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Rio de Janeiro / 2007 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO VICE-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO E CORPO DISCENTE COORDENAÇÃO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA CULTURA LUSO-BRASILEIRA

Cultura Luso Brasileira

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Rio de Janeiro / 2007

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À

UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO

VICE-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO E CORPO DISCENTE

COORDENAÇÃO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CULTURALUSO-BRASILEIRA

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UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO

Todos os direitos reservados à Universidade Castelo Branco - UCB

Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, armazenada ou transmitida de qualquer forma ou porquaisquer meios - eletrônico, mecânico, fotocópia ou gravação, sem autorização da Universidade CasteloBranco - UCB.

U n3p Universidade Castelo Branco. Cultura Luso-Brasileira. – Rio de Janeiro: UCB, 2007. 80 p.

ISBN 978-85-86912-51-1

1. Ensino a Distância. I. Título. CDD – 371.39

Universidade Castelo Branco - UCBAvenida Santa Cruz, 1.631Rio de Janeiro - RJ21710-250Tel. (21) 2406-7700 Fax (21) 2401-9696www.castelobranco.br

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Responsáveis Pela Produção do Material InstrucionalResponsáveis Pela Produção do Material InstrucionalResponsáveis Pela Produção do Material InstrucionalResponsáveis Pela Produção do Material InstrucionalResponsáveis Pela Produção do Material Instrucional

Coordenadora de Educação a DistânciaCoordenadora de Educação a DistânciaCoordenadora de Educação a DistânciaCoordenadora de Educação a DistânciaCoordenadora de Educação a DistânciaProf.ª Ziléa Baptista Nespoli

Coordenador do Curso de GraduaçãoCoordenador do Curso de GraduaçãoCoordenador do Curso de GraduaçãoCoordenador do Curso de GraduaçãoCoordenador do Curso de GraduaçãoAntonio Carlos Siqueira de Andrade - Letras

ConteudistaConteudistaConteudistaConteudistaConteudistaNeuza Maria de Sousa Machado

Supervisor do Centro Editorial – CEDISupervisor do Centro Editorial – CEDISupervisor do Centro Editorial – CEDISupervisor do Centro Editorial – CEDISupervisor do Centro Editorial – CEDIJoselmo Botelho

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Apresentação

Prezado(a) Aluno(a):

É com grande satisfação que o(a) recebemos como integrante do corpo discente de nossos cursos de gradu-ação, na certeza de estarmos contribuindo para sua formação acadêmica e, conseqüentemente, propiciandooportunidade para melhoria de seu desempenho profissional. Nossos funcionários e nosso corpo docenteesperam retribuir a sua escolha, reafirmando o compromisso desta Instituição com a qualidade, por meio de umaestrutura aberta e criativa, centrada nos princípios de melhoria contínua.

Esperamos que este instrucional seja-lhe de grande ajuda e contribua para ampliar o horizonte do seu conhe-cimento teórico e para o aperfeiçoamento da sua prática pedagógica.

Seja bem-vindo(a)!Paulo Alcantara Gomes

Reitor

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Orientações para o Auto-Estudo

O presente instrucional está dividido em três unidades programáticas, cada uma com objetivos definidos econteúdos selecionados criteriosamente pelos Professores Conteudistas para que os referidos objetivos sejamatingidos com êxito.

Os conteúdos programáticos das unidades são apresentados sob a forma de leituras, tarefas e atividadescomplementares.

As Unidades 1 e 2 correspondem aos conteúdos que serão avaliados em A1.

Na A2 poderão ser objeto de avaliação os conteúdos das três unidades.

Havendo a necessidade de uma avaliação extra (A3 ou A4), esta obrigatoriamente será composta por todo oconteúdo de todas as Unidades Programáticas.

A carga horária do material instrucional para o auto-estudo que você está recebendo agora, juntamente com oshorários destinados aos encontros com o Professor Orientador da disciplina, equivale a 30 horas-aula, que vocêadministrará de acordo com a sua disponibilidade, respeitando-se, naturalmente, as datas dos encontrospresenciais programados pelo Professor Orientador e as datas das avaliações do seu curso.

Bons Estudos!

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Dicas para o Auto-Estudo

1 - Você terá total autonomia para escolher a melhor hora para estudar. Porém, seja disciplinado. Procure reservar sempre os mesmos horários para o estudo.

2 - Organize seu ambiente de estudo. Reserve todo o material necessário. Evite interrupções.

3 - Não deixe para estudar na última hora.

4 - Não acumule dúvidas. Anote-as e entre em contato com seu monitor.

5 - Não pule etapas.

6 - Faça todas as tarefas propostas.

7 - Não falte aos encontros presenciais. Eles são importantes para o melhor aproveitamento da disciplina.

8 - Não relegue a um segundo plano as atividades complementares e a auto-avaliação.

9 - Não hesite em começar de novo.

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SUMÁRIO

Quadro-síntese do conteúdo programático............................................................................................................ 11

Contextualização da disciplina ................................................................................................................................. 13

UNIDADE I

A CULTURA LUSITANA DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XVIII NO BRASIL-COLÔNIA

1.1 - Cultura: Etimologia ............................................................................................................................................ 151.2 - Etnocentrismo .................................................................................................................................................... 151.3 - O problema das origens da história cultural do Brasil: a Colônia como objeto de exploração ............... 151.4 - Literatura dos viajantes/literatura religiosa ................................................................................................... 161.5 - Século XVII: a cultura espanhola no Brasil-Colônia .................................................................................... 291.6 - O processo de aculturação: a Colônia como sujeito de sua história .......................................................... 441.7 - A questão da Inconfidência Mineira (final do século XVIII):sentimento patriótico pelo Basil-Colônia ou aversão aos desmandos da realeza de além-mar? .................... 441.8 - O português, o índio e o negro: o direito e o avesso do fenômeno nativista brasileiro ......................... 45

UNIDADE II

AS INFLUÊNCIAS DE OUTRAS CULTURAS NA COLÔNIA, NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICA

2.1 - Século XVI e início do século XVII ................................................................................................................. 462.2 - Século XVII ......................................................................................................................................................... 462.3 - Final do século XVII e século XVIII ............................................................................................................... 472.4 - Século XIX ......................................................................................................................................................... 472.5 - Século XX ........................................................................................................................................................... 482.6 - Século XXI .......................................................................................................................................................... 482.7 - Cultura popular ................................................................................................................................................... 492.8 - Cultura erudita ................................................................................................................................................... 492.9 - Cultura de massa ................................................................................................................................................ 502.10 - Cultura alternativa ........................................................................................................................................... 502.11 - Cultura oficial ................................................................................................................................................... 502.12 - Cultura dominante x cultura dominada ......................................................................................................... 502.13 - Tradição x inovações: nas trilhas da arte (música e literatura) ................................................................. 512.14 - Carnaval e futebol ........................................................................................................................................... 562.15 - Televisão x neocolonialismo .......................................................................................................................... 58

UNIDADE III

A QUESTÃO LITERÁRIA NOS SÉCULOS XIX E XX: TRADIÇÃO X MODERNIDADE

3.1 - Consciência do subdesenvolvimento (século XX) ....................................................................................... 603.2 - Literatura brasileira: de 1927 ao final dos anos 1950 ..................................................................................... 603.3 - Visões do Brasil moderno: Josué de Castro, Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido,Álvaro Vieira Pinto, Caio Prado Junior e Celso Furtado ....................................................................................... 613.4 - O conservadorismo católico: Murilo Mendes (poeta) e Tristão de Ataíde (ensaísta) ............................. 67

Page 10: Cultura Luso Brasileira

3.5 - Os "novos brasileiros" pela ótica de autores estrangeiros: Claude Levi-Strauss, Roger Bastide eStephan Zweig .................................................................................................................................................................. 693.6 - Brasil: meados do século XX ........................................................................................................................... 713.7 - Brasil: final do século XX ................................................................................................................................. 733.8 - Brasil, início do século XXI: best-seller, cinema e TV .................................................................................. 74

Referências bibliográficas ......................................................................................................................................... 77

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UNIDADES DO PROGRAMA OBJETIVOS

Quadro-síntese do conteúdoprogramático

I - A CULTURA LUSITANA DO SÉCULO XVIAO SÉCULO XVII NO BRASIL-COLÔNIA

1.1 - Cultura: Etimologia1.2 - Etnocentrismo1.3 - O problema das origens da história cultural

do Brasil: a Colônia como objeto de exploração1.4 - Literatura dos viajantes/literatura religiosa1.5 - Século XVII: a cultura espanhola no Bra-

sil-Colônia1.6 - O processo de aculturação: a Colônia

como sujeito de sua história1.7 - A questão da Inconfidência Mineira (fi-

nal do século XVIII): sentimento patriótico peloBasil-Colônia ou aversão aos desmandos darealeza de além-mar?

1.8 - O português, o índio e o negro: o direitoe o avesso do fenômeno nativista brasileiro

II - AS INFLUÊNCIAS DE OUTRAS CULTURASNA COLÔNIA, NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICA

2.1 - Século XVI e início do século XVII2.2 - Século XVII2.3 - Final do século XVII e século XVIII2.4 - Século XIX2.5 - Século XX2.6 - Século XXI2.7 - Cultura popular2.8 - Cultura erudita2.9 - Cultura de massa2.10 - Cultura alternativa2.11 - Cultura oficial2.12 - Cultura dominante x cultura dominada2.13 - Tradição x inovações: nas trilhas da arte

(música e literatura)2.14 - Carnaval e futebol2.15 - Televisão x neocolonialismo

• Levar ao aluno informações que definem a situaçãodo texto literário técnico (Paraliteratura), chamando a aten-ção para os aspectos que possam orientar teoricamentee criticamente suas literaturas, para a compreensão dahistória cultural do Brasil.

• Levar o aluno a entender e a interagir com suas heran-ças policulturais.

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12 III - A QUESTÃO LITERÁRIA NOS SÉCULOSXIX E XX: TRADIÇÃO X MODERNIDADE

3.1 - Consciência do subdesenvolvimento(século XX)

3.2 - Literatura brasileira: de 1927 ao final dosanos 1950

3.3 - Visões do Brasil moderno: Josué deCastro, Sérgio Buarque de Holanda, AntônioCândido, Álvaro Vieira Pinto, Caio PradoJunior e Celso Furtado

3.4 - O conservadorismo católico: Murilo Men-des (poeta) e Tristão de Ataíde (ensaísta)

3.5 - Os "novos brasileiros" pela ótica de au-tores estrangeiros: Claude Levi-Strauss, RogerBastide e Stephan Zweig

3.6 - Brasil: meados do século XX3.7 - Brasil: final do século XX3.8 - Brasil, início do século XXI: best-seller,

cinema e TV

• Levar o aluno à compreensão de uma literatura deinformação conscientizadora e reveladora dosubdesenvolvimento do país ao longo do século XX.

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13Contextualização da Disciplina

A disciplina Cultura Luso-Brasileira visa reafirmar o leque de informações que foram (ou serão) utilizadas nodecorrer dos estudos de Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa e, ao mesmo tempo, contribuir com novasorientações de cunho sócio-históricoliterário que possam alargar, de maneira consciente, o conhecimento doaluno, em suas atividades do curso de Letras, para que concomitantemente ele possa interagir com as disciplinasafins que se sucederão, tais como Cultura e Literatura Espanhola e Cultura e Literatura Inglesa.

Este conhecimento se somará aos já adquiridos em disciplinas anteriores, pois, além de promover uma buscados fundamentos da Cultura Brasileira via Portugal e do reconhecimento das influências de outras culturasvariadas que se somaram à portuguesa inicial, dos anos quinhentos aos nossos dias (indígena, espanhola,africana, italiana, francesa, libanesa, inglesa, suíça, alemã, japonesa e outras), o aluno continuará a ter condiçõesde se disciplinar a estudar com maior empenho e desenvolverá o senso crítico, principalmente em relação àsorigens do Brasil, no intuito de prosseguir em estudos posteriores, tais como cursos de pós-graduação LatoSensu em áreas afins relacionadas às Ciências Humanas (Lingüística, Sociologia, Antropologia e outras), sejamelas brasileiras ou estrangeiras, ou mesmo em cursos de pós-graduação Stricto Sensu, ou seja, um mestrado e,posteriormente, um doutorado.

As informações contidas nesta disciplina tendem a provocar no aluno a continuação do gosto pelo crescimentointelectual e levá-lo a pesquisas posteriores, desenvolvendo e ampliando o seu conhecimento ao longo dotempo. Sem estas informações avançadas sobre Cultura Luso-Brasileira, as quais se somarão às outras adquiridasem outras disciplinas, o aluno não conseguirá atingir o necessário suporte para o seu desenvolvimento intelectual,ético e profissional.

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15UNIDADE I

A CULA CULA CULA CULA CULTURA LUSITTURA LUSITTURA LUSITTURA LUSITTURA LUSITANA DO SÉCULANA DO SÉCULANA DO SÉCULANA DO SÉCULANA DO SÉCULO XVI AO XVI AO XVI AO XVI AO XVI AO SÉ-O SÉ-O SÉ-O SÉ-O SÉ-CULO XVIII NO BRASIL-COLÔNIACULO XVIII NO BRASIL-COLÔNIACULO XVIII NO BRASIL-COLÔNIACULO XVIII NO BRASIL-COLÔNIACULO XVIII NO BRASIL-COLÔNIA

1.1 - 1.1 - 1.1 - 1.1 - 1.1 - Cultura: Etimologia

Cf.: BOSI, Alfredo. História Concisa da LiteraturaBrasileira. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 11-.13

Nos primeiros séculos, os ciclos de ocupação e de explo-ração formaram ilhas sociais (Bahia, Pernambuco, Mi-nas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo), que deram àColônia a fisionomia de um arquipélago cultural. E nãosó no facies geográfico: as ilhas devem ser vistas tambémna dimensão temporal, momentos sucessivos que foramdo nosso passado desde o século XVI até a Independência(BOSI: 1994, op. cit., p. 11).

COLÔNIA (retrospectiva esquemática do parágrafoacima de Alfredo Bosi):

Primeiros séculos: OCUPAÇÃO E EXPLORAÇÃO.FORMAÇÃO DE ILHAS SOCIAIS (Bahia,Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo)

ILHAS SOCIAISDeram à Colônia a fisionomia de um arquipélago cultural

COLÔNIA = ILHAS CULTURAIS

De um lado:dispersão do paísem subsistemas

regionais (até hojerelevantes para ahistória literária)

De outro lado:seqüência de influxos

da Europa,responsável pelo

paralelo que seestabeleceu entre osmomentos de além-

Atlântico e asesparsas manifesta-ções literárias e ar-tísticas do Brasil-Colônia: Barroco,

Arcádia, Ilustração ePré-Romantismo.

• Do latim cultura = cultivar, habitar, cultuar, cuidar,tratar bem;

• Processo ou efeito de cultivar a terra; lavra; cultivo(cultivo do solo);

• Parte cultivada de um sítio, unidade produtiva ouregião;

• Produto do cultivo; plantação, criação ou desen-volvimento com cuidados especiais (cultivo do fei-

jão, cultivo de rosas, cultivo do bicho-da-seda etc.);

• Cultivo = produção com técnicas especiais;

• Cultivo de célula ou tecido vivos em uma soluçãocontendo nutrientes adequados e em condições pro-pícias à sobrevivência;

• Criação de alguns animais (moluscos, peixes etc.);

• Cultivar o hábito de ler e escrever.

• Visão de mundo característica de quem consi-dera o seu grupo étnico, nação ou nacionalidadesocialmente mais importante do que as demais.

• "O que singulariza a cultura ‘superior’ é a possibilidade

que ela tem de avaliar a si mesma; em última instância, é asua auto-consciência" (BOSI, Alfredo. Cultura Brasilei-ra: Tema e Situações. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992, p. 14).

1.2 - 1.2 - 1.2 - 1.2 - 1.2 - Etnocentrismo

1.3 - 1.3 - 1.3 - 1.3 - 1.3 - O Problema das Origens da História Culturaldo Brasil: A Colônia como Objeto de Exploração

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Literatura no Brasil-Colônia - Século XVI

Cf.: BOSI, Alfredo. História Concisa da LiteraturaBrasileira. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

Cf.: CÂNDIDO, Antônio & CASTELLO, JoséAderaldo. Presença da Literatura Brasileira. DasOrigens ao Realismo. História e Antologia. 8. ed. Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

FASE COLONIAL (Século XVI / início do XVII):

O problema das origens da nossa literatura não pode formu-lar-se em termos de Europa, onde foi a maturação das gran-des nações modernas que condicionou toda a história cultu-ral, mas nos mesmos termos das outras literaturas america-nas, isto é, a partir da afirmação de um complexo colonialde vida e de pensamento (BOSI: 1994, op. cit., p. 11).

A Colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o ‘outro’ emrelação à metrópole: em nosso caso, foi a terra a ser ocupada,o pau-brasil a ser explorado, a cana-de-açúcar a ser cultivada, oouro a ser extraído; numa palavra, a matéria-prima a ser carreadapara o mercado externo. A Colônia só deixa de o ser quandopassa a sujeito de sua história (BOSI: 1994, op. cit., p. 11).

Os primeiros escritos da nossa vida documentam precisa-mente a instauração do processo: são informações que via-jantes e missionários europeus colheram sobre a natureza eo homem brasileiro. Enquanto informações, não pertencemà categoria do literário, mas à pura crônica histórica e, porisso, há quem as omita por escrúpulo estético (José Veríssimo,por exemplo, na sua História da Literatura Brasileira). Noentanto, a pré-história das nossas letras interessa como re-flexo da visão do mundo e da linguagem que nos legaram osprimeiros observadores do país. É graças a essas tomadasdiretas da paisagem, do índio e dos grupos sociais nascentes,que captamos as condições primitivas de uma cultura que sómais tarde poderia contar com o fenômeno da palavra arte(BOSI: 1994, op. cit., p. 13).

E não é só como testemunhos do tempo que valem taisdocumentos: também como sugestões temáticas e formais.Em mais de um momento a inteligência brasileira, reagin-do contra certos processos agudos de europeização, procu-rou nas raízes da terra e do nativo imagens para se afirmarem face do estrangeiro: então, os cronistas voltaram a serlidos, e até glosados, tanto por um Alencar romântico esaudosista como por um Mário ou um Oswald de Andrademodernistas. Daí o interesse obliquamente estético da "li-teratura" de informação (BOSI: 1994, op. cit., p. 13).

Dos textos de origem portuguesa merecem destaque:

1.4 - 1.4 - 1.4 - 1.4 - 1.4 - Literatura dos Viajantes / Literatura Religiosa

Nota de Alfredo Bosi: "V. Afrânio Coutinho. A Tradi-ção Afortunada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968,onde o crítico estuda o fator ‘nacionalidade’ em vári-os momentos da crítica brasileira" (BOSI: 1994, op.cit., p. 11).

Assim, de um lado houve a dispersão do país em subsistemasregionais, até hoje relevantes para a história literária; deoutro lado, a seqüência de influxos da Europa, responsávelpelo paralelo que se estabeleceu entre os momentos dealém-Atlântico e as esparsas manifestações literárias e ar-tísticas do Brasil-Colônia: Barroco, Arcádia, Ilustração, Pré-Romantismo... (BOSI: 1994, op. cit., p. 12).

Acresce que o paralelismo não podia ser rigoroso pela óbviarazão de estarem fora os centros primeiros de irradiaçãomental. De onde certos descompassos que causariam espéciea um estudioso habituado às constelações da cultura européiacoexistem, por exemplo, com o barroco do ouro das igrejasmineiras e baianas, a poesia arcádica e a ideologia dos ilus-trados que dá cor doutrinária às revoltas nativistas do séculoXVIII. Códigos literários europeus mais mensagens ou con-teúdos já coloniais conferem aos três primeiros séculos denossa vida espiritual um caráter híbrido, de tal sorte queparece uma solução aceitável de compromisso chamá-loluso-brasileiro, como o fez Antônio Soares Amora na Histó-ria da Literatura Brasileira. (BOSI: 1994, op. cit., p. 12).

Convém lembrar, por outro lado, que Portugal, perdendo aautonomia política entre 1580 e 1640, e decaindo verti-calmente nos séculos XVII e XVIII, também passou para acategoria de nação periférica no contexto europeu e a sualiteratura, depois do clímax da época quinhentista, entroua girar em torno de outras culturas: a Espanha do Barroco,a Itália da Arcádia, a França do Iluminismo. A situação

afetou em cheio as incipientes letras coloniais que, já nolimiar do século XVII, refletiriam correntes de gosto rece-bidas de segunda mão. O Brasil reduzia-se à condição desubcolônia... (BOSI: 1994, op. cit., p. 12).

A rigor, só laivos de nativismo, pitoresco no século XVII ejá reivindicatório no século seguinte, podem considerar-seo divisor de águas entre um gongórico português e o baianoBotelho de Oliveira, ou entre um árcade coimbrão e umlírico mineiro. E é sempre necessário distinguir umnativismo estático, que exaure na menção da paisagem, deum nativismo dinâmico, que integra o ambiente e o ho-mem na fantasia poética (Basílio da Gama, Silva Alvarenga,Sousa Caldas) (BOSI: 1994, op. cit., p. 12).

O limite da consciência nativista é a ideologia dos inconfi-dentes de Minas, do Rio de Janeiro, da Bahia e do Recife.Mas, ainda nessas pontas-de-lança da dialética entre Me-trópole e Colônia, a última pediu de empréstimo à Françaas formas de pensar burguesas liberais para interpretar asua própria realidade. De qualquer modo, a busca de fontesideológicas não-portuguesas ou não-ibéricas, em geral, jáera uma ruptura consciente com o passado e um caminhopara modos de assimilação mais dinâmicos e propriamentebrasileiros, da cultura européia, como se deu no períodoromântico (BOSI: 1994, op. cit., p. 12-13).

Resta, porém, o dado preliminar de um processo colonialque se desenvolveu nos três primeiros séculos da vida bra-sileira e condicionou, como nenhum outro, a totalidade denossas reações de ordem intelectual: e se se prescindir dasua análise, creio que não poderá ser compreendido na suainteira dinâmica nem o próprio fenômeno da mestiçagem,núcleo do nosso mais fecundo ensaísmo social de SílvioRomero a Euclides da Cunha, de Oliveira Viana a GilbertoFreyre (BOSI: 1994, op. cit., p. 13).

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17a) a Carta de Pero Vaz de Caminha a el-Rei D. Manuel,referindo o descobrimento de uma nova terra e as primei-ras impressões da natureza e do aborígine (1500);

b) o Diário de Navegação, de Pero Lopes e Sousa, escri-vão do primeiro grupo colonizador, o de Martim Afonsode Sousa (1530);

c) o Tratado da Terra do Brasil e a História da Provínciade Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil dePero Magalhães Gândavo (1576);

d) a Narrativa Epistolar e os Tratados da Terra e da Gente doBrasil, do jesuíta Fernão Cardim (a primeira certamente de 1583);

e) o Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Sousa(1587);

f) os Diálogos das Grandezas do Brasil, de AmbrósioFernandes Brandão (1618);

g) as cartas dos missionários jesuítas escritas nos dois pri-meiros séculos de catequese;

h) o Diálogo sobre a Conversão dos Gentios, do Pe. Ma-nuel da Nóbrega;

i) a História do Brasil, de Fr. Vicente do Salvador (1627)(BOSI: 1994, op. cit., p. 13-14).

GRUPO PERNAMBUCANO: Intelectuais e artistasreunidos à volta do governador de Pernambuco, Jorgede Albuquerque Coelho. A figura mais importante éa do poeta Bento Teixeira (1561-1600), autor deProsopopéia, poemeto com matéria épica seguindoos moldes de Os Lusíadas, onde exalta os feitosdo donatário da capitania de Pernambuco, Jorgede Albuquerque Coelho.

Sobre o poema Prosopopéia, de Bento Teixeira (es-crito no século XVI):

Na esteira do Camões épico e das epopéias menores dos finsdo século XVI, o poemeto em oitavas heróicas Prosopopéia,de Bento Teixeira, publicado em 1601, pode ser consideradoum primeiro e canhestro exemplo de maneirismo nas letrasda colônia (BOSI: 1994, op. cit., p. 36).

A intenção é encomiástica e o objeto do louvor é Jorge deAlbuquerque Coelho, donatário da capitania de Pernambuco,que encetava a sua carreira de prosperidade graças à cana-de-açúcar. A imitação de Os Lusíadas é assídua, desde aestrutura até o uso dos chavões da mitologia e dos torneiossintáticos (BOSI, 1994, op. cit., p. 36).

Vocabulário (Dicionário):

Canhestro = feito às canhas, às avessas, desajeita-damente, desengonçadamente.

Chavões = sentença ou provérbio muito batido pelo uso.

Donatário = senhor de uma donataria; indivíduo querecebeu uma doação.

Encetava = começava, principiava, iniciava.

Encomiástica = referente a encômio.

Encômio = discurso laudatório, discurso de louvação,discurso onde se sobressai o elogio, discurso panegirista.

Heróico = próprio de herói; diz-se do estilo ou gêne-ro literário em que se celebram façanhas de heróis.

Maneirismo = estilo literário do século XVI; estilo detransição entre o Classicismo e o Barroco (vigorou emmeados do século XVI).

Oitava = cada uma das oito partes iguais em que sedivide um todo; estrofe de oito versos.

Oitavas heróicas (oitavas-rimas) = Estrofes de oitoversos decassílabos, dos quais o primeiro verso rimacom o terceiro e o quinto versos, o segundo versocom o quarto e o sexto versos, e o sétimo com o oita-vo. Em oitava-rima foram compostos os versos de OsLusíadas, de Luís Vaz de Camões.

Panegirista = aquele que faz discurso em louvor de al-guém.

Prosopopéia = [do grego prosopopoiía = 'personifi-cação', pelo latim prosopopooeia] = figura da retóricapela qual se dá vida e, pois, ação, movimento e voz, acoisas inanimadas, e se empresta voz a pessoas au-sentes ou mortas e animais; personificação; discursoempolado ou veemente.

Literatura e Situação

Origens da Literatura Brasileira:

• Não pode formular-se em termos de Europa;

• Formula-se a partir da afirmação de um complexocolonial de vida e de pensamento;

• Colônia = o "outro" em relação à Metrópole (objetode uma cultura);

• Brasil-Colônia = objeto de uma cultura (por umlado);

• Brasil-Colônia = terra a ser ocupada, o pau-brasil a serexplorado, a cana-de-açúcar a ser cultivada, o ouro a serextraído, ou seja, a matéria-prima a ser carreada para omercado externo (BOSI: 1994, op. cit., p. 11).

As origens da literatura brasileira, ou das manifestaçõesliterárias no Brasil-Colônia, prendem-se ao quinhentismoportuguês e mais diretamente ao seiscentismo peninsular.

Page 18: Cultura Luso Brasileira

18Do quinhentismo, com as suas duas tendências paralelas,classicismo renascentista e permanência da tradiçãomedievalista, projetam-se, no primeiro século de nossaformação, o gosto da crônica histórica, o teatro populare o modelo camoniano (CÂNDIDO & CASTELLO: 1997,op. cit., p. 11).

Nos primeiros séculos, os ciclos de ocupação e de explora-ção formaram ilhas sociais (Bahia, Pernambuco, MinasGerais, Rio de Janeiro e São Paulo), que deram à Colônia afisionomia de um arquipélago cultural (op. cit., 1994: 11).

Colônia – ilhas culturais espalhadas por váriasregiões brasileiras. Conseqüência: dispersão dairradiação mental / cultural. Por exemplo, coexis-tem com o barroco do ouro das igrejas mineiras ebaianas a poesia arcádica e a ideologia dos ilus-trados (doutrinadora das revoltas nativistas doséculo XVII).

Literatura – não apresenta obras de verdadeiro va-lor estético.

1o) Literatura dos Viajantes ou de Informação(estrangeiros que escreveram sobre o Brasil)

PRODUÇÃO LITERÁRIA(predomina a prosa informativa e referencial)

2o) Literatura dos Catequistas (de Catequese)

A Carta de Pero Vaz Caminha ao Rei dePortugal, Dom Manuel, O Venturoso, Dando-lhe Notícia do Achamento de Terra Nova

(Escrita em 1o de maio de 1500)

Senhor,

Posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assimos outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notíciado achamento desta Vossa terra nova, que se agoranesta navegação achou, não deixarei de também dardisso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu me-lhor puder, ainda que – para o bem contar e falar –, osaiba pior que todos fazer!

Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância porboa vontade, a qual bem certo creia que, paraaformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais doque aquilo que vi e me pareceu.

Da marinhagem e das singraduras do caminho nãodarei aqui conta a Vossa Alteza – porque o não sabe-rei fazer –, e os pilotos devem ter este cuidado.

E portanto, Senhor, do que hei de falar começo:E digo quê:

A partida de Belém foi – como Vossa Alteza sabe –segunda-feira 9 de março. E sábado, 14 do dito mês,entre 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, maisperto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele diaem calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. Edomingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos,houvemos vista das Ilhas de Cabo Verde, a saber dailha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar,piloto.

Na noite seguinte à segunda-feira, amanheceu, se per-deu a frota de Vasco de Ataíde com a sua nau, semhaver tempo forte ou contrário para poder ser!

Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas eoutras partes. Mas... não apareceu mais!

E assim seguimos nosso caminho, por este mar delongo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, queforam 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra,estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obrade 660 ou 670 léguas –, os quais eram muita quantidadede ervas compridas, a que os mareantes chamamBotelho, e assim mesmo outras a que dão o nome derabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, to-pamos aves a que chamam furabuchos.

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vis-ta de terra! A saber, primeiramente de um grande monte,muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas aosul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; aoqual monte alto o capitão pôs o nome de O MontePascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. Eao sol-posto umas seis léguas de terra, lançamos âncoras,em dezenove braças – ancoragem limpa. Ali ficamo-nos todaaquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e se-guimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante– por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove bra-ças –, até meia légua da terra, onde todos lançamos ânco-ras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a estaancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.

E dali avistamos homens que andavam pela praia, unssete ou oito, segundo disseram os navios pequenosque chegaram primeiro.

Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vie-ram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra NicolauCoelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou air-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aostrês, de maneira que, quando o batel chegou à boca dorio, já lá estavam dezoito ou vinte.

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19Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas

vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vi-nham todos rijamente em direção ao batel. E NicolauCoelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E elesos depuseram. Mas não pôde deles haver fala nementendimento que aproveitasse, por o mar quebrar nacosta. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho euma carapuça de linho que levava na cabeça, e umsombreiro preto. E um deles lhe arremessou umsombreiro de penas de ave, compridas, com umacopazinha de penas vermelhas e pardas, como de pa-pagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhasbrancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quaispeças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. Ecom isto se volveu às naus por ser tarde e não poderhaver deles mais fala, por causa do mar.

À noite seguinte ventou tanto sueste comchuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente aCapitanisol-postoa. E sexta pela manhã, às oito ho-ras, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos,mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela. Efomos de longo da costa, com os batéis e esquifesamarrados na popa, em direção norte, para ver seachávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nósficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos jáminguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quandofizemos vela estariam já na praia assentados perto dorio obra de sessenta ou setenta homens que se havi-am juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e man-dou o Capitão aos navios pequenos que fossem maischegados à terra e, se achassem pouso seguro paraas naus, que amainassem.

E velejando nós pela costa, na distância de dez lé-guas do sítio onde tínhamos levantado ferro, acharamos ditos navios pequenos um recife com bom portodentro, muito bom e muito seguro, com uma mui largaentrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as nausforam-se chegando, atrás deles. E um pouco antes dosol-posto amainaram também, talvez a uma légua dorecife, e ancoraram a onze braças.

E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um da-queles navios pequenos, foi, por mandado do Capi-tão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-selogo no esquife a sondar o porto dentro. E tomoudois daqueles homens da terra que estavam numaalmadia: mancebos e de bons corpos. Um deles traziaum arco, e seis ou sete setas. E na praia andavammuitos com seus arcos e setas; mas não os aprovei-tou. Logo, já de noite, levou-os à Capitania, ondeforam recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é serem pardos, um tantoavermelhados, de bons rostos e bons narizes, bemfeitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazemmais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas ver-

gonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são degrande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo fura-do e metido nele um osso verdadeiro, de comprimentode uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algo-dão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pelaparte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre obeiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. Etrazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nemlhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.

Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquia-dos, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boagrandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E umdeles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, naparte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de aveamarela, que seria do comprimento de um coto, mui bas-ta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. Eandava pegada aos cabelos, pena por pena, com umaconfeição branda como, de maneira tal que a cabeleiraera mui redonda e mui basta, e mui igual, e não faziamíngua mais lavagem para a levantar.

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado emuma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bemvestido, com um colar de ouro, mui grande ao pescoço.E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Co-elho, e Aires Côrrea, e nós outros que aqui na nau comele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acende-ram-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de corte-sia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. To-davia um deles fitou o colar do Capitão, e começou afazer acenos com a mão em direção à terra, e depoispara o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ourona terra. E também olhou para um castiçal de prata eassim mesmo acenava para a terra e novamente para ocastiçal, como se lá também houvesse prata!

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão trazconsigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para aterra, como se os houvesse ali.

Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.

Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela,e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mascomo espantados.

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos,farteis, mel, figos passados. Não quiseram comer da-quilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo alançavam fora.

Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram aboca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.

Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cadaum o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaramas bocas e lançaram-na fora.

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20Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez

sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lan-çou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as emvolta do braço, e acenava para a terra e novamentepara as contas e para o colar do Capitão, como sedariam ouro por aquilo.

Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o de-sejarmos! Mas ele queria dizer que levaria as contas emais o colar, isto não queríamos nós entender, por quelho não havíamos de dar! E depois tornou as contas aquem lhas dera. E então estiraram-se de costas na al-catifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrirsuas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as ca-beleiras delas estavam bem rapadas e feitas.

O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cadaum seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não aestragar. E deitaram um manto por cima deles; e con-sentindo, aconchegaram-se e adormeceram.

Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela,fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinhaseis a sete braças de fundo. E entraram todas as nausdentro, e ancoraram em cinco ou seis braças? ancora-douro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tãoseguro que podem ficar nele mais de duzentos naviose naus. E tanto que as naus foram distribuídas e anco-radas, vieram os capitães de todas a esta nau do Capi-tão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coe-lho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassemaqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco esetas, aos quais mandou dar a cada um uma camisanova e uma carapuça vermelha e um rosário de contasbrancas de osso, que foram levando nos braços, e umcascavel e uma campainha. E mandou com eles, para láficar, um mancebo degredado, criado de dom João Telo,de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e sa-ber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fossecom Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos àpraia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens,todos nus, com arcos e setas nas mãos. E eles os de-puseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinhampousado seus arcos quando saíram os que nós levá-vamos, e o mancebo degredado com eles. E saídosnão pararam mais; nem esperavam um pelo outro, masantes corriam a quem mais correriam. E passaram umrio que aí corre, de água doce, de muita água que lhesdava pela Braga. E muitos outros com eles. E foramassim correndo para além do rio entre umas moitas depalmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naqui-lo tinha ido o degredado com um homem que, logo aosair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo otornaram a nós. E com ele vieram os outros que nósleváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.

E então se começaram de chegar muitos; e entravampela beira do mar para os batéis, até que mais não

podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam algunsbarris que nós levávamos e enchiam-nos de água etraziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegas-sem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nosda mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes des-sem alguma coisa.

Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E auns dava um cascavel, e a outros uma manilha, demaneira que com aquela encarna quase que nos queri-am dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas emtroca de sombreiros e carapuças de linho, e de qual-quer coisa que a gente lhes queria dar.

Dali se partiram os outros, dois mancebos, que nãoos vimos mais.

Dos que ali andavam, muitos – quase a maior parte –,traziam aqueles bicos de osso nos beiços.

E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiçosfurados e nos buracos traziam uns espelhos de pau,que pareciam espelhos de borracha. E alguns delestraziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e osdois nos cabos.

E andavam lá outros, quartejados de cores, a sabermetade deles da sua própria cor, e metade de tinturapreta, um tanto azulada; e outros quartejadosd'escaques.

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bemnovinhas e gentis, com cabelos muito pretos e com-pridos pelas costas; e suas vergonhas tão altas e tãocerradinhas e tão limpas de cabeleiras que, de as nósmuito bem olharmos, não se envergonhavam.

Ali por então não houve mais fala ou entendimentocom eles, por a barbaria deles ser tamanha que se nãoentendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que sefossem. E assim o fizeram e passaram-se para além dorio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis,e encheram não sei quantos barris d'água que nóslevávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assimvínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos,e eles mandaram o degredado e não quiseram que fi-casse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena eduas ou três carapuças vermelhas para lá as dar aosenhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirarcoisa alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas en-tão Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhedesse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista denós, a aquele que o da primeira agasalhara. E entãoveio-se, e nós levamo-lo.

Esse que o agasalhou era já de idade, e andava porgalanteria, cheio de penas pegadas pelo corpo, queparecia seteado como São Sebastião. Outros traziam

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21carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; eoutros, de verdes. E uma daquelas moças era toda tingi-da de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bemfeita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que amuitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições,envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhumdeles era fanado, mas todos assim como nós.

E com isto nos tornamos, e eles foram-se.

À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todosnós outros capitães das naus em seus batéis a folgarpela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra,por o Capitão o não querer, apesar de ninguém estarnela. Apenas saiu – ele com todos nós –, em um ilhéugrande que está na baía, o qual, aquando baixamar,fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes cer-cado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a nãoser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós,bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando algunsmarinheiros com um chinchorro; e mataram peixe miú-do, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bemnoite.

Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou oCapitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E man-dou a todos os capitães que se arranjassem nos batéise fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar umpavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar muibem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizermissa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz en-toada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outrospadres e sacerdotes, que todos assistiram, a qual mis-sa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos commuito prazer e devoção.

Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, comque saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, daparte do Evangelho.

Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu auma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia.E pregou uma solene e proveitosa pregação da histó-ria evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e doachamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cujaobediência viemos, que veio muito a propósito, e fezmuita devoção.

Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria napraia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como ade ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando.E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a mis-sa, quando nós sentados atendíamos a pregação, le-vantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzinae começaram a saltar e dançar um pedaço. E algunsdeles se metiam em almadias – duas ou três que lá ti-nham –, as quais não são feitas como as que eu vi;apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam

quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastan-do quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.

Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, comtodos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta.Embarcamos e fomos indo todos em direção à terrapara passarmos ao longo por onde eles estavam, indona dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Diasem seu esquife, com um pau de uma almadia que lheso mar levara, para o entregar a eles. E nós todos atrásdele, a distância de um tiro de pedra.

Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde maispodiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e mui-to deles os iam logo pôr em terra; e outros não os pu-nham.

Andava lá um que falava muito aos outros, que seafastassem. Mas não já que a mim me parecesse quelhe tinham respeito ou medo. Este que os assim anda-va afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto detintura vermelha pelos peitos e costas e pelos qua-dris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com abarriga e estômago eram de sua própria cor. E a tinturaera tão vermelha que a água lha não comia nem desfa-zia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho.Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e an-dava no meio deles, sem implicarem nada com ele, emuito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Ape-nas lhe davam cabaças d'água; e acenavam aos doesquife que saíssem em terra. Com isto se volveuBartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, acomer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais cons-tranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assimpor então ficaram.

Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, es-praia muito a água e descobre muita areia e muito cas-calho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscarmarisco e não no acharam. Mas acharam alguns cama-rões grossos e curtos, entre os quais vinha um muitogrande e muito grosso; que em nenhum tempo o vitamanho. Também acharam cascas de berbigões e deamêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.E depois de termos comido vieram logo todos os capi-tães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com osquais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntoua todos se nos parecia bem mandar a nova doachamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dosmantimentos, para melhor mandar descobrir e saberdela mais do que nós podíamos saber, por irmos nanossa viagem.

E entre muitas falas que sobre o caso fizeram foi dito,por todos ou a maior parte, que seria muito bem. Enisto todos concordaram. E, logo que a resolução foitomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por

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22força um par destes homens para os mandar a VossaAlteza, deixando aqui em lugar deles outros dois des-tes degredados.

E concordaram em que não era necessário tomar porforça homens, porque costume era dos que assim àforça levavam para alguma parte dizerem que há detudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muitomelhor informação da terra dariam dois homens des-ses degredados que aqui deixássemos do que elesdariam se os levassem por ser gente que ninguém en-tende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o sabe-rem tão bem dizer que muito melhor estoutros o nãodigam quando cá Vossa Alteza mandar.

E que portanto não cuidássemos de aqui por forçatomar ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para osde todo amansar e apaziguar, unicamente de deixaraqui os dois degredados quando daqui partíssemos.

E assim ficou determinado por parecer melhor a to-dos.

Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nosbatéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio.Mas também para folgarmos.

Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a ban-deira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca dorio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos,pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os ar-cos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que osbatéis puseram as proas em terra, passaram-se logotodos além do rio, o qual não é mais ancho que umjogo de mancal. E tanto que desembarcamos, algunsdos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entreeles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam.Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavammisturados. Eles davam desses arcos com suas setaspor sombreiros e carapuças de linho, e por qualquercoisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nos-sos e andaram assim misturados com eles, que eles seesquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima,onde outros estavam. E então o Capitão fez que otomassem ao colo dois homens e passou o rio, e feztornar a todos. A gente que ali estava não seria maisque aquela do costume. Mas logo que o Capitão cha-mou todos para trás, alguns se chegaram a ele, nãopor o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente,nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam etraziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, eresgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira queos nossos levavam dali para as naus muitos arcos, esetas e contas.

E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. Elogo acudiram muitos à beira dele.

Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, equartejados, assim pelos corpos como pelas pernas,que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entreeles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas,não pareciam mal. Entre elas andava uma, com umacoxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingidadaquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natu-ral. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assimtintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhastão nuas, e com tanta inocência assim descobertas,que não havia nisso desvergonha nenhuma.

Também andava lá outra mulher, nova, com um meni-no, ou menina, atado com um pano aos peitos, de modoque não se lhe viam senão as perninhas. Mas naspernas da mãe, e no resto, não havia pano algum.

Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio,que corre rente à praia. E ali esperou por um velho quetrazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto oCapitão estava com ele, na presença de todos nós;mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coi-sas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro,porque desejávamos saber se os havia na terra.

Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia peloburaco um grosso dedo polegar. E trazia metido no bu-raco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechavapor fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E elenão sei que diabo falava e ia com ela para a boca doCapitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco edizendo chalaças sobre isso. E então enfadou-se o Ca-pitão, e deixou-o e um dos nossos deu-lhe pela pedraum sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa,mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio,para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza.

Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muitaágua e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras,não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos ecomemos muitos deles.

Depois tornou-se o Capitão para baixo para a bocado rio, onde tínhamos desembarcado.

E além do rio andavam muitos deles dançando e fol-gando, uns diante os outros, sem se tomarem pelasmãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outrabanda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife deSacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levouconsigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-sea dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles fol-gavam e riam e andavam com ele muito bem ao som dagaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligei-ras, andando no chão, e salto real, de que eles espan-tavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aqui-lo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma

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23esquiveza como de animais monteses, e foram-se paracima.

E então passou o rio o Capitão com todos nós, efomos pela praia, de longo, ao passo que os batéisiam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa deágua doce que está perto da praia, porque toda aque-la ribeira do mar é apaulada por cima e sai água pormuitos lugares.

E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oitodeles meter-se entre os marinheiros que se recolhiamaos batéis. E levaram dali um tubarão que BartolomeuDias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.

Bastará até aqui, como quer que se lhes em algumaparte amansassem, logo de uma mão para outra seesquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguémnão lhes ousa falar de rijo para não se esquivaremmais. E tudo se passa como eles querem – para osbem amansarmos!

Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lheuma carapuça vermelha. E com toda a conversa quecom ele houve, e com a carapuça que lhe deu tantoque se despediu e começou a passar o rio, foi-se logorecatando. E não quis mais tornar do rio para aquém.Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quaisdeu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram –fatos de que deduzo que é gente bestial e de poucosaber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudoisso andam bem curados, e muito limpos. E naquiloainda mais me convenço que são como aves, oualimárias montesinhas, as quais o ar faz melhores pe-nas e melhor cabelo que às mansas, porque os seuscorpos são tão limpos e tão gordos e tão formososque não pode ser mais! E isto me faz presumir que nãotêm casas nem moradias em que se recolham; e o arem que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vi-mos até agora nenhumas casas, nem coisa que separeça com elas.

Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ri-beiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andoulá um bom pedaço, mas à tarde regressou, que o fize-ram eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu.Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas con-tinhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele sequeixou e os outros foram logo após ele, e lhas toma-ram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir.Disse que não vira lá entre eles senão umaschoupaninhas de rama verde e de feteiras muito gran-des, como as de Entre-Douro-e-Minho. E assim nostornamos às naus, já quase noite, a dormir.

Segunda-feira, depois de comer, saímos todos emterra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não

tantos como as outras vezes. E traziam já muito pou-cos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós;mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; eabraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se es-quivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas depapel e por alguma carapucinha velha e por qualquercoisa. E de tal maneira se passou a coisa que bemvinte ou trinta pessoas das nossas se foram com elespara onde outros muitos deles estavam com moças emulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes depenas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quaiscreio que o Capitão há de mandar uma amostra a VossaAlteza.

E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaramcom eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais ànossa vontade, por andarmos quase todos mistura-dos: uns andavam quartejados daquelas tinturas, ou-tros de metades, outros de tanta feição como em panode rãs, e todos com os beiços furados, muitos com osossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziamuns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriamparecer de castaneiras, embora fossem muito mais pe-quenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos,pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, sedesfaziam na tinta muito vermelha de que andavamtingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais ver-melhos ficavam.

Todos andam rapados até por cima das orelhas; as-sim mesmo de sobrancelhas e pestanas.

Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas detintura preta, que parece uma fita preta da largura dedois dedos.

E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ri-beiro e a outros dois degredados que fossem meter-seentre eles; e assim mesmo o Diogo Dias, por ser ho-mem alegre, com que eles folgavam. E aos degredadosordenou que ficassem lá esta noite.

Foram-se lá todos: e andaram entre eles. E segundodepois diziam, foram bem uma légua e meia a uma po-voação, em que haveria nove ou dez casas, as quaisdiziam que eram tão compridas, cada uma, como estanau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas detábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e to-das de um só espaço, sem repartição alguma, tinhamde dentro muitos esteios; e de esteio a esteio umarede atada com cabos em cada esteio, altas, em quedormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seusfogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, umanuma extremidade, e outra na oposta. E diziam que emcada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, eque assim os encontraram; e que lhes deram de comerdos alimentos que tinham, a saber muito inhame, eoutras sementes que na terra dá, que eles comem. E

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24como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; enão quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segun-do diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá porcascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que le-vavam, papagaios vermelhos, muito grandes e for-mosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças depenas verdes, e um pano de penas de muitas cores,espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Altezatodas estas coisas verá, porque o Capitão vô-las háde mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; enós tornamo-nos às naus.

Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazerlenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quandochegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e semnada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós,sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, queseriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam aacarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam comos nossos, e tomavam com prazer. E enquantofazíamos a lenha construíam dois carpinteiros umagrande cruz de um pau que se ontem para isto cortara.Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. Ecreio que o faziam mais para verem a ferramenta deferro com que a faziam do que para verem a cruz,porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortamsua madeira e paus com pedras feitas como cunhas,metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadase por tal maneira que andam fortes, porque lhas viramlá. Era já a conversação deles conosco tanta que quasenos estorvavam no que havíamos de fazer.

E o Capitão mandou a dois degredados e a DiogoDias que fossem lá a aldeia e que de modo algumviessem a dormir às naus, ainda que os mandassemembora. E assim se foram.

Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha,atravessavam alguns papagaios essas árvores;verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos,de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra.Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez,quando muito. Outras aves não vimos então, a nãoser algumas pombas-seixeras, e parecem-me maioresbastante do que as de Portugal. Vários diziam queviram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo osarvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitasespécies, não duvido que por esse sertão haja maisaves!

E cerca da noite nós volvemos para as naus comnossa lenha.

Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui aVossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcossão pretos e compridos, e as setas compridas; e osferros delas são canas aparadas, conforme Vossa

Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela háde enviar.

Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitãoandou todo o dia no navio dos mantimentos adespejá-lo e fazer levar às naus isso que cada umpodia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundodas naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundoSancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e AfonsoRibeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontemordenara que de toda maneira lá dormissem, tinhamvoltado já de noite, por eles não quererem que láficassem. E traziam papagaios verdes; e outras avespretas, quase como pegas, com a diferença de teremo bico branco e rabos curtos. E quando Sancho deTovar recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns;mas ele não admitiu senão dois mancebos, bemdispostos e homens de prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração quelhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis,segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquelanoite. E não houve mais este dia que para escreverseja.

Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, qua-se pela manhã, e fomos em terra por mais lenha eágua. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegouSancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por eleainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cadaum em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram,comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, earroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovardizer que o não bebiam bem.

Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, eeles conosco. Deu um grumete a um deles umaarmadura grande de porco montês, bem revolta. Elogo que a tomou meteu-a no beiço; e porque se lhenão queria segurar, deram-lhe uma pouca de ceravermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte detrás de sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assimrevolta para cima; e ia tão contente com ela, como setivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra,foi-se logo com ela. E não tornou a aparecer lá.

Andariam na praia, quando saímos, oito ou dezdeles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-meque viriam este dia a praia quatrocentos ouquatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcose setas; e deram tudo em troca de carapuças e porqualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco doque lhe dávamos, e alguns deles bebiam vinho, aopasso que outros o não podiam beber. Mas quer-meparecer que, se os acostumarem, o hão de beber deboa vontade! Andavam todos tão bem dispostos etão bem feitos e galantes com suas pinturas queagradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podi-

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25am, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis.E estavam já mais mansos e seguros entre nós doque nós estávamos entre eles.

Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço poreste arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água,que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia,em que nós tomamos água. Ali descansamos um pe-daço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre essearvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e detanta qualidade de folhagem que não se pode calcu-lar. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos ebons palmitos.

Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bomirmos em direitura à cruz que estava encostada a umaárvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã,sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos ea beijássemos para eles verem o acatamento que lhetínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze quelá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; elogo todos foram beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se nós enten-dêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cris-tãos, visto que não têm nem entendem crença alguma,segundo as aparências. E portanto se os degredadosque aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e osentenderem, não duvido que eles, segundo a santatenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crerna nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que ostraga, porque certamente esta gente é boa e de belasimplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquercunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Se-nhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como ahomens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio quenão foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tantodeseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar dasalvação deles. E prazerá a Deus que com pouco tra-balho seja assim!

Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca,cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animalque esteja acostumado ao viver do homem. E não co-mem senão deste inhame, de que aqui há muito, e des-sas sementes e frutos que a terra e as árvores de sideitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédiosque o não somos nós tanto, com quanto trigo e legu-mes comemos.

Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bai-laram sempre com os nossos, ao som de um tamborilnosso, como se fossem mais amigos nossos do quenós seus. Se lhes a gente acenava, se queriam vir àsnaus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal que,se os convidáramos a todos, todos vieram. Porémnão levamos esta noite às naus senão quatro ou cin-co; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão Miranda,

um que já trazia por pajem; e Aires Gomes a outro,pajem também. Os que o Capitão trazia, era um delesum dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a pri-meira vez quando aqui chegamos – o qual veio hojeaqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão;e foram esta noite mui bem agasalhados tanto decomida como de cama, de colchões e lençóis, para osmais amansar.

E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pelamanhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomosdesembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pare-ceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor servista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam defazer a cova para a fincar. E enquanto iam abrindo, elecom todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo ondeela estava. E com os religiosos e sacerdotes que can-tavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de pro-cissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ouoitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns seforam meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio,ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia deficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. An-dando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, oumais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de VossaAlteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram al-tar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, aqual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali esti-veram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessentadeles, assentados todos de joelho assim como nós. Equando se veio ao Evangelho, que nos erguemos to-dos em pé, com as mãos levantadas, eles se levanta-ram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até sechegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, comonós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemosde joelhos, eles se puseram assim como nós estáva-mos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sosse-gados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muitadevoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão;e depois da comunhão, comungaram esses religiosose sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. Ealguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se en-quanto estávamos comungando, e outros estiveram eficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüentae cinco anos, se conservou ali com aqueles que fica-ram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aque-les que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. Eandando assim entre eles, falando-lhes, acenou com odedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para océu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; enós assim o tomamos!

Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima,e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, emuma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Após-tolos cujo é o dia, tratando no fim da pregação desse

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26vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que noscausou mais devoção.

Esses que estiveram sempre à pregação estavam as-sim como nós olhando para ele. E aquele que digo,chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham eoutros iam-se; e acabada a pregação, trazia NicolauCoelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, quelhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bemque lançassem a cada um a sua ao pescoço. Por essacausa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz;e ali lançava a sua a todos – um a um – ao pescoço,atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantaras mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas,que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto aca-bado – era já bem uma hora depois do meio-dia – vie-mos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigoaquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para oaltar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquelefez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e aooutro uma camisa destoutras.

E segundo o que a mim e a todos pareceu, estagente, não lhes falece outra coisa para ser toda cris-tã, do que entenderem-nos, porque assim tomavamaquilo que nos viam fazer como nós mesmos; poronde pareceu a todos que nenhuma idolatria nemadoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aquimandar quem entre eles mais devagar ande, que to-dos serão tornados e convertidos ao desejo de Vos-sa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logode vir clérigo para os batizar; porque já então terãomais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degre-dados que aqui entre eles ficam, os quais hoje tam-bém comungaram.

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais queuma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, àqual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lem-brava de o estender muito para se cobrir. Assim, Se-nhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão nãoseria maior – com respeito ao pudor.

Ora veja, Vossa Alteza, quem em tal inocência vive seconvertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence àsua salvação.

Acabado isto, fomos perante a eles beijar a cruz. Edespedimo-nos e fomos comer.

Creio, Senhor, que, com estes dois degredados queaqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noitesaíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, osquais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui por-que de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa parti-da daqui.

Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que maiscontra o sul vimos, até à outra ponta que contra onorte vem, de que nós deste porto houvemos vista,será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte ecinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algu-mas partes grandes barreiras, uma vermelhas, e outrasbrancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia degrandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia...muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu,vista do mar, muito grande; porque a estender olhos,não podíamos ver senão terra e arvoredos – terra quenos parecia muito extensa.

Até agora não pudemos saber se há ouro ou pratanela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos.Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos etemperados como os de Entre-Douro-e-Minho, por-que neste tempo d'agora assim os achávamos comoos de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira égraciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nelatudo; por causa das águas que tem!

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principalsemente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que nãohouvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousa-da para essa navegação de Calicute bastava. Quantomais, disposição para nela se cumprir e fazer o que VossaAlteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossafé!

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta doque nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Elame perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudodizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.

E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargoque levo como em outra qualquer coisa que de Vossoserviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bemservida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê,mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meugenro – o que d'Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje,sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha.

Sobre a Carta de Pero Vaz de Caminha

O que para a nossa história significou uma autêntica certidãode nascimento, a Carta de Caminha a D. Manuel, dandonotícia da terra achada, insere-se em um gênero copiosa-mente representado durante o século XV em Portugal eEspanha: a literatura de viagens. Espírito observador, inge-nuidade (no sentido de um realismo sem pregas) e uma trans-parente ideologia mercantilista batizada pelo zelo missioná-

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27rio de uma cristandade ainda medieval: eis os caracteres quesaltam à primeira leitura da Carta e dão sua medida comodocumento histórico. (op. cit., 1994: 14).

Literatura dos Viajantes

A crônica histórica e informativa que se intensificaem Portugal no momento das grandes navegações,conquistas e descobertas ultramarinas, testemunhan-do a aventura geográfica dos portugueses, os seusideais de expansão da cristandade, assume um senti-do épico e humanístico que se estende ao Brasil elogo adquire entre nós algumas características peculi-ares. À curiosidade geográfica e humana e ao desejode conquista e domínio correspondem, inicialmente, odeslumbramento diante da paisagem exótica e exube-rante, testemunhado pelos cronistas portugueses queescreveram sobre o Brasil – Pero Vaz de Caminha, Perode Magalhães Gandavo, Gabriel Soares de Sousa (...).Certamente, a atitude desses cronistas, acompanhan-do o processo de identificação do colonizador euro-peu com a paisagem americana, é o germe da nossahistoriografia, na sua maneira informativa e descriti-va, a partir do testemunho pessoal, da observaçãodireta e da informação de terceiros até o fundamentoindispensável da documentação. É, também, com olouvor da terra, o germe do sentimento nativista, comoponto de partida, embora remoto, da formação da cons-ciência nacional. Bifurca-se, ou no sentidoamericanista, com críticas objetivas ao processo decolonização, ou no sentido luso-brasileiro, que nosconsidera como um Estado da monarquia portuguesa,cuja política é exaltada, enquanto os nossos valoressão reconhecidos como portugueses. (...) Consideran-do sempre o século XVI como um ponto de partida, aprimeira atitude é própria de Ambrósio FernandesBrandão e Frei Vicente do Salvador, já em princípiosdo século XVII (...) (op. cit., 1997: 11-12).

Os primeiros escritos da nossa vida documentam pre-cisamente a instauração do processo: são informaçõesque viajantes e missionários europeus colheram sobrea natureza e o homem brasileiro. Enquanto informações,não pertencem à categoria do literário, mas à pura crônicahistórica e, por isso, há quem as omita por escrúpuloestético (...). No entanto, a pré-história das nossas le-tras interessa como reflexo da visão do mundo e dalinguagem que nos legaram os primeiros observadoresdo país. É graças a essas tomadas diretas da paisagem,do índio e dos grupos sociais nascentes, que captamosas condições primitivas de uma cultura que só maistarde poderia contar com o fenômeno da palavra-arte(BOSI, op. cit., 1994: 13).

Literatura dos Viajantes ou de Informação:

Principais vultos:

• Pero de Magalhães GândavoObras: História da Província de Santa Cruz, a que

vulgarmente chamamos Brasil.Tratado da Terra do Brasil.

• Gabriel Soares de Souza (1540-1591)Obra: Tratado Descritivo do Brasil.

• Pero Lopes de Souza (1497-1539)Obra: Roteiro de Navegação da Armada que foi à

Terra do Brasil em 1500.

Literatura Religiosa

Assim como os cronistas se debruçaram sobre a ter-ra e o nativo com um espírito ao mesmo tempo ingênuoe prático, os missionários da Companhia de Jesus, aquichegados nem bem criada a ordem, uniram à sua fé(neles ainda de todo ibérica e medieval) um zelo cons-tante pela conversão do gentio, de que os escritoscatequéticos são cabal documento. E, se um Nóbregaexprime em cartas incisivas e no Diálogo o traço prag-mático do administrador, ou, se um Fernão Cardim lem-bra Gândavo e Gabriel Soares pela cópia de informesque sabe recolher nas capitanias que percorre, só emJosé de Anchieta é que acharemos exemplos daqueleveio místico que toda obra religiosa, em última análi-se, deve pressupor (BOSI, op. cit., 1994: 19).

Literatura dos Catequistas (ou Literatura deCatequese): Padres que tinham a finalidade de catequizaros índios.

Principais vultos:

• Padre José de Anchieta (1534-1597)Prosa: Arte da Gramática da Língua mais usada

nas Costas do Brasil;Vocabulário da Língua Tupi;Sermões;Cartas.

Poesia: De Beata Virgine Dei Matre Maria;De Rebus Gestis Mendi Saa.

Textos dramático-religiosos: Autos.

• Padre Manuel Bernardes (1517-1570)Obra literário-religiosa: Cartas.

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28A Influência da Companhia de Jesus naColonização do Brasil e Conversão do Índio X ALiteratura Religiosa de Padre José de Anchieta

A Informação dos Jesuítas: Paralelamente à crônicaleiga, aparece a dos jesuítas, tão rica de informações ecom um plus de intenção pedagógica e moral. Os no-mes mais significativos do século XVI são os de Ma-nuel da Nóbrega e Fernão Cardim, merecendo um lu-gar à parte, pela relevância literária, o de José deAnchieta (BOSI: 1994, op. cit., p. 18).

De Nóbrega, além do epistolário, cujo valor histórico nãose faz mister encarecer, temos o Diálogo Sobre a Conver-são dos Gentios (1558), documento notável pelo equilíbriocom que o sensato jesuíta apresentava os aspectos "nega-tivos" e "positivos" do índio, do ponto de vista da suaabertura à conversão (BOSI: 1994, op. cit., p. 18).

Igual realismo, mas menor perspicácia, encontra-senas relações que o Padre Fernão Cardim, na qualidadede Provincial, enviava a seus superiores europeus;relações que circulam enfaixadas sob o título de Trata-do da Terra e da Gente do Brasil, (op. cit., 1994: 18-19).

A Literatura Religiosa de Padre José de Anchieta:Há um Anchieta diligente anotador dos sucessos de umavida acidentada de apóstolo e mestre: para conhecê-loprecisamos ler as Cartas, Informações, Fragmentos His-tóricos e Sermões que a Academia Brasileira de Letraspublicou em 1933. Mas é o Anchieta poeta e dramaturgoque interessa ao estudioso da incipiente literatura colo-nial. (op. cit., 1994: 19).

Vocabulário (Dicionário):

Cabal = completo, pleno, inteiro, perfeito; rigoroso,severo.

Diligente = ativo, zeloso, aplicado.

Encarecer = louvar, elogiar, exaltar; recomendar cominteresse ou empenho.

Epistolário = livro que contém as epístolas que selêem na missa.

Gentios = pagãos (índios).

Incipiente = que está no começo, principiante.

Incisivas = decisivas, diretas.

Não se faz mister encarecer = não se faz necessárioelogiar.

Perspicácia = agudeza de espírito, sagacidade.

Plus = muito.

Pragmático = suscetível de ações práticas.

Provincial = superior de Ordem Religiosa.

Relevância = grande valor.

Língua Portuguesa no Brasil-Colônia XLíngua Tupi-Guarani

Descoberto o Brasil, o idioma português foi pararaqui trazido pelos colonizadores.

Por muito tempo o tupi-guarani, língua indígena doBrasil, resistiu à língua invasora. Para essa resistênciaconcorria o fato de os missionários terem de aprendero falar dos silvícolas a fim de catequizá-los ou entabu-lar negociações. O jesuíta José de Anchieta chegou acompor uma gramática da língua tupi impressa emCoimbra, em 1595.

Mas, à medida que foi aumentando o número de co-lonizadores, o Português, língua culta e bastante ex-pressiva, foi conseguindo se sobrepor à Língua Geral(tupi + português) até tornar-se a língua padrão queconhecemos, acrescida, mais tarde, de elementos afri-canos.

Não obstante apresentarem, o Português do Brasil eo de Portugal, algumas diferenças entre si, essas dife-renças não são suficientes para considerar uma línguabrasileira em contraposição à Língua Portuguesa(Conf.: CARVALHO, Dolores Garcia & NASCIMEN-TO, Manoel. Gramática Histórica. 10. ed. São Paulo:Ática, 1974: 99).

1580: Fim das Dinastias Borgonha-Avis Oriundasde Afonso Henriques. Início do Domínio Espanholem Portugal e no Brasil-Colônia

1580 / 1640 – Portugal perde sua autonomia política.O Brasil reduz-se à condição de subcolônia.

Portugal, perdendo a autonomia política entre 1580 e1640, e decaindo verticalmente nos séculos XVII e XVIII,também passou para a categoria de nação periférica nocontexto europeu; e a sua literatura, depois do clímaxda épica renascentista (quinhentista), entrou a girar emtorno de outras culturas: a Espanha do Barroco, a Itáliada Arcádia, a França do Iluminismo. A situação afetouem cheio as incipientes letras coloniais que, já no limiardo século XVII, refletiriam correntes de gosto recebi -

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Em 1580, uma crise dinástica levou à união de Portu-gal e Espanha sob o mesmo rei. Dom Sebastião, rei dePortugal, morreu em 1578 na Batalha de Alcácer-Quibir,África, na qual os mouros derrotaram os portugueses.Dom Sebastião não deixara herdeiros diretos, e porisso o trono passou para seu tio-avô, o Cardeal DomHenrique. Este morreu em 1580, deixando novamentevago o trono português.

Vários foram os candidatos que surgiram pretenden-do colocar sobre a cabeça a coroa sem dono. Entre ospretendentes, estavam Dom Antônio, prior do Crato, eFilipe II, rei da Espanha. Dom Antônio era preferidopelo povo, mas o cardeal-rei, em seu leito de morte,não quis designá-lo seu sucessor, deixando o cami-nho aberto para o rei espanhol.

O povo português ficou revoltado, nada podendofazer para evitar que Filipe II subornasse as autorida-des do reino, até o momento em que as Cortes de To-mar o aclamaram rei de Portugal, com o nome de FilipeI. Conta-se que, pouco antes da morte do Cardeal DomHenrique, o povo cantava nas ruas a seguintequadrinha:

Viva el-rei Dom HenriqueNo Inferno muitos anosPor deixar em testamentoPortugal aos Castelhanos!

Filipe II era neto de Dom Manuel, o Venturoso, pelolado materno. Pela linhagem paterna, descendia da fa-mília Habsburgo, a casa real da Áustria. Essa famíliatinha realizado uma série de casamentos de caráterpolítico, conseguindo, dessa maneira, o domínio deum extenso Império. Com Filipe II, as possessões dosHabsburgos se estenderam por quase todo o mundo.

O Império de Filipe II incluía Espanha, Países Baixos(Bélgica e Holanda) e regiões da atual Itália, comoSardenha, Nápoles e Sicília; compreendia ainda aspossessões espanholas espalhadas pelas três Améri-cas. A partir de 1580, Portugal e suas possessões tam-bém passaram a fazer parte do Império Espanhol.

das "de segunda mão". O Brasil reduzia-se à condiçãode subcolônia (op. cit., 1994:12).

Na disputa pela sucessão do trono português, Fili-pe II procurou o apoio dos nobres e dos ricos comer-ciantes de Portugal. Em troca, prometeu-lhes inúme-ros favores. Não conseguiu, no entanto, o apoio dascamadas mais populares. Em agosto de 1580, sem aoposição dos nobres, que possuíam exércitos, FilipeII invadiu Portugal com suas tropas e anexou o reino

à Espanha. Começava, assim, o período chamado deUnião Ibérica, isto é, união dos reinos da penínsulaIbérica sob o comando de um único soberano. Mes-mo unido à Espanha, Portugal manteve certa liberda-de. As leis e a estrutura administrativa foram conser-vadas, os funcionários do reino continuaram em seuspostos nas colônias e o português continuou sendoo idioma oficial (ARRUDA, José Jobson. HistóriaTotal. Brasil: Período Colonial. 2. ed. São Paulo:Ática, 1998: 77).

1.5 - 1.5 - 1.5 - 1.5 - 1.5 - Século XVII: A Cultura Espanhola no Brasil-Colônia

Na época de Filipe II, o Império Luso-Espanhol abran-gia terras de todos os continentes.

O domínio espanhol teve conseqüências importan-tes para o Brasil. Entre elas destacam-se as invasõesde nosso território por ingleses e holandeses, inimi-gos da Espanha. Os ataques ingleses limitaram-se asaques contra alguns pontos do litoral (Bahia, San-tos, São Vicente, Olinda e Recife), que não resulta-ram em ocupação territorial duradoura. Mais impor-tantes foram as invasões holandesas. Ocupando pormuitos anos extensas regiões do Brasil, os holande-ses deixaram profundas marcas em nossa história(FERREIRA, Olavo Leonel. História do Brasil. 4. ed.São Paulo: Ática, 1981: 63-65).

Felipe II, Rei de Espanha, e o DomínioEspanhol em Portugal e no Brasil-Colônia(Cronologia)

1578 - Desaparecimento de Dom Sebastião (04 deagosto de 1578), rei de Portugal, nas areias de Alcá-cer-Quibir, norte da África. Nesta batalha, os mourosderrotaram os portugueses e o rei Dom Sebastião, queestava participando da batalha, desapareceu sem dei-xar herdeiros para o trono de Portugal.

1578 - O Cardeal Dom Henrique (um dos filhos deDom Manuel, o Venturoso), tio-avô de Dom Sebasti-ão, assume o trono. O Cardeal Dom Henrique foi acla-mado rei em 28 de agosto de 1578. Dom Henrique fale-ceu em 31 de janeiro de 1580 e o trono português ficounovamente vago.

O falecimento do Cardeal gerou uma crise interna noreino, surgindo a partir daí vários nomes de preten-dentes ao trono de Portugal. Entre os principais, cons-tam-se os nomes de Catarina de Médicis, rainha deFrança (esta dizia-se descendente de Dom João III,avô de Dom Sebastião), Dona Catarina, Duquesa deBragança, sobrinha do Cardeal Dom Henrique (aquelaque tinha realmente direito ao trono), ManuelFelisberto, Duque de Sabóia, sobrinho do Cardeal, Dom

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30Antônio, Prior do Crato, também, sobrinho-bastardodo Cardeal, Alberto de Parma, bisneto de Dom ManuelI, o Venturoso, e Felipe II, rei de Espanha, bisneto deDom Manuel I, o Venturoso.

Dom Antônio, Prior do Crato, sobrinho do CardealDom Henrique, primo em segundo grau de DomSebastião, tornou-se um dos pretendentes ao trono(Dom Antônio era filho legitimado de Dom Luís comuma mulher do povo. Dom Luís, irmão de Dom João III,era o segundo dos filhos de Dom Manuel I, o Venturoso.Portanto, o pai de Dom Antônio era, por sua vez, irmãodo Cardeal Dom Henrique), assumindo-o, temporaria-mente, com o apoio do povo (durante a guerra deAlcântara, iniciada em 25 de agosto de 1580 e terminadadois meses depois, com a vitória das tropas de FelipeII), logo após a morte de seu tio, em uma rápida regênciarealizada sem a prévia aprovação de Dom Henrique, oqual, já prestes a falecer, não quis nomeá-lo como rei dePortugal. Dom Antônio, ao final da revolução deAlcântara viu-se obrigado a fugir para a Ilha Terceirados Açores, propiciando a nomeação do rei Dom FelipeII de Espanha que, por intermédio das ligações familiarespelo lado materno com a realeza de Portugal, seapresentava como o herdeiro do trono.

1580 - Apesar da oposição do povo português, FelipeII subornou as autoridades do reino e, logo a seguir, asCortes de Tomar o aclamaram rei de Portugal, com onome de Felipe I de Portugal. Felipe II era neto de DomManuel, o Venturoso. Dom Manuel tivera mais de umcasamento e suas esposas eram de linhagem espanho-la. Os casamentos originários de arranjos políticos eramfatos normais entre a corte espanhola e a corteportuguesa, desde a primeira dinastia de AfonsoHenriques de Borgonha.

Nota sobre as Cortes de Tomar:

1580 a 1640 - Nesse período, três reis espanhóis domi-naram Portugal e, conseqüentemente, o Brasil-Colônia.O primeiro, como já foi dito, foi Felipe II (de 1581 a 1598).Depois de Felipe II, dominaram Portugal e o Brasil-Colô-nia os reis Felipe III (de 1598 a 1621) e Felipe IV (de 1621a 1640, ano da restauração do Reino de Portugal e inícioda Terceira Dinastia Portuguesa Orleans e Bragança). Éimportante observar que o rei Felipe II era descendentetambém da família dos Hasburgos, a casa real de Áustria,pela descendência paterna e, assim, o domínio dessa Casatambém estava em suas mãos. Visto por este ângulo,Felipe II foi um rei poderoso em sua época, pois, além dedominar Portugal, o Brasil-Colônia e as possessõesportuguesas de África, ao longo de seu reinado, comorei de Espanha, dominou os Países Baixos (Bélgica eHolanda) e algumas regiões da Itália, por exemplo,Nápoles, Sardenha e Sicília, além de reinar, também, sobreas possessões espanholas das três Américas.

1580 - Falecimento do Cardeal Dom Henrique. FelipeII de Espanha se apodera do trono português ao ven-cer a oposição de Dom Antônio, Prior do Crato.

1581 (abril) - Felipe II, rei de Espanha, é aclamado reide Portugal com o apoio das Cortes de Tomar (Felipe Ide Portugal).

1581 - Juramento do rei Felipe II de Espanha e I dePortugal feito às Cortes de Tomar: manutenção emPortugal da língua portuguesa; cunhagem de moedaprópria; nomeação de portugueses para os cargos degovernadores do reino; respeito aos usos e costumesde Portugal; conservação de todos os foros; soldadosportugueses resguardando as praças e fortalezas.

1598 - Com ascensão de Felipe III ao trono de Espanhaacabam-se as regalias instituídas por Felipe II, em Por-tugal.

Sobre Felipe III: Não estava interessado nas ques-tões políticas de Portugal. De personalidade fraca,entregou a direção dos dois reinos aos favoritos (al-guns nobres espanhóis que o bajulavam). O Vice-Reide Portugal, nomeado por ele, era o espanhol Conde deSalinas. Com a nova administração espanhola, Portu-gal perde a autonomia política garantida anteriormentepor Felipe II aos nobres portugueses das Cortes deTomar.

Sobre Felipe IV: Distanciado de suas obrigaçõesreais para com Portugal, submetido aos desmandosdo Conde de Olivares ("Eminência Parda", Favorito,Secretário e/ou Primeiro Ministro), que exigia ofortalecimento da centralização interna para combatere corrigir abusos; sob a uma crise econômica, que foiminando o seu próprio poder em Espanha e emPortugal e nos territórios por ele administrados. Como seu reino envolvido em uma guerra (a Guerra dosTrinta Anos com a França); sofrendo derrotas militaresem suas disputas com a França e Holanda;aumentando a carga tributária em Portugal, para, comisto, resolver os problemas financeiros do Reino deEspanha (sobrecarga fiscal, aplicações de impostos;todas estas questões acarretando o declínio do poderde Espanha sobre o Reino Português e conseqüen-temente a reação do reino subjugado (Restauraçãodo Trono Português). Graças a esses fatores, Portugalse liberta do jugo espanhol em 1640, aclamando oDuque Dom João de Bragança como o primeiro rei deuma Terceira Dinastia, cognominada de Orleans eBragança.

1640 - Fim do domínio espanhol em Portugal. Inícioda Terceira Dinastia, a de Orleans e Bragança, sob ocomando do Duque Dom João de Bragança (Rei DomJoão IV de Portugal).

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31Três primeiros séculos = CULTURA LUSO-BRASI-

LEIRA

Códigos literários europeus + mensagens já co-loniais = caráter híbrido da vida espiritual / literária noBrasil-Colônia.

Literatura Barroco-Colonial: Padre AntônioVieira e Gregório de Matos Guerra

LITERATURA BARROCA

O maneirismo fora o estilo da desintegração; o bar-roco seria o estilo da reintegração. O maneirismo culti-vara tensões dilaceradoras, o barroco buscará resolvê-las, numa enérgica síntese. Com o barroco, o espíritodos tempos modernos se firma e se consolida. Aafirmatividade do novo estilo reflete o ânimo sangüíneoe robusto de um Ocidente que vê fortalecido o estadonacional (e com este, a primazia mundial da Europa cris-tã), implantado o capitalismo, inaugurada (com Galileue Newton) a ciência moderna e a filosofia que a funda-menta (Descartes), ao mesmo tempo em que persiste aordenação religiosa do poder e da cultura. Híbrido limi-ar da idade moderna, o século XVII realiza uma fecundasimbiose de teocentrismo e racionalismo (MERQUIOR,José Guilherme. In.: PORTELLA, Eduardo (Org.). Teo-ria Literária. Estilo e Épocas. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1975: 47-48).

Para um produtivo entendimento da literatura barro-ca (portuguesa e brasileiro-colonial), aconselhamosas seguintes obras sobre o assunto:

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Bra-sileira. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

CÂNDIDO, Antônio & CASTELLO, José Aderaldo.Presença da Literatura Brasileira. Das Origens aoRealismo. História e Antologia. 8. ed. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1997.

MERQUIOR, José Guilherme. Estilo e Épocas. In.:PORTELLA, Eduardo (Org.). Teoria Literária. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1975: 47-48.

CUNHA, Helena Parente. Periodização e HistóriaLiterária. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teo-ria Literária. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1994: 129-162.

LITERATURA BARROCO-COLONIAL

A época do Barroco (no Brasil-Colônia) inicia-se em1601, quando Bento Teixeira publica seu poemeto épi-co, Prosopopéia, e termina em 1768, com a publicaçãodas Obras Poéticas, de Cláudio Manuel da Costa, queencetam o movimento arcádico. Durante a vigência da

estética barroca, importada diretamente da Espanha,nessa altura dominando Portugal, e dos poetas portu-gueses do século XVI, cultivam-se a poesia, ahistoriografia, a literatura doutrinária ou de informa-ção da terra e a oratória (Conferir: MOISÉS, Massaud.A Literatura Brasileira Através dos Textos. 19. ed.São Paulo: Cultrix, 1999: 35).

PADRE ANTÔNIO VIEIRA

O Padre Antônio Vieira nasceu em Lisboa, em 1608,tendo falecido na Bahia em 1697. Aos 6 anos de idadeveio para Salvador, em companhia dos pais, que aí sefixaram. Estudou no Colégio dos Jesuítas, entrandopara o noviciado da Companhia de Jesus em 1623. Dezanos depois, estrearia no púlpito e, um ano maistarde, ordenar-se-ia sacerdote. Então, já havia sidoprofessor de retórica no Colégio de Pernambuco.Em 1641, depois de vinte e nove anos de permanên-cia no Brasil, orador sacro famoso (já havia pronun-ciado sermões como o Sermão pelo Bom Sucessodas Armas de Portugal contra as de Holanda), foipara Portugal, integrando uma embaixada junto a D.João IV. Até 1652, quando se dedicou ao desempe-nho de missões jesuíticas no Maranhão e Grã-Pará,atuou ativamente na política de Dom João IV, utili-zando o púlpito em proveito de suas idéias e dascausas que esposou. Desempenhou missões diplo-máticas no estrangeiro e discutiu os interesses por-tugueses com relação aos cristãos-novos, os quais,além disso, ele defendeu contra a Inquisição. Umavez no extremo norte, pôs-se ao lado dos índioscontra os propósitos escusos dos colonizadores. Édessa época o Sermão de Santo Antônio aos Peixese também o Sermão da Sexagésima, sermão esteúltimo em que teorizou sobre a oratória e o oradorsacros. Em 1661, expulsos os jesuítas do Maranhão,foi impelido a retornar a Portugal. Logo mais, seriatambém vítima da Inquisição, que não o perdoavapela atitude de defesa dos cristãos-novos. Conse-guiu reabilitar-se. Esteve então na Itália, onde con-firmou, em língua italiana, as suas qualidades deorador. E, em 1681, regressou definitivamente a Sal-vador, passando a dedicar-se principalmente à pu-blicação definitiva de suas obras, iniciada desde1679. Célebre como orador, epistológrafo, prosadorem geral, o Pe. Antônio Vieira conciliou muito bemos fundamentos de sua formação jesuítica com oestilo da época. Atingiu o máximo da virtuosidadena expressão sutil, no fraseado de intrincada estru-tura lógica, carregada de alegorias e antíteses. Massoube comunicar suas idéias de maneira conscien-te, quer revelando extraordinária humanidade e sen-timento patriótico, quer preocupação política, vigi-lância sobre a sociedade, ou desenvolvendo temasreligiosos. Nos sermões, sobretudo, a riqueza dasconstruções imagéticas, exaustivamente desdobradas,feria de cheio a substância das coisas, dos senti-

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32mentos e da condição humana nas suas relaçõescom o divino, dando-nos o melhor exemplo doconceptismo em língua portuguesa. O interesseestilístico e temático de sua obra é de Portugal, doBrasil e do barroco em geral (Conferir: CÂNDIDO &CASTELLO: 1997, op. cit., p. 35-36).

Recomendamos a leitura dos Sermões Históricos, dePadre Antônio Vieira, para o entendimento da fase dedominação espanhola em Portugal e no Brasil-Colônia(de 1580 a 1640) e do momento de recuperação (res-tauração) do trono português, em 1640, por Dom JoãoIV de Portugal (início da Terceira Dinastia Portuguesados Orleans e Bragança).

Trecho do Sermão pelo Bom Sucesso das Armas dePortugal Contra as de Holanda, apresentado aos fiéiscatólicos na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda da Ci-dade da Bahia, no ano de 1640, ano da Restauração doTrono Português:

Exurge, quare obdormis, Domine? Exurge, et ne repellas infinem. Quare facien tuam avertis, oblivisceris inopiaenostrae, et tribulationis nostrae? Exurge, Domini, adjuvanos et redime nos propter nomen tuum. Psal. 43.

[Vieira, neste Sermão, busca auxílio retórico no Salmo 43,Antigo Testamento, para argumentar com Deusdiretamente, à semelhança dos antigos profetas que fala-vam sem intermediário com Deus, "utilizando o púlpitoem proveito de suas idéias e das causas que esposou" (Con-ferir: CÂNDIDO & CASTELLO: 1997, op. cit., p. 35-36). Ao mesmo tempo, buscava também nos versículos doNovo Testamento um apoio complementar, necessário àssuas argumentações. Tradução do Salmo 43: Desejos pelosantuário. Faze-me justiça, ó Deus, e pleiteia a minha causacontra a nação contenciosa; livra-me do homem fraudu-lento e injusto. Pois tu és o Deus da minha fortaleza. Porque me rejeitas? Por que hei de andar eu lamentando sob aopressão dos meus inimigos? Envia a tua luz e a tua verda-de, para que me guiem e me levem ao teu santo monte e aosteus tabernáculos. Então, irei eu ao altar de Deus, de Deus,que é a minha grande alegria, ao som da harpa eu te louva-rei, ó Deus, Deus meu. Por que estás abatida, ó minhaalma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera emDeus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu.]

Exurge, quare obdormis, Domine? Quero argumentar comDeus e convencê-lo com razões, não só dificultoso assuntoparece, mas empresa declaradamente impossível, sobrearrojada temeridade. O Homo, tu quis es, qui respondeasDeos? Numquid dici figmentum ei, qui si finxit: Quid mefecisti sic? Homem atrevido (diz São Paulo [Rom., 9, 20])home temerário, quem és tu, para que te ponhas a altercarcom Deus? Por ventura o barro, que está na roda, e entre asmãos do oficial, põe-se às razões com ele, e diz-lhe por queme fazes assim? Pois se tu és barro, homem mortal, se teformaram as mãos de Deus da matéria vil da terra, comodizes ao mesmo Deus: Quare, quare; como te atreves aargumentar com a Sabedoria Divina, como pedes razão àsua Providência do que te faz, ou deixa de fazer: Quareobdormis? Quare faciem tuam avertis? Venera suas per-missões, reverencia, e adora seus ocultos juízos, encolhe osombros com humildade à criatura. Assim o fazemos, assimo confessamos, assim o protestamos diante de Vossa Ma-

jestade infinita, imenso Deus, incompreensível Bondade;Justus es Domine, et rectum judicium tuum [Psal, 119,137: Justo és, Senhor, e retos, os teus juízos]. Por mais quenós não saibamos entender vossas obras, por mais que nãopossamos alcançar vossos conselhos, sempre sois Justo,sempre sois Santo, sempre sois Infinita Bondade: e aindanos maiores rigores de vossa justiça, nunca chegais com aseveridade do castigo aonde nossas culpas merecem.

GREGÓRIO DE MATOS GUERRA

Gregório de Matos Guerra nasceu na Bahia em 1636,de gente abonada. Estudou primeiro com os jesuítasna cidade natal e, a partir de 1650, na Metrópole, for-mando-se em Direito em Coimbra no ano de 1661. EmPortugal casou, foi magistrado e viveu até 1681, quan-do, já viúvo, retornou à pátria. Na Bahia, levou umavida boêmia e indisciplinada de advogado de poucascausas e menores recursos, improvisando versos, can-tando à viola, caçoando de toda a gente, inclusive dasautoridades. Apesar disso, casou-se de novo, tevefilhos e proteção de alguns bispos e governadores.Foi talvez com o intuito de livrá-lo de desforços queum deles o exilou para Angola, de onde voltou em1695, indo para o Recife, onde morreu no ano seguinte(Conferir: CÂNDIDO & CASTELLO: 1997, op. cit., p.44).

Recomendamos a leitura da obra poética de Gregóriode Matos Guerra, principalmente os poemas satíricos,para a compreensão (evidentemente, pelo ponto devista da literatura poética) do momento socioculturaldo Brasil-Colônia no século XVII. Gregório de MatosGuerra desenvolve, em seus poemas satíricos, umabem-humorada critica à sociedade de sua época.

APRESENTAÇÃO DE UM POEMA SATÍRICO DEGREGÓRIO DE MATOS GUERRA (SÉCULO XVII)

Ao Governador Antônio de Sousa de Meneses, cha-mado vulgarmente "Braço de Prata"

Sor Antônio de Sousa de Meneses,Quem sobe ao alto lugar, que não merece,Homem sobe, asno vai, burro parece,Que subir é desgraça muitas vezes.

A fortunilha, autora de entremezes,Transpõe em burro herói: que indigno cresce,Desanda a roda, e logo homem parece,Que é discreta a fortuna em seus reveses.

Homem sei eu que foi VossenhoriaQuando o pisava da fortuna a roda,Burro foi ao subir tão alto clima.

Pois, alto! Vá descendo onde jazia,Verá quanto melhor se lhe acomodaSer homem em baixo do que burro em cima.

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33A Estética do Paradoxo: Sobre os Sermões(Históricos) de Padre Antônio Vieira

A ESTÉTICA DO PARADOXO (SOBRE ALGUNSSERMÕES (HISTÓRICOS) DE PADRE ANTÔNIOVIEIRA)

Penso na questão teórica do Maneirismo e do Barro-co como algo que requer muita meditação e que darámargem para muitas futuras discussões, uma vez queo assunto vem motivando, ao longo dos anos,desencontradas teses, hipóteses teórico-históricasainda não concretamente definidas.

Consciente destas desencontradas opiniões, ou es-peculações sobre esta questão ainda polêmica, dese-jo, inicialmente, traçar com objetividade as metas demeu pensamento teórico-crítico sobre a oratória dePadre Antônio Vieira. Assim, a questão que se desen-volve, até os dias de hoje, sobre essas duas correntesestéticas (o Maneirismo e o Barroco), não apresenta-rá, nas primeiras páginas, um caráter inovador, apenasrefletirá uma síntese do que busquei e registrei ao lon-go de minhas leituras sobre a História da LiteraturaPortuguesa (Cf.: SARAIVA & LÓPES, História da Li-teratura Portuguesa). Reservarei um ponto de vistaum pouco mais pessoal (mas, com certeza, não aleató-rio) para a segunda parte desta proposição, realçandoas crenças de Vieira sobre o Encoberto e sobre o Mitodo Quinto Império Judaico-Cristão, porque, graças aoreconhecimento do texto, fundamentado nahermenêutica atual, acrescido de conhecimentos so-ciológicos, históricos e religiosos, terei como interagircom um assunto controverso, sob a proteção do raci-ocínio interpretativo.

A hermenêutica se adapta aos meus propósitos (paraexplicar, exclusivamente, a obra de Padre AntônioVieira), por ter sua origem nos primórdios da históriareligiosa do homem ocidental. Até há pouco tempo,falou-se muito desta linha de pesquisa nos meiosacadêmicos. Atualmente, há a imposição da interdisci-plinaridade (a interligação de todas as tendênciascríticas), ressaltando-se mais a Estética da Recepção(diálogo com o texto). A chamada hermenêutica profana(interpretação de textos literários), mesmo não sendo,no momento, o estudo soberano nos cursos de pós-graduação em Ciência da Literatura, não há, nos cursosde graduação em Letras, um conhecimento corretosobre seus questionamentos de origem, sua ligaçãocom os textos sagrados, as divergências que amarcaram no decorrer de sua história, e, sobretudo,não há um conhecimento sobre a sua posterior incursãonos domínios da Filosofia e da Literatura.

Assim, retomando a história da Hermenêutica debase religiosa, o que a preocupou, desde o seu ad-vento, foi o problema da correta interpretação dosTextos Sagrados. É bom lembrar que, no que se re-

fere às interpretações de Vieira, inseridas em seusfamosos sermões, uma retomada teórica, a partir doponto de vista da Hermenêutica, torna-se indispen-sável. Desejo realçar que os meus conhecimentossobre o assunto se baseiam em dados oferecidospor Emerich Coreth, no livro Questões Fundamen-tais de Hermenêutica. A proposta inicial de seusestudos [estudos de Emerich Coreth] foi reconhe-cer a história do problema teológico e a sua ligaçãocom as questões atuais da Hermenêutica da Litera-tura, em outras palavras, a questão do próprio co-nhecimento ao se contemplar as obras literárias. Osestudos hermenêuticos, aqui realçados sob a orien-tação de Coreth, irão proporcionar-me uma aberturaque propiciará a defesa de meu objetivo central, oqual opta pelo desenvolvimento de uma reflexãopessoal sobre alguns sermões de Vieira. Esta refle-xão, para se livrar dos afamados achismos críticos,se colocará sob a proteção de meus próprios co-nhecimentos de Ciência da Literatura, Literatura pro-priamente dita, História e Religião.

A Hermenêutica, como é conhecida hoje, é uma ci-ência que questiona a correta interpretação dos tex-tos literários. No início da história religiosa da IgrejaOcidental, a questão da interpretação estava restritaaos escribas, intérpretes das mensagens contidas noAntigo Testamento. Emerich Coreth, ao se referir aosescribas, situa-os como os primeiros exegetas queprocuraram questionar a importância de uma corretainterpretação dos Textos Sagrados. Observe-se queesses textos anunciavam o nascimento do Salvador,e os mesmos eram interpretados por sacerdotes ru-des, portanto, interpretações sujeitas a falhas e am-bigüidades. Com a instituição do Novo Testamento,as ambigüidades se desfazem, pois quem as esclare-ce não é outro senão o próprio Filho de Deus, o Sal-vador esperado. Segundo Coreth, o Novo Testamen-to se coloca, desde as primeiras páginas, como oúnico intérprete autêntico das Mensagens Sagradas,e isto se deve ao aval do próprio Jesus Cristo, aoprocurar elucidar, para as multidões que o acompa-nhavam, todas as ambigüidades anteriormente ques-tionadas, algumas que foram incorretamente inter-pretadas, de acordo com o que nos passa o NovoTestamento.

Baseando-me nas informações de Coreth, foi-mepossível compreender porque Vieira, ao desenvolveros temas de seus sermões, sempre procurou interpre-tar versículos e salmos do Antigo Testamento, referin-do-se pouco aos versículos do Novo Testamento. Ostextos do Antigo Testamento proporcionavam aosermonista uma maior capacidade para desenvolverquestões paradoxais, sem que, com isto, o sermão seresvalasse para o campo das impossibilidades. Res-guardado pela própria ambigüidade dos textos doAntigo Testamento, Vieira pôde desenvolver seus ar-gumentos religiosos e sociais, paradoxais, misturan-

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34do análise etimológica com análise gramatical, desen-volvendo pensamentos analógicos e argumentativos,além de se utilizar, como veremos nos sermões pormim revisitados, de arraigadas superstições, que oacompanharam até a morte. O sermonista, para funda-mentar a sua proposta de evangelização, buscava nostextos do Antigo Testamento, principalmente, a maté-ria que o ajudaria a compor um discurso que estavamais preocupado com os problemas sociais da Corteportuguesa e da Colônia, do que propriamente com osensinamentos divinos. Desenvolvendo duas propos-tas de argumentação [uma religiosa e outra profana],misturando conceitos, transmitindo idéias que chega-vam ao plano da imaginação fantasiosa, Vieira deu vidaliterária a sermões que, distantes da técnica ensaísticada oratória, enquanto Gênero, assumiram com grande-za a expressão da Literatura-Arte.

Paralelamente aos postulados hermenêuticos, sub-metida a postulados sociológicos, procurarei aindaidentificar o orador sacro Padre Antônio Vieira comoum ser social, inserido numa determinada fase da his-tória social de Portugal e do Mundo, identificado comos valores sociorreligiosos de seu momento, masatuando também como intermediário entre o Históricoe o Divino. Pelo ponto de vista da Sociologia do TextoLiterário, os sermões de Vieira impõem-me repensar arealidade histórica de Portugal até o final do séculoXVII. Repensando os problemas sociais de Portugal,daquela época, por meio dos textos de Vieira, foi-mepossível refletir sobre as diretrizes religiosas que pau-taram a vida do Homem do período barroco.

Assim, reunirei, aqui, vários pontos de vista teóri-co-críticos, pela ótica da interdisciplinaridade:Hermenêutica, Sociologia, História e Religião. Entre-tanto, devo informar, também, o meu conhecimentode cada um deles, em separado. Todos essesdirecionamentos críticos estarão aqui a serviço dadecodificação de alguns sermões de Padre AntônioVieira. Firmarei meus pensamentos, notadamente, noSermão de Exéquias, do Rei D. João IV, e em algunsoutros sermões centralizados na família real. Essessermões estariam evidentemente catalogados comoGênero Ensaístico – literatura técnica, ensaio,oratória–, se não fosse o alto teor de ambigüidadesdetectado nos textos. Graças a essas ambigüidades,tais sermões jamais poderão ser classificados comoparaliterários. Há neles, indiscutivelmente, a marcagenial de um escritor da estética barroca – estéticado paradoxo –, cujos textos já foram classificadoscomo Literatura-Arte.

A QUESTÃO TEÓRICA DO MANEIRISMO E DOBARROCO

No final do século XV, observou-se uma nova forma-ção existencial para o homem europeu. Naquele mo-

mento, o homem procurava alargar seus horizontes,rompendo com os valores comunitários, já ultrapassa-dos, da Idade Média. Era o início das grandes navega-ções que iriam marcar o século seguinte e mudar ahistória do mundo. No decorrer do século XVI, os ide-ais comunitários, religiosos e hierárquicos do períodomedieval já começavam a ser questionados, e iniciou-se a caminhada solitária do homem em direção a umfuturo incerto. Os antigos valores de uso – a troca deum objeto por outro, por exemplo –, cederam lugar àmediação do dinheiro, à busca de novas invenções[que iriam permitir o progresso], ao desenvolvimentode conhecimentos técnicos, à patenteação de máqui-nas industriais [que afastariam, posteriormente, o ho-mem do campo, levando-o em direção à cidade]. Era omomento do capitalismo mercantil, dos ricos empresá-rios capitalistas de origem judaica; era o momento dosvalores de troca, valores degradados, mediatizadospelo dinheiro, que fariam dos componentes da classemenos favorecida socialmente míseros assalariados,submetidos às imposições das leis de um novo mun-do em aceleradas transformações.

Quanto à Literatura, o século XVI foi o momento daretomada da cultura greco-latina e o abandono dasconcepções religiosas que predominaram na IdadeMédia. A Literatura comprazia-se em destacar o ladohumano da existência, buscando nos modelos anti-gos as diretrizes da criação literária. O século XVI foi omomento de Camões e de sua epopéia nacional, naqual, ao evocar as grandezas de Portugal, o poeta ins-taurou a idéia de individualismo - povo privilegiado - quemarcaria Portugal nos séculos seguintes.

O final do século XVII marcou o momento doHumanismo angustiado, gerando tensão entre duasforças que se opunham e, ao mesmo tempo, se atraí-am, fazendo da estética literária, daquele período prin-cipalmente, uma estética que se submetia aos valoresda vida material [herança renascentista] e, ao mesmotempo, aos valores da religião, herdados das tradi-ções monásticas da Idade Média [valores estes jamaisrejeitados pelo povo português, mesmo antes, quan-do os valores culturais do mundo ocidental estavamligados à antiga cultura pagã].

Nas décadas finais do século XVI, aconteceram osgraves problemas que marcaram a história de Portu-gal: o desaparecimento de D. Sebastião (1578) e a sub-missão da Coroa Portuguesa aos reis espanhóis. Era omomento da Contra-Reforma, tentando restaurar osestragos reformistas de Lutero, procurando um novoequilíbrio para o desequilíbrio religioso gerado peloCisma. Era o momento da desesperança e do desenga-no; do homem em face de uma confusão existencial: oamor aos prazeres mundanos e o medo do castigo deDeus. Era o momento do Maneirismo, estética queregistraria a fugacidade da vida, a precariedade dos

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35valores humanos, a idéia de inevitabilidade da morte,da tensão entre a entrega aos prazeres da vida (visãopagã) e a entrega aos prazeres da alma (visão religio-sa). Era o momento da estética ligada a elementos tar-do-góticos, antitética, refinada e aristocrática: estéti-ca da hesitação e da dúvida.

Mas, paralelamente à estética maneirista, surgiu umnovo ideal estético: o Barroco. Não ouso destacar ummomento preciso para o início do Barroco, uma vez que,historicamente, as duas estéticas se confundem; apenasexiste uma tendência em pensar que o Maneirismotivesse surgido um pouco antes do Barroco. Ao contráriodas aristocráticas dúvidas maneiristas, a estética barrocaprivilegiou a camada popular, comunicando-sefacilmente, apesar da concentração de algumascaracterísticas da estética maneirista [tais como a idéiade inevitabilidade da morte, entrega aos prazeres davida material, em contraponto com a fugacidade da vida,e outras, e que, na verdade, não eram característicasexclusivamente estéticas, mas, características tambémde uma época conturbada, angustiada, submetida a umadolorosa tensão entre os valores do mundo e os valoresreligiosos]. Assim, por este ângulo, o Barroco foi tam-bém uma estética de ruptura e tensão, ressaltando oaspecto fugaz da vida. A diferença marcante é que, aocontrário do Maneirismo, o Barroco impressionava [eainda impressiona] todos os sentidos do ouvinte ouleitor, porque provocava um impacto auditivo, sedutor,impedindo-o que parasse para raciocinar, ou apontar aspossíveis falhas, ou mesmo constatar os acertos.

O Barroco se desenvolveu em torno dos ideais místi-cos da Contra-Reforma, não obstante o Maneirismoestar mais próximo dela historicamente. Segundo Miguelde Unamuno, o Barroco foi um movimento pendularentre o espírito e a carne, sendo que a literatura calcadanos ideais do espírito destacou-se mais, já que estavarelacionada ao movimento jesuítico da expansão da fé.Enquanto o Maneirismo se posicionava como a estéti-ca que privilegiava a antítese, o Barroco colocou-secomo a estética do paradoxo, do espectaculoso, do re-dundante. Foi principalmente a estética que propiciouo surgimento de uma das figuras mais notáveis, noâmbito da Literatura Portuguesa e Brasileira: padre An-tônio Vieira.

É sobre esse gênio da oratória barroca que falareidaqui para frente, acentuando que foi instigante, du-rante o período de pesquisa, penetrar nos meandrosde sua mente argumentadora e geométrica, acompa-nhar o movimento de perguntas e respostas, habil-mente interligadas e desenvolvidas, obrigando-me aacompanhar a sua oratória com o sentimento de res-peito e admiração [além do meu ponto de vista teóri-co]. Vieira impôs-me [ficcionalmente] acreditar em suascrenças mais irracionais e, ao fim destas minhas refle-

xões, vislumbrarei meu próprio sentimento de perda,porque suas predições não se realizaram.

A PALAVRA SAGRADA E SEU MISTÉRIO

No sermão das exéquias do rei D. João IV, Vieira dáinício ao seu discurso, utilizando-se de dois versículos,retirados do Salmo 89(88), considerados pelos exegetasum dos mais belos hinos ao Criador. O Salmo relembra aaliança entre Deus e o rei Davi, aliança na qual Deusprometia permanente proteção aos descendentes do Rei.

Fiz uma aliança com meu eleito,Eu jurei ao meu servo Davi:Estabeleci a tua descendência para sempre,De geração em geração construo um trono para ti.

(Salmo 89(88), 4-5)

Nos versículos seguintes, o poeta bíblico Etã, oezraíta, desenvolve um hino de louvor ao Criador (vv.6-19), introduzindo logo a seguir um oráculomessiânico (vv. 20-38), contrapondo-o à evocação dossofrimentos e humilhações infringidos, pelo próprioDeus, aos descendentes do ungido. No final do Sal-mo, o poeta Etã se dirige inquisidoramente ao Criador,intimando-O a cumprir o prometido ao Rei Davi, masdesenvolvendo um tom mais brando no final, conclu-indo com uma prece em louvor ao Deus de seu povo,aquele que prometera, mas não estava cumprindo apromessa.

Vieira reelaborou a temática do Salmo, nesse sermãode exéquias, construindo um raciocínio quereequilibrasse todas as anteriores afirmativas, malogra-das, nas quais visualizava em D. João IV a encarnaçãodo rei encoberto, tão esperado pelos portugueses desdeo desaparecimento de D. Sebastião em terras africanas.Assim, Vieira se utilizou desse Salmo para reafirmar oque havia dito anteriormente, em outro sermão, quandoda ascensão do Duque de Bragança ao trono dePortugal, no qual havia predito que D. João era oescolhido por Deus para restaurar o reino de Portugal.A reafirmação, ao longo do sermão, se fazia necessáriaporque, mesmo com o rei já morto, Vieira ainda acreditavaque Portugal seria o Quinto Império, visualizado porBandarra. D. João, quando de sua ascensão ao trono,foi apontado, pelo mesmo Vieira, como o Rei Encoberto,previsto pelo sapateiro-profeta de Trancoso. Com amorte do rei, e consciente de que Portugal ainda nãohavia se convertido no Quinto Império, Vieira procuroureafirmar a profecia, transferindo-a para D. Afonso VI.O orador, para revalidar suas anteriores afirmações,buscou no Salmo 89(88) os elementos necessários quereforçariam a sua argumentação. Vieira comparou D. Joãoa Davi, aquele rei bíblico que fora ungido com óleosanto, pelas mãos do profeta Samuel, a mando do Deusdos hebreus.

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36Encontrei meu servo DaviE o ungi com meu óleo santo;É a ele que minha mão estabeleceu,E o meu braço ainda mais o fortificou.

(Salmo 89(88), vv. 21-22)

Para que se entenda esta comparação, faz-se neces-sário recordar que D. João IV enfrentou inúmeros pro-blemas no início de seu reinado. Existia, por exemplo,uma guerra com a Espanha, porque esta não se confor-mava evidentemente com a perda do reino português.Houve uma restauração, mas essa restauração não foipacífica. Outro grande problema enfrentado pelo novorei foi o econômico, já que o tesouro real encontrava-seabalado, por ter sido administrado, até então, pelos reisespanhóis, e também pelos gastos na guerra. Além des-ses dois graves problemas – a guerra com a Espanha eas dificuldades econômicas –, havia a possibilidade deuma nova guerra com os holandeses, já que estes ambi-cionavam o domínio das terras do Brasil. Para culminar,existiam também as brigas internas, os desacordos po-líticos e uma série de problemas menores ligados à ad-ministração do reino.

Vieira vivenciou todos esses importantes momentosda história de Portugal, desde o reinado de Filipe IVde Espanha. Nasceu durante o domínio espanhol; or-denou-se sacerdote da Companhia de Jesus ainda noreinado de Felipe IV; lutou no púlpito contra as inten-ções dos holandeses; presenciou historicamente arecuperação do trono – a restauração –; sensibilizou-se com os problemas enfrentados pelo novo rei e viu-se historicamente como defensor da Coroa de Portu-gal. Para defendê-la, valeu-se de sua condição de ora-dor sacro, não medindo esforços e palavras para reali-zar tão importante tarefa. Buscou na história de Portu-gal e nos Textos Sagrados a matéria que comporia adefesa; interpretou a Bíblia, transformando-a, para quese ajustasse às necessidades de sua argumentaçãodefensiva. Inverteu magnificamente o comentário dapalavra sagrada, fazendo do sermão – tema religioso –, comentário dos assuntos ligados à movimentaçãosocial da Colônia e do reino. Assim, estava escrito – eVieira acreditava em predestinações –, que ele seriaaquele que daria crédito a todas as profecias sobrePortugal, desde os sonhos proféticos de AfonsoHenriques até às predições do sapateiro Bandarra.

Supposto, pois, que o meu rei e senhor D. João se me nãoquer representar morto, senão vivo, préguem-lhe outros asexequias de defunto, que eu não quero nem posso. O que sófarei hoje será uma narração panegyrica das reaes acçõesde sua vida. Toda está admiravelmente recopilada nas pala-vras que propuz, que são do Psalmo oitenta e oito. Vamol-as explicando, ou aplicando cada uma de per si, que todastèm mysterio (VIEIRA, Antonio. vol. XV. Sermões. Porto:Livraria Chardron, 1909, p. 282).

Para Vieira, aceitar a morte do rei seria destruir todasas profecias messiânicas, por ele revitalizadas. Por-

tanto, era necessário, ao longo do sermão das exéqui-as de D. João IV, reafirmar tudo o que já predissera,anteriormente, quando da coroação daquele mesmorei, naquele momento, morto. O seu discurso era depesar – aquele que fora seu amigo pessoal estava mor-to –, mas Vieira acreditava na ressurreição em outroscorpos vivos – metempsicose –, e o candidato para talressurreição era o infante D. Afonso, aquele que seriao novo rei de Portugal. Por essas razões, buscou naspromessas do Deus dos hebreus – Deus próximo, Deusquase tangível –, feitas ao rei Davi, a matéria que re-forçaria as suas crenças sobre o Rei Encoberto. Antes,ele já havia ressuscitado o rei D. Sebastião, afirmandoque D. João IV era o Encoberto tão esperado pelopovo português. Com essa afirmação, conquistara orei, a rainha e toda a Corte, quando de sua viagem àPortugal. Agora, aquele que fora escolhido por Deuspara transformar Portugal no Quinto Império Judaico/Cristão – ou o Império de Cristo –, estava morto e,apesar do forte sentimento de perda, Vieira não desisteda profecia e a transfere para D. Afonso.

Ainda, segundo Vieira, D. João IV, assim como acon-tecera com o rei Davi, era o procurado por Deus, parasalvar Portugal das mãos dos estrangeiros. Inveni,achei, encontrei. Assim como Davi fora procurado porSamuel na casa de Jessé, o belemita, a mando de Deus,da mesma forma D. João foi procurado na Casa deBragança, entre vários candidatos ao trono. Osermonista se apoiou nos versículos 21 e 22 do Salmo89(88), porque eles agiriam como auxiliares da idéiacentral, que era, no caso, reafirmar a crença na reen-carnação do Rei Encoberto. Revitalizando cada pala-vra dos versículos escolhidos, foi construindo seuraciocínio sobre a predição, formando duplos e simul-tâneos pensamentos, cismando, pensando e imaginan-do a forma certa para impor a sua verdade e, com isto,convencer seus ouvintes/leitores, os súditos da Co-roa Portuguesa, da grandiosidade de Portugal ante omundo que o cercava na época. Já que o reino se en-contrava abalado por disputas internas e externas,havia a necessidade de um orador convincente, queinspirasse ânimo ao povo e confiança no futuro. D.João fora o escolhido, segundo Vieira, pelo próprioDeus, e, a partir dessa afirmativa, o sermonista foi re-construindo a histórica trajetória da ascensão do reiao trono, tecendo complexos pensamentos, inspira-dos na Bíblia, sobre o motivo da escolha.

Evidentemente, ao desenvolver o sermão de exéqui-as, Vieira estava reelaborando tudo o que já disseraantes, com outras palavras e sob a inspiração de ou-tros textos bíblicos. Para reafirmar a predestinação,daquele que estava morto, iniciou uma nova aberturade raciocínio, transferindo o privilégio de escolha aotronco familiar do rei morto. Consciente de que, a par-tir dali, teria meios de revitalizar suas idéiaspremonitórias, colocou a responsabilidade deconcretização do Quinto Império nas mãos do herdei-

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37ro. Conhecedor profundo dos Textos Sagrados, bus-cou em Macabeus, capítulo 5, versículo 62, o motivoda escolha de Deus recair em D. João, em detrimentodos outros candidatos: Ipsi autem non erant de seminevirorum illorum, per quos salus facta est in Israel (Op.cit., p.238), ou seja, (Mas) eles não pertenciam à estir-pe desses homens aos quais fora dado libertar Israel.D. João – e, naquele momento, também a sua descen-dência –, havia sido escolhido por direito divino.

Ao longo do sermão, recordou a história de Portu-gal, as freqüentes ameaças de Castela, a defesa de D.João I, Mestre de Avis, a ligação familiar que uniu oentão rei ao Conde D. Nuno Álvares, por intermédiodo casamento de seus filhos, e, a partir daí, se apoiouna frase bíblica, para dignificar a estirpe do novo res-taurador da Coroa. Cabia à geração de D. João IV –nova geração de restauradores –, realizar as profecias.

“Et unxit eum Samuel in medio fratum ejus” (op. cit.,p. 284): Samuel apanhou o vaso de azeite e ungiu-o(Davi) na presença dos irmãos. Davi e D. João IV, Israele Portugal, Samuel e Vieira: para que vendo Samuelquão grandes eram os homens que Deus deixava, en-tendesse quão grande devia ser o que Deus escolhia.Desta forma, não apenas D. João era o escolhido; tam-bém ele – Vieira –, fora escolhido por Deus para ser orevitalizador da crença na reencarnação do Rei Enco-berto. Muito achou Deus nelle, quando buscando reientre tantos príncipes, deixando a todos, só a elle ele-geu, e só a elle achou: Inveni.

“David. David se chama El-rei D. João nestas pala-vras que lhe aplicamos: mas com que propriedade?”(op. cit., p. 285). A partir do nome Davi, Vieira recome-çou a reconstrução de seus pensamentos, fazendoperguntas e oferecendo respostas, aproveitando-seda afirmativa que fizera no início do sermão: todas aspalavras têm mistérios. Vieira analisou as palavras dotrecho bíblico escolhido, sob os ditames barrocos domistério e descoberta das palavras. Usou, assim, oque Saraiva chama de "geometria decorativa", paracaracterizar o estilo barroco, ou seja, estilo catedral,de acordo com os ensinamentos do Professor Dr.Leodegário A. de Azevedo Filho. Desenvolvendo umdiscurso centrado em perguntas e respostas, Vieiraconstruiu pensamentos convergentes e, ao mesmotempo, díspares, em que as semelhanças e oposições,entre o texto bíblico e a História de Portugal em açãose uniram, sem, com isto, destruir a convicçãodiscursiva do orador. Assim, D. João IV foi comparadoa Davi. Existiam tantas semelhanças entre os dois, se-gundo Vieira. Ambos, afeiçoados à música; ambos,domadores de feras; ambos, tendo um filho Salomão;ambos eram prudentes, vigilantes, piedosos, justos,humildes e, ao mesmo tempo, majestosos; mas, princi-palmente, eram semelhantes, por terem vencido o Gi-gante. D. João vencera a monarquia espanhola e, deacordo com Vieira, fora em tudo semelhante a Davi.

Depois de analisar as semelhanças, o sermonista re-cuperou a história da batalha travada entre Portugal eEspanha, mostrando as dificuldades de tal empresa, jáque Portugal era militarmente inferior. Mesmo com tan-tas dificuldades, Davi/D. João IV derrubou o giganteespanhol. Inveni David.

"Servum meum: Meu servo" (op. cit., p. 287). Davi,antes de ser rei, era um fiel servo de Deus: destruiuídolos, cultuou a grandeza do Deus de Israel, curvou-se ante a Majestade Divina. Assim, também, agiu D.João IV: propagou a fé, aumentou as missões da Índia,da China, da Guiné, do Congo, de Angola e, também, ado Maranhão, onde Vieira se encontrava à época dasexéquias. D. João, segundo Vieira, era umobedientíssimo servo de Deus.

Oleo sancto meo unxi eum. Ungi-o a elle com o meu oleosanto: Oleo sancto (Op. cit., p. 291).

Na concepção premonitória de Vieira, D. João foraungido com óleo santo, exatamente como ocorrera como rei Davi. O rei bíblico suplicou a Deus, no Salmo141(140): "Que o justo me bata, que o bom me corrija,que o óleo do ímpio não me perfume a cabeça, pois euiria comprometer-me com suas maldades". Vieira rea-firmou estes versículos, ajustando-os a D. João. O reiportuguês da nova geração de restauradores fora un-gido com óleo santo, e isto era determinante para Vieira.Todos os outros reis, excetuando Davi, foram ungi-dos com óleo pecador.

"Que o óleo do ímpio não me perfume a cabeça". Osermonista fez a apologia das virtudes do rei morto,relembrou suas palavras de resignada aceitação, aoreceber uma coroa que não fora ambicionada, justifi-cando assim as semelhanças entre os dois reis. Mas, aodesvelar as inegáveis qualidades de D. João IV, Vieira,sutilmente, procurou diferenciá-lo do rei bíblico. Se osalmista do Salmo 141(140) [que não é outro senão opróprio Davi], tivera consciência de que o óleo do ímpiopoderia seduzi-lo e implorou a Deus que o salvasse detão terrível destino, Vieira, ao contrário, assegurou ocaráter puro e intocável do rei português. O salmistaDavi revelou a sua necessidade de proteção,reconheceu-se fraco e propenso a ser seduzido; o reiportuguês, segundo Vieira, foi, ao longo da vida, umhomem virtuoso, imune às seduções do mal. Aceitaraser rei, ainda segundo Vieira, porque o povo necessita-va de um soberano; não que, particularmente, almejas-se tal posição.

Buscando um novo reforço para suas afirmações, osermonista retirou do Primeiro Livro de Samuel – na Vulgatado século XVII, consta como Primeiro Livro dos Reis –,capítulo 9, versículo 24, novas idéias que demonstrassem ocaráter íntegro do Rei e sua grande capacidade de trabalho:"Comede, quia de industria servatum est tibi. Come, aquiestá diante de ti o que se separou".

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38Para o rei escolhido (o rei bíblico aludido por Vieira,

nesta passagem, é Saul, primeiro rei de Israel, anterior aDavi, ungido também com óleo santo), Samuel ofere-ceu um banquete, em que foi servido, segundo Vieira, oombro direito de uma rês. Esta parte do animal foraguardada especialmente para Saul, que seria coroadorei a pedido do povo de Israel. O povo de Israel queriaum rei como os outros povos que o cercavam. O rei deIsrael, até então, era o próprio Deus. O povo israelita jánão aceitava a idéia de ter por rei apenas uma divindade.Mesmo magoado com seu povo - povo escolhido -, Deuselegeu um rei para Israel, por intermédio do profetaSamuel. Vieira explicou, aos leitores da época, porquefora reservado para Saul o ombro direito da rês. "Os reisungidos com o óleo de Deus coroam os ombros, e nãoa cabeça; porque o ombro é o lugar do trabalho, e acabeça é o lugar da dignidade" (op. cit., p. 292). Estapassagem do Antigo Testamento foi ressaltada apenaspara demonstrar a face de trabalhador do rei português."Senhor, se sou necessário para meu povo, não recusotrabalho". Esta frase, evidentemente bíblica, ou de ins-piração bíblica, foi atribuída, por Vieira, a D. João. O reiaceitara a coroa porque o povo necessitava de um líder.Assim, aceitava a dignidade da coroa – a coroa sobresua cabeça –, mas oferecia seu ombro ao trabalho, aopesado ofício de reinar. Não recusava o trabalho, por-que fora ungido com óleo santo.

"Unxi eum: Ungi-o a elle" (op. cit., p. 293). Nestetrecho, Vieira aludiu, ironizando, aos reis dos outrosreinos da Europa, à época de D. João VI. Deus ungiucom óleo santo somente ao rei português; aos outrosreis ofereceu apenas a coroa, os verdadeiros ungidosforam os criados e os validos, porque esses sim pos-suíam o poder.

Há reis que nem reinam, nem sabem: elles são os reis, e osseus validos são os que reinam; porque os validos são os quepõem e os que dispõem, e os que fazem o que querem; eassim como não reinam, também não sabem; porque nemsabem a quem se dão os prêmios, nem sabem a quem se dãoos castigos, nem sabem porque culpas (Op. cit., p. 293).

Observando este trecho do sermão, não é demaislembrar que durante dezoito anos, até 1642, o reino deFrança foi governado pelo Cardeal Richelieu, primeiroministro de Luís XIII. Na verdade, Vieira pôs em desta-que o fato, comentando que na França "quem tinha ogoverno era o Cardeal Richelieu" (op. cit., p.293). NaEspanha quem também governava de fato era o validode Filipe IV, o Conde Duque de Olivares. Depois des-tas certeiras críticas, o sermonista realçou a figura dofalecido rei, afirmando que ele possuía a coroa e opoder de fato, reinando sobre todos, assinando ospapéis com a própria mão, analisando severamentecada papel, antes de colocar-lhe a sua assinatura. Deacordo com as palavras de Vieira, o rei trabalhara ar-duamente durante o seu reinado. Até mesmo a músicaera ouvida à hora da sesta e pela madrugada, para nãoperturbar o seu ritmo de trabalho.

Manus enim mea auxiliabitur ei, et brachium meumconfortabit eum: A minha mão o ajudará, e o meu braço oesforçará (Op. cit., p. 294).

Aproveitando-se deste versículo bíblico, Vieira alu-diu a um fato premonitório, quando da coroação de D.João IV. Quando o novo rei estava sendo aclamado,diante da Igreja de Santo Antônio, o braço da imagemde Cristo crucificado despregou-se e ficou estendidodiante dos aclamadores. Todos viram nesse episódiouma clara demonstração do apoio de Deus para com anova dinastia real que se iniciava. "Manus meaauxiliabitur ei". Depois de recordar o episódio, Vieirapassa a relatar os vários momentos em que Deus auxi-liou as empresas do rei, como a vitória sobre Castela.Novamente busca nas palavras da Bíblia o reforço parao que tem a dizer. No Segundo Livro dos Reis, capítulo6, versículo 18 – na Vulgata está assinalado comoQuarto Livro dos Reis –, o profeta Eliseu, sucessor deElias, quando percebeu que os arameus ameaçavaminvestir contra Israel, orou a Deus, implorandoproteção para os israelitas: "Digna-te ferir essa gentede belida", ou seja, cegá-los momentaneamente. EDeus acatou a sugestão de Eliseu que, assim, podelevá-los aos israelitas. Depois, o profeta pede a Deusque os faça novamente enxergar e Deus atende o pe-dido de Eliseu. O perigo passara e os arameus esta-vam agora sob o poder do reino de Israel. O rei per-gunta ao profeta se deve massacrar os arameus, rece-bendo resposta negativa, já que era costume entre osisraelitas o massacre de prisioneiros de guerra. Ao in-vés de massacre, os prisioneiros recebem bom trata-mento e são repatriados, depois de um grande ban-quete oferecido pelo rei. Algo parecido, segundo Vieira,fizera Deus aos castelhanos, impedindo assim quedominassem novamente o reino português. Deus so-correra Portugal e, para reforçar esse socorro, Vieiranão hesitou em reproduzir mais um versículo bíblico,agora apoiado no Novo Testamento, em Mateus, ca-pítulo 26, versículo 47, buscando na atitude de SãoPedro, defendendo o Horto, o raciocínio certo paracompor o seu discurso. Deus socorrera Portugal, comohavia socorrido o povo israelita da invasão dosarameus, sem lutas. São Pedro defendeu o Horto, usan-do sua espada; com a espada, cortou a orelha de umsoldado e foi energicamente repreendido pelo Mestre:"Guarda tua espada no seu lugar, pois todos os quepegam a espada pela espada perecerão" (Mateus, 26,52). Deus socorrera Portugal, atrapalhando os "con-selhos" do Conde de Onhate: "O Onhate allumiavabem: mas Deus, porque amava a David, infatuou oconselho de Achitofel" (op.cit., p. 294). O Conde eraum bom conselheiro de guerra, mas Deus estava comD. João IV. Vieira compara o Conde de Onhate aAchitofel, e o rei de Portugal a David. Aquitofel, noSegundo Livro de Samuel – na Vulgata, Segundo Li-vro dos Reis –, é o conselheiro de Absalão, filho deDavid, que pretendia destronar seu pai. "Mas Deus,porque amava a David, infatuou o conselho de

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39Achitofel", ou seja, não permitiu que se realizasse avitória de Absalão.

Usando frases bíblicas – às vezes, destorcendo osentido correto, como é o caso do versículo 47, capítu-lo 26, de Mateus, "cum gladiis, et fustibus", aplicado àatitude do discípulo de Cristo que cortou a orelha dosoldado, quando, na verdade, a frase se liga aos quevieram prender Jesus, sob a orientação de Judas –,Vieira foi compondo seu raciocínio, cujo objetivo eraabrir caminho para as futuras transferências visionárias,já que o mito do Quinto Império era algo arraigado emseu espírito. Portanto, não era demais usar também umversículo de São Lucas, em que o evangelista,referindo-se ao nascimento de São João, diz: "E a mãodo Senhor estava com ele" (Lucas, 1, 66). A mão doSenhor também estava com D. João, segundo Vieira, eusando a palavra mão, ligando-a à mão de Deus, foiencadeando os próprios pensamentos e impondo aoouvinte e/ou leitor a sua verdade dos fatos que estavamocorrendo. "E a mão do Senhor estava com ele".Segundo Vieira, desde o início do reinado dareconquista, Deus foi um aliado do rei. Vieira, ao longodo sermão foi/vai apontando os momentos importantesque afiançaram a proteção.

"Et brachium meum confortabit eum: E o meu braçoainda mais o fortificou" (op. cit., p. 296). A palavrasagrada e seu mistério. A palavra sagrada não possuíamistério para Vieira, porque estava a serviço de suaengenhosidade e genialidade.

Deus não usou somente as mãos para orientar o reide Portugal, usou também o braço, para o proteger nosmomentos difíceis. Segundo Vieira, o rei não andavaarmado, não levava guardas quando viajava, enfim,não se protegia convenientemente. Esses cuidados,tão necessários, vinham de Deus, já que o braço deDeus o protegia. No entanto, o perigo o espreitavasob a forma do exército de Castela.

Todos estes excessos de valor destemido fazia aquelle gran-de coração, constatando-lhe das grandes diligencias queCastella fazia por lhe tirar a vida nas acções e nos logaresmais sagrados. Ah, que se me perde aqui a minha similhançade David! Mas eu a dou por bem perdida (op. cit., p. 297).

"Ah, que se me perde aqui a minha similhança deDavid", ou seja, David não agiu como agiu D. João e,muitas vezes, procurou proteger-se dos inimigos. Vieirarelata um episódio em que David fugiu do exército dorei Saul, subindo com seus homens para um lugarseguro. "Ascenderunt ad tutiora loca": Subiram para orefúgio, Primeiro Livro de Samuel (na Vulgata do séculoXVII, Primeiro Livro dos Reis), capítulo 24, versículo23. O sermonista, nesse trecho, procurou valorizar acoragem do rei português, diminuindo habilmente ovalor de David.

O sermão das exéquias do rei D. João IV só foi encon-trado depois da morte de Vieira e, segundo os aprecia-dores de sua obra, possui muitas falhas e lacunas, umavez que o seu autor morreu antes de realizar a correçãofinal. Mas, para mim, vale como documento de uma épo-ca, além de se detectar nele a face de um sacerdote deCristo que acreditava em premonições, reencarnações,astrologia e outras crendices censuradas pela IgrejaCatólica. Mas, de acordo com Antônio José Saraiva eÓscar Lopes – História da Literatura Portuguesa –, acrença na reencarnação era algo muito difundido noséculo XVII e, assim, as crendices de Vieira não eramanormais.

O tratamento a que Vieira sujeita as Trovas doBandarra para apontar em D. João IV o "rei Encoberto";para demonstrar a sua futura ressurreição, uma vez quemorreu sem se cumprir o Quinto Império; para transferirdepois o Quinto Império para D. Afonso VI, para D.Pedro II, para seu gorado primogênito e finalmente paraseu segundo, põe, é certo, o problema da sua sinceridade.Mas devemos talvez relacioná-lo com a crençacabalística na reencarnação, ou metempsicose, muitodifundida entre os Judeus da época, e que já foraexpressa pelo cristão-novo Manuel Bocarro Francês.Além disso, bem sabemos como o princípio lógico danão-contradição, o senso do absurdo pouco afeta asideologias enraizadas (op. cit., 1979: 556).

Desenvolvo um estudo do texto das exéquias de D.João IV porque, a partir dele, pude constatar a habili-dade de Vieira em transferir para os sucessores do reia sua crença na reencarnação do rei Encoberto, aqueleque cumpriria a profecia sobre o Quinto Império. Assim,revisitando também outros sermões, pude observaros volteios mentais do grande sermonista para darconcretude às suas visões messiânicas. Por exemplo,no sermão oferecido secretamente à Dona MariaFrancisca Isabel de Saboya, primeira esposa do rei D.Pedro II de Portugal, Vieira não escondeu seu desa-pontamento pelo falecimento do primogênito. Iniciou,assim, seu discurso, enviando queixas a Deus, quenão estava cumprindo suas promessas, uma vez que oprometido herdeiro varão nascera, mas não sobrevi-vera. O pregador empenhara sua palavra, valendo-sedas visionárias promessas de Deus, garantindo umfilho varão para o rei D. Pedro II. Antes, suas outrasafirmações não se realizaram: D. Afonso VI, preditopor Vieira como a nova reencarnação do Rei Encober-to, não conseguiu terminar o seu reinado, submeten-do-se ao poderio do irmão. Este, também assinaladopor Vieira, por sua vez, não estava realizando o sonhodo Quinto Império. Tornou-se urgente, portanto, trans-ferir a ressurreição para o provável herdeiro varão dotrono de Portugal. O herdeiro nasceu, mas, talvez emvirtude da anterior ligação, ilícita e pecaminosa, dospais, logo depois morreu.

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40Vieira recordou, ao longo do texto de pêsames, o

discurso do nascimento:

Dividi aquele sermão em duas partes: uma em que desempe-nhei a palavra de Deus, e outra em que empenhei a minha:e a ambos estes empenhos cortou o cumprimento, e aesperança a morte. O empenho da palavra de Deus era, quena prole atenuada da décima sexta geração dos nossos reishavia ele de olhar e ver; isto é, lhe havia de dar um filhovarão: mas como o deu e levou tão arrebatadamente, paranós o mesmo foi dá-lo, como se o não dera; e para ele omesmo foi ser, como se não fora (op. cit., p. 37).

Para não ser condenado por seus ouvintes/leitores, comode hábito, Vieira buscou nos Textos Sagrados o material desua defesa, e refez novamente a promessa, contando com ajuventude da rainha, para uma outra e certa gravidez. "Bas-tava, torno a dizer, para que a soberana liberalidade do mes-mo Senhor, depois de lhe tirar o primeiro, não haja de faltarem lhe dar o segundo" (op. cit., p. 51). Para desgosto deVieira, com o passar dos anos, depois do nascimento deuma filha, ficou patenteada a esterilidade da rainha.

Os sonhos de Vieira retomaram força com a morte darainha, alguns anos depois. No sermão de exéquias, pre-gado em setembro de 1684, o sermonista não conseguiudisfarçar o seu contentamento. Habilmente, misturou pro-testos de tristeza com cânticos de confiança em relação aofuturo, já que a morte da rainha permitiria um novo casa-mento ao rei, ainda em condições físicas para se tornar pai.Ainda havia uma forte possibilidade de realização das an-tigas promessas messiânicas. E aconteceu realmente o novocasamento do rei D. Pedro com Maria Sophia Isabella, "aaugustíssima de Áustria" (op. cit., p. 166), proporcionan-do, posteriormente, o nascimento do príncipe D. João,aquele futuro rei de Portugal, que marcaria tão tristementea história do Brasil com sua ambição desmedida.

No sermão de ação de graças pelo nascimento donovo herdeiro da coroa portuguesa, a primeira linhade raciocínio de Vieira se valeu, como de hábito, detrechos da Bíblia. O sermão sempre foi [e continuasendo], obrigatoriamente, um raciocínio que tem comotema central um pensamento bíblico, mas é evidenteque a segunda premissa – a linha de raciocínio ligadaaos acontecimentos sociais da família real e de Portugalera mais importante, em virtude do orador preferircolocar em destaque a história de Portugal –, queestava acontecendo, contrapondo-a com os fatos dopassado e com as visões do futuro. Vieira sentiu odesenrolar dos acontecimentos históricos queenvolviam Portugal no século XVII; sentiu emprofundidade o seu próprio momento, ligado aomomento do reino, sabendo-o parte importante dahistória. D. João IV, o restaurador, havia retomado ospoderes reais cedidos ao reino de Espanha desde amorte de D. Henrique e, isto, aconteceu no apogeu dafama do padre Antônio Vieira como orador sacro.Assim, no sermão de ação de graças pelo nascimentodo príncipe D. João, Vieira continuou não abandonando

a idéia de que Portugal se destacaria como o QuintoImpério e viu, nesse nascimento, a possibilidade deconcretizar a sua crença, tantas vezes malograda desdeD. João IV, de que naquele Infante Deus selaria apromessa de nomear o rei de Portugal como Imperadordo Quinto Império Judeu-Cristão.

Segura já a décima sexta geração e a promessa dela,resta só a da prole, e prole atenuada. Aqui tem osolhos divinos mais que desfazer do que fazer. Por-que a prole d'El-rei D. João, o quarto, não foi atenu-ada, senão multiplicada. Diz Salomão que o fio, ou ocordão de três ramais dificultosamente se rompe:Funiculus triplex difficilè rumpitur; e tal foi a proled'El-rei D. João, multiplicada ou triplicada em trêsfilhos: em D. Theodosio, em D. Affonso, em D. Pedro.Destes três havia de desfazer a Providência Divinaem dois deles, para que ficasse a prole atenuada emum só (op. cit., p. 177).

Neste trecho, reafirmou o que já afirmara antes emrelação ao avô, ao tio, ao pai e ao meio-irmão do Infanterecém-nascido. Como já foi dito, depois da morte de D.João, sem a concretização das profecias, Vieira transfe-riu para D. Afonso a honra da reencarnação, quandodemonstrou, num discurso persuasivo, que no novorei se realizariam as promessas de Deus. As afirmaçõesde Vieira, sempre apoiadas em suas premonições, fo-ram todas desmentidas, até então, pelos acontecimen-tos reais da trajetória de vida dos assinalados. Mas,com o nascimento do Infante, surgia uma nova espe-rança para o velho sermonista.

A vossos olhos (todo poderoso e todo misericordiosoSenhor) a vossos olhos, posto que debaixo dessa cortinaencobertos aos nossos: a vossos olhos vem hoje esta grandee nobilíssima parte de Portugal render as devidas graçaspelo fidelíssimo desempenho de vossas promessas.Prometeste que havieis de olhar, e ver: Ipse respiciet, etvidebit: e já temos nova certa, de que olhaste, e vistes.

Quatro anos, e mais, se contam hoje, em que pregando eu asexéquias da rainha, que está no céu, fiz dois discursos muitoencontrados, um de dor, outro de consolação; um de sentimento,outro de alívio; um triste, outro alegre; um com os olhos nopassado, outro com as esperanças no futuro (op. cit., p. 166).

Utilizando-se do estilo cultista, no início deste se-gundo parágrafo do sermão, usa as oposições, masnem por isto diminuindo o valor do texto, Vieira serefaz de sua longa decepção. Depois, para provar arecuperação de suas idéias, buscou na Bíblia váriostrechos que comprovariam o desempenho da pala-vra de Deus. Recordou a história de Portugal, recor-dou as visões de Afonso Henriques, que sob inspi-ração divina previu uma desgraça para o reino dePortugal, mas previu também que na décima sextageração se atenuaria a prole, ou seja, diminuiria ossofrimentos do reino, por meio de uma nova dinas-tia. A profecia se realizou com o desaparecimento deD. Sebastião, sem deixar herdeiros, com o curto rei-

Page 41: Cultura Luso Brasileira

41nado de D. Henriques, rei-sacerdote, que também nãodeixou herdeiros, e com a submissão da Coroa Portu-guesa à Coroa Espanhola.

Diz Vieira:

Vejamos agora quem foi a décima sexta geração d'El-rei D.Afonso I, e quem foi, ou é a prole atenuada da mesma geraçãodécima sexta. A décima sexta geração d'El-rei D. Afonso, oprimeiro, ninguém duvida que foi El-rei D. João, o quarto, deeterna memória: e a prole atenuada d'El-rei D. João, o quarto,também não se pode duvidar que é El-rei D. Pedro nossosenhor, que Deus guarde; porque depois do falecimento deseus irmãos, nele ficou a décima sexta geração em um sófilho, e por um fio. Segue-se logo com evidência, que napessoa d'El-rei D. Pedro se cumpriu a atenuação da prole, eque à mesma pessoa d'El-rei D. Pedro prometeu Deus oolhar e ver de seus olhos (op. cit., p. 167).

Além das previsões de Afonso Henriques, havia aspredições messiânicas de Bandarra, nas quais osermonista depositava inegável crédito, mesmo colo-cando em risco o fiel cumprimento da Doutrina Cristã.

O chamado Império Consumado de Cristo era um anti-go ideal dos portugueses e Vieira muito contribuiu para asua propagação. Esse mito, segundo Antônio José Sa-raiva e Óscar Lopes, era baseado numa mistura demessianismo nacional (sebastianismo e bandarrismo),missionarismo sem fronteiras e do messianismo judaico,que estava (e está) à espera do Salvador.

Vieira acreditou nessas profecias com sinceridade e,por isto, conseguiu dar sentido aos seus vários dis-cursos paradoxais sobre o assunto. Graças também àhabilidade discursiva, e as proteções externas, conse-guiu livrar-se da Inquisição, que o perseguia, por vernele uma ameaça para com a ortodoxia cristã.

Vieira acreditou até o fim de sua vida na possibilidade dever realizada a profecia do Quinto Império Judaico-Cris-tão, o qual, de acordo com suas crenças, seria edificadopelos portugueses (povo escolhido por Deus). Infelizmente,morreu sem ver realizado seu sonho, mas as verdadesmomentâneas, que o animaram a acreditar até o fim, estãoregistradas em seus sermões, e são hoje um precioso ma-terial que revela, por um ângulo particular (o ponto devista de um supersticioso e sonhador sacerdote do séculoXVII), um longo trecho da História de Portugal.

Considerações Finais

Repensei aqui algumas questões teóricas doManeirismo e do Barroco, mas, sobretudo, refletihermeneuticamente as arraigadas superstições do PadreAntônio Vieira, em relação ao Mito do Rei Encoberto eao Mito do Quinto Império Judaico-Cristão [mitos estesque fariam de Portugal o centro do Reino de Cristo, ocentro da união entre católicos romanos e judeusconvertidos, o Império Consumado de Cristo].

Para esta reflexão, escolhi o Sermão das Exéquias de D.João IV [associando-o a outros sermões que refazem oassunto], porque o rei D. João IV foi a força motriz queimpeliu o sermonista Vieira a acreditar nas predições deBandarra, graças às coincidências entre história e supers-tição registradas habilmente em seus diversos sermões.

Constatei, assim, que o sermonista em questão viveu ummomento importante da história de Portugal, teve o privilégiode nascer e viver em uma época de mudanças históricas,assistiu aos últimos momentos da dominação espanhola eacompanhou de perto a atuação do novo rei português (daTerceira Dinastia dos Bourbons e Bragança – início: 1640).Reconsiderei a sincera afeição que o ligava ao rei D. João IV,e percebi também que o fato de ter acreditado empredestinações (crenças que não se coadunavam com asLeis da Igreja Católica) muito serviu para dignificá-lo noplano da Criação Literária. Como já disse anteriormente, Vieirafoi um predestinado: estava escrito que ele seria aquele queacreditaria em todas as profecias sobre Portugal, desdeAfonso Henriques até o seu momento.

Pelo ponto de vista interpretativo, foi-me possível cons-tatar o quanto foi difícil para Vieira aceitar a morte do rei,sem ver antes realizadas as suas predições. Detectei a suatécnica discursiva singular para encobrir o desapontamen-to, mas foi esse mesmo desapontamento que induziu-o abuscar motivos para novas reafirmações de tudo aquiloque fora por ele predito com tanta convicção.

Enfim, poderei afirmar que a técnica discursivadiferente do padre Antônio Vieira conseguiu elevá-loao plano dos grandes criadores literários. Seus sermõesultrapassaram a barreira do tempo histórico (foram es-critos especialmente para os fiéis católicos do Reinode Portugal, no século XVII). Em outras palavras, oleitor de hoje sempre encontrará, extra-texto, e depoisde ler os sermões de Vieira, um fio questionador,dialético, que o levará a refletir a sua própria atualidade.

Este ensaio teórico-crítico (sobre os sermõeshistóricos de padre Antônio Vieira) está registrado noministério de Educação e Cultura / Biblioteca Nacional– Registro de Direitos Autorais –, e será publicado,em breve, na coletânea de Apontamentos de TeoriaLiterária e de Crítica Literária, de Neuza Machado,Editora NMACHADO (Editora da Autora).

Sobre as Manifestações Poéticas de Gregóriode Matos Guerra: Poesia Lírico-Amorosa,Poesia Lírico-Religiosa e Poesia Satírica

PENSAMENTOS DE ALFREDO BOSI SOBRE APOESIA DE GREGÓRIO DE MATOS GUERRA,CONTRAPONDO-O COM O CANHESTRO EXEM-PLO DE MANEIRISMO DO POETA BENTOTEIXEIRA, AUTOR DE PROSOPOPÉIA

Page 42: Cultura Luso Brasileira

42Sobre Bento Teixeira: "Na esteira do Camões épico e

das epopéias menores dos fins do século XVI, opoemeto em oitavas heróicas Prosopopéia, de BentoTeixeira [1561-1600], publicado em 1601, pode ser con-siderado um primeiro e canhestro exemplo demaneirismo nas letras da colônia. A intenção éencomiástica e o objeto do louvor Jorge deAlbuquerque Coelho, donatário da capitania dePernambuco, que encetava a sua carreira de prosperi-dade graças à cana-de-açúcar. A imitação de Os Lusíadasé assídua, desde a estrutura até o uso de chavões damitologia e dos torneios sintáticos (op. cit.: 1994: 36).

Sobre Gregório de Matos Guerra: "Poesia muito maisrica, a do baiano Gregório de Matos Guerra (1636-1696),que interessa não só como documento da vida socialdos Seiscentos, mas também pelo nível artístico queatingiu (Sobre a vida e a obra de Gregório de MatosGuerra, ler: IDEM: 37).

Sobre os contrastes da produção poética de Gregóriode Matos Guerra:

Gregório de Matos era homem de boa formaçãohumanística, doutor in utroque jure pela Universidade deCoimbra: mazelas e azares tangeram-no de Lisboa para aBahia quando já se abeirava dos cinqüent'anos; mas entrenós não perdeu, antes espicaçou o vezo de satirizar osdesafetos pessoais e políticos, motivo de sua deportaçãopara Angola de onde voltou, um ano antes de morrer, indoparar em Recife que foi sua última morada.

Tem-se acentuado os contrastes da produção literária de Gregóriode Matos: a sátira mais irreverente alterna com a contrição dopoeta devoto; a obscenidade do "capadócio" mal se casa com apose idealista de alguns sonetos petrarquizantes. Mas essascontradições não devem intrigar quem conhece a ambigüidadeda vida moral que servia de fundo à educação ibérico-jesuítica.O desejo de gozo e de riqueza são mascarados formalmente poruma retórica nobre e moralizante, mas afloram com todabrutalidade nas relações com as classes servis que delas saemmais aviltadas (IBIDEM: 37).

Vocabulário:

Aviltadas = humilhadas.

Capadócio = aquele que tem maneiras acanalhadas;trapaceiro.

In utroque jure = em ambos os direitos: o civil e ocanônico.

Recomendamos aos alunos da disciplina CulturaLuso-brasileira a leitura da obra poética em estilo bar-roco de Gregório de Matos Guerra, dividida em trêssegmentos: poesia lírico-amorosa, poesia lírico-religi-osa e poesia satírica.

Outros Escritores do Barroco-ColonialBrasileiro

No Brasil houve ecos do Barroco europeu duranteos séculos XVII e XVIII: Gregório de Matos, Botelhode Oliveira, Frei Itaparica e as primeiras academias re-petiram motivos e formas do barroquismo ibérico eitaliano (IBIDEM: 35).

Sobre a poesia barroca [arte barroca] no século XVIII,no Brasil-Colônia: "(...) só a análise interna poderiainformar sobre o seu grau de originalidade, importalembrar que a poesia coetânea delas já não é, senãoresidualmente, barroca, mas rococó, arcádica eneoclássica (...)" (IBIDEM: 34).

Vocabulário:

Coetânea = contemporânea.

Século XVIII: A Escultura Sacra de Aleijadinho

Na segunda metade do século XVIII, o ciclo do ourojá daria um substrato material à arquitetura, à escultu-ra e à vida musical, de sorte que parece lícito falar deum Barroco brasileiro e, até mesmo, mineiro, cujos exem-plos mais significativos foram alguns trabalhos doAleijadinho, de Manuel da Costa Ataíde e composi-ções sacras de Lobo de Mesquita, Marcos Coelho eoutros ainda mal identificados. (...) O Aleijadinho, queesculpe e constrói nos fins do século XVIII, ignora oNeoclassicismo (...) (IBIDEM: 34-35).

Século XVIII: Ambiente Sociocultural eLiterário no Brasil-Colônia

A descoberta de ouro na província de Minas Gerais émais do que um acontecimento nacional para o Brasil epara Portugal. É um acontecimento mundial que influenciade modo decisivo toda a configuração econômica da épo-ca. Segundo constatou Werner Sombart, o desenvolvi-mento capitalista e industrial da Europa no final do séculoXVIII teria sido impossível sem o fluxo impetuoso e esti-mulante do ouro brasileiro nas artérias da vida econômicaeuropéia, que logo passaram a pulsar mais rápido. A quan-tidade de ouro que o Brasil, esse país até então poucopercebido, lança de repente no mercado é, para aquelaépoca, quase inconcebível. Segundo as confiáveis esti-mativas de Roberto Simonsen, em um único vale de MinasGerais extraiu-se mais ouro do que em tudo o que foi extra-ído no resto das Américas antes da descoberta das minasde ouro californianas no ano de 1852. O ouro do Peru e doMéxico, que lançou o século XVI em um surto de loucura

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43e com um golpe de espada dobrou e triplicou o valor mo-netário de todas as coisas (conforme Montesquieu des-creveu grandiosamente em seu famoso ensaio Conside-rações sobre as Riquezas da Espanha), representa nemuma quinta parte, talvez só um décimo daquilo que a colôniadurante tanto tempo desprezada fornece à sua metrópole.Lisboa, em ruínas, foi reconstruída com esse ouro, o gi-gantesco convento de Mafra foi edificado com o "quinto"que por lei tinha de ser entregue ao rei, o súbitoflorescimento da indústria inglesa só pôde disparar porcausa desse adubo amarelo e o comércio e a transforma-ção da Europa ganham um impulso acelerado por essesúbito afluxo. Durante um período curto no relógio douniverso - cinqüenta anos -, o Brasil se torna a tesourariado Velho Mundo e a colônia mais lucrativa e invejável queuma nação européia possui (ZWEIG, Stefan. Brasil, UmPaís do Futuro. Tradução de Kristina Michahelles. PortoAlegre: L&PM, 2006: 94-95).

Uma atividade febril invadiu subitamente este país cal-mo e quase sonolento [século XVIII]. Mas é, como sem-pre, uma febre maligna, a febre do ouro. Excita os nervos,aquece o sangue, enche os olhos de cobiça e turva ossentidos. Não demora e começam lutas encarniçadas -os primeiros descobridores, os paulistas, defendem-secontra os que chegaram depois, os emboabas. Aquiloque um conseguiu a duras penas, o outro arrebata comuma punhalada, e o ridículo se imiscui grotescamente natragédia. Pessoas que ontem ainda eram mendigos, hojeostentam ridículos trajes luxuosos. Nas mesas de jogo,desertores e carregadores perdem fortunas inteiras nojogo de dados. (...). Nesse frenético escavar da terra emmilhares de pontos simultâneos, descobre-se próximo àDiamantina, algo ainda mais precioso do que o ouro – odiamante (IDEM: 94-95).

Um novo protagonista entra em cena: o governadorportuguês, para zelar pelos direiros da Coroa. Ele veiopara supervisionar a província recém-descoberta e prin-cipalmente para garantir o direito do quinto que cabe aorei. Atrás dele marcham os soldados e cavalgam os dra-gões para estabelecer a ordem. Instala-se uma Casa deFundição, onde todo o ouro encontrado deve ser entre-gue a fim de ser fundido e para que se possa exercer ocontrole. Mas a horda selvagem não quer controle. Irrompeum levante, debelado com mão de ferro. Gradualmente, aaventura selvagem se transforma em uma fabricaçãoregrada e severamente vigiada pela autoridade régia. Pou-co a pouco, amplas cidades se desenvolvem na região doouro – Vila Rica, Vila Real e Vila Albuquerque –, que reú-nem centenas de milhares de pessoas em suas choças ecasas de barro erguidas às pressas, uma população mai-or do que a de Nova York ou qualquer outra cidade nor-te-americana da época (IBIDEM: 97).

Os novos escritores serão [Portugal e Brasil-Colônia],na sua obra, menos atormentados; e, sem perder a impreg-nação religiosa nem o respeito à monarquia, preocupam-se com assuntos mais imediatos e concretos, como a prá-tica da virtude civil, a melhoria do homem pela instrução, abusca da harmonia social pela obediência às leis da natu-reza, a procura da felicidade na terra, por meio da prática dobem e da sabedoria. Coincidindo com as reformas do Mar-quês de Pombal, a sua atividade literária se voltará, emparte, para o apoio ao "despotismo esclarecido", justifi-cando-o menos pela origem divina do poder do que pelacapacidade de promover o bem-estar coletivo. Sob esteaspecto, os árcades serão mais laicos, mais políticos emais otimistas, sofrendo influências da Ilustração, isto é, omovimento de idéias do século XVIII que via na instruçãoe no aperfeiçoamento cultural a mola suprema da felicida-de humana. Essas idéias, que depois se tornaram banais,eram então novas e dinâmicas, cheias ainda da esperançade reorganizar a sociedade por meio da razão e da ciência- da "filosofia" -, como se costumava dizer. (CÂNDIDO,Antônio & CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Li-teratura Brasileira: Das Origens ao Realismo. 8. ed. Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1997: 78).

Tanto a busca da simplicidade formal quanto a da clarezae eficácia das idéias se ligam, nos árcades, ao grande valordado à natureza, como base da harmonia e da sabedoria.Daí o apreço pela convenção pastoral, isto é, pelos gêne-ros bucólicos, que visam representar a inocência e sadiarusticidade dos costumes rurais, sobretudo dos pastores,nesse sentido, procuraram deixar de lado o lirismo pastoraldos cultistas - cortesão e amaneirado -, restaurando (aomenos na intenção) a naturalidade dos escritores clássi-cos, principalmente Teócrito e Vergílio. O nome de Arcádiaevoca a região da Grécia em que se localizou convencio-nalmente o modelo ideal da vida rústica; e os membrosdaquela associação tomaram pseudôminos e se chama-ram de pastores, tratando de pastoras as suas persona-gens femininas (IDEM: 78).

Vocabulário:

Dragões = soldados da Cavalaria Portuguesa noBrasil-Colônia.

Emboabas = forasteiros portugueses e brasileirosque, no século XVIII, no Brasil-Colônia, buscavamouro e pedras preciosas, inclusive tomando-os pelaforça aos pioneiros Bandeirantes paulistas.

Horda = bando de aventureiros; bando deindisciplinados; bando de invasores.

Laico = leigo.

Page 44: Cultura Luso Brasileira

441.6 1.6 1.6 1.6 1.6 - O Processo de Aculturação: A Colônia comoSujeito de sua História

Podemos dizer que a população que ocupava o Bra-sil naquele tempo começou a tomar consciência desua própria importância como povo e, principalmente,da opressão colonial em que vivia. Essa tomada deconsciência levaria, pouco a pouco, ao surgimento deidéias e movimentos de libertação.

A aversão aos portugueses tornou-se maior à medidaem que as exigências fiscais da Coroa aumentaram, princi-palmente na região das minas. Naquela parte da Colônia,contribuíram para a formação do sentimento nativista oexemplo da Independência dos Estados Unidos e, em me-nor escala, as idéias revolucionárias dos filósofos france-ses, que os estudantes brasileiros ficavam conhecendoquando iam realizar seus cursos superiores na Europa.

Mas, na verdade, o fator principal do aparecimento edo desenvolvimento das idéias de liberdade para oBrasil foi a própria decadência do tradicional sistemacolonial português, acentuada nos fins do século XVIII(FERREIRA, Olavo Leonel. História do Brasil. 4. ed.São Paulo: Ática, 1981: 109).

É sempre necessário distinguir um nativismo estático,que se exaure na menção da paisagem, de um nativismodinâmico, que integra o ambiente e o homem na fantasiapoética (Basílio da Gama, Silva Alvarenga, Sousa Caldas).

O limite da consciência nativista é a ideologia dos incon-fidentes de Minas, do Rio de Janeiro, da Bahia e do Recife.Mas, ainda nessas pontas-de-lança da dialética entreMetrópole e Colônia, a última pediu de empréstimo à Fran-ça as formas de pensar burguesas e liberais para interpre-tar a sua própria realidade. De qualquer modo, a busca defontes ideológicas não-portuguesas ou não-ibéricas, emgeral, já era uma ruptura consciente com o passado e umcaminho para modos de assimilação mais dinâmicos, epropriamente brasileiros, da cultura européia, como se deuno período romântico (op. cit., 1994: 12-13).

A análise a que a historiografia mais recente tem subme-tido o conteúdo ideológico da Inconfidência é, nesse pon-to, inequívoca: zelosos de manter o fundamento jurídicoda propriedade (que a Revolução Francesa, na sua linhacentral, iria ratificar), os dissidentes de Vila Rica apenas sepropunham a evitar a sangria que nas finanças mineiras jáem crise, operaria a cobrança de impostos sobre o ouro (aderrama). Na medida em que impedir a execução destaimportava em alterar o estatuto político, os Inconfidenteseram "revolucionários", ou do ponto de vista colonial,"sediciosos". Cláudio Manuel da Costa falava em "inte-resses da Capitania" lesados pela administração lusa; paraAlvarenga Peixoto, senhor de lavras no sul de Minas, oseuropeus estavam "chupando toda a substância da Colô-nia"; as "pessoas grandes" ou "alentadas" viam com apre-ensão a derrama, sentindo-se como o Coronel José Ayres,"poderoso com o senhorio que tem em mais de quarenta etantas sesmarias... acérrimo inimigo dos filhos de Portu-gal". Em Tomás Antônio Gonzaga, colhe-se boa messe deprofissões de fé proprietista, como o famoso "é bom serdono" da Lira I...; do próprio Tiradentes sabe-se que nãopretendia abolir a escravatura caso vingasse o levante,opinião partilhada pelos outros inconfidentes, salvo o maisradical dentre todos, o padre Carlos Correia de Toledo eMelo (IDEM: 60).

Vocabulário:

Acérrimo = tenaz, obstinado.

Alentadas = ricas; fartas de bens, poderosas.

Dialética entre Metrópole e Colônia = argumentosdivergentes.

Dissidentes = que se separa por discordância deopiniões.

Exaure = esgota completamente.

Problema das origens da cultura brasileira: "Não podeformular-se em termos de Europa, onde foi a maturaçãodas grandes nações modernas que condicionou todaa história cultural, mas nos termos das outras literatu-ras americanas, isto é, a partir da afirmação de um com-plexo colonial de vida e de pensamento."

Colônia = objeto de uma cultura: "A Colônia é, deinício, o objeto de uma cultura, o "outro" em relação àmetrópole: em nosso caso, foi a terra a ser ocupada, opau-brasil a ser explorado, a cana-de-açúcar a ser

tivada, o ouro a ser extraído; numa palavra, a matéria-prima a ser carreada para o mercado externo. A Colôniasó deixa de o ser quando passa a sujeito da sua histó-ria. Mas essa passagem fez-se no Brasil por um lentoprocesso de aculturação do português e do negro àterra e às raças nativas; e fez-se com naturais crises edesequilíbrios. Acompanhar este processo na esferade nossa consciência histórica é pontilhar o direito eo avesso do fenômeno nativista, complemento neces-sário de todo complexo colonial (op. cit., 1994: 11-13).

1.7 1.7 1.7 1.7 1.7 - A Questão da Inconfidência Mineira (Final doSéculo XVIII): Sentimento Patriótico pelo Brasil-Colôniaou Aversão aos Desmandos da Realeza de Além-mar?

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45

Vocabulário:

Cabalmente = plenamente; completamente.

Coesa = harmônica; coerente; lógica.

Hipotética = fundada em hipótese.

Homogênea = semelhante, igual.

Interações = ações recíprocas.

Durante o período colonial, a cultura européia foitransplantada para o Brasil pelos colonizadores por-tugueses. A religião cristã, a língua e as instituiçõespolíticas, jurídicas e educacionais que existiam na Me-trópole foram estabelecidas na Colônia.

No Brasil, ao contato com as culturas do indígena edo negro, a cultura portuguesa tomou uma feiçãoprópria, diversa daquela que continuou a existir emPortugal (op. cit., 1981: 117).

Quando falamos de trabalhador na literatura é precisocomeçar por distinguir: até aproximadamente o finaldo século XIX, trabalhador é quase exclusivamente oescravo, o negro e, secundariamente, o índio - aquestão social mistura-se com a questão racial(REIS, Zenir Campos. O mundo do trabalho e seusavessos: a questão literária. In.: BOSI, Alfredo(Org.). Cultura Brasileira: Temas e Situações.2.ed. São Paulo: Ática, 1992: 82).

A Colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o "ou-tro" em relação à metrópole: em nosso caso, foi a terra aser ocupada, o pau-brasil a ser explorado, a cana-de-açúcar a ser cultivada, o ouro a ser extraído; numa pala-vra, a matéria-prima a ser carreada para o mercado exter-no. A Colônia só deixa de o ser quando passa a sujeito dasua história. Mas essa passagem fez-se no Brasil por umlento processo de aculturação do português e do negroà terra e às raças nativas; e fez-se com naturais crises edesequilíbrios. Acompanhar este processo na esfera denossa consciência histórica é pontilhar o direito e o aves-so do fenômeno nativista, complemento necessário detodo complexo colonial (IBIDEM: 11).

NOTA DE ALFREDO BOSI, nº 2, op. cit. P. 11

V. Afrânio Coutinho, A Tradição Afortunada, JoséOlympio Ed., 1968, onde o crítico estuda o fator"nacionalidade" em vários momentos da críticabrasileira.

Da cultura brasileira já houve quem a julgasse ou aquisesse unitária, coesa, cabalmente definida por estaou aquela qualidade mestra. E há também quem pre-tenda extrair dessa hipotética unidade a expressão deuma identidade cultural.

Ocorre, porém, que não existe uma cultura brasileirahomogênea, matriz dos nossos comportamentos e dosnossos discursos. Ao contrário: a admissão do seucaráter plural é um passo decisivo para compreendê-lacomo um "efeito de sentido", resultado de um processode múltiplas interações e oposições no tempo e noespaço (BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira,Temas e Situações. 2.ed. São Paulo: Ática, 1992: 7).

Para um contato direto com a ideologia dos Inconfidentes, são fontes obrigatórias os Autos de Devassa daInconfidência Mineira, Biblioteca Nacional, Rio, 1936-1938. Para o conhecimento preciso da situação naBahia, o melhor testemunho vem de um "colono ilustrado", Luís dos Santos Vilhena, que deixou umaRecopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas (ano de 1802), Salvador, 1921.

NOTA DE ALFREDO BOSI, nº 49, ibidem, p. 60

Lavras = terrenos de mineiração; lugares onde seextraem ouro ou diamante.

Levante = revolta.

Ratificar = confirmar; validar (o que foi feito ouprometido).

Sangria = extorsão astuciosa ou fraudulenta.

Sediciosos = perturbadores da ordem pública;revoltosos.

Sesmarias = terras doadas pelos reis de Portugal aoscolonos no Brasil-Colônia.

1.8 1.8 1.8 1.8 1.8 - O Português, o Índio e o Negro: O Direito e oAvesso do Fenômeno Nativista Brasileiro

Page 46: Cultura Luso Brasileira

46UNIDADE II

AS INFLUÊNCIAS DE OUTRAS CULAS INFLUÊNCIAS DE OUTRAS CULAS INFLUÊNCIAS DE OUTRAS CULAS INFLUÊNCIAS DE OUTRAS CULAS INFLUÊNCIAS DE OUTRAS CULTURAS NATURAS NATURAS NATURAS NATURAS NACOLÔNIA, NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICACOLÔNIA, NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICACOLÔNIA, NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICACOLÔNIA, NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICACOLÔNIA, NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICA

2.1 2.1 2.1 2.1 2.1 - Século XVI e Início do Século XVII

O litoral brasileiro foi visitado inúmeras vezes pornavios estrangeiros que vinham à procura das rique-zas das matas ou das primeiras vilas estabelecidaspelos portugueses. No entanto, em algumas naçõeseuropéias que contestavam a posse portuguesa doBrasil foram elaborados planos mais ambiciosos deocupação. Assim, em pouco mais de meio século, osfranceses organizaram duas grandes expedições paraocupar o litoral brasileiro. Em 1555, fundaram a FrançaAntártica, no Rio de Janeiro, e, em 1612, a FrançaEquinocial, no Maranhão (...).

A expedição de Villegaignon chegou ao Rio de Janei-ro em 1555. A França Antártica, como foi chamada acolônia, estava situada entre os núcleos portuguesesde São Vicente e da Bahia, comprometendo os esfor-ços lusitanos de colonização do litoral brasileiro. Aexistência do Forte Coligny, fundada pelos francesesna Ilha de Serigipe, na Baía de Guanabara, punha emperigo a posse portuguesa da costa do Brasil.

A permanência dos franceses na Guanabara criariauma divisão territorial da Colônia portuguesa, poissepararia as capitanias que ficavam no norte daquelaslocalizadas ao sul do Rio de Janeiro.

Além disso, os franceses representavam um contigentede população com língua e religião diferentes das doBrasil, o que daria à região uma formação completamen-te diversa daquela que veio a possuir.

O governador Mem de Sá envidou todos os esfor-ços com o objetivo de expulsar os invasores da re-gião. Quando Estácio de Sá conseguiu destruir defini-tivamente o Forte Coligny e frustrar os planos de ocu-

pação pelos franceses, ficou indiretamente garantidaa unidade territorial, lingüística e religiosa da colônia.

Em 1612, os franceses atingiram o litoral norte doBrasil, estabelecendo numa ilha o Forte de São Luís,em torno do qual nasceu a povoação de mesmo nome,hoje capital do Estado do Maranhão.

Duas expedições foram organizadas pelo governo-ge-ral para expulsar os franceses do Maranhão. A primeira,comandada por Jerônimo de Albuquerque, não conse-guiu realizar o intento. Quando os portugueses atacaramnovamente as instalações dos invasores, obtiveram re-sultados melhores. Depois da Batalha de Guaxenduba,principal vitória dos portugueses, estabeleceu-se umatrégua entre os beligerantes. Essa trégua terminou quan-do os portugueses receberam reforços do Reino e daBahia. La Ravardière rendeu-se, e os portugueses toma-ram posse da região (1615) (op. cit., 1981: 61-63).

Vocabulário:

Beligerantes = aqueles que fazem guerra, ou estãoem guerra.

Capitanias = comando; chefia.

Capitanias hereditárias = donatarias; cada uma dasprimeiras divisões administrativas do Brasil, das quaisse originaram as províncias e os estados de hoje, ecujos chefes tinham o título de capitão-mor.

Envidou = desafiou; provocou; empregou com mui-to empenho "seus esforços".

2.2 2.2 2.2 2.2 2.2 - Século XVII

O domínio espanhol teve conseqüências importan-tes para o Brasil. Entre elas destacam-se as invasõesde nosso território por ingleses e holandeses, inimi-gos da Espanha. (...) Mais importantes foram as inva-sões holandesas. Ocupando por muitos anos exten-sas regiões do Brasil, os holandeses deixaram profun-das marcas em nossa história.

Durante o governo de Nassau, Olinda foi reedificada;em Recife, foram erigidos os palácios de Friburgo e daBoa Vista; foram construídas pontes, orfanatos e hos-pitais. O príncipe holandês rodeou-se de sábios comoWillen Piso e George Marcgrave, que estudaram a flo-ra e a fauna brasileiras; artistas como os irmãos Pieter eFranz Post, que deixaram quadros de valor mostrando pai-

Page 47: Cultura Luso Brasileira

47sagens brasileiras. No palácio de Friburgo, foi construídoo primeiro observatório astronômico do Brasil.

Nassau deu liberdade de culto a católicos e judeus,embora restringisse, por mais de uma vez, essa garantia.Permitiu ainda que portugueses e brasileiros participassemdo governo nas Câmaras de Escabinos, que eram CâmarasMunicipais nos moldes holandeses (...).

A ocupação do Nordeste pelos holandeses e as lu-tas empreendidas para expulsá-los tiveram importantesconseqüências para o Brasil:

• Colaboraram para a urbanização na região litorâ-nea. O Recife holandês tornou-se um dos mais impor-tantes centros urbanos em todo o Brasil;

• Favoreceram a manutenção da unidade territorialda colônia;

• Contribuíram decisivamente para o desenvolvimen-to do sentimento nacional;

• Promoveram uma união mais efetiva entre os ele-mentos étnicos formadores do povo brasileiro, uni-dos na causa comum de combater os invasores;

• Permitiram a realização de uma experiência socialdiferente da sociedade rural típica do Nordeste canavieiro:a sociedade urbana do Recife (IDEM: 64-72).

Vocabulário:

Erigidos = erguidos; levantados.

Escabinos = magistrados (juízes).

Polimorfas = multiformes; muitas formas; variaçõesde formas.

2.3 2.3 2.3 2.3 2.3 - Final do Século XVII e Século XVIII

Final do século XVII e século XVIII: A economiaaçucareira da Região Nordeste entrou em decadência,em razão da concorrência apresentada pela produçãode açúcar das Antilhas. Até essa época, eramencaminhados para o Nordeste os indígenas apresadospelas bandeiras.

A importação de negros africanos teve grandedesenvolvimento depois da expulsão dos holandeses,e os africanos substituíram os habitantes da terra notrabalho escravo. (...)

Com a descoberta do ouro no território hojecompreendido pelo estado de Minas Gerais, foi enormea afluência de pessoas que se dirigiam para aquelaregião do Brasil, provenientes de Portugal e de váriospontos da Colônia. Do contato entre estes forasteirosque atingiram a zona mineira e os paulistas

descobridores das jazidas, resultaram sérios atritosconhecidos como a Guerra dos Emboabas. (...)

Depois que a região foi pacificada, nela surgiu umasociedade com características muito diferentes dasapresentadas pela sociedade originada no séculoanterior na zona da grande lavoura canavieira(IBIDEM: 90-91).

Vocabulário:

Emboaba = nos tempos coloniais, alcunha [apelido,geralmente, depreciativo] que os descendentes dosbandeirantes paulistas davam, especialmente na regiãodas minas, aos forasteiros portugueses e brasileirosde outras origens, que encontravam no sertão à buscade ouro e pedras preciosas, e, por extensão, aosportugueses em geral.

2.4 2.4 2.4 2.4 2.4 - Século XIX

O século XIX já não conhecerá mais uma colôniachamada Brasil: Dom João VI não tem outra escolhasenão declarar solenemente a maioridade da criançaque o acolhe em seus braços e reergue a ele, oderrotado. Com o título de Reinos Unidos, o Brasil éequiparado a Portugal, e durante doze anos a capitaldesse reino duplo não fica mais às margens do Tejo, esim à beira da baía de Guanabara. De um golpe, caemas barreiras que isolavam até então o Brasil docomércio mundial. Acabaram-se os tempos dasautorizações, das proibições e dos decretos rigorosos.

A partir de 1808, navios estrangeiros podem aportarno Brasil, mercadorias podem ser permutadas sem queos tributos tenham que ser entregues à tesouraria dealém-mar. O Brasil pode trabalhar e produzir, falar eescrever e pensar e, assim, pode começar, junto com odesenvolvimento econômico, o desenvolvimentocultural durante tanto tempo reprimido. Pela primeiravez, desde o breve episódio da ocupação holandesa,chegam sábios, artistas e técnicos de renome paraincentivar aqui a construção de uma cultura própria.Coisas totalmente desconhecidas, como bibliotecas,

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48museus, universidades, academias de arte e escolastécnicas, são instaladas, e o país recebe total liberdadepara mostrar ao mundo a sua personalidade em matériade cultura.

Mas quem alguma vez conheceu a liberdade e apren-deu a amá-la não se contém mais enquanto não conse-gue obter a liberdade completa, sem restrições. Mes-mo o vínculo já afrouxado que une o jovem reino aovelho de além-mar é percebido como entrave e fardo.Somente quando, em 1822, o Brasil se torna império,começa a sua verdadeira independência.

Ou melhor: poderia começar. Pois o país [no séculoXIX] só alcança sua independência do ponto de vistapolítico, não econômico. Ao contrário: até meados doséculo XIX, o Brasil cai numa dependência maior emrelação à Inglaterra e a outros países industrializadosdo que tinha em relação a Portugal. Bloqueado em seudesenvolvimento econômico pelas proibições de Lis-boa, o Brasil perdeu a revolução industrial que, nosfins do século XVIII, começou a transformar nossomundo de forma decisiva. (..)

A última grande transformação a que o Brasil se viuforçado não foi fruto da vontade do mercado externo,e sim de sua própria vontade, por meio da lei de 1888que aboliu definitivamente a escravatura (...).

Com os escravos, os fazendeiros perdem uma grandeparte do seu capital e, sem condições de competir emprodutividade contra os modernos métodos mecâni-cos, finalmente a agricultura e a lavoura do café amea-çam falir. Mais uma vez se ergue o brado dos velhostempos: mais braços para o Brasil! Mais braços, maisgente, custe o que custar! Isso obriga o governo aincentivar sistematicamente a imigração (...), atraindoimigrantes europeus e asiáticos. Antes da era do café,o Brasil apenas conhecera uma imigração para a agri-cultura. Já em 1817, o rei Dom João VI mandara agenteseuropeus contratarem dois mil colonos suíços, quefundaram a colônia de Nova Friburgo. A eles se se-guiu, em 1825, um grupo alemão que foi para o RioGrande do Sul. Pouco a pouco, com a chegada de cercade 120 mil alemães para o sul do Brasil, desenvolve-ram-se núcleos fechados de alemães em Santa Catarinae no Paraná, mas toda essa imigração acontecera maisou menos por iniciativa própria dos emigrados ou pelaintermediação de agências privadas. Só quando se ini-cia uma nova produção grande e lucrativa e o trabalhoescravo não existe mais é que o país e, principalmente,São Paulo resolvem incentivar a imigração em maiorescala do que até então, financiando a viagem paraaqueles que não tinham recursos e oferecendo lotesde terra para todos aqueles que quisessem se dedicar àlavoura. (...) Mal o Brasil abriu as portas, já afluem aslevas de imigrantes (op. cit., 2006: 104-114).

2.5 2.5 2.5 2.5 2.5 - Século XX

Não existe uma cultura brasileira homogênea, matrizdos nossos comportamentos e dos nossos discursos.Ao contrário: a admissão do seu caráter plural é umpasso decisivo para compreendê-la como um "efeitode sentido", resultado de um processo de múltiplasinterações e oposições no tempo e no espaço.

A cultura das classes populares, por exemplo,encontra-se, em certas situações, com a cultura demassa; esta, com a cultura erudita; e vice-versa. Háimbricações de velhas culturas ibéricas, indígenas

e africanas, todas elas também polimorfas, pois játraziam um teor considerável de fusão no momentodo contato interétnico. E há outros casamentos, maisrecentes, de culturas migrantes, quer externas(italiana, alemã, síria, judaica, japonesa etc.), querinternas (nordestina, paulista, gaúcha etc.), quepenetraram fundo em nosso cotidiano material emoral. Sem esquecer a presença norte-americana,que vem representando, desde a Segunda GuerraMundial, uma fonte privilegiada no mercado debens simbólicos (op. cit., 1992: 7-8).

2.6 2.6 2.6 2.6 2.6 - Século XXI

Neste início de século XXI (início também do TerceiroMilênio), envolvidos em nossa própria dinâmica de vida,carecemos de um número maior de analistas e intérpretesque captem e retribuam com novos conceitos e interpre-tações as influências externas (as imposições de outrasculturas, estrangeiras) em nossa própria cultura e as di-

vulguem em livros (evidentemente, se as editoras brasi-leiras estiverem interessadas no assunto). Por ora, pode-remos apontar a influência da TV e da Internet (de origemamericana) direcionando o tal "mercado de bens simbó-licos" de que nos fala Alfredo Bosi em seu livro CulturaBrasileira, Temas e Situações (op.cit., 1992: 8).

Page 49: Cultura Luso Brasileira

492.7 2.7 2.7 2.7 2.7 - Cultura Popular

• FOLCLORE = conjunto de costumes.

• Ação de cuidar, tratar, venerar (no sentido físico emoral).

• CULTURA POPULAR NO BRASIL: A cultura dasclasses populares encontra-se, em certas situações, coma cultura de massa; esta, com a cultura erudita; e vice-versa. Há imbricações de velhas culturas ibéricas, indí-genas e africanas, todas elas também polimorfas, poisjá traziam um teor considerável de fusão no momentodo contato interétnico. E há outros casamentos, maisrecentes, de culturas migrantes, quer externas (italiana,alemã, síria, judaica, japonesa etc.), quer internas (nor-destina, paulista, gaúcha etc.), que penetraram fundoem nosso cotidiano material e moral. Sem esquecer apresença norte-americana, que vem representando, des-de a Segunda Guerra Mundial, uma fonte privilegiadano mercado de bens simbólicos (op. cit., 1992: 7-8).

• CULTURA POPULAR NO BRASIL / LITERATURA:A poesia da roça não pode ser convenientementecompreendida, se não se observam os "actos" a quese acha entrelaçada, e que a explicam. Apanhar os seusprodutos, como de ordinário se faz, e amontoá-los naspáginas das coletâneas, sem explicações e, o que épior, de mistura com toda uma quantidade de coisascolhidas em vários meios, lugares e tempo, é tirar-lhesa melhor parte de interesse que possam oferecer aoestudioso da psicologia popular, reduzi-los a simplescuriosidade, nem sempre curiosas, e mesmo torná-losem grande parte incompreensíveis (DICIONÁRIO DOFOLCLORE BRASILEIRO. Rio de Janeiro: Edições deOuro, 1969: 548-549.).

• CULTURA POPULAR E O INTELECTUAL(BRASILEIRO?): Metaforicamente, poder-se-ia dizerque as manifestações culturais populares traem aexpectativa desse intelectual (...), basicamente porque

elas não ficam na moldura. E esse intelectual tem apaixão da moldura. A sua visão é a do palco à italiana;o que está fora do recorte canônico da visualidadesimplesmente não é visível. Reiterando, a molduraé, com efeito, um emblema bem adequado da visãorepresentativa: ela delimita o lugar de aparição edefine o que é visível. A manifestação culturalpopular cai fora da moldura quando questiona avisão representativa; quando considera a linguagemcomo produção; quando sua significação socialultrapassa o texto individual e põe em causa a noçãode obra; quando é heterogênea e múltiplainternamente; quando, ao se vincular ao cotidianoconcreto, perde a "distância estética"; quando, pelarelativização da autoria, questiona a individualizaçãode um sujeito; quando não é crítica, no sentidotradicional, mas instauradora e afirmativa.Metaforicamente, quando se derrama da moldura ecai fora do triângulo canônico da visualidade(PASTA JR, João Antônio. Cordel, Intelectuais e oDivino Espírito Santo. In.: BOSI, Alfredo (Org.).Cultura Brasileira, Temas e Situações. 2.ed. SãoPaulo: Ática, 1992: 71).

Vocabulário:

Imbricações = disposições culturais, de maneira quesó em parte se sobreponham umas às outras.

Interétnicos = ações étnicas que se exercem mutua-mente entre duas ou mais culturas diferentes.

Migrantes = aqueles que se deslocam de um paíspara outro.

Polimorfas = multiformas; várias formas; variação deformas.

2.8 2.8 2.8 2.8 2.8 - Cultura Erudita

• Conjunto de conhecimentos acumulados e socialmentevalorizados, que constituem patrimônio da sociedade;

• O cabedal de conhecimento; a ilustração; o saberde uma pessoa ou grupo social (fig.);

• Conjunto de padrões, de comportamento, crenças,conhecimentos, costumes etc. que distinguem um gru-po social;

• Forma ou etapa evolutiva das tradições e valoresintelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou perío-do específico); civilização (cultura clássica; culturamuçulmana);

• Complexo de atividades, instituições, padrões so-ciais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciên-cias humanas e afins (por exemplo: "um governo queprivilegiou a cultura").

Page 50: Cultura Luso Brasileira

502.9 2.9 2.9 2.9 2.9 - Cultura de Massa

• Universo de formas culturais selecionadas, inter-pretadas e popularizadas pela indústria cultural e mei-os de comunicação de massa para disseminação juntoao maior público possível; indústria cultural; conjun-to de atitudes, linguagens, conhecimentos e costu-mes assim induzidos, que tendem freqüentemente àestereotipagem e à simplificação e buscam satisfazerindiretamente interesses de determinados grupos so-ciais; indústria cultural.

• Para instruir as massas, existe uma operação quesimplifica e vulgariza a chamada cultura de elite.Esse processo – a divulgação –, crê que, numa "for-ma mais simples" conhecimentos possam ser vei-culados ao povo.

O processo de divulgação comporta duas corren-tes contrárias. Uma, que é manipuladora, supõe que,para incorporar-se à civilização, a massa deve ultra-passar seu estado informe de anomia e carência, ab-sorvendo os padrões oferecidos. Essa instrução écega e surda aos valores antropológicos existentesnos grupos a "aculturar", é impositiva e quer cons-truir sobre tábula rasa.

No entanto, a diversidade desses mesmos grupos éaproveitada como fonte de atração para divertir asmassas urbanas. A diferença constitui folclore para oconsumidor ávido: é o regionalismo nos Estados Uni-dos, as imagens do gaúcho, do nordestino, do caipiraentre nós etc.

Os pólos periferia-universidade podem desempenharpapel semelhante.

Outra corrente, bem intencionada, é a que acreditaque "do povo vem a salvação" e procura dar-lhe osmeios necessários para que ele salve a sociedade. Talidéia dominante hoje em nossos meios cultos não énova. (BOSI, Ecléa. Cultura e desenraizamento. In.:BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira, Temas eSituações. 2.ed. São Paulo: Ática, 1992: 16-17).

Vocabulário:

Aculturar = interpenetrar culturas; interpenetraçãode culturas diferentes em um determinado meio social(no sentido de "dominar culturalmente").

Anomia = ausência de leis, de normas ou de regrasde organização.

Diversidade = diferença, dessemelhança; divergên-cia, contradição, oposição.

Impositiva = que impõe ou se impõe; que tem o caráterde imposição.

Informe = sem forma ou feitio.

Tábula rasa = (Empirismo) estado de indeterminaçãocompleta, de vazio total, que caracteriza a mente antesde qualquer experiência.

Valores antropológicos = valores que descrevem ohomem e o analisam com base nas características bio-lógicas e culturais dos grupos em que se distribuem,dando ênfase, através das épocas, às diferenças e va-riações entre esses grupos.

2.10 2.10 2.10 2.10 2.10 - Cultura Alternativa

Na sociedade de consumo, a cultura alternativa é ten-dência a assumir atitudes, linguagens, costumes etc. quecontrariam real ou supostamente (especialmente do pon-

to de vista da produção ou do consumo) os padrõesculturais estabelecidos (por exemplo: a comunidade doshippies dos anos sessenta = comunidade alternativa).

2.11 2.11 2.11 2.11 2.11 - Cultura Oficial

Conjunto de atitudes, linguagens, conhecimentos,costumes etc. explícita ou implicitamente difundidos e

estimulados pelos meios de comunicação mantidos ouutilizados pelo Estado e suas autoridades constituídas.

2.12 2.12 2.12 2.12 2.12 - Cultura Dominante X Cultura Dominada

• CULTURA DOMINANTE = O desenvolvimento deum grupo social, uma nação. Cultura "superior" quedomina outras culturas. Por exemplo: A Grécia do séculoV a.C. atingiu o mais alto grau de cultura de sua época.

• CULTURA DOMINADA = É a cultura que vai per-dendo seus próprios valores ante uma outra que adomina.

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51CULTURA DOMINANTE X CULTURA DOMI-

NADA

Pensamentos de Alfredo Bosi, sobre a cultura brasi-leira no início dos anos 90:

O que singulariza a cultura "superior" é a possibili-dade que ela tem de avaliar a si mesma; em última ins-tância, é a sua autoconsciência. (...)

A cultura "superior" conserva-se enquanto formamentis, mas supera seus conteúdos já datados. O seuritmo supõe o movimento da consciência histórica.

No Brasil e, arriscaria a dizer, no Terceiro Mundo,esse andamento é sinuoso e irregular, pois vem oratolhido ora acelerado pelas relações entre o centrohegemônico (Europa, Estados Unidos) e a nossa con-dição periférica e dependente. Uma percepção origi-nal e concreta da nossa própria existência torna-sedifícil e tende à ambigüidade ou a penosas oscilações,pois o intérprete nem sempre é capaz de relativizar ascategorias gerais que aprendeu em escritos pensadosa partir do Primeiro ou do Segundo Mundo. Daí, aurgência de estudos particulares rigorosos e de umaauto-análise mais acurada de nossos hábitos mentais,a fim de que certos modelos de maior prestígio nãovenham sobrepor-se ao nosso trabalho de campo eobstar a uma visão nítida das coisas, sem a qual aprópria ação política resulta ineficaz. (...)

Não somos a Europa, evidentemente; mas tampoucosomos a anti-Europa. O mesmo vale para os EstadosUnidos e, apesar de tantos pontos de semelhança,também para os países da América de língua espanhola.

Aprender o que somos, o que estamos nos tornandoagora [início dos anos 90] e o que podemos fazer, medi-

ante um conhecimento histórico-comparativo denso ejusto, é ainda a tarefa prioritária das ciências humanasno Brasil. Se esse conhecimento for verdadeiro, nãopoderá deixar de ser empenhado; não por acréscimo,mas por aprofundamento. (...) Estudos (...) estão a me-recer a "cultura negra", a "cultura proletária" e a "cultu-ra marginal", expressões que menciono entre aspasporque as vejo ainda em busca de uma definição nocontexto capitalista de massas onde se inserem.

Plural sim, mas não caótico, o mapa das subculturas einterculturas do Brasil calca-se sobre linhas de força danossa divisão social. Fazer o seu levantamento e divi-sar no claro-escuro do cotidiano as relações entre vidasimbólica, economia e política é recusar-se a cair natentação do absurdo que nos ronda mal deitamos osolhos nas manchetes de jornais (op. cit., 1992: 14-15).

Vocabulário:

Acurada = aprimorada; tratada com cuidado.

Forma mentis = modo variável por que uma idéia(pensamento) se apresenta.

Hegemônico = preponderante; supremo.

Obstar = causar embaraço ou impedimento.

EXEMPLO DE DEPRECIAÇÃO CULTURAL:CULTURA DOMINANTE (CIDADE) X CULTURADOMINADA (CAMPO)(Brasil: início do século XX):

(...) essa raça a vegetar de cócoras, incapaz deevolução, impenetrável ao progresso (LOBATO,Monteiro. Urupês. 27. ed. São Paulo: Brasiliense,1982: 147).

2.13 2.13 2.13 2.13 2.13 - Tradição X Inovações: Nas Trilhas da Arte(Música e Literatura)

CULTO E ENRAIZAMENTO

As práticas religiosas fazem chegar às pessoassimples os livros clássicos da fé e permitem queeles convivam com a grande arte: música, pintura,arquitetura, dança, poesia. Todas essa expressõessimbólicas podem fazer parte do culto (BOSI, Ecléa.Cultura e desenraizamento In.: BOSI, Alfredo(Org.). Cultura Brasileira, Temas e Situações.2.ed. São Paulo: Ática, 1992: 30).

MÚSICA / TRADIÇÃO - Tradicionalmente, um dosnós da questão (...) na música esteve na separação,

levada a efeito pelos grupos dominantes, entre a mú-sica "boa" e a música "má", entre a música considera-da elevada e harmoniosa, por um lado, e a música con-siderada degradante, nociva e "ruidosa", por outro(WISNIK, José Miguel. Algumas questões de músicae política no Brasil. In.: BOSI, Alfredo (Org.). CulturaBrasileira, Temas e Situações. 2.ed. São Paulo: Ática,1992: 115).

MÚSICA / INOVAÇÃO - Atualmente, no entanto,esse quadro mudou muito: a indústria do som atravésdo disco e do rádio, seguida pela incrementação ace-lerada dos meios de reprodução capazes de colocá-la

Page 52: Cultura Luso Brasileira

52numa rede de terminais disseminados em toda parte,alterou decisivamente o papel e o lugar social da mú-sica. Agora, o capital multinacional não se ocupa emimpor a música "elevada" e sublimada (tida quase reli-giosamente como "superior"), expulsando da repúbli-ca musical as sonoridades divergentes, mas absorve elança no campo do mercado as mais variadas expres-sões da música de dança, desde que reguladas porcertos padrões de homogeneização, cicladas erecicladas segundo o ritmo da moda (IDEM: 116).

Vocabulário:

Absorve = aplica-se detidamente; embebe em si; assimila.

Cicladas = periodizadas; cronolizadas; atualizadas.

Disseminados = difundidos; propagados.

Divergentes = discordantes; opiniões divergentes.

Homogeneização = uniformização; tornar-se uniforme(semelhante; que só tem uma forma).

Incrementação = elaboração; sofisticação; diferenciação.

LITERATURA / TRADIÇÃO - A literatura, assim comoqualquer prática reconhecida como artística, emboraguardando uma autonomia relativa na produção de seusefeitos significativos, não pode ser separada em ne-nhum instante, sob nenhum pretexto, do funcionamen-to da sociedade em seu conjunto. Isto equivale a dizerque nenhuma abordagem realmente científica poderádesconsiderar a articulação do texto literário com o pro-cesso material de trabalho e com as práticas contraditó-rias presentes em toda formação social.

A literatura é uma formação ideológica e, como tal,procura resolver contradições ao nível das classessociais. Mas a ideologia literária não pode ser confun-dida com outras formações ideológicas (como a políti-ca, a moral, a religião etc.), e em sua especificidadeprodutiva é capaz de atingir um verdadeiro conheci-mento, um saber da consciência do sujeito.

(...) Ideologia será entendida como a possibilidadesocial de produção de sentido, ou seja, como uma for-ma discursiva de exercício de poder, que pressupõeum conjunto estruturado de decisões metafísicas.

O texto literário tem seu advento vinculado, noOcidente, à elaboração da consciência individualizada(a função do sujeito), mediatizada por contradições aonível das práticas lingüísticas. Ao afirmar o sujeito, aideologia atesta a morte do mito como linguagemdominante no Ocidente, mantendo-o porém como umareserva na História, um fundo duplo histórico para o

sujeito da consciência (SODRÉ, Muniz. Teoria daLiteratura de Massa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1978: 17-18).

Vocabulário:

Advento = aparecimento; começo; vinda; chegada.

Articulação = união; formulação.

Autonomia = faculdade de governar por si mesmo;faculdade que tem uma nação de se reger por leis próprias.

Conhecimento = informação ou noção adquirida peloestudo ou pela experiência.

Conjunto = reunião das partes de um todo; juntosimultaneamente.

Consciência = atributo pelo qual o homem podeconhecer e julgar sua própria realidade; conhecimento.

Contradição = incoerência entre o que se diz e o quese disse; desacordo.

Discursiva = ato de discursar (expor um determinadoassunto metodicamente).

Elaboração = organização; preparação de algogradualmente e com trabalho.

Especificidade = qualidade típica de uma espécie.

Forma = os limites exteriores da matéria de que seconstitui um corpo; configuração; maneira; modo; omodo de expressão que o artista adota na criação oucomposição de uma obra, usando elementosadequados à sua arte.

Funcionamento = praticidade; atividade; exercício defunções.

Função = prática ou exercício de função; ofício;cargo; utilidade; papel; posição; atribuição.

Ideologia = conjunto de idéias que tem por base umateoria política ou econômica; modo de ver próprio deum indivíduo ou de uma classe.

Lingüística = Ciência da Linguagem.

Literário = relativo à literatura.

Mediatizada = indireta; que faz ligação entre; mediada.

Metafísica (Filosofia) = estudo dos fundamentos darealidade e do conhecimento; (figurado) sutileza nodiscorrer (de um autor ou livro).

Page 53: Cultura Luso Brasileira

53Mito = relato sobre seres e acontecimentos imaginários

(dos primeiros tempos ou de épocas heróicas); narrativade significação simbólica transmitida de geração emgeração dentro de um determinado grupo.

Moral = conjunto de regras de conduta ou hábitosjulgados válidos; brio; dignidade.

Nível = altura relativa numa escala de valores.

Poder = força; energia; vigor; potência; direito dedeliberar, agir e mandar; domínio; capacidade;autoridade.

Política = habilidade no trato das relações humanas;modo de conduzir uma negociação; estratégia.

Prática = uso; exercício; rotina; hábito; conferência;aplicação de teoria; saber provindo da experiência.

Processo = método; técnica; sucessão de estadosou mudanças.

Produção = produto; o que se produz; o volume daprodução.

Religião = crença na existência de força ou forçassobrenaturais; doutrina; devoção.

Sentido = senso; propósito; objetivo; atenção;direção; rumo.

Sujeito (substantivo / Filosofia) = o ser individual,real, que se considera como tendo qualidades.

Texto = palavras citadas para demonstrar algumacoisa.

Vinculado = associado; ligado.

É sabido que, a princípio, as idéias literárias vinhamtodas da Europa: eram apanágio de senhores ricos, queassim preenchiam o tempo ocioso e marcavam, maisnitidamente, a diferença entre a pequena casta privile-giada e a massa analfabeta. Constituíam, portanto, umasimples marca de classe – ainda assim desestimuladaspela Administração do Brasil-Colônia –, que perseguiaas sociedades literárias nativas, os livros e as trocasintelectuais, na esperança de impedir o surgimento dequalquer manifestação cultural autônoma.

Sem função bem reconhecida no quadro social daColônia, a literatura brasileira dos começos era, doponto de vista lingüístico, um reflexo da norma cultado português metropolitano (Antônio Vieira e Gregóriode Matos respeitavam integralmente o léxico e a sinta-xe de Portugal). A primeira contradição "resolvida" pornossa literatura ocorre entre a língua oficial (o portu-

guês da Metrópole) e a língua geral (o tupi), que riva-lizava com o idioma colonizador. (...) A hegemonia doportuguês sobre o tupi só ocorreria na segunda meta-de do século XVIII, principalmente devido à expulsãodos jesuítas (grande suporte do ensino da língua indí-gena nas escolas) pelo Marquês de Pombal em 1759.

Na primeira metade do século XIX, quando a elite cultado país era composta principalmente por letrados, ba-charéis e sacerdotes, o português era a língua que a ins-tituição escolar e a literatura brasileira procuravam fixaragora contra a camisa de força da norma metropolitana econtra a "deterioração" do uso popular. Já era outra, por-tanto, a natureza da contradição. Em pleno Império, aliteratura devia, assumindo ao mesmo tempo um lugardestacado nas lutas nacionalistas, resolver imaginaria-mente os conflitos de uso da língua brasileira e assinalara diferença entre o português elevado (destinado a ser-vir de norma) das classes superiores e o português bai-xo, da massa analfabeta. (...)

As atividades públicas e administrativas valoriza-vam o bacharel, o letrado. A cultura das ciências eletras (literatura, humanidades) aprofundava a distin-ção entre povo e elite, recalcando ao mesmo tempo oensino prático-utilitário ou afinado com a realidadesócio-econômica do país.

O Colégio Pedro II foi o símbolo maior desse divisorde águas. Fundado em 1837, única instituição de cul-tura geral desde a Independência até a República, ocolégio (embora em nível secundário, outorgava o graude bacharel em Letras) representava a cultura clássicadas letras e ciências no Brasil. Era, em suma, um Colé-gio de Humanidades, com predomínio do ensino lite-rário, destinado a dar a formação julgada necessáriaàs elites dirigentes do país (IDEM: 25-26).

Vocabulário:

Apanágio = propriedade característica.

Hegemonia = supremacia.

Outorgava = aprovava; consentia; concedia; confe-ria (mandato); declarava em escritura pública; atribuia.

LITERATURA / CULTURA OLIGÁRQUICA - A cul-tura literária (...) era apanágio de uma sociedade regidapelos interesses de uma oligarquia latifundiário-escravocrata, mas também por um certo idealismo jurí-dico cultivado nas escolas de tradição coimbrã. Ainstrução secundária, marcada pelo gosto da erudiçãolivresca e da retórica, era um ensino de classe, tendocomo valor principal a tradição. O poder das Letras –representado na vida pública pelo jornalismo, literatu-ra e política –, recalcava, ao nível das escolas secun-dárias, o ensino profissional vigente, e contribuía, em

Page 54: Cultura Luso Brasileira

54nível mais amplo, para assinalar a distância entre eliterequintada e massa inculta, entre dirigentes e dirigi-dos (IBIDEM: 26-27).

Vocabulário:

Apanágio = propriedade característica.

Latifundiário = dono de latifúndio (propriedade rural degrande extensão de terras, principalmente não cultivadas).

Oligarquia = governo de poucas pessoas (de ummesmo partido, classe ou família).

LITERATURA DE MASSA - A função claramentenormativa da literatura de massa é (...) ajustar a cons-ciência do indivíduo ao mundo (confirmá-lo como su-jeito das variadas formações ideológicas), mas diver-tindo-o (ao contrário do sermão, da pregação ou dadoutrinação direta), como num jogo. Por isto, a narra-tiva trabalha com formas já conhecidas ou facilitadasde composição romanesca e com elementos mitológi-cos. (O personagem), embora caracterizado como sim-ples mortal, mantém a aura mitológica do herói todo-poderoso: derrota vários homens ao mesmo tempo,apanha lanças e flechas no ar, sempre faz justiça (soba égide de determinados símbolos) (IBIDEM: 35).

LITERATURA / INOVAÇÃO - anos 60 e início dosanos 70, século XX:

No instante em que o processo histórico brasileirocaminha na direção dos seus projetos específicos, nãonos é lícito admitir uma literatura marginalizada, indi-ferente ao seu conhecimento fático. Não podemos enão seria honesto negligenciar a importância da suaação na frente cultural. Aos que fazem literatura nesseestágio do nosso desenvolvimento, cabe integrá-laautenticamente na "armada da cultura".

Fosse outra a situação brasileira, essa responsabili-dade estaria naturalmente cercada de apreensões. Mashoje, hoje temos o tempo a nosso favor, como um aliadode empresa.

Em 30, empreendeu-se uma caminhada no sentido doBrasil-Brasil (era em grande parte o esquema de 22 tra-duzido em termos de ação política). Aqueles anos mar-caram o encontro do brasileiro com a sua realidade.Com essa terra que era "terra incógnita" para a Repúbli-ca Velha, já que pensava o Brasil através de esquemasteóricos importados (a alienação era enfermidade queconsumia a todos: e são exemplos típicos a Constitui-ção de 91 [1891] – mera tradução do presidencialismonorte-americano, com uma ética Auguste Comte. Tam-bém o positivismo "enragé" do Código Civil). Trinta[1930] foi verdadeiramente o início de uma fase realista.Mas de um realismo natural, instintivo, comprometido

com as impressões de primeira vista. Predominava oconhecimento impressionista. Os seus homens eramantes homens de ação que de pensamento. Havia umaurgência que não se harmonizava com a reflexão. Oshomens que poderíamos identificar como de pensamen-to estavam também alienados. É certo que de formadiversa da República Velha. Estes aderiram às novasformulações políticas européias, imaginando com elaspoderem resolver a problemática brasileira. Esqueciam-se de que estavam recorrendo à matéria igualmente im-portada, defasada. Isto ocorreu com aquelas correntes,umas de direita, outras de esquerda, que se insurgiramcontra a cidade liberal burguesa. O primeiro é o casotragicômico do Integralismo. O segundo é o do PCBque, amparado na pseudofundamentação teórica deseus líderes, e na ausência generalizada deconhecimento objetivo da realidade brasileira, nãoconseguiu escapar à alienação, e reduziu a sua máquinaa um organismo hoje inoperante e retardatário*.Julgavam que as ideologias, por serem novas na Europa,se aplicavam tranqüilamente ao Brasil. Imaginavamaconselháveis à hipótese brasileira soluções engendra-das por outras realidades. E este equívoco persisteainda. Esqueceram de que até mesmo nessa épocainterdependente que vivemos, época de integração uni-versal – planetária –, somente nos integraremos na me-dida em que formos nós.

O período sucessivo poderia ser chamado de neo-romântico. Refiro-me aos dias idealistas de 45. Fazía-mos uma revolução às avessas. Retornávamos a mol-des políticos anti-históricos, porque ultrapassados(veja exemplo característico na pregação udenista)[Partido UDN]. O panorama internacional e os enga-nos teóricos de 30 e 37 ensejaram o episódio de 45. Oshomens de 45 não souberam o que fazer com o cadá-ver do Estado Novo: tropeçaram nele. Vivemos umretrocesso em nossa história cultural. No campo lite-rário o fracasso se verificou através de uma oposiçãoà experiência dos modernistas de 22 e de 30. Oinstrumentalismo não apenas não aprofundou essaexperiência, como se opôs a ela. Por isso a chamada"geração de 45" silenciou cedo, institucionalizou-se,esterilizou-se. No campo político a conseqüência foisemelhante. A Constituição de 46 [1946] só não estátotalmente alienada graças à ação de representantesde um pensamento político atualizado e ao hábito, con-solidado através de quinze anos, de pensar a realida-de brasileira. Mas não souberam seus protagonistasbuscar um fundamento econômico e financeiro capazde atender às novas obrigações. Este fundamento sómais tarde seria contactado. Depois de um intensoperíodo de reflexão, de atenção para nossa realidade.

As gerações de hoje [anos 60 e 70], beneficiadas jápor essa tradição auto-reflexiva que se foi formando,desejam-se mais conseqüentes. Estão de posse deanálises objetivas da nossa realidade. Formulam

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55soluções acima dos expedientes impressionistas. Orealismo de hoje é um realismo aparelhado, científico:pensamento armado. É a perspectiva que está exigindoa modificação estrutural das nossas instituições. Jásabemos como o Brasil realmente é. Podemos deduzircomo ele deve ser. Podemos enunciar uma políticaontológica e não simplesmente lógica. Porque a lógicanão tem os pés na terra (PORTELLA, Eduardo.Literatura e Realidade Nacional. 3. ed. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1975:43-45. Observação: A 1ª ediçãodeste livro data de 1963).

* NOTA DE EDUARDO PORTELLA: Os acontecimen-tos de 1964 refortaleceram esta constatação (op. cit.,1975: 95).

Vocabulário:

Defasada = atrasada.

Enragé (francês) = com raiva; enraivecido; raivoso.

Enunciar = exprimir; expor.

Fático = o termo fático provém do grego phatikós,que significa afirmação, enunciado.

Inoperante = que não produz o efeito necessário.

Lógica = coerência de raciocínio, de idéias; (Filosofia)ciência dos princípios normativos e formais doraciocínio.

Ontológica (Ontologia) = parte da filosofia que tratado ser concebido como tendo uma natureza comum queé inerente (inseparável) a todos e a cada um dos seres.

A transformação brasileira não se consumará se nãose efetivar também na faixa cultural. Isto não tem sidocompreendido pelos nossos dirigentes, insensíveis,despreparados quase sempre, e nem tampouco pelosnossos intelectuais, inertes quando não alienados. Acultura não auxilia e nem é auxiliada. Pelo menos tantoquanto devia. Quando nos percebemos um povo todoempenhado na simples subsistência, não é honesto ocruzar de braços. É preciso despilatizar o intelectual.Que ele também lute – à sua maneira, é claro –, paraconferir ao homem enclausurado pelo subdesenvolvi-mento uma outra medida. O Brasil somente se solucio-nará do ponto de vista de uma práxis nacional. Preten-demos o Brasil por ele mesmo. As soluções para osseus problemas não podem ser importadas. É necessá-rio evitar o engendramento estranho. O escritor temimportante papel na formação dessa perspectiva au-tenticamente brasileira. (...) Nossa realidade é demasia-do complexa para conformar-se com esquemas alheiosou estranhos à sua índole.

Gostaria de particularizar um pouco o caso da literatu-ra. É ela – sou forçado a reconhecer –, peça retardatáriadentro desse processo. A realidade fenomenal brasilei-ra é muito mais rica e forte do que a consignada emnossa literatura. Daí certos aspectos da vida e da almabrasileiras não terem sido captadas pelos nossosescritores. Falo em termos de autenticidade.

Falarei agora da inércia. Nossa literatura continuaidentificando-se por uma visível vocação de impotên-cia para criar seus próprios instrumentos e temas. So-mos, com raras exceções, literatura de repetidores. Estefato é alimentado por uma superlativa inércia, que insis-te em contaminar o sistema cultural do país. Essa inérciase manifesta preliminarmente no caráter deploravelmenteconformista que é ainda o da maioria dos nossosescritores. Mas se manifesta igualmente na direção dasuniversidades, das casas editoras, dos centros depesquisas, na própria concepção de cultura que o Estadocomodamente adota (IDEM: 46-47).

Vocabulário:

Consignada = registrada; dada a conhecer; confiadaou enviada a alguém para negócio.

Despilatizar = não agir como Pilatos (Novo Testamen-to).

Engendramento = produção; graus de transmissão emcircuito fechado de sinais para um ou mais pontos.

Inércia = indolência; falta de ação, de atividade; inação.

Práxis = o que se pratica habitualmente; rotina; prática.

NOTA DE E. PORTELLA (op. cit., 1975: 95): O intelec-tual brasileiro tem importante tarefa a cumprir na solu-ção dos problemas nacionais. É preciso que ele saibarepudiar a pilatização. É imprescindível que ele não va-cile em sujar as mãos na luta do desenvolvimento. Quese alinhe de corpo e alma nessa trincheira que é a detodos nós. Ele não encontrará jamais um fundamentoético para a criação de uma obra desligada das ques-tões urgentes que sacodem o seu país. Um país mergu-lhado no subdesenvolvimento, dominado por uma or-dem social geradora obstinada de injustiças. Vivemosuma condição sub-humana. O subdesenvolvimento fa-brica o infra-homem. Impede o homem de viver plena-mente a condição humana. (...) A vida humana se exerceatravés de um duplo processo, dividida entre o empe-nho de sobrevivência e a vontade de intensificação. Osubdesenvolvimento enclausura o homem na pauta dasimples e trágica sobrevivência. Por isto o homem dopaís subdesenvolvido se vê arbitrária e violentamenteinscrito na categoria infra-humana. Temos que sacudira letargia, para sair dela. Tudo que é potência, transfor-ma-se em ato.

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562.14 2.14 2.14 2.14 2.14 - Carnaval e Futebol

CARNAVAL

A fisionomia musical do Brasil moderno se formou noRio de Janeiro. Ali é que uma ponta desse enormesubstrato de música rural espalhada pelas regiõestomou uma configuração urbana. Transformando asdanças binárias européias através de batucadas negras,a música popular emergiu para o mercado, isto é, para anascente indústria do som e para o rádio, fornecendomaterial para o carnaval urbano em que um caleidoscópiode classes sociais e de raças experimentava a suamistura num país recentemente saído da escravidãopara o "modo de produção de mercadorias". No mesmomomento em que a industrialização mais a imigraçãoproduziam em São Paulo o fenômeno moderno de greveoperária, no Rio de Janeiro se produzia o samba comoexpressão de grupos sociais marginalizados quetomavam o espaço da cidade na festa carnavalesca, eque marcavam a sua diferença e o seu desejo depertinência através da música.

Aparentemente o ethos do samba nos seus come-ços, nas décadas de 20 (1920) e 30 (1930), seria algocomo um antiethos: na malandragem, uma negação damoral do trabalho e da conduta exemplar (efetuadaatravés de uma farsa paródica em que o sujeito simulaironicamente ter todas as perfeitas condições para oexercício da cidadania). Acresce que essa negativaética vem acompanhada de um elogio da orgia, da en-trega ao prazer da dança, do sexo e da bebida (tidosdesde os gregos como da ordem do pahtos e não doethos). Mas o "orgulho em ser vadio" (Wilson Batis-ta) corresponde também a uma ética oculta, uma vezque a afirmação do ócio é para o negro a conquista deum intervalo mínimo entre a escravidão e a nova eprecária condição de mão-de-obra desqualificada e flu-tuante. Embora pareça ausente da música popular, aesfera do trabalho projeta-se dentro dela como umapoderosa imagem invertida (...) (op. cit., 1992: 116-119).

Vocabulário:

Binárias = que têm duas unidades, dois elementos;(Física) sistemas de duas forças paralelas de suportesdistintos, com sentidos opostos, e que atuam sobreum corpo; conjugado; par.

Caleidoscópio = objeto cilíndrico, em cujo fundo háfragmentos móveis de vidro colorido, os quais, ao re-fletirem-se sobre um jogo de espelhos disposto longi-tudinalmente, produzem um sem-número de combina-ções de imagens.

Emergiu = saiu de onde estava mergulhado; mani-festou-se; mostrou-se.

Ethos = hábitos morais; moral; anseio espiritual; de-signa a imagem de si que um locutor constrói em seudiscurso para exercer influência sobre seusalocutários. Em Aristóteles, por um lado, representaas virtudes morais que garantem a credibilidade doorador (prudência, virtude, benevolência), por outrolado, comporta uma dimensão social, na medida emque o orador convence ao se exprimir de modo apro-priado a seu caráter e a seu tipo social. Nos dois casostrata-se da imagem de si que o orador produz em seudiscurso, e não de sua pessoa real; convencimentoatravés da qualificação (hábitos) do orador.

Ética = estudo dos juízos de apreciação referentes àconduta humana, do ponto de vista do bem e do mal;conjunto de normas e princípios que norteiam a con-duta humana.

Farsa = peça cômica de um só ato e ação burlesca;logro; embuste.

Ócio = descanso de trabalho; folga; lazer; vagar.

Paródica = imitação cômica de uma composição lite-rária; imitação burlesca.

Pathos = sentimento; paixão; afetividade; passivi-dade frente à irracionalidade; convencimento atravésda emoção da platéia (teatro, púlpito religioso etc.).Diferente de logos = convencimento através da razão(lógica), usando dados técnicos.

Pertinência (de "pertinente") = o que vem a propósito.

Substrato = essência; o que constitui a parte essen-cial do ser; (Biologia) qualquer objeto, ou material,sobre o qual um organismo cresce, ou ao qual estáfixado; (Eletrônica) material semicondutor no qual éfabricado um circuito integrado.

FUTEBOL

Um jogo de futebol acende no íntimo de seus ofici-antes todo um universo de dramaticidade: o trágico, ocômico, o tragicômico; o satírico, o irônico, oaventuresco; o mítico, o realista, o burlesco, o eufóri-co, o agônico, o funéreo; o pastoral, o delicioso, otorturante, o inaugural, o fértil, o carpe diem; o religi-oso, o pagão, o blasfemo; o faminto e sedento, o saci-ado e satisfeito, o orgiástico.

O futebol é ubíquo: paraíso recuperado, tenso pur-gatório, inferno de chutes e palavrões. É a permanenterecusa do caos. É um reduto do masculino, em que

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57este persegue o feminino ausente – o oco que roladocemente pela grama, que se atira e se estira de en-contro às redes, que voa, próximo do sol, como lua, aprometer eclipses de amor, que um persegue ávidocom as mãos, que a outro vem de encontro ao peito,que se amortece pelas coxas, que se deixa correr, po-rém às vezes se chuta com raiva e violência.

tura. O futebol não é um movimento solitário, uma exibi-ção de dança. É um medir-se, diante da circularidadetrágica do universo, diante da contenção do tempo. Éum desejo de vencer as limitações do espaço, de alçar opeso do corpo, de voar dentro e entre os emaranhadosdo tempo. O futebol é um festival de ubiqüidades. É ocontrário da estabilidade, o antitriângulo. O futebol ésem deus. É a inserção radical do humano, de sua cida-dania, nos planos onde reinava a divindade. A formadessa inserção é bastante primitiva: presença total domasculino, concentração ausente do feminino. (...)

O poder, quando comparece ao estádio, visa trans-formar o jogo que se oficia em espetáculo para ele,Poder, e fazer, então, ele mesmo um supra-espetáculo.Lembro-me em particular de um jogo entre o Internaci-onal e Corinthians, em 1976, no Estádio do Morumbi,em São Paulo. A Polícia Militar estabeleceu um círculono gramado, entre o campo demarcado e as arquiban-cadas, formado por policiais, todos acompanhados deum cão pastor. Quando as equipes entraram em campoe, nos momentos de tensão emocional, quando oestádio, literalmente tomado, tremia de som e fúria, acachorrada acoava: era a voz do Poder.

Essas tiranias de opereta da nossa América de fron-teiras arbitrárias compraziam-se em invadir estádios,pelas tribunas de honra, a exigir, com seu séqüito debajuladores, deferências, palmas, lisonjas. O Poder aídeseja mostrar-se "igual", embora distinto; capaz de"divertir-se" em meio à propalada austeridade; "hu-mano", embora hermético. Mas ali se deposita tam-bém aquela sensação que Lhe vem das entranhas deser um domador de fancaria, uma frágil carcaça mane-jando um fantoche gigantesco diante da poderosa fera:aquele "povo" que o apavora em pesadelos por trásdos óculos escuros, fera que ele deseja acalmar fazen-do-a acostumar-se com seu cheiro, aspecto, presençae ademanes. O Poder identifica o Povo como um ruídoque Lhe atrapalha a função referencial, e assim secompraz em organizá-lo em aplauso, crendo levar emSuas veias um caráter mágico de aplacar a fúria doselementos e a "natureza bruta" de seu majestoso ad-versário. O Poder obtém dividendos dessa sua inva-

são. Deferências nunca são neutras, mas não convémesquecer que freqüentemente o aplauso é o reconhe-cimento expresso de que sem que aquele Chato tomeassento e se sinta instalado, a partida não começa seufestival de pirotécnicas essências.

O futebol morre. Outras práticas se erguem. O vôlei,por exemplo, e principalmente. Mas uma dramaturgiasó deixa a cena cedendo espaço. Há outra que capita-liza o problema insolúvel das identidades.

O futebol reinou absoluto por entre guerras e guerrafria, durante a euforia populista e o primeiro lutodepressivo da recente ditadura. Nestes confins deSulamérica desenhava-se, em meio à permanente tra-gédia da ocupação da terra, o crescimento de uma ur-banidade moderna, ainda que precária e cinturada demiséria. Essa urbanidade agora eclodiu nas imagina-ções. Durante setenta anos ou mais, o futebol ritualizouo mito de ver crescer uma cidade entre as cercas domundo agropastoril, solidamente patriarcal.

Hoje é menos patriarcal do que antes. Menos presoa virilidades de combate, e ocupam menor espaço nasimaginações as fugas, os trabalhos de campo, as mi-grações forçadas e contínuas (embora elas continuemexistindo) que fizeram dos pés, mais talvez das mãos,grandes personagens da nossa história (...). Nem tantotudo mudou, mas a eclosão urbana, com o telefone, atelevisão, a máquina de escrever e a vida operária,impõe uma liturgia das mãos no lugar da elegia dospés. O futebol foi um rito de passagem.

Esportes como o vôlei, praticado por homens ou mu-lheres, homens e mulheres, com igual demonstraçãode soberania, começam a ser melhor ofício nessa soci-edade já nem bem burguesa nem peremptoriamentepatriarcal. A virilidade se domestica, e o feminino sereconhece como presença: há algo desse novo jogonaquele pipocar de bola de um lado para outro de umarede intocável e suspensa, naqueles campos que nãose invadem, nessa disputa em que a concentração e aresistência psicológicas pesam tanto quanto ou maisque a solidez física. Num universo em que a feminili-dade e suas próprias deferências impõem também suas(e novas) regras de amor e de combate, o futebol tal-vez ainda governe; mas não reina mais (AGUIAR, Flá-vio. Notas sobre o futebol como situação dramática.In.: BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira, Temas eSituações. 2.ed. São Paulo: Ática, 1992: 150-166).

Vocabulário:

Acende = incendeia; esquenta; aquece; acalora;provoca; fulgura; cintila.

Acoar = sentar-se o animal nas patas traseiras paraformar o salto; deter-se de medo ou espanto, ficar per-

O espaço do futebol é a totalidade. Essa totalidade éfeita de círculos e quadriláteros. O universo cabe numcírculo; o movimento, enquanto desejo de harmonia,num quadrilátero. O futebol soluciona o problema daquadratura do círculo, embora os quadriláteros não se-jam quadrados. Eles se alongam, fazem-se retângulos; aharmonia do movimento se alonga em desejo de aven-

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58plexo; perseguir (a caça), especialmente para forçá-laa refugiar-se na toca.

Ademanes = movimentos (principalmente das mãos)para exprimir idéias; acenos, gestos, sinais, trejeitos;gestos afetados, amaneirados; trejeitos.

Agônico = relativo à, ou próprio da agonia.

Arbitrária = que independe de lei ou regra e só resultado arbítrio, ou mesmo do capricho de alguém.

Burlesco = cômico; que provoca riso, caricato;grotesco.

Caos = vazio; abismo; grande confusão ou desordem.

Carpe diem = "colha o dia"; "aproveite o momento"(a vida não pode ser economizada e sim aproveitada).

Contenção = ato de contender; luta, contenda;competência; ato de conter-se.

Elegia = ode elegeía = "canto plangente"; poemalírico cujo tom é quase sempre terno e triste.

Estira = estende, puxando; estica; alonga.

Fancaria = comércio de fanqueiros (negociante defazendas de algodão, linho, lã etc.); trabalho grosseiro,mal acabado.

Fantoche = boneco que tem a cabeça de massa depapel ou de meia gessada etc.; mãos geralmente de feltro,em cujo corpo, formado pela roupa, o operador escondea mão que movimenta por meio do dedo indicador acabeça, e com o polegar e o médio os braços.

Funéreo = fúnebre; relativo à morte, aos mortos oucoisas que com ele se relacione; lúgubre, triste, lutuoso.

Hermético = inteiramente fechado, de maneira quenão deixe penetrar o ar (vaso, janela etc.); decompreensão muito difícil; obscuro.

Liturgia = função pública; o culto público e oficialinstituído por uma igreja; ritual: a liturgia católica, aliturgia anglicana.

Oficiante = celebrante.

Orgiástico = desordem; tumulto.

Patriarcal = relativo à, ou próprio de patriarca ou depatriarcado: dignidade patriarcal; sistema patriarcal;respeitado, venerando; diz-se de um tipo ou forma defamília que se desenvolveu em certas épocas, como,por exemplo, na Antigüidade Clássica, e em que o che-fe de família ou patriarca, duma autoridade absoluta,resumia toda a instituição social do tempo.

Peremptoriamente = decisivamente; terminantemente.

Propalada = tornar público: divulgar, espalhar,publicar, propagar.

Ubiqüidade = onipresença.

Ubíquo = que está ao mesmo tempo em toda parte;onipresente: Deus é ubíquo.

Sobre a questão Poder Patriarcal X PoderMatriarcal (Masculino X Feminino), através dotempo até ao século XX, aconselhamos a leitura dolivro Um é o Outro, de Elisabeth Badinter (Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1986).

2.15 2.15 2.15 2.15 2.15 - Televisão X Neocolonialismo

TELEVISÃO

O texto plano, claro, informativo da tevê impõe aopúblico uma significação unívoca, relativa a umadultério (por exemplo) com suas causas econseqüências. Essa significação tem um caráterpedagógico: por meio dela, a Ordem Social alerta osmaridos que passam a maior parte do tempotrabalhando no sentido de que cuidem de suasesposas, do contrário serão também culpados naeventual ocorrência de adultério (op. cit., 1978: 23).

TELEVISÃO E NEOCOLONIALISMO

(...) o início do século XX marca o apogeu do poderindustrial e, conseqüentemente, a mutação da estraté-

gia para a dominação territorial, ensejando uma "se-gunda colonização", que, mantendo a aparência daautonomia nacional para os países liberados da tutelapolítica dos centros metropolitanos, garantisse a suadependência econômica.

(...) a presença dos meios de comunicação, especial-mente da imprensa, nas áreas colonizadas pelas na-ções européias, sempre obedeceu ao imperativo deintrojetar a cultura e a ideologia do colonizador, bus-cando assim tornar menos odiosa a dominação políti-ca. (...) forçadas pela nova realidade histórica, sobre-tudo a vitória da revolução socialista na Rússia, aspotências colonizadoras tiveram que encontrar novos

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59caminhos para manter o controle das áreas conquista-das, resguardando-as inclusive da penetração da influ-ência de outras nações capitalistas concorrentes. Paratanto, o desenvolvimento dos novos veículos de co-municação eletrônica foi decisivo, uma vez que possi-bilitou, de um lado, a garantia de mercados para as anti-gas nações colonizadoras, e, de outro, a certeza de queo germe do socialismo, espraiando-se por todo o globo,seria bombardeado sistematicamente.

Nesse contexto, a televisão ocupa um papel excepcio-nal, pela possibilidade que tem de "cercar e capturar aconsciência do público por todos os lados" (...).

Não é, portanto, sem outras intenções que esse veí-culo experimenta uma rápida expansão, implantando-seem quase todos os países subdesenvolvidos, até mesmonaqueles que não revelam ainda condições econômicaspara importar tão sofisticada tecnologia.

No caso da América Latina, espaço econômico queapós a Segunda Guerra Mundial passou predominan-temente para a área de influência dos Estados Unidosda América, o desenvolvimento da indústria culturaltem sido parte do esforço de modernização empreendi-do no continente para adaptá-lo melhor às funções quelhe estão reservadas na nova divisão internacional dotrabalho (...).

É sintomático que a televisão brasileira tenha crescidoassustadoramente após o movimento militar de 1964,em meio à expansão de um complexo detelecomunicações que hoje praticamente assegura um

controle estratégico de todo o território nacional (MELO,José Marques de. A televisão como instrumento doneocolonialismo: evidências do caso brasileiro. In.:BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira, Temas eSituações. 2.ed. São Paulo: Ática, 1992: 167-169).

Vocabulário:

Ensejando = buscando ocasião propícia a; buscandooportunidade.

Espraiando-se = expandindo-se; estendendo-se; di-vagando.

Estratégia = arte de planejar e executar algo; arte deaplicar os meios disponíveis ou explorar condiçõesfavoráveis com vistas a objetivos específicos.

Implantando-se = inserindo-se; introduzindo-se.

Introjetar = ato ou efeito de introduzir-se.

Mutação = mudança; transformação.

Televisão e Neocolonialismo: Sobre "dependênciatecnológica", "dependência cultural" e "dependên-cia informativa", aconselhamos o artigo A televisãocomo instrumento do neocolonialismo: evidênciasdo caso brasileiro, de José Marques de Melo. In.:BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira, Temas eSituações. 2.ed. São Paulo: Ática, 1992: 167-181.

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60 UNIDADE IIl

A QUESTÃO LITERÁRIA NOS SÉCULOS XIX E XX:A QUESTÃO LITERÁRIA NOS SÉCULOS XIX E XX:A QUESTÃO LITERÁRIA NOS SÉCULOS XIX E XX:A QUESTÃO LITERÁRIA NOS SÉCULOS XIX E XX:A QUESTÃO LITERÁRIA NOS SÉCULOS XIX E XX:TRADIÇÃO X MODERNIDADETRADIÇÃO X MODERNIDADETRADIÇÃO X MODERNIDADETRADIÇÃO X MODERNIDADETRADIÇÃO X MODERNIDADE

3.1 3.1 3.1 3.1 3.1 - Consciência do Subdesenvolvimento(Século XX)

MÁRIO DE ANDRADE (1893 - 1945)

Escrever arte moderna não significa jamais para mimrepresentar a vida atual no que tem de exterior:automóveis, cinema, asfalto. Se estas palavrasfreqüentam-me o livro, não é porque pense com elasescrever moderno, mas porque sendo meu livromoderno, elas têm nele sua razão de ser. (...) Não quistambém tentar primitivismo vesgo e insincero. Somosna realidade os primitivos duma era nova (Conferir:BOSI, Alfredo. História Concisa da LiteraturaBrasileira. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 1996-1999: 348).

E então parar e puxar conversa com gente chamadabaixa e ignorante! Como é gostoso! Fique sabendode uma coisa, se não sabe ainda: é com essa genteque se aprende a sentir e não com a inteligência e aerudição livresca. Eles é que conservam o espíritoreligioso da vida e fazem tudo sublimemente num

ritual esclarecido de religião (ANDRADE, Mário de.A lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade aCarlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro:Record, 1988: 22).

Eu conto no meu Carnaval Carioca um fato a queassisti em plena avenida Rio Branco. Uns negrosdançando o samba. Mas havia uma negra moça quedançava melhor do que os outros. Os jeitos eram osmesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade, masela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo umpouco decorado, maquinizado, olhando o povo emvolta deles, um automóvel que passava. Ela não.Dançava com religião. Não olhava pra lado nenhum.Vivia a dança. E era sublime. Este é um caso em quetenho pensado muitas vezes. Aquela negra meensinou o que milhões, milhões é exagero, muitoslivros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade(IDEM: 22).

3.2 3.2 3.2 3.2 3.2 - Literatura Brasileira: de 1927 ao Final dosAnos 1950

1927: Publicação da narrativa (rapsódia) Macunaíma,o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Anarrativa faz "distinções entre o primitivo histórico eo "primitivo" como pesquisa do homem que não podedeixar de ser, apesar de tudo, um homem integrado emuma dada cultura e em uma determinada civilização(Op. cit., 1996-1999: 354).

Entre 1930 e 1945/50, grosso modo, o panorama literá-rio apresentava, em primeiro plano, a ficção regionalista,o ensaísmo social e o aprofundamento da lírica moder-na no seu ritmo oscilante entre o fechamento e a abertu-ra do eu à sociedade e à natureza (Drummond, Murilo,Jorge de Lima, Vinícius, Schmidt, Henriqueta Lisboa,Cecília Meireles, Emílio Moura...). Afirmando-se lenta,

mas seguramente, vinha o romance introspectivo, raroem nossas letras desde Machado e Raul Pompéia (Otá-vio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, José Geral-do Vieira, Cyro dos Anjos...): todos, hoje, "clássicos"da literatura contemporânea, tanto é verdade que jáconhecem discípulos e epígonos. E já estão situadosquando não analisados até pela crítica universitária. Asua paisagem nos é familiar: o Nordeste decadente, asagruras das classes médias no começo da faseurbanizadora, os internos da burguesia entre provinci-ana e cosmopolita (fontes da prosa de ficção). Para apoesia, a fase de 30/50 foi universalizante, metafísica,hermética, ecoando as principais vozes da "poesia pura"européia de entre-guerras: Lorca, Rilke, Valéry, Eliot,Ungaretti, Machado, Pessoa... (IDEM: 386).

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61Vocabulário:

Epígono = aquele que pertence à geração seguinte;discípulo de um grande mestre nas letras, artes,ciências etc.

Na década de 30 (1930), mais moderna do que modernista,(...): uma nova visão do Brasil sairia dos ensaios de ArturRamos, Roquette Pinto, Gilberto Freyre, Caio Prado, SérgioBuarque de Holanda, Fernando de Azevedo. Persistiria,

no entanto, o interesse de detectar as qualidades e osdefeitos do homem brasileiro, ou seja, o caráter nacional,noção cheia de ciladas enquanto projeta estereótipos e osmaneja com os instrumentos de uma enferrujada"psicologia dos povos (IBIDEM: 378-379).

Vocabulário:

Estereótipos = formas que não variam; formas fixas,inalteráveis.

3.3 - 3.3 - 3.3 - 3.3 - 3.3 - Visões do Brasil Moderno: Josué de Castro,Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido, ÁlvaroVieira Pinto, Caio Prado Junior e Celso Furtado

JOSUÉ DE CASTRO (1908 - 1973)

Josué de Castro foiquem destampou a panelada pobreza e da misériapra ver o que havia nelae nela não havia nada.

(Chico Julião, Cordel, 1993)

Criei-me nos mangues lamacentos do Capibaribecujas águas fluindo diante dos meus olhos ávidos decriança, pareciam estar sempre a me contar uma longahistória. O romance das longas aventuras de suaságuas descendo pelas diferentes regiões do Nordes-te: pelas terras cinzentas do sertão seco, onde nasceumeu pai e de onde emigrou na seca de 77 (1877) comtoda a sua família, e pelas terras verdes dos canaviaisda zona da mata, onde nasceu minha mãe, filha desenhor de engenho. Essa era a história que me sussur-rava o rio com a linguagem doce de suas águas pas-sando assustadas pelo mar de cinza do sertão, cauda-losas pelo mar (...). foi assim que eu vi e senti formigar,dentro de mim, a terrível descoberta da fome. Da fomede uma população inteira escravizada à angústia deencontrar o que comer (CASTRO, Josué de. Homens eCaranguejos. São Paulo: Brasiliense, 1967: 18-19).

Procuro mostrar (...) que não foi na Sorbonne, nemem qualquer outra universidade sábia, que travei co-nhecimento com o fenômeno da fome.

O fenômeno se revelou espontaneamente a meusolhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros mise-ráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, SantoAmaro, Ilha do Leite.

Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos man-gues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoa-da de seres humanos feitos de carne de caranguejo,pensando e sentindo como caranguejo, seres anfíbios

– habitantes da terra e da água, meio homens e meiobichos. Alimentados na infância com caldo de caran-guejo: este leite da lama. Seres humanos que se fazi-am assim irmãos de leite dos caranguejos. Que apren-diam a engatinhar e a andar com os caranguejos dalama e que depois de terem bebido na infância esteleite de lama, de se terem lambuzado com o caldogrosso da lama dos mangues, de se terem impregna-do do seu cheiro de terra podre e de maresia, nuncamais se podiam libertar desta crosta de lama que ostornara tão parecidos com os caranguejos, seus ir-mão, com as duras carapuças também enlambuzadasde lama (IDEM: 10).

Só através de uma estratégia global de desenvolvi-mento, capaz de mobilizar todos os fatores de produ-ção no interesse da coletividade, poderão ser elimina-dos o subdesenvolvimento e a fome da superfície daterra (CASTRO, Josué de. Fome: um tema proibido.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003: 52-53).

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA (1902 - 1982)

Sobre a "cordialidade" do homem brasileiro:

A lhaneza no trato, a hospitalidade e generosidade,virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam,representam, com efeito, um traço definido do caráterdo brasileiro, na medida, ao menos, em que permaneceativa e fecunda a influência ancestral dos padrões deconvívio humano, informados no meio rural epatriarcal. Seria engano supor que essas virtudespossam significar "boas maneiras", civilidade. São,antes de tudo, expressões legítimas de um fundoemotivo extremamente rico e transbordante. Nacivilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela podeexprimir-se em mandamentos e sentenças (HOLANDA,Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo:Companhia das Letras, 1999: 141).

Page 62: Cultura Luso Brasileira

62Vocabulário:

Ancestral = antecessor; antepassado.

Caráter = os traços psicológicos, as qualidades, omodo de ser, sentir e agir de um indivíduo, um grupo,um povo.

Coercitivo = coercivo; que pode exercer coação(constrangimento).

Influência = ação que uma pessoa ou coisa exercesobre outra; prestígio; crédito; ascendência;predomínio.

Informados = comunicados; noticiados (em relaçãoao texto de Sérgio Buarque, além das significações dodicionário: informados = conformados (com + forma =modo variável por que uma idéia, acontecimento, ação,se apresenta; maneira; modo; estado; condição).

Lhaneza = franqueza; sinceridade.

Padrões = modelos oficiais; normas para avaliação.

Patriarcal = relativo à, ou próprio de patriarca ou depatriarcado: dignidade patriarcal; sistema patriarcal;respeitado, venerando; diz-se de um tipo ou forma defamília que se desenvolveu em certas épocas, como,por exemplo, na Antiguidade Clássica, e em que o che-fe de família ou patriarca, duma autoridade absoluta,resumia toda a instituição social do tempo.

Sobre os profissionais brasileiros de seu momentohistórico:

Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudessenhoriais ainda merecem largo crédito, (...) as atividadesprofissionais são, aqui, meros acidentes na vida dosindivíduos, ao oposto do que sucede entre outros povos,onde as próprias palavras que indicam semelhantesatividades podem adquirir acento quase religioso. Aindahoje são raros, no Brasil, os médicos, advogados,engenheiros, jornalistas, professores, funcionários, quese limitem a ser homens de sua profissão (IDEM: 156).

Sobre estrutura familiar arcaica e estrutura familiarinovadora:

Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar éque nasce o Estado e que o simples indivíduo se fazcidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e res-ponsável, ante as leis da Cidade. Há neste fato um tri-unfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre omaterial, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depu-ração sucessiva, uma espiritualização de formas maisnaturais e rudimentares, uma procissão de hipóteses,pra falar como na filosofia Alexandrina (IBIDEM: 141).

Vocabulário:

Abstrato = que opera com qualidades e relações, enão com a realidade; (figurativo) de compreensão difícil.

Cidadão = indivíduo no gozo dos direitos civis epolíticos de um Estado.

Cidade = complexo demográfico formado porimportante concentração populacional não agrícola edada a atividades de caráter mercantil, industrial,financeiro e cultural; urbe; o conjunto dos habitantesda cidade; o centro comercial.

Contribuinte = aquele que contribui ou pagacontribuição (quota; quinhão; subsídio paraalgum fim).

Corpóreo = corpo; substância física de cada homemou animal; qualquer objeto material caracterizado porsuas propriedades físicas.

Depuração = purificação.

Elegível = aquele que pode ser eleito.

Eleitor = aquele que elege ou tem direito de eleger.

Estado = o conjunto dos poderes políticos de umaNação; Governo.

Filosofia = Estudo que visa a ampliar incessantementea compreensão da realidade, no sentido de apreendê-laem sua inteireza; razão; sabedoria.

Filosofia Alexandrina = conjunto de manifestaçõesfilosóficas, científicas e artísticas da civilização gregade Alexandria no período que vai do século III a. C. aoséculo III d. C.

Formas = os limites exteriores da matéria de que seconstitui um corpo, e que a este conferem configuraçãoparticular; modos variáveis por que uma idéia,acontecimento, ação, se apresentam.

Hipóteses = suposições.

Indivíduo = indiviso; cidadão; a pessoa humanaconsiderada em suas características particulares.

Intelectual = relativo a intelecto; aquele que possuidotes de espírito e de inteligência.

Leis = regras de direito ditadas pela autoridade estatale tornadas obrigatórias para se manter a ordem e oprogresso numa comunidade; normas elaboradas evotadas pelo poder legislativo; obrigação imposta pelaconsciência e pela sociedade.

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63Material = relativo à matéria; não espiritual.

Naturais = relativas à natureza; em que não hátrabalho ou intervenção do homem; que seguem aordem natural das coisas; inatas; congênitas.

Ordem = regra ou lei estabelecida; disciplina;categoria; qualidade.

Recrutável = aquele que poderá ser arrolado (alistado)para o serviço militar.

Responsável = aquele que responde pelos própriosatos ou de outros.

Rudimentares = que ainda não se desenvolveram ouaperfeiçoaram.

Sucessiva = que vem depois ou em seguida.

Transgressão = infração (violação; desrespeito);quebra.

Sérgio Buarque de Holanda discorrendo sobre a pos-sibilidade de vitória do liberalismo sobre o caudilhismo(= "sobrevivências arcaicas", "velha ordem colonial epatriarcal"), em seu momento histórico:

Essa vitória nunca se consumará enquanto não se liquidem,por sua vez, os fundamentos personalistas e, por menosque pareçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vidasocial. Se o processo revolucionário a que vamos assistin-do, e cujas etapas mais importantes foram sugeridas nestaspáginas, tem um significado claro, será este o da dissoluçãolenta, posto que irrevogável, das sobrevivências arcaicas,que o nosso estatuto de país independente até hoje nãoconseguiu extirpar. Em palavras mais precisas, somenteatravés de um processo semelhante teremos finalmenterevogada a velha ordem colonial e patriarcal, com todas asconseqüências morais, sociais e políticas que ela acarretoue continua a acarretar (IBIDEM: 142).

Vocabulário:

Acarretar = transportar; causar; motivar.

Aristocráticos = da classe dos nobres ou fidalgos.

Assenta = coloca-se; aplica-se; firma-se.

Dissolução = decomposição de um organismo pelaseparação dos elementos constituintes; rompimentode contrato, sociedade etc.; perversão de costumes;desregramento; licenciosidade (indisciplinaridade).

Estatuto = lei orgânica (de órgão, organização) deum Estado, sociedade ou associação.

Extirpar = extinguir; destruir.

Fundamentos = bases; alicerces; conjunto de razõesem que se funda uma tese, ponto de vista etc.; razões;motivos.

Irrevogável = irretratável; irrefutável; irrespondível.

Revogada = que deixou de vigorar, ter efeito, ou deser válida; anulada.

Personalistas = pessoais; individuais; egocêntricos.

Sobrevivências arcaicas = continuações do modode viver arcaico (antiquado, obsoleto).

Vitória = triunfo; ato ou efeito de vencer o inimigo oucompetidor.

ANTÔNIO CÂNDIDO (1918)

Sobre Literatura e Subdesenvolvimento no Brasil,texto publicado em 1973:

Mário Vieira de Mello, um dos poucos que aborda-ram o problema das relações entre subdesenvolvimen-to e cultura, estabelece para o caso brasileiro, umadistinção que também é válida para toda a AméricaLatina. Diz ele que houve alteração marcada de pers-pectiva, pois até mais ou menos o decênio de 1930predominava entre nós a noção de "país novo", queainda não pudera realizar-se, mas que atribuía a si mes-mo grandes possibilidades de progresso futuro. Semter havido modificação essencial na distância que nossepara dos países ricos, o que predomina agora é anoção de "país subdesenvolvido". Conforme a pri-meira perspectiva salientava-se a pujança virtual e,portanto, a grandeza ainda não realizada. Conforme asegunda, destaca-se a pobreza atual, a atrofia; o quefalta, não o que sobra.

As conseqüências que Mário Vieira de Mello extraidesta distinção não me parece válidas, mas tomada emsi ela é justa e auxilia a compreender certos aspectosfundamentais da criação literária na América Latina.Com efeito, a idéia de país novo produz na literaturaalgumas atitudes fundamentais, derivadas da surpre-sa, do interesse pelo exótico, de um certo respeito pelograndioso e da esperança quanto às possibilidades. Aidéia de que a América constituía um lugar privilegia-do se exprimia em projeções utópicas que atuaram nafisionomia da conquista e da colonização; e PedroHenríquez Ureña lembra que o primeiro documentorelativo ao nosso continente, a carta de Colombo, inau-gura o tom de deslumbramento e exaltação que se co-municaria à posteridade. No século XVII, misturandopragmatismo e profetismo, Antônio Vieira aconselhoua transferência da monarquia portuguesa para o Bra-sil, que estaria fadado a realizar os mais altos fins daHistória como sede do Quinto Império. Mais adiante,

Page 64: Cultura Luso Brasileira

64quando as contradições do estatuto colonial levaramas camadas dominantes à separação política em rela-ção às metrópolis, surge a idéia complementar de quea América tinha sido predestinada a ser a pátria daliberdade, e assim consumar os destinos do homemdo Ocidente.

Esse estado de euforia foi herdado pelos intelectu-ais latino-americanos, que o transformaram em instru-mentos de afirmação nacional e em justificativa ideo-lógica. A literatura se fez linguagem de celebração eterno apego, favorecida pelo romantismo, com apoiona hipérbole e na transformação do exotismo em esta-do de alma. O nosso céu era mais azul, as nossas flo-res mais viçosas, a nossa paisagem mais inspiradoraque a de outros lugares, como se lê num poema quesob este aspecto vale como paradigma, a Canção doexílio, de Gonçalves Dias, que poderia ter assinadopor qualquer um dos seus contemporâneos latino-americanos entre o México e a Terra do Fogo.

A idéia de pátria se vinculava estreitamente à de na-tureza e em parte extraía dela a sua justificativa. Ambasconduziam a uma literatura que compensava o atrasomaterial e a debilidade das instituições por meio dasupervalorização dos aspectos regionais, fazendo doexotismo razão de otimismo social. (...) As nossas lite-raturas se nutriram das "promessas divinas da espe-rança" (...). [Romantismo]

Mas, no outro lado da medalha, também as visõesdesalentadas dependiam da mesma ordem de associa-ções, como se a debilidade ou a desorganização dasinstituições constituíssem um paradoxo inconcebívelem face das grandiosas condições naturais. ("Na Amé-rica tudo é grande, só o homem é pequeno"). [Realis-mo-Naturalismo]

Ora, dada esta ligação causal "terra bela - pátria gran-de", não é difícil ver a repercussão que traria a consci-ência do subdesenvolvimento como mudança de pers-pectiva, que evidenciou a realidade dos solos pobres,das técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das popula-ções, da sua incultura paralisante. A visão que resulta épessimista quanto ao presente e problemática quantoao futuro, e o único resto de milenarismo da fase ante-rior talvez seja a confiança com que se admite que aremoção do imperialismo traria, por si só, a explosão doprogresso. Mas em geral, não se trata mais de um pontode vista passivo. Desprovido de euforia, ele é agônicoe leva à decisão de lutar, pois o traumatismo causado naconsciência pela verificação de quanto o atraso é ca-tastrófico suscita reformulações políticas. O preceden-te gigantismo de base paisagística aparece então nasua essência verdadeira – como construção ideológicatransformadora em ilusão compensadora. Daí a dispo-sição de combate que se alastra pelo continente, tor-nando a idéia de subdesenvolvimento uma força pro-

pulsora, que dá novo cunho ao tradicional empenhopolítico dos nossos intelectuais.

A consciência do subdesenvolvimento é posterior àSegunda Guerra Mundial e se manifestou claramentea partir dos anos de 1950. Mas, desde o decênio de1930, tinha havido mudança de orientação, sobretudona ficção regionalista, que pode ser tomada comotermômetro, dadas a sua generalidade e persistência.Ela abandona, então, a amenidade e a curiosidade,pressentindo ou percebendo o que havia demascaramento no encanto pitoresco, ou nocavalheirismo ornamental, com que antes abordava ohomem rústico. Não é falso dizer que, sob este aspecto,o romance adquiriu uma força desmistificadora queprecede a tomada de consciência dos economistas epolíticos (CÂNDIDO, Antonio. Literatura eSubdesenvolvimento. In.: A Educação Pela Noite eOutros Ensaios. São Paulo: Ática, 1987:140-142).

Vocabulário:

Agônico = relativo à, ou próprio da agonia.

Alteração = modificação.

Atrofia = definhamento; decadência.

Catastrófico = que gera acontecimento lastimoso oufunesto; calamitoso (de calamidade).

Cunho = marca em relevo.

Debilidade = enfraquecimento; definhamento; pou-cas forças.

Decênio = espaço de dez anos.

Estatuto colonial = lei orgânica (sistema organizado)da sociedade colonial.

Euforia = sensação de perfeito bem-estar; alegria in-tensa e expansiva.

Generalidade = geral; o maior número.

Hipérbole = figura de retórica que engrandece oudiminui em demasia a verdade das coisas; exagero.

Paradigma = modelo; padrão.

Paradoxo = aquilo que é ou parece contrário ao sen-so comum; absurdo.

Persistência = pertinácia (de pertinaz); perseveração.

Perspectiva = expectativa.

Page 65: Cultura Luso Brasileira

65Pragmatismo = doutrina segundo a qual as idéias

são instrumentos de ação que só valem se produzemefeitos práticos.

Predestinada = destinada com antecipação; destina-da a grandes feitos.

Profetismo = predição do futuro

Pujança = grande força; vigor, magnificência; alti-vez; grandiosidade; poder.

Subdesenvolvimento = condição de economias que, emcomparação com os países industrializados da América doNorte, Europa e Ásia, mostram baixos níveis de produtivi-dade, renda per capita, desenvolvimento tecnológico etc.

Traumatismo = lesão; choque violento que podedesencadear perturbações várias.

Utópicas = irrealizáveis; quiméricas.

ÁLVARO VIEIRA PINTO (1909-1987)

Sobre o Texto a Questão da Universidade, da ÁlvaroVieira Pinto, Escrito no Início dos Anos 60:

Este livro de Álvaro Vieira Pinto foi escrito no alvore-cer da década de 60 (década de 1960) e publicado pelaeditora da UNE (União Nacional dos Estudantes).

Seu conteúdo é a expressão viva da coragem e ido-neidade intelectual do autor. De forma serena e refletidaconstitui, no entanto, um libelo de certo modo violen-to ao elitismo, conservadorismo, arcaísmo e alienaçãodas estruturas universitárias a serviço da dependên-cia cultural imposta pelos interesses dos grupos quedominam economicamente e, por conseqüência, im-põem seu poder ao conjunto da sociedade.

É importante situar e datar o livro. Escrito em 1961, si-tua-se no bojo do processo que então se caracterizavacomo pré-revolucionário. Esta situação demarca as lutasda época. A sociedade tendia a se polarizar entre os quese colocavam a favor do objetivo revolucionário empe-nhando-se em tornar realidade a tendência em curso eaqueles que se colocavam contra, procurando preservara ordem vigente e se utilizando de todos os recursosdisponíveis para frustrar os intentos transformadores.

Álvaro Vieira Pinto se posiciona resolutamente ao ladodas forças revolucionárias e é à luz dessa posição queele desenvolve as reflexões agudas, penetrantes e ex-tremamente lúcidas sobre a questão da reforma univer-sitária como uma entre as diversas reformas de basepelas quais lutavam as forças progressistas naquelemomento da vida do país (Prefácio de Dermeval Saviani,escrito em dezembro de 1985, para o livro de Álvaro

Vieira Pinto In.: VIEIRA PINTO, Álvaro. A Questão daUniversidade. São Paulo: Cortez, 1986:5).

Vocabulário:

Alienação = falta de consciência dos problemas po-líticos e sociais; afastamento da sociedade; sensaçãode marginalidade.

Arcaísmo = palavra ou construção arcaica.

Bojo = saliência arredondada; barriga.

Conjunto = junto simultaneamente; reunião das par-tes de um todo; equipe; grupo.

Conservadorismo = conservantismo; atitude de quem éconservador, que é hostil a inovações políticas ou sociais.

Demarca = delimita; determina; fixa.

Dependência = sujeição; subordinação; submissão;aquilo que não permite ao indivíduo prover a sua pró-pria subsistência.

Elitismo = de elite (elite = o que há de melhor em umasociedade ou em um grupo).

Estruturas = As partes mais resistentes de um corpo,construção etc., que lhe dá sustentação e conforma-ção espacial; (fig.) estrutura = o que é mais fundamen-tal, essencial, ou estável; (ciências humanas) conjun-to de relações abstratas que forma um todo integradoe subjacente à variedade dos fenômenos empíricos(empíricos = baseados na experiência).

Idoneidade = de idôneo (idôneo = que tem condiçõespara desempenhar certos cargos ou realizar certas obras).

Libelo = exposição articulada do que se pretendeprovar contra um réu; escrito de caráter satírico oudifamatório.

Polarizar = atrair para si; concentrar; concentrar-separa um certo fim.

Vigente = que está em vigor; vigorante.

Sobre universidade e classe dominante (ÁlvaroVieira Pinto):

Uma vez descoberta a essência da universidade, éfácil proceder à descrição das suas relações com odispositivo geral de domínio da classe social dirigen-te, pois tais relações se manifestam em um sem núme-ro de funções e atributos, alguns plenamente visíveise confessados, outros mais sutis e disfarçados, mastodos com o mesmo objetivo de fazer da universidade

Page 66: Cultura Luso Brasileira

66um instrumento capital da estrutura política vigente,com todas as suas características de opressões inter-nas e de submissão externa. (...)

A universidade representa o instrumento mais efici-ente para assegurar o comando ideológico da classedirigente (ao lado de outros, subsidiários, como a im-prensa, o púlpito etc.), porque a ela incumbe a produ-ção dos próprios esquemas intelectuais de domina-ção. Por esta função geral, a universidade se constituium foco imediato do pensamento que configura a pre-sente situação de domínio de determinada classe, aten-de com novos procedimentos às exigências científi-cas e sociais do grupo mandante, forja os argumen-tos, as teorias, que devem se opor a outros que even-tualmente ameacem a situação reitora da classe diri-gente, enfim estabelece a pedagogia que satisfaz aosatuais detentores da autoridade política, contendo nosdevidos limites a expansão das forças populares quelhes possam disputar o poder (IDEM: 25).

Vocabulário:

Atributo = o que é próprio de um ser; emblema dis-tintivo; símbolo; (gramática) termo que caracteriza osignificado de uma palavra.

Contendo = tendo em si; incluindo; reprimindo; man-tendo dentro de certos limites.

Detentores = aqueles que detêm; aqueles que fazemcessar; aqueles que determinam; aqueles que inter-rompem; aqueles que conservam em seu poder algu-ma coisa.

Dispositivo = regra; preceito; artigo de lei; mecanis-mo ou conjunto de meios dispostos para certo fim.

Expansão = ato ou efeito de expandir-se (expandir =dilatar; desenvolver; difundir)

Forças = energias físicas ou morais; esforços neces-sários para fazer algo; influências.

Funções = cargos; serviços; ofícios; posições; pa-péis; atribuições.

Poder = ter força, ou energia, ou calma, ou paciência,para (realizar algo); dispor de força ou autoridade.

Sobre universidade e cultura no início da década de60 (Álvaro Vieira Pinto):

Estas reflexões nos encaminham a examinar o pro-blema da cultura nacional e suas relações com o funci-onamento atual de nossas universidades. Não cabeagora examiná-lo nas particularidades, tão vasta e pro-funda é a significação do termo "cultura". Basta-nos

apenas dizer que entendemos por cultura o conjuntodos bens materiais e espirituais criados pelos homensao longo do processo pelo qual, mediante o trabalho,exploram a natureza e entram em relações uns com osoutros, com o fim de garantir a satisfação de suas ne-cessidades vitais. (...)

Sendo restrito o nosso tema, o que nos competeinvestigar é tão somente a questão: em que medida acultura se origina na universidade, nela tem guarida, eaí encontra terreno propício a se desenvolver? Sabendo-se que, entre nós, a universidade é uma peça dodispositivo geral de domínio de certa classe, fica desdelogo encontrada a resposta: só pode se gerar no âmbitouniversitário, ser protegida e defendida por ele, a culturaque corresponda aos interesses de tal classe. Ou seja, acultura que exprima as relações sociais de trabalhoconvenientes a essa classe, não crie embaraçosjurídicos, ideológicos ou técnicos à afirmação de seusdireitos, não exponha, pelos recursos da arte, osaspectos da realidade que demonstram o malefício dadominação daqueles grupos, e, portanto, repudie,recalque e aniquile todas as idéias surgidas das massasnão ligadas às poderosas universidades. A cultura sóem parte muito reduzida se gera e se expande por açãoda universidade; e assim mesmo será sempre uma culturana sua maior parte indiferente ou hostil aos interessesdas grandes massas trabalhadoras, as quais, por efeitoda própria relação de trabalho com a realidade material esocial, estão produzindo outra forma de cultura, expressanoutras concepções gerais, em todos os campos dosaber, e em produtos de arte, que manifestam opensamento de quem se encontra em situação diversada classe alta (...) (IBIDEM: 41).

Vocabulário:

Concepções = atos ou efeitos de conceber, gerar, ouformar idéias.

Dispositivo = regra; preceito; artigo de lei.

Restrito = que se mantém dentro de limites.

Sobre universidade e imperialismo no início dos anos60 (Álvaro Vieira Pinto):

Temos observado que, por força de sua própria cons-tituição no interior de uma sociedade subdesenvolvi-da, a universidade, mesmo fora da consciência, oucontra a vontade dos seus eméritos mestres, compor-ta-se como instituição sempre favorável ao domínioimperialista das potências metropolitanas. Este mal éinevitável, enquanto persistirem as atuais divisõessociais, pois é evidente que agentes dos interessesanti-nacionais, sabendo do indiscutível prestígio dauniversidade e do seu papel na formação da mentali-dade das novas gerações intelectuais do país, tudo

Page 67: Cultura Luso Brasileira

67farão para se introduzir nesse centro vital e influir neleao sabor dos seus desígnios (IBIDEM: 45).

Vocabulário:

Agentes = aqueles que operam (trabalham), agenciam,agem; aqueles que produzem ou são capazes de produzir.

Centro vital = centro essencial; centro fundamental.

Desígnios = intentos; planos; projetos.

Eméritos = insignes; doutos; instruídos; eruditos;sábios.

Influir = fazer fluir para dentro de; inspirar; sugerir;entusiasmar; exercer influência.

CAIO PRADO JUNIOR (1907-1990)

Sobre o desenvolvimento econômico do Brasil dosanos 60 em diante:

Efetivamente, o nosso desenvolvimento econômico,enquadrado no sistema imperialista – e que de fato se estáno momento realizando no Brasil (1986/1987) –, se pautaránecessariamente pelos interesses dos trustes aqui instala-dos que se farão, como já acontece e será cada vez mais ocaso, o elemento principal e fator decisivo da nossaeconomia. São os trustes que fixarão as normas, o ritmo eos limites do desenvolvimento, para eles naturalmente de-terminados pelo montante dos saldos financeiros que oBrasil oferece nas suas contas externas, a saber, aquelesque resultam do nosso intercâmbio com o exterior.

De fato, o lucro auferido pelos empreendimentosimperialistas no Brasil somente se podem liquidar(e somente então constituirão verdadeiros lucros)

com os saldos do nosso comércio exterior, uma vezque é da exportação que provêm nossos recursosnormais em moeda internacional. Descontada a partedesses recursos que se destina pagar as importações,é do saldo restante, e somente dele, que poderá sairo lucro dos empreendimentos aqui instalados pelostrustes. Na base do previsível para esse saldo,portanto, fixarão os trustes o limite de suas atividades;e portanto, em conseqüência, o do desenvolvimentobrasileiro que no sistema vigente é por elesenquadrado (PRADO JUNIOR, Caio. A RevoluçãoBrasileira. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987: 88).

Vocabulário:

Auferido = colhido; obtido.

Sistema Imperialista = sistema político de expansão edomínio territorial e/ou econômico de uma nação so-bre outras.

Trustes = acordos ou combinações entre empresas,em geral com o objetivo de restringir a concorrência econtrolar os preços.

CELSO FURTADO (1920-2004 )

Sobre o Brasil dos anos 60 em diante:

O que permitia aos brasileiros conviver com as gritantesinjustiças sociais era o intenso dinamismo da economia.Muitos observadores (inseridos nos segmentos sociaisprivilegiados, evidentemente) descobriram nessedinamismo uma fonte de legitimidade para um sistema depoder que gerava tantas injustiças (FURTADO, Celso.Brasil: A Construção Interrompida. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1992: 12).

3.4 3.4 3.4 3.4 3.4 - O Conservadorismo Católico:Murilo Mendes (Poeta) e Tristão de Ataíde (Ensaísta)

CONSERVADORISMO CATÓLICO

O Brasil da primeira metade do século XX se posicionoucomo uma nação extremamente católica. Nas cidadesdo interior dos estados, as rivalidades entre católicos eevangélicos eram comuns e provocavam verdadeirasbatalhas entre os grupos religiosos discordantes. Acultura do "Conservadorismo Católico", herança da co-lonização portuguesa-espanhola, impunha os dogmasdo catolicismo, dogmas esses aliados às imposiçõespolíticas vigentes. O poder da Igreja católica no Brasilatuou ao lado do poder político por muitos anos, até aofinal da década de 50, quando o evangelismo protestan-te passou a ganhar um número maior de adeptos.

MURILO MENDES (1901-1975)

Murilo Mendes foi um dos principais poetas dasegunda fase do Modernismo Brasileiro. Sua poesia émarcada pelo surrealismo e pela religiosidade(catolicismo) e enfatiza a finitude do homem.

Sobre o cristianismo em sua obra poética: não é umcristianismo comportado, há uma certa insolência emseus versos, mas há também muita esperança comovalor maior do que a própria crença religiosa, ou seja,esperança de que a fé leva o homem a aceitar o própriosofrimento com dignidade.

Sobre a figura de Cristo na obra de Murilo Mendes:

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68Cristo é visto mais como homem e herói do quepropriamente como Deus.

Sobre a figura do poeta: o poeta é aquele que teste-munha o próprio sofrimento em seus versos, mas étambém aquele que testemunha o sofrimento (martí-rio) da coletividade.

Murilo Mendes e a realidade social de sua época(poemas escritos nos anos de 1930):

LINHAS PARALELAS

Um presidente resolveConstruir uma boa escolaNuma vila bem distante.Mas ninguém vai nessa escola:Não tem estrada pra lá.Depois ele resolveuConstruir uma estrada boaNuma outra vila do Estado.Ninguém se muda pra láPorque lá não tem escola.

(História do Brasil, 1932)

CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra tem macieiras da Califórniaonde cantam gaturamos de Veneza.Os poetas da minha terrasão pretos que vivem em torres de ametista,os sargentos do exército são monistas, cubistas,os filósofos são polacos vendendo a prestações.A gente não pode dormircom oradores e os pernilongos.Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.Eu morro sufocado em terra estrangeira.Nossas flores são mais bonitasnossas frutas mais gostosasmas custam cem mil réis a dúzia.Ai quem me dera chupar uma carambola de verdadee ouvir um sabiá com certidão de idade.

(Poemas, 1930)

Vocabulário:

Cubistas = adeptos do Cubismo (escola de pinturasurgida no início do século XX).

Gaturamos = pequenas aves canoras (de cantoincomum).

Gioconda = quadro famoso pintado por Leonardoda Vinci.

Monistas = adeptos da pintura de Monet.Sururus = conflitos; confusões; arruaças; rixas;

quebra-quebra etc.

Murilo Mendes e o cristianismo como solução paraum mundo repleto de desigualdades sociais, sangui-nário e sem sentido:

O FILHO DO SÉCULO

Cairei no chão do século vinteAguardam-me lá foraAs multidões famintas justiceirasSujeitos com gases venenosos (...)É a hora das barricadas, dos fuzilamentosFomes desejos ânsias sonhos perdidosMiséria de todos os países uni-vosFogem a galope os anjos-aviõesCarregando o cálice da esperança.

(Tempo e Eternidade, 1935)

TRISTÃO DE ATAÍDE / ALCEU DE AMOROSOLIMA (1893-1983)

(Pensador católico e crítico literário)

Sobre Crítica Literária:

Nunca poderei ser um crítico, na verdadeiraacepção da palavra. E isto por uma causa queparecerá antes uma vantagem do que um empecilho:o isolamento (...) Não tenho em torno de mim esseapoio incomparável, insubstituível, indispensáveltalvez, de um grupo (CORRESPONDÊNCIA ENTREALCEU DE AMOROSO LIMA E JACKSON DEFIGUEIREDO. Rio de Janeiro: Academia Brasileirade Letras (ABL), 1995: 27).

Sobre conhecimento da doutrina da Igreja Católica,no início de sua conversão:

Concordo plenamente contigo [com Jackson deFigueiredo] que não tenho um conhecimento pro-fundo da doutrina da Igreja para poder combatê-la.A ignorância, porém, não pode ser de forma, emgente que possua dois dedos de discernimento, umarazão de crer. É possível que um dia, quando puderpenetrar mais fundamente nesses princípios que hádois mil anos regeu o mundo ocidental, é possívelque também me curve, como os outros, perante aeles. Mas justamente porque posso lá chegar, e pen-so que seria nesse caso um adepto ardente e con-victo, não quero que haja dúvidas sobre minha atualposição, embora concorram esses esclarecimentospara que te afastes ainda mais de mim, não eu de ti,pois quanto mais me feres a vaidade, mais me sintopreso a ti, a quem considero como o único verda-deiro amigo que possuo, embora um verdadeiro abis-mo de idéias nos separe e tão pouco nos encontre-mos pessoalmente (IDEM: 37).

Sobre a possibilidade de compreender as doutrinas

Page 69: Cultura Luso Brasileira

69da Igreja Católica:

Como ia dizendo, portanto, não me vejo forçado, pelaignorância que confesso da verdadeira doutrina daIgreja, a abraçar uma causa que sinto ainda estranha amim. Limito-me a não combater um sistema de que te-nho apenas noções superficiais. Mas daí a ser infielao meu sentimento íntimo e aos resultados a que che-garam os meus pequenos esforços de pensar livre-mente, isso é que nunca.

(...)

Mas sei também que, sinceramente, o meu instintomais profundo, a minha intuição mais pura, a minha fémais ardente, me dizem que a grandeza suprema dohomem está primeiramente na bondade, isto é, nosacrifício, no perdão, no altruísmo, na tolerância, enfim,no amor, que tudo diz; e em seguida na livre inteligência

das coisas (IBIDEM: 56).

Vocabulário:

Altruísmo = sentimento de quem põe o interessealheio acima de seu próprio.

Discernimento = tino; juízo; apreciação; análise.

Observação: depois das dúvidas iniciais quanto àcompreensão das doutrinas do catolicismo, AlceuAmoroso Lima (Tristão de Ataíde) tornou-se um dosgrandes pensadores da Igreja Católica, tornando-seum seu fervoroso adepto e divulgando-a em seus es-critos. A sua conversão estendeu-se a seu meio fami-liar, pois uma filha sua tornou-se monja reclusa em ummosteiro de freiras de São Paulo.

3.5 3.5 3.5 3.5 3.5 - Os “Novos Brasileiros” pela Ótica de AutoresEstrangeiros: Claude Levi-Strauss, Roger Bastide eStephan Zweig

Claude Levi-Strauss

CLAUDE LEVI-STRAUSS (residiu no Brasil de1934 a 1938 / Foi Professor da USP)

(...) a partir do primeiro ano letivo. Em vez de voltar paraa França, minha mulher e eu fomos para o Mato Grosso,para as aldeias cadiveu e bororo. Mas eu já tinhacomeçado a fazer etnologia com os meus alunos: sobre acidade de São Paulo e sobre o folclore dos arredores, doqual minha mulher se ocupava mais especificamente(LÉVI-STRAUSS & DIDIER, E. De perto e de longe. Riode Janeiro: Nova Fronteira, 1990: 32).

Claude Levi-Strauss, sobre o Brasil de 1934 a 1938:

(...) a vida urbana apresenta um estranho contraste.Embora represente a forma mais completa e requinta-da da civilização, em virtude da concentração humanaexcepcional que realiza em espaço reduzido e da dura-ção de seu ciclo, precipita no seu cadinho atitudesinconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que,devido ao número de indivíduos que as manifestamdo mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capa-zes de engendrar grandes efeitos. Como exemplos, ocrescimento das cidades de leste para oeste e a polari-zação do luxo e da miséria segundo este eixo, que setorna incompreensível se não reconhecermos esse pri-vilégio - ou essa servidão - das cidades que consiste,à maneira dum microscópio e, graças ao aumento quelhe é peculiar, em fazer surgir na lâmina da consciência

coletiva o borbulhar microbiano das nossas ances-trais mas sempre vivas superstições. Tratar-se-á, deresto, realmente, de superstições? (LÉVI-STRAUSS,Claude. Tristes Trópicos. Lisboa/São Paulo: Ed. 70/Martins Fontes, 1981: 16).

Vocabulário:

Cadinho = crisol; vaso empregado em operaçõesquímicas a temperaturas elevadas.

Engendrar = produzir.

Polarização = concentração para um certo fim; atraçãopara si.

Roger Bastide

ROGER BASTIDE (residiu no Brasil de 1938 a1954 / Foi Professor da USP)

Sobre o negro do Rio de Janeiro (meados dos anos 50):

• Não politizado;

• Samba como válvula de escape e reivindicação (for-ma de resistência);

• Vida degradada por falta de oportunidades.

Page 70: Cultura Luso Brasileira

70O negro do Rio de Janeiro tem outra compensação contra aexploração econômica de que é vítima: o samba. "Quem can-ta seus males espanta." Ao som do violão, nas favelas dacapital federal, o negro afugenta suas penas cantando-as: tris-tezas de amor, falta de dinheiro, ciúmes, lutas a faca, toda apsicologia dos "malandros" revela-se nas palavras desses sam-bas... a preguiça, o devaneio na rede, triunfam sobre o traba-lho imposto pela civilização capitalista (BASTIDE, Roger.Brasil, Terra de Contrastes. 9. ed. São Paulo: DIFEL,1979:150).

Sobre o negro de São Paulo (meados dos anos 50):

• O negro de São Paulo não dispõe das "vantagens"do samba (carnaval) e do folclore ("vantagens" utili-zadas pelos negros baianos e pernambucanos, segun-do ele) para desculpar-se da não inserção na socieda-de brasileira;

• Os negros paulistas: protestaram, mas mesmo assim,segundo R. B., não possuíam força política;

• O protesto surgiu por falta de alternativa para afu-gentar os males do Capitalismo opressor.

O negro de São Paulo não tem estas duas válvulasde escapamento para se livrar de sua condição de raça,civil e politicamente igual, mas social e economica-mente inferior. Não pode sublimar suas repressões nasescolas de samba. Não lhe resta como saída senão oprotesto político (IDEM: 150).

Sobre a Frente Negra de São Paulo (meados dosanos 50):

• Segundo as palavras de Roger Bastide, se os ne-gros de São Paulo conhecessem o samba, não teriamfundado a Frente Negra;

• Origem da Frente Negra para R. B.: simples válvulade escape;

• Roger Bastide, mesmo afirmando a não-condiçãopolítica do negro paulista, não conseguiu negar que omovimento em questão foi a maior expressãoreivindicatória surgida no Brasil, naquele período, emtorno da causa dos negros;

• Para R. B., os negros protestaram contra a discrimi-nação racial;

• Impulsionados pelo protesto, fundaram um jornal(principal fonte de informação da Frente Negra).

Em São Paulo nasceu o maior movimento de reivindicação daclasse negra e a condensação da maior massa de homens de corque já se reuniu no Brasil em torno de um ideal: a Frente Negra.

Embora aceitando a mistura de sangue e defendendo-se daacusação de "racismo às avessas", a Frente Negra em poucotempo criava seu jornal, A Voz da Raça, para protestar contra

toda e qualquer manifestação de discriminação racial da partede empregadores, hoteleiros, diretores de clube ou de sociedadesrecreativas brancas; criava escolas de alfabetização, de costura,de trabalhos manuais para elevar o nível de classe de cor...formando grupos esportivos, teatrais, culturais, a fim demoralizar a massa abandonada, salvá-la do alcoolismo,oferecer-lhe divertimentos salutares (IDEM: 150).

Stephan Zweig

Sobre o texto Brasil: País do Futuro, de Stephan Zweig

É o mais famoso de todos os textos que se escreve-ram sobre o Brasil. De 1500 até 1941 (quando saiu aprimeira edição) e mesmo agora (...), nenhuma obra foitão traduzida, tão reeditada e tão citada quanto estaode de Stefan Zweig ao país que o abrigou durante aSegunda Guerra Mundial. (...)

Nenhum título foi tão celebrado quanto este Brasil,um país do futuro. Transformou-se em cognome, so-brenome, estigma e vaticínio. País-promessa, terra donunca, nação do amanhã – a expressão pode ser en-tendida em todos os sentidos.

Até hoje não se sabe exatamente o que Zweig pre-tendia dizer com esse sugestivo e enigmático jogo depalavras (um país ou o país do futuro ou de futuro?).A idéia não foi dele, mas de James Stern (aliás, AndrewSt. James), o tradutor para o inglês do original alemão,que o pescou em francês na epígrafe da obra.

Uma coisa é certa: dois anos depois de iniciada a maisterrível de todas as guerras, Zweig viu no Brasil umaalternativa ao ódio que grassava na Europa. As idéias deGilberto Freyre sobre a miscigenação racial e as de Sér-gio Buarque de Holanda sobre a "cordialidade" brasilei-ra circulavam há poucos anos, porém em círculos restri-tos. Zweig recortou-as perante às agruras do momento.

Fascinado com aquela sociedade multicolorida, gene-rosa, pacata, alegre porém tocada por uma certa melan-colia, Zweig enxergou uma possibilidade de conciliação.Combinado às extraordinárias riquezas do país, o pactode convivência oferecia-se como um paradigma natural,diametralmente oposto ao rancor racial e ao desvariopolítico imposto pelo nazifascismo. (...)

Zweig recusou a imagem do país exótico e pitoresco,deixou de lado os balangandãs e, em troca, ofereceu aque-le arrebatado esboço para uma potência sem prepotências,afável, segura. Num mundo ressentido e sem saídas, enta-lado numa guerra que adivinhava-se demorada, a utopiaengendrada por Zweig funcionou como um bálsamo.

Menos no Brasil. Sucesso de público, como sempre,porém massacrado pelos críticos. Era proibido encan-tar-se com um país dominado por uma férrea ditaduraonde a máquina da propaganda oficial era a única que

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71se manifestava livremente. O redator-chefe do pode-roso Correio da Manhã (do Rio, então Capital Federal)dedicou-lhe cinco sucessivos e ferozes textos, outrosarticulistas insinuaram que o famoso e rico escritorvendera-se ao Estado Novo de Getúlio Vargas.

Zweig fez efetivamente um negócio com o governobrasileiro: em troca do livro (que desde 1936 pretendiaescrever), receberia junto com a mulher um visto deresidência permanente. Uma preciosidade num momen-to em que o governo trancava as portas aos que fugi-am dos horrores do nazismo.

Aqueles que o criticaram jamais protestaram contraa desumana política imigratória do governo, os pre-conceitos xenófabos e anti-semitas herdados dointegralismo tinham então outros matizes. Além disso,amar o Brasil era de mau gosto, lembrava o ufanismovazio do conde Afonso Celso.

Poucos perceberam que Zweig condenava a miséria emque se encontrava grande parte do país e, para mitigá-la,oferecia um projeto de civilização acoplado a um plano de"desenvolvimento sustentável" (como se diria hoje). Nãoera economista, mas o amigo Roberto Simonsen, conside-rado um dos patriarcas das ciências econômicas no Brasil,ofereceu-lhe valiosos subsídios que ele soube recortar eencaixar no seu canto de louvor (DINES, Alberto. Prefá-cio à reedição da obra, 2006. In.: ZWEIG. Stefan. Brasil,um país do futuro. Porto Alegre: L&PM, 2006: 7-9).

Vocabulário:

Agruras = amarguras; dissabores; asperezas.

Cognome = apelido.Estado = o conjunto dos poderes políticos de uma

Nação; Governo.

Estigma = sinal; cicatriz.

Grassava = alastrava-se.

Miscigenação = cruzamento de etnias; mestiçagem.

Mitigar = suavizar; atenuar; abrandar; aliviar.

Vaticínio = profecia.

Xenófabos = pessoas que têm antipatia porestrangeiros ou por coisas estrangeiras.

Stephan Zweig, sobre o Brasil do início dos anos 40:

(...) Pela primeira vez, comecei a perceber a gran-deza inconcebível daquele país que não deveriaser chamado de país e sim de continente, um mun-do com espaço para trezentos, quatrocentos, qui-nhentos milhões de habitantes e uma riqueza inco-mensurável, da qual nem a milésima parte foi ex-plorada ainda sob o solo farto e intacto. Um paísem rápido desenvolvimento e que apenas começaa se desenvolver, apesar de todas as atividades detrabalho, construção, criação e organização. Umpaís cuja importância para as próximas gerações éinimaginável até fazendo as combinações mais ou-sadas. E, com uma rapidez surpreendente, derre-teu-se a arrogância européia que eu levara comobagagem inútil nessa viagem. Percebi que tinhalançado um olhar para o futuro do nosso mundo(op. cit., 2006:15).

3.6 3.6 3.6 3.6 3.6 - Brasil: Meados do Século XXINÍCIO DOS ANOS 50 (1950) / INÍCIO DOS ANOS 60 (1960): "...Houve um tempo, diz-nos Roberto Schwarz, em

que o país estava irreconhecivelmente inteligente."Política externa independente", "reformas estrutu-rais", "libertação nacional", "combate ao imperialismoe ao latifúndio": um novo vocabulário – inegavelmen-te avançado para uma sociedade marcada peloautoritarismo e pelo fantasma da imaturidade de seupovo –, ganhava a cena, expressando um momento deintensa movimentação na vida brasileira.

Nas grandes cidades, o movimento operário quecrescia desde os anos iniciais da década de 50 levavaadiante um vigoroso processo de lutas, expelindovelhos pelegos do Estado Novo e fortalecendo seusmecanismos de reivindicação econômica e pressãopolítica. Articulando-se em pactos sindicais, ostrabalhadores urbanos pareciam dispostos a unificarsuas forças. Novas organizações como a PUA e o CGT

se afirmavam, provocando a desconfiança dos quetemiam pelo rompimento dos limites institucionais danegociação salarial.

No campo, o movimento das Ligas Camponesasavançava, notadamente nos estados de Pernambucoe da Paraíba, alcançando repercussão por todo o país.Ampliava-se a sindicalização rural, e era criada emdezembro de 1963 a Confederação Nacional dosTrabalhadores Agrícolas. O debate político nacionalvia brilhar um velho tabu: a Reforma Agrária.

Também a classe média urbana, ainda que divididapelo temor da subversão e da instabilidade econômica,comparecia com amplos setores ao movimento social.Estudantes e intelectuais assumiam posições favoráveisàs reformas estruturais, desenvolvendo uma intensa

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72atividade de militância política e cultural. A União Nacio-nal dos Estudantes (UNE), em plena legalidade, com trân-sito livre e franco acesso às instâncias legítimas do po-der, discutia calorosamente as questões nacionais e asperspectivas de transformação que mobilizavam o país.

Ligado à UNE, surgia no Rio de Janeiro, em 1961, oprimeiro Centro Popular de Cultura, colocando na or-dem do dia a definição de estratégias para a construçãode uma cultura "nacional, popular e democrática". Atra-indo jovens intelectuais, os CPCs – que aos poucos seorganizavam por todo o país – tratavam de desenvolveruma atividade conscientizadora junto às classes popu-lares. Um novo tipo de artista, "revolucionário e conse-qüente", ganhava forma. Empolgados pelos ventos daefervescência política, os CPCs defendiam a opção pela"arte revolucionária", definida como instrumento a ser-viço da revolução social, que deveria abandonar a "ilu-sória liberdade abstratizada em telas e obras sem con-teúdo", para voltar-se coletiva e didaticamente ao povo,restituindo-lhe "a consciência de si mesmo". Trabalhan-do o contato direto com as massas, de onde extraíamseu maior interesse e vigor, encenavam peças em por-tas de fábricas, favelas e sindicatos; publicavam cader-nos de poesia vendidos a preços populares e iniciavama realização pioneira de filmes autofinanciados. De de-zembro de 1961 a dezembro de 1962, o CPC do Rio pro-duziria as peças Eles não usam black-tie e A vez daRecusa; o filme Cinco Vezes Favela, a coleção Cader-nos do Povo e a série Violão de Rua. Promoveria aindacursos de teatro, cinema, artes visuais e filosofia e aUNE-volante, uma excursão que por três meses percor-reu todas as capitais do Brasil, para travar contato combases universitárias, operárias e camponesas.

A organização de um amplo movimento cultural didático-conscientizador tomava forma em toda uma série de gru-pos e pequenas instituições que surgiam vinculadas agovernos estaduais, prefeituras ou geradas pelo movi-mento estudantil. Em Pernambuco, com o apoio do gover-no de Miguel Arraes, o Movimento de Cultura Popular(MPC) formava núcleos de alfabetização em favelas e bair-ros pobres. Um novo método, criado por Paulo Freire, cau-sava impacto. Contra as infantilizantes "cartilhas" tradici-onais, procurava-se colocar a palavra política no coman-do do processo de aprendizado como forma de deflagrar atomada de consciência da situação social vivida pelaspopulações analfabetas e marginalizadas.

No campo político, a presença no poder de forças naci-onalistas filiadas à tradição de Vargas e, nesse sentido,sensíveis às demandas populares, favorecia a emergên-cia das esquerdas, notadamente do Partido Comunistaque, na semilegalidade, desempenhava um papel de cres-cente importância na articulação dos setores progressis-tas. Exercendo uma influência considerável no meio sin-dical, estudantil e intelectual, o PCB constituía-se numa

peça estratégica do jogo de alianças do período deGoulart. Sua proximidade em relação ao Estado e o aces-so a alguns aparelhos de hegemonia permitiam que seuideário da revolução "democrática e antiimperialista" cir-culasse abertamente no debate nacional.

Brasil, primeiros anos da década de 60: talvez empoucos momentos da nossa história o que podería-mos chamar de "forças progressistas" tivessem se vis-to tão próximas do poder político (HOLANDA, Heloi-sa Buarque de & GONÇALVES, Marcos Augusto. Cul-tura e participação nos anos 60. 8. ed. São Paulo:Brasiliense, 1992 (1a edição: 1982): 8-11).

Vocabulário:

CGT = Comando Geral dos Trabalhadores (1961-1964).

Conseqüente = que segue naturalmente; coerente.

CPCs (1961-1964) = Centros Populares de Culturacriados pelos estudantes vinculados à União Nacio-nal dos Estudantes – UNE.

Deflagrar = inflamar-se com chama intensa, centelhaou explosões; irromper repentinamente; atear; provo-car; ocorrer subitamente e impetuosamente.

Estado = o conjunto dos poderes políticos de umaNação; Governo.

Hegemonia = supremacia.

Ideário = planejamento; projeção; criação de uma idéia.

Imperialismo = política de expansão e domínioterritorial e/ou econômico de uma nação sobre outras.

Instâncias = qualidades do instante; pedidos ou so-licitações instantes; jurisdições; foros.

Latifúndio = propriedade rural de grande extensão,especialmente a que tem grande proporção de terrasnão cultivadas.

Pactos = ajustes; acordos.

Pelegos = aqueles que, nos sindicatos, trabalhamsorrateiramente contra os interesses dos trabalhado-res; a pele do carneiro com a lã.

PUA = Pacto de Unidade e Ação: organizaçãointersindical brasileira, criada em 1961, formada porferroviários, marítimos e aeroviários. Objetivo: unircategorias afins contra a recessão. Foi extinto em 1964.

Subversão = insubordinação ao poder constituído.

De 1964 a 1984: Vinte anos de Ditadura Militar no Brasil.

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733.7 3.7 3.7 3.7 3.7 - Brasil: Final do Século XX

ANOS 70/80: Os estratos burgueses aprenderam amudar a qualidade das suas percepções e explicaçõesdo mundo, procurando ajustar-se a 'avaliações prag-máticas', que representam o subdesenvolvimento comoum 'fato natural' auto-corrigível e estabelecem como idealbásico o princípio, irradiado dos Estados Unidos, do'desenvolvimento como segurança'. Dava-se assim oúltimo salto na limpeza do sótão. A burguesia brasileiraencontrava novos elos de 'modernização', descartan-do-se de suas quinquilharias históricas libertárias, deorigem européia, substituídas por convicções bem maisprosaicas, mas que ajustavam seus papéis à 'unidadedo hemisfério', à 'interdependência das nações demo-cráticas' e à 'defesa da civilização ocidental'(FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa. Riode Janeiro: Zahar, 1976: 314).

Vocabulário:

Estratos = camadas; faixa ou camada de uma popula-ção quanto ao nível de renda, educação etc. (Pede-senão confundir com a palavra extrato = trecho; frag-mento; resumo; sumo).

Pragmáticas = objetivas; diretas; eficientes; práticas;idéias pragmáticas = as idéias só valem quando pro-duzem efeitos práticos.

Prosaicas = vulgares; triviais.

Quinquilharias = objetos de pouco valor; jóias falsas.

ANOS 80/90: Emergindo de uma era ditatorial tene-brosa, temos diante de nós (...) as exigências diretas dademocratização da sociedade civil e do Estado. Cum-pre, pois, afrontar esse tema dentro de uma perspectivasuficientemente flexível para entender que o escritor sevê envolvido por uma revolução democrática que lheimpõe tarefas culturais especificamente políticas. (...)

À luz dessa base social e de suas implicações políti-cas ficam claras quais são as relações do escritor como Estado, pelo menos do escritor que se situa na fran-ja histórica da construção de uma nova sociedade eda conquista de uma nova era. Ele não é o romântico"campeão da democracia" dos sonhos liberais. Paraele, a democracia não é uma palavra, e a democratiza-ção do Estado não é um processo isolado da ordemeconômica, social e política. Enquanto não existiamclivagens com as elites das classes dominantes, osescritores não se perguntavam: que democracia? De-mocracia para quem e para quê? O bloqueio anti-soci-al e anticultural do Estado precede de dentro e de fora– é um negócio no qual entram várias mãos e diferen-tes tipos de privilégios, além do que a modernização

industrial e o desenvolvimento econômico aceleradoassociaram os estratos mais fortes da burguesia inter-na com os interesses da superpotência capitalista, dasnações capitalistas hegemônicas, das corporaçõesmultinacionais e da comunidade financeira mundial. Éimpossível democratizar o Estado confundindo essesinteresses com as necessidades urgentes da massahumana espoliada, com as exigências dos trabalhado-res assalariados da cidade e do campo, com as aspira-ções dos estratos mais sufocados econômica e social-mente da pequena burguesia e das classes médias tra-dicionais. O "Estado democrático", antes de 1964, erauma cidadela daqueles interesses; hoje [início dosanos noventa], ele é literalmente um Estado daplutocracia nacional e estrangeira, o reverso do Esta-do democrático burguês – o Estado autocrático bur-guês. A derrota e o colapso da ditadura não encerramesse fato. Ao contrário, nas condições em que ambasocorrem, a autocracia burguesa apenas se redefine ebusca engendrar, a partir de cima, o fortalecimento e acontinuidade de seus objetivos anti-sociais,antinacionais e antidemocráticos.

O contexto histórico secreta impulsões políticas queidentificam o escritor com os que se batem pela revolu-ção democrática e buscam levar essa revolução da so-ciedade civil para o Estado, extinguindo a hegemoniapolítica dos "grandes interesses". O arco conservadorse abate sobre a Nação como uma terrível ameaça, con-fundindo os espíritos com uma concepção esdrúxulado "mudancismo" e com promessas hipócritas sobreas próximas batalhas pela Constituição. Ora, essa fór-mula é conhecida, requentada e falsa. Repete-se (outenta-se repetir) o que deu certo no passado, sob ademocracia senhorial do império e a democraciaplutocrática da República. Opor diques conservadoresà transformação da sociedade civil e do Estado, embru-lhar as causas verdadeiras da igualdade maior e da li-berdade do cidadão no papel sujo do faz-de-conta e datorpeza. Como sucedeu em 1945, tornar o avanço de-mocrático difícil, esvaziá-lo e brecá-lo no momento "cer-to", ao evidenciar-se que a lábia política deveria sersubstituída pelo braço armado da burguesia.

A "democracia a partir de cima" choca-se, hoje [iníciodos anos 90], com as sólidas pressões que buscam defi-nir um novo eixo político para o Estado, liberando igual-mente a revolução nacional e a revolução democrática. Ese os pólos conservadores se classificaram, por sua vezos pólos radicais e revolucionários sobem à tona e mos-tram no cenário brasileiro o que é "democracia de baixopara cima" e deixam patente o caráter proletário e socia-lista das tendências sociais mais firmes à democratizaçãodo Estado. Uma democratização de novo tipo, que rom-pe com o passado, porque reduz o espaço histórico dasmanobras políticas dos de cima e delimita a democratiza-

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BEST-SELLER

Qual é o processo que faz com que um livro apareçano balcão da livraria?

A maioria das médias e pequenas cidades brasileirassó dispõe de pequenas bibliotecas e livrarias e, apesarde o público leitor ter crescido muito nos últimos anos,estimado em alguns milhões, o número de livrarias emalgumas cidades diminuiu, ou estacionou. Há uma rela-ção direta entre a crise econômica e mercado editorial.

Um livro aparece na livraria quando "começa a serpedido", e o leitor começa a pedir o livro quando olivro aparece nos jornais. (...)

O consumidor médio brasileiro não entra na livraria,exceto quando se encontra nos Shopping Centers.Ele também se perde na biblioteca pública, pois o ex-cesso o confunde. Alguns dependem da propagandados jornais para se decidir a ler, vendo no jornal umcritério de valor. Desta forma se fecha o círculo: quan-to mais o livro vende, mais é falado; e quanto maisfalado é, mais vende. Algumas empresas chegam alançar um pacote cultural: livro, filme, vídeo, disco,camisas, chaveiros etc.

Há vários públicos leitores específicos no Brasil. Umdos livros que mais vende, depois da Bíblia, é Minutosde Sabedoria, de Pastorino. O público de best-seller é

ção do Estado, historicamente, como uma realização damaioria, ou seja, da massa do povo. O arco conservadorestá sendo vergado pelas circunstâncias, e os escritoresse encontram, não por "dever de ofício" mas por suaprópria condição social, do lado da barricada em que seluta por uma forma política real, de Estado democrático epela revolução democrática permanente (FERNANDES,Florestan. Na Revolução da Democracia. In.: BOSI,Alfredo (Org.). Cultura Brasileira, Temas e Situações.2.ed. São Paulo: Ática, 1992: 219-224).

Vocabulário:

Burguesia = classe social surgida na Europa em finsda Idade Média com o desenvolvimento econômico eo aparecimento das cidades, e que veio a dominar avida política, social, econômica e intelectual.

Capitalista = quem vive do rendimento de um capital(riqueza acumulada).

Clivagem = fragmentação.

Conquistar = submeter pela força de armas; vencer;adquirir algo à força de trabalho, ou de grande esfor-ço, de dedicação, ou por mérito etc.; granjear, ganhar(fama, simpatia, amor etc.).

Constituição = lei fundamental em um Estado, que con-tém normas sobre a formação dos poderes públicos, di-reitos e deveres dos cidadãos etc.; Carta Constitucional.

Construção = Ato, arte ou efeito de construir; (gramática)colocação das palavras nas frases e destas nos períodos.

Democracia = governo do povo; soberania popular;distribuição eqüitativa do poder.

Diques = construções sólidas, para represar águascorrentes.

Elites = camadas sociais que detêm mais privilégios;o que há de melhor em uma sociedade ou em um gruposocial.

Engendrar = produzir; gerar.

Escritor = autor de obras literárias e/ou científicas.

Esdrúxula = esquisita; excêntrica.

Espoliada = privada de algo por fraude ou violência.

Estado = o conjunto dos poderes políticos de umaNação; Governo.

Estratos (sociologia) = camadas (de população quan-to ao nível de renda, educação etc.)

Hegemônicas = preponderantes; supremas.

Mudancismo = mudança.

Plutocracia = governo em que o poder pertence àsclasses ricas.

Sociedade = agrupamento de seres que vivem emestado gregário; grupo de indivíduos que vivem porvontade própria sob normas comuns; meio humanoem que o indivíduo está integrado.

Superpotência = excesso de potência; super vigor;super força; super força aplicada à realização de certofeito; Super Nação Poderosa.

Torpeza = desonestidade; indecência.

3.8 3.8 3.8 3.8 3.8 - Brasil, Início do Século XXI: Best-Seller,Cinema e TV

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75um dos maiores, mas não, o maior, que é o escolar. Foi opúblico escolar que fez a fortuna de Meu pé de laranjalima, de Vasconcelos [José Mauro de Vasconcelos] (hojequase desconhecido); e mesmo o maior escritor brasilei-ro, Jorge Amado, no início de sua carreira percorreu asescolas do país promovendo os seus romances.

(...)

A venda do livro que chega à lista ainda é pequenaem comparação com o mercado norte-americano.

É necessário esclarecer que podemos considerar best-seller qualquer livro de ficção que entre nas listas dos"mais vendidos". Guimarães Rosa ou Sidney Sheldon.

(...)

Poucos escritores brasileiros conseguiram escre-ver para o grande público de best-seller. A narrativacinematográfica interferiu no gosto de ler, e o gostopela reflexão "ligeira" tem aumentado. Além disso,há um público universitário, intelectualizado, libe-ral-esquerdizante de classe média, professores, pro-fissionais liberais que estão em todas as capitais dopaís, influenciados pela imprensa e pela Internet.Há certos jornais e editores que ditam a moda econcentram-se em São Paulo.

(...)

Além do best-seller de livraria, existe o produto cul-tural vendido nas bancas de jornal a partir de 1970, e omais curioso se chama Os Pensadores, que conseguetransformar Kant em best-seller (vende cerca de 70mil). São livros-objeto, para se ter, não para se ler(SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária.Petrópolis: Vozes, 2002: 107-109).

CINEMA E TV

A televisão modificou todos os outros meios decomunicação: o cinema, rádio, jornal e literatura. Todosse ajustaram à nova realidade para sobreviver. Para oexame da TV vamos começar com a análise feita de umdos mais antigos e prestigiosos programas, oFantástico, da Rede Globo, que caracteriza bem atelevisão brasileira.

O Fantástico apareceu em 1973 (...). Desde entãotem mantido um alto coeficiente de audiência, tão altoquanto era de se esperar para as noites de domingo daclasse média brasileira, a família reunida na sala, pes-soas de variadas idades e gostos que devem ser aten-didos. O programa, curiosamente, nasce sob a influ-ência da literatura fantástica, isto é, do fantástico. Umaironia que ninguém vê. O fantástico ultrapassa o hu-mano, descreve e representa o mundo às avessas,paradoxal, contraditório como o nosso. Mas o progra-ma questiona a ordem sem subverter. O fantástico fazconvergir o real com o irreal, com o maravilhoso, paracriticar o próprio real, para criticar o monopólio do realde dar conta da verdade. Visto assim, o fantástico temum caráter revolucionário, delimita os limites do real.Ora, o Brasil é um país fantástico, mas o fantástico sediz aqui realista.

(...)

O Fantástico contamina toda a TV brasileira, quenão gosta da realidade do fato concreto. A TV, queFellini [cineasta] definiu como "um eletrodoméstico",é uma pequena caixa de sonho, sentida como neces-sária pela classe média para diminuir a solidão dasgrandes cidades.

Anteriormente, o cinema fabricava os sonhos. Em suaépoca, o cinema constituía uma casa de espetáculos,luzes, sombras e um ritual de iniciação. Os espectado-res se preparavam para o espetáculo desde que saíamde casa para "ir ao cinema", uma fantasia, envolvia omaravilhoso, a platéia crente. O espectador idolatrava,palavra que radica no "ídolo", de que o cinema vivia,mitos e divindades. Dizia-se do cinema que, assim comoo selvagem idolatrava ícones de madeira, o homem civi-lizado idolatrava ídolos do cinema. Para o idólatra dadiva não bastava ver o filme, ele lia a respeito, compra-va discos e todos os produtos lançados, além de imitarfisionômica e psicologicamente o artista (como os ado-lescentes fazem com seus ídolos de rock). O astro era odeus do consumo, para ser consumido e produzido pelosprodutores e pelas empresas. O mito é uma empresa,uma mercadoria. Ele se produz pela soma do que se dizdele, representa o ponto de fuga do desejo dacoletividade. É o desejado, o imitado, envolto no misté-rio de um mundo de riqueza (o mito é um valor), depopularidade (IDEM: 109-111).

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Se você:

1) concluiu o estudo deste guia;2) participou dos encontros;3) fez contato com seu tutor;4) realizou as atividades previstas;

Então, você está preparado para asavaliações.

Parabéns!

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