativos (como ele mesmo enquadra a razoabilidade) a capacidade de invocar razões superiores de redefinição e não aplicação de regras (Sistema Constitucional Tributário. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006, p. 32 e 46).

[21] NEVES, Marcelo. In E se faltar o décimo segundo camelo? Do direito expropriador ao direito invadido. In Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 155.

[22] Neste sentido, invoca-se a desvinculação absoluta entre hermenêutica filosófica e qualquer forma de decisionismo, também por ela acenar com os limites à interpretação, nada obstante cogitados por oportunidade da indispensável mediação interpretativa, razão por que os juízos de proporcionalidade e razoabilidade lhe são caros para permitir que a diferença ontológica reivindique novo patamar de consideração diante de casos devidamente fundamentados (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica. In Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro/São Leopoldo: Renovar/Unisinos, 2006, pp. 430-434).

[23] Uma Justificação Democrática da Jurisdição Constitucional Brasileira e a Inconstitucionalidade da Lei 9.868/99. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 36, 2001, p. 205.

[24] A doutrina especializada, em parte expressiva, costuma dizer que a interpretação conforme cinge-se à modalidade de controle de constitucionalidade abstrato, não perfazendo “regra de interpretação do direito” (vide, sobretudo, ANJOS, Luís Henrique Martins dos. A Interpretação conforme a Constituição enquanto técnica de julgamento do Supremo Tribunal Federal, in Debates em Direito Público, Revista de Direito dos Advogados da União, n. 3, 2004). A interpretação conforme, assim, além de ser plenamente cabível no controle difuso, também constitui operacionalidade inerente ao processo de aplicação do direito, quando sequer se constata a necessidade de conclamar o incidente de inconstitucionalidade. Por esta razão, é de uma naturalidade lógica a dicção de ditos efeitos nos termos propostos pela hermenêutica filosófica, mormente em trabalhos, ensaios e obras que reivindicam a necessidade de uma hermenêutica processual voltada à efetividade dos direitos fundamentais. Contudo, há autores que não se aventuram a ingressar em conclusões deste porte, no plano do controle de constitucionalidade, muito embora, é de se aplaudir, apontem para a autonomia decisória da interpretação constitucionalmente adequada (v.g., ZOLLINGER, Marcia Brandão. Proteção Processual aos Direitos Fundamentais. Salvador: JusPODIVM, 2006, p. 162, nota de rodapé n. 23).

[25] OLIVEIRA, Fábio de. Por uma teoria dos princípios. O princípio constitucional da razoabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

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[26] Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 1226-1227.

[27] Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 85-86. O princípio da interpretação da Constituição conforme as leis é havido por Canotilho como um dos mecanismos patrocinadores dos limites da interpretação constitucional, muito embora advirta dos perigos de incorrer numa inconstitucionalidade em nome da “legalidade da constituição” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição ..., p. 1234).

[28] O emprego da expressão “interpretação orientada pela Constituição” é cunhado por Luís Afonso Heck (O recurso constitucional na sistemática jurisdicional-constitucional alemã. In Revista de Informação Legislativa, n. 124, out./dez. 1994, pp. 131-132). Outros autores se utilizam de outros termos ou expressões para indicar a mesma interpretação decisória (aplicação) conforme sob a guarda conteudística da Constituição: para citar exemplos referenciais, Lenio Luiz Streck, ao referir a interpretação constitucionalmente adequada; Luiz Guilherme Marinoni, interpretação de acordo; Jorge Reis Novais, por fim, celebrando a constitucionalidade das normas na interpretação concreta efetuada pelo juiz comum (Em defesa do recurso de amparo constitucional (ou uma avaliação crítica do sistema protuguês de fiscalização concreta da constitucionalidade. In Direitos Fundamentais. Trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 164).

[29] O juiz, portanto, encarna o ponto último da proibição do non liquet, culminando o processo em que as partes colaboraram, prestaram as suas informações e argumentos, desincumbindo a dúvida que pairava sobre um direito material que se tornou discutível a partir do ingresso da demanda. Trata-se aqui de desabonar a figura do magistrado em benefício da decisão fundamentada a colimar o caso concreto. Segundo Marinoni, “a mera prolação das sentenças declaratória e constitutiva é suficiente para atender ao direito material, ao passo que as sentenças condenatória, mandamental e executiva se ligam a meios executivos, visando com isso a tutela do direito” (Teoria Geral do Processo..., p. 270).

[30] Luiz Guilherme Marinoni chega a dizer, com razão, que a decisão transitada em julgado com base em preceito que ulteriormente foi declarado inconstitucional pelo STF em controle abstrato não poderá ser alvo de rescisão, porque o que se estabilizou foi a lei interpretada para o caso concreto, diversa da gênese normativa alvo de nulidade pelo Tribunal de Cúpula brasileiro (Coisa julgada Inconstitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008).

[31] PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, pp. 26-28.

[32] A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimidade da Jurisdição Constitucional, mundojuridico.com.br, p. 21.

[33] Na hipótese em comento, a regra contida no artigo 52, X, quando o Supremo Tribunal declarar a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em sede de recurso

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extraordinário, remeterá a matéria ao Senado da República, para que este suspenda a execução da referida lei.

[34] Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 478.

[35] É o caso de Lenio Streck, quando refere que “não parece razoável admitir que, declarada a inconstitucionalidade de uma lei pelo STF, o Senado venha a entender que aquela decisão só tenha validade para as partes litigantes (do caso sub judice analisado pelo STF)” (Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 483). Outros renomados constitucionalistas também aderem à tese de que o Senado está obrigado a suspender a execução do ato que o STF declarou inconstitucional em controle difuso, dentre eles, Lúcio Bittencourt, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Alfredo Buzaid, Celso Ribeiro Bastos e Zeno Veloso, conforme pesquisa empreendida por Dirley da Cunha Júnior, o qual também se alinha à respectiva orientação (Controle de Constitucionalidade. Salvador: JusPODIVM, 2007, p. 151). Direção oposta é a empregada por Walber de Moura Agra, ao afirmar que o Senado possui atribuição discricionária para suspender ou não a eficácia da lei declarada inconstitucional pelo STF em sede de controle incidental de constitucionalidade (Aspectos controvertidos do controle de constitucionalidade. Salvador: JusPODIVM, 2008, p. 55).

[36] STRECK, et ali. A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimidade da Jurisdição Constitucional, mundojuridico.com.br, p. 8.

[37] “Portanto, parece óbvio que, se se entendesse que uma decisão em sede de controle difuso tem a mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, cairia por terra a própria diferença. É regra que o controle concentrado tenha efeitos ex tunc (a exceção está prevista na Lei nº 9.868/99). O controle difuso tem na sua ratio o efeito ex tunc entre as partes. Então, qual é a função do Senado (art.52,X)? Parece evidente que esse dispositivo constitucional não pode ser inútil.” (STRECK, et ali. A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimidade da Jurisdição Constitucional, mundojuridico.com.br, p. 7).

[38] Controle incidente de inconstitucionalidade: reserva de plenário (CF, art. 97). Interpretação que restringe a aplicação de uma norma a alguns casos, mantendo-a com relação a outros, não se identifica com a declaração de inconstitucionalidade da norma que é a que se refere o art. 97 da Constituição. (cf. RE 184.093, Moreira Alves, DJ 5-9-97)." (RE 460.971, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 13-2-07, DJ de 30-3-07)

[39] Controle de constitucionalidade de normas: reserva de plenário (CF, art. 97): reputa-se declaratório de inconstitucionalidade o acórdão que — embora sem o explicitar — afasta a incidência da norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição. (RE 432.597-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 14-12-04, DJ de 18-2-05). No mesmo sentido RE 379.573-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 6-12-05, DJ de 10-2-06. AI 521.797-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 5-9-06, DJ de 29-9-06.

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[40] Na reclamação constitucional n. 4.335-5, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, envergou para a Corte Suprema a aplicação da eficácia geral para as decisões de constitucionalidade no âmbito do controle incidental, sem a necessidade interventiva do Senado da República, cuja resolução apenas conferiria publicidade ao teor do julgamento. Em texto de sua lavra a debater o instituto da reclamação, Mendes justifica a natural expansão e transcendência do controle difuso de constitucionalidade, tomando como base a já institucionalizada – por via legislativa, em face do contido no artigo 481, parágrafo único, do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei n. 9.756/98 – dispensabilidade do instituto constitucional da reserva de plenário (artigo 97 do Texto Maior), quando o STF já tenha se pronunciado pela inconstitucionalidade da lei, hipótese em que os tribunais ordinários se exoneram do dever de submeter o processo ao plenário ou órgão especial (A reclamação constitucional no Supremo Tribunal Federal. In Leituras complementares de constitucional: controle de constitucionalidade. Salvador: JUSPODIVM, 2007, pp. 204-209).

[41] “A possibilidade de incongruências hermenêuticas e confusões jurisprudenciais decorrentes dos pronunciamentos de múltiplos órgãos pode configurar uma ameaça a preceito fundamental (pelo menos, ao da segurança jurídica), o que também está a recomendar uma leitura compreensiva da exigência aposta à lei da argüição, de modo a admitir a propositura da ação especial toda vez que uma definição imediata da controvérsia mostrar-se necessária para afastar aplicações erráticas, tumultuárias ou incongruentes, que comprometam gravemente o princípio da segurança jurídica e a própria idéia de prestação judicial efetiva. Ademais, a ausência de definição da controvérsia – ou a própria decisão prolatada pelas instâncias judiciais – poderá ser a concretização de lesão a preceito fundamental. Em um sistema dotado de órgão de cúpula que tem missão de guarda da Constituição, a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode constituir-se, por si só, em uma ameaça ao princípio constitucional da segurança jurídica e, por conseguinte, em uma autêntica lesão a preceito fundamental” (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. In Direito Público, n. 20, mar./abr. 2008, Instituto Brasiliense de Direito Público, p. 23). A eficácia em se enquadrar como objeto de ADPF perante o STF, em precedência e primazia ao próprio recurso extraordinário, a mera interpretação judicial discrepante ou sem base legal está no efeito erga omnes do julgado e de sua contundência vinculante, ou seja, a argüição de descumprimento de preceito fundamental carrega índole de feição típica concentrada, “que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia” (p. 24). As causas tornar-se-iam, assim, meras teses, suscetíveis de solução unívoca.

[42] Em defesa do recurso de amparo constitucional (ou uma avaliação crítica do sistema protuguês de fiscalização concreta da constitucionalidade. In Direitos Fundamentais. Trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, pp. 159-160. A analogia convém em virtude de o STF desconhecer (e pior, insistir em contrário) uma sistemática distintiva entre decisões inconstitucionais e decisões que aplicaram leis inconstitucionais, tanto que toda a decisão interpretativa a ponto de conformar hermeneuticamente um texto de lei aos ditames da Constituição, em termos de applicatio, é tida como reformável diante da premissa de que houve ali um pronunciamento prévio acerca da inconstitucionalidade da lei. Logo, para o STF, as leis possuem sentidos unívocos, sob pena de, em não os acatando, o intérprete dever tomá-las como inconstitucionais.

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[43] Em defesa do recurso de amparo constitucional (ou uma avaliação crítica do sistema protuguês de fiscalização concreta da constitucionalidade. In Direitos Fundamentais. Trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, pp. 166 e 170.

[44] O Tribunal Constitucional Português: a “Fiscalização Concreta” no Quadro de um Sistema Misto de Justiça Constitucional. Artigo publicado na Revista Subjudice, n. 20/21, jan./jun. 2001; publicado em francês, in: Lês Cabiers du Conseil Constitutionnel, n. 10, 2001, p. 21-34; publicado também na Revista Direito Público, n. 3, jan./mar. 2003. Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, p. 87.

[45] A reserva ao constitucionalista português no tocante ao ponto ocorre em virtude da recusada fusão hermenêutica empreendida por Gadamer, de cujas linhas se depreende que toda a interpretação consiste em aplicar (e nelas, em unidade, habita a compreensão). Mesmo assim, o autor admite que há uma impossibilidade objetiva de traçar rigorosa fronteira entre o que é interpretação e o que é decisão judicial (p. 173).

[46] Em defesa do recurso de amparo constitucional (ou uma avaliação crítica do sistema protuguês de fiscalização concreta da constitucionalidade. In Direitos Fundamentais. Trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, pp. 172-173.