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" I \ \ \ , 1[ 1 1 , \ ' r" !'1 oJ DA "INVASÃO" DA AMÉRICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJE: O DISCURSO DA "INFERIORIDADE" LATINO-AMERICANA .IosF. CAHI-OS MOREm.\ nA Slt\ ',\ FILlI0 1 SliMÁRIO: I. Introduc;àu. 2. O euroccntnsmo da modema. J, O mundo de Coloml'Xl: o cOllquistador curo- peu e o genocidio colnniaJ. 4. O deb ate de Valladolid: Oartolomé de Las (;353.,\ e a questão da igualdade dos indios. 5. A cultura amerindia e o fim do "quinto sol", 6. A cultura sincrétka da periferia: os rios "roslos" lati- no-americanos. 7. Os genocídios coloniais e as práticas extenninadoms dos sistemas penais. 8. Conclusão. 9. Referências bibliográficas. l. INTRODUÇÃO A idéia central deste texto surgiu de algumas r('nexões reitas por Eugenio Raú l Zarraroili, cm seu IhTO Em busca da,\' penas 1't!nIiJas. acerca do sistema penal na América Latina . É certo que as mal rizes teóricas utilizadas pelos nossos juristas e operadores do sistema penal provêm do pensamento primelro-mundi sta, inclusive o 1Iúcleo dos a pon- tamentos criticas para a superação de discursos obsoletos nesta ","Ctt. 1\ 'la s também é certo que aqui, no mundo periféric\). estes sahl.'n:s adquiriram um caráler cxtrcl1I:ttncnte peculiar e enlel. implicando lima prática de extenllínio em massa e de segregação social em escalas sem precedentes. Na verdade. como assinalou u jurista argclltino. o sistema teórico na área penal de lUU sincretismo assombroso. que , no funôo, esconde um disCLUSO extremamente racista, de na!urcza psicobiológica e de exclusão, ou, como diria o filósofo argentino Enrique Dussel, de "oc ultamento do oulro·'. I Professor e Coordenado r de Pesquis.1 do Centro de Ciências Jurídicas da 1 !NISINOS (RS). Mestre em Teoria c Filosofia do pela UFSC. Doutor t:rn Dirrito lia UFPR. Autor dos Filosofia Jllrídim da AII<!n'dadf.', Curitiba: Juru:'t, (" 1I(' nll{ ' n,'U f l l a fi'fo'Õ(ífho niJ'!'ifn Rio d (' 1:l1lci ro' I I1IllCI1 Jurl', 201),1

DA INVASÃO DA AMÉRICA AOS SISTEMAS PENAIS … · It ,,,i: ( Allt ()~ MClRflRA nA ~ll.Vi\ r" tiO Para um melhor entendimento dessa situação faz-se necessário ter conhecimento

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DA "INVASÃO" DA AMÉRICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJE:

O DISCURSO DA "INFERIORIDADE" LATINO-AMERICANA

.IosF. CAHI-OS MOREm.\ nA Slt\ ',\ FILlI0 1

SliMÁRIO: I. Introduc;àu. 2. O euroccntnsmo da vj.~l() modema. J, O mundo de Coloml'Xl: o cOllquistador curo­peu e o genocidio colnniaJ. 4. O debate de Valladolid : Oartolomé de Las (;353.,\ e a questão da igualdade dos indios. 5. A cultura amerindia e o fim do "quinto sol", 6. A cultura sincrétka da periferia: os vários "roslos" lati­no-americanos. 7. Os genocídios coloniais e as práticas extenninadoms dos sistemas penais. 8. Conclusão. 9. Referências bibliográficas.

l. INTRODUÇÃO

A idéia central deste texto surgiu de algumas r('nexões reitas por Eugenio Raúl Zarraroili, cm seu IhTO Em busca da,\' penas 1't!nIiJas. acerca do sistema penal na América Latina. É certo que as mal rizes teóricas utilizadas pelos nossos juristas e operadores do sistema penal provêm do pensamento primelro-mundi sta, inclusive o 1Iúcleo dos apon­tamentos criticas para a superação de discursos obsoletos nesta ","Ctt. 1\ 'la s também é certo que só aqui, no mundo periféric\). estes sahl.'n: s adquiriram um caráler cxtrcl1I:ttncnte peculiar e enlel. implicando lima prática de extenllínio em massa e de segregação social em escalas sem precedentes. Na verdade. como assinalou u jurista argclltino. o sistema teórico latino~americ3no na área penal ~ de lUU sincretismo assombroso. que, no funôo, esconde um disCLUSO extremamente racista, de na!urcza psicobiológica e de exclusão, ou, como diria o filósofo argentino Enrique Dussel , de "ocultamento do oulro·'.

I Professor e Coordenador de Pesquis.1 do Centro de Ciências Jurídicas da 1 !NISINOS (RS). Mestre em Teoria c Filosofia do Oi r ~'i lo pela UFSC. Doutor t:rn Dirrito lia UFPR. Autor dos li\'ro~ : Filosofia Jllrídim da AII<!n'dadf.', Curitiba: Juru:'t, 1(J9~ (" 1I(' nll{ 'n,'U f l l a fi'fo'Õ(ífho ~ niJ'!'ifn Rio d (' 1:l1lc i ro' I I1IllCI1 Jurl', 201),1

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It ,,,i: ( Allt ()~ MClRflRA nA ~ll.V i\ r" tiO

Para um melhor entendimento dessa situação faz-se necessário ter conheci mento do processo histórico-social que nos conduziu até o presente momcnto, Não se (,5 t.:', aqui abordando a história como uma iJé ia de progresso: milito pelo contrário. o que se intcnta é repisar o ,II ).!tll1lcnlo dc que l11u itos a~p('ctos sombrios da modernidade e call1u­Il.tdos da história fa lem, na \cldade. parte de um;] idcolo!!i J qlle se id dlalllar tk f'urof·ellfl"i.\lIIo. ('0111 esse termo. configura-se toda 11 ..... isno hi"'lúr ica qll E' parte dl' tlm;' perspectiva unilateral daqueles povos que t.: lll 14'J2 m;:I!"( .. ·jJranl ;j cruz c ii espada o que viria a ~er designado de .\l11l'ric.I Latina. Na '1crd;tdc. no nút:!co da idé ia de progresso exi ste o ~ · I H.: ohl illlclllo de l!1uitos " lIjcito ... da "comunidade (k cnmunicação id~al " (Karl O, I\pel). seja pela falácia dcsenvolvimentista, seja na ideologia raci 5t~ qlle, de fprmn ilvassaladnra. p e rpass:l I)S 1l()S~OS .i';{l.' 1I1:1 ~ P"lliti\os,

Para ('llnlprecntler, pOrti.llltu , não só a situação dus siskmas peflai s latino -americanus c de suas prtltic3s genocidas, mas também a própria :,it ll~ç30 periférica ou umarginal", como diria Zaftàroni. é imprescindível Ictomar ~ll' marro dr 14()2 para captar corretamente o que se passou 1ll'~tl'S 500 anos,

Dcsuc essa época runuou-se um saber antropológico aplicado à pcrifl'ria , Esse saher primcir:lIllCntc adotoll lima rOllp~gcm teológica, o ra cla ss ificando os índios de criaturas "puras" e '·infant is", ora cO llce benuo -o" COlHO b:irb:1fos, pagãos e adoradores do demônio. Aquela época. que precedia o aLlge do mercantilismo, já demonstrava s inais de decadência da própria visão teológica de mundo e trazia as se lllelltes do que \ eio ;] ser chamado de era moderna. Assim, logo dl'jlOi s. o ~aber antroro!tlgico de inspiração religiosa deu lugar à IIl:ltriz cientiik ista na!lIraIiSln , E, a partir daí. o índio e depois O~ negros , mestiçus e latino-americanos roram atingidos pelo rótulo de :-;(' TC S " naturalmC'Jlte inferi o res", De maneira geral, no período da c f)flqlli~ta _ o índio cra visto C0l110 11111 ser pass ivo. incaral de se tomar ... ujcit(l de sua própria hi stúri.L Esta imagelll permancce até Q~ dias de hoje c cslcm..lc·sc nu , .. Hino-americano em geral. Na vCHlad ::. ;J reali­~bdc dos lat lls contradi z e ... sc: en tendimento. recuperando a "história tll\ t<;Í\e l"" du cOllqui sta, () pr()cc~so de rcsi , tência lI1 iliw r L' , principal­!Jll'llle , c ultural dtls PU\ 0" afl1cl'ÍlHlios .

I () 1/11 L' <';(' (lh',,'n:~ .Iv ! prlll;~ clllhlCfllúli cn 110 si" tl'1I1:1 .1)(.'n:1 1 ' a tifl~) '

ttt \' 11\ ,I'\(' L' li ' 11'1111 ·.:tl liI, ... oI th.: ql l t.' 1:l1a l 'lI<.;<.;el, ,'u '<.1,1 , ii I h.' .!;-'<II.;dO

d:1 'oU !!:1 lúCL' d.t IlIt ,dCl11id 'HIt.'- I';Hé\ que:--oe.! P~)S': I , IIU lll ,! pcr-;pct.'tiva Iq ... ·,V !i :I!l:1 dl' ttall-"; !I H,dL·lnid ;tdl.'. sl lfH:ral a \ ;;0.; .10 L'UI'II.·l'1l1r;,ta , c .... tirpar I 11\lt:1 ~' .. ·Ilql'i,l,l ~k tll"-""', ..,blt.'IIIi.lS pell :J ;s, t·· iit q)r~'q'i !ldh' cl a 1. tPj' lili ( l~·;·j" tll' !:d:'ICi:t·, (k"('Il\\lhi llll.'ll ti ... r ; ~ " t ' (k ,;I.:\·'I.'S hi"I.'l rh::l'"

.1 d ,"

2. O EUROCENTRISI\IO DA VISÃO MODERNA

Adotando a visào de Enrique Ousse!. pode-se dizer que o eurnccn­trismo é. basicamente, uma visão histórica do mundo que lranslorma u "ser" do "outro" em um "ser" de "si·mcsmo", Nessa visão, ao se faz er a apologia da modernidade, enlendo-se que todos os " avanços" que ela representa constituem o resultado de um desenvolvimento natural do próprio ·'ser europeu'·. sem levar cm consideração a existência d:l t\mérka ou da Á friG) - a Ásia é reconhecida como o começo da história , llla s pennanece cm um estado infantil c primiti\'o _2 Incorre-se . portnJlt n. nn f.,hk ia <.h:scll V{) I v i I1ICI1 t iSla.

Trata-se de uma posição o l1tológit.'a pela qual se pensa que () dcscl1 -,:,olvimento empreendido pela Europa deverá ser lI11ilincanllcnte ~t.:g.lIid o, E uma c.alegoria filosófica fundamental e não só sociológica ou cconú­mica, UE o muvimf'IIl0 1/(!('( 'sst irio do Ser. para Ilcgcl, SCll tlc.~ I'I ,,( , /J·;­

menta inevitável."3

Acaba-se por absorver urna delinição mundial do que seja a moder­nidade c de como se chegar até um eslado de pleno runcionaJl1ento de seus principios e idéias. "Modernização (olllologicamente) é exatamonte o processo imitativo de constituição. como a passagem da potência ao ato

(um dese nvolvimentismo ontológico), dos mundos co l(lllia i, com respeito ao ser da Europa ( ... ).'"

Assim, a Europa cristã moderna tem um prinl.'ípio elll si mes ma, e é sua plena realização. E mais, somente a parte ocidental norte da Europa é considerada por Hegel como o núcleo da hi s tória : "A Alemanha, França. Dinamnrca. os países escandin~!\'os sào o coraçiio

2 Enrique Dussel nos Iraz n. seguinte ci t.\ção de Hegel : "0 mUJldo se d ivide e m Velho Mundo e Nc'IVo Mundo. O nome Novo MundQ provem do fato dc que :1

Améric~ ( .. ,) não foi conhec ida ate há pOIl~' O pelos europeus. Mas n:10 se acredite que a di~tinção é puramenlc ("(tema, Aqui a di v isão é ess('ncial. ESle mUtldl' é novo nno s6 relali v:JmC'n lc- m:-es lamhém nb!>olut:Jlllcntc-; II l' com rcspe ih1 a lodos os seus car<ll'IC'rC's próprios, Ihicos c políticos. () mar llt: ilh:1S. que se t:slcndt:: ("nllc a Amé, ica do S ul c a Ásia. re .... ela certn imatuliJ:lde 110 tocante também a sua origem (, .. I, A Nova Holanda também não de h: a dt:' aprc"cntar características de juventude geogrilflca pois se. partindo d:t'; po"St:~ .. sõcs inglesas. penetramos em seu tcrri túrio. de ... cobrimos en n rol C' S rins que ainda nno abriram seu leito ( .. . ) Da América e de :-;:ell grau de civi li7:lciio , CSPL'l:i;c !ll lcnt(' no Mé:'tiC(l e Pl' ru , Icml"'; ill f('fIlJ ílt;ÕC~ a n .... pc il n I I ~ >;eH tk"C II\ 0 1-ViU1t.'l ll<'. 111!IS l'I'IIU' l11U :1 ndtnl':I i l t t ~'i ' , lll ll.'n t l" 1':l1l il' III :II . qUl' l ',!,i l :III,' 1111'111\' 11

lo l'I" q lll' (I I ;::pirilll sc apn) ;o<. i111 i1 (1 <.'1: \ ( ... ). ,\ int"l'rilH idJllt: dt"It.'S iml l\ ill",I - l·. cm lud." inteiWIHenle evidentc" (OUSSEL , Ellril.jue . 14t12 : o cncohr!!Ill'll tl"' dI' OU!Tll (a Illi~C'm dlllllilt) da I1wt!c-nlid:-e d{') ( 'on li:l't'm:i:\s de I·f:'l nkt"tlrt. ' 11d. hilll t'

A , ct ;t~ ..: 1\ rl'IrÓp(I!i S: V01t'S, 19l! t. P I t-: t \) ).

1 nt !SS I: I .. Enrique. 01'. dI. , P 14. IH ",~1 1 I lI,iq\h' l )tI (f '. II Irl

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JfI~(: ( "ltI os MORFlRA ()A ~Il V,\ 1"11110

da Europa", ( Logo, Espanha e Portugal, e conseqüentemente a América Latina e sua "descoberta", nào possuem a menor importância na consti. tuição da modernidade; isto, observa Dussel, é verificável tanto em flegel quanto, cOIltclllpornncamente, em I-Jabennas,

No entanto. constata o lilósofo é:JrgentitlO, a sociedade civil contra­dil,'"ia é ,uperada pelo 1:,13do, cm Hegel. graças il constituição de l'(\ lúllia'\ que <lh<.::onC'1ll tal contradição_ "A per(feria da Europa serve <ls~i rll de ('.\I)(I~ (1 /n 're para que os pobres, rruto do c:1 rilttlis!11o, possam l ' "-'I n;lr pwprictários lias colôtlias."(,

De reSIO, ZarhrPlli p:lIlilha da mesma pcrcepçi'in de I)II<.;sel com re la<;ij(l a Il cgd:

A ;Ilfcrioridadt, Ui.! lIo:; ..; a região marginal (oi s int(,~tizada 1,;0111 clareza por Ilcg cl na \'crsão germânica do ctnoccntrismu co loniali sta quando. na "lia in terprelação da história. deixou de lado, à medida qu(,' :t~c("rHji<.l () {le;\{, !od:l S as culturas con\'er~cnt(,'s ('10 Ilos'>a rr:gii'ill rllaq.!inal

Fnri4UC tJus."el chama a atcnçiio para o rato de que. ao contrário do t..' ntendil11cnlo dL' Ilegcl ou Ilabcnnas, tanto a América Latina quanto a E<.::panha tiveram um parei fllndamental na formação da era modema, i\ descoherta de um "No\'o t>.lundo" possibilitou que" Europa, ou mclho'r, () se u "ego", saísse da imaturidade subjeti\'3 da periferia do 1I1lllHlo mUç'ulmano c se desenvolvesse até tomar-se o centro da história c (J ,\('lIhllr do fI/llndo. c<';fado que simhnlic3mente fi.·' i ;Jlingiuo com a I;l'nra dl' Ilcrnan lllftCZ!ln Mc'(ico,

Âté O tinal do séc ulo XV. é1 Europa foi scndo paulntinamcnte j ... olada pelo'> J1ll1çUllllanos, istn é, as rotas comcrci:1is terrestres que It:\ avam alê as índias. celltro de compra c venda de especiarias -­cc.;pccialmcflte a pimenta cm grJos _., estav3fll bloqueadas, Constan­tinop la, antigo cen tro comercia l europeu e importantíssimo ponto cs­tlí1lt~gi('O (por l·~t ; 1I ~Iivídido pelo Meditcrrtll1co, tClldo de 11111 lado a I 1( 01'<1 c lh: outro a Â<.::ia), ha via siun tomada por ~ 1 l'hc l1ll't II cm 1453 I..' "'U nomc passou a ser ' ... tambul. As crll7.ada<\, última tentativa de I CI.," ul'c rar \l dom inio sobre ti "camillho da sed~". fracassaram , Restava d .. "n dll-ir urn;1 rpla 11I;llírill ld qne l'o lltOllla~"c a J\l"ric:l l' :lI ingi ssC' as inc ri :l'" h,h: I"(Ji ,, ;:s lt11I.,'o h"'I ... ic o ck Portugal, Ic\ 'ado adiullll:, princip<..Il­'II··"IL'. I'C'I 11 t.:llriqlll' ,h.' <'~ ;"'rl'<" (' "C US na\'C'gad(,rc'; :\<':S:!II, n naçào

IH SSI I . I II llq U<.' 1,1 01 ,:' I' l·II,',.h '1 111"111' d ll 111111 \ '. p . : I 1)1 \<"';j I.! tl l'l!Ul' /)/' I ii . I' ~:

I \! ! .\ I{f 1'\)1. I 11 1!\ 'I1I" ICne! I.'III' I/\C" dO I 1'( 1/1/\ Ih',di.!", c pcrd:c rk I..:pilil1li-dL!·d,·· .. 'IIIlI' I 'l· , I:d Ic;>d ·1 1': 1 1~ ·'1 1I1I1" I \',II(' .. ,Il' \111 ·' "1"',.11(1,,1\·1'1\: :1,,

> I r', I·' I.

inventora da caravela. pOUC(l a pouco, foi fincando os seus padrões pt'la costa africana até que Bartolomeu Dias, "m 16 de agosto de 1488, cm plena tempestade, dobrou o cabo da Boa Esperança e, finalmente, concretizou o sonho de Henrique, o navegador. No entanto. foi só a partir da experiência de Cristóvão Colombo que. efetivamentc, <I Europa apoderou-se de uma nova universalidade, lomou-~e o centro dflllHllldo

e passou fi impor o seu "ser" ao "outro", A grande criti ca que Oussel raz com relação ii concepção da

Modernidade Ilão está em negar aquilo que ele chama de " nuch..:o libertário" ou "razão emancipatória" , Illas em UCSIll:1SCanlr a existêll\..'in de uma outra face desse processo de modemização. relaciollaJa com (I exercício cm larga escala de uma violência irracional nas colúll ias, lião apenas lisica, mas cultural. que simplesmente nega a identidade do "outro", seja através de uma postura assimilaciollista, seja :1tl'él\'és da sjmple~ exclusão c eliminaç:io , Tudo isto está SiI11DUli 7l!(JO IlP "mito sacrilicn''', isto é, toda a violência derramada na América Latina era, na verdade, um "beneficio" ou, antes, um "~acl'ificio I1ccess:i rio" , E di:lllll' disso. ('oS índios, negros ou mestiços eram duplamente culpados p(\r "screm inferiores" e por recusarem o "modo civilizado de vida" ou a "salvaçi'io", enquanto os europeus eram "inocentes", pois tud" que fizeram foi visando atingir o melhor.

Com relação às concepções tidas como pús-modernas, I)u:-:sclnega a sua proposta de irracionalidade fragmentária, embora acate a critica ii razão dominadora. Com relação ao racionalismo universalist:1 , absorve o seu núcleo racional em<lIH.:ip:,HJor, mas nega n seu "mOI11Cnlo irmciullal do mito sacrifical", i\ proposta do lilósofo é identificada com a busca da trallsmOdel'l1idade. condição em que a razão 00 "outro" é ,l firlllada c este pode cfetivamente fazer parte de uma "situação de nlla idl'al" ou de um :1 "comunidade de COllllll1icaçfi.o idcal".

3. O I\IUNL>O DE COLOI\IIJO: O CONQl1IST;\I)O!l FI IIH)­I'EU E O GENOclmo COLONIAL

A cxpt.?riê-ncia de Colombo {iJi única até então. pois as 1 1:1H'gaç'0l'~ 30 longo da t.:osta africana eram l'OIllO ir dcsc(,brjnd ~l , na \ ~Ilf;.lll(', (~q~ilo qut.! j,~ s~ sabia, A aventura d; 1492 tloio ro~, rr~)~a\l.:IIlICllll\.~ <1

unlca I..~ xpenenclu de contato com () 'Novo MunJo. [XISlelll n.: aIOs aceI ca da!' aventuras do n"f,;illg Erik, (\ \cnnellw que. por vol l<.l Cl!) ano 987, t l' ri~l acompanhado a costa do Llbrador c hihernac!o 11 :1 rena NO\;t, J:lIldo-lhe o nome dl! I "ilr/úl/did, cm I'tulf.,'ih.l de lá ler l.'rH·oll l r ~ H..iu

vidcir;l s ~1..'1\'<lgt!ns ,la pnm<l\'(' r:\. " .lI h:lda ol,;orrido cm \ i,!nt!c d ;J~

(.'11111;' ''' \. L:\Pl'd i,'~)t'~ t"'1I1'" :'r ;111, tio: 'i,.'t:nl 'j l'dia . " , ." "" ,,>ln .,

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Josr (""RoLO" f..'10REIRA DA SILVA FILIIO

ex pansão do, gelos pola res. a ilha acabou ficando inabitável. Assim. as , 1 IgCIl .... para (I oL .. ·.h· tornara11l ·o.;c raras. O Atlfinticn foi esquecido,

( 11111 a \ iaJ~\.'11I d t, ( 'O llllllho, iniciou -se, cm proporç;tt''i jamais : lk~IJ1t.;í1d;h, o f.:t)I\LIIO L'lIt n ' d(lj " mUlldos completamente ui('rcntcs. (kf..llTt: que. dt·"tk (l illÍt:in, n ci\ ilização "descobcna" c toua a ~lsa c ultura It'Ia1l1 dC ' Pl l·!:H!a'i. I) que.:: deli lug<J r a várias figuras , qlll' fvralll dcscnvol·

i d ~ I S P(ll lJllS,l'I :t i ll\ l' IH.;àll, :1 dc~c(lberta, a conquistJ l' a coloni7uç;I11. ,\ li guriI da "i!l \~II1: :in" di 7 Il'spcito. principalmcnte, ao pers("l3gcl1l

d I..' ( rlstúvãLI ( oloIJlb". :\ illlrol1ância de analisar a at itude uo grande 11 :1\ cgador l·SI:". d~lIt1c unIras rc.llÕC'i, 110 fato de que da roi eXlle1l1JI1IC,~~e !llI ~ lratif..·a. princ ipalnwlltc COn! relaçào aos índios, ua postura europeia c lll lJCC ua ,\méri<.:a . Pam o n3vc!!ador g~novês, segundo T7.vetan I \,IUOroV, a emprc-sa de e.xpallsfio da fé cristã cra o seu interesse principal. \s .. illl. ele \ ia a ohtenção de passiveis riquezas mediante as Ilavegações

como lima com.li ,';Jp necessúria para íinanciar novas clUzadas" e . além dls~o. \' is IUlllhrava tarnbl!, m a oportunicJade de inslnlir o Grande Cà lilllPl' rador da C hina) no c ris tianismo, que. segundo relato de Marco I'úlo. cra o desejo do próprio lendário governante chjn~s.

Ccrta l1lcn! c' (l maior e l1Iais importante exemplll do método de interpretaçào de Co lombo e " que Dussel chama de "a invenção do "· I· asiútico do NOI·ol\ lun do" . Colombo morreu em 1505 plenamente n tl1\ icto de que h avi; l . 11(1 Vl..: ld~ldc. chegado 30 continente :lsi:itico, É pUI isso que (IS habil:lnle~ Ui iginais da A IHt!ricn ~ào ati' hoje dWl11ados d ... · ílldil).\. Na herl1lcll f l!tit'a de Coltllnbo. tudo o que e le via na te rra -IllIn:-;. plalltas, animai s (' íllú ios - era uma constatação de algo já f..'on llccido : a Ásia, que. cmbora n50 houvesse sido L'xpJ01:.Jun pelos europeus. já havia sido obj cto do conhecimento e dos estud?s de Marco Pu lo. Pi errc D ' i\ illy e dos franciscanos. O "outro" n:;o fot descobe/10 çnmo "outro" . lIlas C0l110 " si-mesmo".

Co lombo aprcsentou do is tipos de reações, que acabaram se cOll1 plelllent:1I1c!o . perant e O~ indígenas. Ora os co nsiderou CO"l]lO,

ll •. tmi ....... i , lo l' . 110 pbno d' VllI O lamhém filhos do ,, ' hanlu· de DeliS. •. llgt·l illtlllllllla 1)( I .... lt ll il :I"silllil~ I (,: iollisla; (ln! os lulll0U l'U f!)() iI1IC .. ·riul'cs, IIttllltl.:nl(l t'm que :t ""; , \ ·(1111:1dl..· Ilte" '(J i impo5ta pcltl ~Ít llplc 'i liSO da

'/ \1..'1 111 l t1t!ll I O\ 110 '" 't 1/ 11111 !ll' l ho tlll Ji~lrill de C'olmnb,. h;l~ IiIIlIt· ilu..;,rati\'lI d ,--. I (· lI l h : n l .. ' 1'~1 ' "LI ' " ,k d . ·/· mhl" d~' I tll)~ d m :mh.·: t 1'11l11l'II:. \ j ,tgl·lll.l'IC

(I , .I"l llh,' I I'·\ ~·l.. {" II ,'H ,IL I1 1" q uI..' C" I'I.·"t 1.·llnllltl:U 1'111" l' '1,'1'1 lIt1. tl llid,hk·

''1 l i~ll.· tll~· 1', It ,1 quI,' " .. !{ I,· I , P "- ltH. ':I n fIIelHI<: lit'lll'''; ,lthl'.l't , p .I1 , lI l·\' tlll'rL't.·mle,

.1 \ ,'nq'n ." I 11 ., I I II ~I ..... . ltll.' I", .· .... OH 'lUt.· m;UlIll.' ... tl.'i ii \p" , ,~ \ h", l ~ I' Ik"t,'!I\ de

\ ,' 1 ., .. " " H ~'lil h '. Ik !lI II' '' I ;"0\" \· , HI "\,· .. ;! \·i" .... acf :"!, I ... ;'1' \1II\!tlI.,1:1 .I .... Il'ltI ~:\km. tI

q tl~' le I \ (1., , ;1.,\1 ' 1,', '. 1 ' '' 1 11l ~· l\ 1 dl/ ( lHI" 411l' i"h' lhe .. " \.!l.ld .1\ .1. l' qm.' IlH'Sllh)

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DA " rNVI\!=;ÃO" DA AM~R1CA AOS SISTf:MAS PENAIS OE HOJE: O OISCUR"Cl . 227

autoridade e da violência. Essa segunda posição finnoll -se na relação com os Indios no plano humano. Se eles não quisessem dar as ~ lIas

riquezas ou se "converterem", o 4ue s~tvirin para "cngralld~l'\.'r a ohra divina", seria Jlcito c necessário forçfl· los a isso. ( '0111 tal r:ldol..'Íllio Ikou justificada a aplicação da escrav idão aos índios, o posterior sistcllla ue enc:omicndas, cm q ue um grupo de índios cra "encornend:llfo" ao co lono. podendo tr:loalhar gratuitamente cm suas m inas e campos. Na \c-rúadc, qualquer lima das duas post uras adllla citac..bs estão bascadas 110 desco­nhecimenlo dos índios COIllO suj c il0S. como ··out ro". Pretendeu-se impôr ao índio um "outro ser", ou simplesmente desconsiderá-lo . A prll pag~H;ã()

da fé c a escravização: duas f~l ces da mesm a moeda, Porél\l, a viagem de Colombo não foi suficiente para cOlllpletar a

primeira noção de Modernidade. Foi necessário que Américo Vespúcio, após suas viagens . houvesse "descoberto" um "Novo Mundo". Este mundo 1IOVO era a América do Sul.

Se a segunda figura enunciadn por Dussel foi a "descoherla" da América enquanto "descoberta" do "outro" (Portugal tomou a dianteira neste processo). a proposição nuclear imediata passou a ser rcr,e,cntad" pela "conquista".

O primeiro "conquistador" foi Hernán Cortez. e sua atuaçiio perante os astccas suficientem ente demo nstrativa de urna época que marcou <l

emergência do "homem moderno, ativo, prático. que impõe ~ua jmt;ri­

dualiJtJde violenta a outras pessoas, ao Outro" .oJ Cabe aqui fllzer Ullli.l

diferenciaçào entre a ocupação dos territórios pO\'oados por comunidades indígenas urbanas c por comunidades de cunho el11inentemcnte lIgrário e extrati vista: nestas, situadas na região do Caribe. de Santo Domingo a Cub:t. e também no Brasil, houve muito mais matança e oc upnção desordenada do que um domínio sis temático.

Cortez, ao contrário de seus prcdecessores. preocupou-se em com­preender os índios. mesmo que fosse só para dominá-los. Nào visou apenas :is riquel.as imediatamente palpáveis. Possuía Ulna c(lnsl'iêllria polhit:a (' his túrka de ~ClIS aios. Sua exrH~tli<:iiu. que dal :1 ,k' I~I" . começuu cm busca de informação c lião de ouro, lJlIscalldo 11111 illl ":'rpl'c­te. surgiu a folcl 6rica personagem ' "ln M:tlinche" , índia aslcca que, ao adotar oS va lores esp:'IT1h6is. conseguiu traduz ir os de sun :-;odcúadc r~lrtl

C<.'rtc7 c. alé-m di sso, tOnlOIl-se SlIC.I amante. Ohviamente li " f\.I"lillche" tr:ms lillIl IOI! -SC l'l1I figura Silllhúlk:1 do "t'lllrcgllisl1lt''':IO pl\d": l ú'III I ;11.

(" aças :i g:lIna de infi.'nnaçôcs adquilidas r dl' conqui";I :!df..11 e:,p:t­nllOl. 1i,li-lhe possível aprovei tar- se.:' tanto das dissic..lêncb s II1tern:.Js.

vaklHhl 'St' ( I is~o para COI1"l'gllir :,Ii:ldos, ":f\mo da n:ligitlsilblk ;1'Il'r:l .

1( !J 'f ll' I ) \·. ! /\('LIIl (~/' 1/. " . ~ t 4

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Il)"-' (\I~rl!"- \l{) f(l lnADASILV'\ rllllo

I: sabida e c itada em muitos estudos sobre o tema a identificação de Cortez com a entidade divina de Quetzalcóatl. O comandante espanhol teve lima preocupação constante com a interpretação que os índios f~lrialll de seus gestos. Ass im . num primeiro momento, proibiu seus :-oldauos de roub;jr~m destllcllsuradamente, sem autorização, pois isto poderia gerar 11 111 cntl'lIdiIllCI1(() ilH.Jesejndo por parte do~ ilH.fios. Cortel qUl'ria que (,"l \'isSCIl1 Cültl0 benc\ 'olcnte, Contudo, (l e,~cm rl(l mais illl~lrati\ n de- sua preocup:lção co m as aparências foi n "show de sons c 11I71:S" d(l q \l a l ~c utilizou p~lra con fundir o s rlstee<1 ~, di sHtn.,':JIIlIIJ aios

hl!lnall0, cm ,l tOS 'iohrcl1 atur,li s, (' rrocedi ll ll:llto tiL- ('!JI1i.!"Z traz Maquiavel. Todol'Ov rdcmbra a

1:11110,"'41 frase J o l1orellt illo: "NJo é preciso que um príncipe tenha todas ,1:-> tjll;l li d;ldcs ,) \Ipra~ ilad;} s . Illa, l' preci<;o que parc\:a tê-Ias", " I Observa-se. ;Iq ui , para utilizar \Vcbcr. lima clara pa~sag("m da ética da convicção !"lIa a L~Iit'a da rc -: pul1sahilidat!c ,

De flHH.l.O geral. 110 IIHmt!n de Maquiavel c de Corte?, o discurso não ê de te rminauo pel o objeto que descreve, nem pcla conformidade a uma trauiçã o, fila s é construido unicamente em função do objetivo qtle se proCur;1 atingi!. rr

Seguindo o raciocí nio de TmJorov. fonnula-se uma pergunta básica: por que a compreensão sl!perior dos espanhói~ diante dos astecas não oS i1l1pediu, até os ajm..loll. :.l lkstruir a civilização asleca? Poder-se-ia pC' llsar que O!:\ csrallhúis cOllsideraram os índios c sun cultura como indigllos Jc viver. Talllão ocorreu. muito pelo contr{lrio: depreende-se do...; ('''cr ito" deixad~ )s por ;rt!w,:lcs espanhó is que ck's admiravam cm Illuitos <l"i pectos tal ci\·ili 7.<lç'Jo, U t:onquistacJor apolll<ivu os modos re linado5 dos astecas : "Curtcz fica cm êxtase diante das produções a~ll'ca ~ _ ma s não rCC<'IIIhL'cc seus autores como individualidades humanas equiparávei s a CIC,"I ~ /\ admir<1ção que daí decorreu, ao invé~ de dimi­nuir a distância , aumentou-a , Curioso observar que a arte indígena não e'\erce u ncnhum<t inOuência sobre a arte européia do sécu lo XVI.

O s espanhúis falaram att: hcm do,r índios, mas nflo falaram ao.\' índios. não reconhecenJo . por1anlo. a sua condição de sujeitos, a sua :dteridaue. Assim , "se a compreensão não for acompanhada de um rL'c{\llhl'cimcnto pl eno th.\ olllro como sujeito, então essa compreensão L' fll rl' o ri st:o de ser u ti li zada t:(\ tl1 vislas~, cy,ploração. 3t' lu mar, o saber

':1 -':1!ho rdillath ) ao pCH!cr" 'c Pode r-se- ia dizGr qUt' ,\ per~ r(' ç riva de

' -j;r;;~~;;v, I,,,,,,,,, , , .. " I'"'''' ,ii,' 1' ~ ldn 1\l:nlll1" I (qltt".;, 1 llll,', I' 11' I H )OROV, 1/ \ t'Llll ( II' "I P 11 J l(ll)()]H)\', ! /\l't;ul (I!, 111.]1 1,?5 l' q II H'I) \ 1, ,' I ,II ,I . ;1 I ! , ,'

transmodernidade, proposta por Dussel, em que a periferia seria reco­nhecida em sua especificidade e não "encoberta" como "outro". deveria corresponder a uma situação de igualdade de "poderes", ou iguald"de de "condições comunicat ivas".

Questiona ainda Todorov : mas por que tomar leva a destruir? No rvtéxico, ás vésperas da conquista, a população era de apro:'<.illlCJJumentc 25 milhões; em 1600, de apenas um milhão. "Nenhum dos tznndes massacres do século XX pode comparar-se a est3 hecatombe ," ""J aI resultado foi obtido principn(mente mediante três estratégias ue ação,

O primeiro tipo de açoo dos espanhóis direcionado à destrlliçiio loi o assassinato üireto mediante guerras e massacres, F. n quC' se r ode captar da Ilarração de Las Casas:

h17ial1l apostas sohn: quem, th: UIIl só golpe de csraJ;1. II.:luh..'l'ia L'

abriria um homem rel .1 metade. ali quem, mais habilmente c mai s des­tramcnte, dc um só golpe Ihc cortaria a caneça. ou ainda :"ohrt' qU!!111

abriria melhor as cntranhac; ue um homem de um só golpe, Arranca­\'am os filhos dos seios da mãe e lhes esfregavam a cabeça contra os rochedos enquanto que outros os lançavam à água dos córreg()\ riudo c caçoando, e quando est,wam na água grilavam: 1I100'e-te, COf ]1O de fa!: '.'

Outros. m:1is furiosos, passavam l1lã~ s e filhos a fi o de espada ,! "

Outro relato de Las Caslls diz respeito ao massacre de Caolluo. C'm

Cuba. realizado pela tropa de p.infilu Narv(lez. da qlwl era ( apclilo:

I~ preciso !'abcr que os cspanhúis, no dia cm que ali chegaram , pa rara lll tk manhã, para O dcsjcj ulIl . !lO I ~ito seco dc um ,·i .!cho que. c,llrL'!,lIlll),

ainda conscrvava algumas pocinhas d' ,igun. e que c.'·;t;]\'a \ ;.' p il'!P dt' pedras de 3molar: O que lhes t.h.' 1I ti idéia dc ufi:lr as c:-.paLl":, ,

Chegnudo à aldeia astet.,'Ü, os espanhói s resoh'em!11 verifk:lr <l qU;)­

lidade do atiamento:

Um c!itpanhoL suhitamente, descmbainha a espada (que parec ia ter siJo tomad:.\ peJo diaho l, c imcdiat ilrnetHC os outros cem fa zem o mesmo, e começam a estripar, rasgar e massacrar aquclas ovt:lhas c aqueles cordeiros, homens c mulhen::s, crianças e \clhos, que esta­va ll1 sentados, tranqUilalTlcnte. olhando espantad(1s para 0" canIlos c para os espanhói s, Num segundo. 1130 restam !itohre\'i\l'll tcs dt: tudos os que ali se cncontraV:JIIl, Entrando então na C:H:t grande. que ficaVill.lO lado. rois isso acontecia dhwte da port :l , ("IS {':"panhl.j,

u 101)( IRO\', T/,n~I:IIl , Op. L'U .. p, 121.), t( LA S {'ASAS, Uarhllumé de . OI'I'\'i.\'"IIII" I'e/(/, 'clo da deslnliçao dll~ !m/lm', (I

r:u';li <,t) des lruido: a sangrelll!! lIisl6r;a <ln C(IIlC\u ;stn da América l'.;;p:lf\h~'b II:ld, lk ,:.],f .. ]l;l r!-U\ ~ ('~ I PP1!\1 '\I\'r!~" 1 ,t; 1'1\1,11)(11, r ~~ s

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11)'1 I \HI!)<..: "OIU IRA 0,\ SI( \'A '" HI 1

começaram do mC!'mo jeito a malar a torro e a direito todos os que LIli se encontravllm, lanto que o sangue corria: de toda parte, como <;(' 1;\ (',,''C 111 matado UIII rebanho de vacas. 16

l '1Ila scgunu:J t'slr~lté-gj~ de extermínio foi a escravidão. Assim, alem da IIwt:!l1ça dilcta. O" ílldios tombaram também. c em muito maior 1I11111\,'rl\. "oh;t l'''l.'la\ id:l\ l a que ft)r~m subml'tidos :

,\ S Illulherl· ... j k ín ~1Il1 11(1, granjas executando Ir~ba lh os hastnnte penosos, LL/l'IHlo llIonles de terra para fabricar o pão QUl' se come; Irabalho e ..,s~ 4ne COfl"ISll' ertl rc\'olver. levi.ll1tar c anwlll oar a lerra a té qU ~Ilro p;lIl11o .... de altura c U07.1!' rés de quad rad(\; par.:- cC' r13da, 111:1 .... (· 11111 jrahalho c!t: gig:HHc:,.' r(:\iolvc r a Inra dura. lIãn l'olll picareta ... 1I1.'1I1 (tllIl l'lIxada'" In . l S l'Il1l1 p.tu!' ( ... ) . De 1l1:Jlh:ira que /II :IriJO l'

lIlu lht'r nJo se \ la/ll p~lll t's paço de oito meses Oll dez ou lil.: um a!lO,

l' quando ,ln CJh" uessl' tempo vinham enclwtmr·sc esta\ am tão cx tt:llu; ,llp ,\ c tão fi'anls (h.' fUlllC e de trab:.lIhos, que Ilão tinham de'H:ju ue coahitar: c CO I1l isto a geração ccssava entre l'ics , E :IS t:I ia nçac;; engendrauas lJIorriam porque a!' mães lião I inhalll lei, \!, pariJ nutri -Ia .. , cm virtl/ue tios lrab"lhos e tia fome que padeçialll ( ... ). O trah:llhll qne lhes aliralll sobre os ombros é cxlrnir ouro; trabalho l'S",l:' para u qllal serialll I1cccss:\rios homens de ferro: poi s t! preciso pl'ffllr:J1' as Illüllt:lllha", ue haixo para ('ima mil vezes, revül\'endo e furando 0'\ rochedos. lavando e limpando o ouro nos I iachos, onde fic:J1ll constanll:1I1l'ntl' na ;·lgua. de tbdas as Inanciras consumindo e <.!14uebr:J nd o () Cl\rpo . E quandn as próprias minas começaram a razcl' ágUíl. cllliin. alClI1 tk Indo~ O~ outros Irahnlh\ls. é preciso tirar Ioda e Ssa ;'lgU:l a br ,IÇO . I'

1'01 11111. J tercei!'3 mnu:diuadc dr ação. menos c(lllscic:ntl' , ohvia­I!ll~n te. era a transllIi ssfio de doenças, que exterminou uma quantidade il1co lneIlSllr~\ 'e l de il\di()~. O s cspa nhúis não possuíam a consciência da po:-;sibilidadc de IIllla gu{!rra bacteriológica. mas examinando suas ;1l; (~'C'; fifi" fica dificil ir" :,, ... in ;lf que , caso ta l c()n~l'iêll ( i:1 hOIl\ 'C'ssc . ela

'.'" ja <:c rta111clltc u saua .

Um dos motivos des"ia atitude por parte dos espanhóis. é claro, foi o th:",cio de l·l1riqllcl..: l'f . 'I ai tlt·sl.·jo Ilada tCIIl de novo. CXCc.:lo O fato de que It)(!IJS (JS outlPS \alo"l' ''; a dc se subordinam, COIlW (lbsl"'V:I Todoro\': ,, ' "',",a hOlllogl.'lIcií':tç:io dos \ ';l1ol"co; pelo dinheiro ~, UIll falp novo. c :lI l1l1\ci:1 :1 m entalidade mndcl1l:1. igualitarista c econolllicisla,"1 1i Contudo,

,dI!IO\ ILIP d i\ j·...:I'I"·III ·; ' tlll1l~tj\ II p:lI:I a :rli!udc t"P:llltu11;, ' " I~ ttrilo '

lIH)(IHO\. l /'otllll (1/ r'/ I ' 1 \I! II" 1,\:-; ' I\S \". !I.II; \lhr!l!l· I!.- ; '" ,. /. i ' !, ! (' I Ir, !ll!lI!1' f)\ 1 /\ IUI t', I!\:

como se os espanhóis encontrassem um prazer intrínseco na crueldadc. no fato de exercer poder sobre os outros, na dcmonstraç:1t1 l.k sua capacidade de dar a morte. "19 Segundo o autor de A Conquista da América: a questão do aI/Iro. na verdade. há que se falar em sociedades de sacrif1cio e sociedades de massacre. No caso dos astecas, o sacrific io foi um assassinato religioso. feito em nome da ideologia oficial. :i J is ta e conhecimento de todos, o que cvidcl1Cit\ll a fon;:1 do laço social sohrc O individu0, O massacre. no entanto. foi justamente a explicit3çfio ua fragilidade dos laços sociais: o desuso de leis morai~ , ReprC~clltol1 lima atitude tomada em um lugar distante de leis, de regras, enfi lll o d:1 estrutura social representada pela Illctrórl.lle. 1\ colônia tOIlHlll - SC n lugar d o "t lldo é rl.'rtllitidn".

Quanto mais longínquos (O c s lrangeiros forem os massacrados,

melhor: são I,;xtermillados sem remorsos. mais ou meno s u',simi­lados aos animais. A idcllliJade individual do ma ssan:.ldo é. por definição, não pertincnlc (se não, seria um assassinato): nào hã nem tempo ncm curiosidadi! de saber quem se e~t:í ll1atand,' nCSSl' lIlomcnto. 1H

Se o assassinato religioso foi um sacrifício, O massac re foi um assassinato ateu, inventado ou reinventa.do pelo!' espanhóis. As li.lguciras da inquisição parecem-se mais COIl1 os sacrificios, Certamenle. os massacres são lima marca registraua da modernidade: "A barbárie dos espnnhúis nada tem de atávico, ou de animal, é hel11 humana c anuncia a chegada dos tempos modcrnos . " ~ 1

Por li m. a quarta figura listada por Dusscl é H da '·colonizaçàu", Simholi 7t1 o começo da domt'~licação, O entender o outro como Si-I!lCSIllO

já não é pura e simplesmente lIllla prática guerreira, Illas Sillllll11:1 o; prih.is erótica. pedagógica, cultural , politica. econômic3, quer dizer. do domillio dos corpo' pelo mac hismo sexua l. da cultura. de tipo, de trnba lhos. de instituições criadas por uma nova burocracia política " .l.! Assim. "0 mundo da vida cotidiana (Lebe".\'\n~/,) cOllquisladora-(~uropéia cnlntli/:lI:í 1\

mundo da vida do Indio. da índj't. da I\rn(°ric,,".:'.1

10 TOI>()ROV . T7\'clan. O/to dI .. p, U\I ~o TODOROV. Tz\'ctall. O". dr , p. 140. II TODOROV , TZ.ve lal!. Op. df,. p. 140, ~2 DUSSEL. Enrique /49}: (I encclh rimcnln tio nutro ( :1 <'fi!!clll \!t\ mi({I d:l

1II0tkll1 itlôtJe). (·nnlhênl'ia ... dl' r' :lIIkfm1. '1'1:111 JaillH.' \ . (' 1:1",,'11 l\IIPI't.Ji!'­VIl/l·';. 19<)1, p, 50 "M:l,( W l.'hcr n:in ;ln:\~in : 1 <llIt' IH' ArdH\t) ·k l "d l,l =' \k ~~\ dha ~.I~ ('IH;unlr:lIll 60 luill11aço:, Im:11:'> de fiO milllõl' " de pal'~~ ;~l d" ' !>urlll ra· ci.\· l' '' panhola rC'rl.!fl·nles:i ,\t1Il'ri C:l I :Itm:l do Sl-l'Uhl X VI a~l XI.\: . ,\ J "I' ,nl1:1 (,,; (I pri ' lll'll1' ESI<t<ln l1Iad('flw I)lIn1(: I :lI ;/;hl,, " U),.. dI .. P "t,) .

" pps'~r I I'nriqlll' 0/ ,_ ";/, I' "i I -6

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J()I.\I ( MH ()<:; MOREIRA DA SILVA FILHO

J)o conquistoõor depreende-se um "ego fálico"." Colonizou-se a ",,;:x lJalid::tdc indígena . Estipulou-se a dupla moral machista: dominação .... f..·xll al da illJia t.: rc.: ... peito pUlamcntc aparente pela mulher européia. I )ai 1l:l "; Cl'U o hastardo tllc ..; l i(.;ll. latino-americano, filho do conquistador \.111\1 <l índ ia l' ° criou lo (I hrall('ü nasc ido no mundo colotlial. A l'H l lIlli/:I(;:in do corpo da IIll1lhcr indígena também J3Z parte de lima ~ UII(II;1 da dOl1lin :II.; ;io do corpo do homem indio. quc foi e xplorado 1'llIlc ipa IIlH.:nt(".· 11(\ trabal ho (1II ão -de-ohra gra tuita ou bara! :I ). ao quc se 1 lI' til l !. Ilc<.,;sa !lH':'-illa situ:lI,;:io. a ligura do negro nfricallo .

\)~ I1lôlll l.' il:l a ~h)fllillar 11It:dlllCtlte o índi o. falavn -sc: ue amor cristão ~', q 11l f..· io Ú \' iult' !lt.:ijj inacjollal. Surgiu um desdobramento da quarta li~l lla tk DlI ~scl. por ele c(lllsiderada. cm função de sua illlrortiinria c " ill!!ul~1I idadf..·, UII I .! t 1llt! ;J ligllla : :1 "conquista espiritual".

Ikplli .... de dI ~lll"" no (1 1..'-.;pJÇO (como geografia) t' (;0I1L/!úsr,ulo\' os u 1rp"<.,;. dirial tlur: l ~lll (t'nmo geopolítica). era necessári o ag(,lra Clln ­Ir(ll ;, .. ~l i1l1 :lgill :'ui n a palt ir de uma \lUVa cOlllpn:l'lIsfio rt'lil:~io sa do lll\lIHlp .. 1:1 \ id:l. I k s-: (,..' modo, o circulo podia se ICt'har c o íl1dio

i icar n\ll1plt:t:II11 t: \ltl' ;nl't"lrporado ao noVo sistema cstahcl~cido : a ~ 1':1{h' r"id:Hlc IllCI'(ant i I capi tali sta nascente _. !'clldc\ tnd:\\ ia SU<I mllm

!rU·{·. a f:lCL' ... ·\ pI OI:HI<L do:ninadn. encobcrta .'(

N:I \ f..·rdad...:. todo u pr()n,· ';~. {) da conquista teve duas face s da m~"ma !lHll:d;J : mercantili slllo c 1..'\ angdização.

":111 nome ue uma \ ítil11 ,I inocente, Jesus Cristo. os índios foram \ it i l1lados . Seu~ dcu ses ~lIbstitll ídos por Ulll deus estrangeiro, c uma I : I C i t )I ta I i uaue a li en ígl..'na Ç~)/l fer i li legitimidadc a uma dom i naçiio i njus­ta l: \ io!cnta . Assim ClIlIlO Jesus. os índio~ foram vitimas, Ill:lS no caso do !!Ialldf..· r;lb ino c seus "(,'gl1idnn .. ~s ficou "provada" e accit3 sua inocência: ;: cu lpa e ra dos romanos. Jú no caso dos índios. por " se cl1f..·ontrarcm" CIP 11111 c!' túgio de " il1l ;lltlridadc cu lpada" /fI fo ram. em parie. "culpados"

I A t.'''''\.' rt.'!' r ci 1(1 \ '1.'1' LIli :\lE!11l (. '( t"IiI1"o~ de ""(,,.,'lIpirJ f,IIIIIfHlt!/I'I'/I'// n a S:1(1

1':\1J!(l' I 'aulin:l :-. 19~-I. \ II IJ\:SS I' L. Fnr iquc /.Ir<, : P cl lcohrirncnlO tio tlutw la (1 I irl'!ll do mil(l da 1I1<1lk, l1id,' l k, j 'OIl h'l l 111 LI'· ,k 1I.IIIk hlll 'Ind billll' ,\ ( ·b .. t,· !I l'l'Il úp(, lb:

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\ 1"'.\ ' r-:'PCII" t',~LIIl'U' !) lh..:1 ·I'.u ;\ ";\11! :1 ·!III:tlulid . hk "II ·IlI IHlllid.!<k· t! Illr' III. \ 1'11'('111\1 L "\ .1' I,. ln" 1!luell l 1,,·,11,·, 11ç .. 1 .• I 'l'~ i ",h, l·'.1'l· m:i:t1 .. ,

,111 ... . 1111 iJlJ·.I!,!\·,i', ·.II,! I I" " ',' 111 ... • ... 111:. tI.1 Ilt llllllll rl .t d ~· . k 11H! l' .. lat!u ti l' III! tH'lld I,k \ ulp,I'.d I , \ I'h ':Utl'; : \ t.." (,'ll\,udi, ... ,io :( ~ 1..IU-,I~ Pl·la .. qll;\ '" t.'.r:mdc l' 'I. d.' hlll!Ullld (,I...- 1'\.'1'11111.'\ fl'a ... t.:u .... al\1l.!IlI\.· IIL'''''(' \.'''I.It!" ,k i rll.tllllidatk :" FIll

. ~'IIj;! I ljn .... ll"H 1 11"l l d,:', ,'111", t;Ul't ;I K:Inl \.· .. !.1 p l· !'glllll.1 lHlI .l1nl·:lIII I 11.1 \fll!.:.1 1"1 \ "il)(' l· ..... I:1 \" 1)" .. I . ud" .. 1 ':1' I,,~ 1111 "'cl'(dl' .\ \ III. 11111 IIIdi!~"ll;1 ri') \ k ',k\, lll! urH

Irh ,1t~I' Lil 'II!' .IHIITIl'.III<' (1\ ". 'h. lk\ 1,,'111 "l'r n ,tI .. i\kradll'" II<> .,' \.' .I.I.!\\ d ~' Illl:1IUrida,

I ".11'1·. l' \ ",.1;'11'(0' ... 1011)<111'(,'01" d" ti !,hp!" .11",·1'111'" I'·, "~I , ~· .p"' II I .r:1 "I '( I ,. ,., ' 1 I 1

DA "INVASi\O" DA AM(;RlCA AOS SISTE~1AS rFNr\lS DE HOJF' O DIS( 'llU';;(\ 2JJ

pelo seu estado "bárbaro" e "pré-humano'·, c os europeus inocentes de qualquer violência que se lhes queira imputar. pois era seu Hde\'cr" civiliznr estes "pagãos",

Quando Cortez se deu conta de sua desvantagem numérica perante os indios. percebeu qut: a força guerreira dos seus homens nào poderia mais se apoiar no desejo de nobreza ou de riqueza, Era preci so UI11 princípio ético absoluto, diante do qual oferecer a vida seria um ato com alto teor de significação e impoI1:lncia. E "absoluto" é a paln vra certa para designar a visão catól ica de mundo, principalmcnte na época da Contra-Refom"l. Como assi nala Leonardo Boff, a lógica do cristia­nismo, no momento cm que insiste na posse da verdade absoluta. abre um enorml" flanco para a cxi"tfncia e :l rróticn da intolcr5nl'Ía .

Fac~ J. verdade absoluta, não cabem dúvidas e indagações da raZà{l

ou do coração. Tudo já est:l respondido pela in!'tância suprema C' di\·in<l . Qualquer cxpcriêncü:, ou dado que enlle em atrito C(llll as \L'rdades n'veladas só pode significar UIII equívoco ou um erro. /\ Igrt:,ia d\.! t0tJ1 o monopólio dos meios que abrern o !.:3l1linho para a eternidade.: ( .. ). Por isso. nessa visão, o rOftador da verdade é intoleranle. I)C\'C s..: r intolerante e não tcm oulra opção. Caso contrârio a \ erdauc nào é ilbsoluta . Sú os qUI:! lião possuem a \'erdade podem ser lokrantes.

Consentir a dúvida . Permitir a busca . Accit3r ;:l verdade (k 011!roS

cam inhos espirituais. O fiel. este é condenado à intolerância 11

o melhor exemplo dessa lógica absolutista a qual roi referida era o RequerillliellfO, texto elaborado pelo jurista real Palacio Rubis_ el1l 1514. Tal dOCUllll?llto, rezavam as disposições, deveria ser lido à toda comuni­dade indígena prestes a ser invadida. Primeiramente. ele come";.'3va dizendo que Jesus Cristo é (,) "~:!nl!or supremo" ou "chefe da lillhagem humana". Estabelecido esse ponto de partida, as coisas se encade iam naturallllente: Jesus transmitiu seu poder a São Pedro. que por sua \'ez o transmit iu ao primeiro Papa, e, assim por diante, o poder dos sucessi\'os Papas estava justificado. Ora. como o último Papa conferiu o cOlllinente amerÍt:allO nos espanhóis e parte nos portugueses. estava. (101131110. juri di ·· camclltl' jU...;liticada a posscss:io do rei da t.spanha sobre aquda s 1L"11,1". Aos índios era dada uma (lporlullidatk : caso acataSSl'lll dt.: bOI1l ~r:ldl' a uomin<lt,; iio. os espanhóis lIào lf..'ri ' l1l1 o dirdtll de trallsli.'nl\;i - In..; CII1 escmnlS. (·Pllt udo. c:\so sr rl+d~IS"CI1l. "criaJll s('\·cramcnh.' pUllido..:

P BOI F. 1. .... \ 'IH'! rdl..l . Inq\lisil.:iil1: Ull1 e"pirill' quI.! ": l 'ntinll,l a e x istir. I' n:I:It' i" I" . E Y t\lI .R le H. Ni(,,{)t:lu. ,\.f/lI/lI,1/ d~H il/<IU i.l'i,I"n'.\. ('p l!ll.!l\l<'1 rios dI,': Fntn..:i'.C(1 I'cib, Tr:Il!. ",1'11; '\ J(lsé lopes d;l Sih' ... 2 . C'c! I{ jn d tO b nC;f\I ' Ril": :1 dt'" ! \'I'lI)I"' : 111 ! .iI ., I '"I\b ~'<i\, I '1I;\l·,,,id.,.I!· Ih- j1':I·iP.l 1,,'Q I' ln ! I

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JOSf: CAIO (I"; MO REIRA DA SILVA nUlO

A religião e os costumes indígenas eram vistos como algo demonía­co. Com rclaç-ão a eles. porl..:1.nto, adotava-se o método tábula rasa "SSt' a la Dussel. Isto é , como a religião européia era a única (no caso ~ cat: lica). o que se deveria fazer era pura e simplesmente negar a religião II,dl ena e tudo que a lembrasse. O dominicano Diego Durán queria até \ igiar os sOllhos dos índios submetidos à sua orientação: "Devem ser illterrpgados 110 cunlessioJlúrio acerca do que sonham: em tudu isso pode h~\cr rcminiscências da<; antigas tradições,,'2~ Assim, quando se falava l' lll conhcccr a religiuo dos índios era só para poder melhor c\'itar que os

l'oll\'crtidos" fosselll "contalllinauos·'. Esse propósito acabou resulta ndo CIll 11m clCito perverso. Ao procurarem se inteirar da visão religiosa uos hab itantes do Novo f\lunuo, figuras como O dominicano Diego Durán c o francisca no Bernardino de Sahagúl1 acabaram por realizar um trabalho ;Intropológico ue cOllsidcrúvcl envergadura. impr.cscinuível para o l'O llhecimcnto aluai daquela s culturas arrasadas, respectivamente: J lis(on'a de las !rulias dI.! Nuel'a Espana e Isln."i de la tit!rra firme c I li "'oria general de los ( '(JSIH c/t' Sueva Espana.

Ubviamcnte, por se Irat:J/'clll de universos culturais ~bsolutamente di\'crsos, a cmpresa de tran smitir ao catecismo uma aparência de rac ionalidade era, no minilllO) extremamente complexa e exigiria uma :-:é rie de pré·di scussücs, para começar. sobre a própria natureza da divindade. que para os europeus era una c para os ameríndios, dual. l 'o l l: Ill , rl~O se podendo ;!rglllHcl1tar ii nltura,29 partin-se para a violência

lOOOf{OV. Tl\ c!iJll . .1 ('I1I/1../'lÍllfl .III AnICti{'CI : a quc<; l:h) do pulro, ~ . ("d . São Paulo ' Martins FOl1tcs, 1993, p. ~o2 .

' I I}u~sd no<; Ital. :l baila ii argullll' lIlaçào de Alahualpa. chefe dos incas, penUlle a (,,''(po<;ição do I'ad le Va lve rde, capelão da expedição de Pi7arro. "obre a "e!lõséncia dll cri~lialli<;f1l1l'" "Além di ~ h l lHe dis",' ,,'O!iSU fal.1nte quC' lHe PllIJllllldes cinco variks ass inaladtl" qm' devo conhece r. U primeiro é o Deu". Três c Um. que são quatro a quem chamais Criador do Universo, porvenluTa é o mesmo que nós chamamos Pachacmnac c Viracocha? O segundo e o que diz que é Pai de todos os outros homens . cm quem !I ,dos eles amontoaram seus pceadl's . Ao terceiro dWlllili, JCSI!" t list n. 'tI d e qut.' nã u Ct)Ic~OIl !õcus (ll'l'adtls naquele primeiro 110)11(,,'111, ma ... (IUt' lui II I1.rll' 1\" ,!U:H10 dai:-: I) nmlle de papa . () <...J lli lllU é Car l n~ a qU{·U). ~l'In Ic\ar '''_ u ullll '" ~'IU 1..(11I1a, t:hamais pltderosis"il1lo C' monarca do 1I1II\.CI"0 c <; uprCIlI(I dl.' ' 1ldl ' o; r-.la .~,"'c I.'Sle C:lrlos é pdm'ire c s.: nh(1r lk lodo o '1I1I1It!11. que II(·CC ...... itl:HIo..· linl! ;1 ti" qll{' (I I'Jpa lhe fi7csse nova, ('O IKC'''sn" e dl\:lç;lo

/' ,11:1 me j" 7l'l g ut"r;I l' lI ~ '1rl'~1I L' ... ll· ~ I L' ino.s? f. !\ l' \I linh:" l~l,l,!o. ( I 1'''p3 é Inais Sl'nl".r l' 11.1" l' k~ . ',' tl 1. . i ... p l ,tk·" .... {] L' príIlL·jpl' de tod\1 I) /Iluml,,'" '! :unbém lU€' ;,, ),1111" ql'~' d 'l~ ,1 i ... qnl' (· ... ,,'u "!, - !I·:td.] " pa!:!iu ! ~ i hu h l a { ', 'rlo'; v \I ii" aoo;, uutro,. IH ll q W': 11:'10 dai ... o('lllullln I.I / .p , 1', It .1 <l tfillu !!l. 1I~' !11 cu tll l' .11.:11" "h, ie"d'J ;1 d:i-h. d~ 1I1:L1Il.'11;t lIl'lIhlllU:1 1',,'q l1~' "~o P"f d .. vi ll ' 11 , It 1\ ('!'''l' dL' .I,!! IIIhw'\, l' -:l't\ií.,'{).

J!:l\ú't"lIll' 4tll.: ~,: de\ I:ri;l d :lI ' '''Il,{,'k 1}I,.'\l~ c ;jquck hlllllcm lJuc fi.; I'a l dl' !i.ld"~JS t

" , ·r" ~·'1";' \. ;"'(jul'k " ' :--11'" (,,, ,. , 'I'! ' 1I't11~': , :1111""11 '\\ 11 <;(" h !li.'~ ,,,h ,,,. !illilhllCI\IC "l'

I , ' ,. ' 1' , I I . I, I' !! " '~h'" ' I t " ., ' . ' 1" ''; .1 ,, \ ,.

DA " rN VASÃO" DA AM t:RfCA AOS SISTEMAS I'[NAIS DE fIOJF. O DISCllRS(), 2.15

irracional ou "guerras justas", Houve, portanto. muito mais uma domi­nação da religião do conquistador sobre o dominado do que uma passagem a um momento superior de consciência religiosa. "No me­lhor dos casos os índios eram considerados rudes. crianças, imaturos que necessitavam de paciência evangelizadora."JO O senso comum europeu era o critério básico de racionalidade ou humanidade. ao passo que o dos astecas, incas e maias estava cm um grau inferior pelo Jhto de não terem o conhecimento da escrita e dos filósofos I foi-lhes, desde p inicio. negado o reconhecimento de suas tradições orais e escritas, bem como a sua filosofia). estado que só superava o dos índios de ('tdfUrns não urbanas - estes seriam nada ma is que animais selvagens.

O argumento de "guerras justas" surgiu de forma célebre no parecer de Francisco de Vitória, teólogo, jurista e professor da Universidade de Salamanca, quando da disputa de Valladolid. em 1550. entre I3m·tnloll1é de Las Casas e Juan Gines de Sepúlveda. Assim, embora desconsi­derasse a argumentação de Sepúlveda a favor da infcrioridade dos índios, que se baseava em Aristóteles, considerou lícita a intervenção bélica em nome da proteção dos inocentes diante da tirania de chefes ou leis indigenas que legitimassem o sacrificio humano.

Tornou-se um hábito ver em Vitória um defensor dos índios: mas, se interrogarmos O impacto de seu discurso, em vez das inl ~ nções do sujejto, fica claro que seu papel é outro: com o pretexto de um direito interuacional fundado na reciprocidade. fornece. na verdade, ullla hase legal para as guerrél s de colollizaç50 .. 11

4. O DEBATE DE VALLADOLID: BARTOLOMÉ DE LAS CASAS E A QUESTÃO DA IGUALDADE DOS INDlOS

Importa priorizar um pouco mais essa famosa d isputa de Valladolid, ocorrida em duas sessões: uma em agosto e setembro de 1550, e olltra em maio de 1551. A congregação que iria avaliar o debate era compo,ta de 14 juizes, entre teólogos, juristas e letrados. Esse memorável embate verbal versou sobre o verdadei ro motivo da condu­ta implacável dos espanhóis nas Indias: a inferioridade indígena. Tanto O desejo de enriquecer quanto a pulsão de domínio foram razões para a atitude espanhola. Porém, f:l7,-se nccessúrio um terceiro elemento . Uma

dar ri ('al'lll!' que nunca foi SC'llh llf dcsla!\ rt'[~ iõcs nem o lenh(1 vi:<:tn" tUL 'SS EL. Enrrqllc . ! ·IV!; o cncllbrinwJl!ll do (Illlr(l (;\ (lrigC'm do mil() d ... 1 11l1d~rnid;\lk l

Conlcrêl ll'ia:-. de Frnnk furto rI :,,!. J:lillll.' /\. t · la~L· 11. P"lfÚPl)!i~: \ ' f)7~'S, r ') '1.' I 10 DUSSEL. F.lllique. 0t>. di., p. 63. II TOOPl{OV. T7ve-tan. A ('rmqIIlSf{/ dl/ .' /II Il·'uca : a qU("<;I:l l\ do OUIl t,l. J ... d "'IP

P :HIII- hlt!lil!''; FOllte .... ! <)lll . !, 117 8

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JI )<..:1 ( . \1'1 fI" MORFlRA DA SI!. \' /I rll i H I

prl..'l11i ssa búsic::t para a verificação da destruição: a noção de inferiori~ dade do~ índios. (,;01110 se estivcsscm a meio c3minho. entre oS homcn1 1..' tI, i.llliIlWis . I ai era {l pcnsamcnto de Juan Uines de SeplIlvcdat dôOtor {' 11l :,rlc ,> e ll'oto!;ia pelo Colcgio de: São Clemente de Bolonha , além de h'l (,: ... llId :\tlo dir c ito L' lilo ... ,dia na Uni versidade de Blllol1ha , O (,;OIH,:ci­

IH:ilhl L·:--llUiJ O .... O f:llolIl' <"H IrL-:- hura s. durallte as quais Icu um n.'SWllO de 1 I ,, ;'q; i 11:1. .... tiL' St..' 1I I i \ r (I I Jt"l1/I i( /"( t1(' ~ A Irer , que fora proi hido dI: ci rL·tllar I!tH .. iallJlL'lllL'. d e 1m a litlo \J:J arl}uitetura urhana dus 111ains c a"tccas, tão ,ldlJlirad,j~ r"L'I{I' cspallhúi <.; ('"o llqtlist<1dorcs cm seus prúprios relatos, di/ \ 'nd\l tjUL' e la 1I :i ~ 1 iIH.l k :l \'a :.l cxistência ue 1I111a t'1\ ilizaçàn. mas til/C Iii, ) ~Ú rcrrc"cl1ta\a um ind it: io de que aqueles índios ('nculltravalll~se !lll!!) gr~,ü determinauo lIL- harháric. Para Scpul"t'da. a constatação de lalllÍ\c l dc prilJlili\ iSllltllT:l reforçada pelo modo nito illú iddual de O~ indios t.:S. I:lhck·cc rclIl :-U~l S 1\.' lações IIns com os OUIIOS C com as coisas. !lL'lll (.:(11110 pelo ralo d(,' ,,<1,) I .. : rem experiência (k propriedade privada m' lll dl' !l era m;a pe ssoa l i\ kll1 db!'o. corneliam aios pagãns. tais qllai~ o ~at: rilici tl hUlll tlllO c o callibalismo, Baseando-se cm Aristóteles, Sep,'d\ e"" juslifica a úOl1l il1:tção e a desigualdade dos il1dios dizenúo qUl' <..l perreitu d~\ · e domillar sobre o imperfeito, assim t:omo o adulto .;;oble a criança. () IH\llIcl11 sllbre ti mu lher e o clemellte sobre o feroz, " 1 odas as d ife:rcllças se rcu lIzem, para Sepúlveda. a algo que não (o LIma diti:n:l1çtl. a s upe ri uridad('f illl\:rioridade. o nem e o l1Ia' ... ·::-

r" l \ isi'io de Scpúl\·cda. a con{juista. nrl verdade. c UIll alll em:lnci~

palúri o. porque permite 30 hú,.haro sair de sua harl)(írie. E para a I l'alizaç~(l desse li..'ih1 :ldrnit l.· ~ sc a \·ioléncia irracional L' [I "guerra juSt3":

Nfio podclllo", duvidar que lodo~ os 4,lIC andalll \'3gnndo fora da rdigii10 cristi'i L'SIJo e rr:1dos c caminham infali vel me1lte rara o preci­pício. niio dc\ ClllUS du\ idar cm afastã~los dele por um medo qual­que r o u mesmo COl1lr .. a sua vontade, c. não nlzc'ldo isso. não cum~ primo .. a lL:í da tlalnr t;7:l ncm (l preceilo dc CriSIO "

C0ll10 j;"1 SL' alíl"llloll :d hurcs, é curioso percchc r quc nesla vi sâo 1"111l/ 11C"i/Jodo/"u o ... IHl\'O'i ·· ..... !hdcscnvolvidos .. s[io duphllllL' nle culpá­'. L·i ... 1'1imciro. rOI ··SCH.' 1I1 ·' inleri o res: segund(l, por " darcm moti va· 1.: ;;(1·· ;., aç;"i(l \ ;"kl1l; 1 da ,·11 ,,(/\1;,,;1;1 an n:1l) acalall'!ll CllnL'I; \IlWIlI l' a

" ld.IlIc;1:1 Udtlll; ' "

I til ..... '·,1 P ll l1l1 I1 ICi;llIll'rl:p , ILllloltll1ll: de I .as l ·;I ... a .... 1:"(111, 1I,\ua mais ,d" Il !<" I!I I". illIl 1111<' l i ll l I' , h.! .. r () q!!..; ... c 'l'r iliL'1'1t dL' \ idn n[in ,ú ;',

1!,,)(q~ l)\ 1/\ .. · 1.111 i '''''''' ,(" .I., I lIltll ',' ,I q lll"' ,j" "L. nU!I,' 1. cd "':hl I ',!'II" \I ITIIII'; I "lHe· . I')": I' 151 1" '';S! I jn //c/II I 1,]1)' ,'m·ob'l!lll'l l1n ,hl 11I 1H\> II " ri t' .. 'r!! t!il 1I1llt} d' l

TOI<U!l,tllid, ltk) r \",1.-,,0, 1.\ ,I J I: \!lkhl il ! 1:ld ,1:1111 1\ ' \ ! t 1't"!I Pl'Il '·'l'lIlis 1'11: I' ':,.

DA " 'NVASt\( r· DA AMÉRICA A(lS S'STF~1AS PENAIS DF II(lJE: O OIS( 'llRo,;t) 2."' 7

eloqüência do fTei, mas também em face do volume do malerial lido e apresentado pelo frade, composto de sua Apologia. de 253 p:iginas. c de sua Apologética história de las Intlias. com 257 capitulos e quase 800 págin~s! O dominicano bateu de frente contra os arglltnCl1to~ de Sepúlveda. O dehate foi um divi~(lr de ~lgllns na argumentação oe Las Casas contra a ação espanhola. De falO, percebe-se que a opo:;;içào entre crist:ios c não-cristãos não foi lima oposição de natureza, pois todos pouiam ser cristãos, por "pertencerem" ao mesmo rehanho. Assim, n50 há que se falar em desigualdade ontológica, Aqui é impor­tante notar o perigo potencial de se afirmar não à natureza humana dos índios, mas sim a sua natureza cristã. Tanto que Las Casas, cm sua Brevíssima relação da destruição das "Illias , refere--se sempre aos Indios como dotados naturalmente de virtudes cristãs, sendo obedientes e pacíficos, Nesse ponto, a percepção de Las Casas não difere muito da percepção de Cololllbo acerca da "g.ellcrosiundc" dos índios, COIl !'ta l a~sc

uma permanente monotoni:J !lOS adjetivos relati vos aos índios da Flórida e aos do Peru. O que se fonnou foi um estado psicológico (bons. pacientes) e nào uma con figuração cultural que pudesse ajudar a comprecnder as di ferenças,

Se é incontestável que o preconceito de superioridade ê um obstú..;ulo na via do conhecimento, é necessário tamhém admitir que o prcL:oncCilo da igualdade é um obstáculo ainda maior. pois consiste em idt.:'llliric:1r. pura c simplesmen te , o outro a seu próprio ideal do t>tt.

11

Las Casas percebeu todos os conOitos cm função da oposição fiel /infiel. A sua originalidade foi alribuir o pólo valorizado .fiel. ao oulro c o desvalorizado. infiel. aos seus compatriotas. O maniqueísmo lascasiano c indiscutível. No enlanto, há de se considerar o fato de que o pólo negativo não era, em sua visão, composlo por todos os espanhóis, mas somente por aqueles que comandavam as encomendas e realizavam as guerras. E. além disso, embora retratasse o índio C00\0 covarde, medrO:o'(l e passiv(l. t'm outros trechos relatava a sua coragem {' a rebcldia .. l~

Uma coisa é certa : Las Casas demonstrou, nesse mOllh!1l1 0 , uma postura L'b ral1lente a~silllibl"i{lllista. rom a dikl'l'l1ça de que qUl.:ri: \ Qll l'

I., f)USSII . EllIiqul.! . OfJ. ('iI. II Ih2 . ,. O s all'';1 " iii il1S de La" Cas;\s l:ullllêm i lf'lllllillll a pa r ciali ll:llk' <ldlo t:1I1l1 " .. ·b(:l .. ;ll· ...

Indll "'. I~llt .. n:io ,;nndC' níl\';J :J C' "r,: r;l\ i tl:k~ dllS rwgIH". NL'!.:(l' 1'1111111. Ir:\ li ... ' "l' l'l '11,id ... •· raro prilitl·iI\I. 4uc. l'UllU<lIl1l1:l l·~cr:.l\jd:iu ~I ,IS Il l'~n1~ ela alg!} tbd\l. :I di'''; illlh,'!" o.:Otl ~1I1I1jll·~C sob ~cu" o lhoo.:, c. SC!!Um]{l. qu~ (' lllhora cm um prime iro IHtlfllt,:rllO o.:k

adlllil :l :1 l'sl'ravidiio Ilel!rll. p(lS1Critll1tlCll tt' s~ r('lral;r t.' xpl!cil:lI11Cll tC \.' ll :i ll tllilis a O: dis[in~wt d:, do .. indins, C<)Jllmlo, assinalll Tt1dt'r'w. :J Slta posição L'111 ! çl,tl,":itt ;!''', :IJ') IIq'f t' "Ti 'lll' rhl'· eI.tra do q ll t' CiP\! rl'I:J~':t" :,p, ill'I~I'( (l 'I' di . P 1(,-\

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esta anexaçiio rosse reita por padres e não por soldados, e que, além dis~o. nunca estaria justificada uma guerra que procurasse "acalmar os f1nimos" dos ínúios par:l que estes pudessem ser evangelizados. Sua argumentação a esse respeito é muito interessante. O poder de Castela c'~tava fundado na conctssão papal. Isto significava para Las Casas que o poder espiritual linha mais valor que o temporal. Ou seja, o poder po líti co de Caste la só pl.lUCri 3 ser exercido sobre a América se esta se 1'1h:11l1rtlSSC ,", oh o dOlllínio espiritual da Igreja . Contudo . como deixLÍ dai 1..'111 sua obra f)('/ IÍnico modo. tal domínio só poueria se dar com o COI!. en so indígena. Isto é. embo ra a postura de Las Casas seja ass il1lil al.,' iollisla, ela partiu de um principio menos encobridor do que i.l

\ j" fl o (\" meto dologia lálmlo rusu , reconhecendo o índio como sujeito n:1 m edida L' f1l que exige a s ua compreensão e aceitJção racional. c não a pt: fl:l S lima submissão o Além disso, há que se considerar que, ao pedir IJl Il Ira tamc nlo mais humano para os índios , mesmo so b termos assilll ilac ioni stas, fe z a única coisa que, cm nível imediato. era possível par:J miti gaJ o sorrilll (' nto dos habitantes originais daquelns terras , I ,:unb t" m nfio se poJe ol vidar que a maioria de suns cartas eram

dirigidas ao rei, c cSlratcgic i.Ullcnte nào poueria sugerir que este abdi­l'a ... sc Jc sua s possessões além-mar (conselho qlle. mais tarde, irá l'lC li" ;'UllCnl L' pro nunci a r), U,\()U cntão O expediente de que tal domínio fO"'SL' fe ito por padre", c nfio por sf'!dados. O que garanliria aos índios uma proteção cOlltm os s uplícios o Nesse sentido, 13artolomé de Las l"a!':I '\ ê considerauo o prillldrp dclcnsor. na América Lnlill3. do que \ iria a ser cl!al11auo de "uin'itos humanos" o

Foi justalllcntL' cl1f"l\.'lltando os argumentos de Sept"Jlvcda que Las ( 'a sas apresentou uma posição mais inovadora ainda perantc a questãoo () hispo de Chiapils intentou tornar tanto O sacrifk:io qlJallto o caniba­lismo lIIenos estranhos L' 1I1:lis aecitúveis ao leitur. COI11 relação ao sacrifício, ohservotl 4ue ele está previsto na religião cristã. seja no sULo tificio de Isaac, o único filho de Abrrão, seja 110 próprio sacrificio de Cri s too Em seguida, c.: OIn relação ao canibalismo. constatou que era li m a prá lica já ado tada pelos espanhóis, os quais, quando impelidos I'l:l<I necessidade. havial11 c.: olllido o rigada de seus compatriotaso

( Ihse rva-se claramenle a fIIudança de entendimento de Bartolorné de I :\' .. Cil ~WS qU:llldn este v i"'tllI pro var que o sacriticio hUlllano nrlo só é ,tCL' il ;olvc l por UIi' Õ"':S dI.! li ll o l"O IIlO PPI razões de direito o E. ao I~\zer isso, 1'11.:SSUpôs urna Ilt.Iya Jdill ;çào do se ntimelll~ r~li!!ioso : o rerspecti­\ i "i 1Il0 , Em "e u rac ioci ni o. :l's ina lo u que cada um adora Deus à sua 1lI:II H.';ra o d~ lilrma quc po<l t.\ L' que oferecer LI vidn, o que hú de mais 1'1 :l:in,o, é a 1l1ainl' prO\:1 dt.' ~l l ll nr que se pode <I ii !" a I >Cus o Logo. ~-I llh!,. l ra \I De us d os íllllill" n:Ill 1( \ssL'''o vcrdadeiru"o :\ '-\ silll era por eles ~('ll" i dc r : ld() o lo: (':-. te dL: \!'" Sl"l' II IH) fltu de partida o Mas n:o' n)lllll'~o e r qUi: o ! , " ,klt-, LO !; t '.er4hd o 'il'\ I' qO\ Lh.°' , " i!.-'.lIifi l..°;1 J'l' t"t l\ 11 II', '(' ! qu'.' o !ln..;""

DA "lNVAS,\\ rO lM AMtRICA AI)S "" SlTh!I\S I'FN,\ I~ DE II0Jl o: () DI S(ol1H"11 l.lt)

Deus era verdadeiro somente para nós, o que deslocava a universalidade do plano da religião para o da religiosidade. E na religiosidade. afirma Las Casas, os índios são até superiores na devoção. e só os mártires do inicio do cristianismo lhes seriam comparáveis em fervor. A igllaldade já não é admitida em prejuízo da identidade .

O bispo de Chiapas abandonou o discurso da teologia e passou" ter um de carátcr antropológico reJigioso. e. nesse contexto, tomou-se um discurso subversivo. pois quem assume um tliscurso sobre a rcligi:1 o dá um passo fundamental em direção ao abandono do próprio di scurso religioso. Com base nessa lógica, roi ainda mais rácil para Las Casas evidenciar a relatividade do conceito de barbárie." Por Iim, ele sugeriu ao rei da Espanha (1555) que simplesmente desistisse de seus domínios

I 36 É cunos" " defesa de Las Casas, que usa o próprio Aristóteles pam 1.:(ll1 lr;1-

argumentar a Sepúh-cdao O frei dominicano acusa o seu opositor de des virtuar u sentido da teoria aristotélica e propõe-se a esclarecer u que deve ser clHcndido p t1r

"bárbaro"o partindo d<i obra de Aristóteles, cm particular a Politica, e explic it ando Quatro sentidos p"ra a palavra oObarbam" que pudem ser ai cntcndido so Numa primeira acepção, o lermo pode ser tom"do como relativo a uma nallln:n dl' irradonalidade, rerncidade, cnleldade e entendimentu confusoo O tcrcl' in' ..; i ~ ni!i o cado diz respeito a pessoas que em virtude de seus maus costumes Sãll cr ué- is, fero7.e~ e anti-sociais. não temlo leis nem regraso O quarto tipo de ,obárba nl"" SC' ri :1 aquele que carece de fé cr istão E, por fim, a cspi:cie que seria aplicada :'lO') índi us, a segunda classincação de Las Casas, l:o loca o falo da b:lrbarie na i ll1rll)s~ i bil id adc de comunicação, seja pela cin'ull"tãnciJ de l'mhate de línguas di versas, -;l:ja por outro motivo qualquero EscreVI! Las Casas, em sua ApflJogi'licao til/C " 1:-. 111 !tl i () molh'oo !'cgundo ESlr"lwm, fW livro 14. que m' l!lcgos t!vcram p"rn l"h :\loar til' bárbaros :l outroS povos, porque não prununciavam bel'l , mas l:01ll 1\lI.11..- 1'.:.I l'

defeito!', a língua grega; e desta maneira não h,i homem ncm naçfio ,1!gurnao q uc não seja h'-Irbaro e bárbltra para os oulros ( '0' )0 Ot!'sle mo<h\. esta!' gentes d:ls indias. que nús estimamos cumo b:\rbarn!i, consideram-nos, tJlIlhl-III, h:irban1"; ,

pois não nos entendem e lhes 5 011105 estranhos: daqui procede UIlI grande crro em muitos tlc nós seClllarelO, eclt'!' i:'1sticoo' e relif!iosos. em rdação a csta-; nossa ..; indianas nações, que sendo de línguas di\Ocr'\as que nào entendcmo" IIl' Jl1 pelletra ­mos, dI..' costumes diferentes. depois de ter perdido suas rerúblicas e ordem qu I..' tinham para viver e governar-se. porque nós fi" colocamos nessa desordem e as apoqucnlumos de tal maneira quc fica ram aniquiladas. os espanhóis que víer:lIll fi

eslas tcrrns, !'cjam dc qualquer profis~i\o ou qllalidudc, pensam que o ~" st!ld l) de confus:1o C' ahatimenlo cm Que ag<ITa vivem foi !'cmpre nssim porquc ph'~'ed in lk sua llatur('13 barbâricll e pplllicil desludcn:Hlno Mas podemo~ .. 1i11l1ar tlUl' d C' ..; , com rela ra70ão, por ver em nos uutros costumcs. t"slimam-nos nuo apl'n a..; n ullt l bárbaflls da :-õegunda espé-cie, 4ue l]UCr di zer estranhos. seu;io da prillll'i r". i ~ lo êo feroci ssimos, durissirnos, aspérrimos c abomintlveis (000 )0 E assim fi ca ~ l:dlr:ld ll o demonstrado e abertamente conduído, que todas estas gentes de nossa~ Imlias !'iio b á ru<lh1S sC'cundum quid, porque não tendo e:<erdd\) nt.:1ll eSludo (\;1 "; It- t ra~o tinham re inos e govemos. obediência e ~Ilblllissà(l, c ~c regiam por lei!' C Ju..;t iça

oo (BRUn, f-!éctur Henmllo Borta/ome l/e L(1.\ Caw$ E' a sil1lulaçii/J dtJ~ I '('II( /d,}.\": eno,,,i(\ ~ nllrC a cúnquista hispünica da ,\mé ri ca (":lmpin<l5 0 t fn ic""lp: S:l" P ;'II !\I: !1U II1 ;!)!l';"'o !Qt)5 0 p . t~~- ! 11l )

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240 10S(: CAftl ()~ MORf:IRA DA SILVA fll . llC,

na América c que, se tivesse de mover uma guerra. a fizesse contra os co nquistadorC5. que não sairiam de lá espontaneamente. Sua postura perspectivista permitiu-lhe ainda modificar outra posição e renunciar a0 dC'scjo de assiJllilar os índios à fé cristã, no que assunliu a via neutra: dc" que dct.:idi ssclJI ele", I11C",1I105 acerca de seu próprio modo de viver.

!)u""el ohscn:l que . fia \I: ruade, a tlisputa de Vall:ulolid versa soore de qllt: maneir;"} devem ser 0'\ índios inclllldos na "coll1l1niJadc de l" I\II HIJli cac,:ãt'" Pala o fil ll"ofu arg.entino, Bartololllé de I a ~ Casas

assulIle ú melhor tJo sc.: nlidu cl1l;:mcipador moderno. Illas ul.! scobre a irra<.: iollalidade encoherta no milO da culpahilidade do Outro. Por j,, -;o nc.e3 a \ aliuéldc de lodo argumento a favor da legitimação da \' iolência ou guerra inic ial parj cumpelir (\ Outro a fazer partI! da cOf1lfmidl1r!c de (,01111I11i ( artio. ( ... ) O debate está no 11 priori absoluto, da própria c om.liç,in de ptls sibilidadc da participação racional. Gines de Scpúlvcda admite um momento irracional (a guerra) para iniciar a argumclltação; Barlolorné exige que seja racional desde o início o diálogo com o Outro. ( .. .) Para 8artolomé, deve-se procurar moder­nizar o índio sem destruir sua alteridade; assumir a Modernidade SC'1I1 IcgitilH:lr seu miltl . , .

~. ,\ Cl' I.Tl lnA ,\MEnINDlA E O FIM DO "QUINTO SOL"

f: necessê.Írio que se tenha em mente o momento histúrico c geográ­

lico destes povos antes da chegada dos conquistadores, pois só assim pode-se caminhar no sentido do reconhecimento da nlteridade e da negação do mito sac rifical da Modernidade.

Os amclillJios. Ila rctllidadc. não "c.lescobrirJlH" () contiw.=nlc no Illesmo sentido de Américo Vcspúcio, isto é, nào tinham consciéncia d1 to talidade da teTr.J continental, cnnnldo tinham algo muito mais importan· te: ~ IlImumizo('lj() do cOlltiw:ntc. Assim, a conquista já contam com wna cultura estabelecida, fatu que dicarnC'nte fbi muito relevante pam guiar as açõc c; cm face dn real iú~dc arneric;U1a e de seu povo. Dus:-oel preocupou-se. com base nos quadt os culturais dos astecas e não na pe-rspecliv8 curocêntrica, em demonstrar a racionalidade da atitude de Montezuma perante Corte7. A indecisão uaquele devia-se à presença de UIn leque de IlO," ihi lidadl'" tl tle podt.:ria l11 :lthir da chegadn U('S csr:lllllúis:

;, I a r tls s ihilid ,lIk de ql /l..' fo" selll um grupo de seles humanos era 111tlilp 11111'1'1\ :í \;,: 1 d r' "'''' tI:! 1J1..'rlll C' n ê \lli l' íl T\ ; tli \ : 1: f\1 p 111C7 1l1lla

I H ·SS I· L. I III 111m: , ·/ V.' n l'l1{;\,lrr illlcm ~, til) nu:n. C_I ,· rtg<' 1J) du mi to do n~,,\ kll ll" . ltkl _ t ·<I ·lk cl·.,.-i,~ .I .. 1 1 11'1.1'111 1 I r:u l .lai I1l 1· \ I h ·l·ll 1\' ln\pnli ,, '

1-, I'

DA "fNVI\S,\O" 01\ I\Mt::RIC'A AOS SISTE~1I\S PF.NAIC: DE HOII': O Dlsn rn"'(J 2-' 1

não dispunha de elementos para chegar a esta conclusão. pois. se a tivesse. a superioridade numérica dos astecas era um falo que não exigiria maiores preocupações com relaçào aos possí­veis invasores:

b) portanlo, "racionalmente" . eles só poderiam ser ôcuse ' . Mas quais? Tudo indicava que Cortez era Quctzalcóatl." A repre­sentaç.io histórica de QuctzaJcóatl era a de um príncipe do povo tolice" (anterior aos aslec3s) que havi~ sido buscado r aro ser o rei de Tuln, mas que acabara sendo expulso. Uma de suas características era o fato de se opor a sacrificios humanos. pois amava muito o seu povo; e, além disso. prometem voltar. Em isto que os astecas poderiam ter toda a razão em temer, pois, além de provir de um povo por eles massacrado, o príncipe era contr:'lrio à sua fonna de viver e, sendo um rei depo~to, poderia querer o lugar de MOOlczuma. Por c~se motivo. o impt:'fauor astcca, num detenninado momento, ofereceu o seu reino a Cortez. que, obviamente, nada entendeu. O rato de o comanuan­te espanhol censurar os sacrificios astecas já era um grande indício de sua possível identidade. Na realidade, os sacri lícios, segundo a crença asteca, eram uma maneira de se prolongar o "quinto sol";J·oferecidos ao deus Huitzilopochtli, que passara a ser o deus principal, graças à reforma de Tlaeaélel, imperador conquistador que queimou todos os códices dos povos dOlllillallos

e os reescrevcu;"'o

)I Quet7.a1 cr~ 11m belo pássaro cujas pCllílS ~ i~'lilk :w;un dh indadc, c l 'OI1 I ! l'r:! a dualid:hlt.·. lIS dois prillt.:ipios do uni\'cr"(l .

)9 A crença tio "quinto sol" representava o ciclo que se cslavrI viventlo. isto C. I,' la como se fos~e uma quinta era, sendo que cada uma possui .. um sol direrc-Illc - .. açlo dos humanos devia ser no sentido de fwss ibililar :l m;Íxü lI<l C"(h' II ';:I " .. ' dUf3~3tl dei St,1 sob o qual se vi\'ia.

40 Com rclaçi\o aos sacrificios. comenta LCtlllnrdo 140fT: " /\ III<juisiçà(1 contr:Hli J: ti

bom SIi!1lS0 das pessoas. COntO se potlc, cm nome da verdade e aind:l l11ai ~ d ~l ve-rdade religiosa. per!iôeguir, tOl'tUr.lr, matar ';1nto e de fom13 t:ia ubscs:,i\ :I.' Importa enfatizar que. mediante a Inquisição. 3 Igreja hicr:í rquica inlroou7iu os sacriflcios humanos. O auge do sacrificialismo furibundo da Inquisiçtlo mI ~b.; ul {) XVI 11:1 (;uropa cOlTe~pondc IIOS sacrificios hum,mos perpetrados pelo~ 1.:0 Ioni7:1 -dores e"'p:'Ulhóis chegados ao Il(l ssn Continenle c(\ntra as culluras urigin,iri" ... dtl ... 3slecas. rml ias . incas. chibclms c.: nut rõts C)llallllo t Ie-m:in Corlci': l'<"nctn1t1 c ln 15 1' 1

110 planallt1 de AJ1ahunl' no Méxin l. havi" no illlpêritl nslel'a 25.:!OO.O{)O h:,htt:lII ­les . M~' l\tl $ de fW a!ln ... . CnI 151)5 , S':I f(.' s t:Ir:UIl 1,,175.000 hnt\i f: lllh.' ~ t\ Ll i;· IlIl .I,:h' glnbal. pl lf ~ lI l· nn .. . thwlu,;a .... "·"' n:~stl de II n h:llht'- (, ~i.."r.J\( 1 Il .. ~ i.."11~·1 1I11it·p , 1;I ".

llc ",c !» lnll ll1 ;1l, :io c uh nr;ll. 11\15 li"is Ill il1ll' ir ll:O> ~CClll . l " d .1 l·u l1l1l i.l:l ... ·;itl -i,I\" .. r", It' ; d;) unklll tk 25 pnr I . Qu..:m lltC-lcc ia lI1a ; ... ~al rilkios hUHwlln:-õ: l'" n"' h'~·:l";;. qll ~' r37..i:lIll "';Il'n li c iu!' rilu;lis no dl.'l l'" Sol " .11 .1 qUl' !' cmrrc \,(..11:\50;1.' a 1I.1)';ÇC! I' :h ... im C:lr :I":!·· . • ',it/:o : ':11 '1 l u dt '" :,., 11"\( .... \. 1'; \1 :1 ,. 11 0 1\ 0 0;" . ' '' ' ,." (" 1'.11, 1".:; -11"

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242 JOS(: CARLOS MOREIRA DA SILVA fiLHO

c) a lerceira possibilidade era a mais sombria: o príncipe poderia ser a representação do principio divino, um dos rostos de ' Omctéotl. e isto era tenebroso, pois seria o fim do "quinto sol".

Partinúo UCS<.;iiS opções, portanto, cra importante. primeiramente. que t\ 1011lczuma n50 se encon tr asse com os espanhóis, pois 3i tcri", provavel:­IIH.'ljIC, de rccollhcl.'cr tulla das <lLJa') ültimas possibilidades. o que seria o seu i~ll CO/ 1l0 illlperador. ria mais aconselhável mandar- lhe..; preselltes e ~llgt:nr que \ nl!ilsSCITl .. 10 seu IlIgar de origem. se.ia l·~tc ljual rosse. Ob\ j~JI1ll~ nte , ao enviar ouro C0l110 presente para Corte? c seus homen". I\foIlIC7t11J1<.l estaria longe de incentivar a sua volta para a Europa,

,\ lJlli ca p()" ... ihilid:Hk pcr:lIJll' a qual 11:10 !\cria 11CCl'S",í, io I.) recurso ;'1 ,> :UIIIJS L'la ~l o.; cglllldil f\1:.ts. antes de ctllpn:elldcr qualquer a,'50

hélica, era II l'ceo.;s41r io ter-se certeza tla não-verificação dessa hipótese. I\)r este IlliJliq) f\1onlczullla ofereceu seu reino a Cortcz fieou de fora poi . ..; :Is~ill1 estaria evitando sorrimentos a seu povo: "M~lltC'zul11a cm \; 110\ (1 ()Llct l alcúatl de sc u1\téxil:o c se imolou por e le"':H

Com a recusa tio cOlllantlall tC' espanhol estava descartada a segunda f'Os<.;ibilida(k' , Por0m. a tncL'ira opção pairava no ar como um perigo supremo, Co ntudo. três ilcontecimentos posteriores iriam provar a ~ I oll tt'zllrna que :1 possibilidade real cm a primeira, Esse~ acontecimentos fÚr:l1ll a chegatla de outra ~sqllndr:l. a de Pânrilo Narvácz, qUl'. lutando contra CortC'7. fiJi derrotada e suas forças anexadas; a matança de Pedro de i\h arado (,uballmro que ficara responsável pcla expedição com a :Illsê llc ia de ( 'ortcz c que realizou uma camificina traiçoeira no México); c a \"olla de Currez com () cxén'íto refhrç::uJo. Ao lentar pelletrar no t-.ll· .... iCiI, ;15 !ün.;as du (:nnql1istador espanhol foram th:rrotadas na "notchc Iri ..... te· . Porélll. ue naJa adiantou. pois a peste que se alastrou no México loi apen.3S o primt'iro sinal da vitória inevitável dos espanhóis. Os astecas interpretaram a cOllquista corno a chegadb do "sexto sol" e a <:ol1seqüenlc morte dos SCHS UClISCS. ue sua filosofia e de seu IllUIHJO.

Torna-sc, portanto, a chegada do "sexto so'" como um marco simbó­liL'o do " fim do 1l1llfHlo" tllllcríndio, de sua cosmovisão. Porém. a resis-

~al.',!!it·: l\ ; ml :\1' d ~'lI" r.! ,II!I"II:1 pa'a ~';lell1 riCC1'> C' fidalgl'>; 11<1 r"'p:lnha" E sobre " ", I '" hi"I 'I'" rntnid"" III' ("' Ildli" dt' rrCIllO (!545·!~~1) , t; tmll,'lll pt1r:lnt:() a I,.,!" " I,'."e, 1:11" . II:i, . ,h / I,"' I "ClP'I," IInla pal:l\r.1. F'la\ :lm ')cup:ldo-: l'(\f1l quC's . I ",'" !I\1t,;rr llo..: tI.1 111":111111'.:'" ,III ,,'rtlr"IIHIl"OIll a Rt'I,lI rll:t dt.' I ull'lo" (U{)FI· , I ""lIlId,· lnqu , ... ,(:j , rrr" t· ... pllil" 11"1.' 1.' \1II1rIlU;1 .1 t~'i. i , l" l't l.: li·l(·io ln 1 ~ \1!,HI( I I, " '1', 11 ,,11 \1'/'1' ,II ,i", "I<;III " fl 'I' " l't ' rlll·IlI :lIh .... ,te I r:ult,·j,.l'tll'l'i\:1 IIII! i\l uulp'l' ! !11'~'" ,f.r .... 11.<1 .:. l· tI I ~ I ,' ,k' ./:1111':1" H,'<r II ,,·, 1t'1U1'0 '; It",;II :\ I Hlld;ICI\I! "lI\ I 'r·Joj,.,k Ik Hra:- i1ia . ! IN I. 11 ~hl

III rS<...; 1 1 . . 111'111"1' i II)' " ~'lInd'rllrlI' II10 d" "lIlr,' for ', r' l'~'n\ .1\. 11l]{1\ da ,,!, ,lt l]. hd , ' 1 ,,,,I 'J .,,1' ,I. \, ,,dlllll 111<1 I,ti,,, ,' " ! '. 1'.\'11 !' 1 '!I \ 'I"'"~

DA "INVASÃO" OA AMÉRICA AOS SISTEMAS PENAIS DE IIOJE, O DISCURSO . 2·1:1

têneia a esta mudança foi maior do que se imagina, embora tenha sido sucedida pela inevitável derrota, quer pela disparidade do desenvolvi­mento interpretativo dos fatos, quer pela própria tecnologia militar.

Assim, eom a percepção da natureza terrena dos invasores, acirrou-se a resistência . O primeiro ato foi o do cacique Caonabo, em Cibao. que. resi stindo ao roubo de suas mulheres pelos homens deixados por Colombo. Inatou-os. No entanto. 10dos os caciques. ~lpcsnr de sua rebeldia. foram sendo vencidos. A resistência maia. por 1150 ln se I! povo articulado num c laro sistema de dominação política. como era o caso dos astecas, prolongou-se quase ate o século XX. Só em grandes impérios. corno o de MontezlIlllu, teve-se a clara visão de que o control e polltico-mi li tu havia sido transferido a outrem, A figura da n_' <.;j s!l-Ili: i:lj

foi claramente seguida pela do "fim do mundo",

Parece, porém. que Dussel, I10S lextos pesquisados, limitou·sc Illuito à questão negativa da ação indígena , 011 da não-existência de qualquer aç.ão. no processo da conquista: Preocupado cm atinnar n altcrid:Hle que os povos ameríndios e seus descendentes representanml, <k\'cria ter explicitado melhor a atitude indígena de resistência à conqui sta. Contrariamente a um certo senso comum que se finnou ~wbrc a questão. a resistência ameríndia não ficou limitada ao âmbito militar. Confonllc assinala Héctor Heman Druit , a aculturação dos ameríndios esteve longe de ser considerada bem-sucedida, o que se deu graças a uma prática velada, em que simulavam a todo o instante 11m comporta­mento que escondia uma outra atitude, ullla atitude protecionista de SII"

própria cultura e que deixava entrever a sua rebeldia . E. além disso. a sobrevivrncia não só da cultur3. mas de muitos povos jndígella ~ an massacre da conquista. resultou. C0l110 afimli1 o professor dli1clJo. l:Jll

uma das maiores façanhas da hUl11anidade, Para explic~r esse feito, certamente há que se levar em conta o que se chama úe "história invisível" da conquista da América, "Derrotados militarmente c \ iolcll­tados pela prática dos invasores. os índios simularam obediência. passi­vidade, servilismo para salvar a peJe e. especialmente, sua cuhum .""

Verifica-se o que Bnlit chama de a "s imulação dos vencidos".

A s imulaçüo inscreve-se numn cadeia semântica que ~c inicia COIll

:l rcplcsentaç30. iFito é, O signo ocupa o lugar do real. e terlllin:l l"nlll ii !'i lllulaçào ('lO que o sigll() rcpn,.'~cllta. cm última ill!-t:1ll c i:t. (IIlI:1

:llIst'lIcia. Enl;'io, fa\;tr tk simulaçi10 l' ralar l:lI11bém \.'(\111 () (Julrll. signdil."<ll :l diferenço", c~labekl'cr <l di" lillll.: ia ('nln . .':I:-; ir n:l!.!'·Il'" :I~

:II':ll:·Pl."ia:-;. 1,1<'; " ig.ll11S (' 0" rd i.' n:nll'''. jt

I' Bltt II I . ! krl/lr Ilcrnan 0" . , il.)l . 1·1 I'n l~ I '11 JI'll"l lklo'l!1 (\r ,I ' l' 1"

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244 J(l"(: ('''R I 0'\ MOREIRA DA SILVA Fil 110 A ,

, Isto é. quando os indios vestiam-se como os espanhóis, comungavam ,

C0l110 eles. portavam-se como eles, falavam a sua língua, na verdade não davam àquilo o mesmo significado que os conquistadores euro­peus; a represen tação dos costumes estrangeiros significava muitas \ C7CS lima nuo:ê ncia, a llllsê ncin da cu ltura dominadora em suas crenças. l ' 4 11l' !'cn'ia para "dar cohert ura" ao seu próprio modo tle ser. A. ill1p()rt~i llc ia cm Sl' reco nsti lllir esta "história invisível" encontra-se rfa oj1oI1IJ1lidadl.' Jc Iccuperaç:io, par<! o~ índios, da SU<l <':0ndiçfi o de suje ilos ati\o'\ e centrais. fUl"lll adUlcs ue sua própria hi slúl ia.

As rn~lhor(' s fOlltes panl :1 rl"SIilUição dessa prá tica vclnda c illSlI­hl)roi nada uos índi(ls :~30 as crônicas dos conqui stadores , tendo cm vista a raridade das f01ltes iJldígenas. Necessita-se obst:rvar as visões OllS cronistas s ituadus sempre no extremo. "E O caminho entre um extremo reve la um si lêncio suscetível de ser preenchido a partir da ;o; ... p~ração entre o conteúdo dos enunciados e o sentido delcs":.f4 Assim, quando se surrreende os r<:latos europeus que se queixam, por exemplo, da preguiça e da bebedeira dos índios, pode-se facilmente perceber lima a titude c urna fonl1:l de resistência dos ameríndios.

I: interessa nte procurar obse rvar o perfil psicológico dos indios a"tes e depois da conqui sta. A imensa diferença que passou a existir e lltre um momento c o utro ~u rprccndeu os próprios cronistas. que não L:ansa\'3m de rlogiar. CfllHO se obsêrvou. a sociedade indígena. a sua L'x l r l'lIl<1 org :uú7aç;io C I igid ... ,/. da" regra .. sm.:i.1is. cm qll t.!, indusivc. <l

VIn Il! i:qplL'/ l't ll IIlnilll .... ('<1 "; 1) --; l.o ra '\ ... ' vc rallh.'Il ll! l':1'\t i!!'llb . i,.' o lIaballw rl'prl'sL'IIta,"a um tios prilh:ipai s valores, Após a conquista ter-se lílllladn, os crn lJi s!~l'\ rcla! alll.tl ex is tê ncia de todo~ (1" vici(\s poss íve is L' irllngilláveis.

A primei ra atitude que soou estranha aos espanhóis foi o próprio s ilêncio dos ameríndios, qur r\' itavam ao máximo ter de sr comunicar com o ... conLtt li ... tadnrl's.

() silêncio, que l'ollt illuava sendo alé agora a Ilwtca inconfundível dos índ ios, ('o l1fcvc a lIl:lI1ipulaçüu ideológica lia medida em que o discUf'llU do c()nqui~l<ld(lf 'IIÓ podia ter efeito e sentido (}lIt"\ndo refe­r ido ao d i5-cnr" ll do índio Aquio o re lerente cal1)1I-!'c"~ ~

() silêncio ta III bl'll 1. fia \ b:l0 de f3ruit. é lIIll:! 1ll31lirrstaçào da tlL'orn:nc ia (\r lIlll traul11a co!L' t iVll. \'crilicauo com o que :;;e chamou '111 :'1'. d ,~o " Ii rI! dn 1l1!111d~)" : !llll'Iílldil!. UIll frauma ;1 ~O:, \I d ol(lr()~o, que

I iH 1111 . I/ lO, II ' I I k!11.ttl /1 '11 (rI/"IIII : dI' / (1\ ( ",, \ tI,\ I' /I "Ül/!'''c/~ ,i .. do, l 'I 'lIndo ... · {'\',,\ll \ ", ,1,, (" a t"(l~\(ptl, r .l 111"'1' 1!lI< ,I tI ;1 \l! llOtk:1. ( :""pinT, I 'IIi,"." ,,!," S:i" f':Hlln' t j, II 1\'111" _I". I qt) ;" II I .... \ '"r" I I II 1_", ' I , '1'1 I' I

DA "TNVASÀ()" IJA AMf.RICA AOS SI$TFMAS rENAIS Dr: fl()JF: ( ) nrS('llHSt I :!45

acabou por proporcionar, juntamente com outros fatores, a atitude simulada dos indios. Isto é, segundo o professor chileno, a simulação verificar-se-;a principalmente no plano subconsciente: .

Essa forma de resistência à conquista não foi inteiramente programuda c consciente. pois nuía também do inconsciente onde se re fu giou (.) tr:Juma "da destruição. de t<'llmnneira que ela agia, cm rnuil (lS ca",-)s c cin,:ullstâncias, como lima açfiu ma i!' ins tinliva c e l11otka. I' ll ( t.'S5a razi'io, a resistência foi difusa 11 0 ~cnt i do de que nfio se dcix"va V~ I'

de'/ido a sua própria obvicdadc. c foi veiculada como simulaçiin.l'l'IIH' ellcubrimento dnquilo que os illdio..,s tentnram salvar . .!/'

Como já se anotou, Bartolomé de Las Casas constmiu uma ilJlagelll extremamente negativa dos índios, embora certamente não fosse esla a sua intenção. Contudo, como Bruit chama a atenção. curiosamellte. foi o próprio frei que revelou uma das melhores fontes para se perceber a simulação dos índios, mostrando a existência de uma contradição na construção de suas imagens. Em sua obra, ao mesmo tempo em que os indios eram covardes. resistiam de alguma fonna; ao mesmo tempo cm que apegados à idolatria, eram ~uscetíveis !l aceitação da fé cristã: e. ao mesmo tempo em que eram obedientes, abandonavam o trabalho. Escreve o padre em sua Histvria de las {"dias:

Da'; mentiras que os indio~ c..I i7 ialll ao~ espanhóis e hoje- diz~l\l . onde 'Iinda nill) o s lkvas turi ll\1. O~ \· L';o..:lll\~ ~ c :-:crvidi'io hOI rivl!1 l' n Ll l"

t ir:lI1ia com que os ahHl11 l.! ntalll I.! 11lultralal1l. s:;,p as ca usas, l'lI\qul.! dc ou! ra maneira, senão mentindo e fingindo para contcntú-Ios c aplacar scu continuo c implacável furor, nào poderiam escapar-~c

de mil uutras llngústias e dorL'S e rnaus-tr:.1tosY

Havia também uma certa e.pcculação pelos índios dos gu>to, e desejos dos conquistadores, Muitos mentiam s"brC' a possível cx i stt~nc ia

de ouro cm regiões inóspitas. Foi assim que surgi u a 1 ~IIHUSíl lenda lh.: EI Oorado. Entim, por intennédio desta ação sub-reptícia dos índios. da sua simulaçào, foi possivel "sabotar" a novfI sociedade que os europeus queriam construir, Obviamente. a ação dos índios não foi o único f~ltor causal do que Bruit chama de a "mclação" drl nova snciedade . Todad:1. certamente é a menos percebida:

A <';llcicdadc hispano-indigcna estava cm perigo de nâo \' ingar ({Hnu

lima sociedade ordenada, governável. political1lclI".~ fUIH..Iadi\ IW

l'OIl <;L'1\~ n dn. maioria, cnfim .l'{llllp uma SOcil'lbdc crisl:\. lIllIa li'lça

~h BR1 lJI . lllTlnrHcrnan 0/, lif.p , f l) I · I ' !; "HP!'II I! 'l 'l/" lkm:1I1 ('I' , I' i' 1[,-

J3

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,1ot;;r' ('MO OS MORF.'RA DA Sfl.VA fllllO

estranha. OC lll ta. nào·cntendida.. trabalhava para desajustá-Ia. deturpá-Ia em seus objetivos, e essa força eram os próprios índios submetidos pelas armas, mas não conquistados nem peJa nova religião. nem pelo saber dus e spanhóis. que na realidade era wn não-saber, pois ignorava a CU!fllr:1 t" ao; I ;li7("'-; dr!, tradições e costulIles dos \'etlcidos."~

<. OIll0 ~t' \ er;í adiantL', ~'~~a açJo subvcrsivt.l uns íl1dios não f{)i c\ prl'SSallll;llfe allotada por 1. as C<.lsas como uma das causas da iflJi­rl cllcia da cOflsl itlliç;10 de uma "sociedade tts avessas", de lima socicdanc dl..'ll!rrada c torta em S U~I prúpria raíz .

() ti 'anl:i SC3I1U Uelllardino de Sahagún tentou alcI1nr parJ estc perigo, ao pregar a ncccssidaue dc não se destrui r os códices, os livros indíge-1Ii.!S, Th_'is. arguIlIcntava. cra necessário ter o entendimento d(:sta cultura P;Jr<1 CUJllb3tcr a ido latria. Panilharam da mesma opinião o jesuíta José de !\1.:osla e u dOlllinkano Oiego Ourán. Este último. por um momento, chegou 3 crer que' us costumes indígenas eram seme1hantes aos c ristfios l~ qUi.'. segundo apregoavam certas teses po!êl1licas. Sfio TOlllús de Aquino ila, ia lirmado contato COI11 aquelas civilizações, tendo ens ina­do u cristianismo aos índios, Para Tzvetan Todorov, este entendimento do padre dtlJlliniC.'Hlo devia-se à prese?ça do sincretismo cm sua pró­pria visão de mUlldo, pois ha via sido criado no Méxicl'l. BnJit, contudo, atribui tal fbto ú açào simuladora tios índios em face do cristian ismo. Aç,ln tão densa c impcllctrú\·cl que acabo u por levar os espanhó is à cOllciusàü de que, em rCillidnoc, eles não entendiam os índ ios. Não entendiam se us atns c, muiio menos, a lingua. que era composta de diversos dialetos , (Js índios, porém, aprenderam [I Iín[!ua dos cOllquis­t~ld {)rC"s. ObSl'f"\i! 1.:1" C<ls:!,,·

Os CIICOIllL'IHkiIOS ~u~ix ; l \'alll-se com freqüL'llda que COIll esse apren ­dizauo (lS im.lios .\t' fú::.iam hucharéi!i c não queriam trabalhar, e que quando () faziam, H'clamavam direitos e privilégios c uc;;:wa m as ki, p:\I<I illl"crni"ar:r \ ida dos cristãos. l"

Por uullU lado, vl'riJil:oll-sc a ex istência de um s incretislllo religioso, isto é, os índios incOlvor~lr;111l muitos dogmas cristi!os, lIIa~ com a difercnça de que o fa Lia/li ti partir de sua visão idolátrica de mundo. II

. . FI ,

t)1 1\"C " um t:s'()r~'o (OIlS<':lclltc úC' comparar os dogmas e aceitar o novo t'll ! IlIdo aqrrilll que c llliqlH:c ia t) <llIt igo"."ct Esse cslün:;o I.'stú c:xpresso

110 CIl It.: lldilllCllto dl' ('har!t·,: (jihSt~l1. cm Sell livro I r).\ a::f(>cl/s "l~j() el II !lel 'r i " ("/)((11 (1/ :

IH~t1JI.Jln· h )llk IILlIl (',. ' lI . p !Í>') - l~ O . lH~! I IJ , ! kl'!nrlkltl ;Hl r lI' I II . p 17)

!' I '" i

DA "INVAS,\,<J" ' nA AMÉRICA AOS SISTFM ·\S I'ENAIS l)f: IIOJF: () D!S{ ·UR"'() ~--t 7

( .,,) os indígenas não abandonaram sua visão politeísta, As normas de conduta cristã comunicadas pelo ensino, alimentadas pelor preceitos ou impostas por obrigação, não tornaram inteligíveis as abstrações cristãs sohre a virtude e o pecado. A comunidade dos santos fo i recebida pelos indígenas n:io como uma intcrmedi(tr in entre Deu~ e o homem, mas l·omo UIll pa nteão tlt' I.ki dad t's antropomórficas , O simholo du crtlcificnçãú foi m:eito, llW :-; ~,1I1 11)

uma preocupação exagerada nos detalhes de um ato de sJcrifh:io. O O('u s c ri st50 foi admitido, Ill:l S n,10 como Ullla deidade cxdusi\:1 c oniplltcnle. O céu C O inferno foram reconhecidos, mas accnru:I IH!()

sua .;; propriedades COllcret3s c COIll atrihutos pagiios ( .. )."

Com relação aos índios da América do Sul , em esrecial os cio Brasil, a recuperação de sua cultura tornou-se hem ma is ditlcil , pois praticamente todos flS povos indígenas aí localizados transmitiam os seus cOllbccirnentos através da tradição oral. Um dos raros gOlpos indígenas brasiieiros em que se utilizou a lgo além desta lradi,ão foram os Sateré-Mawé, de língua tupi, distribuídos em tri nta po voados no Baixo-Amazonas, onde se encontram até hoje, como reminiscência de urna cultura ancestral, três c.;;xemplares do Poratim, uma cla\·a em forma de remo na qual estilo gravados losangos, desenhos e figuras que representam s imbolicamente um conjunto de mi tos C' hi slórias sobre as origens da tribo. No Brasil, infelizmente, não SUl giraln cronistas indígenas no per iodo colonial , tornando a oralidade a ú"ica fonte da visão dos vencidos . Jimcnez de La Espi1da, ameri canista espanhol do final do século passado e que Coi dirctor do Arqni,·o Geral da s ill dias. cm Sevilha. observou que. para a inl'elicidade brasi­leira. os portugueses não tiveram UIll Las Casas que desse l)tltm versão do que QC'·Ofr ClI no Brasil :

Los portugueses han teu ido la doble fortuna de no tcner UI1 padre de L:1s Cí.lsas y de que los brasilenos hayan hechos suyos, sin discutirlo!' , los hechos de aquellos hombres que a lodn costa Ics dieron la opUlt'nlr! y ;lnL'hisima pát r ia.~2

No entanto. o fato de não se possuir fontes escritas para pt::S­quisar os índios brasile iros não de\'e ser um impedimento para que se resgate sua cu ltura, tnrel:1 para qtl:d não se poderú din:cion:lr ::sforços neste e nsaio ,

~I BRUIT. fh:'l't(~r Ikmall, op. ( ·rl. . r. ISó. ~:! FRI~lH I:, .1(1,,0 R ibam:Jr Bcs!'õa . . , radi\-";lt1 oral (' tlll'llloria indígC'/l;lS: a c:tII(':, do

tempo ln: , Jm!'-rica: de.W"o/1!'l"ItI p/I il/I ·; 'I/{"do_ -l" C(lklquin da t rERI . Hi .. de J:lll ... i" , i'll: l !c\\. Il)92, p. I~q .

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248 10,10 CAR LOS MOREIRA DA SILVA FILIIO

6. A CULTURA SINCRÉTlCA DA PERJFERIA: OS V ÁRJOS : "ROSTOS" LATINO-AMERICANOS '

Os astecas, cm que pese toda a sua índole violenta e dominadora, quando subjugavam uma outra cultura, antes de destruir seus livros, es tuda va m-nos (' o s im.:orpnravam, como se viu no mito de Qllctza!cóatL N50 fo i o que i1co llh:ceu em relação aos europeus com a tradição a~ tcca . que lhes havia sido oferecida como uma homenagem e. em troca . o povo núhuntl fo i c hac inado C humilhado culturalme nte .

L.: " las cultura s Iliio ti veram a vantagem da helenista ou rumana , que (I ni .. ti alli sm0 tra nu/ll l)1l po r dentro e. sem destruí-Ias. <1 $ u-ans for­llH.l U lia" cultura!\ dOI s cri standades bizantina, çopta. geo rgiana ou arll1êni a. russa ou la ti no-gcrmana desde o sécul o IV ti . C .. as culturas amerí ndi as 1'\1(:1 11\ tf lJlI Cadas r ela raiz , ~ l

o "scxto sol". pOlia"!,,, ignorou a existência dos outros cinco que o rreced e r<1l1l, c t1 0 1lXC cm "C U cenlro o capit31. Diz Marx:

O capitul é trabalho llIorto que só se vivifica,:\ maneira do vampiro. ao chupar trabalho vivo. e que vive tanto mais quanto mais trabalho vi\'o chupar. O d\!s l'obrimento das regiões aurlferas c argentíferas da !\tn ~ ri c a , o extermíllio. escravização c soterramenlo nas minas J a porul aç:io abo ri gl·llc. a conquista c o saque d;JS hulias Ocidentais, a trans formação tia África num couto rescrvadCl para a caça comercial dI..' pe lcs ncgras. carac tcrin1JIl os albores d:1 era (do sex to sol) da p lOdll ç i'i o ca pit :lli <; la 1

Apesar de todos os csfúrços europeus para que a cultura original do contine nte americano fosse e ncoherta ou negada, acabou-se gerando uma rica e s illcrética cultura popular. que funnou lia Am('rica LatinJ \úr ios rostus dir('rcllt cs,~ \ Veja-se O perfil de c ada um de les. Em JlI illlciro lugar. o~ índios. Emhora os europeus conlrolas'-icm o poder pol ít ico c os " pontos cha ve"" , O modo de vida da ma iol i:\ ÚJS pess();]s 1..' la illdígen a , CO III um lI S(l l'o l11tJlJitúrio da terra e uma vida comufla l prOlt ria. (1 quc. rOlllo se \·iu, aa conseguido graças à s imulação indígena, q uc ba rrou a lot;!! :l cultnraçà<.' . (") segundo golpe fatal. na \·crdadc. foi dad pdo Ii bcrali slll(l do sécu lo XIX, que, querendo impor uma fonna d\...' l' id:Hl:1I1ia ah"t ratn, indi \ idua li "ta e burguesa. finn oll a propriedade

P I "~"' II. , I" I1!iquc 14(J.' " l · 'l"·l,hlilllcnfo do oul r n ( a O n~l'lIl li (l milO da IH(llh.' lll1 d :Hh' l f tl ll lll('nll\ d\..' ! 1:!1I\..fu f1 . Trad . J"i ll ll' 0\ ( · b<:~I1. Pdrúpol i <:. : \ \0/ 1.·:-', II)(P. P 1·11,. l J!ISS I I . !: 11l 1qUI.' ( )I) ,:1 p IS:! 111 '<"';'; 11 l1!'i·p"· (h fI I' l;;tI I' 1

OA "INVASÃO" DA AMtRICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJF, O DlSClIRS(\... 249

privada no campo e se contrapôs à fonna de vida comunilária. Obvia· mente. tal fato limitou aos índios a possibilidade de viverem ii SlIa

maneira. gerando os problemas atuais das reservas indigenas, princi­palmente em pafses como O Brasil, cuja população indigena não era derivada de uma cultura urbana, Já no caso dos índios oriundos de sociedades organizadas em cidades, constata-se a presença de um fort e sincretismo cultura l, mas nào de absoluta aculturação.

O segundo rosto corresponde às vítimas do que Dussel chama de "segundo holocausto da Modernidade" : os negros. Nunca havia ocorri­do uma experiênc ia de escravização em número tão elevado e de maneira tão $istematicamentc organizada. Da mesma fonna que os índios. a resistência dos escravos também foi contínua. O maior registro provavelmen!e é o do Quilolllbo dos Palmarcs. momento tão importante na constituição histórica do Brasil. UIll exemplo vivo da resis tênc ia negra, durante mais de um século.

É intercssantc perceber que desde essa época. quando se ucfe"dou no Brasil um liberalismo que se prestasse fi defesa da estrutura escravista, o direito por aqui (bem como, de uma fonna gl~ r;JI , na América Latina) costumou ser um instrwnento cego ao sofrimento popular, pois procurava hannonizar a existência da violê nc ia irracional com a "Iiherdade" (para dentro obviamcnte),

O par. formalmente di ssonante, escravismo-liberalismo, foi . 11 0 \.: a<.; o brasileiro pelo menos, apenas um paradoxo verhal. O seu (.' ollsúrcio só se poria como contradição rcal se se atrihuísse ao segund o tl!rmo. liln..'l"Clli:wlO. um conteúdo pleno e COl1l2"reto. equi\:llcnle ;.\ ideologia burguesa do trabalho livre que se al"irmotl :10 hlll ~() li:, revolução industrial curopéin. ~ /\

Os hOlllcns públicos prollullciavalll-se " contra fi ingerência brilnllica no controle dos navios neg.reiros; mcdida que verbcrou como o a""I"" mais diret() qlie se I'oderiafazer ti COllstiwição, à dignidade naci(lnal. à /ronru (' ao.\' direitos j"didt!zwis dos cit!lldi'ios h,.a.\'i1ei,.o ..... , ~· Assilll, defendia.sc um liberalismo que fo sse atento. segundo se argu111cntant. às circ,mstàncias e peculiaridades nacionais. Os proprietários de terras reivindicavam fi sua "liberdade" de trocar. vender e comprar. mesmo que a " mercadoria" fosse os negros africanos, '"'1 was jj-eedolll lo destroyfl 'eedom: dialética do liberalh:mo no seu momento de cx pans:\o a qualquer custO." 5M

5 ~ 80SI. Al fredo. /) ja!t' rico da cnlani::CI((; tJ. 2 cd. SiioPauln: Cia. ti as I. c tl:l~. !(JtJ 2.

p. 195 . J r:: 51 nosl. Alrredo. O/-,. cit., p. 147 . D ~ " no"!. \ Ifred. , 0 " (·ir , r . ~(l9

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JO"" '. CARlOS MOREIRA DA SILVA Fil 11 0

o Icrcciro rosto desle "povo Wl0 de rostos mú ltiplos", como escreve f)\J~SC'1. é o mestiçu. ou os "' filh os da Malínche"; aqui no Brasil podcr­se- ia dizer : os "fi lhos de Iracema", Diferentemente dos índios, negros, asiáticos e europeus. os mestiços não têm urna personalidade cultural e racial definida. Na verdade . são os únicos que em 1992 fi zeram 500 ,11IOS, Nfio chegaram a ser oprim idos tão violentamente quanto os Ilt'grns e ílldios, mas também foram objeto do saber antropológico 1 ~lcist'l. ue cunho cxcluocntc e deprcciante, sendo vítimas da situação l'~ lrl1tural de depl'lIdêrlcia cu ltural. política c econômica. seja nacional 1'11 il lt cfllJcilllla l. I

U quarto rosto, que (oll1pll.'ta O bloco soci :J.1 oprimido lati no-americano pn:' - illdcrt?lldência, é o dos criaI/os ou crioulus, Filh0$ hrancos de CUfO­

I IL'US /las ífldias, [("p!escntam uma classe dominada, na Espanha, pelos Ilabs1>urgos e pelos 13urbõcs c, no Brasil, pelos reis de 1'00tugal. Os çrin ulos fiJralll os úni cos que {ivt.~ram uma "consciênc ia feli z" da Améri­I..'a, Os índios v iam-na como te rra de deuses ancestrais que agOrd estavam mortos: os africanos. como lima terra estranha; e oS mestiços, como terra l'l1l que cresceram , porém que cra palco de opressão e humilhações.

Esses 'l'Iatro n""lS completam o quadro de 11m "bloco social" da I\tnérica L:ltina colonial. um "sujeito histórico'", um "povo oprimido", I ai "bloco social"' tornou-se claro e delimitado mediante as lutas em prol das emanc ipações nacionais no século XIX. A dissolução do laço f.:om a rnetrópole rea lmente foi uma causa defendiúa por todas as classes e grupos sociais, Os índios. negros e mestiços. em geral, que co mpunham a parcela paupcl'Ízada do povo, viam lia independênci:Rt ' possib ilidade de melhores condições de vida e de connctização da jllstiça social: a elite oligárquica c burocrática, formada basicamente pejos crioulos, obvinlncnte possu ía interesses bem diversos, No entanto, fiJi e la que liderou c~te~ movimen tos, utili zando ·se do ideal liberal UlIl lO base doutrinária e in spinldora,

1\ partir da cOIl'iolidaçrio dos Estados Nacionais. forrnou·se um 110\'(1 "h lo(.;o social Jos ' oprillliúos" c surgiram no vos rostos que se j l l .... ':J IH1Sl'W IlJ aoS ~I\ltigos, () qllillfo rosto. pOltall to. é o dos C:'ll1lpOI1CSCS, Índios que ab~llduflaralll a terra, mestiços pobres, fll;Jl11clucos e mula­to~, A tê qua se a metade do século XX, a maioria da população lat ino­;nllL'ril' ~II)a esla\'a fi.'cHb no l'i llllpO, sendo exploradi.l e o primida pelas Idi~'; lIqui;l''; 1l1I:li ';, QllL', t-n!lll! 'l' ..,;t! 1\ .. ' , dnlllillílnlll1 ii p{ \ck ! pnl itko e

~ IIlÚl llico 1l ~,'''Sl' pCI il1dp, 0" l'pt:I;'lr ;fls, no Ci 1!l1t .. '\It' de Ilo-;sa Ic vol uçfio illduqri:d :Itras:tua c

<I, (lL'JlJl'ntc. :.urgi / iUll L'llllHl (I ~L'.\to Tl)sto, Pas,ar:lIl1 ii "!.: r (\prilllidus pela j 'l l)pl i;! cstrutllnl Lapi(,di~ul lh: pcnul'lltc cm qu::.' se illscrl' a (\mc rica I :ll il1:1. 1 ai dL.'pl~IH.i(-Jlt:ia lc!l:-rL' -sL.' ;', gcrêncin de UIll L.':Ipi t; J! dL'b il , que I' 111·_ t ; 'l l' \' JIIl!!jl;dln"Hl\' \:d"l :1(1 l' :!pit:TI '\:L'lll,:1! " 11:1..; ll h:t l l" !'olcs L'.

DA "IN V ASÃO" DA AMt:RICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJE: O DISCURSO .. , 25 I

atualmente, às multinacionais. O capital "periférico", portanto, deve compensar a transferência de vaJor ao capital ucentral .. , Tal "compensacão" , acaba saindo do bolso do trabalhador, mediante o emprego Qarato de sua força de trabalho, que se mantém soo uma contrnpreslação minima devido â, dentre outros fatores, existência de um "exército operário de reserva" que o fraco capital periférico nao pode absorver, Tal "'exército" compõe o setimo rosto: o dos "marginais" ou miseráveis, que, oferecendo o seu trabalho a preços subumanos, fo rçam a pcrmanêllcÍ;J de uma mão-de-obra explorada e oprimida.

Emergindo dessa viagem às raízes do se r latino-ameri cano! pode-se perceber duas coisas básicas. Primeiro. que este povo foi vítima de um processo de modemização que ocultou e oculta a violência praticada contra os seus pares, violência essa justificada por um di scurso antro­pológico racista e cuja história é preciso ser resgatada para que se tenha noção da existência de um outro " sujeito histórico" que não o europcll~ segundo. que existe uma cultura sincrética popular, produto exclusivo das tradições latino-americanas e de sua intcraçào com outras culturas, existe uma pat1icularidade e especificidade que não se reduz às rónllulas das ideologias eurocentristns. O projeto de Enrique Dussel, sintetizado na Filos{?fia da Lihertação, se propõe a rei vindicar o verdadeiro lugar da América Latina no contexto mundial:

A Filosofia da Libertação afirma a razão como faculdade capaz de estabelecer um diálogo, um discurso intersubjetivo com a raziio do Outro. corno razão altemativa. Em nosso tempo. como razão que !lega o momento irracional do 'Mito Sacrifical da MocJcrnidadc', para afirmar (subsumido num projeto libertador) o momento emancipador racional da ilustração e da modernidade como Transmodernidacle ,~q

7. OS GENOcíDIOS COLONIAIS E AS PRÁTICAS EXTER­MINADORAS DOS SISTEMAS PENAIS

Quandu se trata da conquista da América, cabe referir-se cOll ti l1l1a~ mente no genocidio dos povos americanos, tanto tisico quanto cultural. Com o intuito de aprofundar essa noçào, bem como de assinalar o papel que aí desempenharam os sistemas penais tatino-31nericanos. nec('ss{II'jo se faz realin llar algumas colocações dc Eugenio Za flhroni acerca do a~~llIlto,

Crsan: Lombroso e sua obra simbolizam muito bem h.lJO um IK'nsa­mentocic nti licista. corrc~roll(lent~ riO período neocolonialisf;l. (k l'!Illho

~o OLJSSF L. Enrique, /491: (l encohrimento do ('Iutro (a migem do miJO da j 1 nlOdC'plidadc), Cmlfc rênci:l" de Fr:mkfurt , Tr:td , Jnime A_ CI:t<;en, ['l'!lúr ,) l i~ : O \'!\/t'~ !!)U1,r, 17 ,~ -174

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252 10St:. CARI .OS MOREIRA DA SfLVA FltltO

racista-biologista, que visava justificar a delinqüência e o "primitivismo" dos habitantes das colónias mediante a auferição de woa inferioridade natural e implícita a tais sujeitos. Tal discurso estava na boca de toda a el ite oligárquica latino-americana do perlodo, contudo, sobreveio a sua proibição nos paises centrais em função do nazismo.

Como na Segunda Guerra Mundial Hitler praticou na própria Europa, aquil o que o apnrtheid criminológico justificava para as regiões marginais· especialmente latino-american3~ - , o ltIodelo lombrosiano fo i rápid(l c , "id aJos.;lIll1.::: n tc a rquivado ."o

Assim, o exercido ou poder periférico já não poderia se mcionalizar CUIIl os discursos centrais, como vinha sendo feito , Contudo, por falta dc discursos teóricos na perileria, O velho discurso criminológico lombrosiano continuou sendo defendido no ambiente acadêmico, o que gerou uma contradição com os órgãos que procuravam um saber alter­nativo "quele que houvera sido ceJlsurado pelo "centro". Tal contradição gerou uma confusão teórica, um "saber discursivamente contraditório e confuso", ao qual Zurraroni chama de "atitude".· I Observa ainda o penalista argentino que, muitas vezes, esta defasagem teórica procura scr explicada argumentando que se esia em um momento passageiro de subdesenvolvimento, a ser superado com o crescimento rumo ao para~igma central de desenvolvimento. A contradição teórica que eme~e da "atitude" constitui um dos grandes motivos para a desle­gi timação do sistema penal na América Latina.

A base teórica de nosso si stema penal refere-se a um modelo de c iência penal integrada, em que a ciénciajurídica está ligada à concepção geral do homem e da sociedade. Tal modelo é bem sintetizado no que Alcss:lndro Barntta chama de ideologia da "defesa so{'ial", contemporâ~ Ilca à revolução burguesa. O jurista italiano relaciona os princípios que informam tal corpo dc idéias: a) principio da legitimidade (o Estado, enquanto expressão da sociedade, encontra-se legitimado para reprimir a dcl inqüêneia ); bl principio do bem e do mal (o crime é o mal, a ,<>ciedade constituida é o bem); c) principio da culpabilidade (o delito é o resultado de uma postura interior com alto grau de reprovação, pois é contrário aos "bons" valores e nomlaS da sociedade); d) principio da finalidade ou da prc \'e nção (a pena serv e para prevenir o crime, e não só para retribuí-lo); 01 pri ncípio da igualdade ta lei penal se aplic~ igualmente a todos ); I) r1i ncipio do in teresse social c do delito natural ("o núcleo central dos d\.' l ito~ definido ", no, ("(',d igft" pe nai s das nações civil i7r1das representa

"I %1\ 1_ FÁ IH )NI, 1 ·. \!g~· II \t l R:ud . /,m / ' I/H '(/ da.~ penlls {Jerdido,l. : :1 pt:'rd ,l de I\!git imi · d .ll le d., Si .... l (' !l);l r e nal. I r'HI. V.mia 1{ (1 !1t :lIl l1 ('('d ro, ,, l' " '\li r I P P l"'; d :'! CIlIIl'ckã o ,

P i" ,k h tll'ill' I ~\'\ .111. I' )') ! )l 7~

DA "INVASÃO" DA AMERJCA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJ E, O DISCU RSO ... 253

ofensa de interesses fundamentais, de condições essenciais à existêncía de toda a sociedade ( ... ), apenas uma pequena parte dos delitos representa violação de determinados arranjos polfticos e econômicos, e é punida em função da consolidação destes - delitos artificiais")·'

O problema deste conceito de defesa social é que ele é aistóri co e não-contextualizado, e coloca o conceito de crime em um sentido ôntico. Na América Latina, a "esseneialidade" do conceito de crime vem jwltar-se " "essencial idade" da condição "inferior" dos negros, mulatos, mestiços e índios. A ideologia da defesa social. :lO cOlls idcrar a existência de valores ahsolutos, expressão hannônica de UIll todo social. contra os quais se contraporiam ac;; nçõcs criminais, a dclillq iif-ncia. ignora a existência de lima vasta diversidade cultural, fato que é bem mais intenso na América, marcada por Wlla cultura popular sincré- tica. O princípio da culpabilidade expressa bem esta redução realizada pc la ciência penal, pois quando considera detenninada atitude reprová vel, o faz em função da existência de valores e nonnas totais na socicdade. No Brasil, está bem clara a presença desse principio na refonna de 1984 do Código Penal. Francisco de Assis Toledo, presidente da Comissão que elaborou tal refonnulação, diz que, na reforma dos institutos do Código Penal, "percebe-se, sem muito esforço, a exclusão de aplicação da pena criminal a quem não tenha contribuído censuravelmenle com sua vontade e deliberação para a lesão de bcns jurfdicos penalmente tutelados ( .. .)", [Grifo nosso]63

Prosseguindo, Baratta relata, ponto por ponlo, a desestruturação de que foi objeto a ideologia da defesa social por parte da criminologia critica. Pela limitação do espaço, esse assunto não será tratado aqui, contudo, é mteressante observar a desarticulação feita com relação,3o principio da culpabilidade, mediante a teoria das "subculturas cri~li­nais", fato que também é observado por Roberto Dergal/i!' Tal teoria mostra que os comportamentos muitas vezes considerados crimino~os são, na verdade, expressão de peculiaridades econômicas e culturais de diferentes grupos sociais, e não fruto de uma inferioridade biológica 0U

de wn desvio em face de um conceito absoluto de crime. Assim, o direito penal esconde, na realidade, sob a capa de valores gerais preS$\1p0S-

6l BARATT A, Alessandro. Criminologia critica e crítica do direito penal: introdu­ção à soc iologia jurldico-penal . Trnd. Jua rcz Cirin(l dos Santo!' . Ri (l Ól!' Janc ir(l: Rcvan • 1997. p. 41-42.

61 TOLEDO. Francisco de Ass is. Princípios gera is do novo s istema penal b r;J si leirl), ln : O direi/o penal e () 11 ,'l'O Código Penal hrasileiro. Porto Ak'grc: F3t-ori~ : Assoc iação do Ministério Público dI) Rio Gr:mde do Su l; Esn 1b !' ll p CI iI'I' dl' Ministé ri o Púhlico do Rio Grande do Sul, 1 9~5, p. 13.

64 BER G ALLJ , Roberto. O bse rvaci oncs c riti c as a las rc fo rn lll s ren"le ~ trad it:iclI1a lcs. ln : {'oUli('" (",.imina/" ,."fi"./1111 df'l den'du. / ' ('11 1'/ n l '!!I 't,j· I l'mi .; . J"1 I I1 X' l' "'''! ~ ~fl i

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JOSÉ CAIU OS MOREIRA DA SILVA nLlIO

10<';. a ~c lcção de determinados valores. referentes a determinados bruPO,", 1\ dclicicncia da tcoria das subculturas criminais, assinala l3anHla. está no fato de que ela toma a má distribuição da riqueza e das oportunidades ,",uc iai s , ca racterizadora das diferenças valorativas, l~ (\Ill() um d ::do oh.iC'tivo, nJo inquirindo acerca das causas desta má di .... trihlliç;io. ( 'IH IiO .... 1.: \ t..'ni adiiJ nt c, esta ideia totCllizadora de sociedade 1111 pOSI:t pel o ll1odelo pun itiv o irá facilita r sobre maneira a ação \ L'rticl li zadora 00 "i .... tl'IIJa rl.:l1al. que será fatal para 3 integridade dos 1:1(;(1" COllllt ll it:l ri os c hor;7ol1tais na sociedade. c. CI11 úllima ins t;:in t.:ia. I:h ·i li ulIú o con t ro ll' th: Ilo ~sa região periféli ca.

1.í1f1:ltuni realiza ullla divisão entre três tipos de colonialismo uos Lllla;" SOIllUS \ itim:J <.;: o l'o lon iali::;mo merca nt il (século XVI). o IIcuCll lolli"l i,mo Oll co lollia lis l11 o industri a l (século XVIII) e o 1L:l"l1pcn lon ia li slllo. Esta ultima categoria corresponde a um contexto at ujl C futuro de lima revolução tecnocientífica. Todos esses três I}\O-,

IIlcntos constituiram. constituem e podem cons.tituir práticas genocidas. Nos doi~ primeiros casos, trata-se de uma ideologia genocida alimentada pelo discurso da Hinferioridade", seja teológica, ,('ja científica. O terceiro caso ameaça ser ainda mais apocalíptico.

O au mento dos avanços tecnológicos nos países centrais tende. alL'lI1 de provocar a redução da s classes operárias no "centro". a colocar (1, pa íse -; periféricos cm ulll a s ituação desesperadora, pois o que lhes 1lt..' l"Illitc pleitear por alg ul11 respe ito no intercâmbio internacional é, hasicamcntr. a mão-dc-<lbn.l harata e a abundância de a limentos e de tl1atérias-primas. Ambos os e lementos, mais o primeiro do que o se-1-!llIlun, tendem a ser substituídos pelos avanços tecnológicos. quadro qlH.: é aglldizado pela s dívidas ex temas, impedindo U ;lCú1l1ulo úe capi ­ta l pwuutivo. Tlldo isto gera recessão, diminuição de sal~rio c do percentua l o rç:'.II11ent:írio oestillrldo a obras sociais l' ao combate à miséria. A s princirai s vítimas dessa situação são a maioria menos l:t\"orec ion do povo latino-a meri cano, que tende a crescer cm número, I'laças an rec rudesc imcnto d ... ·lllográfico.

Não ha \'l'fIllo lIIudifit:;u;Jo uu levl'rsão ua atual tcndêllci3. (_ .) esta re· IIH\ ~ ro ra til' q u:tlquc l l.: ulllpctição intctll",c ional. t:Olll UI1\ ;, ropulação

j( 1\ C/ll l"(Hl .... i(lcr~l\ c 1 111 l'lI II: tk'tcrinl<'IIJa CIII ra7;io d e l'a rcill'ia~ alimelltares c sa nit;-,rias CkIIlClll:lll':-'. Cl'lIl euucação dcrir ic·lltc. com lIotóri ~t

111:11 ~jllõll j':I.; ;i(l III 11: 111; \ l"Illln 1110 .... de pllhrl.:/a :th ... olut,l. {·\l1ll II til a gralHk

1,." . 1111,;;-1, 1 da 1.:LI · ..... I..· II l lI"l ;·III;1 t ' t.:nl llllll1 si:-.h:tII:t pl·II;1 1 qut' law.; a dl l ll;i o

d i I l.'pl!:';·;:i l · lllnli ; IIlI V" ;11111! l· •• I,1 de I'r l· ... l t..: ~l'1)1 \.: nIHlvll .I\: :io'·<

/ :\ I I .\!{( l N!. I,ILl! t.'II'" I{:tu!. "'11 /'1/\1 <I ci(1.~ pC·fllI .' l't'nJi.!,/, :\ pt:rd ;, tlt' kj.:dtimi· d 1'/· ti" ~I .1\"IIL11'l·lwl I l õld \ ,·U I' ;I t~ \ 'llI:'l1Il I'n!rll .... ; t l' .\1";' I o pç" ,1.1 ( \llll"t'i~' :l!l

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DA "lNVA~'\O" DA AMÉRICA AOS SISTFMAS rFNI\IS DF. Ut)JF: O DI~('III{S{' .. 2~5

Essa situação daria ao sistema penal a incumbência de conter apro­ximadamente 800/0 da população da região, formada por uma kgião de miseráveis. Obviamente, essa visão também corresponde a um projeto genocida que. segundo ZaITaroni. devido à sua amplidão. poder;' ser bem mais nefasto que os outros doi s.

No caso de não desenvolvcrnlOs a capacidi.lde dI,! Qcelera<.'liu hi"rú,.;co. caidamos. inevitavelmenl e, neste projeto de repúblicas let."lu)·uli­

glin/uicas, que reprcsentariam o eqtli va lente t Cl'lwco!(1nia!i~I;, d ~ l ::-;

r l.'l.llíNicQs o!igfÍrqll ;c:as úo I1coco l o niali s l1lo.(~·

Zatlaroni considera peç a-chave para evitar a veri li ..... 3çào de sta tccno-apocaliptica-implacávcl realidade a neutralização do s istema penal como instrumento desse novo colonialismo. Dai se deprecnde a urgência de uma "resposta marginal no contexto da crise de legit imida­de do exercicio de poder de nossos sistemas penais".'.'

Na primeira fase colonialista, a mercantil, o sistema penal não chegou a ser um instrumento tão centra l de perpetuação do g.enocídio como o foi nos outros dois periodos subseqüentes_ Nessa fa se. os sistemas escravistas realizavam esse papel. No entanto. com o predo­mínio do trabalho livre-assalariado a partir da revolução industrial. que marca o inícjo do neocolonialismo , os sistemas penais. em especial o aparelho policial. passaram a ser o principal instrumento de cOl1 tro le e de manutenção do sistema instiluído, ou seja, de manutellção do genocídio que tal estrutura reprcsenta. isto sem falar nas própri as práticas de l~unho genocida empreendidas por esses sistemas. infut111:Jdos por um discurso antropológico racista que intensiti ca a sua atuação destlutiv3 . Tais características são contempbdas contempOfi.lIlCa11lCntc com toda a clareza: confrontos annados; fuzi lamcnto~ sem proct.!SSO

(muitas vezes inc\uidos em um confro nto simulado): grupos parapolieiais; torturas; uso abusivo de armamento; violência perpctrada contra os presos; indiferença a doenças contagiosas contraídas pel os presos, que morrem sem tratamento: a atuação da polícia urbana. que "atira primeiro e depois pe rgunta", no que. muitas vezes seguI.! as orientações dos próprios chcfc~ de segurança etc. Esse quadro piora muito mais em tempos de rcpress:io politic,, _ A violência cotil.Han:1 do sistema pcnal recai sobre os setores mais \·ulneráveis da população, sendo que. lia América latina, a ssulllc U11l aspcttn étllicll. "COIllP a contriIHli..,: .in do sj~tl' l1la pena l p;lra a l'\tiIH • .'i1o dll índin llU \\ lIítidp predomí nio de negros, Illu!a tps c llll' st iç(lS I".' ntre pn:..::ps l' llH'1 !o:- . "

b(o ZAFI-" A RONL Eugenio RmJI. OJl. ( ·/1. p. 122 . tol ZAr! '\RON I. FUl!('nin R:llJl . Or. d i . P 123 . ,,~ 1\11 \U"t\J I . l t'pt.·tlip lhúl ()," " i "' ~ ':;

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256 JO.t CARI.OS MOREIRA DA SILVA FILIIO

As agências não judiciais do sistema penal atuam mediante uma estrutura disciplinar, urna organização militarizada, fato que no Brasil tomou-se mais palpável com o processo de militarização das polícias neste século ." Assim, a atuação desses órgãos procura esquadrinhar lova a popuh.lç' iio c mante r sobre ela a sua presença onipo tente, um nlhar hierárq uico, tlue l1 um rrimeiro momento subme te qualquer ind i­\'iuualiuade à s ua a utoridade. Essa autoridade, ou poder, é I'ccnldescida por vár ios fatores cxtcnlOS. tais corno a não-ingerência dos órgãos j ud ic ia is em muitas questões - o que se faz por motivos politicas, por t llll ''<.,' (\rporati visrno de inérci a", s ituação em que, visando à manutenção de c~rto \'tatlls, é melhor "' nâo se meter" - , as campanhas de lei e ordem L" o ~arc l dos mei os de propaganda, que a todo o momento exaltam a at uação po li c ia l c ex ibem, como sina l de triunfo sobre a c riminalidade, urna pilha de <:adavc rcs. ·' Nossos sistemas penais reproduzem sua cI iell tela por um processo de scleção e condicionamento criminalizantc que se ori enta, por estereótipos proporcionados pe los meios de comuni­oção ue massa". 70 Convene-se o indi viduo em um "suspe ito profissio­na l" . Não é preciso dizer quais seriam as camcteMsticas dessas pessoas: hasicamente pobres, pretos, mestiços e mulatos. A carga estigmática é tão grande e poderosa que as pessoas que dela são objeto tendem a introj etar o rótulo que lhes é fixado, principalmente quando se trata de pessoas carentes, Seu contato com o sistema pena1 acaba gerando a colltinuação do mesmo em outros círculos, o estigma atinge todas as re lações sociais. Como se não bastasse a estigmatização e a violência, ex isle uma espécie de efeito regressivo, observa Zaffaroni , resultante do encarceramento nas prisões, ullla fonna de deterioração do indivíduo, que passa a não agir mai s como um adulto, em virtude das condições às q lmis t ~ 1Tl de se adaptar. Onvial11(:nlc C'ssa regressão ncaha telldo como fe ito ulHa maior cfici l: l1cia !lU t:lllldiciollurncnto C' na irHl'lljcçiiu do pnpel de " dd illqlicnle. Ta is e feitos ue dctcrioraçãq do indivíduo objeto do sis tema penal , assinala Za ffa roni, foram confundidos, pelo paradigma etio lógico. como sendo as "causas do delito" .

/\ lém do proc c!õô ~o de c rirn ina li 7.8ç,ão , exi ste um " processo de po licí7aç rlo·' . AlTlbos recaem sohrc as camadas mais carenl es da popu­lação. Cria-se um cstc rcútipo do policiul: "violênc ia j usti ceira. solução dos confl itos sem necess idade de il1tervenção judicial e exccutivamen­h: , I!laClti Slll o, scgurílllça, il1di fercll ç':1. frenle à mort e :llheia , coragem

fi. ,,,' ssc' rC'sp l'ito \ ('1 n< m( a,s I !! 110. N:ISl'Il Os mlli lare,l /lfI r od,·,., Sã·,! Paulo­Ac ull'rlli1.:a , 1')1).1. 7 1\FFARON L F u,!!cnio Ib lJ!, 1: 1II 1'1f 1/ '{l elas P('lI fI,~ perelid'l\ : <l perda de It:gi limi · II Id, ' th"j~t (' n l:1 1'\' 11:11 ! 1:1t ! \ ,ll li:1 R Oll u ll" l'rdH'~:ll' l\tI1 ir ! 0 r'\'..: d .1 ( n nc('i .... :ic ~ . , , "

DA "INVASÃO" nA AMt!RICA AOS SISTFMAS PENAI !\ DE HOJE: o n ISCl IR" o. .. 2:" 7

em limites suicidas ( ... ) ser vivo, esperto e corrupto"." A deterioração desse individuo toma-se óbvia, pois não se espera que alguém possa agir de forma racional e equilibrada com todas estas "virtudes'. Além disso, não hã a menor assistência psicológica e educativa para os poli­ciais depois ou antes de enfrentarem e causarem a morte: «presume-se que o indivíduo deve est:u psicologicamente preparado para tudn isto. porque o contrário seria impróprio do macho que o poli t' izado ueve ser"n Esse estereótipo é alimentado não só pelos meios de comunicação e pela sociedade em geral, mas também está presente nas próprias academias de polícia. A maioria delas não possui, em nenhum momento de seu curriculo, alguma menção a direitos humanos. incenti va -se a postura violenta e combativa dos futuro s policiais.

O sistema penal, por gerar continuamente o antagonismo c a contra­dição social, contribui dccisivamente para o enfrnquecimento e a dissolução dos laços comunitários, horizontais, afetivos e plurais. Os processos de deterioração examinados acima colocam como inimigos em potcnf: ial pessoas que pertencem às mesmas camadas sociais e econômicas.

Quanto maiores e mais graves forem nossos antagonismos inter­nos. maior será o condicionamento verticalizante transnacionalizado e menores sérão. portanto, os laci de poder capazes de orcrecer alguma résistência ao projeto tccnocolonialista. Uma sociedade verticali 7.ada constitui, obviamente, uma sociedade ide.ll para ser mantida sempre dependente, impedindo-se qualquer tClltati va de aceleracão histórica, enquanto uma sociedade que equi libre rela­ções de verticalidade (autoridade) com rclaç(ícs de horizontalidade (de simpatia ou comunitária) apresenta-se mais resistente 'à dOllli­IHH,:50 neo ~ tcenoclllonial. n

" c(llIIUllidndc l! Uf1\:1 rorma de resi stência alltkull,)(\i:lIi ~ la, pni s quem se :.!podem úe um plldcr \'l.'11icalí7:.!do dispik apenas lk t1Ill do~ centros de poder. Aliás, esse tipo de orga ni zação já não era bCIll-vinua desde o século XVI. Foi lembrado o fato de que, 110 discurso de G ines de Sepúlveda, por ocasião do debate de Valladolid, em 1550, o fil óso fo acusa u fonna etc vida comunitárin dos (nuios como UIll sina l dr se u " primitivismo" e de sua ·< inferioridade". Também constato u-se que esse tipo de organização~ que perdura no mundo hodierno entre os indígenas, revelou-se como uma forma de resistência à acultu ração dl~ que foram vitimas. Contemporancamente, mantém-se o plano comuni­tário e hor izontal ~m um ní vel de margina lização. O espaço públic: o é o

----j3 71 ZA FF ARONI. Eugenio R,út 01'. ri f,. p, J8.

' 1 Z AFFI\ RON I. Eugenio Raú l. O". cir" p 140 . -, í' " I

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258 JOst CARLOS MOREIRA DA SILVA FILIIO

A

lu gar da estatística; a~ rcssoa~ não se reconhecem como pessoa!;, mns sim como números e como auloridades. No âmbito dos novOS movi­menlos sociais. que passaram a ser caracterizados a partir da década de 70. do século passado. ocorre algo diferente e perigoso (para os contro­le, cClllrnis . é cl aro ): as pessoas c riam uma identid,1(le comum, em virtud e de sua s ituação de cxclusfio, e se reconhecem no espaço público C0ll10 pessoas. com problemas. qualidades e aspirações; tomam-se

\' ~ rdadcir(ls suje itos . com voz própria.74

H. ('ONCI.1 ISÃO

Deparando-se com todos os problemas enfrentados hodiemamentc pela América Latina, pode-se facilmente indagar até que ponto vive-se cm uma "sociedade às avessas", como assinala Las Cas..1.s; ou em tlm3 " sociedade melada'\ no dizer de Bruit; uma Hsociedade marginal

U

, na observação Zaffaroni. ou. ainda, como quer Oussel, em lima sociedade

na qual ocorre o "ocultamento do outro" . Para se entender melhor o que Bartolomé de Las Casas chama de

"soc iedade às avessas". necessário é tratar o pensamento político do frei dominicano. cujas idéias nesse campo ~uperaram as de seus rontemporâneos. a lém d e anteciparem muitas considerações libertárias da teoria política moderna . O bispo de Chiaras, bem C0l110

os demais pensadores de sua época, foi influenciado pela corrente filosófica que vai de Aristóteles a Santo Tomás de Aquino. Em um primeiro momento, a teoria aristotélica era malvlsta na E uropa, pois constituía numa ameaça à visão agostiniana de mundo, então domi­nante. Enquanto para A ristóteles a sociedade civil era uma criação humana direcionada ao próprio homem, para Santo Agostinho era

apenas uma transição para a vi da eterna. Obviamente. não roram as idé ias de Aristóteles acerca da escravidão

que inlluenciaram Las Casas (como se sabe, quem foi influenciado por es tac; idéias fo i (iincs de ScplJlveda). A parte do pensamento aristotélico que influenciou o padre dominicano foi aquela que dizia respeito à ~ lIhllli ssão de touas as coisas ao desenvolvimento da natureza, encami­II balldo-se para a perfeição <,"to lógic3, incluindo-se ai o próprio homem, ' 11!1'. <,l'lldq II!II :\lli rll :1I I'"li ti ,·p . 11'f"ia o q'U prnf!J"es<;' (I p: \ra :1 jll"tiça e ~

,~ ~:".: Il"' l l\'t l " \ cr \\ (H. I--. rd ! R .. ". 1I101Ii" Cnr!tl " . 1'lrI~· { If •. " II! <I ;",.(,!ic,, : fUfLd íl~ II H.:t1 1o" d~ 11111;1 IUH, l l"I !l IW; t li.' J II"I,.' 11<l S:It' I':wln: Alf:.J-() lnq! ;!, ll}lM, p . 10 /· 153; ....;( ' I I I A J I I N 1<)1{ . JI''''; I i l" .ll ,h' ,te. /'I.l ~ \\ iment l )" .. oe iai.; Clm" ~1-'II ,:ja de- Iltl \'\ \!>

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DA "INVASÃO" OA AMtRICA AOS SISTEMAS PENA IS DE flOJE: O DISCURSO. 259

felicidade dependente desse curso natural de todas as coisas. Para Santo Tomás, natural seria aquilo comwn a todos os homens, seria a CSSl:lll' Ül

da espécie humana. Nessa idéia Las Ca<;aS baseou o princípio da igua ldade entre todos os seres humanos, sem importar seu grau civilizatório. Além disso, partindo da clássica hierarqtJia das Icis proposta por Santo TOlllós de Aquino, o rrei entende que a lei natuml seria ditadfl pelo pr(lpriu

intelecto hwnano. seda a sua manircstação justa de racionalidade. Tal entendimento seroÍ usado para just ificar a legitimidade das sociedades politicas dos índios, criada a partir da própria vontade justa e reta razno dos mesmos. Para Francisco de Vitoria, no entanto, a sociedade seria uma cri:u;flo dn vontade divillO, () que p(.~ rt1titia t'Ollsidl'rnr :1 :-;\li,: ied:II!t,

indlgenu como pré-politica. po is não cl."hceia Ueus. O tomismo, no século XVI. fazia parte de wn escolasticislllo não

ortodoxo, surgido em virtude da emergência do luteranismo e do pensa­mento maquiavélico. considerados pela igreja ameaçadores à sua 1110ral. Assim, dizia-se em ,contraposição a Lutero. para quem todas as leis vinham diretamen!e de Deus, que uma coisa era a lei dos homens. e outra era a lei divina. Aquela só estaria vinculada a esta por intennédio da lei natural. e não diretamente, como queria Lutero; a partir dessa cons­tatação. para se chegar a tUna idéia de consenso necessário ent re 05

homens era apenas um passo. Tal conclusão foi acatada em parte por Molina. Suárez e Vitoria, componentes da Escola de Salamanca. mas lo i Bartolomé de Las Casas quem desenvolveu esse entendimento às últimas conseqüências, superando o pensamento de seus contemporâneos. afir­mando que o domínio espanhol sobre a América não era legitimo, pois não estava apoiado no conSf"IlSO dos índios. Enquanto Vitori fl e Suárez partiam da idéia tomist.. de que o povo, quando elege um soberano, aliena sua soberdOia, Las Casas, partindo de Bartolo de Sassofe rrato, um pensador italiano da baixa idade média. afirma que o povo apena , a delega. que continua sendo o detentor e o titular do poder.

Naturalmente, o poder de Castela sobre o «Novo Mundu" c!'ta\õl fundado na concessão papaL Para Las Cosas, isto significt\\·u 1I11-.! (l

poder c~piritual era mais valioso e maior que o temporal, e que. antes de esta r fundado no Papa, que era só um representante de DeliS, estava alicerçado no direito natural, em Deus e no povo. Ou seja, o poder politico da Espanha só poderia ser exercido sobre a Américà se esta antes se cncontras<.;c sob o domínio espiritual da Igreja, domíllil\ l'sse que deveria passar sob o consenso indígena. Afirma Las Casas cm St\;l

Treil1(// !H '( '!JOs icifJlles 111U.I· . illridh 'U ~. :

Todo~ os reis c senhores nawr.,is, cidades, comun idade:' l' pm l\S ~ , I ' tOtH' lil" í lldin s "ij p nbt i.l!:u lp'; :11C(") lIh cc ('r p <;, r ci ... dl' ( ·a.;I,:I:, l'11I H , '

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260 Jost CARLOS MOREIRA DA SILVA FfL.Ht)

universais e soberanos senhores e imperadores da forma dita, depois de ler recebido. por sua própria e livre vontade, nossa santa fé e o sacro batismo, e se, antes que o recebam, não o fazem e nem querem razê-Iu. não podem ser punidos por nenhum juiz ou justiça. 7S

A.lém disso, contrariílmcnte ao que pensavam muito!\ padres e uou trinadores. para o paure dominicano Q e vangelização, conforme . cxplessa em DeI tínico modo, deveria ser sutH, delicada, compreendida pelos destinal,'u-ios da mensagem, adorada por eles, deveria respeilar o direito natmal dos índios corno pessoas livres e soberanas.

!léctor Hern3n I3n.il defende a tese de que Las Casas, partindo da Icoria de lJartolo sobre a plurafidade de autoridades políticas soberanas, defendia uma relação federativa entre Castela e os reinos indigenas, pe la qual ao reino espanhol caberia (I poder centrdl. "las sem outono­mia para intervir na jurisdição dos governantes indígenas (estes só deviam pagar um tributu de forma indireta, isto é, ao seu príncipe, que depois prestaria contas à Castela). Tal relação federativa passaria a existir depois de um Tratado. Contudo. nesta idéia de federação perma­nece uma inconsistência com o futuro perspectivismo religioso de Las Casas, pois o dominio absoluto ainda seria Ja religião cristã, personifi­cada na figura do Papa . Mas sabe-se que para o dominicano cbegar à inovação do pcrspectivi smo tcve de passar por um longo e peno!=Oo processo de desilusões e lutas. I

Diante da pouca eficácia da praticidade de suas idéias, que resultou, enlre outras coisas, na criação de uma legislação de proteção aos índios, como as Leis de Bllrgos, de 1512, e as Leis Novas, de 1542, escreve o bispo de Chiapas cm sua obra Los /eso/'Os dei Peni:

Nenhum rei. senhor, povo ou pessoa privadn ou parlicular de todo aquele mundo das (ndi as, desde o primeiro dia de sua descoberta até o dia de hujc, 30 de agosto de 1562, reconheceu nem aceitou de maneira verdadeira. livre e jurIdica. a nussos inelitos reis da Espanha como senhores e superiores, nem aos delegados, caudilhos ou capitães enviados cm nome do rci , e a obediência que até hoje lhes têm prestado e agora prestam. é c !'cmpre foi involuntária e coagida .16

O poúer espanhol não era leg it imo. nào estava apoiadu no consenso dus pO\iOS ind íge nas. A obediêlH:ia roi impostâ pela rorÇa , Ilfio havia \ t'rdadciTíllllcntc direito.

" , -, BRU I r. Il éclur Ikman. [J(/f'(nlol/lc! de LLl"; Cosas e a .çimu/açc1o dos ~'eltcidos-.

l 'nsaio sobre a conquic;l<l lmp;i nica d.1 AI11i.!r ica. Camrinas: t Jr ,;çamp: São Paulo: Iluminuras. jQ95. p 102 I',!'t ' !! I l(-lI"l 11" 111111 f' I" 'r ti 1111

DA "INVASÃO" DA AMtRICA A OS SI5TEMA~ PENAIS DE IIOJF: O DISC'lJR<:;n . 261

A lei era essencial ; para Las Casas, deveria identificar-se com a justiça, como defendia Domingo de Soto. Os homens estavam submeli­dos à lei, mas s6 porque ela era produto da vontade coletiva. Discursa Las Casas no tratado De Regia Potestade:

Toda Autoridade püblicó1, rei ou governante , de qualquer reino {HI co ~ lIlunitlade polflica, por ~ob('rano que seja, nrio tem liocrt.!:u,k "L'1I1 poder para mandar nos cidauiíos arbitrariamente e ao capricho de sua vontade. senão de acordo com as leis da comunidade política. É assim que as leis devem ser promulga.das, pam promover o bem-estar de todos os cidadão~ c nunca em prejuízo do povo. Devem ajustar-se ao interesse público da comunidade, c não ao contrário, a cOlllunida­de, às leis. Portanto, ninguém tem poder para estabelecer coisa alguma que prejudiqUe" o povo. O rei ou governante não manda sobre os súdi~ tos na qualidade de homem, senão como ministro da lei. Assim. não é dominador, mas administrador do povo por meio das leis. Levam o título de reis, porque curnprem as leis em consciência , mandando o que é justo e prbibindo o que é injusto; e, assim, os cidadãos são livres porque nâÓ obedecem a um homem, senão à lei.17

Ressalte-se aqui que uma lei que não contemplasse o bem da comunidade não era consideruda como tal pelo padre dominicllno. No entanto. para Santo Tomás c Franci sco de Vitoria, o rei nfio c~tava obrigado a obedecer a lei.

Para Las Casas. o bem comum não era um conceito abstrato, ele o entendia como a necessidade de dividir as tarefas produtivas. incluindo • funcão de governar 3 comunidade. A idéia do bem comum como a finalidade de governo e de convívio social veio, no pensamento Jascasiano, de Remigio de Girolami, pensador do século XI V. Com relação às idéias políticas de Las Casas, di z Bruit :

Em Algunos principios, outro dos grandes tr<1tados. o domin icano discute o pacto politico entre governantes e governados. O I'm'O delega a soberania ao rei, para que este governe em função d{l hCIll comum. finalidade que autoriza o governante a ditar leis que po­dem limitar os direito~ individuais, mas nunca os direitos colcti\'os ( ... ). As preocupações de Las Casas com as liberdades públ icll:-: l'

ind ividuais, C<lm os 1i. IIHJ::unclllos jurídicos da ~oc iedad(' Ql1l' "l' pr·

gilniz<Jva. C01l1 (} desejo tk Vl'r n.1 Ámêrica IIllla Socil'dadc til' din.:ito I! just iça social, de respeito aos direitos hum:mos, Ç0I1fi!~ur:l :-: ua \'i~fio dos destinos do continente.'"

17 BR UIT, l1éclor Bernan. 01'. di .. p. 106~ I 07. ~~ mn 'lf . lliT!Or ll{'rn:m. O" ,il.p 10~ I (lI) .

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262 JOSE C'ARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO

Assim, para Bartolomé de Las Casas, uma verdadeira sociedad<! , constitula-se sobre esses princípios, em que a sobemnia e a dignidade do Indio, enlim. a sua própria conrução de sujeito, eram respeitadas. O frade, ao relatar a destruição das ln ruas, alertava para um perigo que se projetava no futuro: a constituição de uma "sociedade às avessas". No entanto. confonnc chama a atenção Bruit, ele apenas viu ou qui 5 ver um dos lados da moeda na construção dessa sociedade invertida: a ação dos espanhóis . Não levou em consideração a ação velada dos índios, a "meJação" da nova sociedade. Mas, apesar disso, ao vislumbrar a existência de urna sociedade que não pôde vingar por não estar fundada no consenso dos índios, o dominicano acabou colocando os ameríndios co mo causa central do fracas~o da nova sociedade, fracasso que ficou explíc ito não só na falta de diálogo e entendimento entre índios e europeus, mas também no mau governo e na corrupção que .tomou conta da colônia, caracteristica anotada por quase todos os cromstas.

Tais conceitos de "sociedade às avessas" e "sociedade melada" vêm desembocar tanto na idéia de "ocultamento do outro" , do "ser" latino-americano. de Dusse l, quanto na idéia de "marginal", em Zarraroni ." O penalista argentino enuncia quatro concepções do termo aludido que se complementam, formando urna ideol~gia .de ex~lus~o. "Marginal", primeiramente, refere-se à nossa localrzaçao perr~érr~a no poder planetário ; depois. di z respeito à relação de dependencta com o poder central; também se reporta à imensa m~io~ia?a pop~lação lat ino-americana, à margem do poder e vitima da vlolencla do sIStema penal; por fim. indica a configuração cultural de "marginalização", imcrsa em um profundo sincretismo e fabricada pelos processos de colonização. Um dos piores efeitos dessa configuração. observa Zarraroni, é a estigmatização de

qualquer pcnsamento contra a maré na região marginal como me io de se evi tar a contaminação e de se ganultir a aprovação dos controles de qualidade das agências centrais. Portanto. a dificil situação ge­rada por este pensar conlnJ a maré marginal produz. freqüentementc. uma vertigem capaz de leva r os autores de esforços desta natureza a se apegarem a posições completamente nnlagõnicas e negadora~ das próprias ha~cs úe seu pcn..,nmcnto mais produtivo.

NII

Para o autor de F.m busca das penas perdidas, a garantia de que o IH,,'Il<.;a lllcllto prndulivo nfin <;1.' perca IH1 vt!r1igcm é tl sua fUlldamcnt'H;ão

'" 7.;\r~ARüN I . EUl!c!l i\, Raú1. fl/lll/l~('fl da.~ pl'nm perdida,s: a perda d~ lcgit.i rn i­(!:Ide do sistl'!lI;! penal. Tr:,tI. V:\1!i~ t~Olll;l1H\ Pt.>dro'íJ c '\,mr I 0lh'~ d:1 (onl'e'r çilo . 1" ,,1 1. 1' 11'.'!!I' R\, ,,·)tl, 11)111 " 11, 1.111('

DA: lNV ASÃO" DA AMERlCA AOS SISTEMAS PENAIS DE BOJE, O DlSC'URSO... 263

na pessoa. na vida humana como valor ôntico. Nesse sentido. o próprio Zaffaroni observa o seu distanciamento do pensamento de Foucault, na medida em que configura posição central ao homem, e não o considera um mero produto do poder. despido de sua condição de suje ito pensante. Esse tipo de critica que se faz ao pensamento de Foucault, isto é, de que o poder, na sua concepção. seria uma espécie de "ser etéreo", despersonalizado, dá margem a muitas polémicas. que aqui não se dispõe de espaço para aprofundar. De qualquer fonna, cha­mando a atenção para a urgente necessidade de neutralização do sistema penal como executo r de práticas genocidas-coloniali stas, bem como propondo um novo pape l à crimillOlogia, qual seja, o de instrumentalização da decisão politica de salvar vidas humanas e de diminuir a violência política em nossos países, Za ffaroni fiTl t:a o pé no valor vida e no valor human idade.

Com as reflexões presentes neste texto, desejou-se chamar a atenção para a correlação entre: o genocídio tisico e cultural da colonização americana (em sentido afTlplo), tendo-nos detido mais no primeiro pedodo, em virtude do direcionamento que este imprimiu para os pedodos subseqüentes; o sàber antropológico de cunho racista que se implantou no espaço colonial, servindo de fundamento à disciplina da escravidão. e que permanece até hoje. informando a disciplina dos sistemas penais latino-americanos; e. por fim. a prática violellta (' genocida do modelo penal latino-americano.

Enfim, como resultado dessas correlações, percebe-se que, enquanto na América Latina persiste a desconsideração pela imensa maioria da população miserável e oprimida, continuar-se-á sob a vigência de uma sociedade às avessas, em que o "outro" não tem espaço na "comunidn­de de comunicação ideal", cm que ri alteridade latino-amei icana é encoberta por uma cultura eurocentrista, nossa herança indígena é ignorada, espezinhada por uma conliguração cultural de margina­lização. É importante ter consciência de todos esses processos . pois só assim sr poderá atingir uma Utransmodemidade" I um "sétimo sol" em que não mais brilhe o vil metal, mas sim a vida humana. o amor pelo próximo e pelo di"""le.

9. RF.FERItNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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