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REVISÃO/REVIEWS (1) Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador René Mendes*, Elizabeth Costa Dias** MENDES, R. & DIAS, E.C. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Rev Saúde públ., S.Paulo, 25: 341-9, 1991. Ensaio de revisão sobre a evolução dos conceitos e práticas da medicina do trabalho à saúde do trabalhador, passando pela saúde ocupacional. Busca-se responder às seguintes questões: quais as características básicas da medicina do trabalho (na sua origem e na sua evolução); como e por que evoluiu a medicina do trabalho para a saúde ocupacional; por que o modelo da saúde ocupacional se mostrou insuficiente; em que contexto surge a saúde do trabalhador; quais as principais características da saúde do trabalhador. Descritores: Saúde ocupacional. Medicina ocupacional, história. * Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP Campinas, SP; Departamento de Medicina Preventi- va e Social da Faculdade de Medicina da Universi- dade Federal de Minas Gerais (UFMG) ** Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Belo Horizonte, MG - Bra- sil. Separatas/Reprints: R.Mendes - Av. Alfredo Belena, 190 - 10 o andar - 30130 - Belo Horizonte, MG - Brasil. Publicação finaciada pela FAPESP. Processo Medicina 90/4602-1 (1) Série comemorativa do 25 o aniversário da Revista de Saúde Pública Introdução O presente artigo constitui um ensaio de revisão sobre a evolução dos conceitos e práticas da medici- na do trabalho à saúde do trabalhador, passando pela saúde ocupacional. O caráter de ensaio decorre da natureza preliminar deste exercício, pois que tal ca- minhada encontra-se em processo, e seu estudo está limitado pela falta do distanciamento histórico e de metodologias mais adequadas à sua abordagem. Como artigo de revisão, tem sua base principal em documentos disponíveis, porém não se limita à literatura "cientifica", incipiente em estudos e traba- lhos que abordem o tema proposto. Incorpora as discussões recentes deste processo que vêm se dan- do, no âmbito da academia e no conjunto da socie- dade. O presente trabalha busca responder a algumas questões básicas, tais como: - Quais as principais características da medicina do trabalho (na sua origem e na sua evolução)? - Como e por que evoluiu a medicina do trabalho para a saúde ocupacional? - Por que o modelo da saúde ocupacional se mos- trou insuficiente? - Em que contexto surge a saúde do trabalhador? - Quais as principais características da saúde do trabalhador? Muitas outras perguntas não menos importantes, tanto de natureza epistemológica quanto prospectiva, poderiam ser formuladas. Contudo, no presente tra- balho, a análise se restringirá a estas. Principais características da medicina do trabalho A medicina do trabalho, enquanto especialidade médica, surge na Inglaterra, na primeira metade do século XIX, com a Revolução Industrial 56 . Naquele momento, o consumo da força de traba- lho, resultante da submissão dos trabalhadores a um processo acelerado e desumano de produção, exigiu uma intervenção, sob pena de tornar inviável a so- brevivência e reprodução do próprio processo. Quando Robert Dernham, proprietáriode uma fá- brica têxtil, preocupado com o fato de que seus ope- rários não dispunham de nenhum cuidado médico a não ser aquele propiciado por instituições filantrópi- cas, procurou o Dr. Robert Baker, seu médico, pe- dindo que indicasse qual a maneira pela qual ele, como empresário, poderia resolver tal situação, Baker respondeu-lhe: "Coloque no interior da sua fábrica o seu próprio médico, que servirá de intermediário entre você, os seus trabalhadores e o público. Deixe-o visitar a fábri- ca, sala por sala, sempre que existam pessoas traba- lhando, de maneira que ele possa verificar o efeito do trabalho sobre as pessoas. E se ele verificar que qual- quer dos trabalhadores está sofrendo a influência de causas que possam ser prevenidas, a ele competirá fazer tal prevenção. Dessa forma você poderá dizer: meu médico é a minha defesa, pois a ele dei toda a minha autoridade no que diz respeito à proteção da saúde e das condições físicas dos meus operários; se algum deles vier a sofrer qualquer alteração da saúde, o mé- dico unicamente é que deve ser responsabilizado".

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REVISÃO/REVIEWS(1)

Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador

René Mendes*, Elizabeth Costa Dias**

MENDES, R. & DIAS, E.C. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Rev Saúde públ., S.Paulo, 25:341-9, 1991. Ensaio de revisão sobre a evolução dos conceitos e práticas da medicina do trabalho àsaúde do trabalhador, passando pela saúde ocupacional. Busca-se responder às seguintes questões: quaisas características básicas da medicina do trabalho (na sua origem e na sua evolução); como e por queevoluiu a medicina do trabalho para a saúde ocupacional; por que o modelo da saúde ocupacional semostrou insuficiente; em que contexto surge a saúde do trabalhador; quais as principais características dasaúde do trabalhador.

Descritores: Saúde ocupacional. Medicina ocupacional, história.

* Departamento de Medicina Preventiva e Social daFaculdade de Ciências Médicas da UNICAMPCampinas, SP; Departamento de Medicina Preventi-va e Social da Faculdade de Medicina da Universi-dade Federal de Minas Gerais (UFMG)

** Departamento de Medicina Preventiva e Social daFaculdade de Medicina da Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG) - Belo Horizonte, MG - Bra-sil.

Separatas/Reprints: R.Mendes - Av. Alfredo Belena, 190- 10o andar - 30130 - Belo Horizonte, MG - Brasil.

Publicação finaciada pela FAPESP. Processo Medicina90/4602-1

(1) Série comemorativa do 25o aniversário da Revista de Saúde Pública

Introdução

O presente artigo constitui um ensaio de revisãosobre a evolução dos conceitos e práticas da medici-na do trabalho à saúde do trabalhador, passando pelasaúde ocupacional. O caráter de ensaio decorre danatureza preliminar deste exercício, pois que tal ca-minhada encontra-se em processo, e seu estudo estálimitado pela falta do distanciamento histórico e demetodologias mais adequadas à sua abordagem.

Como artigo de revisão, tem sua base principalem documentos disponíveis, porém não se limita àliteratura "cientifica", incipiente em estudos e traba-lhos que abordem o tema proposto. Incorpora asdiscussões recentes deste processo que vêm se dan-do, no âmbito da academia e no conjunto da socie-dade.

O presente trabalha busca responder a algumasquestões básicas, tais como:

- Quais as principais características da medicinado trabalho (na sua origem e na sua evolução)?

- Como e por que evoluiu a medicina do trabalhopara a saúde ocupacional?

- Por que o modelo da saúde ocupacional se mos-trou insuficiente?

- Em que contexto surge a saúde do trabalhador?

- Quais as principais características da saúde dotrabalhador?

Muitas outras perguntas não menos importantes,tanto de natureza epistemológica quanto prospectiva,poderiam ser formuladas. Contudo, no presente tra-balho, a análise se restringirá a estas.

Principais características da medicina dotrabalho

A medicina do trabalho, enquanto especialidademédica, surge na Inglaterra, na primeira metade doséculo XIX, com a Revolução Industrial56.

Naquele momento, o consumo da força de traba-lho, resultante da submissão dos trabalhadores a umprocesso acelerado e desumano de produção, exigiuuma intervenção, sob pena de tornar inviável a so-brevivência e reprodução do próprio processo.

Quando Robert Dernham, proprietário de uma fá-brica têxtil, preocupado com o fato de que seus ope-rários não dispunham de nenhum cuidado médico anão ser aquele propiciado por instituições filantrópi-cas, procurou o Dr. Robert Baker, seu médico, pe-dindo que indicasse qual a maneira pela qual ele,como empresário, poderia resolver tal situação,Baker respondeu-lhe:

"Coloque no interior da sua fábrica o seu própriomédico, que servirá de intermediário entre você, osseus trabalhadores e o público. Deixe-o visitar a fábri-ca, sala por sala, sempre que existam pessoas traba-lhando, de maneira que ele possa verificar o efeito dotrabalho sobre as pessoas. E se ele verificar que qual-quer dos trabalhadores está sofrendo a influência decausas que possam ser prevenidas, a ele competirá fazertal prevenção. Dessa forma você poderá dizer: meumédico é a minha defesa, pois a ele dei toda a minhaautoridade no que diz respeito à proteção da saúde edas condições físicas dos meus operários; se algumdeles vier a sofrer qualquer alteração da saúde, o mé-dico unicamente é que deve ser responsabilizado".

A resposta do empregador foi a de contratar Bakerpara trabalhar na sua fábrica, surgindo assim, em1830, o primeiro serviço de medicina do trabalho40.

Na verdade, despontam na resposta do fundadordo primeiro serviço médico de empresa, os elemen-tos básicos da expectativa do capital quanto às fina-lidades de tais serviços:

- deveriam ser serviços dirigidos por pessoas deinteira confiança do empresário e que se dispuses-sem a defendê-lo;

- deveriam ser serviços centrados na figura domédico;

- a prevenção dos danos à saúde resultantes dosriscos do trabalho deveria ser tarefa eminentementemédica;

- a responsabilidade pela ocorrência dos proble-mas de saúde ficava transferida ao médico.

A implantação de serviços baseados neste mode-lo rapidamente expandiu-se por outros países, para-lelamente ao processo de industrialização e, poste-riormente, aos países periféricos, com a transna-cionalização da economia. A inexistência ou fragili-dade dos sistemas de assistência à saúde, quer comoexpressão do seguro social, quer diretamente provi-dos pelo Estado, via serviços de saúde pública, fezcom que os serviços médicos de empresa passassema exercer um papel vicariante, consolidando, aomesmo tempo, sua vocação enquanto instrumentode criar e manter a dependência do trabalhador (efreqüentemente também de seus familiares), ao ladodo exercício direto do controle da força de trabalho.

A preocupação por prover serviços médicos aostrabalhadores começa a se refletir no cenário inter-nacional também na agenda da Organização Inter-nacional do Trabalho (OIT), criada em 1919. Assim,em 1953, através da Recomendação 97 sobre a"Proteção da Saúde dos Trabalhadores", a Confe-rência Internacional do Trabalho instava aos Esta-dos Membros da OIT que fomentassem a formaçãode médicos do trabalho qualificados e o estudo daorganização de "Serviços de Medicina do Traba-lho". Em 1954, a OIT convocou um grupo de espe-cialistas para estudar as diretrizes gerais da organi-zação de "Serviços Médicos do Trabalho". Dois anosmais tarde, o Conselho de Administração da OIT,ao inscrever o tema na ordem-do-dia da ConferênciaInternacional do Trabalho de 1958, substituiu a de-nominação "Serviços Médicos do Trabalho" por"Serviços de Medicina do Trabalho".

Com efeito, em 1959, a experiência dos paísesindustrializados transformou-se na Recomendação11245, sobre "Serviços de Medicina do Trabalho",aprovada pela Conferência Internacional do Traba-lho. Este primeiro instrumento normativo de âmbitointernacional passou a servir como referencial eparadigma para o estabelecimento de diplomas le-gais nacionais (onde aliás, baseia-se a norma brasi-

leira). Aborda aspectos que incluem a sua definição,os métodos de aplicação da Recomendação, a orga-nização dos Serviços, suas funções, pessoal e insta-lações, e meios de ação45.

Segundo a Recomendação 11245, "a expressão'serviço de medicina do trabalho' designa um servi-ço organizado nos locais de trabalho ou em suasimediações, destinado a:

- assegurar a proteção dos trabalhadores contratodo o risco que prejudique a sua saúde e que possaresultar de seu trabalho ou das condições em queeste se efetue;

- contribuir à adaptação física e mental dos traba-lhadores, em particular pela adequação do trabalhoe pela sua colocação em lugares de trabalho corres-pondentes às suas aptidões;

- contribuir ao estabelecimento e manutenção donível mais elevado possível do bem-estar físico emental dos trabalhadores"45.

Desta conceituação podem ser extraídas mais al-gumas características da medicina do trabalho (alémdas anteriormente identificadas, a propósito de suaorigem), assim como alguns questionamentos quetêm a ver com suas limitações, a saber:

- A medicina do trabalho constitui fundamental-mente uma atividade médica, e o "locus" de suaprática dá-se tipicamente nos locais de trabalho.

- Faz parte de sua razão de ser a tarefa de cuidarda "adaptação física e mental dos trabalhadores",supostamente contribuindo na colocação destes emlugares ou tarefas correspondentes às aptidões. A"adequação do trabalho ao trabalhador", limitada àintervenção médica, restringe-se à seleção de candi-datos a emprego e à tentativa de adaptar os trabalha-dores às suas condições de trabalho, através de ati-vidades educativas.

- Atribui-se à medicina do trabalho a tarefa de"contribuir ao estabelecimento e manutenção donivel mais elevado possível do bem-estar físico emental dos trabalhadores", conferindo-lhe um cará-ter de onipotência, próprio da concepção positivistada prática médica.

Esta visão de onipotência da medicina ficaexemplificada no discurso de Selby57, em 1939,quando ao tratar da finalidade e da organização dosserviços médicos de empresa, afirmava:

"It is the plant physician's privilege and duty tocooperate (...) to conserve human values..."57.

ou nas palavras de Townsend59, em 1943:

"[Occupational Medicine] is concerned with everyphase of the health of the man behind the machine,wheter it is the industrial dust in the air he breathesor the food his wife has packed in his dinner pail. Inshort, it is the problem of keeping the worker on the

job, and in good health, so that he can work at thetop efficiency."

Aliás, tanto a expectativa de promover a "adapta-ção" do trabalhador ao trabalho, quanto a da "manu-tenção de sua saúde", refletem a influência do pen-samento mecanicista na medicina científica e na fi-siologia. No campo das ciências da administração, omecanicismo vai sustentar o desenvolvimento da"Administração Científica do Trabalho", onde osprincípios de Taylor, ampliados por Ford, encon-tram na medicina do trabalho uma aliada para aperseguição do seu "telos" último: a produtividade17.

Não é ao acaso que a Henry Ford tenha sidoatribuída a declaração de que "o corpo médico é aseção de minha fábrica que me dá mais lucro" (cita-da por Oliveira e Teixeira44).

A explicação é dada por Oliveira e Teixeira44 comas seguintes palavras:

"Em primeiro lugar, a seleção de pessoal, possi-bilitando a escolha de uma mão-de-obra provavel-mente menos geradora de problemas futuros comoo absentismo e suas conseqüências (interrupção daprodução, gastos com obrigações sociais, etc.). Emsegundo lugar, o controle deste absentismo na forçade trabalho já empregada, analisando os casos dedoenças, faltas, licenças, obviamente com mais cui-dado e maior controle por parte da empresa do quequando esta função é desempenhada por serviçosmédicos externos a ela, por exemplo, da PrevidênciaSocial. Outro aspecto é a possibilidade de obter umretorno mais rápido da força de trabalho à produção,na medida em que um serviço próprio tem a possi-bilidade de um funcionamento mais eficaz nessesentido, do que habitualmente 'morosas' e 'defici-entes' redes previdenciárias e estatais, ou mesmo aprática liberal sem articulação com a empresa."

Como e por que evoluiu a medicina dotrabalho para a saúde ocupacional?

O preço pago pelos trabalhadores em permanecernas indústrias durante os anos da II Guerra Mundial,em condições extremamente adversas e em intensi-dade de trabalho extenuante, foi - em algumas cate-gorias - tão pesado e doloroso quanto o da própriaguerra. Sobretudo porque, terminado o conflito béli-co, o gigantesco esforço industrial do pós-guerraestava recém iniciando.

Num contexto econômico e político como o daguerra e o do pós-guerra, o custo provocado pelaperda de vidas - abruptamente por acidentes do tra-balho, ou mais insidiosamente por doenças do tra-balho - começou a ser também sentido tanto pelosempregadores (ávidos de mão-de-obra produtiva),quanto pelas companhias de seguro, às voltas com opagamento de pesadas indenizações por incapacida-de provocada pelo trabalho.

A tecnologia industrial evoluira de forma acele-rada, traduzida pelo desenvolvimento de novos pro-cessos industriais, novos equipamentos, e pela sín-tese de novos produtos químicos, simultaneamenteao rearranjo de uma nova divisão internacional dotrabalho.

Entre muitos outros desdobramentos deste pro-cesso, desvela-se a relativa impotência da medicinado trabalho para intervir sobre os problemas de saú-de causados pelos processos de produção. Crescema insatisfação e o questionamento dos trabalhadores- ainda que apenas 'objeto' das ações - e dos empre-gadores, onerados pelos custos diretos e indiretosdos agravos à saúde de seus empregados.

A resposta, racional, "científica" e aparentemen-te inquestionável traduz-se na ampliação da atuaçãomédica direcionada ao trabalhador, pela intervençãosobre o ambiente, com o instrumental oferecido poroutras disciplinas e outras profissões.

A "Saúde Ocupacional" surge, sobretudo, dentrodas grandes empresas, com o traço da multi einterdisciplinaridade, com a organização de equipesprogressivamente multi-profissionais, e a ênfase nahigiene "industrial", refletindo a origem históricados serviços médicos e o lugar de destaque da in-dústria nos países "industrializados"..

Nada mais oportuno que citar, textualmente, estacaracterística inovadora da saúde ocupacional, naspalavras de Hussey26 quando, em 1947, discutia umartigo sobre o lugar da engenharia na saúdeocupacional:

"This whole subject of Occupational Health isanalogous to a three-legged stool, one leg represent-ing medical science, one representing engineeringand chemical science and one representing socialsciences...Up to the present we have been trying tobalance ourselves on two legs and in some instanceson one leg. It is a very uncomfortable position andone that cannot get us very far and certainly willlead, as it has, to fatigue."

A racionalidade "científica" da atuaçãomultiprofissional e a estratégia de intervir nos locaisde trabalho, com a finalidade de controlar os riscosambientais, refletem a influência das escolas de saú-de pública, onde as questões de saúde e trabalho jávinham sendo estudadas há algum tempo. Na meta-de deste século intensificam-se o ensino e a pesqui-sa dos problemas de saúde ocupacional nas escolasde saúde pública - principalmente nos Estados Uni-dos (Harvard, Johns Hopkins, Michigan, ePittsburgh) - com forte matiz ambiental.

Assim, de um lado a saúde ocupacional passa aser considerada como um ramo da saúde ambiental(como, aliás aconteceu também na Faculdade deSaúde Pública da Universidade de São Paulo); de

outro, desenvolvem-se fortes unidades de higiene"'industrial", através de "grants" e contratos de ser-viços com grandes empresas. No estabelecimentoda higiene ocupacional nestes centros acadêmicos eem instituições governamentais de projeção, os no-mes de Theodore Hatch, Phillip Drinker, HerbertStokinger e John Bloomfield, entre outros, passam aconstituir referência obrigatória3,56.

Contudo, o desenvolvimento da saúde ambiental/saúde ocupacional nas escolas de saúde pública dosEstados Unidos, centrado na higiene ocupacional,deu-se, não de forma complementar, mas acompa-nhado de uma relativa desqualificação do enfoquemédico e epidemiológico da relação trabalho-saúde.

Vale lembrar que havia sido Alice Hamilton -médica pioneira nos estudos das doenças profissio-nais - quem dera, de 1919 a 1935, projeção à Uni-versidade Harvard, ao enfocar os problemas de saú-de do trabalhador sob o ângulo médico-epidemiológico. Assim fez Anna Baetjer, que pormais de 60 anos dedicou-se aos estudos da patolo-gia do trabalho na Escola de Saúde Pública da Uni-versidade Johns Hopkins. E assim foi com muitosoutros centros3,24,25,56.

No Brasil, a adoção e o desenvolvimento da saú-de ocupacional deram-se tardiamente, estendendo-se em várias direções. Reproduzem, aliás, o processoocorrido nos países do Primeiro Mundo.

Na vertente acadêmica, destaca-se a Faculdade deSaúde Pública da Universidade de São Paulo, quedentro do Departamento de Saúde Ambiental, criauma "área de Saúde Ocupacional", e estende de for-ma especial sua influência como centro irradiadordo conhecimento, via cursos de especialização e,principalmente, via pós-graduação (mestrado e dou-torado). Com efeito, este modelo foi reproduzidoem outras instituições de ensino e pesquisa, em es-pecial em nível de alguns departamentos de medici-na preventiva e social de escolas médicas.

Nas instituições, a marca mais característica ex-pressa-se na criação da Fundação Jorge DupratFigueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho(FUNDACENTRO), versão nacional dos modelosde "Institutos" de Saúde Ocupacional desenvolvi-dos no exterior, a partir da década de 50, entre eles,os de Helsinque, Estocolmo, Praga, Budapeste,Zagreb, Madrid, o NIOSH em Cincinnati, Lima ede Santiago do Chile.

Na legislação, expressou-se na regulamentação doCapítulo V da Consolidação das Leis do Trabalho(CLT), reformada na década de 70, principalmentenas normas relativas à obrigatoriedade de equipestécnicas multidisciplinares nos locais de trabalho(atual Norma Regulamentadora 4 da Portaria 3214/78); na avaliação quantitativa de riscos ambientais eadoção de "limites de tolerância" (NormasRegulamentadoras 7 e 15), entre outras. Apesar das

mudanças estabelecidas na legislação trabalhista,foram mantidas na legislação previdenciária/acidentária as características básicas de uma práticamedicalizada, de cunho individual, e voltada exclu-sivamente para os trabalhadores engajados no setorformal de trabalho.

Caberia, ao encerrar esta parte, saber porque omodelo da saúde ocupacional - desenvolvido paraatender a uma necessidade da produção - não conse-guiu atingir os objetivos propostos. Dentre os fato-res que poderiam ser listados para explicar sua insu-ficiência, estão:

- o modelo mantém o referencial da medicina dotrabalho firmado no mecanicismo;

- não concretiza o apelo à interdisciplinaridade:as atividades apenas se justapõem de maneira desar-ticulada e são dificultadas pelas lutas corporativas;

- a capacitação de recursos humanos, a produçãode conhecimento e de tecnologia de intervenção nãoacompanham o ritmo da transformação dos proces-sos de trabalho;

- o modelo, apesar de enfocar a questão no cole-tivo de trabalhadores, continua a abordá-los como"objeto" das ações de saúde;

- a manutenção da saúde ocupacional no âmbitodo trabalho, em detrimento do setor saúde.

A insuficiência da saúde ocupacional e osurgimento da saúde do trabalhador.

A insuficiência do modelo da saúde ocupacionalnão constitui fenômeno pontual e isolado. Antes, foie continua sendo um processo que, embora guardeuma certa especificidade do campo das relações en-tre trabalho e saúde, tem sua origem e desenvolvi-mento determinados por cenários políticos e sociaismais amplos e complexos.

Além disto, ainda que este processo tenha traçoscomuns que lhe conferem uma certa universalidade,ele ocorre em ritmo e natureza próprios, refletindo adiversidade dos mundos políticos e sociais, e as dis-tintas maneiras de os setores trabalho e saúde seorganizarem.

Em que cenário a insuficiência deste modelo seevidencia?

Um movimento social renovado, revigorado eredirecionado surge nos países industrializados domundo ocidental - notadamente Alemanha, França,Inglaterra, Estados Unidos e Itália - mas que se es-praia mundo afora. São os anos da segunda metadeda década de 60, (maio de 1968 tipifica aexteriorização deste fenômeno) marcados peloquestionamento do sentido da vida, o valor da liber-dade, o significado do trabalho na vida, o uso docorpo, e a denúncia do obsoletismo de valores jásem significado para a nova geração. Estesquestionamentos abalaram a confiança no Estado e

puseram em xeque o lado "sagrado" e "místico" dotrabalho - cultivado no pensamento cristão e neces-sário na sociedade capitalista.

Este processo leva, em alguns países, à exigênciada participação dos trabalhadores nas questões desaúde e segurança. Elas, mais que quaisquer outras, tipi-ficavam situações concretas do cotidiano dos traba-lhadores, expressas em sofrimento, doença e morte5, 53.

Como resposta ao movimento social e dos traba-lhadores, novas políticas sociais tomam a roupagemde lei, introduzindo significativas mudanças na le-gislação do trabalho e, em especial, nos aspectos desaúde e segurança do trabalhador. Assim, por exem-plo, na Itália, a Lei 300, de 20 de maio de 1970("Norme per la libertá e la dignitá dei lavoratori,delia liberta sindicale e dell'attivitá sindícale neiluoghi di lavoro"), mais conhecida como "Estatutodos Trabalhadores", incorpora princípios fundamen-tais da agenda do movimento de trabalhadores, taiscomo a não delegação da vigilância da saúde aoEstado, a não monetização do risco, a validação dosaber dos trabalhadores e a realização de estudos einvestigações independentes, o acompanhamento dafiscalização, e o melhoramento das condições e dosambientes de trabalho1, 4, 36, 46, 51.

Conquistas básicas de natureza semelhante, comalgumas peculiaridades próprias de contextos políti-co-sociais distintos, foram também sendo alcança-dos pelos trabalhadores norte-americanos (a partirda nova lei de 1970), ingleses (a partir de 1974),suecos (a partir de 1974), franceses (a partir de1976), noruegueses (1977), canadenses (1978), en-tre outros36, 46, 55.

Toda esta nova legislação tem como pilares co-muns o reconhecimento do exercício de direitosfundamentais dos trabalhadores, entre eles, o direitoà informação (sobre a natureza dos riscos, as medi-das de controle que estão sendo adotadas pelo em-pregador, os resultados de exames médicos e deavaliações ambientais, e outros; o direito à recusa aotrabalho em condições de risco grave para a saúdeou a vida; o direito à consulta prévia aos trabalhado-res, pelos empregadores, antes de mudanças de tec-nologia, métodos, processos e formas de organiza-ção do trabalho: e o estabelecimento de mecanis-mos de participação, desde a escolha de tecnologias,até, em alguns países, a escolha dos profissionaisque irão atuar nos serviços de saúde no traba-lho1,3,5,43,46,51,55.

A década de 70 testemunha profundas mudançasnos processos de trabalho. Num sentido mais"macro", observa-se uma forte tendência de"terciarização" da economia dos países desenvolvi-dos, isto é, o início de declínio do setor secundário(indústria), e o crescimento acentuado do setorterciario (serviços), com óbvia mudança do perfil daforça de trabalho empregada10, 50.

Ocorre um processo de transferência de indús-trias para o Terceiro Mundo, - uma verdadeiratransnacionalização da economia - principalmentedaquelas que provocam poluição ambiental ou riscopara a saúde (ex.: asbesto, chumbo, agrotóxicos, eoutros), e das que requerem muita mão-de-obra, combaixa tecnologia, como é o caso típico das"maquiladoras", que rapidamente se instalam nas"zonas livres" ou "francas", mundo afora. Os paísesdo Terceiro Mundo, afligidos pela elevação dos pre-ços do petróleo e pressionados pela recessão que seinstala universalmente, buscam o desenvolvimentoeconômico a qualquer custo, aceitando e estimulan-do esta transferência, supostamente capaz de ameni-zar o desemprego e gerar divisas8, 31, 37.

Num nível mais "micro", observa-se a rápida im-plantação de novas tecnologias, entre as quais po-dem ser destacadas duas vertentes que se comple-tam: a automação (máquinas de controle numérico,robots, e outros) e a informatização50, 60.

Apesar de a automação e a informatização viremcercadas de uma certa aura mítica de se constituiremna "última palavra da ciência a serviço do homem",elas introduziram, na verdade, profundas modifica-ções na organização do trabalho. Por exemplo, per-mitiram ao capital diminuir sua dependência dostrabalhadores, ao mesmo tempo em que aumenta-ram a possibilidade de controle. Ressurge, com vi-gor redobrado, o taylorismo, através de dois de seusprincípios básicos: o da primazia da gerência (viaapropriação do conhecimento operário e pela inter-ferência direta nos métodos e processos), e o daimportância do planejamento e controle do traba-lho17, 60.

Contudo, se de um lado o capital busca reeditaras bases da "administração científica do trabalho",agora mais sofisticada, de outro, abre espaço a for-mas de "resistência" desenvolvidas pelos trabalha-dores. Como conseqüência, são desenvolvidas, nospaíses escandinavos, experiências idos "grupos semi-autônomos", na Volvo e Saab, numa perspectiva deampliar a participação dos trabalhadores, diminuin-do os enfrentamentos.

No campo das idéias sobre saúde, predominava,até os anos'70, a concepção positivista de que aMedicina teria ampla autonomia e estaria no mesmonível que outros subsistemas - como o econômico, opolítico, o educacional - e a suposição de que seriapossível transformar a sociedade a partir de qual-quer desses setores20.

Esta visão de mundo sustenta a teoria damulticausalidade do processo saúde-doença, ondeos fatores de risco do adoecer e morrer são conside-rados com o mesmo valor ou potencial de agressãoao homem, visto este como "hospedeiro". A práticada saúde ocupacional assenta-se sobre esta concep-ção.

Entretanto, a partir do final dos anos'60, come-çam a aparecer críticas a esta concepção e a denúnciados efeitos negativos da medicalização e do caráterideológico e reprodutor das instituições médicas,com a proposta de desmedicalização da socieda-de18,20,42.

No campo da prática médica, surgem programasalternativos de auto-cuidado de saúde, de assistên-cia primária, de extensão de cobertura, derevitalização da medicina tradicional, uso de tecno-logia simplificada, e ênfase na participação comuni-tária20.

Apesar da "apropriação" pelo Estado de algumasdestas alternativas, surgidas da crítica às instituiçõesmédicas, e do fracasso relativo dessas medidas, elasrevitalizam a discussão teórica sobre a articulaçãoda saúde na sociedade20,42.

Nesse intenso processo social de discussões teó-ricas e de práticas alternativas, ganha corpo a teoriada determinação social do processo saúde-doença,cuja centralidade colocada no trabalho - enquantoorganizador da vida social - contribui para aumentaros questionamentos à medicina do trabalho e à saú-de ocupacionall5,30,58.

As críticas tornam-se mais contundentes, à medi-da que surgem, em nível da rede pública de serviçosde saúde, programas de assistência aos trabalhado-res, com ativa participação destes, e das suas orga-nizações. Os programas contribuem para desvelar oimpacto do trabalho sobre a saúde, questionam aspráticas dos serviços de medicina do trabalho nasempresas e instrumentalizam os trabalhadores nassuas reivindicações por melhores condições de saú-de13,15,19,32,33,41,47,58

Neste processo de questionamento da prática mé-dica e gestação de uma nova prática, alguns pensa-dores tiveram papel de destaque. Entre eles, Polack48

com suas idéias radicais, de que "a medicina nomodo de produção capitalista é a medicina do capi-tal"; Berlinguer5, que trabalhou ativamente a ques-tão da saúde do trabalhador no movimento da Re-forma Sanitária italiana; e Foucault18,20, ao dissecarquestões nevrálgicas da prática médica, desnudandoo poder e o controle, tão bem representados na me-dicina do trabalho.

Quais as conseqüências deste intenso processosocial de mudanças sobre a aparente hegemonia do"modelo da saúde ocupacional"?

E possível identificar, entre outras:- Os trabalhadores explicitam sua desconfiança

nos procedimentos técnicos e éticos dos profissio-nais dos serviços de saúde ocupacional (segurança,higiene e medicina do trabalho); estes têm umaenorme dificuldade em lidar com o "novo", mor-mente naquilo que significou perda de poder ehegemonia5,16,39,51.

- O exercício da participação do trabalhador em

questões de saúde pôs em xeque, em muitos casos,conceitos e procedimentos amplamente consagradospela saúde ocupacional, como por exemplo, o valore a ética de exames médicos pré-admissionais e pe-riódicos, utilizados, segundo a denúncia dos traba-lhadores, para práticas altamente discriminatórias28.

- Desmorona o mito dos "limites de tolerância"que fundamentou a lógica da saúde ocupacional(principalmente higiene e toxicologia) por mais de50 anos. A fundamentação científica é questionada(para não dizer desmoralizada); o conceito de "ex-posição segura" é abalado; e os estudos de efeitoscomportamentais provocados pela exposição a bai-xas doses de chumbo e de solventes orgânicos, põemem xeque os critérios de "proteção de saúde" quevigiram nos países industrializados ocidentais até hápouco6,9,14,21,29,54.

- À medida em que a organização do trabalhoamplia sua importância na relação trabalho/saúde,requerem-se novas estratégias para a modificaçãode condições de trabalho, que "atropelam" a SaúdeOcupacional (até então trabalhando na lógica"ambiental")23.

- A utilização de novas tecnologias - em especialas que introduzem a automação e a informatizaçãonos processos de trabalho - embora possa contribuirpara o melhoramento das condições de trabalho.acabam introduzindo novos riscos à saúde, quasesempre decorrentes da organização do trabalho, eportanto, de difícil "medicalização"

- As modificações dos processos de trabalho emnível "macro" (terciarização da economia), e"micro" (automação e informatização), acrescenta-dos à eliminação dos riscos nas antigas condiçõesde trabalho, provocam um deslocamento do perfilde morbidade causada pelo trabalho: as doençasprofissionais clássicas tendem a desaparecer, e apreocupação desloca-se para as outras "doenças re-lacionadas com o trabalho" (work related diseases).Passam a ser valorizadas as doenças cardiovascula-res (hipertensão arterial e doença coronariana), osdistúrbios mentais, o estresse e o câncer, entre ou-tras. Desloca-se, assim, a vocação da saúdeocupacional, passando esta a se ocupar da "promo-ção de saúde", cuja estratégia principal é a de, atra-vés de um processo de educação, modificar o com-portamento das pessoas e seu "estilo devida"10,22,34,35.

- Na verdade, esta nova exigência colocada àsaúde ocupacional nos países desenvolvidos e nasgrandes corporações no Terceiro Mundo, se superpõeàquelas existentes na imensa maioria dos estabeleci-mentos de trabalho (pequenos e médios) e na eco-nomia informal, onde permanecem as condições derisco para a saúde dos trabalhadores, com os proble-mas clássicos e graves, até hoje não solucionadospelos modelos utilizados.

Características da saúde do trabalhador

Do intenso processo social de mudança, ocorridono mundo ocidental nos últimos vinte anos, forammencionados, anteriormente, alguns aspectos que,no âmbito das relações trabalho x saúde, conforma-ram a saúde do trabalhador.

Como característica básica desta nova prática,destaca-se a de ser um campo em construção noespaço da saúde pública. Assim, sua descriçãoconstitui, antes, uma tentativa de aproximação deum objeto e de uma prática, com vistas a contribuirpara sua consolidação enquanto área19,58.

O objeto da saúde do trabalhador pode ser defini-do como o processo saúde e doença dos grupos hu-manos, em sua relação com o trabalho. Representaum esforço de compreensão deste processo - comoe porque ocorre - e do desenvolvimento de alternati-vas de intervenção que levem à transformação emdireção à apropriação pelos trabalhadores, da di-mensão humana do trabalho, numa perspectivateleológica.

Nessa trajetória, a saúde do trabalhador rompecom a concepção hegemônica que estabelece umvínculo causai entre a doença e um agente específi-co, ou a um grupo de fatores de risco presentes noambiente de trabalho e tenta superar o enfoque quesitua sua determinação no social, reduzido ao pro-cesso produtivo, desconsiderando a subjetivida-de15,'30,58.

Apesar das dificuldades teórico-metodológicasenfrentadas, a saúde do trabalhador busca a explica-ção sobre o adoecer e o morrer das pessoas, dostrabalhadores em particular, através do estudo dosprocessos de trabalho, de forma articulada com oconjunto de valores, crenças e idéias, as representa-ções sociais, e a possibilidade de consumo de bens eserviços, na "moderna" civilização urbano-indus-trial15.

Nessa perspectiva, e com as limitações assinala-das, a saúde do trabalhador considera o trabalho,enquanto organizador da vida social, como o espaçode dominação e submissão do trabalhador pelo ca-pital, mas, igualmente, de resistência, de constitui-ção, e do fazer histórico. Nesta história os trabalha-dores assumem o papel de atores, de sujeitos capazesde pensar e de se pensarem, produzindo uma expe-riência própria, no conjunto das representações dasociedade15,53.

No âmbito das relações saúde x trabalho, os tra-balhadores buscam o controle sobre as condições eos ambientes de trabalho, para torná-los mais "sau-dáveis". É um processo lento, contraditório, desi-gual no conjunto da classe trabalhadora, dependentede sua inserção no processo produtivo e do contextosócio-político de uma determinada sociedade43,53.

Assim, a saúde do trabalhador apresenta expres-

sões diferentes segundo a época e o país, e diferen-ciada dentro do próprio país, como pode ser obser-vado na Itália, na Escandinávia, no Canadá, ou noBrasil. Porém, apesar das diferenças, mantém osmesmos princípios - trabalhadores buscam ser reco-nhecidos em seu saber, questionam as alterações nosprocessos de trabalho, particularmente a adoção denovas tecnologias, exercitam o direitto à informaçãoe a recusa ao trabalho perigoso ou arriscado à Saú-de 1,4,5,43,46

Na implementação deste "novo" modo de lidarcom as questões de saúde relacionadas ao trabalho,os trabalhadores contam com dois apoios importan-tes: uma assessoria técnica especializada e o supor-te, ainda que limitado, dos serviços públicos estataisde saúde.

No Brasil surge a assessoria sindical feita porprofissionais comprometidos com a luta dos traba-lhadores, que individualmente ou através de organi-zações como o Departamento Intersindical de Estu-dos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Tra-balho (DIESAT) e o Instituto Nacional de Saúde noTrabalho (INST), no caso do Brasil, estudando osambientes e condições de trabalho, levantando riscose constatando danos para a saúde; decodificando osaber acumulado, num processo contínuo de sociali-zação da informação; resgatando e sistematizando osaber operário, vivenciando, na essência, a relaçãopedagógica educador-educando16,27,52.

Também pode ser constatada a contribuição aodesenvolvimento da área de saúde do trabalhador,trazida pelos técnicos que em nível das instituiçõespúblicas - as Universidades e Institutos de Pesquisa,a rede de Serviços de Saúde e fiscalização do traba-lho - somam esforços na luta por melhores condi-ções de saúde e trabalho, através da capacitaçãoprofissional, da produção do conhecimento, da pres-tação de serviços e da fiscalização das exigênciaslegais13,19,47,58.

Como características desta "nova prática" cabeainda mencionar o esforço que vem sendo empreen-dido no campo da saúde do trabalhador para inte-grar as dimensões do individual x coletivo, do bio-lógico x social, do técnico x político, do particular xgeral. E um exercício fascinante, ao qual têm se dedi-cado os profissionais de saúde e os trabalhadores, queparece apontar uma saída para a grave crise da "ciên-cia médica" ou das "ciências da saúde", neste final deséculo. Os cânones clássicos colocados a partir deformas fragmentadas de ver e estudar o mundo, secontribuiram para o aprofundamento do conhecimen-to em níveis inimagináveis, estão a necessitar de umanova abordagem que consiga reuní-los, articulá-los,colocando-os a serviço dos homens.

No Brasil, a emergência da saúde do trabalhadorpode ser identificada no início dos anos'80, no con-texto da transição democrática, em sintonia com oque ocorre no mundo ocidental.

Entre suas características básicas, destacam-se:- Ganha corpo um novo pensar sobre o processo

saúde-doença, e o papel exercido pelo trabalho nasua determinação2,15,49,58.

- Há o desvelamento circunscrito, poréminquestionável, de um adoecer e morrer dos traba-lhadores, caracterizado por verdadeiras "epidemias",tanto de doenças profissionais clássicas (intoxicaçãopor chumbo, mercúrio, benzeno, e a silicose), quan-to de "novas" doenças relacionadas ao trabalho,como a LER (lesões por esforços repetitivos), porexemplo16,47,52.

- São denunciadas as políticas públicas e o siste-ma de saúde, incapazes de dar respostas às necessi-dades de saúde da população, e dos trabalhadores,em especial12,49.

- Surgem novas práticas sindicais em saúde,traduzidas em reivindicações de melhores condiçõesde trabalho, através da ampliação do debate, circu-lação de informações, inclusão de, pautas específicasnas negociações coletivas, da reformulação do tra-balho das Comissões Internas de Prevenção de Aci-dentes (CIPAs), no bojo da emergência do novosindicalismo16,27.

Este processo social se desdobrou em uma sériede iniciativas e se expressou nas discussões da VIIIConferência Nacional de Saúde, na realização da IConferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores,e foi decisivo para a mudança de enfoqueestabelecida na nova Constituição Federal de 1988.Mais recentemente, a denominação "saúde do traba-lhador" aparece, também, incorporada na nova LeiOrgânica de Saúde, que estabelece sua conceituaçãoe define as competências do Sistema Único de Saú-de neste campo7,11,12,38.

À guisa de conclusão retoma-se a idéia expressana Introdução deste ensaio.

A caminhada da medicina do trabalho à saúde dotrabalhador encontra-se em processo. Sua históriapode ser contada em diferentes versões, porém coma certeza de que é construída por homens que bus-cam viver. Livres.

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Keywords: Occupational health. Occupational medicine,history.

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Recebido para publicação em 16/09/1991.