72
A B C 2 + 2 = 4 X-Y=? 2 + 2 = 4 X-Y=? A B C 2 + 2 = 4 X-Y=? 2 + 2 = 4 X-Y=? Curso de Fomação de Educadores Escola da Cidadania de Contagem Osvaldo Orlando da Costa

Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

A B C2 + 2

= 4

X-Y=?

2 + 2

= 4

X-Y=?

A B C2 + 2

= 4

X-Y=?

2 + 2

= 4

X-Y=?

Curso de Fomaçãode Educadores

Escola da Cidadania de ContagemOsvaldo Orlando da Costa

Page 2: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Prefeito de Contagem: Carlos Magno de Moura Soares

Secretário de Direitos Humanos

e Cidadania: Letícia da Penha Guimarães

Presidente da Funec: Karla Roque Miranda Pires

Estrutura organizacional - escola da cidadania de contagem “osvaldo orlando da costa“

comitê gestor:

nº Orgão/Instituição/ Segmento Representante Titular Suplente

01Fundação de Ensino de Contagem - FUNEC

Karla Roque Miranda PiresCoordenação

Luiz Mauro Procópio

02Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania - SDHC Érico Nogueira de Sousa Dalcira Ferrão

03 Conselhos de Direitos Maria Cristina Fonseca Margareth da Silva Gonçalves

04 Educadores Sociais José Fernandes dos Santos Neto

Marcos Araújo de Souza (Pitter)

05Governo Municipal - Gabinete do Prefeito Davidson Luiz do Nascimento Rubens Bastos

Educadores Sociais:01 - Cássio Matias Gomes02 - Cláudia Faria Veiga03 - Dalcira Ferrão04 - Davidson Luiz do Nascimento05 - Geraldo Magela Ferreira Campos06 - Gislaine da Silva Santos07 - Gutemberg Medianeiro Alves de Andrade08 - José Fernandes dos Santos Neto

09 - Leonardo Ribeiro de Almeida10 - Marcos Araújo de Sousa (pitter)11 - Míriam Paula Soares Simões Komel12 - Nícolas Domingues dos Santos13 - Roberta Melo Barbosa14 - Sara de Faria Andrade Ramos15 - Vânia Conceição Ferreira

Secretaria executiva: Gislaine da Silva Santos

Page 3: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Apresentação

PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR

PARTE 2 - Conceitos básicos da educação popular

PARTE 3 - instrumentos pedagógicos

uMA RESTROPECTIVA HISTÓRICO-POLÍTICA

fenomenologia

como planejar um curso

ad-mirar

aula expositiva

eDUCAÇÃO pOPULAR E aLFABETIZAÇÃO DE ADULTOS

relação educador/educado

os instrumentos pedagógicos

educação bancária

aula dialogada

eDUCAÇÃO pOPULAR nos tempos atuais

autonomia

grupos

silêncio tático

debates

A experiência da cidadania de maringá

empatia

oficinas

exemplo de plano de aula

04

10

36

56

44

63

16

40

62

45

64

23

43

62

47

64

65

49

65

70

Sumário

Page 4: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

4

Apresentação

Caro Cursista,

A Escola da Cidadania de Contagem “Osvaldo Orlando da Costa” é uma uni-dade da Fundação de Ensino de Contagem – FUNEC, sendo um espaço de dis-cussão sobre cidadania e ação na comunidade. Esta tem por objetivo propiciar a formação política, humana e técnica dos cidadãos a fim de ampliar a partici-pação popular na construção das políticas públicas do município. A Escola da Cidadania é uma iniciativa da Prefeitura de Contagem, incluída no Plano Plu-rianual de 2014/2017, sob a coordenação da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania em conjunto com a FUNEC.

O Instituto Cultiva, apresenta-lhe este Livreto que servirá de referência para os estudos a serem desenvolvidos ao longo das nossas atividades na formação de educadores sociais, no município de Contagem. Para construí-lo recorremos aos estudos e escritos de vários autores e das experiências que têm sido desenvolvidas pelo Instituto Cultiva. A primeira parte do nosso mate-rial apresenta um panorama histórico sobre a Educação popular. O ponto de partida dessas reflexões foi construído a partir das contribuições do artigo da Revista HISTEDBR On-line, assinado por Dulcinéia de Fátima Ferreira Pereira e Eduardo Tadeu Pereira, Doutores em Educação pela Unicamp.

Do livro do psicólogo Carlos Rodrigues Brandao O que é Educação Popular, retiramos um excerto para registrar a diferença existente entre Educação de Adultos e Educação Popular. Na abordagem dos estudos e teorias sobre Cur-rículo, tivemos por referência o livro Documentos de Identidade, de Tomaz Tadeu da Silva, Mestre em Educação e Doutor em Sociologia da Educação.Para finalizar nosso percurso histórico, uma provocação sobre o futuro da educação popular escrita por Rudá Ricci oferece-lhes a análise/síntese dos te-mas aqui desenvolvidos, o que contribuirá com o registro que deverá ficar na memória de cada um.

Na sequencia, nosso caderno de formação se dedica a apresentação dos conceitos básicos ou fundamentais da educação popular. Mas quando fala-mos em “conceito” o que isso quer dizer?

Um conceito é um instrumento de análise que se alimenta da realidade. Uma síntese explicativa. Como um balão de ar, cujo ar é a realidade capturada no seu interior. Um conceito, portanto, depende da realidade que procura inter-pretar. Se a realidade muda, muitas vezes o conceito que pretende explica-la perde sua capacidade e função.

Page 5: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

5

Este é o caso do conceito de estamento. Estamento é um tipo de organi-zação social em que há baixíssima mobilidade social. A sociedade é fatiada em camadas que possui seus hábitos próprios (vestimenta, alimentação, rituais) e não se envolve com as outras camadas. Seus membros casam entre si. Quem nasce num estamento raramente é acolhido em outro.

Neste caso, é o prestígio social, os valores e as crenças que definem o lugar de cada estamento. Esta estrutura é tão determinante nos países em que ela existe que até mesmo no movimento sindical se reproduz a hierarquia esta-mental: tal estamento pode chegar à Presidência do sindicato, mas outro, so-mente em cargos inferiores, como ocorre em alguns países do sudeste asiáti-co. Em países onde não existe tal estrutura, como no Brasil, o conceito de estamento perde sua função. Mesmo assim, há autores que sugerem que por termos tido um passado escravagista, onde o escravo vivia na base estamen-tal da sociedade, mantivemos alguns valores estamentais, dando origem ao nosso racismo e dificuldade em se aceitar o ingresso de populações mais po-bres em lugares tradicionalmente frequentados por classes sociais mais abas-tadas, como ocorreu no caso dos rolezinhos que ganharam projeção nacional no final de 2013 e início de 2014. Os conceitos são chaves de explicação de uma realidade. Procuram explicar como algo funciona e se estrutura. Assim, na segunda parte serão expostos alguns conceitos criados por Paulo Freire que se amarrados entre si, reproduzem grande parte dos princípios da educação popular no Brasil e em toda América Latina. Por este motivo, decidimos apre-sentar cada conceito como uma escada. O primeiro, como uma base para o segundo, e assim por diante, que ao se somarem, possibilitam construir uma visão geral desta concepção educacional.

Começaremos pelo conceito de fenomenologia. Esta teoria foi cara a Paulo Freire, mas poucos educadores compreenderam que é a base do pensamento freireano, o que conferiu uma característica muito peculiar à educação pop-ular. Ela parte da noção que o primeiro pensamento de uma pessoa é sua percepção sobre o que vê e sente de um lugar ou uma situação. Somente depois, em contato com outros e suas percepções, vai formatando uma visão mais ampla. A teoria vem num momento seguinte. Portanto, no processo de aprendizagem e construção do conhecimento, primeiro vem a percepção do mundo ou de uma situação. Ali está uma mistura de sentimentos e de con-hecimentos pessoais, construídos na experiência de vida daquele que vê ou sente. A educação formal, das escolas e faculdades, raramente dá chance para a percepção do estudante fluir e dialogar com as teorias.

Na prática, a teoria imposta na leitura de livros e exercícios de fixação acaba aparecendo como a verdade incontestável, desumanizando sua origem. As-

Page 6: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

6

sim, as teorias de Newton parecem leis da natureza, quando foram produzi-das pela reflexão de seu autor. Sendo leis da natureza, aparecem para o es-tudante como irrefutáveis. E, aí, o estudante perde a capacidade crítica, ou seja, deixa de questionar a teoria e dificilmente será um criador. Terá mui-tas dificuldades para entender que a teoria quântica, muito mais adiante na história do desenvolvimento dos estudos de física, questionará vários princí-pios criados por Newton.

Afinal, se eram leis (e não teorias e conceitos criados por um ser humano para explicar a realidade) não poderiam ser questionadas.

Ao contrário, se iniciamos um estudo pela percepção dos estudantes, valori-zamos seu conhecimento e sua experiência pessoal. E se confrontamos esta percepção com a de outros, criamos um clima de diálogo e “estranhamento”, já que muito provavelmente a percepção de um sobre algum tema não coin-cidirá totalmente com a de outro. E aí nascerá um problema, um debate. A construção do conhecimento se torna coletiva, num processo de reflexão e reavaliação das certezas. Quando pensamos sobre o que acreditamos e pen-samos, nos tornamos donos do que somos e pensamos. Esta é a base para a autonomia (auto = eu mesmo e norma = regra), outro conceito que vamos expor neste livreto.

Enfim, começamos com o conceito de fenomenologia e logo adiante apre-sentamos o de autonomia, encadeando um no outro, como fizemos nos pará-grafos anteriores. Antes, passamos pela relação educador/educando porque é nesta relação que nasce um processo de construção de autonomias na sala de aula. E assim vai.

Os conceitos apresentados nessa segunda parte podem ser lidos sepa-radamente. Mas se forem encadeados, criam um conjunto que dá suporte à educação popular no Brasil. Caso você queira ler mais conceitos ou se apro-fundar, indicamos ao final uma bibliografia. Mas já adiantamos, de cara, uma sugestão. Trata-se do Dicionário Paulo Freire, organizado por Danilo Streck, Euclides Redin e Jaime Zirkoski, publicado pela Editora Autêntica, de Belo Hor-izonte, em 2010.

Após esse percurso reflexivo, finalmente, apresentamos alguns instrumen-tos e metodologias básicas de organização de cursos a partir dos princípios da Educação Popular. O objetivo não é esgotar o tema, extremamente amplo e objeto de muitas publicações de organizações não-governamentais (FASE, IBASE, EQUIP, CEPIS, para citar as mais conhecidas). A intenção em si é indicar a lógica dos instrumentos mais empregados na execução de cursos e ativi-dades de formação popular. O texto é breve e dividido em três partes partes.

Page 7: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

7

A primeira faz uma breve apresentação da justificativa do projeto criação de uma Escola da Cidadania, o que amarra o percurso histórico, os conceitos e a utilização de metodologias e instrumentos de formação popular. A segunda parte indica os passos para planejamento de um curso. A terceira trabalha com alguns instrumentos pedagógicos, a saber, Grupos; Aula expositiva; Aula dialogada; Debates; Oficinas. Para fechar nosso material, Franciele Alves da Silva nos transporta para a vivência de um educador popular com um relato pessoal sobre a experiência de um dos projetos da Escola da Cidadania que foi desenvolvido pelo Instituto Cultiva no município de Maringá, no Paraná. De educanda a educadora, Franciele propõe uma reflexão que nos mergulha nos desafios entre a teoria e a prática.

Equipe do Instituto Cultiva

Page 8: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo
Page 9: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

9

História da Educação Popular

Page 10: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

10

Uma retrospectiva histórico-política da Educação Popular

O final da década de 1940 foi um período em que questões relacionadas à Educação de base começam a aparecer no país, pois “[...] até a Segunda Guerra Mundial, a Educação popular era concebida como a extensão da edu-cação formal para todos, sobretudo para os habitantes das periferias urbanas e zonas rurais” (VALE, 1992, p. 7). A educação de base era entendida como o processo educativo destinado a proporcionar a cada indivíduo os instrumen-tos indispensáveis ao domínio da cultura de seu tempo, em técnicas que facili-tassem o acesso a essa cultura 5 como a leitura, a escrita, a aritmética elemen-tar, noções de ciências, de vida social, de civismo, de higiene e com as quais, segundo suas capacidades, cada homem pudesse desenvolver-se e procurar melhor ajustamento social (BEISIEGEL, 1989, p. 14).

O final da II Guerra Mundial trouxe para o mundo a vitória dos ideais democráticos. Essa conjuntura internacional interferiu nas mobilizações na-cionais da época que acabaram dando ênfase ao movimento pela educação das massas. Na medida em que se buscava o progresso social e econômico da nação, tornava-se necessário pensar em uma política de Educação de base, na qual, além da alfabetização, a população tivesse acesso a um ajustamento social, ou seja, buscava-se a adaptação dos desfavorecidos ao mundo mod-erno. A atenção principal voltava-se para o homem do campo, que até então só conhecia uma experiência basicamente rural. Acreditava-se que era preciso que ele tivesse acesso a noções de leitura, escrita, convivência social e até mesmo de higiene, para poder conviver com as exigências da vida moderna, tornando-se, assim, mais apto para a produção e até mesmo para a defesa da nação. Naquele momento viveu-se no Brasil, formal e constitucionalmente, uma democracia.

Na década de 1950, alguns educadores iniciaram um debate acerca da Edu-cação de Jovens e Adultos (EJA), questionando se ela era apenas uma trans-missora de conteúdos ou uma possibilidade de difusão de ideias. Eles começar-am a se preocupar com o enfoque de seu trabalho, não querendo mais que este fosse apenas um transmissor de programas pré estabelecidos. Para esses educadores, uma Educação destinada às camadas populares não poderia ficar presa somente à transmissão de conteúdos; pensava-se na formação de pes-soas críticas, conscientes. Segundo Paiva (1987), no final da década de 1950, ocorreu o II Congresso Nacional de Educação de Adultos, em que educadores manifestaram diferentes posições relacionadas à nova perspectiva educacion-al. Dentre essas concepções, encontramos o pensamento de Paulo Freire, o qual atrai vários adeptos, como: educadores, intelectuais, estudantes, líderes

Page 11: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

11

comunitários de todo o país, em prol de uma Educação popular que “[...] pre-conizava a alfabetização e a conscientização de todos” (BEISIEGEL, 1989, p. 15).

Paulo Freire, juntamente com outros educadores, sugeriu a revisão dos transplantes que agiram sobre o nosso sistema educativo, a organização de cursos que correspondessem à realidade existencial dos alunos, o desenvolvi-mento de um trabalho educativo com o Homem e não para o Homem, a cri-ação de um grupo de estudo e de ação dentro do espírito de autogoverno, o desenvolvimento de uma mentalidade nova no educador, que deveria passar a sentir-se participante do trabalho de soerguimento do país; e, finalmente, a renovação dos métodos e processos educativos com a rejeição daqueles exclusivamente auditivos, substituindo o discurso pela discussão e utilizando as modernas técnicas de educação de grupos com a ajuda de recursos audio-visuais. (PAIVA, 1987, p. 210)

Esse período foi marcado por mobilizações em favor da Educação popular. Nele se iniciou uma luta para que se mudasse a visão preconceituosa que se tem sobre o analfabeto, como um ser incapaz, deficiente. À frente desse mov-imento, encontramos marxistas e cristãos. Pode-se afirmar que esse processo vai se afunilando principalmente na luta contra o preconceito ao analfabeto, juntamente com a luta pelo seu direito ao voto. Ocorre também a difusão dos ideais de Paulo Freire, que começa a perguntar: “A serviço de quem educa-mos? Para quem educamos? O que ensinamos? Como ensinamos?”.

“Essa experiência de alfabetização, a partir dos princípios da educação para a liberdade, procurava superar a educação domesticadora, ou

Educação bancária”

Para Freire, a Educação não poderia ser vista apenas como ferramenta para a transmissão de conhecimentos e reprodução das relações de poder instituí-das no capitalismo, como acontecia na Educação bancária (cf. FREIRE, 1987), mas, sim, como uma ação capaz de libertação e emancipação das pessoas. “Uma prática cultural libertadora deveria envolver um trabalho intelectual de reelaboração dos elementos ideológicos da tradição de um povo” (BRANDÃO, 2008, p. 28).

Na primeira metade dos anos 1960, os movimentos voltaram-se à promoção da cultura popular, questionando-se não apenas sobre a “[...] forma ingênua e folclórica” (FÁVERO, 1983) como se pensava a cultura do povo brasileiro, mas também, e principalmente, sobre os usos políticos de dominação e alienação da consciência das classes populares.

Page 12: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

12

Começaram a brotar, no Brasil, movimentos voltados para a promoção da cultura popular, dos quais Freire participou. Juntamente com outras pessoas, fundou e participou do Movimento de Cultura Popular de Recife (MCP). Esse movimento tinha a intenção de levar a todas as pessoas a cultura produzida pelo povo. O MCP pretendia trabalhar com educação e cultura popular. Mais do que levar a cultura, pretendiam resgatar, nas pessoas, o seu potencial cria-dor. Reafirmavam, na prática, que todo ser humano produz cultura na sua relação com o outro e com o mundo.

A liberdade de expressão, característica dos últimos anos do governo Ku-bitschek, e a efervescência política dos primeiros anos da década de 1960 con-tribuíram para que estudantes, intelectuais, educadores e políticos se preocu-passem com a promoção das massas e o processo de tomada de consciência.

Este movimento reuniu professores e artistas. Ele não existia só nas esco-las e nem era um trabalho só da educação. “As pessoas que faziam o MCP queriam que tudo o que é bom, e está nas palavras, nas cantigas, e nas idéias que as pessoas criam, fosse levado para a gente pobre também”. (BRANDÃO, 2001, p. 35)

Nesse mesmo período, Freire desenvolveu uma experiência em alfabeti-zação de adultos “na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962” (CALDART &KOLLING, 2001, p. 9):

Esse processo não surgiu do nada, ele vinha sendo gestado há certo tempo. Há mais de 15 anos vínhamos acumulando experiências no campo da educação de adultos, em áreas proletárias e subproletárias, urbanas e rurais. [...] Sempre confiávamos no povo. Sempre rejeitávamos fórmulas doadas. Sempre acreditávamos que tínhamos algo a permutar com ele, nunca exclusivamente a oferecer-lhe. Experimentamos métodos, técnicas, processos de comunicação. Superamos procedimentos. Nunca, porém, abandonamos a convicção que sempre tivemos de que só nas bases populares, e com elas, poderemos realizar algo sério e autêntico para elas. (FREIRE, 1982a, p. 102)

Preocupado com o papel político da Educação e temendo que o trabalho com jovens e adultos se transformasse em um processo de invasão cultural, Freire propôs uma educação para a liberdade (cf. FREIRE, 1974), pois defendia a reflexão, o debate em torno do potencial criador dos educadores, das edu-cadoras, bem como dos educandos e das educandas.

Page 13: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

13

Nessa educação para a liberdade, a partir da participação no círculo de cultu-ra1, os homens e as mulheres se redescobririam como produtores de cultura, compreenderiam a relação do ser humano com a natureza e a possibilidade de transformarem o mundo por seu potencial criador. Perceberiam que a Edu-cação não é algo distante da vida, mas, sim, a possibilidade de recriá-la e, assim, vivê-la melhor. Freire propunha a conscientização, não a transmissão ou memorização. Essa experiência de alfabetização, a partir dos princípios da educação para a liberdade, procurava superar a educação domesticadora, ou Educação bancária como assim denominou. Para Freire, a Educação popu-lar seria um espaço em que o homem ultrapassaria sua situação de homem-objeto a homem sujeito-histórico transformador. O que se pretendia era a construção de um projeto político que possibilitasse superar a dominação do capital sobre o trabalho e, assim, reformular a forma de organização da socie-dade.

Diversos grupos lançam-se ao campo da atuação educativa com objetivos políticos claros e mesmo convergentes, embora cada um deles enfocasse o problema à sua maneira e mesmo lutassem entre si. Pretendiam a trans-formação das estruturas sociais, econômicas e políticas do país, sua recom-posição fora dos supostos da ordem vigente; buscavam criar a oportunidade de construção de uma sociedade mais justa e mais humana. Além disso, forte-mente influenciados pelo nacionalismo, pretendiam o rompimento dos laços de dependência do país com o exterior e a valorização da cultura autentica-mente nacional, a cultura do povo. (PAIVA, 1987, p. 230). Havia uma relação direta entre o método e objetivos da educação freireana e a crítica ao neoco-lonialismo (cultural e mesmo político e global, como ocorria na África). Uma desconfiança baseado na leitura externa sobre uma realidade pouco com-preendida. Em outras palavras, até que ponto, falar sobre uma cultura distinta pode acertar efetivamente? Até que ponto um observador externo consegue efetivamente interpretar as motivações que levam um agrupamento social a se comportar de certa maneira? E, até que ponto, valores vindos de fora da experiência concreta de uma determinada população não rompem com a lógica societária daquele agrupamento, aculturando e desfigurando sua origi-nalidade, sua identidade única?

Esses grupos buscavam uma forma de trabalho que contribuísse para a mo-bilização e participação popular. Paiva também afirma que grupos cristãos,

1 O Círculo de Cultura substituía as fileiras em sequência de uma sala de aula, tendo o professor à frente. Todos inseridos nesse processo educativo formavam a figura geométrica do círculo, acompanhado por uma equipe de trabalho que ajuda a discussão de um tema da cultura, da sociedade e da vivência dos educandos. O objetivo era criar a relação horizontal, onde todos se olham e se vêem. Faz-se a leitura do mundo – as suas normas, as suas concretudes e os seus afetos. E todos juntos aprenderão, de fase em fase, de palavra em palavra, de linguagens em linguagens que aquilo que constroem pelo trabalho é uma outra maneira de fazer cultura. Cf. Incubadora de Empreendimentos Solidários – INUBES, UFBP, João Pessoa. Disponível em www.uel.br/projetos/intes/antigo/downloads/circulo_cultura.doc (visualizado em 29/01/2014).

Page 14: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

14

influenciados pela nova doutrina social da Igreja, sustentavam esse trabalho com enfoque político-social transformador. Estávamos nos anos 1960.

Mas a conjuntura do país começava a dar sinais de fechamento. Os militares, que já vinham se articulando politicamente, com raízes vinculadas aos inter-esses econômicos internos e externos, com respaldos sociais expressivos e comprometidos com o capital estrangeiro, começam a ameaçar o governo com a possibilidade de golpe. Em 1 de abril de 1964, instalase no país o Regime Militar. Conforme Pereira (2008), a instauração da ditadura militar em 1964 e seu aprofundamento em 1968, culminado com o Ato Institucional n° 5 (AI-5), leva ao distanciamento total da população do poder, inibindo qualquer tipo de participação popular nele. O AI-5 impôs restrições políticas severas à par-ticipação social, limitando-a ao voto em algumas periódicas eleições. Nelas, eram eleitos vereadores e prefeitos de cidades que não fossem capitais ou que não tivessem algum interesse estratégico (como portos, por exemplo, considerados como “área de segurança nacional”), além de deputados estad-uais, deputados federais e senadores. E assim permaneceu até 1977, quando o povo passa a eleger dois terços do Senado, mas sendo a parte restante forma-da por senadores que não eram eleitos diretamente, denominados de “sena-dores biônicos”. Além disso, os governadores e o Presidente da República eram eleitos indiretamente.

A ampliação e intensa mobilização dos programas de Educação popular passam a ser ameaçadores pela nova ordem vigente. Para os militares, as id-eias que vinham sendo difundidas nos grupos de cultura e Educação popu-lar poderiam tornar o processo político incontrolável; por isso rotularam de subversivos os que estavam engajados nessas formas de atuação política. A repressão violenta atingiu todos os movimentos dos trabalhadores compro-metidos com as causas populares. Intervenções militares aconteceram nos sindicatos e nas universidades, visando à desarticulação e à desmobilização popular. Logo após o golpe militar, iniciou-se o processo de desaparecimento dos grupos de Educação popular.

Com objetivos políticos de substituição dos movimentos de Educação popu-lar, em 1967, o governo militar cria o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). O Mobral fazia restrições claras à concepção político-filosófica de Paulo Freire. Esse movimento estimulava o individualismo e a adaptação à vida moderna, enfatizando a responsabilidade pessoal pelo êxito ou fracasso e tentando afastar a possibilidade de resistência ao modelo instalado.

A Educação Popular foi um desses movimentos que se refugiaram em Or-ganizações Nãogovernamentais (ONGs)ou mesmo em trabalhos desenvolvi-dos pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Page 15: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

15

Não é pura coincidência que a crise da ditadura militar, vivenciada no final dos anos 1970, coincidiu com a ascensão dos movimentos sociais no Brasil.Durante essa década, outras formas de manifestar oposição ao regime foram surgindo. Surgiram movimentos contra o custo de vida, movimentos pela an-istia, pela democracia e abertura política. Os movimentos populares ganhar-am corpo, retornaram as greves e manifestações políticas e se espalharam pelo Brasil.

Matrizes vão dar origem ao movimento social na década de 70, a Igreja Católica, os remanescentes das organizações de esquerda e o novo sindical-ismo. [...] a prática social da militância das pastorais e comunidades e a “Edu-cação Popular” por ela desenvolvida era o paradigma do período, influencian-do e acolhendo os militantes dispersos que só aí encontravam possibilidades de contato e trabalho político com setores populares. (PEREIRA, 2006, p. 31)

Os anos da década de 1980 do século XX, conhecida como a “década per-dida” pelas perdas econômicas dos países da América Latina, foram para-doxalmente aqueles em que no Brasil se viveu um período de enorme cresci-mento da organização popular e de suas experiências de participação política na sociedade. Segundo Saviani (1995), podemos afirmar que sob o ponto de vista da organização do campo educacional, a década de 80 é uma das mais fecundas de nossa história, pois a mobilização desses anos orientou-se pela bandeira de transformar a Educação e a escola em instrumentos de reapropri-ação do saber por parte dos trabalhadores; saber este que viria, mais tarde, a contribuir para uma maior participação na sociedade.

Esse novo momento de ascensão das forças populares, que se iniciou como período histórico em 1978, com a greve da Scania (empresa/fábrica), perdura até o processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, em 1992.

Nesses anos, o país viu nascer e desenvolver o mais forte movimento de organização e participação popular de sua história, que nem mesmo a crise resultante da implantação do neoliberalismo, levado a cabo no governo Fer-nando Henrique Cardoso, conseguiu desmontar. Foi justamente nessa década não perdida, período histórico que compreende os anos de 1978 a 1992, que vimos nascer o Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1985.

Juntamente com a mobilização popular, a abertura política vai ganhando corpo. Nosso país começa a mudar “sua cara”. No campo da Educação “[...] a década de 80 se inicia com a construção de entidades destinadas a congregar

Page 16: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

16

educadores e de associações de caráter sindical que vão se aglutinando em âmbito nacional” (SAVIANI, 1995, p. 52).

As organizações dos educadores caracterizam-se pela preocupação com o significado político e social da Educação, além do aspecto econômico-corpo-rativo. Em 1982 aconteceu a primeira eleição direta para governadores de Es-tado desde 1965, após lutas por redemocratização do país. Infelizmente, “[...] não por acaso, os governos civis desse período, que sucedem a ditadura mili-tar, cada qual no seu estilo, também tentam destruir as bases fundamentais desse processo de organização da sociedade” (ALENCAR, 1987, p. 20).

Com o processo de democratização, novas manifestações encheram as praças e ruas do Brasil. Em 1984, a luta pelas “Diretas” foi o maior movimento de massas que o Brasil já viveu. Outra grande mobilização popular foi em def-esa da Assembleia Nacional Constituinte, que resultou, em 1988, na nova Con-stituição Nacional, conhecida como “constituição cidadã”, por trazer em seu bojo algumas conquistas da classe trabalhadora, dentre elas, o direito ao voto do analfabeto e a obrigatoriedade, juntamente com a gratuidade do ensino fundamental, independente da idade de quem o procure.

A definição da noção de cidadania, empreendida pelos movimentos sociais e por outros setores sociais na década de 1980, aponta na direção de uma so-ciedade mais igualitária em todos os seus níveis, baseada no reconhecimento dos seus membros como sujeitos portadores de direitos, inclusive aquele de participar efetivamente da gestão da sociedade. (DAGNINO, 2002, p. 10)

Educação Popular e Alfabetização de Adultos

Em função de Paulo Freire ter se dedicado à alfabetização de adultos, este tema se cruza, inevitavelmente, com o da educação popular. Mas as trajetóri-as nem sempre foram coincidentes.

Por volta dos mesmos anos em que se travam os combates nacionais pela escola pública, surgem em alguns pontos do país as primeiras iniciativas em favor da “erradicação do analfabetismo”. Algumas são francamente civis, out-ras, assumidas por governos estaduais. Houve propósitos até mesmo de pro-gramas nacionais de alfabetização das populações não suficientemente es-colarizadas. Os títulos dados às agências de alfabetização gratuita traduzem, juntos, uma característica de trabalho emergente, urgente e mobilizado: “Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo”, “Cruzada Nacional de Educação”, “Bandeira Paulista de Alfabetização”, “Campanha Nacional de Educação de Adultos” (já em 1947). Mais tarde: “Cruzada ABC”, “Movimento

Page 17: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

17

de Educação de Base” e, hoje, “Movimento Brasileiro de Alfabetização”. Cam-panhas e movimentos cuja simbologia não raro oscilavam entre o espírito da missão religiosa e a ordem rotineira do quartel.

Tanto a questão da escola pública quanto a da erradicação do analfabetismo foram iniciativas de pessoas eruditas, educadores, políticos e intelectuais de gravata. Pode-se dizer que, depois do trabalho religioso das missões coloniais e após a disseminação de escolas católicas — mais tarde, algumas protes-tantes — pelo país, aquelas foram as duas ocasiões em que, pela primeira vez, o poder de Estado e segmentos da sociedade civil estiveram empenhados no que hoje costumamos chamar: educação dos setores populares.

Apenas nos últimos anos, aqui e ali emerge um interesse pelo conhecimento do que foram as primeiras iniciativas de uma educação popular sob o controle de agências pedagógicas das próprias classes populares. Alguns rumos toma-dos entre nós, hoje em dia, pela educação popular poderão servir a explicar o porquê disto.

A luta pela escola pública, as sucessivas campanhas pela erradicação do analfabetismo e as experiências de educação de classe entre operários são repertórios de idéias, de propostas e de práticas originadas e conduzidas por movimentos de educação, ou então por setores de movimentos sociais e/ou políticos dedicados à educação, durante as três ou quatro primeiras décadas do século XX.

Apenas alguns anos mais tarde surge em cena um sistema de educação espe-cial dedicados a alunos adultos, que aproveita experiências anteriores, sobr-etudo no campo da alfabetização, que busca ampliar a duração e a dimensão do trabalho pedagógico e que, finalmente, pouco a pouco, associa a educação de adultos — cujo nome então se consagra — a processos locais ou region-ais de desenvolvimento. Patrocinada internacionalmente pela UNESCO e, com variações não muito significativas, adotada no continente por governos que vão de frágeisdemocracias temporárias a regimes autoritários de extrema violência, a educação de adultos traz para o domínio do trabalho escolar a racionalidade de uma época de pós-guerra que descobre o “Terceiro Mundo” e inventa o “desenvolvimento” como a sua solução.

Conferências internacionais realizadas desde a década de 1940 têm sido con-sideradas como marcos da revisão dos programas nacionais e/ou regionais de educação de adultos. Alguns investigadores reconhecem no extensionismo agrícola, na educação agrícola, nas experiências — onde invariavelmente a orquestração dos relatórios oculta sucessões de fracassos reais — de desen-volvimento de comunidades, de educação fundamental e de alfabetização

Page 18: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

18

funcional as práticas de origem ou de desdobramento da educação de adul-tos.

Na realidade, com mais ênfase em um período que se inicia em meados dos anos 1950, diferentes tipos de “trabalhos com comunidades subdesen-volvidas” são postos em marcha. Algumas vinculadas na simples intenção de tecnificar a produção rural ou criar um mercado consumidor para produtos industriais. Outros, para aumentar a produtividade e criar uma classe média poderosa em nosso país. Outros, ainda, para instalar relações de trabalho e competitividade modernas.

Há, contudo, os que se origentaram pela superação da marginalidade so-cial. As teorias da marginalidade social estavam então em plena voga. Sujeitos pedagogicamente defasados (sem escola, ou com insuficiência de ensino es-colar) e socialmente marginalizados (pobres, subempregados, desnutridos e, mais do tudo, postos conseqüentemente “à margem” dos processos sociais de “desenvolvimento” e “modernização”) seriam reintegrados a uma vida so-cial, ao mesmo tempo digna e produtiva. Se, de um lado, a educação de adul-tos e o desenvolvimento de comunidades marginalizadas eram um direito e um benefício social, de outro lado eram também um investimento, porquanto pretendiam ser processos sistemáticos e meios participativos de integração de contingentes de pessoas e grupos postos “à margem”, no interior do mer-cado de trabalho, no pleno exercício da cidadania e no desenvolvimento da sociedade.

Durante um período de cerca de 20 anos, do mesmo modo como aconte-ceu em outros domínios de trabalhos sociais com os setores populares, a educação de adultos passou de uma ênfase na integração de indivíduos na sociedade para outra, cujo objetivo era atuar sobre grupos e comunidades que, educados, organizados e motivados, assumissem, em seu nível, “o seu papel no processo de desenvolvimento”. Mais tarde uma proposta ingênua de “desenvolvimento local” através de um somatório de melhorias nos locais de indicadores de qualidade de vida (educação, saúde, alimentação, trabalho, habitação e lazer), tendeu a incorporar a proposta de formas moderadas de participação popular em processos de transformação social para o desen-volvimento. De modo muito simplificado, seria possível dizer que a ênfase passou do indivíduo educado “para a vida social” à educação do sujeito para o desenvolvimento da comunidade e, daí, à educação da comunidade através dos seus indivíduos.

Pierre Furter, um educador europeu que viveu vários anos no Brasil, esta-belece as seguintes etapas entre os modelos oficiais de educação especial “dirigida aos setores populares”: 1) luta contra o analfabetismo; 2) recuper-

Page 19: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

19

ação de carências escolares como uma extensão da alfabetização simples à alfabetização funcional; 3) promoção comunitária da vida social e cultural; 4) formação política para o exercício da cidadania; 5) aperfeiçoamento profis-sional da força de trabalho; 6) integração da educação em processos de de-senvolvimento social e cultural (Pierre Furter, Educação Permanente e Desen-volvimento Cultural, pp. 177- 198).

Algumas questões fundamentais devem encerrar este entreato que nos deixa entre os modelos antecedentes de educação com/das classes populares e a educação popular, no seu sentido mais atual. Primeira, mesmo no interior de organismos oficiais, e mesmo durante períodos de exercício autoritário do poder, aqui e ali experiências e projetos efêmeros de educação de adultos aproximaram propostas e vocações de prática àquilo que, em outras esferas, em outros lugares, procuravam-se concretizar como uma educação popular.

Segunda, tal como foi concebida e realizada, a educação de adultos teve sempre um limite: o de ser uma expressão apenas compensatória da extensão do saber escolar a populações carentes.

Uma longa citação de um documento da SUDENE, preparatório para um en-contro entre educadores no Recife, em 1967 (o AI-5 viria no ano seguinte), é um bom exemplo do primeiro ponto:

Quando a educação é repensada em termos de desenvolvimento, é indispensável que se leve em conta a grande massa de marginalizados. É necessário que essa parte da população seja motivada para que, de modo consciente, integre, participe e assuma o processo de mudança, uma vez que esse mundo adulto é detentor de capacidade de decisão, de esforço de trabalho e pensamento, não solicitados na medida de suas potencialidades. A Educação de Adultos deve ser formadora de quadros humanos capazes de críticas e de livremente assumirem a responsabilidade da situação e construírem a nova realidade que se desenvolva. Sendo o processo educativo algo dinâmico e integralizador, não se pode pensar a Educação de Adultos em termos de escolaridade, mas em termos de dinamização das comunidades e integração de todas as atividades com abertura para as mudanças necessárias de um país em desenvolvimento. O papel da educação é o de propor elementos para que o homem, ao invés de subordinar-se, seja estimulado a ingressar nesse mundo inovado, redefinindo-o e aos seus papéis; criticando não apenas os seus valores, mas também, os novos valores introduzidos. Caberia, assim, à Educação de Adultos, estar atenta à resposta peculiar de cada comunidade ou subcultura que poderá representar uma solução válida de âmbito local, regional ou mais ampla. Só assim se realizariam novas sínteses, evitando o comportamento massificado.” (SUDENE; Diretrizes para o Programa de Educação de Adultos, pp. 2-10).

Page 20: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

20

A meio caminho entre “campanhas de erradicação do analfabetismo”, al-gumas delas recriadas recentemente como formas renovadas de educação não-formal; entre experiências agenciadas de formação de mão-de-obra para o trabalho subalterno em meio urbano ou rural; e entre a necessidade da in-strumentalização de agentes locais de desenvolvimento, a educação de adul-tos não realizou mais do que uma ampliação integradora e modernizante de experiências anteriores. Ao ser apresentada como um modelo de síntese para todo o trabalho educativo com as classes populares, ela fez por desconhecer as iniciativas anteriores de educação de classe. Por outro lado, atualizou sis-temas de organização burocrática e estratégias de trabalho pedagógico das campanhas pioneiras de alfabetização.

Trabalhos de educadores criativos e militantes, surgidos em uma fração da história como movimentos de contestação a uma educação institucionalizada, e de proposta de novas formas de trabalho pedagógico, ou de trabalho social e político através da educação, tendem muitas vezes a ser posteriormente incorporados às próprias instituições frente a ou contra as quais emergiram um dia.

Como uma prática profissional cuja racionalidade modernizante (nunca se falou tanto em “projetos”, “programas”, “planejamentos”, “rentabilidade”, “adequação”) busca a eficácia pedagógica que realize metas de educação sem questionar o sentido político de sua própria realização, em muitos países e em vários momentos a educação de adultos realizou-se como um meio de controle da possibilidade de uma educação adulta, isto é: autônoma, crítica e criativa.

Ao institucionalizar e tornar oficiais agências, propostas, metodologias de trabalho e práticas pedagógicas como tipos específicos de educação, ofer-ecidos aos excluídos da escola, a educação de adultos se define como aquilo que, existindo entre sujeitos à margem do sistema escolar e regular da edu-cação, existe para suprimir emergencialmente carências de homens e mul-heres carentes do povo. Sujeitos, famílias, grupos e comunidades a quem a privação de condições de pleno acesso aos benefícios sociais regulares obriga a procura de agências especiais de serviços compensatórios, como o foram a Legião Brasileira de Assistência, a FEBEM e o MOBRAL.

Ao lidar com um menos social, a educação de adultos termina por converter-se em um sinal negativo daquilo que, por oposição a ela, é a educação. Excluí-dos da escola e defasados do saber escolar, na verdade que a retórica dos discursos oficiais oculta com cuidado, sujeitos das classes populares são para não serem educados regularmente.

Page 21: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

21

Não pode recuperá-los plenamente e fazê-los como os outros, os “que estudar-am”, O mesmo sistema que constitui na educação a estrutura da desigualdade, institui como uma educação especial a compensação dedicada àqueles a quem o sistema tornou carentes e, portanto, candidatos a uma educação corretiva. A um estágio tardio e apressado, que apenas re-socializa pessoas adultas não-escolari-zadas, de modo a convertê-las em cidadãos educados, no nível e segundo o estilo em que subalternos devem ser “educados”. A educação de adultos tem sido uma das práticas sociais onde com mais insistência o exercício do trabalho “junto ao povo” menos realiza objetivos teoricamente propostos. Compensatória e inefi-caz, ela não forma, não prepara e, muito menos, não transforma aqueles que, excluídos dos antes da escola, são excluídos, através da educação de adultos, de serem um dia educados. Ela não é precária e compensatória porque lhe faltam recursos: mas, porque precisa ser apenas precária e compensatória, vive de não ter recursos. Não nos iludamos, a sua falta é a sua suficiência.

“O que Paulo Freire tentava destacar é a íntima relação entre a politização do ato de ler e escrever. […] Sem a motivação, o aprendizado se

torna uma obrigação, uma imposição.”

Esta é uma entre outras razões pelas quais alguns educadores preferem recon-hecer, aí, a principal diferença entre dois modelos cuja oposição, enquanto pro-jeto histórico através do trabalho pedagógico, separa a educação de adultos da educação popular. A principal diferença está, em primeiro lugar, na origem de poder e no projeto político que submete a agência, o programa e a prática de um tipo específico de educação dirigida às classes populares. Está, em segundo lugar, no modo como um modelo de trabalho do educador se pensa a si mesmo como um projeto de educação, no sentido mais pleno que estas palavras podem receber.

Dos anos 1960 e década seguinte que, no Brasil, foi subordinada a um regime político autoritário, dois modelos de educação dirigidos preferencialmente às classes populares emergem como movimentos ativos de crítica a todo o sistema educativo vigente e, em especial, às formas derivadas da educação de adultos.

Enquanto, sobretudo através de amplos programas de vinculação governamen-tal, a educação de adultos desdobrava experiências compensatórias de reciclagem do saber escolar de adultos carentes, a educação popular e, depois, a educação permanente surgem como projetos de ressignificação política, social e pedagógi-ca de toda a educação. No caso anterior da educação popular, aos poucos tal projeto tende a definir-se como um trabalho pedagógico retotalizador de todo o sistema da educação desde o ponto de vista das classes populares e a serviço de

Page 22: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

22

seu trabalho simbólico e político de transformação da ordem social dominante. No caso da educação permanente que, à diferença da educação popular, é ainda um projeto europeu, a proposta de retotalização da educação parte de premissas de universalização dos direitos ao saber e de realização plena de todos os homens, através também da educação.

Comecemos por ela. Pierre Furter foi o principal difusor da educação permanente na América Latina. Viveu no Nordeste do Brasil ao tempo em que Paulo Freire e sua equipe da Universidade Federal de Pernambuco e, depois, do Movimento de Cultura Popular do Recife ensaiavam as primeiras idéias de uma educação liberta-dora. Em sua curta história no continente reconheceu três etapas sucessivas na educação permanente: 1) como processo contínuo de desenvolvimento individual; 2) como princípio gerador de um sistema global de educação; 3) como ampla e du-radoura estratégia cultural em um processo de desenvolvimento integral.

Notemos bem, é a passagem da 2ª para a 3ª etapa que a educação permanente pretende ressignificar, primeiro, a própria dimensão do lugar e do sentido da edu-cação na vida do sujeito e na vida a cultura. É na proposta da 3ª etapa que ela se propõe como ponto focal da criação de uma nova cultura.

“Permanente” não se opõe aqui à qualidade de emergência provisória das vari-antes da educação de adultos. Opõe-se a um projeto supletivo, à margem da edu-cação cuja estrutura cria a necessidade da prática compensatória da educação de adultos. Para ser permanente a educação precisa se constituir como um domínio o saber que, muito mais amplo do que a escola e o sistema escolar, acaba sendo o da própria cultura pensada como educação.

“A educação permanente não se limita à educação de adultos, mas ela compreende e unifica todas as etapas da educação pré-primária, primária, secundária etc. Ela se esforça, então, por considerar a educação na sua totalidade... A educação permanente compreende simultaneamente as modalidades formais e não-formais. Ela engloba a aprendizagem planificada bem como a acidental.” (Bertrand Schwartz, no livro de Moacyr Gadotti: L’Education contre l’Education, pp. 51-52).

Tal como foi proposta, muito mais como apenas um movimento pedagógico de intelectuais humanistas, nenhum programa de educação permanente realizou-se na América Latina. Provavelmente também não no Canadá, outro forte de inter-esse por ela, e nem na Europa. De um movimento que produziu apenas idéias, rest-aram princípios de realização utópica de uma educação humanista. Princípios que hoje em dia alguns programas de educação de adultos incorporaram como seus, como a idéia de um trabalho pedagógico contínuo, que permanentemente recicle o educando em um mundo em constante mudança, de tal modo que a educação

Page 23: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

23

se converta no principal agente cultural da adequação do sujeito ao seu ambiente. Uma primeira experiência de educação com as classes populares a que se deu su-cessivamente o nome de educação de base (no MEB, por exemplo), de educação libertadora, ou mais tarde de educação popular surge no Brasil no começo da dé-cada de 1960.

Surge como um movimento de educadores, que trazem, para o seu âmbito de trabalho profissional e militante, teorias e práticas do que então se chamou cultura popular, e se considerou como uma base simbólicoideológica de processos políti-cos de organização e mobilização de setores das classes populares, para uma luta de classes dirigida à transformação da ordem social, política, econômica e cultural vigentes.

Educação Popular nos tempos atuais

No final dos anos 1980 e início de 1990, Paulo Freire organizou uma longa con-versa com o também educador e militante norte-americano, Myles Horton. Em diversas passagens deste encontro, Freire discorre sobre a relação entre o saber cotidiano e a formação para a cidadania, a articulação original das concepções bra-sileiras de educação popular. Vejamos algumas dessas passagens2:

É interessante pensar constantemente sobre o clima político, o clima social, o clima cultural nos quais estamos trabalhando como educadores. Eu não creio em programas de alfabetização de adultos que sejam simplesmente organizados por alguns educadores em algum lugar e depois oferecidos para analfabetos em todo o país. Isso não funciona. Lembro que em 1975 houve uma reunião internacional, em Persépolis, patrocinada pela UNESCO, com o objetivo de analisar alguns relatórios preparados pela própria UNESCO, avaliações de programas de alfabetização de adultos no mundo inteiro. (...) Uma das conclusões que foi colocada no relatório final foi que os programas de alfabetização de adultos tinham sido eficientes nas sociedades em que o sofrimento e a mudança tinha criado motivação especial nas pessoas para ler e escrever. (...) As pessoas queriam e precisavam ler e escrever, justamente a fim de ter mais possibilidade de serem elas mesmas.

O que Paulo Freire tentava destacar é a íntima relação entre a politização do ato de ler e escrever. Em segundo lugar, sugeria que a motivação para aprender a ler e escrever, no caso de programas de alfabetização em massa, surge a partir de uma dada conjuntura política de mobilização e transformação social. Sem a moti-vação, o aprendizado se torna uma obrigação, uma imposição. Algo muito distinto dos programas de alfabetização onde o educando era objeto das intenções políti-cas, sendo capturado e apropriado pelo mundo letrado. Tom Zé, músico brasileiro,

Page 24: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

24

numa de suas entrevistas, dizia que quando leu, pela primeira vez, um texto, ainda pequeno, ficou quatro ou cinco dias sentado, na soleira da entrada de sua casa, pensativo. Nada tinha sido tão fantástico na sua vida, até então. Ele se perguntava se todos que leram aquelas letrinhas tinham entendido o mesmo que ele. E, então, percebeu que tudo o que ele achava do mundo estava errado, porque as letrinhas tinham um poder que ele nunca havia imaginado. Tinha o poder de comunicar sen-timentos, de unir os homens de lugares tão distantes. Tom Zé descobriu uma arma de integração, comunicação e poder. Sentiu, ao ler o texto, o mesmo que hoje sen-timos ao navegar na internet. Estamos no mundo, soltos, num poder não visível, mas compreendido. É este poder da alfabetização, esta compreensão política do seu poder, que Paulo Freire se referia3.

Mas esta “politização” necessária do alfabetizando possui uma peculiaridade. A alfabetização e o ensino não podem adotar como função a organização, mas ser um meio para este fim.

Nós podemos facilmente ver como a educação, implicando decisão política, nunca pode ser um ato de voluntarismo. (...) Como é possível para nós trabalhar em uma comunidade sem sentir o espírito da cultura que está lá há muitos anos, sem tentar entender a alma da cultura? Não podemos interferir nessa cultura. Sem entender a alma da cultura apenas invadimos essa cultura. Meu respeito pela alma da cultura não me impede de tentar, com as pessoas, a mudar algumas condições que, a meu ver, são obviamente contra a beleza de ser humano. (...) Minha pergunta é a seguinte: é possível que eu, com relação à minha compreensão de mundo – porque respeito a tradição cultural dessa comunidade – é possível que eu passe toda a minha vida sem nunca tocar nesse assunto? Sem nunca criticá-los só porque eu respeito sua cultura tradicional? Não, eu não faço isso. (...) Eu insisto: uma coisa é respeitar; a outra é manter e encorajar alguma coisa que não tem nada a ver com a visão do educador. (...) Não posso começar no dia que chego. Não posso fazer isso. Então a questão não é estratégica, é tática. Estrategicamente eu sou contra ela. Estou a favor da luta das mulheres. Taticamente posso ficar quieto sobre o assunto seis meses, mas na primeira ocasião que tiver, devo colocar a questão na mesa, embora nos deixe a todos desconfortáveis. (...)

Esta passagem da fala de Paulo Freire expressa o papel político do educador que se posiciona numa relação entre cidadãos (no caso, educador e educan-do). Percebe-se a tensão permanente que esta relação provoca, mesmo na fala de Freire. O educador entende a cultura da comunidade e a respeita, mes-

2Este encontro foi registrado em livro, publicado em 2003. Ver FREIRE, Paulo & HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social Petrópolis: Vozes, 2003.

Page 25: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

25

mo que não aceitando seus valores e práticas, porque se posiciona como igual e não como possuidor de cultura superior. Mas, como cidadão, posiciona-se assim que ganhar o respeito e confiança da comunidade em que atua. Por que se silencia até ganhar a confiança da comunidade? Por uma questão tática, como diz Freire. Aqui explicita-se com nitidez a tensão política-educação lib-ertadora. O educador encontra-se no fio da navalha justamente porque a sua sensibilidade e leitura da realidade e das relações que estabelece com a co-munidade orientam os passos que, como educador, define para expressar sua crítica às práticas sociais que o incomodam. O cuidado tático não é um mero subterfúgio para convencer à mudança, mas, na concepção freireana, para estabelecer um diálogo entre cidadãos iguais. Não é a crítica de um superior, mas o contraponto à realidade e valores da comunidade. Daí porque Paulo Freire afirmar, em dado momento, que o papel do educador é possibilitar os alunos a serem eles mesmos. Ao questionar como igual, o educador exige um posicionamento do educando, revela possíveis contradições, exige posiciona-mento frente à tradição.

Esta leitura peculiar do papel da educação popular se espraiou por organi-zações populares, de assessoria à comunidades pobres, nas organizações confessionais mais progressistas (entre elas, a Igreja Católica e a Metodista), em segmentos do movimento sindical e alguns movimentos sociais. Esta ten-são educacional foi constitutiva, inclusive, de certa crise de identidade de di-versas pastorais sociais e organizações de apoio e assessoria a movimentos sociais quando, em meados dos anos 1980, vários movimentos consolidaram suas próprias organizações. De movimento, passaram a organizações. A ten-são provocada pelos educadores críticos havia gerado sujeitos políticos in-stitucionalizados. E, então, qual passaria a ser o papel da educação popular no Brasil?

Os casos mais evidentes ocorreram no campo sindical e no movimento de luta pela terra. Centrais Sindicais e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) constituíram, ao longo dos anos 1980, sólidas estruturas educa-cionais, com concepções e estruturas curriculares próprias.

Assim, a crise de identidade de tantas organizações que se dedicaram exclu-sivamente, da segunda metade dos anos 1970 até o final dos 1980, à educação popular, exigiu um novo posicionamento na última década do século XX. Esta atualização, como afirmamos, foi ainda mais complexa em virtude da transfor-mação dos movimentos sociais dos anos 1980. Uma transformação gerada por

3Passados tantos anos, este poder ainda não se disseminou na sociedade brasileira. No final de 2003 (8 de setembro), o IBOPE divulgou pesquisa realizada para o Instituto Paulo Montenegro, onde revela que 8% da população brasileira, entre 15 e 64 anos de idade, é analfabeta. O mais grave, contudo, é que outros 31% localizam informações simples apenas em um frase, não conseguindo o mesmo quando lêem um parágrafo; outros 37% conseguem localizar informações em textos curtos. Apenas 25% conseguem localizar e interpretar textos, comparando textos distintos. Nesta faixa etária, portanto, 75% dos brasileiros são analfabetos funcionais.

Page 26: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

26

sua institucionalização. Muitos autores sustentam que o processo de institu-cionalização dos movimentos sociais acabou por debelar suas características fundamentais. De movimento social à organização estável houve uma forte mudança, impelindo a muitos militantes sociais a sustentar a estruturação e manutenção da própria organização. Em alguns casos, a organização teria se tornado um fim.

Se tal fenômeno se consolidou efetivamente, poderíamos aventar a hipó-tese, como conseqüência, de uma profunda mudança nos conceitos do que se denominava educação popular. Sua identidade fundacional, libertária, mar-cada pela tensão entre educador e educando, teria, então, se alterado?

Para responder tal questão, comecemos recapitulando os principais elemen-tos constitutivos da educação popular brasileira até meados dos anos 80.

São os elementos centrais:

a) Processo educacional de caráter emancipatório. Neste caso, a emanci-pação social possui um movimento específico. Enquanto metodologia edu-cacional respeita o educando como cidadão, possuidor de saberes e valores legítimos. Do ponto de vista político, o processo educacional objetiva esta-belecer um processo de constituição de sujeitos coletivos autônomos. A função educacional libertadora é organizativa, pautando-se pelo respeito e promoção à cultura e valores locais, da comunidade envolvida no processo educacional;

b) Processo educacional como meio. Toda estrutura educacional (currículo e educadores, inclusive) estaria voltada para a constituição de sujeitos co-letivos. Seriam estruturas mediadoras, motivadoras da organização popular, voltadas para o fomento da leitura crítica da realidade dos educandos. Assim, as estruturas da educação popular não eram autoreferentes, se aproximando das características de movimento social e se distanciando da lógica das or-ganizações. A única possível exceção era a formulação metodológica. Este tema motivava encontros e seminários constantes, de troca de experiências e aprofundamento conceitual. A tensão educador/educando era um tema re-corrente. Alguns textos de apoio que circulavam à época, como o produzido por Ranulfo Peloso, destacavam o necessário desprendimento do educador em relação à sua residência. Afirmava-se que o educador deveria saber que seu destino era a organização popular constante. Quando a organização so-cial florescia em determinada região, era chegada a hora do educador partir para outras regiões, semeando a auto-organização popular, numa declarada atitude missionária;

Page 27: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

27

c) Cultura anti-institucional. A educação popular possuía uma natureza co-munitária. O ideário confessional, que orientava grande parte das experiên-cias que se disseminaram pelo país entre a década de 70 e 80, contribuíram sobremaneira para o fortalecimento desta característica. Assim, na medida em que algumas estruturas educacionais se institucionalizavam (escolas pa-roquiais ou comunitárias, escolas sindicais e outras), passavam a ser dirigidas por instâncias gerenciais comunitárias. Criava-se, assim, ainda que instintiva-mente, sistemas educacionais paralelos aos formais, oficiais. Obviamente que esta situação ganhava contornos políticos a partir do conceito de autonomia política, francamente difundido nessas experiências à época;

d) Pedagogia do Oprimido. Tanto os conceitos articuladores, quanto a me-todologia educacional empregada orientavam-se por uma peculiar leitura dos conflitos entre as classes sociais e se posicionavam à favor das classes oprimi-das. Daí o respeito à cultura das comunidades oprimidas e a postura grada-tivamente crítica do educador que deveria questionar os elementos “não-humanistas ou opressivos” desta cultura. A tensão educadoreducando era similar à tensão sujeito-objeto que as metodologias de pesquisa participante ou pesquisa-ação provocavam no mesmo período. Aqui, grande parte das for-mulações metodológicas foram caudatárias das teorias de Paulo Freire. Tomaz Tadeu da Silva sugere que o marxismo humanista (apoiado em Erich Fromm), a fenomenologia existencialista cristã e a leitura dos críticos do processo de dominação colonial (Memmi e Fanon) de Paulo Freire teria colocado ênfase metodológica nos processos de dominação, em especial, na primeira fase de suas formulações4. O humanismo cristão de Freire enfatizará a postura “hu-milde” e a “fé nos homens”, sustentando o necessário vínculo dos currículos à situação existencial dos educandos. A problematização empreendida pelo educador, já destacada anteriormente, possui lastros fenomenológicos: o ato de conhecer possuiria uma intencionalidade por parte do educando. O con-hecimento não viria de fora da existência do educando, mas se construiria a partir da forma como a realidade se apresentaria na consciência do educando. E é a partir do diálogo entre os homens que este “mundo para a consciên-cia” se materializa, é apreendido. Daí todo processo educacional adotar como ponto de partida a realidade percebida pelos educandos (temas e palavras geradoras);

e) Timing do Processo Educacional orientado pelo ritmo comunitário. O pro-cesso educacional orientou-se pela lógica comunitária, seu ritmo de aprendi-zagem cotidiano, marcado pela oralidade, pelas tradições, pela relação com a natureza e/ou pelas relações intersubjetivas. Não raro, o educador popular

Page 28: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

28

estabelecia laços de amizade e confiança mútua com a comunidade, tornava-se seu defensor e freqüentava os rituais coletivos. O tempo das trocas co-munitárias não chegou a ser um objeto de análise no período, mas sempre foi comentado nos encontros técnicos. Havia duas motivações em relação ao tema para os educadores. Uma delas, de natureza metodológica, de respeito ao movimento de tomada de consciência e à cultura local. A outra, fundada na clara intenção de formação moral, de valorização do que se denominava “for-mação integral do sujeito” e não apenas a formação “instrumental”, voltada para a técnica. Embora não fosse citado em nenhum documento de referên-cia à época, um texto de Bertrand Russell parece plasmar esta intenção dos educadores populares5. Segundo este autor, os momentos de despreocu-pação seriam importantes no processo educativo porque permitem ao edu-cando avaliar com maior profundidade sua experiência. Sem tais momentos, o processo educacional alimenta a apatia. Critica-se indiretamente o “culto à eficiência” na educação. Segundo Russell, “o divórcio entre os fins individuais e os fins sociais da produção é que torna tão difícil pensarmos com clareza num mundo em que a busca do lucro constitui o único incentivo ao trabalho. (...) Os prazeres das populações urbanas se tornaram fundamentalmente passivos: ver filmes, assistir a partidas de futebol, ouvir rádio e assim por diante. (...) A vantagem mais importante do conhecimento “inútil” é, talvez, a de incentivar a atitude mental contemplativa. O mundo tem revelado uma exagerada tendência para a ação. (...) O que se necessita não é de tal ou qual informação específica, mas do conhecimento que inspire uma concepção da finalidade da vida humana com um todo.” Não poderia encontrar expressão mais fiel ao sentido do tim-ming do processo educacional defendida pelas práticas da educação popular dos anos 1970 e 1980.

O sujeito coletivo eleito como interlocutor privilegiado das práticas do que estamos denominando de educação popular foram os movimentos sociais que emergiram no final dos anos 1970. Os movimentos sociais fortalecem-se e alimentam-se do mesmo caldo de cultura que fundamentava as práticas da educação popular brasileira. Um era instrumento da estruturação e confor-mação do outro. Em geral, a educação popular era vista como compromisso com as camadas populares e com a sua participação constante nos movimen-tos e iniciativas.

O conceito de educação popular nasce sob o signo da educação informal, para além (muitas vezes, em oposição) ao formalismo e determinismo escolar.

A ideia central vinculava educação ao movimento de formação cidadã que ocorre nos movimentos sociais. Daí uma tensão permanente entre educar e

4 SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 58.5 RUSSELL, Bertrand. O Elogio ao Ócio. Sextante: Rio de Janeiro, 2002.

Page 29: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

29

politizar, porque a tensão original é aquela entre o conceito de educar da mil-itância leninista – o saber externo que orienta o olhar do trabalhador mergul-hado no trabalho alienado – e o conceito de educar de origem cristã-fenome-nológica, presente na obra de Paulo Freire e nas proposições iniciais do MEB (Movimento de Educação de Base) e do trabalho de organização de base da juventude católica que, mais tarde, dará origem à diversas articulações políti-cas, como foi o caso da Ação Popular (AP). O papel da educação popular seria tensionar esta sabedoria que brota do cotidiano pensado com o conhecimen-to nascido da racionalidade científica.

Mas, o final dos anos 1980 gerou uma profunda inflexão na trajetória dos movimentos sociais e, consequentemente, na proposição das práticas de educação popular. Na medida em que aumentaram seu poder político e, em alguns casos, chegaram a se profissionalizar (gestando um corpo adminis-trativo permanente, fluxo estável de recursos financeiros, planejamento de ações unificado e orientações e regras de conduta formalizados no seu inte-rior, assessoria técnica específica), os valores universais e mesmo o ideário humanistacristão que cimentava a quase totalidade dos movimentos sociais que se espraiavam pelo território nacional passaram a ser apropriados ou re-formulados por cada uma das organizações que se consolidavam. A unidade do ideário original foi, lentamente, se cindindo num mosaico de movimentos e organizações. Esta tendência parece se fortalecer no final dos anos 1980, quando muitas lideranças de movimentos sociais são lançadas ao parlamento e executivos municipais. O caráter anti-institucionalista e a radical autonomia política dos movimentos sociais sofrem contradições evidentes a partir desta nova realidade.

Com efeito, as demandas difusas de tantos movimentos sociais (saúde, edu-cação, terra, moradia, e assim por diante) se unificavam, até então, exclusiva-mente em função de um discurso humanista-cristão de lideranças populares. Esta unidade na luta por ampliação de direitos se transformou num forte ape-lo emocional. Em suma, foram a emoção e o sentimento de exclusão ou mar-ginalidade frente à ação pública institucional que alimentaram a legitimidade do discurso do líder.

A nova realidade política gerou, de imediato, três possibilidades no rearran-jo do sistema de representação dos movimentos sociais.

A primeira orientou-se pelo afastamento das lideranças em relação aos mov-imentos sociais dos quais são oriundas.

Page 30: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

30

A segunda foi marcada pela separação (uma espécie de divórcio) da prática política dos líderes no interior do sistema institucional, do seu discurso de legitimação, este último voltado inteiramente para os movimentos sociais. Neste caso, a liderança aumenta o teor emocional, o chiste, e a ironia em seus discursos, numa clara manutenção da identidade com sua base social. Trata-se de um movimento complexo e delicado, que exige grande habilidade discur-siva e um estoque de legitimidade da liderança. A liderança não está mais lá, com os movimentos sociais, mas seu comportamento e discurso ainda criam identidade com sua antiga base social.

“Na prática, a formação de lideranças e atividades de formação para a cidadania buscam aumentar a capacidade de controle da sociedade sobre

governos e até mesmo lógica e práticas estatais.”

Uma terceira possibilidade é a limitação da pauta da liderança, aproximan-do-se do que na teoria política denomina-se representação delegada, ou seja, uma representação restrita aos interesses de um movimento social específico. Neste caso, o discurso genérico e universal da liderança se dissipa, torna-se menos emocional e mais técnico e propositivo. Ele deixa de ser representante de um ideário genérico, humanista, e passa a ser defensor de uma pauta e de um público específico. Seu foco passa a ser o resultado ou, ainda, a promessa e o resultado.

As três possibilidades6 desarticulam a lógica política e o ideário original dess-es movimentos, afetando diretamente o projeto de educação popular até en-tão implementado.

No caso da liderança tornar-se um representante delegado no parlamento a representação direta no sistema político institucional transforma o movimen-to social, através de seu líder, num canal de negociação direta de demandas. Cria-se, em muitas localidades, uma espécie de corporativismo na gestão de políticas públicas específicas, como no caso de deputados e prefeitos vincu-lados à um movimento social. Obviamente que o projeto educacional de uma organização desta natureza tem como principal objetivo o fortalecimento e coesão da própria organização.

6 Lorenzo Zanetti faz uma breve incursão sobre esta mudança de paradigma dos projetos formativos elaborados pelas ongs a partir dos anos 80. Sustenta que na década de 1980 surgem ongs que não se colocavam na perspectiva de intervenção direta no meio popular, procurando produzir novos tipos de conhecimentos e socialização de informações (cita o IBASE como exemplo deste novo paradigma). Destaca, ainda, um novo papel assumido por diversas ongs, posicionando-se como atores sociais, com papel próprio a desempenhar que supera a antiga função de “suporte aos movimentos”. A primeira conseqüência teria sido a necessidade de es-pecialização, sem se verificar uma atualização das práticas educativas. Ver ZANETTI, Lorenzo. “A atuação do passado e os sinais do presente”, In OLIVEIRA, Antonio Carlos et al. Educação Popular: prática plural, op. Cit., páginas 54 e 55.

Page 31: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

31

7 Não faltaram tentativas de reedição do paradigma dos anos 70. Num texto publicado no final de 1996, intitulado “Reflexões sobre a educação popular: a retomada do trabalho de base”, a equipe do Centro de Educação Popular (CEPIS) do Instituto Sedes Sapientae, remonta a experiência de Santarém, ocorrida ao longo dos anos 80. Embora sustente a necessidade de especialização do trabalho formativo, este documento retoma o trabalho enraizado no cotidiano das comunidades, e rejeita o movimento para os trabalhadores, o saber libertador exógeno às práticas sociais da “população que trabalha”. A organização deve, então, surgir do convencimento e não da indução. Daí a leitura peculiar sobre o papel da liderança: “não se trata de apagar a estrela de ninguém, mas de acender uma multidão de estrelas. Trata-se da formação de uma rede de ligações que possa atingir toda a população.”

8 Há nuanças entre as entidades que se propõem à desenvolver programas de educação popular. Encontramos um exemplo no texto produzido por Jean Marc von der Weid, intitulado “A Trajetória das abordagens participativas para o desenvolvimento na prática das ongs no Brasil” (publicado pela Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, Rede AS-PTA, em 1997). O autor procura criticar as tentativas educacionais para formar agricultores num paradigma distinto do ocorrido com o “pacote tecnológico” da revolução verde. Um dos erros metodológicos apontados foi a difusão de tecnologias alternativas sem respeitar o saber camponês, o que gerou um “pacote tecnológico alternativo”. Tais críticas teriam produzido um novo conceito de relação com as comunidades e uma proposta metodológica distinta, a partir da década de 90. A palavra-chave passa a ser “participação”. Há uma longa digressão neste documento sobre como as relações das comunidades com as ongs são falseadas por uma aparente aceitação, dificultando as transformações almejadas.

O segundo tipo de prática da liderança, a que cria um discurso divorciado da prática do líder no interior do sistema político institucional tende a esgotar a capacidade de mobilização dos movimentos sociais. Nesta lógica, os mili-tantes dos movimentos sociais não participam diretamente dos fóruns de ne-gociação das demandas, restrito aos seus líderes – agora, deputados, vere-adores, secretários ou prefeitos – dificultando a compreensão das diferenças entre a pauta inicial demandada e a agenda definida nos acordos.

A terceira possibilidade, marcada pela cooptação institucional do líder, é a mais ofensiva à unidade dos movimentos sociais, desarticulando seu proje-to educacional. Como se percebe, todas possibilidades de relação liderança/movimentos sociais de novo tipo, que emergem nos anos 1990, afetam direta-mente os projetos de educação popular do período anterior7.

Retomemos as cinco características básicas daquele projeto e vejamos as alterações mais significativas.

a) Mudança 01: Do processo educacional de caráter emancipatório para a aquisição de competências técnicas. Muitas vezes, o caráter emancipatório é substituído pelas competências a serem adquiridas nas negociações. São instituídos níveis de formação, distanciando militância de liderança. Em diver-sos casos, organizações de menor porte contratam entidades especializadas para desenvolverem programas de formação específica. A referência na com-petência técnica substitui o foco na autonomia política da comunidade8;

b) Mudança 02: Do processo educacional como meio para programas form-ativos como um fim. No caso de diversas organizações, o processo educacion-al ou formativo transforma-se em fim, gerando recursos na venda de cursos e programas de formação e qualificação. Os educadores se profissionalizam e deixam de adotar o perfil errante de missionário;

c) Mudança 03: Da cultura anti-institucional para a institucionalização das ações formativas. Todos projetos educacionais são formais e institucionali-

Page 32: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

32

zados. São criadas estruturas permanentes, específicas de cada organização, com materiais de apoio, recursos didáticos, escritórios e auditórios adaptados aos programas e currículo determinado. Não se torna raro o estabelecimento de convênios desses projetos ou programas educacionais (denominados de “programas de formação” ou “programas de capacitação”) com órgãos públi-cos ou instituições internacionais de fomento ao desenvolvimento de comu-nidades;

d) Mudança 04: Da Pedagogia do Oprimido para a pedagogia do plane-jamento. São inúmeras as concepções educacionais que passam a vigorar neste campo temático. Em grande parte das organizações, são fundidos con-ceitos pedagógicos com conceitos e práticas de planejamento estratégico. O discurso classista se transfigura em capacidade de elaborar e executar proje-tos sociais, constituindo um mercado de atuação social e redefinindo o marco teórico (da referência marxista à teoria funcionalista). Muitas organizações, e principalmente fóruns temáticos ou setoriais, sustentam, contudo, referên-cias na pedagogia do oprimido;

e) Mudança 05: Do Timing do Processo Educacional orientado pelo ritmo comunitário para a busca de eficácia. O ritmo e a velocidade dos processos educacionais são definidos pela eficácia da execução de políticas públicas o que lhes confere similaridade com os processos de treinamento e aquisição de competências técnicas.

Como se percebe, o projeto original de educação popular brasileira encon-trava-se, nos anos 1990 e início do século XXI, numa encruzilhada. Encruzil-hada que redefiniu o caráter popular de seu projeto original.

As mudanças verificadas não ocorrem de maneira única em relação a todas organizações populares. Com efeito, são várias as nuanças verificadas ao lon-go do país, revelando maior ou menor grau de radicalidade no distanciamento do ideário original dos projetos de educação popular.

Já comentamos casos em que um movimento social estrutura-se como or-ganização e gera um projeto educacional que garanta a sua reprodução in-stitucional. Os objetivos passam a ser a unidade do discurso, a socialização de regras e normas de conduta, a propagação do ideário da organização, as competências necessárias para a prática das diversas instâncias ou segmentos sociais da organização (militância, corpo administrativo e direção política). Os projetos educacionais dessas organizações populares voltam-se para si e em-bora mantenham, muitas vezes, o propósito da transformação social, aproxi-ma-se rapidamente de um programa de formação profissional, que garante o

Sugere, ainda, problemas na formação dos próprios técnicos, oriundos do meio urbano e de uma metodologia universitáriade educação que impede a compreensão das comunidades rurais. Daí nasceria a experiência da metodologia de DiagnósticoRápido Participativo de Agrossistemas, oriundo das experiências de “rapid rural appraisal”.

Page 33: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

33

9 Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. A reinvenção solidária e participativa do Estado, Brasília: Ministério da Administraçãoe Reforma do Estado, 1998. Uma versão deste texto pode ser encontrada em PEREIRA, L.C. Bresser, WILHEIM, Jorge &SOLA, Lourdes. Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo/Brasília: Editora UNESP/ENAP, 1999.

orgulho corporativo que caracteriza as organizações.

Há, entretanto, o surgimento de um novo tipo de formação ou projeto edu-cacional do que poderíamos denominar de “campo popular” (marcado pelo engajamento na organização das demandas das camadas sociais menos privi-legiadas). Pautam-se pela elaboração e gestão de políticas públicas. Na práti-ca, a formação de lideranças e atividades de formação para a cidadania bus-cam aumentar a capacidade de controle da sociedade sobre governos e até mesmo lógica e práticas estatais.

Um dos autores que se tornou referência nesta reformulação foi Boaventura de Souza Santos. No final da década de 1990, Boaventura escreveu um texto intitulado A reinvenção solidária e participativa do Estado apresentando uma visão original de reforma democrática do Estado. Propõe, a partir de então, a reforma do Estado e, surpreendentemente, da sociedade civil. Para tanto, elabora um conceito novo de Estado assim descrito: Estadocomo- novíssimo-movimento-social, assentado na idéia de que

Perante a hubris avassaladora do princípio de mercado, nem o princípio de Estado, nem o princípio da comunidade podem isoladamente garantir a sustentabilidade de interdependências não mercantis, sem as quais a vida em sociedade se converte numa forma de fascismo societal. É necessária a articulação privilegiada entre os princípios do Estado e da comunidade sob a égide deste último. [...] Está a emergir uma nova forma de organização política mais vasta que o Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não estatais, nacionais, locais e globais9.

Sugere, assim, a refundação democrática da administração pública, como antípoda da proposta de Estado-empresário. Por outro lado, sustenta a re-fundação democrática da sociedade civil, exigindo a busca da definição de objetivos que resguarde da tentação da relação promíscua com o Estado; que descaracterize a participação como sub-formas de relação paternalista.

Boaventura desloca a análise sobre as regras e estruturas estatais para o campo da cultura política. E é aqui que a educação popular pode encontrar seu fluxo. A superação das práticas corporativas possibilitaria a formulação de uma nova cultura política, ultrapassando os marcos da tradição moderna, que distinguiu o indivíduo da esfera de gestão pública.

Esta proposição auxilia na compreensão da difícil escolha que organizações da sociedade civil parecem se encontrar. Um dilema que supera a falsa questão

Page 34: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

34

entre ser mais ou menos eficiente e eficaz. Trata-se de um posicionamento político, ideológico, a respeito das intenções da nova engenharia política, da nova institucionalidade pública a ser construída.

No que interessa ao tema deste caderno, vale dizer que a concepção ped-agógica advinda deste dilema pode gerar posturas profundamente distintas. No caso da proposição de Boaventura Santos, parece haver um espécie de diálogo com os princípios da educação popular brasileira, acentuando-se o caráter provocativo, de desestabilização dos valores corporativos e localistas da cultura comunitária. Porém, na medida em que sugere, como objetivo es-tratégico, a construção de um novo Estado, concebido como novo-movimen-tosocial, advém daí uma possibilidade metodológica inovadora. Em outras palavras, o hífen que vincula Estado ao conceito de movimento social, deses-trutura as bases do conceito de Estado moderno, instância política, separada da sociedade civil. Situa o Estado no campo da conformação social dos direi-tos e não na limitada noção de institucionalização de regras e normas. O Es-tado passa a conformar-se como movimento, poroso à participação ativa da sociedade civil. Por seu turno, a participação da sociedade civil no Estado não se dá através de suas organizações, mas da criação de uma nova institucion-alidade pública.

No Brasil, já temos há uma década experiências desta natureza, como ex-periências de cogestão ou consulta na elaboração e condução do orçamento público e os conselhos de direitos e temáticos (ou setoriais). Este Estado de novo tipo exigiria uma metodologia distinta, embora não oposta, à tradição brasileira de educação popular. Entre outros motivos, porque insere necessar-iamente iniciativas de formação até então consideradas informais (de âmbito exclusivo da sociedade civil) nas dinâmicas estatais.

Esta última proposição parece ser mais ousada e contemporânea aos dile-mas dos movimentos sociais. A educação parece ser uma eterna esperança de promoção social e desvelamento de um mundo estranho a quem se sente “desfiliado social”. Mas também é fruto do divórcio quase secular entre os modelos de educação formal (elitista, de natureza taylorista, que objetiva conformação de hábitos sociais) e os modelos supostamente informais (sus-tentados no conceito de autonomia comunitária).

O novo paradigma proposto por Boaventura Santos impõe a construção de uma nova metodologia de educação pública, herdeira das propostas de edu-cação popular, mas mais ousada politicamente.

Page 35: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

35

conceitos básicos da educação popular

Page 36: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

36

fenomenologia10

A educação popular articula duas grandes teorias: a marxista e a fenomeno-logia. Do marxismo, destacou vários conceitos, como o de sujeito (aquele que faz sua vida e a história) e dialética (a relação dinâmica e contraditória na vida humana, entre pensamento e prática, entre classes sociais, que nos faz depender e, ao mesmo tempo, superar uma fase anterior). A fenomenologia, contudo, é menos conhecida e discutida na formação de educadoresbrasilei-ros. Ambas as teorias destacam as noções de subjetividade (os valores, a for-mação de cada um) e objetividade (as condições concretas de vida e sobre-vivência em que estamos mergulhados), que se cruzam e se complementam, para entender a prática humana.

Tudo começa com a sugestão que esta teoria faz de como nós conhecemos algo, ou seja, como produzimos conhecimento. As várias teorias educacionais partem do princípio que o conhecimento nasce da relação da pessoa que se relaciona com um objeto ou situação que quer conhecer.

Antes da fenomenologia, várias teorias acreditavam que o que se conhece é a soma de um conjunto de sensações, sem qualquer interferência do su-jeito que sente. Quem aprende, portanto, teria uma postura passiva frente ao conhecimento. Só caberia a ele traduzir. Na prática educacional, este seria o objetivo da leitura de livros: apenas captar o que está escrito e compreender a mensagem, passivamente. Mas onde ficaria nossa memória e conhecimento próprio? Esta corrente teórica sustenta que o conhecimento e memória de cada um se constroem a partir da vivência e sensações que se repetem, sendo armazenadas, gerando a compreensão da lógica das situações.

Já outras linhas teóricas (como a racionalista) percebe no sujeito (aquele que aprende) um conhecimento prévio, vindo de sua vivência passada e até de sua educação familiar, que influenciam nas suas ideias e valores. Neste caso, inverte o que a corrente anterior sugeria: se antes o sujeito era passivo frente ao que ele vê, agora, é a realidade que é passiva frente à razão humana. Sensação e percepção pouco contribuem, segundo esta teoria, para se formar um juízo e compreender um fenômeno ou objeto. Sensação e percepção só destacam algo do panorama, mas seria a razão (a capacidade lógica, de orde-namento das informações) que decompõe o dado percebido, interpreta suas qualidades e lhes dá sentido. Daí nasceria uma crença absoluta na ciência por ser uma maneira racional e organizada de interpretar o mundo.

10 Várias passagens deste verbete se apoiam nas elaborações de Valter Martins Giovedi que constam na sua dissertação de mestra-do defendida na PUC-SP em 2006, intitulada “A inspiração fenomenológica na concepção de ensino-aprendizagem de Paulo Freire”. Também nos apoiamos no verbete Fenomenologia, elaborado por Luiz Augusto Passos que se encontra no Dicionário Paulo Freire já citado na Apresentação deste dicionário.

Page 37: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

37

Dialogando com esta crença absoluta na capacidade racional do ser humano, surgiu a Escola Comportamental, até hoje muito empregada em exercícios de reforço escolar ou memorização de fatos, fórmulas ou datas. Watson (1878-1958), criador do termo behaviorismo (comportamento, em inglês), acredi-tava que os indivíduos poderiam ser totalmente condicionados a terem de-terminados comportamentos e a agirem de determinadas formas, bastando que, para tanto, controlássemos as variáveis do ambiente em que vivem. Skin-ner (1904-1990) aprofundou esta tese, mas ressaltava que não haveria algo tão certo no condicionamento a ponto de podermos afirmar que seja possível haver controle absoluto sobre os indivíduos, já que também fazem parte do ambiente, não podendo separá-los por completo. Um ambiente novo, enfim, pode alterar as respostas do indivíduo já que sua tendência será se adaptar às novas condições. Daí a necessidade, proposta por Skinner, de que, em deter-minadas circunstâncias, sejam utilizados artifícios que reforcem determinado comportamento para que o indivíduo, paulatinamente, vá se adaptando às novas exigências do ambiente. A Escola Comportamental é mais conhecida em função de um famoso experimento com cães desenvolvido por Pavlov11.

Para este autor, os indivíduos pensam e fazem escolhas a partir de reflexos inatos e reflexos condicionados. A palavra reflexus significa “voltar para trás” ou voltar-se para si. Para Pavlov, os reflexos inatos (ou congênitos, naturais) não necessitam da ação do córtex cerebral, como ocorre com os de proteção, os alimentares e os sexuais. Existem, contudo, reflexos que são condiciona-dos, a partir da relação com o meio e a cultura. Para tanto, fez a já citada experimentação com um cão, preso e isolado do meio externo, o que possi-bilitaria o controle do ambiente de pesquisa.

11 Ivan Pavlov nasceu em Ryazan (Rússia), em 1849. Formou-se em 1886, em medicina. Neste período, já havia tido contado com as teorias de Marshall Hall, sobre “função reflexa”. Antes da revolução russa, foi diretor do Departamento de Filosofia no Instituto de Medicina Experimental, de São Petersburgo e desenvolveu pesquisas sobre o funcionamento das glândulas, fisiologia do coração, sistema nervoso e sistema digestivo. Em 1889 realiza sua experimentação mais conhecida: condicionamento de cães. Recebeu o Prêmio Nobel em 1904. Para Pavlov, a psicologia deveria ser denominada de “reflexologia”, ou seja, estudo dos reflexos inatos e condicionados (como os processos de aprendizagem).

Page 38: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

38

Na experiência sintetizada na ilustração acima, os cães foram treinados (a palavra treino é central nesta teoria) para que que salivassem toda vez que ouvissem um sino. Para tanto, toda vez que os bichos eram alimentados, o médico tocava uma sineta. Com o tempo, os cães começaram a associar as badaladas à comida. E chegavam a babar famintos só de ouvir o sino, mes-mo que o prato deles estivesse vazio. Daí, Pavlov sugeriu que os humanos já nascem com certos reflexos que reagem a determinadas situações. Em caso de perigo, nossos músculos ficam tensos e nossa atenção, mais aguçada. Es-tamos nos preparando para a fuga ou embate. Mas também podemos criar reflexos. Filmes de terror trabalham com este condicionamento através de músicas ou sons sinistros (o autor deu o nome desses recursos associativos, como o sinal para os cães, de pareamentos). A música toca e começamos a ficar tensos.

Agimos, portanto, sem pensar, quando somos submetidos a certos condi-cionamentos. Algo que, como já afirmamos, é utilizado até hoje em algumas propostas educacionais. O estudante condicionado responde uma questão sem refletir, apenas reagindo a certos estímulos, como uma palavra chave ou uma música que aprendeu em sala de aula. Simples associação.

O autor, finalmente, definiu o que determina um condicionamento:

1. Quanto maior o número de pareamento, maior a resposta condicionada;

2. Quanto mais frequentes os pareamentos, maior a resposta condicionada;

3. Estímulos mais correlacionados com a atenção do sujeito, maior probabi-lidade de provocar respostas reflexas.

Enfim, poderíamos ser o reflexo do condicionamento racional de nossa per-cepção.

Outra corrente de pensamento (baseada nas formulações do filósofo Im-manuel Kant) destacou um elemento que define a compreensão do mundo: o juízo, apoiado em valores e que validam (dão valor) a uma realidade. Esta corrente muda toda noção de busca de conhecimento. A busca não seria pro-priamente a verdade em si, mas modos de compreensão julgadas por critérios de pertinência, que consigam resolver problemas concretos. Conhecimento com utilidade, não como verdade absoluta, imutável.

Até aqui, temos, portanto, as seguintes vertentes teóricas sobre como aprendemos ou como nos relacionamos ou produzimos conhecimento:

A) O mundo está pronto e o sentimos, bastando, em seguida, traduzi-lo cor-retamente;

B) O mundo se apresenta e nossa razão o codifica;

Page 39: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

39

C) O mundo se apresenta e nossos valores o julgam e o validam;

D) Podemos redefinir nosso comportamento e condicionar a maneira como nos relacionamos com o mundo com treinamento planejado (portanto, racion-al).

E chegamos à fenomenologia.

Para Paulo Freire, somente pessoas podem dar unidade e sentido ao mundo. A coerência, portanto, não estaria no mundo, mas na formulação dos indi-víduos.

Husserl, um dos autores essenciais para a construção da teoria fenom-enológica, procurou resgatar o sujeito do conhecimento como fundamento último e universal, se aproximando das teses de Kant. Este autor destaca, em seguida, o papel da consciência, um conceito caro para a educação popular.

“Esta construção de sentido do mundo é dinâmica, dialógica (ou seja, que dialoga com o mundo). Algo assim: o sujeito procura sentido no que vê que,

por sua vez, não é estático.”

Para Husserl, a consciência possui intencionalidade, ou seja, é pura atividade, “o ato de constituir essências ou significações, dando sentido ao mundo das coisas”.

Não se trata, portanto, do mundo que se apresenta neutro para o indivíduo, mas algo que é interpretado e reinterpretado infinitamente pelos indivíduos que, agora, se apresentam como sujeitos (os autores da ação de interpretar, de dar coerência ao mundo). Esta construção de sentido do mundo é dinâmi-ca, dialógica (ou seja, que dialoga com o mundo). Algo assim: o sujeito pro-cura sentido no que vê que, por sua vez, não é estático. Nem o mundo, nem a interpretação que o sujeito faz dele (lembremos que a vida de cada sujeito também é dinâmica e seus valores e experiências podem ser alterados) são estáveis. A unidade seria formada na consciência que se desenha em cada sujeito.

Aqui começa a contribuição para a educação popular, a partir das formu-lações de Paulo Freire. A preocupação inicial da fenomenologia (e, também, da educação popular) é a descrição da consciência dos sujeitos. Como eles constroem sua visão sobre o mundo e o interpreta. Neste movimento, con-tribuem a percepção, mas também a imaginação, a lembrança, as utopias de vida. Paulo Freire cruzou esta “busca de compreensão sobre a consciência” com conceitos marxistas. No seu livro mais conhecido, “Pedagogia do Oprim-ido”, relaciona a contradição entre objetividade e subjetividade no processo

Page 40: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

40

de construção da realidade consciente. Com isto, reforçou a prática didática e o conteúdo pedagógico com a leitura real das condições de vida dos edu-candos. Em outras palavras, não existiria um processo educativo genérico, universal ou neutro porque sempre será um diálogo com a realidade e com a interpretação da realidade. Pode gerar um pensamento passivo ou crítico, dependendo de como se relaciona e interpreta o mundo real. Ao promover a passividade ou adaptação do educando ao mundo em que está inserido, Freire sugere que a educação se aproximaria do papel da ideologia, produz-indo conformismo. Uma das expressões mais nítidas do conformismo é a ideia de que o mundo é assim, imutável.

Relação educador/educandoA relação educador/educando na concepção da educação popular está rela-

cionada com a libertação, contrária à prática de transmissão de conteúdos.

Para tanto, o princípio é o diálogo, a conversa, provocando os educandos. Na prática, uma relação que se inicia com a exposição da percepção e conheci-mento dos educandos, o que ocorre com uma provocação ou motivação com forte apelo ou impacto emocional que faz o educando revisitar seus valores e até mesmo sua vivência.

Esquematicamente, o trabalho do educador passaria pelo seguinte itin-erário:

a) Provocação inicial, escuta e identificação da percepção e visão de mundo dos educandos;

b) Confronto de percepções e visões de mundo do conjunto de educandos e

problematização (ou identificação do tema gerador);

c) Aprofundamento do estudo da realidade através da problematização re-alizada (ou tema gerador). Neste momento, são realizadas pesquisas e apro-fundamento de estudos conceituais e teóricos.

A problematização leva a rupturas de paradigmas, trabalhando concepções do educador e educando, saberes integrados (já que o educador, nesta per-spectiva, se educa, aprende e reaprende no próprio diálogo com os educan-dos). Os dois, como afirmava Paulo Freire, são “corpos conscientes, problem-atizadores das suas relações com o mundo”.

“Ora, então, o mundo percebido e formado na consciência de um sujeito é aquele que foi experimentado por ele. Relaciona-se com suas raízes, com

seu pensamento, com sua vivência.”

Page 41: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

41

A instalação da dúvida, neste caso, é fundamental como ponto de partido para as duas partes (educador e educando) a despeito do educador não abrir mão de sua autoridade, coordenador e organizador do diálogo.

No livro “Pedagogia da Autonomia”, Paulo Freire destaca que o papel do educador não é o de transferir conhecimento, mas criar a possibilidade de sua construção.

A intervenção do educador é sempre cercada de cuidados. Deve estimular a compreensão das condições concretas de cada momento histórico em que o educando está inserido. É cuidadosa porque, se a orientação do educador for de mera transposição de uma teoria como verdade, o resultado da aprendi-zagem não será o pensamento crítico, mas a assimilação de “verdades” ex-ternas à sua vida e vivência. Mesmo porque, a teoria, como construção hu-mana, também é um discurso sobre o mundo, não uma verdade absoluta.

No livro “A Pedagogia da Autonomia”, Paulo Freire destaca:

A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da História, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autori-tária do sonho, da utopia, da esperança. É que, na inteligência mecanicista, portanto determinista da História, o futuro é já sabido. A luta por um futuro assim ‘a priori’ conhecido prescinde da esperança. A desproblematização do futuro, não importa em nome de quê, é uma violenta ruptura com a natureza humana social e historicamente constituindo-se.

Assim, entregar uma leitura completa e resolvida sobre o mundo para o educando é confinar o mundo numa única interpretação. Mais: é destruir a capacidade criativa do educando, sua capacidade de ler e refletir, de fazer op-ções. Uma leitura acabada a ser memorizada não é um ato de emancipação, mas, ao contrário, de negação do sujeito, como autor da ação.

Ao mesmo tempo, Freire também contestou fortemente as tentativas de se atribuir ao indivíduo o poder exclusivo sobre as circunstâncias em que está inserido. Algo que se aproximaria do espontaneísmo.

Assim, o compromisso de educar passa a ser duplamente libertador, porque propõe uma leitura crítica (não superficial, ou seja, buscando os motivos que levam o mundo atual a ser o que é) sobre o mundo e, ainda, fomenta a au-tonomia do pensamento do educando para que construa suas conclusões e reflita sobre sua interpretação do mundo.

Aqui surge outra contribuição de uma derivação da teoria fenomenológica: a fenomenologia existencial. Para esta corrente, o mundo não pode ser re-duzido à consciência, O mundo não apresenta, de pronto, seus “segredos”,

Page 42: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

42

sendo necessário que o sujeito desvende o que é opaco. Nas palavras desta corrente o mundo está para a consciência. Um prato que está sobre a mesa, mas que se não o provamos, não conseguiremos descobrir quais são seus in-gredientes e que paladar criaram ao se misturar. Sem provarmos e investigar-mos sua composição, aquele prato se torna um adorno, um objeto morto.

Ora, então, o mundo percebido e formado na consciência de um sujeito é aquele que foi experimentado por ele. Relaciona-se com suas raízes, com seu pensamento, com sua vivência. Mas esta vivência nasce do seu mergulho no mundo, nasce de uma experiência existencial. Ninguém, portanto, é um espíri-to puro, uma tábua rasa, um copo vazio. Nem é um sujeito isolado, imaculado, que não se influencia pela relação com outros sujeitos.

Vale uma breve diferenciação entre vivência e experiência humana. A vivên-cia é nossa passagem pelo mundo, pela sequência de fatos, pelo filme que se desenrola no nosso dia-adia. A experiência é a vivência pensada, refletida. Em outras palavras, é a vivência capturada por nós na busca da compreensão sobre os motivos de passarmos por aquelas situações e os motivos de termos agido de determinada maneira. O ato de pensarmos sobre a vivência foi de-nominado por Freire de ad-mirar (ver verbete mais adiante), ou seja, se olhar de fora. Este é o passo essencial num processo educacional libertador para a construção da autonomia, ou seja, a construção de regras (normas) de com-portamento (ou de autogoverno) a partir da leitura de nosso papel no mundo.

Nossos atos e falas são, muitas vezes, pré-reflexivos. Para educadores popu-lares, a subjetividade e a individualidade ganham uma importância significa-tiva enquanto elementos a serem ressaltados antes de nos precipitarmos em explicações mais generalizantes ou pré-estabelecidas.

Enfim, a educação popular procura se afastar do determinismo objetivista (quase sempre vinculado às condições econômicas da vida social), mas tam-bém da compreensão espontânea e isolada da realidade pelo indivíduo, que o autor denominou de subjetivismo.

Na prática, o que Freire ressalta como necessário no processo educacional é o diálogo. Vejamos esta passagem no seu livro “Educação como Prática da Liberdade”:

É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só há comunicação.

Page 43: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

43

A passagem acima sugere a essência da relação social que é a humanização. Mas como prática educativa, a humanização (a valorização da existência e da autonomia humana) se dá pelo diálogo. Vejamos outra passagem encontrada em Pedagogia do Oprimido:

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os ho-mens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.

E, chegamos à montagem de um currículo ou programa de ensino:

Esta investigação implica, necessariamente, uma metodologia que não pode contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione, ao mesmo tem-po, a apreensão dos ‘temas geradores’ e a tomada de consciência dos indi-víduos em torno dos mesmos. Esta é a razão pela qual (em coerência ainda com a finalidade libertadora da educação dialógica) não se trata de ter nos homens o objeto da investigação, de que o investigador seria o sujeito. O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que se encon-tram envolvidos seus ‘temas geradores’.

AutonomiaAutonomia significa autogoverno. Não significa liberdade total do indivíduo.

Porque a liberdade total é egocêntrica e desconsidera o Outro (o diferente, a alteridade). Já o conceito de autonomia sugere aquele que produz uma norma, uma regra, portanto, um limite, para seu comportamento e relacionamento.

Na autonomia, a regra não é imposta de fora, mas é elaborada a partir da consciência do indivíduo. Por sua vez, trata-se de um exercício pessoal de re-flexão sobre o mundo e sua própria existência, sua função social neste mundo.

O princípio da autonomia, portanto, é a clareza que somos dependentes, ou interdependentes. Paulo Freire chegou a fazer um jogo de palavras para de-senhar esta situação: “a autoridade do não eu” (Pedagogia do Autonomia, p. 46). Também dizia ser um “ato comunicante”, porque necessariamente obri-ga o educando a pensar sua ação a partir do Outro e dos valores que garantem que todos sejamos humanos. Assim, relaciona-se com a noção de direito hu-mano, ou seja, com o direito básico de uma pessoa existir como ser humano,

Page 44: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

44

marcado pela diferença com outros seres vivos. Uma diferença fundada na liberdade, no livre arbítrio, na capacidade racional de fazer escolhas, mas tam-bém na capacidade de administrar seus desejos em função das regras de con-vivência e da garantia da sobrevivência de outros com direitos e escolhas.

Toda autonomia se constrói num ato de reflexão em que o educando olha para si, para seu comportamento, e estuda o mundo, os direitos universais (de toda humanidade), os interesses grupais e as necessidades individuais. Compreender para tolerar. Um ato reflexivo como se olhasse de fora para si e para suas relações. Algo que Paulo Freire denominou de ad-mirar, próximo verbete deste caderno.

O ato educacional que leva a autorreflexão é o dilema moral e a pesquisa. Temas que trataremos no próximo verbete.

Ad-MirarAdmirar significa ficar perplexo diante de algo.

Também significa direcionar o olhar, ou seja, “olhar (mirar) em alguma di-reção (ad)”.

Admirar em educação popular é olhar para o objeto de conhecimento (e para a interpretação que nós mesmos fazemos sobre ele, seja um conceito, uma palavra, uma situação histórica) com perplexidade, tomando distância deste objeto como se desconfiássemos do que sabemos sobre ele.

“Qual seriam, então, os óculos para mirarmos de fora algo que, muitas vezes, já conhecemos?”

Não se trata, portanto, de admiração, mas estranhar algo que se quer ana-lisar.

Qual seriam, então, os óculos para mirarmos de fora algo que, muitas vezes, já conhecemos? Contrapondo o conhecimento prático com o já produzido, identificando sua construção, os nexos que encadearam motivações e ações até chegar onde chegou. Portanto, a pesquisa não se restringe à leitura de um livro ou uma produção intelectual já cristalizada sobre aquele objeto que se quer conhecer ou refletir.

Uma possibilidade concreta foi sugerida por outro pensador muito citado na área educacional, Lawrence Kohberg. Este autor criou diversos dilemas a fim de explorar o raciocínio do educando (em especial, crianças e adolescentes) a respeito de um problema moral difícil, como o valor da vida humana ou as razões para fazer coisas “certas”. Sua teoria sugeria que o grau mais alto de

Page 45: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

45

desenvolvimento moral em uma pessoa é aquele em que para julgar uma re-gra como correta, o sujeito se colocaria no lugar dos outros, avaliando as con-dições reais de cada um e o impacto da regra em suas vidas. Um exercício de empatia (colocar-se no lugar do outro). Um dos dilemas mais famosos elabo-rados por Kohberg foi o conhecido como “O Dilema de Heinz”, que reprodu-zimos abaixo:

Numa cidade da Europa, uma mulher estava para morrer. Um medicamento descoberto recentemente por um farmacêutico dessa cidade podia salvar-lhe a vida. A descoberta desse medicamento tinha custado muito dinheiro ao far-macêutico, que agora pedia dez vezes mais por uma pequena porção desse remédio. Henrique (Heinz), o marido da mulher que estava doente, conversou com amigos e lhes pediu um empréstimo. Em seguida, foi até o farmacêutico e contou-lhe que a sua mulher estava muito doente, concluindo com um pedido para fazer um desconto no medicamento. Uma alternativa, sugeriu Henrique, seria pagar uma parcela no ato da compra e um complemento mais adiante. O farmacêutico respondeu que não, que tinha descoberto o medicamento e que queria ganhar dinheiro com a sua descoberta. Henrique, que tinha feito tudo ao seu alcance para comprar o medicamento, ficou desesperado e pensou em assaltar a farmácia e roubar o medicamento para a sua mulher.

O dilema final seria: deve Heinz assaltar a farmácia para roubar o medica-mento para salvar a sua mulher?

O dilema continuava. Heinz, afinal, teria assaltado a farmácia. Um amigo de Heinz leu a notícia e lembrou-se de tê-lo visto sair correndo da tal Farmácia. Como era amigo de Heinz, e conhecendo o seu caso, perguntou a si mesmo se deveria denunciá-lo. Deve o polícia acusar o Heinz de roubo?

Se isto ocorresse, como deveria ser a sentença do Juiz? Quais seriam os va-lores e regras que deveriam pesar no julgamento?

Educação BancáriaPara Paulo Freire, a educação bancária se baseia na compreensão do edu-

cando como um copo vazio, incapaz de superar o senso comum marcado por crenças e crendices. Necessita, para sair deste mundo reduzido e sufocante do conhecimento de fora, civilizador, que o prepara para um salto para o mundo produtivo, de progresso pessoal e coletivo. O homem socialmente útil necessita desta formatação pela assimilação de conhecimentos, informações, normas e comportamentos que são transmitidos pela educação. O termo bancário, nesta lógica, se refere ao processo cumulativo, em que o educando passivo e quase selvagem vai apreendendo o que seu instrutor lhe oferece.

Page 46: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

46

Um processo que trata, como se percebe, o educando como subordinado e, portanto, que sofre coerção para se adaptar e se conformar à expectativa que se tem como produto final da formação escolar. Trata-se de uma pedagogia da opressão e submissão onde é vetada a crítica, a rebeldia ou qualquer com-portamento imprevisível ou intolerável. A sala de aula passa a ser o local do aprendizado das certezas e das verdades acabadas. Do rumo certo e garanti-dor da estabilidade e correção.

“A educação bancária é assistencial e tutela a formação da consciência sobre o mundo. Ao contrário, a educação libertadora promove a crítica do

mundo.”

Na concepção taylorista de educação norte-americana, elaborada pelo mé-dico e educador Joseph Mayer Rice, a educação bancária aparece em toda sua dimensão. Rice sugeria que o objetivo da educação é formar para o progresso, no caso, para a indústria, o que acabou por ser reconhecido como “educador da eficiência social”. Assim, sugere este autor, um currículo ideal deveria for-mar o caráter e o profissional adequado para a produção industrial12, tendo a matemática como ápice da hierarquia dos conhecimentos a serem aprendi-dos, seguidos pelas áreas e conhecimentos aplicados na produção industrial: física, biologia e química, além da psicologia que formataria o caráter produ-tivo. A partir deste fundamento, Rice sugeriu a organização do currículo em estágios de aprofundamento e preparação do educando, como uma escada ser galgada, passo a passo, ano a ano, em que o degrau anterior seria a base para se atingir o degrau seguinte. O degrau, no caso, foi planejado para ser construído e superado em doze meses. O conjunto de degraus passou a con-stituir, finalmente, o sistema de seriação. Caso não atingisse a expectativa, o educando não estaria autorizado a prosseguir, devendo retornar (ou repetir) ao ponto inicial daquela série (ou degrau).

Paulo Freire criticou duramente esta concepção pedagógica e curricular que destitui o educando de capacidade crítica, criativa e poder de iniciativa. Jus-tamente porque, para a educação popular, o objetivo educacional é a emanci-pação e construção de autonomia do educando. Sugere Freire:

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres ‘vazios’ a quem o mundo ‘encha’ de conteúdos; não pode basear-se numa con-

12 Rice se apoiou nas teorias do educador e filósofo alemão Johann Friedrich Herbart, conhecido como o criador da ciência da edu-cação e da psicologia moderna, focada no desenvolvimento de um ser humano culto, que se esforçou para descobrir, bem como ser guiado pelos mais altos valores éticos. Cf. RICE, Joseph Mayer. Sistema Público-escola dos Estados Unidos. New York: Century, 1893. Também do autor: The Rational Spelling Book. New York: American Book, 1898; Gestão Científica em Educação. New York: Hinds, Noble e Eldredge, 1913 e Governo do Povo Philadelphia: Winston, 1915.

Page 47: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

47

sciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como ‘corpos conscientes’ e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problemati-zação dos homens em suas relações com o mundo.

E, mais:

Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir ‘conheci-mentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação bancária, mas um ato cognoscente.

Enfim, a crítica à educação bancária é que ela não sugere aos educandos que conheçam, mas que memorizem conteúdos. Não se realiza, portanto, nenhum ato de conhecimento (que já discutimos no conceito fenomenologia, no início deste caderno), já que o que se deveria conhecer não é objeto de interpre-tação. A educação bancária é assistencial e tutela a formação da consciência sobre o mundo. Ao contrário, a educação libertadora promove a crítica do mundo.

Qual seria, então, o lugar do educando? Segundo Freire:

O educando precisa de se assumir como tal, mas, assumir-se como educando significa reconhecer-se como sujeito que é capaz de conhecer e que quer con-hecer em relação com outro sujeito igualmente capaz de conhecer, o educador e, entre os dois, possibilitando a tarefa de ambos, o objeto de conhecimento.

Silêncio TáticoÉ comum que o silêncio tenha significado. Um significado pensado por quem

se silencia.

Paulo Freire refletia sobre o papel do silêncio no processo educacional. Prin-cipalmente, como ato de autocontrole do educador. Antes de apresentar este freio nas emoções, ou ainda, esta necessidade do educador estar plenamente atento e consciente de seu papel na construção de um espaço de diálogo e promoção da construção coletiva do conhecimento, vale registrar um belo Cordel escrito por Antônio Pessoa Leite, de Carnaúbas, no Rio Grande do Norte, publicado no folheto Falando por quem não fala (Natal, 1997) e que nos remete aos sinais e condições de quem se silencia:

Aos que tem o dom da fala é necessário ter respeito ao que se calam. Esta é a base do silêncio tático da educação popular. Os que se calam, normalmente,

Page 48: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

48

Ao que tiver dom de fala

Nas suas cordas vocais,

Tenha também bons instintos

Ou preceitos cordiais

Não maltrate os que se calam,

Interprete os que não falam

Olhando os incautos mais

Pense bem em quem não diz

Em quem com tudo se cala

Sabe às vezes, silencia,

Se sacode, se abala,

Olha para todos os lados

Anda, se deita e não fala

Linguagem irracional

É a voz de quem não fala

Interpreta por instinto

Tudo ver (em labirinto)

E não entende. Se cala.

estão mergulhados na “cultura do silêncio”, imposto pelo poder ou pelas relações de dominação. A proibição da fala é a proibição da existência hu-mana porque pela palavra comunicamos nossa experiência e nossos desejos. A humanidade, enfim, é a soma das experiências registradas pela linguagem, em especial, pela fala e escrita.

Mas os homens também têm direito ao silêncio. O silêncio pode ser a afir-mação da dignidade, como protesto possível ou como reserva por não se per-ceber à altura ou com confiança para enfrentar um desafio ou novidade.

Muitas vezes, as avaliações externas invadem e desrespeitam este silêncio, porque não dialogam com ele.

Mas Freire avança na elaboração de outro silêncio, o do educador (como já anunciamos no início deste conceito). Trata-se de um aspecto da inteligência do educador e de sua construção como mediador da construção do conheci-mento.

O diálogo se faz num espaço de confiança. Espaço que não se faz pronto, mas que vai se construindo na relação entre educador e educando, estabelecendo espaços e regras de convivência em que a função de cada parte vai ficando nítida. Se um espaço libertino, o diálogo se transforma em disputa pela ver-dade pessoal mais correta, pela autoafirmação e afirmação dos egos. Se ab-solutamente regrado, opressivo e limitado, inibe a apresentação de dúvidas, devaneios e crenças. O espaço de diálogo respeitoso e agregador necessita de tempo e trabalho mediado pelo educador. Neste sentido, Freire sugere que em determinados momentos o educador não pode fazer intervenções, sob pena de macular o espaço de diálogo. Aguarda o momento correto até que, percebendo que a confiança está estabelecida, retoma um tema não resolvido ou que merece uma reflexão mais cuidadosa ou até polêmica.

Page 49: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

49

“O espaço de diálogo respeitoso e agregador necessita de tempo e trabalho mediado pelo educador.”

Como ocorre quando um educando, ainda no início do processo de con-strução do espaço de diálogo e confiança, toma coragem e expressa uma opinião ou valor que se choca com princípios éticos, como a tolerância e o re-speito às diferenças. Se o educador repreende ou faz alguma objeção naquele momento, pode colocar em risco o espaço de diálogo. Dependendo do in-terlocutor, a humilhação de ser repreendido ou contestado pela autoridade daquele espaço – o educador – poderá jogar o educando num silêncio que o resguarde. Ou, pior, fazê-lo absorver a opinião alheia sem questionamentos. De qualquer maneira, o espaço de confiança e diálogo estará maculado. Freire sugere, então, a tática momentânea do silêncio do educador. Que retomará mais adiante aquela diferença, expondo outro ponto de vista e propondo uma reflexão ou polêmica sobre aquela fala feita dias antes.

Nos dois momentos, tanto na decisão do silêncio tático pelo educador, quan-to no momento em que decide retomar o tema ou observação que discorda, o educador decide pela intuição. Pela leitura atenta que faz sobre os educandos e seu comportamento, assim como o nível de maturação que o espaço cole-tivo atingiu. O que nos remete, novamente, à autoridade do educador, sua função e responsabilidade, mas também a possibilidade de erro. Por ser uma relação humana, o processo educacional (e de aprendizagem coletiva) nunca é totalmente planejado (as lacunas são necessárias para arejar e incorporar as dúvidas e incertezas) ou matematicamente construídas.

EmpatiaEmpatia é a capacidade de sentirmos o que sente ou sentiria uma outra pes-

soa caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela. Consiste em tentar compreender sentimentos e emoções, procurando experimentar de forma objetiva e racional o que sente outro indivíduo. Mas também compreender as condições concretas de vida que o outro possui. Trata-se de um elemento central para a justiça como equidade, e não somente como igualdade.

A justiça como igualdade se baseia na noção que a regra justa ou correta é aquela que é igual para todos. Isto só é correto numa situação hipotética em que todos possuem a mesma condição de vida ou existência. O que dificil-mente ocorre. Vejamos o caso de uma corrida olímpica de 400 metros.

Page 50: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

50

Se todos saírem na mesma linha, os que estiverem nas raias mais abertas terão que correr uma distância maior que aqueles que estiverem nas raias de dentro da pista, em função da curva que farão ao final de cada reta. O que parece justo – todos saírem em linha, um ao lado do outro – é injusto em fun-ção das diferenças de condições da pista.

Qual seria a regra mais justa? A que se baseia na equidade, ou seja, a adap-tação da regra a um caso específico, sendo o justo a distribuição proporcional dos recursos que envolve ou, muitas vezes, a distribuição de recursos con-forme o grau de necessidade dos participantes envolvidos. Para Lawrence Kohlberg, já citado neste caderno, trata-se de uma regra que compensa as desigualdades que podem ocorrer em alguma situação, uma operação de compensação da igualdade.

Retoma-se, assim, a noção piagetiana de egocentrismo infantil, quando a criança entende que o que é certo é o que é bom para ela ou, ainda, o que é certo é o que garante sua proteção ou a regra daqueles que a protegem; ten-do como contraponto o distanciamento esperado do adulto que administra seu egoísmo e reflete sobre o certo como definidor da convivência coletiva que define a lógica humana.

Para Kohlberg, o estágio mais avançado de desenvolvimento moral seria aquele em que estaria orientado não apenas para regras sociais prescritas e vigentes, mas para princípios de escolha que possam ser universais, fundadas na consciência, no respeito e confiança mútua.

Page 51: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

51

“A empatia leva, portanto, ao diálogo, à observação, à captura da lógica de pensamento do outro. No caso do educador, leva à atenção sobre as

diferenças, os valores, a percepção e a consciência sobre o mundo de cada educando.”

A empatia leva, portanto, ao diálogo, à observação, à captura da lógica de pensamento do outro. No caso do educador, leva à atenção sobre as diferen-ças, os valores, a percepção e a consciência sobre o mundo de cada educando. Um quebra-cabeça que se monta ao longo do percurso educacional que ele estabelece. Daí a condição fundamental das práticas dialógicas estabelecidas no espaço de aprendizagem.

A capacidade de se colocar no lugar do outro, que se desenvolve através da empatia, ajuda a compreender melhor o comportamento em determinadas circunstâncias e a forma como o outro toma as decisões.

Page 52: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo
Page 53: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

53

instrumentos pedagógicos

Page 54: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

54

Educação Popular e o Projeto da Escola da CidadaniaA proposta de montagem de uma rede de Escolas da Cidadania surgiu nos

anos de 1950 e 1960, no sul dos EUA, mais especificamente na Ilha Johns, na Carolina do Sul, no contexto das lutas anti-racista. Os princípios dessa ex-periência foram concebidos e formulados pelo educador Myles Horton. Sua intenção, na época, era alfabetizar negros para que pudessem assumir em plenitude sua cidadania. É importante destacar que naquele período, os ne-gros não votavam por serem, em sua maioria, analfabetos.

O mais inovador, nesse projeto, foi a concepção metodológica que assum-iu e a forma organizativa. A concepção metodológica propunha uma relação de diálogo e de experiência compartilhada entre educador e educando, de modo que os professores eram negros e da própria comunidade. Vislumbra-se, sob essa perspectiva uma relação de solidariedade entre eles posto que, compartilhavam uma trajetória de vida pessoal marcada pelas mesmas dificul-dades socioeconômicas, preconceitos, discriminação. Neste caso, a primeira professora da Escola da Cidadania foi uma jovem negra (Bernice), com en-sino secundário incompleto, que dirigia um salão de cabeleireiros para ne-gros. Horton a convidou para atuar no projeto e solicitou que elaborasse o seu próprio plano de aula. Bernice adotou, para surpresa e encanto de Hor-ton, a Declaração dos Direitos Humanos como cartilha básica do processo de alfabetização. A estrutura organizativa adotada foi a de auto-gestão e rede (muitas escolas foram se espalhado pelos EUA, com a mesma dominação, sem uma hierarquia de comando).

A proposta de projeto da Escola da Cidadania, portanto, tem sua organi-zação e ações delineadas a partir dos pressupostos teórico-metodológicos da chamada educação popular. Esta concepção metodológica, inserida também no contexto dos anos de 1950 e 1960, é marcada pelas discussões sobre a questão do subdesenvolvimento e do europocentrismo.

Conforme Immanuel Wallerstein, em seu texto Eurocentrismo e seus ava-tares, a crítica ao europocentrismo diz respeito ao questionamento da difusão dos saberes científicos, hábitos, valores e práticas organizadas do ponto de vista da historiografia européia. Ou seja, o que estava sendo questionado neste debate era o modelo de explicação unilateral que classifica as diversas culturas e seus modos de organização como “desenvolvidas” ou não (con-forme a noção européia de desenvolvimento). O europocentrismo, portanto, difunde uma hegemonia da cultura ocidental sobre as demais.

Cabe ressaltar que a crítica ao europocentrismo não se dá no sentido de desvalorizar e repudiar os saberes desenvolvidos pelas civilizações européias.

Page 55: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

55

A crítica se dirige aos modelos de explicações que procuram justificar e po-larizar as desigualdades entre os países do norte (Europa e América do Norte) e os do sul (América Latina, África e Oriente). Ou seja, a proposta é descon-struir os discursos que legitimam a dominação político-econômica e cultural dos países “desenvolvidos” sobre os “subdesenvolvidos”.

A concepção de educação popular que emerge nesse período passa a defender uma valorização das diferentes formas de construção e expressão de conhecimen-tos, em oposição as classificações europocêntricas. Na perspectiva freiriana, con-forme vimos anteriormente, a educação se faz em uma relação dialógica, na qual educador e educando se modificam no ato formativo. O educador trabalha em uma posição de alternância e de valorização dos saberes do educando; o processo de aprendizado se desenha por uma relação entre sujeitos. Segundo Freire, em Pedagogia do Oprimido, a educação popular deve primar por uma formação que possibilite a prática da liberdade, sendo um instrumento para se compreender e refletir sobre as contradições do mundo. A Educação popular, portanto:

“refere-se a uma gama ampla de atividades educacionais cujo objetivo é estimular a participação política de grupos sociais subalternos na transformação das condições opressivas de sua existência social. (...) Em geral, seguindo a teorização de Paulo Freire, busca-se utilizar métodos pedagógicos – como o método dialógico, por ex-emplo – que não reproduzam, eles próprios, relações sociais de dominação”. (Silva, Tomaz Tadeu da p. 48. cit. Brandão)”

Em termos legais, na atualidade, um projeto que busca fortalecer e ampliar o exercício de uma cidadania ativa e de uma cultura democrática participativa en-contra, ainda, respaldo nas conquistas expressas na Constituição Federal de 1988, em especial, os artigos 14 e 204:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto di-reto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de out-ras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;

Page 56: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

56

II - participação da população, por meio de organizações representativas, na for-mulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

Os objetivos de constituição de uma rede de Escolas da Cidadania estão pauta-dos, portanto, pelo fomento à construção de um saber político popular. Visa, dessa forma, garantir a autonomia política da sociedade civil e estimular sua organização e envolvimento com a gestão do Estado democrático, poroso à participação ativa dos cidadãos na formulação de políticas públicas. Sugere, assim, o alimento edu-cacional para a reforma e ampliação democrática da gestão pública em nosso país.

Como planejar um cursoUm curso apoiado nos princípios da educação popular parte, sempre, de um di-

agnóstico da cultura e dinâmica social dos educandos envolvidos na programação.

Lembremos os motivos para este primeiro passo. No prefácio à Fenomenolo-gia da Percepção, Merleau-Ponty sustenta um processo de envolvimento com o mundo a partir da visão e experiência pessoal do mundo:

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não po-deriam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu senti-do e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda.

A ciência é a segunda expressão do mundo. A primeira é a experiência vivida, que forma a visão de mundo de quem a vive. Merleau-Ponty aprofunda ainda mais esta sensação do mundo, enquanto choque, instantâneo o pontual, mas nunca neutro, porque o que eu percebo é imediatamente interpretado pela experiência passada. Não existe impressão pura. O sensível não é um efeito imediato de um estímulo externo, mas uma interação entre o que vejo e como eu interpreto o que vejo.

Esta noção é fundamental para entendermos que ninguém não sabe nada sobre o mundo ou sobre tudo. Ao contrário, tudo é refletido, repensado, percebido a partir do seu passado e de sua experiência concreta de vida. As imagens são re-criadas a cada geração.

Qualquer curso ou interelação pedagógica, educativa, se não interage com esta reflexão inicial sobre o mundo e sobre a próprio curso que inicia, cria um impacto autoritário, que distancia o educador doeducando. Por outro lado, ao iniciar pela busca da percepção do educando, cria uma trilha de diálogo, um processo por onde as duas partes interagem e podem construir conhecimento sobre um tema ou um problema.

Page 57: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

57

Neste caso, o caminho correto seria definir o tema em questão (o tema do curso) após a problematização com os educandos ou com as estruturas de representação sociais dos educandos (sindicatos, conselhos, associações, entre outros). O tema é criado a partir de interesses concretos, de dinâmicas sociais e valores construídos pela experiência pessoal e coletiva.

Esquematicamente, a partir do diagnóstico inicial e escolha do tema, os passos de organização de um curso são:

• Planejamento de um curso

• Estudo sobre o Público-Alvo

• Definição do tema central

• Definição da Ementa (breve resumo sobre os objetivos e sub-temas que e volvem aquele curso)

• Definição da duração do curso

• Definição dos módulos (ou subtemas a serem desenvolvidos)

• Definição do método e instrumentos: grupos, discussão de vídeos, aulas e positivas, debates, seminários, aula dialogada, oficinas

• Definição dos instrumentos de avaliação

• Bibliografia ou recursos pedagógicos e de consulta e aprofunda-mento

Detalhemos cada um desses passos.

O Estudo sobre o público ou educandos envolvidos no curso é fundamental pelo exposto anteriormente. Infelizmente, nunca é possível garantir informações precisas sobre os educandos ou mesmo um tempo inicial para dialogarmos com eles. O tempo é cada vez mais escasso, mesmo na educação . Daí esta primeira etapa nem sempre ser possível ser produzida antes do início do curso.

Mas, mesmo numa situação não ideal, é importante que a programação do curso parta de um mínimo de informações sobre o perfil dos educandos, pro-curando estabelecer uma relação direta, um atalho, entre os seus interesses e os desafios que o curso estará propondo.

Ainda assim, é fundamental que se pense um momento ou uma dinâmica inicial do curso onde a proposta seja cotejada pela opinião e interesses do grupo de ed-ucandos. Daí a necessidade de um curso evitar exposições, de caráter unilateral. Antes, é fundamental pensar numa provocação, num dilema ou polêmica, num processo de discussão em grupos ou cochichos entre vizinhos de cadeira na sala onde se realiza o curso. A programação, assim, vai se ajustando pouco a pouco.

Page 58: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

58

Definido o tema, é importante que os educadores elaborem uma breve ementa do curso. Esta ementa, como apontado anteriormente, será submetida aos ed-ucandos-cursistas e poderá sofrer ajustes. Mas um bom diálogo tem início com proposições objetivas e concretas. Não se responde uma questão que é dúbia, confusa, mal formulada. A ementa auxilia a formular com clareza a proposta do curso.

Uma ementa é objetiva e concisa. Vejamos um exemplo:

EMENTA DE UM CURSO UNIVERSITÁRIO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO: Seminário em Filosofia Moderna. O ensaio sobre Entendimento Hu-mano de Locke.

EMENTA: Através de uma leitura do Ensaio de Locke, especialmente dos livros I, II e IV, buscaremos examinar alguns dos principais temas da epistemologia de Locke, tais como, seu caráter normativo, a natureza e alcance de sua crítica à ex-istência de idéias inatas, sua teoria das idéias, a distinção entre ciência e opinião, sua concepção de probabilidade, e seu posicionamento face ao ceticismo e ao cartesianismo.

A ementa acima faz uma promessa ao educando, indica o tema e as fontes (livros I, II e IV) de estudo, além de seu objetivo (examinar alguns dos princi-pais temas da epistemologia de Locke). Os educandos saberão pela ementa se este curso lhes interessa e avaliarão o seu resultado a partir da promessa que a ementa encerra.

O público de educandos envolvidos deve, novamente, orientar a organização do tempo, a duração, seqüência de temas. Um exemplo claro é o do primeiro curso de formação de conselheiros de Maringá. Grande parte dos cursistas tra-balha em horário comercial (principalmente os não governamentais). Ao consul-tá-los, a demanda foi que o curso básico fosse realizado entre 16h e 18h, durante a semana. Toda a programação foi estruturada a partir desta disponibilidade e demanda, o que criou uma situação inusitada e inesperada.

Ao organizar o tempo de duração do curso é importante levar em consideração a necessidade de existir um intervalo relativamente longo entre um e outro en-contro, não esgotando o tema em apenas um evento de dois ou mais dias. São dois motivos principais para segmentar a programação. A primeira é cognitiva. Em cursos de curta duração (ou até média duração), o volume de informações é considerável: compreender a dinâmica, o seu lugar no curso, seus colegas de curso, os conceitos, as conclusões, a relação entre sua prática e a auto-avaliação que o processo educativo implica. É fundamental que ocorra um intervalo de alguns dias para que aquele impacto seja refletivo e que, principalmente, seja cotejado pela rotina e desafios cotidianos. Assim, o conhecimento produzido em

Page 59: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

59

sala, durante o curso, se mistura com o cotidiano e se reorganiza, possibilitando se transformar em experiência concreta. Esta dinâmica prática-teoria-prática é o que dá consistência e objetividade (ou concretude) a um curso apoiado nos princípios da educação popular.

“Um programa de formação, assim pensado e praticado - inconcluso por natureza - deve ser sempre criticado, reelaborado, reavaliado, (re)

construído, numa perspectiva de trabalho coletivo e participativo.”

Um segundo motivo é possibilitar uma prática de estágio. O estágio ou dever de casa é o mesmo processo de relação teoria-prática indicado acima, mas com um elemento a mais: a intencionalidade pedagógica. Todo estágio é programado para forçar uma situação de aprendizagem e uma possibilidade do educando or-ganizar a coleta de informações e situações que se relacionam com os objetivos e temas do curso. Podemos citar um exemplo. Imaginemos que o tema do curso é produção da proposta de orçamento municipal para o ano seguinte. Ao pro-gramarmos um estágio na Câmara Municipal e na Secretaria de Planejamento, o cursista-educando terá oportunidade para perceber a dinâmica real da produção do orçamento, que até então apenas discutiu e leu na sala de aula. As disputas, as diferenças entre repartições, os atores principais na elaboração do orçamento aparecerão vivamente. Já disseram que na prática, a teoria é outra. Na volta ao curso, as informações obtidas redefinem as discussões e criam um sentido novo ao processo de aprendizagem.

O tempo do curso organizado implica em pensar os módulos do curso: o en-cadeamento dos temas. Os módulos, contudo, devem compor e organizar os momentos de leitura, a troca de experiências, a sistematização de conhecimen-tos, os desafios, os estágios programados ou dever de casa, os trabalhos em grupo. Simplificando, é possível dizer que os módulos (encadeamento dos te-mas) formam o esqueleto do curso e as dinâmicas constituem o conteúdo, a carne do curso.

Vejamos, a seguir, um exemplo de estrutura de organização de um curso de formação para

Escola da Cidadania:

Módulo I – Formação do grupo

É fundamental que os monitores selecionados para a Escola da Cidadania ten-ham um momento inicial de trabalhar a si mesmo, de constituir-se num grupo, com objetivos comuns, respeitando-se suas diferenças, para poder estimular essa mesma disposição nos educandos.

Page 60: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

60

a) Constituição do Grupo de monitores

b) Os princípios da Escola da Cidadania

c) O papel dos monitores/educadores

Módulo II - Introdução à questão da democracia e conselhos,

a) Introduzir a questão dos conselhos no debate democrático, o papel do Es-tado e da sociedade civil, os conceitos de cidadania; democracia representativa e democracia participativa.

b) Conhecer o funcionamento do poder público municipal; leis e normas vi-gentes; Noções sobre a elaboração das políticas públicas, orçamento, execução orçamentária

c) A política de participação do município; Lei de responsabilidade social e fis-cal; as políticas sociais do município; os conselhos de Pouso Alegre e o perfil dos conselheiros

d) Introdução à questão social local: conjuntura política e organização social; segmentos sociais vulneráveis; identidade territorial e cultural; indicadores so-cioeconômicos.

Módulo III – Metodologia de trabalho dos monitores da Escola da Cidadania

a) Teoria: Paulo Freire e a Educação Popular

• Métodos e instrumentos de formação popular

• O método dialógico: a experiência concreta e os conceitos

• O tempo do homem simples (o real a construção dos conceitos);

• Postura e linguagem do educador

b) Metodologias Participativas, dinâmicas e leitura de grupo13

c) Arte e Educação, Psicodrama

d) Tecnologias da Informação

e) Definição de pistas para elaboração da metodologia de formação dos con-selheiros e outros.

Módulo IV - Sistema de Avaliação e Monitoramento

O programa de formação da Escola da Cidadania deve ser continuamente mon-itorado e avaliado pela equipe gestora, educadores e, principalmente, pelos edu-candos. O objetivo central da atividade de monitoramento alcançar os objetivos

13 Selecionar material de dinâmicas e metodologias participativas. Indico: Bosch, Eduardo Rombauer van den Cadernos dePropostas: Métodos e Atitudes para facilitar reuniões participativas, 2ª. Ed, revista e ampliada, São Paulo. Coordenadoriado Orçamento Participativo da Prefeitura do Município de São Paulo e Fundação Friedrich Ebert/Ildes, 2004.

Page 61: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

61

gerais estabelecidos para a Escola através de:

a) Planejamento criterioso do trabalho: estudos, planejamento, produção de roteiro, simulações; registros.

b) Avaliação de satisfação imediata, por meio de um formulário específico, elaborado pela equipe de formação, no qual os educandos preencham ao final de cada módulo sua avaliação com relação à: exposições, dinâmicas, conteúdos, materiais distribuídos, facilitadores, trabalho em grupo, objetivos do dia, auto-avaliação e sugestões.

c) Reuniões periódicas de equipe para avaliação das atividades executadas e replanejamento, conforme as contribuições dos participantes e das observações dos facilitadores e expositores.

d) Monitoramento externo das ações (opcional) , realizado pela parceria com alguma entidade, órgão ou instituição O monitoramento das atividades deve registrado num formulário elaborado conjuntamente com a Equipe de Formação da Escola da Cidadania, a partir de um conjunto variado de indicadores de aval-iação, tais como: infra-estrutura (referente às condições do espaço físico), recur-sos humanos, recursos materiais, equipamentos disponíveis, etc) ; indicadores de funcionamento (referente à medição da produtividade, eficiência, acesso, organização, grau de participação e envolvimento dos atores, as formas de atu-ação, etc.) e, principalmente, indicadores de resultados para medir a eficácia, o desempenho, satisfação do beneficiário, etc.

e) Avaliação de Resultado e de impacto da formação nos trabalhos dos conselheiros(as). A necessidade de constantemente avaliar as atividades coloca um desafio, muito proclamado, mas nem sempre executado em vários progra-mas educativos, de pensar como se pode medir, captar se as atividades da for-mação tiveram os resultados esperados, se os conteúdos trabalhados tiveram efetividade, ou até mesmo, de forma mais abrangente, se esses conteúdos e conhecimentos impactaram, de alguma forma, o processo e a comunidade em que estão inseridos os conselheiros(as).

Assim, as ações que visam o monitoramento e avaliação desse tipo de trabalho podem ser empreendidas em três tempos diferentes: previamente antes do de-senvolvimento das atividades (no intuito de se fazer uma reflexão crítica antes da ação); durante o processo de implementação ou execução das ações (no in-tuito de acompanhar todos os passos do desenvolvimento); e após a realização da ação (no intuito de avaliação das ações já concluídas). Um programa de for-mação, assim pensado e praticado - inconcluso por natureza - deve ser sempre criticado, reelaborado, reavaliado, (re)construído, numa perspectiva de trabalho

Page 62: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

62

coletivo e participativo.

Módulo V - Elaboração do Curso básico de formação para os conselheiros

Com base nos princípios norteadores da escola da cidadania, nos módulos an-teriores do curso e nas pistas construídas, o grupo vai elaborar uma proposta de curso básico para os conselheiros.

Os módulos, como se percebe, organizam uma lógica temática e indica os sub-sídios que serão utilizados como apoio. Obviamente que, durante o curso, o que foi programado pode ser alterado. Mesmo assim, a organização em módulos auxilia a organizar mentalmente uma seqüência de raciocínio e de fontes. É um instrumento do educador e detalha a ementa. Mais adiante será apresentado um.

Os instrumentos utilizados vinculam-se ao método. Vários instrumentos serão tratados no próximo item deste documento.

Os instrumentos pedagógicosNeste item, vamos esboçar a estrutura e a função de alguns instrumentos ped-

agógicos, que podem ser utilizados nos cursos.

São eles:

• Grupos

• Aula expositiva

• Aula dialogada

• Debates e Seminário

• Oficinas

Sobre os GruposA função de um trabalho de grupo é criar um ambiente de maior conforto e

troca de opiniões, também podendo facilitar a leitura e discussão de um texto mais complexo. A natureza de todo ponto de vista pedagógico, o grupo cria o ambiente para que se socialize a palavra, dando condições para os mais tímidos emitirem suas avaliações e sugestões. Assim, os grupos não podem ter muitos componentes, ou perde justamente seu significado. Um bom número de partici-pantes é o de 10 a 15, podendo oscilar a partir desta referência, mas nunca super-ando vinte participantes. Também é preciso que a palavra e as idéias se comple-mentem, não reproduzindo as regras e normas rígidas, que procuram controlar o tempo, em plenárias com muitos participantes. Um grupo elege, antes do início do trabalho, um coordenador e um secretário. O coordenador terá como

Page 63: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

63

funções estimular e garantir a palavra de todos os membros e promover a pauta de discussão. O secretário terá a função de registrar as conclusões do grupo e, quando necessário, as divergências, além de apresentar seu breve relatório na plenária, quando todos os grupos se juntam novamente.

Podemos, então, afirmar que o grupo é um espaço de aprofundamento de reflexões, de estabelecimento de sistematizações e identificação de diferentes posicionamentos. A plenária, ou espaço aberto com todos educandos, muitas vezes é monopolizado por quem fala mais ou é mais carismático. Os mais tímidos e introspectivos não têm muita vez em espaços amplos. Daí o uso constante e alternado de grupos e plenárias.

Aula ExpositivaToda aula expositiva tem no expositor seu principal protagonista, tolhendo a

fala dos educandos. Este instrumento não é, portanto, o mais adequado para o desenvolvimento dos princípios da educação popular. Contudo, em algumas situações, a exposição organizada de um conceito, uma situação histórica. A ex-posição, no caso, será informativa, já que não poderá retratar, pela natureza da exposição, um problema, polêmica ou debate. Por este motivo, deve ser lógica e sucinta. Estudos recentes revelam que jovens ocidentais não conseguem manter atenção por mais de vinte minutos. Uma exposição pode, a partir deste dado, ser organizada para durar 30 minutos e não mais. Para facilitar, o expositor pode uti-lizar como recurso uma síntese das informações e conceitos expostos em tarje-tas que são pregadas numa parede na medida em que avança na argumentação (ou power point, se tiver acesso a data show). Uma exposição deve observar os seguintes itens:

a) Apresentar o plano geral da exposição para os educandos, propiciando niti-dez sobre a evolução da argumentação e as passagens de cada etapa;

b) Se for um conceito ou teoria a ser apresentada, iniciar a exposição com a relação dele(a) com o cotidiano dos educandos;

c) Localiza historicamente o desenvolvimento da teoria ou conceito, os obje-tivos, motivações que levaram a este desenvolvimento;

d) Apresentar seus fundamentos;

e) Concluir com algum exemplo ou caso que relacione teoria com práticas con-cretas;

f) Apresentar impasses e desafios relacionados ao tema.

Se possível, apresente bibliografia sobre o tema, mantendo sempre a linha da

Page 64: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

64

pluralidade, ou seja, várias linhas teóricas ou publicações de linhas políticas dis-tintas para que o educando tenha um panorama mais amplo de consulta.

Após a exposição, os cursistas-educandos podem debater com o expositor, fi-nalizando com a construção de um Quadro Síntese ou de Conclusão. Também é importante que uma síntese da exposição seja entregue a todos educandos para que possam aprofundar e revisar sua compreensão, evitando também que sejam obrigados a fazer anotações durante a exposição. Este texto-síntese pode ser, inclusive, objeto de discussão posterior em grupos de trabalho, diluindo o caráter dominante da lógica do expositor.

Aula DialogadaO nome já diz tudo. Uma aula dialogada é aquela que se desenvolve a partir da

promoção de debates com os educandos. O educador sabe como inicia e tem um roteiro planejado, mas não tem certeza de como a aula terminará, justamente porque será fruto dos debates.

Fazendo uma analogia com pesquisa, a aula dialogada é como um grupo focal. No grupo focal, os entrevistados são apenas estimulados e levemente orienta-dos a discutir temas previamente elaborados em formato de roteiro. Contudo, é o debate entre os participantes do grupo que orienta a seqüência e evolução do roteiro, o que exige grande habilidade do moderador do grupo focal. Na aula dialogada ocorre o mesmo: o educador propõe o tema, modera, oferece informações e aprofunda conceitos, mas segue o rumo do debate, o calor da discussão. A construção do conhecimento é feita a partir de uma costura fina, onde o educador polemiza, estimula a participação de todos, lê informações e teorias conflitantes, estimula o dilema e, cuidadosamente, propõe uma síntese, uma conclusão final que é sempre submetida à sala. Não se trata de uma mera didática ou dinâmica de motivação, mas de uma costura, um diálogo entre teo-rias, informações, leituras e proposições do educador, intervenções dos educan-dos e estímulo ao aprofundamento das argumentações, procurando estabelecer a construção de consensos e leituras mais complexas e fundamentadas. Ao final da aula, as conclusões ou quadro de síntese (que pode apresentar divergências de opinião) pode ser utilizada como pauta para aprofundamento nos grupos de trabalho, criando um novo ciclo aula-grupo-aula.

DebatesOs debates estimulam a polêmica, o dissenso, a partir de dilemas intelectuais

e morais. A forma mais completa de organização de um debate é o seminário, denominado assim porque dissemina (de sêmen) uma discussão. Inicia-se com um plantio e prossegue até concluir com uma colheita (conclusões). Num semi-

Page 65: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

65

nário, todos participantes recebem com antecedência um texto provocação, o que lhes permite a preparação para a discussão. A discussão, por sua vez, segue regras de conduta: argumento e contra-argumento, respeito à opinião e à liber-dade de expressão, foco na questão ou tema, crítica, síntese e conclusão. Há várias técnicas de organização, sendo a mais antiga a reprodução de um tribunal de julgamento, com defesa e ataque a uma posição explicativa ou teórica, funda-mentando as argumentações, onde a sala é dividida em dois grupos oponentes.

OficinasDo latim officina, significa lugar onde se exerce um ofício, laboratório, local

destinado a trabalhos de produção. Ofício, por sua vez, significa produção man-ual, prática ou até mesmo profissão. Uma oficina tem este sentido de produção coletiva de algo prático. Assim, toda oficina possui um objetivo, uma meta a ser produzida por um grupo. Distingue-se do grupo de trabalho justamente em vir-tude deste objetivo prático. Concretamente, uma oficina pode ter um modera-dor, que organize o trabalho coletivo, mas é a produção do grupo que define a lógica e dinâmica de trabalho. Um grupo de dez pessoas é adequado para a produção coletiva. Uma oficina pode produzir um texto coletivo a respeito de um tema, produzir um planejamento de trabalho, organizar e montar um curso ou mesmo produzir algo que exija habilidades manuais (produção de um vídeo ou um cartaz, por exemplo). Trata-se de um trabalho prático, coletivo.

Escola da Cidadania de Maringá: breve relato de experiênciaEste tópico tem como objetivo apresentar a experiência de implantação da Es-

cola da Cidadania no município de Maringá, Paraná a partir da descrição das ativi-dades práticas que foram desenvolvidas. Estas atividades práticas contemplam os instrumentos metodológicos citados anteriormente. Primeiramente será de-scrito a experiência de realização de uma oficina; na sequência será apresentado a estrutura de organização de um curso e um modelo de plano de aula.

Desse modo, podemos destacar como substancial nesse relato de experiência a promoção do diálogo, enquanto princípio da educação popular:

“[...] o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua reali-dade tal como a fazem e re-fazem,” FREIRE, Paulo & SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

Em Maringá o grupo de educadores da Escola da Cidadania constituiu-se de forma plural, ou seja, pessoas de diferentes áreas de formação e atuação. Es-tudantes universitários (curso Ciências Sociais e Jornalismo), professores da

Page 66: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

66

educação básica (matemática, história e filosofia), conselheiros (saúde, CMDCA, Alimentação) e servidores públicos (psicóloga, assistente social). A construção de um espaço plural começa pelo próprio diálogo entre os educadores, respeit-ando-se os saberes, experiências e visões de mundo de cada um.

Dessa forma, a proposta inicial é dialogar com algumas percepções da reali-dade expostas por educandos em uma das oficinas realizadas pela Escola da Ci-dadania em Maringá, vejamos nos quadros abaixo:

GRUPO 1• A guerra é mundial, não é só de um país;

• Nós enfrentamos a realidade como uma guerra, pois não se tem oportunidade;

• Necessidade de interação com a comunidade;

• Discutir com os detentos a realidade;

• A lei tem que ser cumprida para todos;

• É preciso perceber a violência para além da realidade próxima.

GRUPO 2• Realidade de pobreza;• Felicidade, auto-estima apesar da pobreza;• O desenvolvimento não deve ser só econômico;• Necessidade de desenvolver o bem-estar social;• Os discursos dos governos não condizem com as suas ações;• A ressocialização deve se dar com uma interação real com a socie-

dade;• É preciso mudar os discursos da sociedade;• Ter oportunidades reais.

Page 67: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

67

A síntese dessas ideias expostas pelos grupos se deu após debate sobre alguns temas selecionados para a oficina: violência, crimininalidade, política, desigual-dades sociais, família cujo objetivo central era o de incentivar a reflexão e per-cepção para além da realidade habitual. Ou seja, desconstruir conceitos pré-for-mados, como, por exemplo, de violência, discriminação, e pobreza. A proposta inicial foi a de que se reunissem em grupos para analisar figuras de revistas dis-tribuídas aleatoriamente respondendo “onde estava a cidadania ou onde ela es-tava ausente?”. Levamos imagens variadas e de situações diversificadas: guerra, família, moradias precárias, hospital, entre outras.

Este momento inicial é muito importante porque é quando se revelam as con-cepções de mundo que os educandos têm construídas. A partir daí podemos estabelecer um diálogo, questionando suas respostas e reflexões, que no caso dessa oficina consistia em confrontálas com concepções de cidadania. Esses pas-sos contemplam duas etapas da proposta metodológica de Paulo Freire:

GRUPO 3

• Muita violência na sociedade;

• As mudanças têm que começar da base; é preciso mais investi-mentos;

• Resgate de valores familiares e necessidade da religiosidade da formação moral;

• Políticas públicas que apoiem os ex-presidiários;• O preso é um produto da má administração governamental;• Mudar o pensamento de que na favela só tem bandido.

GRUPO 4• Problema da discriminação;• A violência não se liga apenas à classe social;• Impunidade com os que tem poder econômico ou político;• As leis não servem para todos;• A imprensa, muitas vezes, distorce os fatos;• Os políticos devem prestar contas à população.

Page 68: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

68

1° Estudo da Realidade (fala do educando)

2° Organização dos Dados (fala do educador).

Nesse processo surgem os Temas Geradores, extraídos da problematização da prática de vida dos educandos. Esses conteúdos de ensino são resultados do que se denomina na pedagogia freiriana de metodologia dialógica. Cada pessoa, cada grupo envolvido na ação pedagógica dispõe em si próprio, de seus valores, concepções. O importante não é transmitir conteúdos específicos, apresentan-do um paradoxo entre certo e errado; o importante é despertar uma nova forma de relação com a experiência vivida. O ato educativo deve ser sempre um ato de recriação, de re-significação de significados.

“À medida o saber do educando é tão importante quanto o do educador, apresenta-se uma lógica de horizontalidade, que se opõe à relação de

autoridade/autoritarismo entre professor/aluno.”

Iniciar nossas aulas relatando uma experiência concreta tem, por um lado, a intenção de mostrar como as atividades se fazem pedagógicas em toda a sua estruturação, e que são dinâmicas, pois à medida o saber do educando é tão importante quanto o do educador, apresenta-se uma lógica de horizontalidade, que se opõe relação de autoridade/autoritarismo entre professor/aluno.

Por outro lado, a intenção é apontar as dificuldades que se desenham na atividade do educador e, por isso mesmo, a importância da formação e de uma postura inovadora e aberta. Essa atividade fez parte de um ciclo de oficinas so-bre cidadania e participação que realizamos com dois setores distintos da so-ciedade: de um lado, indivíduos em situação de reclusão, o que incluiu alguns alunos do EJA da penitenciária estadual de Maringá e participantes de um grupo de apoio e recuperação de dependentes químicos; e, do outro, adolescentes que participavam de projetos de inclusão social e de grêmios estudantis.

Esta oficina descrita foi realizada na penitenciária e teve uma dinâmica distinta das demais atividades, por conta das características e regras próprias da insti-tuição. Isso nos trouxe a exigência de adequar nossa postura a um ambiente com regras rígidas, impessoal e opressor, e veio a indagação: como não perder de vista a postura de educador popular? Como não reproduzir as estruturas de opressão e violência da sociedade que se materializam de forma tão concreta nesse ambiente?

Descendo as escadas e olhando ao redor era possível também se sentir enclau-surado. Portões, grades, cadeados, você se sente sufocar, falta algo a que esta-mos habituados, mas que nem sempre prestamos atenção: a sensação de liber-dade. Chegamos à sala reservada para fazermos as atividades, eram 20 homens

Page 69: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Escola da cidadania de contagem osvaldo orlando da costa

69

que foram escolhidos entre os alunos do programa de educação para jovens e adultos. Pedimos que se organizassem em um círculo e ninguém teve a iniciativa de se mover do lugar. Apenas quando um dos dois agentes que nos acompan-hava repetiu nosso pedido é que se levantaram prontamente e se dispuseram em um círculo. Quando se está submetidos a certas regras diárias e a um ambi-ente que nos determina todas as condutas que se pode ter, não é permitido sair da rotina. Nesse ambiente de contradições tão evidentes é que os pressupostos da educação popular se mostraram tão urgentes e adequados.

Na interação inicial solicitamos que cada um se apresentasse, dizendo nome e de onde era; depois foi a nossa vez. O início foi meio truncado, era preciso ad-mitir: não estávamos à vontade como em outras oficinas. Em nossa cabeça um turbilhão de idéias e sentimentos: não esquecer as regras, não esquecer onde es-tamos, não perder o foco da oficina, não se mostrar com medo, nem superiores, manter a calma. De repente um deles fala: “podem ficar calmos que não vamos fazer ninguém de refém.” Não foi fácil lidar com essa afirmativa do detento; foi ao mesmo tempo um alívio e um “tapa na cara”. Como aquelas situações que te chocam e ao mesmo tempo “clareiam” a situação; de repente lembramos que acima de tudo estávamos lidando com gente e não bichos. Mesmo assim o temor não desapareceu. Eram pessoas que cometeram erros suficientemente graves para serem privados do convívio geral da sociedade, mas por que não discutir cidadania também com eles?

Se retomarmos as “falas” sintetizadas pelos grupos de trabalho, podemos perceber concepções, valores e preocupações correntes no imaginário social: a importância da família e da religião; discriminação e diferenças sociais; o prob-lema da pobreza, da impunidade e aplicação das leis. Observa-se também uma problematização da realidade: necessidade de controle social, participação, e elaboração de políticas públicas. Conjuntamente à essas percepções está tam-bém uma defesa da posição social, da condição em estão inseridos, ou melhor, excluídos, da sociedade. Ao apontarem a precariedade das políticas de resso-cialização e das condições carcerárias estão defendendo uma situação pessoal, mas isso não deixa de ser um tema de discussão e interesse da sociedade.

O objetivo final da atividade era justamente conseguir, por meio de um exercí-cio prático ressignificar os conceitos de cidadania e participação.

Portanto, numa oficina o objetivo é a construir um trabalho prático, coletivo, por exemplo: produção de um texto coletivo a respeito de um tema, produzir um planejamento de trabalho, organizar e montar um curso ou mesmo produzir algo que exija habilidades manuais (produção de um vídeo ou um cartaz, por ex-emplo). No caso da atividade desenvolvida na penitenciária, além da construção da síntese coletiva, os detentos elaboraram cartazes com as figuras e apresenta-ram suas perspectivas sobre a representação ou não da cidadania pelas imagens.

Page 70: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA

70

exemplo de plano de aula

Curso de Formação Básica para Conselheiros Municipais

Eixo temático: representatividade e conselhos

Módu

los

Plano de AulaRecursos

pedagógicosAvaliação

Estágios(Tarefas)

20 m

in

Memória do encontro anterior.

Apresentação da tarefa: fazer uma encenação sobre uma reunião do conselho

• Pincéis atômicos;

• Papel Kraft;

• Fita Crepe;

• Slides sobre os principais conceitos;

• Data Show;

• Cartilha sobre os conselhos;

Avaliação oral

Avaliação Escrita:

• Local e Logística;• Dinâmica;• Professores;• Conteúdo;• Contribuições que o

curso possibilitou;• Sugestões;

• Elaborar construção conjunta sobre o que é repre-sentatividade.

• Reflexão sobre as atitudes, planejamentos, propostas, e que planos são possíveis de se pensar para o futuro.

15 m

in Planejamento em grupo das tarefas

50 m

in

• Apresentação das en-cenações;

• Avaliação sobre a elabo-ração e a apresentação das encenações.

Pontos a serem avaliados:1) O método - todos participaram, como dividiram as tarefas, etc;2) Processo decisório;3) Legitimidade do conselho, relação com a base que repre-senta.

Objetivo: reflexão do grupo sobre o papel dos conselhos.

50 m

in

Estudo dos conselhos:

• Exposição das respostas da pergunta proposta no encon-tro anterior. Debate. Síntese conjunta.

• Retomar a linha do tempo e construir um panorama com as perspectivas futuras.

Encerramento: avaliação do curso.

• Rápido compartilhamento das experiências e fecha-mento.

20 m

in

Page 71: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

Quem Somos

Instituto Cultiva

O Instituto Cultiva é uma organização não governamental criada em 2012. Seu objetivo é desenvolver programas e ações para formação para a cidada-nia e implantação de instrumentos e metodologias de controle social sobre políticas públicas. Tais objetivos se desmembram em vários programas e ações, tais como:

• Descentralização e reforma administrativa;

• Criação de conselhos de gestão pública e formação de conselheiros;

• Implantação de Escolas da Cidadania;

• Implantação de Orçamento Participativo Criança e Jovem;

• Formação técnica de gestores públicos;

• Reforma curricular e formação de professores;

• Implantação de Gestão em Rede

• Avaliação de condições de trabalho em redes de ensino e outros serviços públicos

• Implantação de sistemas de avaliação da população sobre gestão pública através de censos domiciliares mensais

• Implantação de sistemas de formação técnica à distância

@institutocultiva +55 (31) 9504-6556

Diteror Geral:Rudá RicciSecretária:Juliana Velasco

Revisão técnica e editoraçãoRudá RicciAndré DinizFranciele Alves da SilvaIlustrador:Alisson Bertelli

Page 72: Curso de Fomação de Educadores - Formação Continuadaformacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/Curso_de_for... · PARTE 1 - HISTÓRIA DA eDUCAÇÃO pOPULAR ... exemplo

A B C2 + 2

= 4

X-Y=?

2 + 2

= 4

X-Y=?

A B C2 + 2

= 4

X-Y=?

2 + 2

= 4

X-Y=?