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DADOS DE ODINRIGHT de Assis... · Diagramação: Filigrana Conversão para e-book: Celina Faria e Leandro B. Liporage ... O alienista Teoria do medalhão D. Benedita O empréstimo

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DADOSDEODINRIGHTSobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

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DireitosdeediçãodaobraemlínguaportuguesaadquiridospelaEDITORANOVAFRONTEIRAPARTICIPAÇÕESS.A.Todososdireitosreservados.

Coordenação:DanielLouzadaConselhoeditorial:DanielLouzada,FredericoIndiani,LeilaName,MariaCristinaAntonioJeronimoProjetográficodecapaemiolo:LeandroB.LiporageIlustraçãodecapa:CássioLoredanoDiagramação:FiligranaConversãoparae-book:CelinaFariaeLeandroB.LiporageEquipeeditorialNovaFronteira:ShahiraMahmud,AdrianaTorres,Claudia

Ajuz,GiseleGarciaPreparaçãodeoriginais:GustavoPenha,JoséGrillo,BeteMunizCIP-Brasil.CatalogaçãonafonteSindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJA866sAssis,Machado,1839-1908Seustrintamelhorescontos/MachadodeAssis.-

[Ed.especial].-RiodeJaneiro:NovaFronteira,2011.(Saraivadebolso)ISBN97885209283941.Contobrasileiro.I.Título.II.Série.CDD:869.93CDU:821.134.3(81)-3

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Copyright

Esta obra foi postada pela equipe iOS Books em parceria com o grupo

LegiLibroparaproporcionar,demaneiratotalmentegratuita,obenefíciodesualeituraàquelesquenãopodemcomprá-la.Dessaforma,avendadesseeBookouatémesmoa sua trocapor qualquer contraprestaçãoé totalmente condenávelem qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca dadistribuição,portantodistribuaestelivrolivremente.

Apóssualeituraconsidereseriamenteapossibilidadedeadquirirooriginal,poisassimvocêestaráincentivandooautoreàpublicaçãodenovasobras.

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Livrosparatodos

Esta coleção é uma iniciativa da Livraria Saraiva que traz para o leitor

brasileiro uma nova opção em livros de bolso.Com apuro editorial e gráfico,textos integrais, qualidade nas traduções e uma seleção ampla de títulos, acoleção Saraiva de Bolso reúne o melhor da literatura clássica e moderna aopublicar as obras dos principais artistas brasileiros e estrangeiros que tantoinfluenciamonossojeitodepensar.

Ficção, poesia, teatro, ciências humanas, literatura infantojuvenil, entre

outros textos, estão contemplados numa espécie de biblioteca básicarecomendávelatodoleitor,jovemouexperimentado.Livrosdosquaisouvimosfalaro tempo inteiro,que sãocitados, estudadosnas escolas euniversidades erecomendadospelosamigos.

Com lançamentos mensais, os livros da coleção podem acompanhá-lo aqualquer lugar: cabem em todos os bolsos. São portáteis, contemporâneos e,muitoimportante,têmpreçosbastanteacessíveis.

ReafirmandoocompromissodaLivrariaSaraivacomaeducaçãoeaculturado Brasil, a Saraiva de Bolso convida você a participar dessa grande e únicaaventurahumana:aleitura.

SaraivadeBolso.Levecomvocê.

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Sumário

NotaeditorialOSCONTOSTrêstesourosperdidosDePapéisavulsosAchinelaturcaOalienistaTeoriadomedalhãoD.BeneditaOempréstimoOespelhoDeHistóriassemdataAigrejadoDiaboCantigadeesponsaisSingularocorrênciaGaleriapóstumaAnedotapecuniária

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UmasenhoraNoitedealmiranteEvoluçãoDeVáriashistóriasOenfermeiroContodeescolaD.PaulaAcartomanteUmapólogoAcausasecretaUnsbraçosEntresantosTrioemlámenorViver!AdesejadadasgentesUmhomemcélebreDePáginasrecolhidasOcasodavaraMissadogalo

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UmerradioDeRelíquiasdeCasaVelhaPaicontramãeSuje-segordo!OescrivãoCoimbraSobreoautor

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Notaeditorial

Ocrescente—e justificado— interessede todas as camadas leitoraspela

obradeMachadopostodemanifestonaacolhidaquevêmdispensando,nãosóàtradicional edição de Jackson, mas igualmente às publicadas por diversaseditoras—inclusiveadestelivro—,apartirdaliberaçãodosdireitosautorais,eemtodasortedeformatoseapresentações,sugeriuaestaeditoraaconveniênciade trazer mais uma contribuição, embora numa forma e com uma finalidadediferentes,àdifusãodaobradomaiorvultodasletrasbrasileiras,juntandonumpequeno, manuseável e atrativo volume uma seleta coletânea, justamentedaquelegêneroemquemaisbrilhouamestriadomestre:oconto.

A editora, porém, não quis arcar com a responsabilidade da escolha, e,mesmo sendo questão fartamente provada que jamais antologia algumaconseguiu — em qualquer parte do mundo— satisfazer a todos os leitores,procurouaproximar-sedamaiorobjetividadepossível, reunindo,numconclaveimaginário, algumas das autoridadesmais versadas e competentes namatéria.Segueaestanotaeditorialumarelaçãodoscontosincluídosnovolume,comamarcaçãodospronunciamentosdosescritores consultados,unsatravésde seusescritos,outroseminquéritoespecialparaestaseleção.

O resultado é o que aí está: uma amostra, quase perfeita e praticamentecompleta,detodaavariadagamadocontomachadiano:quantoatemas,quantoacenários,quantoaextensão—desde“Oalienista”,praticamenteumanovela,até “Um apólogo”, apenas uma anedota —, quanto ao próprio processo deelaboraçãoliteráriaeestilística,einclusivequantoaméritos,poistendoalgunsdoscontos escolhidosconquistado sete e atédezdosvotosdosescritores cujoparecerfoilevadoemconta,muitosoutrossóconseguiramtrêseatédoisvotos.Dos restantes contos, com um só voto — não publicados neste volume —,damosumarelaçãoàparte.Esclarecemos,entretanto,quesendotrintaoscontosescolhidos,e14osqueobtiveramapenasumvoto,restamaindamaisde130quenãoreceberamnenhum,oquerevelaumararaesignificativaunanimidadenasopiniões do júri, e marca com o signo da maior autoridade e autenticidade aescolhaaquiapresentada.Sósemanifestouumadiscrepânciaflagrante:ade“Ocasodavara”,que,sendoumdoscontosmaisfrequentementereproduzidos,não

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mereceuosufrágiodeumsódosjurados.Os contos vão ordenados cronologicamente para que o leitor possa

acompanhar a evolução do autor, havendo a editora tomado a liberdade, paracompletaresteroteiro,deincluiroprimeirocontoescritoporMachadodeAssis,em1858, apenas com19 anos de idade emuito antes do seu livro de estreia,Crisálidas—porsinal,poesia—,masemquejáapontamasqualidadesqueoconverteriamnomestredosmestres,eoúltimo,publicadoem1907—umanoantes da suamorte—enoqual ainda se percebeo estilo vigorosodograndeescritor que sempre foi, embora também a reiteração própria do ancião que,naquelaaltura,ele jáera.Sãoassim, trêscontosmais—incluindo“Ocasodavara”—alémdostrintaobjetivamenteselecionadosnoinquérito,oprimeiroeoúltimo pouco conhecidos e também pouco apreciados pelo autor, que não osincluiemnenhumdoslivrosdecontosporeleorganizados.

É interessante salientar, a este respeito, queabsolutamente todosos contosselecionados pelo apurado critério dos escritores e críticos consultados foramtambémescolhidospeloautor,juntocomoutros,eincluídosnosdiversoslivrosdecontospublicadosemvidadele;etambémqueessesnossoscolaboradores,naseleção, não escolheram um conto sequer dos incluídos pelo autor emContosfluminenseseemHistóriasdameia-noite.

A cronologia desta seleção revela, outrossim, que dos trinta contosselecionados,nadamenosdeseisforampublicadospelaprimeiravezem1883,eoutros tantosem1884;quatroem1886e trêsemcadaumdosanosde1882e1885, o que situa no quinquênio de 1882-86— com a idade de 43-47— operíodo não só de maior fecundidade do autor, estimulada talvez pelocompromissoda colaboração jornalística fixa e regular,mas tambémdemaiorperfeiçãoliteráriaerequinteartístico.

Comestepequenolivropoderáoleitor,aqualquerhoraeemqualquerlugar,gozar do sempre novo prazer da releitura destas histórias, e beber, nas fontesinigualáveis da melhor prosa machadiana, aqueles primores do estilo, daconcisão, da linguagem, e do próprio enredo, que as elevaram à indiscutívelcategoria de peças mestras da literatura brasileira. Tal como alguns outrospoucos livrosexcepcionais,o leitorpode,emqualqueroportunidade,abrirestevolumenumapáginaqualquer,certodeencontrardeimediatoumsedativoparasuamenteouumútilegratoexpedienteparaseulazer.

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Oscontos

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Trêstesourosperdidos1

Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X... voltava à sua casa para jantar.O

apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à suaporta.Entrou,subiuaescada,penetranasalae...dácomosolhosemumhomemquepasseavaalargospassoscomoagitadoporumainternaaflição.

Cumprimentou-opolidamente;masohomemlançou-sesobreeleecomumavozalteradadiz-lhe:

—Senhor,eusouF...,maridodasenhoradonaE...—Estimomuitoconhecê-lo respondeo sr.X...;masnão tenhoahonrade

conhecerasenhoradonaE...—Nãoaconhece!Nãoaconhece!...querjuntarazombariaàinfâmia?—Senhor!...Eosr.X...deuumpassoparaele.—Altolá!Osr.F...,tirandodobolsoumapistola,continuou:—Ouosenhorhádedeixarestacorte,ouvaimorrercomoumcão!— Mas, senhor disse o sr. X..., a quem a eloquência do sr. F... tinha

produzidoumcertoefeito,quemotivotemosenhor?...—Quemotivo!Éboa!Poisnãoéummotivoandarosenhorfazendoacorte

àminhamulher?—Acorteàsuamulher!nãocompreendo!—Nãocompreende!oh!nãomefaçaperderaestribeira.—Creioqueseengana...—Enganar-me!Éboa!...maseuovi...sairduasvezesdeminhacasa...—Suacasa!—NoAndaraí...porumaportasecreta...Vamos!ou...—Mas,senhor,hádeseroutro,quesepareçacomigo...— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo, que

ressaltadetodaasuacara?Vamos,oudeixaracidade,oumorrer...Escolha!Eraumdilema.Osr.X...compreendeuqueestavametidoentreumcavaloe

umapistola.PoistodaasuapaixãoerairaMinas,escolheuocavalo.Surgiu,porém,umaobjeção.

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—Mas,senhor—disseele—,osmeusrecursos...— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido

previdente.EtirandodaalgibeiradacasacaumalindacarteiradecourodaRússia,diz-

lhe:—Aqui tem dous contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta!

partaimediatamente.Paraondevai?—ParaMinas.—Oh!apátriadoTiradentes!Deusoleveasalvamento...Perdoo-lhe,mas

nãovolteaestacorte...Boaviagem!Dizendo isto, o sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no

cabriolé,quedesapareceuemumanuvemdepoeira.Osr.X...ficouporalgunsinstantespensativo.Nãopodiaacreditarnosseus

olhoseouvidos;pensavasonhar.Umenganotrazia-lhedouscontosderéis,earealizaçãodeumdosseusmaiscarossonhos.Jantoutranquilamente,edaíaumahorapartiaparaaterradeGonzaga,deixandoemsuacasaapenasummolequeencarregadode instruir, pelo espaçodeoitodias, aos seus amigos sobreo seudestino.

No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o sr. F... para a suachácaradeAndaraí,poistinhapassadoanoitefora.

Entrou,penetrounasala,e indodeixarochapéusobreumamesa,viualioseguintebilhete:

“Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigoP...Voupara a Europa.Desculpa amá companhia, poismelhor não podia ser.—TuaE...”

Desesperado, fora de si, o sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: opaquetetinhapartidoàsoitohoras.

— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos nãopercamososdouscontos!Tornouameter-senocabrioléedirigiu-seàcasadosr.X...,subiu;apareceuomoleque.

—Teusenhor?—PartiuparaMinas.Osr.F...desmaiou.Quandodeuacordodesiestavalouco...loucovarrido!Hoje,quandoalguémovisita,dizelecomumtomlastimoso:—Perditrêstesourosaumtempo:umamulhersemigual,umamigoatoda

prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiamaquecer-measalgibeiras!

Nesteúltimoponto,odoidotemrazão,epareceserumdoidocomjuízo.

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AMarmota,5dejaneirode1858;Machadod’Assis.

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DePapéisavulsos

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Achinelaturca

Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de

gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita domajorLopoAlves.Notaiqueédenoite,epassadenovehoras.Duarteestremeceu,etinhaduasrazõesparaisso.Aprimeiraeraseromajor,emqualquerocasião,umdos mais enfadonhos sujeitos do tempo. A segunda é que ele preparava-sejustamente para ir ver, em um baile, os mais finos cabelos louros e os maispensativosolhosazuis,queestenossoclima,tãoavarodeles,produzira.Datavade uma semana aquele namoro. Seu coração, deixando-se prender entre duasvalsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, queeles pontualmente transmitiram àmoça, dezminutos antes da ceia, recebendofavorávelrespostalogodepoisdochocolate.Trêsdiasdepois,estavaacaminhoa primeira carta, e pelo jeito que levavam as cousas não era de admirar que,antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igreja. Nestascircunstâncias,achegadadeLopoAlveseraumaverdadeiracalamidade.Velhoamigodafamília,companheirodeseufinadopainoexército,tinhajusomajoratodos os respeitos. Impossível despedi-lo ou tratá-lo com frieza. Haviafelizmenteumacircunstânciaatenuante;omajoreraaparentadocomCecília,amoçadosolhosazuis;emcasodenecessidade,eraumvotoseguro.

Duarte enfiouumchambreedirigiu-separa a sala,ondeLopoAlves, comum rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio àchegadadobacharel.

— Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante hora?— perguntouDuarte, dando à voz uma expressão de prazer, aconselhada não menos pelointeressequepelobom-tom.

—Nãoseiseoventoquemetrouxeébomoumau—respondeuomajorsorrindoporbaixodoespessobigodegrisalho—;seiquefoiumventorijo.Vaisair?

—VouaoRioComprido.—Já sei; vai à casadaviúvaMeneses.Minhamulher e as pequenas já lá

devemestar:euireimaistarde,sepuder.Creioqueécedo,não?LopoAlvestirouorelógioeviuqueeramnovehorasemeia.Passouamão

pelobigode,levantou-se,deualgunspassosnasala,tornouasentar-seedisse:

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—Dou-lheumanotícia,quecertamentenãoespera.Saibaquefiz... fizumdrama.

—Umdrama!—exclamouobacharel.— Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários. O serviço

militar não foi remédio queme curasse, foi umpaliativo.A doença regressoucomaforçadosprimeirostempos.Jáagoranãoháremédiosenãodeixá-la,eirsimplesmenteajudandoanatureza.

Duarte recordou-se de que efetivamente o major falava noutro tempo dealguns discursos inaugurais, duas ou três nênias e boa soma de artigos queescreveraacercadascampanhasdoriodaPrata.HaviaporémmuitosanosqueLopoAlvesdeixaraempazosgeneraisplatinoseosdefuntos;nadafaziasuporque a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama. Estacircunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves, algumassemanasantes,assistiraàrepresentaçãodeumapeçadogêneroultrarromântico,obraquelheagradoumuitoelhesugeriuaideiadeafrontarasluzesdotablado.Nãoentrouomajornestasminuciosidadesnecessárias, eobacharel ficou semconheceromotivodaexplosãodramáticadomilitar.Nemosoube,nemcuroudisso. Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestoucalorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estreia,prometeuqueorecomendariaaalgunsamigosquetinhanoCorreioMercantil,esóestacoueempalideceuquandoviuomajor,trêmulodebem-aventurança,abriroroloquetraziaconsigo.

—Agradeço-lheassuasboasintenções—disseLopoAlves—,eaceitooobséquioquemepromete;antesdele,porém,desejooutro.Seiqueéinteligentee lido; há deme dizer francamente o que pensa deste trabalho.Não lhe peçoelogios,exijofranquezaefranquezarude.Seacharquenãoébom,diga-osemrebuço.

Duarteprocuroudesviaraquelecálixdeamargura;maseradifícilpedi-lo,eimpossível alcançá-lo. Consultou melancolicamente o relógio, que marcava21h55,enquantoomajorfolheavapaternalmenteas180folhasdomanuscrito.

—Istovaidepressa—disseLopoAlves—;euseioquesãorapazeseoquesãobailes.Descansequeaindahojedançaráduasou trêsvalsas comela, se atem,oucomelas.Nãoachamelhorirmosparaoseugabinete?

Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo dohóspede.Este,comaliberdadequelhedavamasrelações,disseaomolequequenão deixasse entrar ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta dogabinetefechou-se;LopoAlves tomoulugaraopédamesa, tendoemfrenteobacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona demarroquim,resolutoanãodizerpalavraparairmaisdepressaaotermo.

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Odramadividia-seemsetequadros.Estaindicaçãoproduziuumcalafrionoouvinte. Nada havia de novo naquelas 180 páginas, senão a letra do autor. Omaiseramos lances,oscaracteres,as ficelles eatéoestilodosmaisacabadostipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra umainvenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscências.Noutra ocasião, a obra seria um bom passatempo. Havia logo no primeiroquadro,espéciedeprólogo,umacriançaroubadaàfamília,umenvenenamento,dous embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos nãomenosafiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta damorte de um dosembuçados,quedeviaressuscitarnoterceiro,paraserpresonoquinto,ematarotirano no sétimo. Além da morte aparente do embuçado, havia no segundoquadrooraptodamenina,jáentãomoçade17anos,ummonólogoquepareciadurarigualprazo,eoroubodeumtestamento.

Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro.Duartemalpodiaconteracólera;erajáimpossíveliraoRioComprido.Nãoéfora de propósito conjecturar que, se o major expirasse naquele momento,DuarteagradeciaamortecomoumbenefíciodaProvidência.Ossentimentosdobacharelnão faziamcrer tamanhaferocidade;masa leituradeummau livroécapazdeproduzirfenômenosaindamaisespantosos.Acresceque,enquantoaosolhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a grenha deLopoAlves,fulgiam-lheaoespíritoosfiosdeouroqueornavamaformosacabeçadeCecília; via-a com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado egracioso,dominandotodasasdemaisdamasquedeviamestarnosalãodaviúvaMeneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dospassos, e o ruge-ruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona deLopoAlvesiadesfiandoosquadroseosdiálogos,comaimpassibilidadedeumagrandeconvicção.

Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros.Meia-noitesoaradesdemuito;obaileestavaperdido.Derepente,viuDuartequeomajorenrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele unsolhosodientosemaus,esaíaarrebatadamentedogabinete.Duartequischamá-lo,masopasmotolhera-lheavozeosmovimentos.Quandopôdedominar-se,ouviuobaterdotacãorijoecoléricododramaturgonapedradacalçada.

Foiàjanela;nadaviunemouviu;autoredramatinhamdesaparecido.—Porquenãofezeleissohámaistempo?—disseorapazsuspirando.Osuspiromaltevetempodeabrirasasasesairpelajanelafora,emdemanda

doRioComprido,quandoomolequedobacharelveioanunciar-lheavisitadeumhomembaixoegordo.

—Aestahora!—exclamouDuarte.

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—Aestahora—repetiuohomembaixoegordo,entrandonasala.—Aestaou a qualquer hora, pode a polícia entrar na casa do cidadão, umavezque setratadeumdelitograve.

—Umdelito!—Creioquemeconhece...—Nãotenhoessahonra.—Souempregadonapolícia.—Masquetenhoeucomosenhor?dequedelitosetrata?— Pouca cousa: um furto. O senhor é acusado de haver subtraído uma

chinelaturca.Aparentementenãovalenadaouvalepoucoatalchinela.Masháchinelaechinela.Tudodependedascircunstâncias.

O homem disse isto com um riso sarcástico, e cravando no bacharel unsolhos de inquisidor.Duarte não sabia sequer da existência do objeto roubado.Concluiuquehaviaequívocodenome,enãosezangoucomainjúriairrogadaàsua pessoa, e de algum modo à sua classe, atribuindo-se-lhe a ratonice. Istomesmodisse ao empregado da polícia, acrescentando que não eramotivo, emtodocaso,paraincomodá-loasemelhantehora.

—Hádeperdoar-me—disseorepresentantedaautoridade.—Achineladeque se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimosdiamantes,queatornamsingularmentepreciosa.Nãoéturcasópelaforma,mastambém pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viageiras,esteve,hácercadetrêsanos,noEgito,ondeacomprouaumjudeu.Ahistória,que este aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústriamuçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamentementirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foiroubadaequeapolíciatemdenúnciacontraosenhor.

Nestepontododiscurso,chegara-seohomemàjanela;Duartesuspeitouquefosseumdoudoouumladrão.Nãotevetempodeexaminarasuspeita,porquedentrodealgunssegundos,viuentrarcincohomensarmados,quelhelançaramasmãoseolevaram,escadaabaixo,semembargodosgritosquesoltavaedosmovimentosdesesperadosquefazia.Naruahaviaumcarro,ondeometeramàforça.Jáláestavaohomembaixoegordo,emaisumsujeitoaltoemagro,queoreceberam e fizeram sentar no fundo do carro. Ouviu-se estalar o chicote dococheiroeocarropartiuàdesfilada.

—Ah!ah!—disseohomemgordo.—Comqueentãopensavaquepodiaimpunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez comelas...eriraindaporcimadogênerohumano.

Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve umcalafrio.Tratava-se,aoqueparecia,dealgumdesforçoderivalsuplantado.Oua

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alusão seria casual e estranha à aventura? Duarte perdeu-se num cipoal deconjecturas,enquantoocarroiasempreandandoatodogalope.Nofimdealgumtempo,arriscouumaobservação.

—Quaisquerquesejamosmeuscrimes,suponhoqueapolícia...—Nósnãosomosdapolícia—interrompeufriamenteohomemmagro.—Ah!— Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu faremos um

terno.Ora,ternonãoémelhorquepar;nãoé,nãopodeser.Umcasaléoideal.Provavelmentenãomeentendeu?

—Não,senhor.—Hádeentenderlogomais.Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no silêncio, derreou o corpo, e

deixoucorrerocarroeaaventura.Obradecincominutosdepoisestacavamoscavalos.

—Chegamos—disseohomemgordo.Dizendoisto,tirouumlençodaalgibeiraeofereceu-oaobacharelparaque

tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homemmagro observou-lhe que eramais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o bacharel; atou o lenço eapeou-se.Ouviu,daíapouco,rangerumaporta;duaspessoas—provavelmenteas mesmas que o acompanharam no carro — seguraram-lhe as mãos e oconduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando, ouvia obacharelalgumasvozesdesconhecidas,palavrassoltas,frasestruncadas.Afinalpararam;disseram-lhequesesentasseedestapasseosolhos.Duarteobedeceu;masaodesvendar-se,nãoviuninguémmais.

Erauma sala vasta, assaz iluminada, trastejada comelegância e opulência.Era talvez sobreposse a variedade dos adornos; contudo, a pessoa que osescolhera devia ter gosto apurado.Osbronzes, charões, tapetes, espelhos—acópiainfinitadeobjetosqueenchiamasala,eratudodamelhorfábrica.Avistadaquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que alimorassemladrões.

Reclinou-se o moço indolentemente na otomana... Na otomana! Estacircunstância trouxeàmemóriado rapazoprincípiodaaventuraeo roubodachinela.Algunsminutosde reflexãobastaramparaverquea tal chinelaera jáagoramaisqueproblemática.Cavandomais fundono terrenodas conjecturas,pareceu-lheacharumaexplicaçãonovaedefinitiva.Achinelavinhaaserpurametáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara, delito de que oqueria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente aspalavrasmisteriosasdohomemmagro:oparémelhorqueoterno;umcasaléoideal.

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—Háde ser isso—concluiuDuarte—;mas quem será esse pretendentederrotado?

Nestemomentoabriu-seumaportadofundodasalaenegrejouabatinadeum padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de umamola. Opadreatravessoulentamenteasala,aopassarporeledeitou-lheabênção,efoisair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou semmovimento,aolharparaaporta,aolharsemver,estúpidodetodosossentidos.Oinesperadodaquelaapariçãobaralhoutotalmenteasideiasanterioresarespeitoda aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova explicação,porqueaprimeiraporta foidenovoabertae entrouporelaoutra figura,destavezohomemmagro,quefoidireitoaeleeoconvidouasegui-lo.Duartenãoopôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e, atravessados algunscorredoresmaisoumenosalumiados, foramdaraoutra sala,quesóoeraporduas velas postas em castiçais de prata.Os castiçais estavam sobre umamesalarga.Nacabeceiradestahaviaumhomemvelhoquerepresentavater55anos;eraumafiguraatlética,fartadecabelosnacabeçaenacara.

—Conhece-me?—perguntouovelho,logoqueDuarteentrounasala.—Não,senhor.—Nemépreciso.Oquevamosfazerexcluiabsolutamenteanecessidadede

qualquerapresentação.Saberáemprimeirolugarqueoroubodachinelafoiumsimplespretexto...

—Oh!decerto!—interrompeuDuarte.—Umsimplespretexto—continuouovelho—para trazê-loaestanossa

casa.Achinelanãofoiroubada;nuncasaiudasmãosdadona.JoãoRufino,vábuscarachinela.

Ohomemmagrosaiu,eovelhodeclarouaobacharelqueafamosachinelanãotinhanenhumdiamante,nemforacompradaanenhumjudeudoEgito;era,porém,turca,segundoselhedisse,eummilagredepequenez.Duarteouviuasexplicações,e,reunindotodasasforças,perguntouresolutamente:

—Mas,senhor,nãomedirádeumavezoquequeremdemimequeestoufazendonestacasa?

—Vaisabê-lo—respondeutranquilamenteovelho.Aportaabriu-seeapareceuohomemmagrocomachinelanamão.Duarte,

convidadoaaproximar-seda luz, teveocasiãodeverificarqueapequenezerarealmentemiraculosa.Achinelaerademarroquimfiníssimo;noassentodopé,estufadoeforradodesedacorazul,rutilavamduasletrasbordadasaouro.

—Chineladecriança,nãolheparece?—disseovelho.—Suponhoquesim.—Poissupõemal;échinelademoça.

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—Será;nadatenhocomisso.—Perdão!temmuito,porquevaicasarcomadona.—Casar!—exclamouDuarte.—Nadamenos.JoãoRufino,vábuscaradonadachinela.Saiuohomemmagro,evoltoulogodepois.Assomandoàporta,levantouo

reposteiroedeuentradaaumamulherquecaminhouparaocentrodasala.Nãoeramulher,eraumasílfide,umavisãodepoeta,umacriaturadivina.

Eraloura;tinhaosolhosazuis,comoosdeCecília,extáticos,unsolhosquebuscavamocéuoupareciamviverdele.Oscabelos,desleixadamentepenteados,faziam-lheemvoltadacabeçaumcomoresplendordesanta;santasomente,nãomártir,porqueosorrisoquelhedesabrochavaoslábioseraumsorrisodebem-aventurança,comorarasvezeshádetertidoaTerra.

Umvestidobranco,definíssimacambraia,envolvia-lhecastamenteocorpo,cujas formas aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para aimaginação.

Umrapaz,comoobacharel,nãoperdeosentimentodaelegância,aindaemlancesdaqueles.Duarte,aoveramoça,compôsochambre,apalpouagravataefezumacerimoniosacortesia,aqueelacorrespondeucomtamanhagentilezaegraça,queaaventuracomeçouaparecermuitomenosaterradora.

—Meucarodoutor,estaéanoiva.Amoçaabaixouosolhos;Duarterespondeuquenãotinhavontadedecasar.— Três cousas vai o senhor fazer agora mesmo — continuou

impassivelmente o velho —: a primeira é casar; a segunda escrever o seutestamento;aterceiraengolircertadrogadoLevante...

—Veneno!—interrompeuDuarte.—Vulgarmenteéesseonome;eudou-lheoutro:passaportedocéu.Duarteestavapálidoefrio.Quisfalar,nãopôde;umgemido,sequer,nãolhe

saiudopeito.Rolariaaochão,senãohouvessealipertoumacadeiraemquesedeixoucair.

—Osenhor—continuouovelho—temumafortunazinhade150contos.Estapérolaseráasuaherdeirauniversal.JoãoRufino,vábuscaropadre.

Opadreentrou,omesmopadrecalvoqueabençoaraobacharelpoucoantes;entrouefoidireitoaomoço,engrolandosonolentamenteumtrechodeNeemiasouqualqueroutroprofetamenor;travou-lhedamãoedisse:

—Levante-se!—Não!nãoquero!nãomecasarei!—Eisto?—dissedamesaovelho,apontando-lheumapistola.—Masentãoéumassassinato?—É; adiferença estánogênerodemorte: ouviolenta com isto, ou suave

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comadroga.Escolha!Duarte suavae tremia.Quis levantar-se enãopôde.Os joelhosbatiamum

contraooutro.Opadrechegou-se-lheaoouvido,edissebaixinho:—Querfugir?—Oh!sim!—exclamou,nãocomoslábios,quepodiaserouvido,mascom

osolhosemquepôstodaavidaquelherestava.—Vêaquelajanela?Estáaberta;embaixoficaumjardim.Atire-sedalisem

medo.—Oh!padre!—dissebaixinhoobacharel.—Nãosoupadre,soutenentedoexército.Nãodiganada.Ajanelaestavaapenascerrada;via-sepelafrestaumanesgadocéu,jámeio

claro.Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, deu umpulo do lugar ondeestavaeatirou-seaDeusmisericórdiaporali abaixo.Nãoeragrandealtura, aqueda foi pequena; ergueu-se omoço rapidamente,mas o homem gordo, queestavanojardim,tomou-lheopasso.

—Queéisso?—perguntouelerindo.Duartenãorespondeu,fechouospunhos,bateucomelesviolentamentenos

peitosdohomemedeitouacorrerpelojardimfora.Ohomemnãocaiu;sentiuapenasumgrandeabalo;e,umavezpassadaaimpressão,seguiunoencalçodofugitivo.Começou então uma carreira vertiginosa.Duarte ia saltando cercas emuros, calcando canteiros, esbarrando árvores, que uma ou outra vez se lheerguiamnafrente.Escorria-lheosuorembica,alteava-se-lheopeito,asforçasiamaperder-sepoucoapouco;tinhaumadasmãosferidas,acamisasalpicadado orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o chambrepegara-se-lheemumacercadeespinhos.Enfim,cansado,ferido,ofegante,caiunos degraus de pedra de uma casa, que havia no meio do último jardim queatravessara.

Olhouparatrás;nãoviuninguém;operseguidornãooacompanharaatéali.Podiavir,entretanto;Duarteergueu-seacusto,subiuosquatrodegrausquelhefaltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena ebaixa.

Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Commercio,pareceu não o ter visto entrar. Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos nohomem.EraomajorLopoAlves.

O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornandoextremamenteexíguas,exclamourepentinamente:

—Anjodocéu,estásvingado!Fimdoúltimoquadro.Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos,

respirouàlarga.

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—Então!Quetallhepareceu?—Ah!excelente!—respondeuobacharel,levantando-se.—Paixõesfortes,não?—Fortíssimas.Quehorassão?—Deramduasagoramesmo.Duarteacompanhouomajoratéaporta,respirouaindaumavez,apalpou-se,

foiatéà janela. Ignora-seoquepensouduranteosprimeirosminutos;mas,aocabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: “Ninfa, doce amiga,fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonhooriginal,substituíste-meotédioporumpesadelo:foiumbomnegócio.Umbomnegócioeumagravelição:provaste-meaindaumavezqueomelhordramaestánoespectadorenãonopalco.”

AÉpoca,14denovembrode1875;Manassés.

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Oalienista

CapítuloI

DecomoItaguaíganhouumacasadeOratesAscrônicasdaviladeItaguaídizemqueemtemposremotosviveraalium

certomédico, o dr.SimãoBacamarte, filhodanobrezada terra e omaior dosmédicosdoBrasil,dePortugaledasEspanhas.EstudaraemCoimbraePádua.Aos34anosregressouaoBrasil,nãopodendoel-reialcançardelequeficasseemCoimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios damonarquia.

—Aciência—disseeleaSuaMajestade—éomeuempregoúnico;Itaguaíéomeuuniverso.

Dito isto,meteu-seemItaguaí,eentregou-sedecorpoealmaaoestudodaciência, alternando as curas comas leituras, e demonstrandoos teoremas comcataplasmas.Aosquarentaanoscasoucomd.EvaristadaCostaeMascarenhas,senhorade25anos,viúvadeumjuizdefora,enãobonitanemsimpática.Umdostiosdele,caçadordepacasperanteoEterno,enãomenosfranco,admirou-sede semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que d.Evarista reuniacondições fisiológicaseanatômicasdeprimeiraordem,digeriacomfacilidade,dormiaregularmente,tinhabompulso,eexcelentevista;estavaassim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessasprendas — únicas dignas da preocupação de um sábio, d. Evarista eramalcompostadefeições,longedelastimá-lo,agradecia-oaDeus,porquantonãocorria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva,miúdaevulgardaconsorte.

D. Evarista mentiu às esperanças do dr. Bacamarte, não lhe deu filhosrobustosnemmofinos.A índolenaturaldaciênciaéa longanimidade;onossomédicoesperoutrêsanos,depoisquatro,depoiscinco.Aocabodessetempofezum estudo profundo damatéria, releu todos os escritores árabes e outros, que

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trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, eacabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustredama,nutridaexclusivamentecomabelacarnedeporcodeItaguaí,nãoatendeuàsadmoestaçõesdoesposo;eàsuaresistência—explicável,masinqualificável—devemosatotalextinçãodadinastiadosBacamartes.

Masaciênciatemoinefáveldomdecurartodasasmágoas;onossomédicomergulhou inteiramentenoestudoenapráticadamedicina.Foi entãoqueumdosrecantosdestalhechamouespecialmenteaatenção—orecantopsíquico,oexame da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma sóautoridadeemsemelhantematéria,mal-explorada,ouquaseinexplorada.SimãoBacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira,podia cobrir-se de “louros imarcescíveis”— expressão usada por elemesmo,mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto,segundoconvémaossabedores.

—Asaúdedaalma—bradouele—éaocupaçãomaisdignadomédico.—Doverdadeiromédico—emendouCrispimSoares, boticáriodavila, e

umdosseusamigosecomensais.AvereançadeItaguaí,entreoutrospecadosdequeéarguidapeloscronistas,

tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso eratrancadoemumaalcova,naprópriacasa,e,nãocurado,masdescurado,atéqueamorteovinhadefraudardobenefíciodavida;osmansosandavamàsoltapelarua. SimãoBacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediulicença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos osloucosde Itaguaí edasdemaisvilas e cidades,medianteumestipêndio,queaCâmaralhedariaquandoafamíliadoenfermoonãopudessefazer.Apropostaexcitouacuriosidadedetodaavila,eencontrougranderesistência,tãocertoéque dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia demeterosloucosnamesmacasa,vivendoemcomum,pareceuemsimesmaumsintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher domédico.

—Olhe,d.Evarista—disse-lheopadreLopes,vigáriodolugar—,vejaseseumaridodáumpasseioaoRiodeJaneiro.Issodeestudarsempre,sempre,nãoébom,viraojuízo.

D.Evaristaficouaterrada,foi tercomomarido,disse-lhe“queestavacomdesejos”,umprincipalmente,odeviraoRiodeJaneiroecomertudooqueaelelhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rarasagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhesorrindoquenãotivessemedo.DalifoiàCâmara,ondeosvereadoresdebatiamaproposta,edefendeu-acomtantaeloquência,queamaioriaresolveuautorizá-

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loaoquepedira,votandoaomesmotempoumimpostodestinadoasubsidiarotratamento,alojamentoemantimentodosdoudospobres.Amatériadoimpostonãofoifácilachá-la;tudoestavatributadoemItaguaí.Depoisdelongosestudos,assentou-seempermitirousodedouspenachosnoscavalosdosenterros.Quemquisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dous tostões àCâmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horasdecorridasentreadofalecimentoeadaúltimabênçãonasepultura.Oescrivãoperdeu-senos cálculos aritméticosdo rendimentopossível danova taxa; e umdos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que serelevasseoescrivãodeumtrabalhoinútil.

—Oscálculosnãosãoprecisos—disseele—,porqueodr.Bacamartenãoarranja nada.Quem é que viu agorameter todos os doudos dentro damesmacasa?

Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vezempossadodalicençacomeçoulogoaconstruiracasa.EranaruaNova,amaisbelaruadeItaguaínaqueletempo,tinhacinquentajanelasporlado,umpátionocentro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista,achounoCorãoqueMaomédeclaraveneráveisosdoudos,pelaconsideraçãodeque Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita eprofunda,eelea fezgravarno frontispíciodacasa;mas,como tinhamedoaovigário,eportabelaaobispo,atribuiuopensamentoaBeneditoviii,merecendocom essa fraude aliás pia, que o padreLopes lhe contasse, ao almoço, a vidadaquelepontíficeeminente.

ACasaVerdefoionomedadoaoasilo,poralusãoàcordasjanelas,quepelaprimeiravezapareciamverdesemItaguaí.Inaugurou-secomimensapompa;detodasasvilasepovoaçõespróximas,eatéremotas,edaprópriacidadedoRiode Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias.Muitosdementesjáestavamrecolhidos;eosparentestiveramocasiãodeverocarinhopaternaleacaridadecristãcomqueeles iamser tratados.D.Evarista,contentíssima com a glória do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se dejoias, flores e sedas.Ela foiumaverdadeira rainhanaquelesdiasmemoráveis;ninguémdeixoudeirvisitá-laduasetrêsvezes,apesardoscostumescaseiroserecatadosdo século, e não só a cortejavamcomoa louvavam;porquanto—eeste fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo—,porquantoviamnelaafelizesposadeumaltoespírito,deumvarãoilustre,e,selhetinhaminveja,eraasantaenobreinvejadosadmiradores.

Aocabodesetediasexpiraramas festaspúblicas; Itaguaí tinha finalmenteumacasadeOrates.

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CapítuloII

TorrentedeloucosTrês dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares,

desvendouoalienistaomistériodoseucoração.— A caridade, sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra

comotempero,comoosaldascousas,queéassimqueinterpretooditodeSãoPauloaosCoríntios:“Seeuconhecerquantosepodesaber,enãotivercaridade,não sou nada.” O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudarprofundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos,descobrirenfimacausadofenômenoeoremédiouniversal.Esteéomistériodomeucoração.Creioquecomistoprestoumbomserviçoàhumanidade.

—Umexcelenteserviço—corrigiuoboticário.—Semesteasilo—continuouoalienista—,poucopoderiafazer;eledá-

me,porém,muitomaiorcampoaosmeusestudos.—Muitomaior—acrescentouooutro.Etinhamrazão.DetodasasvilasearraiaisvizinhosafluíamloucosàCasa

Verde.Eramfuriosos,erammansos,erammonomaníacos,eratodaafamíliadosdeserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era umapovoação.Nãobastaramosprimeiroscubículos;mandou-seanexarumagaleriademais37.OpadreLopesconfessouquenãoimaginaraaexistênciadetantosdoudos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, porexemplo,um rapazbroncoevilão,que todososdias,depoisdoalmoço, faziaregularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, deapóstrofes,comseusrecamosdegregoelatim,esuasborlasdeCícero,ApuleioeTertuliano.Ovigárionãoqueriaacabardecrer.Quê!umrapazqueelevira,trêsmesesantes,jogandopetecanarua!

—Nãodigoquenão—respondia-lheoalienista—;masaverdadeéoqueVossaReverendíssimaestávendo.Istoétodososdias.

—Quantoamim—tornouovigário—,sósepodeexplicarpelaconfusãodas línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente,confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razãonãotrabalhe...

—Essapodeser,comefeito,aexplicaçãodivinadofenômeno—concordou

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o alienista, depois de refletir um instante—, mas não é impossível que hajatambémalgumarazãohumana,epuramentecientífica,edissotrato...

—Váqueseja,eficoansioso.Realmente!Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dous espantavam pelo

curiosododelírio.Oprimeiro,umFalcão,rapazde25anos,supunha-seestrela-d’alva,abriaosbraçosealargavaaspernas,paradar-lhescertafeiçãoderaios,eficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para elerecolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou dopátio,aolongodoscorredores,àprocuradofimdomundo.Eraumdesgraçado,aquemamulherdeixouporseguirumperalvilho.Maldescobriraafuga,armou-sedeumagarrucha,esaiu-lhesnoencalço;achou-osduashorasdepois,aopédeumalagoa,matou-osaamboscomosmaioresrequintesdecrueldade.

Ociúme satisfez-se,masovingado estava louco.E então começou aquelaânsiadeiraofimdomundoàcatadosfugitivos.

Amania das grandezas tinha exemplares notáveis.Omais notável era umpobre-diabo, filhodeumalgibebe, quenarrava àsparedes (porquenãoolhavanuncaparanenhumapessoa)todaasuagenealogia,queeraesta:

—Deusengendrouumovo,oovoengendrouaespada,aespadaengendrouDavi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duqueengendrouomarquês,omarquêsengendrouoconde,quesoueu.

Dava umapancada na testa, um estalo comos dedos, e repetia cinco, seisvezesseguidas:

—Deusengendrouumovo,oovo,etc.Outrodamesmaespécieeraumescrivão,quesevendiapormordomodorei;

outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda agente,davatrezentascabeçasaum,seiscentasaoutro,mileduzentasaoutro,enãoacabavamais.Nãofalodoscasosdemonomaniareligiosa;apenascitareiumsujeitoque,chamando-seJoãodeDeus,diziaagoraserodeusJoão,eprometiaoreino dos céus a quemo adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depoisdesse,olicenciadoGarcia,quenãodizianada,porqueimaginavaquenodiaemquechegasseaproferirumasópalavra,todasasestrelassedespegariamdocéueabrasariamaterra;taleraopoderquereceberadeDeus.

Assimo escrevia elenopapelqueo alienista lhemandavadar,menosporcaridadedoqueporinteressecientífico.

Que, na verdade, a paciência do alienista era aindamais extraordinária doque todas asmanias hospedadas naCasaVerde; nadamenos que assombrosa.Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e,aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também doussobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu,

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aprovadopelaCâmara,dadistribuiçãodacomidaedaroupa,eassimtambémdaescrita,etc.Eraomelhorquepodiafazer,parasomentecuidardoseuofício.—ACasaVerde,disseeleaovigário,éagoraumaespéciedemundo,emqueháogovernotemporaleogovernoespiritual.EopadreLopesriadestepiotrocado—eacrescentava—comoúnicofimdedizertambémumachalaça:—Deixeestar,deixeestar,queheidemandá-lodenunciaraopapa.

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vastaclassificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classesprincipais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias,delírios,alucinaçõesdiversas.Istofeito,começouumestudoaturadoecontínuo;analisavaoshábitosdecadalouco,ashorasdeacesso,asaversões,assimpatias,aspalavras,osgestos, as tendências; inquiriadavidados enfermos,profissão,costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e damocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa,enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava umaobservaçãonova,umadescobertainteressante,umfenômenoextraordinário.Aomesmo tempo estudava omelhor regímen, as substânciasmedicamentosas, osmeioscurativoseosmeiospaliativos,não sóosquevinhamnos seusamadosárabes, como os que elemesmo descobria, à força de sagacidade e paciência.Ora, todoesse trabalho levava-lheomelhoreomaisdo tempo.Maldormiaemalcomia;e,aindacomendo,eracomose trabalhasse,porqueora interrogavaum texto antigo, ora ruminava uma questão, e iamuitas vezes de um cabo aoutrodojantarsemdizerumasópalavraad.Evarista.

CapítuloIII

Deussabeoquefaz!A ilustre dama, no fim de dous meses, achou-se a mais desgraçada das

mulheres; caiu emprofundamelancolia, ficou amarela,magra, comia pouco esuspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche,porquerespeitavaneleoseumaridoesenhor,maspadeciacalada,edefinhavaaolhosvistos.Umdia,aojantar,comolheperguntasseomaridooqueéquetinha,respondeutristementequenada;depoisatreveu-seumpouco,efoiaopontodedizerqueseconsideravatãoviúvacomodantes.Eacrescentou:

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—Quemdirianuncaquemeiadúziadelunáticos...Nãoacaboua frase;ouantes, acabou-a levantandoosolhosao tecto—os

olhos, que eram a sua feiçãomais insinuante—, negros, grandes, lavados deuma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo queempregaranodiaemqueSimãoBacamarteapediuemcasamento.Nãodizemascrônicassed.Evaristabrandiuaquelaarmacomoperversointuitodedegolardeuma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjectura éverossímil.Em todocaso,oalienistanão lheatribuiuoutra intenção.Enãoseirritou o grande homem, não ficou sequer consternado.Ometal de seus olhosnãodeixoude seromesmometal, duro, liso, eterno,nemamenorpregaveioquebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez umsorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra maciacomooóleodoCântico:

—ConsintoquevásdarumpasseioaoRiodeJaneiro.D.Evaristasentiufaltar-lheochãodebaixodospés.Nuncadosnuncasvirao

Riode Janeiro, quepostonão fosse sequer umapálida sombradoquehoje é,todavia era algumacousamaisdoque Itaguaí.VeroRiode Janeiro, para ela,equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora, principalmente, que o maridoassentaradeveznaquelapovoação interior, agoraéqueelaperderaasúltimasesperançasderespirarosaresdanossaboacidade;ejustamenteagoraéqueeleaconvidavaarealizarosseusdesejosdemeninaemoça.D.Evaristanãopôdedissimularogostodesemelhanteproposta.SimãoBacamartepegou-lhenamãoe sorriu— um sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em queparecia traduzir-se este pensamento: “Não há remédio certo para as dores daalma;estasenhoradefinha,porquelheparecequeanãoamo;dou-lheoRiodeJaneiro, e consola-se.” E porque era homem estudioso tomou nota daobservação.

Masumdardoatravessouocoraçãoded.Evarista.Conteve-se, entretanto;limitou-seadizeraomarido,que,seelenãoia,elanãoiriatambém,porquenãohaviademeter-sesozinhapelasestradas.

—Irácomsuatia—redarguiuoalienista.Note-sequed.Evaristatinhapensadonissomesmo;masnãoquiserapedi-lo

nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas aomarido, em segundo lugar porque eramelhor,maismetódico e racional que apropostaviessedele.

—Oh!masodinheiroqueseráprecisogastar!—suspiroud.Evaristasemconvicção.

—Queimporta?Temosganhomuito—disseomarido.—Aindaontemoescriturárioprestou-mecontas.Queresver?

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Elevou-aaos livros.D.Evarista ficoudeslumbrada.Eraumavia lácteadealgarismos.Edepoislevou-aàsarcas,ondeestavaodinheiro.

Deus!erammontesdeouro,erammilcruzadossobremilcruzados,dobrõessobredobrões;eraaopulência.

Enquantoelacomiaoourocomosseusolhosnegros,oalienistafitava-a,edizia-lheaoouvidocomamaispérfidadasalusões:

—Quemdiriaquemeiadúziadelunáticos...D.Evaristacompreendeu,sorriuerespondeucommuitaresignação:—Deussabeoquefaz!Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do

boticário,umsobrinhodeste,umpadrequeoalienistaconheceraemLisboa,equedeaventuraachava-seemItaguaí,cincoouseispajens,quatromucamas,talfoiacomitivaqueapopulaçãoviudalisairemcertamanhãdomêsdemaio.Asdespedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto aslágrimasded.Evaristafossemabundantesesinceras,nãochegaramaabalá-lo.Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e sealgumacousaopreocupavanaquelaocasião,seeledeixavacorrerpelamultidãoum olhar inquieto e policial, não era outra cousamais do que a ideia de quealgumdementepodiaachar-sealimisturadocomagentedejuízo.

—Adeus!—soluçaramenfimasdamaseoboticário.Epartiuacomitiva.CrispimSoares,aotornaracasa,traziaosolhosentreas

duasorelhasdabestaruanaemquevinhamontado;SimãoBacamartealongavaos seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade doregresso.Imagemvivazdogênioedovulgo!Umfitaopresente,comtodasassuaslágrimasesaudades,outrodevassaofuturocomtodasassuasauroras.

CapítuloIV

UmateorianovaAo passo que d. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro,

SimãoBacamarteestudavapor todosos ladosumacerta ideiaarrojadaenova,própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava doscuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa,conversando as gentes, sobre trintamil assuntos, e virgulando as falas de umolharquemetiamedoaosmaisheroicos.

Umdiademanhã—erampassadastrêssemanas—,estandoCrispimSoares

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ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista omandavachamar.

—Trata-sedenegócio importante, segundo elemedisse—acrescentouoportador.

Crispimempalideceu.Quenegócioimportantepodiaser,senãoalgumatristenotícia da comitiva, e especialmente damulher?Porque este tópicodeve ficarclaramentedefinido,vistoinsistiremneleoscronistas:Crispimamavaamulher,e,desdetrintaanos,nuncaestiveramseparadosumsódia.Assimseexplicamosmonólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: —“Anda,bemfeito,quemtemandouconsentirnaviagemdeCesária?Bajulador,torpebajulador!Sópara adular aodr.Bacamarte.Pois agora aguenta-te; anda,aguenta-te,almadelacaio,fracalhão,vil,miserável.Dizesamématudo,nãoé?aítensolucro,biltre!”—Emuitosoutrosnomesfeios,queumhomemnãodevedizeraosoutros,quantomaisasimesmo.Daquiaimaginaroefeitodorecadoéumnada.TãodepressaeleorecebeucomoabriumãodasdrogasevoouàCasaVerde.

SimãoBacamarterecebeu-ocomaalegriaprópriadeumsábio,umaalegriaabotoadadecircunspecçãoatéopescoço.

—Estoumuitocontente—disseele.—Notíciasdonossopovo?—perguntouoboticáriocomavoztrêmula.Oalienistafezumgestomagnífico,erespondeu:—Trata-sedecousamaisalta, trata-sedeumaexperiênciacientífica.Digo

experiência, porque nãome atrevo a assegurar desde já aminha ideia; nem aciência é outra cousa, sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se,pois,deumaexperiência,masumaexperiênciaquevaimudarafacedaterra.Aloucura,objetodosmeusestudos,eraatéagoraumailhaperdidanooceanodarazão;começoasuspeitarqueéumcontinente.

Disse isto,ecalou-se,para ruminaropasmodoboticário.Depoisexplicoucompridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vastasuperfíciedecérebros;edesenvolveu istocomgrandecópiade raciocínios,detextos,deexemplos.Osexemplosachou-osnahistóriaeemItaguaí;mas,comoumraroespíritoqueera,reconheceuoperigodecitartodososcasosdeItaguaí,erefugiou-senahistória.Assim,apontoucomespecialidadealgunspersonagenscélebres,Sócrates,quetinhaumdemôniofamiliar,Pascal,queviaumabismoàesquerda,Maomé,Caracala,Domiciano,Calígula,etc.,umaenfiadadecasosepessoas, emquedemisturavinhamentidadesodiosas, e entidades ridículas.Eporqueoboticárioseadmirassedeumatalpromiscuidade,oalienistadisse-lhequeeratudoamesmacousa,eatéacrescentousentenciosamente:

—Aferocidade,sr.Soares,éogrotescoasério.

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— Gracioso, muito gracioso! — exclamou Crispim Soares levantando asmãosaocéu.

Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticárioextravagante;mas amodéstia, principal adornode seu espírito, não lhe sofreuconfessar outra cousa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime everdadeira, e acrescentou que era “caso dematraca”. Esta expressão não temequivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demaisvilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dousmodosdedivulgarumanotícia:oupormeiodecartazesmanuscritosepregadosnaportadaCâmaraedamatriz—oupormeiodematraca.

Eisemqueconsistiaestesegundouso.Contratava-seumhomem,porumoumaisdias,paraandarasruasdopovoado,comumamatracanamão.

Dequandoemquandotocavaamatraca,reunia-segente,eeleanunciavaoque lhe incumbiam — um remédio para sezões, umas terras lavradias, umsoneto,umdonativoeclesiástico,amelhortesouradavila,omaisbelodiscursodo ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas eraconservadopelagrandeenergiadedivulgaçãoquepossuía.Porexemplo,umdosvereadores—aquelejustamentequemaisseopuseraàcriaçãodaCasaVerde—desfrutavaareputaçãodeperfeitoeducadordecobrasemacacos,ealiásnuncadomesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar amatracatodososmeses.Edizemascrônicasquealgumaspessoasafirmavamtervisto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa,massódevidaàabsolutaconfiançanosistema.Verdade,verdade;nemtodasasinstituiçõesdoantigoregímenmereciamodesprezodonossoséculo.

—Hámelhor do que anunciar aminha ideia, é praticá-la— respondeu oalienistaàinsinuaçãodoboticário.

Eoboticário,nãodivergindosensivelmentedestemododever,disse-lhequesim,queeramelhorcomeçarpelaexecução.

—Semprehaverátempodeadaràmatraca—,concluiuele.SimãoBacamarterefletiuaindauminstante,edisse:—Supondooespíritohumanoumavastaconcha,omeu fim, sr.Soares, é

ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemosdefinitivamenteoslimitesdarazãoedaloucura.Arazãoéoperfeitoequilíbriodetodasasfaculdades;foradaíinsânia,insânia,esóinsânia.

OvigárioLopes,aquemeleconfiouanova teoria,declarou lisamentequenãochegavaaentendê-la,queeraumaobraabsurda,e,senãoeraabsurda,eradetalmodocolossalquenãomereciaprincípiodeexecução.

—Comadefiniçãoatual,queéadetodosostempos—acrescentou—,aloucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e

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ondeaoutracomeça.Paraquetransporacerca?Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma

intençãode riso,emqueodesdémvinhacasadoàcomiseração;masnenhumapalavrasaiudesuasegrégiasentranhas.

Aciênciacontentou-seemestenderamãoàteologia—comtalsegurança,que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e ouniversoficavamàbeiradeumarevolução.

CapítuloV

OterrorQuatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de

queumcertoCostaforarecolhidoàCasaVerde.—Impossível!—Qualimpossível!foirecolhidohojedemanhã.—Mas,naverdade,elenãomerecia...Aindaemcima!depoisdetantoque

elefez...CostaeraumdoscidadãosmaisestimadosdeItaguaí.Herdaraquatrocentos

mil cruzados em boamoeda de el-rei d. JoãoV, dinheiro cuja renda bastava,segundolhedeclarouotionotestamento,paraviver“atéofimdomundo”.Tãodepressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, semusura,milcruzadosaum,dousmilaoutro,trezentosaeste,oitocentosàquele,atal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se amiséria viesse dechofre,opasmodeItaguaíseriaenorme;masveiodevagar;elefoipassandodaopulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, dapobreza à miséria, gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas quelevavamochapéuaochão,logoqueeleassomavanofimdarua,agorabatiam-lhenoombro,comintimidade,davam-lhepiparotesnonariz,diziam-lhepulhas.EoCostasemprelhano,risonho.Nemselhedavadeverqueosmenoscorteseseram justamente os que tinhamainda a dívida em aberto; ao contrário, parecequeosagasalhavacommaiorprazer,emaissublimeresignação.Umdia,comoumdesses incuráveisdevedores lhe atirasseumachalaçagrossa, e ele se rissedela,observouumdesafeiçoado,comcertaperfídia:“Vocêsuportaessesujeito

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para ver se ele lhe paga.” Costa não se deteve umminuto, foi ao devedor eperdoou-lheadívida.“Nãoadmira,retorquiuooutro;oCostaabriumãodeumaestrela,queestánocéu.”Costaeraperspicaz, entendeuqueelenegava todoomerecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinhammeter-lhenaalgibeira.Eratambémpundonorosoeinventivo;duashorasdepoisachou ummeio de provar que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumasdobras,emandou-asdeempréstimoaodevedor.

“Agoraesperoque...”,pensouelesemconcluirafrase.EsseúltimorasgodoCostapersuadiuacréduloseincrédulos;ninguémmais

pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. Asnecessidadesmaisacanhadassaíramàrua,vierambater-lheàporta,comosseuschinelos velhos, com as suas capas remendadas.Umverme, entretanto, roía aalmadoCosta:eraoconceitododesafeto.Masissomesmoacabou;trêsmesesdepoisveioestepedir-lheuns120cruzadoscompromessaderestituir-lhosdaíadousdias;eraoresíduodagrandeherança,maseratambémumanobredesforra:Costaemprestouodinheirologo,logo,esemjuros.Infelizmentenãotevetempodeserpago;cincomesesdepoiserarecolhidoàCasaVerde.

Imagina-se a consternaçãode Itaguaí, quando soubedocaso.Não se falouem outra cousa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que demadrugada;econtavam-seosacessos,queeramfuriosos,sombrios,terríveis—oumansos, e até engraçados, conformeasversões.Muitagente correu àCasaVerde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado, falando commuitaclareza,eperguntandoporquemotivoo tinham levadoparaali.Algunsforam ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima ecompaixão,mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podiadeixar na ruaummentecapto.Aúltimapessoaque intercedeupor ele (porquedepoisdoquevoucontarninguémmaisseatreveuaprocuraroterrívelmédico)foiumapobresenhora,primadoCosta.Oalienistadisse-lheconfidencialmentequeessedignohomemnãoestavanoperfeitoequilíbriodasfaculdadesmentais,àvistadomodocomodissiparaoscabedaisque...

—Isso,não!issonão!—interrompeuaboasenhoracomenergia.—Seelegastoutãodepressaoquerecebeu,aculpanãoédele.

—Não?—Não,senhor.Eu lhedigocomoonegóciosepassou.Odefuntomeutio

nãoeramauhomem;masquandoestavafuriosoeracapazdenemtirarochapéuao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes demorrer, descobriu que umescravolheroubaraumboi;imaginecomoficou.Acaraeraumpimentão;todoeletremia,abocaescumava;lembra-mecomosefossehoje.Entãoumhomemfeio, cabeludo, emmangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água.Meu tio

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(Deus lhe fale n’alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. Ohomemolhouparaele,abriuamãoemardeameaça,erogouestapraga: “Todooseudinheironãohádedurarmaisdeseteanoseumdia,tãocertocomoistoserosino-salamão!”Emostrouosino-salamãoimpressonobraço.Foiisto,meusenhor;foiestapragadaquelemaldito.

Bacamarteespetaranapobresenhoraumpardeolhosagudoscomopunhais.Quandoelaacabou,estendeu-lheamãopolidamente,comoseofizesseàprópriaesposa do vice-rei e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; elelevou-aàCasaVerdeeencerrou-anagaleriadosalucinados.

A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma dapopulação.Ninguémqueria acabarde crer que, semmotivo, sem inimizade, oalienista trancassenaCasaVerdeumasenhoraperfeitamenteajuizada,quenãotinhaoutrocrimesenãoodeintercederporuminfeliz.Comentava-seocasonasesquinas,nosbarbeiros;edificou-seumromance,umasfinezasnamoradasqueoalienistaoutroradirigiraàprimadoCosta,a indignaçãodoCostaeodesprezodaprima.Edaíavingança.Eraclaro.Masaausteridadedoalienista,avidadeestudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudoisso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou amurmurarquesabiadeoutrascousas,nãoasdizia,pornãotercertezaplena,massabia,quasequepodiajurar.

—Você,queéíntimodele,nãonospodiadizeroquehá,oquehouve,quemotivo...

CrispimSoaresderretia-setodo.Esseinterrogardagenteinquietaecuriosa,dosamigosatônitos,eraparaeleumaconsagraçãopública.Nãohaviaduvidar;toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, oboticário,ocolaboradordograndehomemedasgrandescousas;daíacorridaàbotica.Tudoissodiziaocarãojucundoeorisodiscretodoboticário,orisoeosilêncio, porque ele não respondia nada; um, dous, trêsmonossílabos, quandomuito, soltos, secos, encapados no fiel sorriso, constante e miúdo, cheio demistérioscientíficos,queelenãopodia,semdesdouronemperigo,desvendaranenhumapessoahumana.

“Hácousa”,pensavamosmaisdesconfiados.Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha

negóciospessoais.Acabavadeconstruirumacasa suntuosa.Sóacasabastavaparadeterechamartodaagente;mashaviamais—amobília,queelemandaravirdaHungria edaHolanda, segundocontava, eque sepodiaverdo ladodefora,porqueasjanelasviviamabertas—,eojardim,queeraumaobra-primadearteedegosto.Essehomem,queenriqueceranofabricodealbardas,tinhatidosempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não

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deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na contemplação da casanova,aprimeiradeItaguaí,maisgrandiosadoqueaCasaVerde,maisnobredoque a da Câmara. Entre a gente ilustre da povoação havia choro e ranger dedentes,quandosepensava,ousefalava,ouse louvavaacasadoalbardeiro —umsimplesalbardeiro,Deusdocéu!

—Láestáeleembasbacado—diziamostranseuntes,demanhã.De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do

jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, até quevinhamchamá-lo para almoçar.Os vizinhos, embora o cumprimentassemcomcertorespeito,riam-seportrásdele,queeraumgosto.UmdesseschegouadizerqueoMateusseriamuitomaiseconômico,eestariariquíssimo,sefabricasseasalbardas para simesmo; epigrama ininteligível,mas que fazia rir às bandeirasdespregadas.

—AgoraláestáoMateusasercontemplado—diziamàtarde.Arazãodesteoutroditoeraque,detarde,quandoasfamíliassaíamapasseio

(jantavamcedo)usavaoMateuspostar-seàjanela,bemnocentro,vistoso,sobreumfundoescuro,trajadodebranco,atitudesenhoril,eassimficavaduasetrêshorasatéqueanoiteciade todo.Podecrer-sequea intençãodoMateuseraseradmiradoeinvejado,postoqueelenãoaconfessasseanenhumapessoa,nemaoboticário,nemaopadreLopes,seusgrandesamigos.Eentretantonãofoioutraaalegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvezpadecessedoamordaspedras,maniaqueeleBacamartedescobriraeestudavadesdealgumtempo.Aquilodecontemplaracasa...

—Não,senhor—acudiuvivamenteCrispimSoares.—Não?—Há de perdoar-me, mas talvez não saiba que ele de manhã examina a

obra,nãoaadmira;detarde,sãoosoutrosqueoadmiramaeleeàobra.—Econtouousodoalbardeiro,todasastardes,desdecedoatéocairdanoite.

Umavolúpia científica alumiouos olhos deSimãoBacamarte.Ou ele nãoconhecia todos os costumes do albardeiro, ou nadamais quis, interrogando oCrispim,doqueconfirmaralgumanotíciaincertaoususpeitavaga.Aexplicaçãosatisfê-lo;mascomotinhaasalegriasprópriasdeumsábio,concentradas,nadaviuoboticárioquefizessesuspeitarumaintençãosinistra.Aocontrário,eradetarde,eoalienistapediu-lheobraçopara iremapasseio.Deus!eraaprimeiravez que SimãoBacamarte dava ao seu privado tamanha honra; Crispim ficoutrêmulo, atarantado, disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou trêspessoas de fora, Crispim mandou-as mentalmente a todos os diabos; não sóatrasavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse algumasdelas,paraacompanhá-lo,eodispensasseaele.Queimpaciência!queaflição!

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Enfim, saíram.O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o àjanela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando asatitudes,aexpressãodorosto.OpobreMateusapenasnotouqueeraobjetodacuriosidadeouadmiraçãodoprimeirovultodeItaguaí, redobroudeexpressão,deuoutrorelevoàsatitudes...Triste!triste!nãofezmaisdoquecondenar-se;nodiaseguinte,foirecolhidoàCasaVerde.

—ACasaVerdeéumcárcereprivado—disseummédicosemclínica.Nuncaumaopiniãopegouegrassoutãorapidamente.Cárcereprivado:eiso

queserepetiadenorteasuledelesteaoestedeItaguaí—amedo,éverdade,porqueduranteasemanaqueseseguiuàcapturadopobreMateus,vinteetantaspessoas—duasou trêsde consideração—foram recolhidas àCasaVerde.Oalienistadiziaquesóeramadmitidososcasospatológicos,maspoucagentelhedava crédito.Sucediam-se asversõespopulares.Vingança, cobiçadedinheiro,castigodeDeus,monomaniadoprópriomédico,planosecretodoRiodeJaneirocomofimdedestruiremItaguaíqualquergérmendeprosperidadequeviesseabrotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outrasexplicações, que não explicavamnada, tal era o produto diário da imaginaçãopública.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher doCrispim Soares, e toda a mais comitiva — ou quase toda — que algumassemanas antes partira de Itaguaí. O alienista foi recebê-la, com o boticário, opadreLopes,osvereadoreseváriosoutrosmagistrados.Omomentoemqued.Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas dotempo comoumdosmais sublimes da históriamoral dos homens, e isto pelocontraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evaristasoltouumgrito,balbuciouumapalavra,eatirou-seaoconsorte,deumgestoquenãosepodemelhordefinirdoquecomparando-oaumamisturadeonçaerola.NãoassimoilustreBacamarte;friocomoumdiagnóstico,semdesengonçarporum instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona, que caiu neles, edesmaiou. Curto incidente; ao cabo de dous minutos, d. Evarista recebia oscumprimentosdosamigos,eopréstitopunha-seemmarcha.

D.Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela paraminorar oflagelodaCasaVerde.Daíasaclamaçõespúblicas,aimensagentequeatulhavaasruas,asflâmulas,asfloresedamascosàsjanelas.ComobraçoapoiadonodopadreLopes—porque o eminenteBacamarte confiara amulher ao vigário, eacompanhava-osapassomeditativo—,d.Evaristavoltavaacabeçaaumladoeoutro,curiosa,inquieta,petulante.OvigárioindagavadoRiodeJaneiro,queelenão vira desde o vice-reinado anterior; e d. Evarista respondia, entusiasmada,queeraacousamaisbelaquepodiahavernomundo.OPasseioPúblicoestava

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acabado, um paraíso, onde ela foramuitas vezes, e a rua das BelasNoites, ochafarizdasMarrecas...Ah!ochafarizdasMarrecas!Erammesmomarrecas—feitas demetal e despejando água pela boca fora.Uma cousa galantíssima.Ovigáriodiziaquesim,queoRiodeJaneirodeviaestaragoramuitomaisbonito.Sejáoeranoutro tempo!Nãoadmira,maiordoqueItaguaí,edemaisamaissede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belascasas,acasadoMateus,aCasaVerde...

— A propósito de Casa Verde — disse o padre Lopes escorregandohabilmenteparaoassuntodaocasião—,asenhoravemachá-lamuitocheiadegente.

—Sim?—Éverdade.LáestáoMateus...—Oalbardeiro?—Oalbardeiro;estáoCosta,aprimadoCosta,eFulano,eSicrano,e...—Tudoissodoudo?—Ouquasedoudo—obtemperouopadre.—Masentão?Ovigárioderreouoscantosdaboca,àmaneiradequemnãosabenada,ou

nãoquerdizer tudo;respostavaga,quesenãopoderepetiraoutrapessoa,porfaltadetexto.D.Evaristaachourealmenteextraordinárioquetodaaquelagenteensandecesse; um ou outro, vá;mas todos? Entretanto, custava-lhe duvidar; omaridoeraumsábio,nãorecolherianinguémàCasaVerdesemprovaevidentedeloucura.

—Semdúvida...semdúvida...—iapontuandoovigário.Três horas depois, cerca de cinquenta convivas sentavam-se em volta da

mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi oassunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas,amplificações,apólogos.ElaeraaesposadonovoHipócrates,amusadaciência,anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nosolhosduas estrelas,segundo a versãomodesta deCrispimSoares, e dous sóis, no conceito de umvereador.O alienista ouvia essas cousas um tanto enfastiado,mas semvisívelimpaciência.Quandomuito dizia ao ouvido damulher que a retórica permitiataisarrojossemsignificação.D.Evaristafaziaesforçosparaaderiraestaopiniãodomarido;mas,aindadescontando trêsquartaspartesdas louvaminhas, ficavamuito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, MartimBrito, rapazde25anos,pintalegreteacabado, curtidodenamoroseaventuras,declamouumdiscurso emqueonascimentoded.Evarista era explicadopelomais singular dos reptos. “Deus— disse ele— depois de dar ao universo ohomem e a mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador

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arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quisvenceraDeus,ecrioud.Evarista.”

D.Evaristabaixouosolhoscomexemplarmodéstia.Duassenhoras,achandoacortesaniceexcessivaeaudaciosa,interrogaramosolhosdodonodacasa;e,naverdade,ogestodoalienistapareceu-lhesnubladodesuspeitas,deameaças,e,provavelmente,desangue.Oatrevimentofoigrande,pensaramasduasdamas.EumaeoutrapediamaDeusqueremovessequalquerepisódiotrágico—ouqueoadiasse,aomenos,paraodia seguinte.Sim,queoadiasse.Umadelas,amaispiedosa,chegouaadmitir,consigomesma,qued.Evaristanãomerecianenhumadesconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna.Verdadeéque,setodososgostosfossemiguais,oqueseriadoamarelo?Estaideiafê-latremeroutravez,emboramenos;menos,porqueoalienistasorriaagorapara oMartimBrito, e, levantados todos, foi ter comele e falou-lhedodiscurso. Não lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgosmagníficos.Seriadelemesmoaideiarelativaaonascimentoded.Evarista,outê-la-iaencontradoemalgumautorque?...Nãosenhor;eradelemesmo;achou-anaquelaocasiãoeparecera-lheadequadaaumarroubooratório.De resto, suasideiaseramantesarrojadasdoque ternasou jocosas.Davaparaoépico.Umavez, por exemplo, compôs uma ode à queda domarquês de Pombal, em quedizia que esse ministro era o “dragão aspérrimo do Nada”, esmagado pelas“garras vingadoras doTodo”; e assim outras,mais oumenos fora do comum;gostavadasideiassublimeseraras,dasimagensgrandesenobres...

“Pobremoço!”, pensou o alienista. E continuou consigo: “Trata-se de umcasodelesãocerebral;fenômenosemgravidade,masdignodeestudo...”

D.Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que oMartimBritoforaalojadonaCasaVerde.Ummoçoquetinhaideiastãobonitas!Asduassenhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra cousa;realmente,adeclaraçãodomoçoforaaudaciosademais.

Ciúmes?Mascomoexplicarque, logoemseguida, fossemrecolhidos JoséBorges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das Cambraias, folgazãoemérito,oescrivãoFabrício,eaindaoutros?Oterroracentuou-se.Nãosesabiajáquemestavasão,nemquemestavadoudo.Asmulheres,quandoosmaridossaíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos osmaridos eramvalorosos, alguns não andavam fora semumou dous capangas.Positivamenteoterror.Quempodiaemigrava.Umdessesfugitivoschegouaserpreso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável,conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar ochapéuaochão;narua,acontecia-lhecorrerumadistânciadedezavintebraçasparairapertaramãoaumhomemgrave,aumasenhora,àsvezesaummenino,

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como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. Deresto,deviaasboasrelaçõesdasociedadenãosóaosdotespessoais,queeramraros,comoànobretenacidadecomquenuncadesanimavadiantedeuma,duas,quatro,seisrecusas,carasfeias,etc.Oqueaconteciaeraque,umavezentradonumacasa,nãoadeixavamais,nemosdacasaodeixavamaele,tãograciosoera o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado, tevemedoquandolhedisseramumdiaqueoalienistaotraziadeolho;namadrugadaseguintefugiudavila,masfoilogoapanhadoeconduzidoàCasaVerde.

—Devemosacabarcomisto!—Nãopodecontinuar!—Abaixoatirania!—Déspota!violento!Golias!Nãoeramgritosnarua,eramsuspirosemcasa,masnãotardavaahorados

gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A ideia de uma petição aogoverno para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado andou poralgumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja, comgrandes gestos de indignação.Note-se—e essa é umadas laudasmais purasdesta sombria história —, note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verdecomeçaraapovoar-setãoextraordinariamente,viucrescerem-lheoslucrospelaaplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesseparticular,diziaele,devecederaointeressepúblico.Eacrescentava:—éprecisoderrubaro tirano!Note-semaisqueelesoltouessegrito justamentenodiaemqueSimãoBacamarte fizera recolheràCasaVerdeumhomemque traziacomeleumademanda,oCoelho.

—NãomedirãoemqueéqueoCoelhoédoudo?—bradouoPorfírio.Eninguémlherespondia; todosrepetiamqueeraumhomemperfeitamente

ajuizado.Amesmademandaqueeletraziacomobarbeiro,acercadeunschãosda vila, era filha da obscuridade de um alvará, e não da cobiça ou ódio. Umexcelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha eram algunssujeitosque,dizendo-se taciturnos,oualegandoandarcompressa,maloviamdelongedobravamasesquinas,entravamnaslojas,etc.Naverdade,eleamavaaboapalestra,apalestracomprida,gostadaasorvoslargos,eassiméquenuncaestavasó,preferindoosquesabiamdizerduaspalavras,masnãodesdenhandoosoutros.OpadreLopes,quecultivavaoDante,eerainimigodoCoelho,nuncaoviadesligar-sedeumapessoaquenãodeclamasseeemendasseestetrecho:

LaboccasolevòdalfieropastoQuel“seccatore”...

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mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era umaoraçãoemlatim.

CapítuloVI

ArebeliãoCerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma

representaçãoàCâmara.ACâmararecusouaceitá-la,declarandoqueaCasaVerdeeraumainstituição

pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa,menosaindapormovimentosderua.

— Voltai ao trabalho— concluiu o presidente—, é o conselho que vosdamos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dalilevantarabandeirada rebelião,edestruiraCasaVerde;que Itaguaínãopodiacontinuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; quemuitas pessoas estimáveis, algumas distintas, outras humildes mas dignas deapreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico doalienistacomplicava-sedoespíritodeganância,vistoqueosloucos,ousupostostais,nãoeramtratadosdegraça:asfamílias,eemfaltadelasaCâmara,pagavamaoalienista...

—Éfalso—interrompeuopresidente.—Falso?—Hácercadeduassemanasrecebemosumofíciodoilustremédico,emque

nosdeclaraque,tratandodefazerexperiênciasdealtovalorpsicológico,desistedo estipêndio votado pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dosenfermos.

A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dosrebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interessealheioàciênciaoinstigava;eparademonstraroerroeraprecisoalgumacousamaisdoquearruaçaseclamores.Istodisseopresidente,comaplausodetodaaCâmara.Obarbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou queestavainvestidodeummandatopúblico,enãorestituiriaapazaItaguaíantesde

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verporterraaCasaVerde—“essaBastilhadarazãohumana”—,expressãoqueouviraaumpoetalocal,equeelerepetiucommuitaênfase.Disse,eaumsinaltodossaíramcomele.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, àrebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal, um dos vereadores, queapoiaraopresidente, ouvindo agora adenominaçãodadapelobarbeiro àCasaVerde—“Bastilhada razãohumana”—,achou-a tãoelegante,quemudoudeparecer.Dissequeentendiadebomavisodecretaralgumamedidaquereduzissea Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termosenérgicososeupasmo,overeadorfezestareflexão:

— Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quemsupomosjuízosãoreclusospordementes,quemnosafirmaqueoalienadonãoéoalienista?

Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra, e falouaindapor algum tempocomprudência,mascom firmeza.Oscolegas estavamatônitos;opresidentepediu-lheque,aomenos,desseoexemplodaordemedorespeitoà lei,nãoaventasseassuasideiasnarua,paranãodarcorpoealmaàrebelião,queerapororaumturbilhãodeátomosdispersos.Estafiguracorrigiuumpoucooefeitodaoutra:SebastiãoFreitasprometeususpenderqualqueração,reservando-seodireitodepedirpelosmeioslegaisareduçãodaCasaVerde.Erepetiaconsigo,namorado:“Bastilhadarazãohumana!”

Entretanto,aarruaçacrescia.Jánãoeramtrinta,mas trezentaspessoasqueacompanhavamobarbeiro, cuja alcunha familiardeve sermencionada,porqueela deu o nome à revolta; chamavam-lhe oCanjica— e o movimento ficoucélebrecomonomederevoltadosCanjicas.Aaçãopodiaserrestrita—vistoquemuitagente,oupormedo,ouporhábitosdeeducação,nãodesciaàrua;maso sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavampara a Casa Verde — dada a diferença de Paris a Itaguaí — podiam sercomparadosaosquetomaramaBastilha.

D.Evaristatevenotíciadarebeliãoantesqueelachegasse;veiodar-lhaumadesuascrias.Elaprovavanessaocasiãoumvestidodeseda—umdos37quetrouxeradoRiodeJaneiro—enãoquiscrer.

— Há de ser alguma patuscada — dizia ela mudando a posição de umalfinete.—Benedita,vêseabarraestáboa.

—Está,sinhá—respondiaamucamadecócorasnochão—,estáboa.Sinháviraumbocadinho.Assim.Estámuitoboa.

— Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o dr.Bacamarte!otirano!—diziaomolequeassustado.

—Calaaboca, tolo!Benedita,olhaaído ladoesquerdo;nãoparecequea

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costuraestáumpoucoenviesada?Ariscaazulnãosegueatéabaixo;estámuitofeioassim;éprecisodescoserparaficarigualzinhoe...

—Morraodr.Bacamarte!morraotirano!—uivaramforatrezentasvozes.EraarebeliãoquedesembocavanaruaNova.

D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu umpasso,nãofezumgesto;oterrorpetrificou-a.Amucamacorreuinstintivamenteparaaportadofundo.Quantoaomoleque,aquemd.Evaristanãoderacrédito,teve um instante de triunfo, um certo movimento súbito, imperceptível,entranhado,desatisfaçãomoral,aoverquearealidadevinhajurarporele.

—Morraoalienista!—bradavamasvozesmaisperto.D.Evarista,senãoresistiafacilmenteàscomoçõesdeprazer,sabiaentestar

comosmomentosdeperigo.Nãodesmaiou;correuàsalainteriorondeomaridoestudava.Quandoelaalientrou,precipitada,oilustremédicoescrutavaumtextodeAverróis;osolhosdele,empanadospelacogitação,subiamdolivroaotectoebaixavam do tecto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para osprofundos trabalhosmentais.D.Evaristachamoupelomaridoduasvezes,semqueelelhedesseatenção;àterceira,ouviueperguntou-lheoquetinha,seestavadoente.

—Vocênãoouveestesgritos?—perguntouadignaesposaemlágrimas.Oalienistaatendeuentão;osgritosaproximavam-se,terríveis,ameaçadores;

ele compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estavasentado,fechouolivro,e,apassofirmee tranquilo,foidepositá-lonaestante.Comoaintroduçãodovolumedesconcertasseumpoucoalinhadosdoustomoscontíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás,interessante.Depoisdisseàmulherqueserecolhesse,quenãofizessenada.

— Não, não — implorava a digna senhora —, quero morrer ao lado devocê...

SimãoBacamarteteimouquenão,quenãoeracasodemorte;eaindaqueofosse, intimava-lhe em nome da vida que ficasse. A infeliz dama curvou acabeça,obedienteechorosa.

—AbaixoaCasaVerde!—bradavamosCanjicas.Oalienistacaminhouparaavarandadafrente,echegoualinomomentoem

quearebeliãotambémchegavaeparava,defronte,comassuastrezentascabeçasrutilantesdecivismoe sombriasdedesespero.—Morra!morra!,bradaramdetodos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. SimãoBacamartefezumsinalpedindoparafalar;osrevoltososcobriram-lheavozcombrados de indignação. Então, o barbeiro agitando o chapéu, a fim de imporsilêncioàturba,conseguiuaquietarosamigos,edeclarouaoalienistaquepodiafalar,masacrescentouquenãoabusassedapaciênciadopovocomo fizeraaté

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então.—Direipouco,ouaténãodireinada,seforpreciso.Desejosaberprimeiroo

quepedis.—Nãopedimosnada—replicoufrementeobarbeiro—;ordenamosquea

CasaVerdesejademolida,oupelomenosdespojadadosinfelizesqueláestão.—Nãoentendo.—Entendeisbem,tirano;queremosdarliberdadeàsvítimasdovossoódio,

capricho,ganância...Oalienistasorriu,masosorrisodessegrandehomemnãoeracousavisível

aosolhosdamultidão;eraumacontração levededousou trêsmúsculos,nadamais.Sorriuerespondeu:

— Meus senhores, a ciência é cousa séria, e merece ser tratada comseriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aosmestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estouprontoaouvir-vos;mas seexigisquemenegueamimmesmo,nãoganhareisnada.Poderiaconvidaralgunsdevós,emcomissãodosoutros,avirvercomigoosloucosreclusos;masnãoofaço,porqueseriadar-vosrazãodomeusistema,oquenãofareialeigos,nemarebeldes.

Disseistooalienista,eamultidãoficouatônita;eraclaroquenãoesperavatanta energia emenos ainda tamanha serenidade.Mas o assombro cresceu depontoquandooalienista,cortejandoamultidãocommuitagravidade,deu-lheascostas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si, e,agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucasvozes e frouxas lhe responderam. Foi nessemomento decisivo que o barbeirosentiudespontaremsiaambiçãodogoverno;pareceu-lheentãoque,demolindoaCasaVerde,ederrocandoa influênciadoalienista,chegariaaapoderar-sedaCâmara,dominarasdemaisautoridadeseconstituir-sesenhordeItaguaí.Desdealgunsanosqueeleforcejavaporveroseunomeincluídonospelourosparaosorteio dos vereadores,mas era recusado por não ter uma posição compatívelcomtãograndecargo.Aocasiãoeraagoraoununca.Demaisforatãolongenaarruaça, que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo.Infelizmente,arespostadoalienistadiminuíraofurordossequazes.Obarbeiro,logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação, e quis bradar-lhes: “Canalhas!covardes!”,masconteve-se,erompeudestemodo:

—Meusamigos, lutemosatéo fim!Asalvaçãode Itaguaí estánasvossasmãosdignaseheroicas.Destruamosocárceredevossosfilhosepais,devossasmãeseirmãs,devossosparenteseamigos,edevósmesmos.Oumorrereisapãoeágua,talvezachicote,namasmorradaqueleindigno.

Amultidão agitou-se,murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em

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derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope, eameaçavaarrasaraCasaVerde.

—Vamos!—bradouPorfírioagitandoochapéu.—Vamos!—repetiramtodos.Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche,

entravanaruaNova.

CapítuloVII

OinesperadoChegados os dragões em frente aos Canjicas, houve um instante de

estupefação: osCanjicas não queriam crer que a força pública fossemandadacontraeles;masobarbeirocompreendeutudoeesperou.Osdragõespararam,ocapitão intimouàmultidãoque sedispersasse;mas, conquantoumapartedelaestivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cujarespostaconsistiunestestermosalevantados:

—Nãonosdispersaremos.Sequereisosnossoscadáveres,podeistomá-los;mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossosdireitos,ecomelesasalvaçãodeItaguaí.

Nadamaisimprudentedoqueessarespostadobarbeiro;enadamaisnatural.Eraavertigemdasgrandescrises.Talvezfossetambémumexcessodeconfiançanaabstençãodasarmasporpartedosdragões;confiançaqueocapitãodissipoulogo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. Amultidãourroufuriosa;alguns, trepandoàs janelasdascasas,oucorrendopelarua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou, bufando de cólera,indignada, animada pela exortação do barbeiro.A derrota dosCanjicas estavaiminente, quando um terço dos dragões — qualquer que fosse o motivo, ascrônicas não o declaram— passou subitamente para o lado da rebelião. Esteinesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou odesânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem deatacar os seus próprios camaradas, e, um a um, foram passando para eles, demodoqueaocabodealgunsminutos,oaspectodascousaseratotalmenteoutro.O capitão estava de um lado, com algumagente, contra umamassa compactaqueoameaçavademorte.Nãoteveremédio,declarou-sevencidoeentregoua

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espadaaobarbeiro.Arevoluçãotriunfantenãoperdeuumsóminuto;recolheuosferidosàscasas

próximas,eguiouparaaCâmara.Povoetropafraternizavam,davamvivasael-rei,aovice-rei,aItaguaí,ao“ilustrePorfírio”.Esteianafrente,empunhandotãodestramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um poucomaiscomprida.Avitóriacingia-lheafrontedeumnimbomisterioso.Adignidadedegovernocomeçavaaenrijar-lheosquadris.

Osvereadores,àsjanelas,vendoamultidãoeatropa,cuidaramqueatropacapturara amultidão, e semmais exame, entraram e votaram uma petição aovice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, “cujo denodosalvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes”. Estafrase foipropostaporSebastiãoFreitas,overeadordissidente, cujadefesadosCanjicastantoescandalizaraoscolegas.Masbemdepressaailusãosedesfez.Osvivasaobarbeiro,osmorrasaosvereadoreseaoalienistavieramdar-lhesnotíciada triste realidade.Opresidentenãodesanimou:—Qualquerque sejaanossasorte, disse ele, lembremo-nos que estamos ao serviço deSuaMajestade e dopovo.—SebastiãoFreitasinsinuouquemelhorsepoderiaserviràcoroaeàvilasaindopelosfundoseindoconferenciarcomojuizdefora,mastodaaCâmararejeitouessealvitre.

Daíanadaobarbeiro,acompanhadodealgunsdeseustenentes,entravanasala da vereança, e intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu,entregou-se,efoidaliparaacadeia.Entãoosamigosdobarbeiropropuseram-lhe que assumisse o governo da vila, em nome de Sua Majestade. Porfírioaceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos quetrazia;dissemaisquenãopodiadispensaroconcursodosamigospresentes;aoqueelesprontamenteanuíram.Obarbeiroveioà janela,ecomunicouaopovoessas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou adenominação de “Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo”.Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novogoverno, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos deobediênciaàsordensdeSuaMajestade;finalmente,umaproclamaçãoaopovo,curta,masenérgica:

Itaguaienses!Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua

Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado decidadãos,fortementeapoiadospelosbravosdragõesdeSuaMajestade,acabadeadissolverignominiosamente,eporunânimeconsensodavila,foi-meconfiadoomandosupremo,atéqueSuaMajestadesesirvaordenaroqueparecermelhor

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ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis deconfiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda pública, tãodesbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meusacrifício,eficaicertosdequeacoroaserápornós.

OProtetordavilaemnomedeSuaMajestadeedopovoPorfírioCaetanodasNevesTodaagenteadvertiunoabsolutosilênciodestaproclamaçãoacercadaCasa

Verde;e,segundouns,nãopodiahavermaisvivoindíciodosprojetostenebrososdobarbeiro.Operigoeratantomaiorquantoque,nomeiomesmodessesgravessucessos,oalienistameteranaCasaVerdeumasseteouoitopessoas,entreelasduas senhoras, sendo umdos homens aparentado comoProtetor.Não era umrepto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira, e a vilarespiroucomaesperançadequeoalienistadentrode24horasestariaaferros,edestruídooterrívelcárcere.

O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando deesquinaemesquinaaproclamação,opovoespalhava-senasruasejuravamorrerem defesa do ilustre Porfírio. Poucos gritos contra a Casa Verde, prova deconfiançanaaçãodogoverno.Obarbeirofezexpedirumatodeclarandoferiadoaqueledia,eentabulounegociaçõescomovigárioparaacelebraçãodeumTeDeum,tãoconvenienteeraaosolhosdeleaconjunçãodopodertemporalcomoespiritual;masopadreLopesrecusouabertamenteoseuconcurso.

—Emtodocaso,VossaReverendíssimanãosealistaráentreosinimigosdogoverno?—disse-lheobarbeirodandoàfisionomiaumaspectotenebroso.

AoqueopadreLopesrespondeu,semresponder:—Comoalistar-me,seonovogovernonãoteminimigos?Obarbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os

principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o nãoaclamavam,não tinhamsaídocontraele.Nenhumdosalmotacésdeixoudevirreceberassuasordens.Nogeral,asfamíliasabençoavamonomedaquelequeiaenfimlibertarItaguaídaCasaVerdeedoterrívelSimãoBacamarte.

CapítuloVIII

Asangústiasdoboticário

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Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o

barbeiro saiu do palácio do governo — foi a denominação dada à casa daCâmara — com dous ajudantes de ordens, e dirigiu-se à residência de SimãoBacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lochamar;oreceio,porém,dequeoalienistanãoobedecesse,obrigou-oaparecertoleranteemoderado.

Nãodescrevooterrordoboticárioaoouvirdizerqueobarbeiroiaàcasadoalienista. “Vai prendê-lo”, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Comefeito,a torturamoraldoboticárionaquelesdiasde revoluçãoexcedea todaadescrição possível.Nunca um homem se achou emmais apertado lance:— aprivançadoalienistachamava-oaoladodeste,avitóriadobarbeiroatraía-oaobarbeiro. Já a simples notícia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente aalma,porqueelesabiaaunanimidadedoódioaoalienista;masavitóriafinalfoitambém o golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de d.Evarista,diziaqueolugardeleeraaoladodeSimãoBacamarte;aopassoqueocoração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e queninguém,poratopróprio,seamarraaumcadáver.“Fê-loCatão,éverdade,sedvictaCatoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do padreLopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causavencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de ummiserável egoísta; minha situação é outra.” Insistindo, porém, a mulher, nãoachouCrispimSoaresoutrasaídaemtalcrisesenãoadoecer;declarou-sedoente,emeteu-senacama.

—LávaioPorfírioàcasadodoutorBacamarte—disse-lheamulhernodiaseguinteàcabeceiradacama—;vaiacompanhadodegente.

“Vaiprendê-lo”,pensouoboticário.Uma ideia trazoutra;oboticário imaginouque,umavezpresooalienista,

viriamtambémbuscá-loaele,naqualidadedecúmplice.Estaideiafoiomelhordosvesicatórios.CrispimSoaresergueu-se,dissequeestavabom,queiasair;eapesardetodososesforçoseprotestosdaconsorte,vestiu-seesaiu.Osvelhoscronistas são unânimes em dizer que a certeza de que omarido ia colocar-senobrementeaoladodoalienistaconsolougrandementeaesposadoboticário;enotam,commuitaperspicácia,oimensopodermoraldeumailusão;porquanto,o boticário caminhou resolutamente ao palácio do governo, não à casa doalienista.Alichegando,mostrou-seadmiradodenãoverobarbeiro,aquemiaapresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera porenfermo.E tossiacomalgumcusto.Osaltos funcionáriosque lheouviamestadeclaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista,

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compreenderamtodaaimportânciadaadesãonova,etrataramaCrispimSoarescomapuradocarinho;afirmaram-lhequeobarbeironão tardava;SuaSenhoriatinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhecadeira,refrescos,elogios;disseram-lhequeacausadoilustrePorfírioeraadetodosospatriotas; aoqueoboticário ia repetindoque sim,quenuncapensaraoutracousa,queissomesmomandariadeclararaSuaMajestade.

CapítuloIX

DouslindoscasosNão se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não

tinhameiosderesistir,eportantoestavaprestesaobedecer.Sóumacousapedia,équeonãoconstrangesseaassistirpessoalmenteàdestruiçãodaCasaVerde.

—Engana-seVossaSenhoria—disseobarbeirodepoisdealgumapausa—,engana-seematribuiraogovernointençõesvandálicas.Comrazãoousemela,aopiniãocrêqueamaiorpartedosdoudosalimetidosestãoemseuperfeitojuízo,masogovernoreconhecequeaquestãoépuramentecientífica,enãocogitaemresolver com posturas as questões científicas. Demais, a Casa Verde é umainstituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há,entretanto— por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua osossegoaoespíritopúblico.

Oalienistamalpodiadissimularoassombro;confessouqueesperavaoutracousa,oarrasamentodohospício,aprisãodele,odesterro,tudo,menos...

—OpasmodeVossaSenhoria—atalhougravementeobarbeiro—vemdenãoatenderàgraveresponsabilidadedogoverno.Opovo,tomadodeumacegapiedade, que lhe dá em tal caso legítima indignação, pode exigir do governocertaordemdeatos;maseste,comaresponsabilidadequelheincumbe,nãoosdeve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosarevolução que ontem derrubou umaCâmara vilipendiada e corrupta pediu emaltosbradosoarrasamentodaCasaVerde;maspodeentrarnoânimodogovernoeliminaraloucura?Não.Eseogovernonãoapodeeliminar,estáaomenosaptoparadiscriminá-la, reconhecê-la?Tambémnão;ématériadeciência.Logo,emassunto tãomelindroso, o governo não pode, não deve, não quer dispensar oconcurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demosalguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos

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alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar daCasa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados, e bem assim osmaníacos de poucamonta, etc.Dessemodo, sem grande perigo,mostraremosalgumatolerânciaebenignidade.

—Quantosmortoseferidoshouveontemnoconflito?—perguntouSimãoBacamarte,depoisdeunstrêsminutos.

Obarbeiroficouespantadodapergunta,masrespondeulogoque11mortose25feridos.

—Onzemortose25feridos!—repetiuduasoutrêsvezesoalienista.E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom,mas que ele ia

catar algumoutro, edentrodepoucosdias lhedaria resposta.E fez-lheváriasperguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões,resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grandeabundância, insistindoprincipalmentenodescréditoemqueaCâmaracaíra.Obarbeiroconfessouqueonovogovernonão tinhaaindaporsiaconfiançadosprincipais da vila,mas o alienista podia fazermuito nesse ponto. O governo,concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar, não já com a simpatia, senãocom a benevolência domais alto espírito de Itaguaí, e seguramente do reino.Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem,queouviacalado,semdesvanecimento,nemmodéstia,masimpassívelcomoumdeusdepedra.

—Onzemortos e 25 feridos, repetiu o alienista, depois de acompanhar obarbeiroatéàporta.—Eisaídouslindoscasosdedoençacerebral.Ossintomasde duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos.Quanto à toleimadosqueoaclamaramnãoéprecisooutraprovaalémdos11mortose25feridos.—Douslindoscasos!

—VivaoilustrePorfírio!—bradaramumastrintapessoasqueaguardavamobarbeiroàporta.

Oalienistaespioupelajanela,eaindaouviuesterestodeumapequenafaladobarbeiroàstrintapessoasqueoaclamavam:

— ...porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução dasvontadesdopovo.Confiaiemmim;etudosefarápelamelhormaneira.Sóvosrecomendoordem.Aordem,meusamigos,éabasedogoverno...

—VivaoilustrePorfírio!—bradaramastrintavozes,agitandooschapéus.—Douslindoscasos!—murmurouoalienista.

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CapítuloX

ArestauraçãoDentro de cinco dias, o alienistameteu naCasaVerde cerca de cinquenta

aclamadoresdonovogoverno.Opovoindignou-se.Ogoverno,atarantado,nãosabiareagir.JoãoPina,outrobarbeiro,diziaabertamentenasruasqueoPorfírioestava“vendidoaoourodeSimãoBacamarte”,frasequecongregouemtornodeJoãoPinaagentemaisresolutadavila.Porfírio,vendooantigorivaldanavalhaà testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se nãodesseumgrandegolpe;expediudousdecretos,umabolindoaCasaVerde,outrodesterrandooalienista.JoãoPinamostrouclaramente,comgrandesfrases,queoatodePorfírio eraum simples aparato, umengodo, emqueopovonãodeviacrer.DuashorasdepoiscaíaPorfírio ignominiosamente,eJoãoPinaassumiaadifíciltarefadogoverno.Comoachassenasgavetasasminutasdaproclamação,daexposiçãoaovice-reiedeoutrosatosinauguraisdogovernoanterior,deu-sepressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliássubentende-se,queelelhesmudouosnomes,eondeooutrobarbeirofalaradeuma Câmara corrupta, falou este de “um intruso eivado das más doutrinasfrancesas,econtrárioaossacrossantosinteressesdeSuaMajestade”,etc.

Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu aordem.OalienistaexigiudesdelogoaentregadobarbeiroPorfírio,ebemassimadeunscinquentaetantosindivíduos,quedeclaroumentecaptos;enãosólhederamesses, comoafiançaramentregar-lhemais 19 sequazesdobarbeiro, queconvalesciamdasferidasapanhadasnaprimeirarebelião.

EstepontodacrisedeItaguaímarcatambémograumáximodainfluênciadeSimãoBacamarte.Tudoquantoquis,deu-se-lhe;eumadasmaisvivasprovasdopoder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores,restituídosa seus lugares, consentiramemqueSebastiãoFreitas tambémfosserecolhidoaohospício.Oalienista,sabendodaextraordináriainconsistênciadasopiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. Amesma cousa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram damomentânea adesão deCrispimSoares à rebelião dosCanjicas, comparou-a àaprovação que sempre recebera dele, ainda na véspera, e mandou capturá-lo.Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a ummovimentodeterror,aoverarebeliãotriunfante,edeucomoprovaaausênciadenenhumoutroatoseu,acrescentandoquevoltaralogoàcama,doente.SimãoBacamartenãoocontrariou;disse,porém,aoscircunstantesqueoterrortambém

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é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos maiscaracterizados.

Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi adocilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio presidente. Este dignomagistradotinhadeclaradoemplenasessãoquenãosecontentava,paralavá-loda afronta dosCanjicas, commenosde trinta almudesde sangue; palavraquechegouaosouvidosdoalienistaporbocadosecretáriodaCâmara,entusiasmadodetamanhaenergia.SimãoBacamartecomeçoupormeterosecretárionaCasaVerde,efoidaliàCâmara,àqualdeclarouqueopresidenteestavapadecendoda“demência dos touros”, um gênero que ele pretendia estudar, com grandevantagemparaospovos.ACâmaraaprincípiohesitou,masacaboucedendo.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia darnascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas queaproveitamaoinventoroudivulgador,quenãofosselogometidonaCasaVerde.Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, deanagramas,osmaldizentes,oscuriososdavidaalheia,osquepõemtodooseucuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aosemissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava asnamoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural, e assegundasaumvício.Seumhomemera avarooupródigo iadomesmomodopara a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completasanidade mental. Alguns cronistas creem que Simão Bacamarte nem sempreprocedia com lisura, e citamemabonoda afirmação (que não sei se pode seraceita)ofatodeteralcançadodaCâmaraumaposturaautorizandoousodeumaneldepratanodedopolegardamãoesquerda,atodaapessoaque,semoutraprovadocumentaloutradicional,declarasseternasveiasduasoutrêsonçasdesanguegodo.Dizemessescronistasqueo fimsecretoda insinuaçãoàCâmarafoi enriquecer umourives, amigo e compadre dele;mas, conquanto seja certoqueoourivesviuprosperaronegóciodepoisdanovaordenaçãomunicipal,nãooémenosqueessaposturadeuàCasaVerdeumamultidãodeinquilinos;peloque, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fimdo ilustremédico.QuantoàrazãodeterminativadacapturaeaposentaçãonaCasaVerdedetodosquantosusaramdoanel,éumdospontosmaisobscurosdahistóriadeItaguaí;aopiniãomaisverossímiléqueelesforamrecolhidosporandaremagesticular,àtoa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doudos gesticulammuito.Emtodocasoéumasimplesconjectura;depositivonadahá.

—Ondeéqueestehomemvaiparar?—diziamosprincipaisda terra.—Ah!senóstivéssemosapoiadoosCanjicas...

Umdiademanhã—diaemqueaCâmaradeviadarumgrandebaile—,a

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vilainteiraficouabaladacomanotíciadequeaprópriaesposadoalienistaforametidanaCasaVerde.Ninguémacreditou;deviaserinvençãodealgumgaiato.Enãoera:eraaverdadepura.D.Evaristaforarecolhidaàsduashorasdanoite.OpadreLopescorreuaoalienistaeinterrogou-odiscretamenteacercadofato.

—Jáháalgumtempoqueeudesconfiava—dissegravementeomarido.—Amodéstiacomqueelaviveraemambososmatrimôniosnãopodiaconciliar-secomofurordassedas,veludos,rendasepedraspreciosasquemanifestou,logoquevoltoudoRiodeJaneiro.Desdeentãocomeceiaobservá-la.Suasconversaseramtodassobreessesobjetos;seeulhefalavadasantigascortes,inquirialogodaformadosvestidosdasdamas;seumasenhoraavisitava,naminhaausência,antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umascousas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há delembrar-se, propôs-se a fazer anualmenteumvestidopara a imagemdeNossaSenhoradamatriz.Tudoistoeramsintomasgraves;estanoite,porém,declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário quelevariaaobailedaCâmaramunicipal;sóhesitavaentreumcolardegranadaeoutro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe queumououtrolheficavabem.Ontemrepetiuapergunta,aoalmoço;poucodepoisdejantarfuiachá-lacaladaepensativa.“Quetem?”,perguntei-lhe.“Querialevaro colar de granada,mas achoo de safira tão bonito!” “Pois leve o de safira.”“Ah! mas onde fica o de granada?” Enfim, passou a tarde sem novidade.Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo;levanto-me,vouaoquartodevestir,acho-adiantedosdouscolares,ensaiando-osaoespelho,oraum,oraoutro.Eraevidenteademência;recolhi-alogo.

O padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. Oalienista,porém,percebeueexplicou-lhequeocasoded.Evaristaerade“maniasumptuária”,nãoincurável,eemtodocasodignodeestudo.

—Contopô-laboadentrodeseissemanas—concluiuele.A abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjecturas,

invenções, desconfianças, tudo caiu por terra, desde que ele não duvidourecolheràCasaVerdeaprópriamulher,aquemamavacomtodasasforçasdaalma.Ninguémmaistinhaodireitoderesistir-lhe—menosaindaodeatribuir-lheintuitosalheiosàciência.

Eraumgrandehomemaustero,HipócratesforradodeCatão.

CapítuloXI

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OassombrodeItaguaíEagoraprepare-seoleitorparaomesmoassombroemqueficouavila,ao

saberumdiaqueosloucosdaCasaVerdeiamtodosserpostosnarua.—Todos?—Todos.—Éimpossível;alguns,sim,mastodos...—Todos.AssimodisseelenoofícioquemandouhojedemanhãàCâmara.De fato, o alienista oficiara à Câmara expondo:— 1o, que verificara das

estatísticas davila e daCasaVerde, quequatroquintos dapopulação estavamaposentados naquele estabelecimento; 2o, que esta deslocação de populaçãolevara-oaexaminarosfundamentosdasuateoriadasmoléstiascerebrais,teoriaque excluía do domínio da razão todos os casos em que o equilíbrio dasfaculdades não fosse perfeito e absoluto; 3o, que desse exame e do fatoestatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não eraaquela,masaoposta,eportantoquesedeviaadmitircomonormaleexemplarodesequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos emqueaqueleequilíbriofosseininterrupto;4o,queàvistadissodeclaravaàCâmaraqueiadarliberdadeaosreclusosdaCasaVerdeeagasalharnelaaspessoasquese achassem nas condições agora expostas; 5o, que tratando de descobrir averdadecientífica,nãosepoupariaaesforçosdetodaanatureza,esperandodaCâmaraigualdedicação;6o,querestituíaàCâmaraeaosparticularesasomadoestipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parteefetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandariaverificarnoslivrosearcasdaCasaVerde.

O assombro de Itaguaí foi grande; não foimenor a alegria dos parentes eamigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve paracelebrartãofaustoacontecimento.Nãodescrevoasfestaspornãointeressaremaonossopropósito;masforamesplêndidas,tocanteseprolongadas.

Evãoassimascousashumanas!NomeiodoregozijoproduzidopeloofíciodeSimãoBacamarte,ninguémadvertianafrasefinaldo§4o,umafrasecheiadeexperiênciasfuturas.

CapítuloXII

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Ofinaldo§4oApagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia

reposto nos antigos eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez ogoverno,semnenhumapressãoexterna;oprópriopresidenteeovereadorFreitastornaramaosseus lugares.ObarbeiroPorfírio,ensinadopelosacontecimentos,tendo“provado tudo”, comoopoetadissedeNapoleão, emaisalgumacousa,porqueNapoleãonãoprovouaCasaVerde,obarbeiroachoupreferívelaglóriaobscuradanavalhaedatesouraàscalamidadesbrilhantesdopoder;foi,écerto,processado;mas a populaçãoda vila implorou a clemência deSuaMajestade;daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara umrebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio—ladrãoque furta ladrão, temcemanosdeperdão—;adágio imoral,éverdade,masgrandementeútil.

Nãosófindaramasqueixascontraoalienista,masaténenhumressentimentoficoudosatosqueelepraticara;acrescendoqueosreclusosdaCasaVerde,desdeque ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundoreconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienistamereciaumaespecialmanifestação,ederam-lheumbaile,aoqualseseguiramoutrosbailes e jantares.Dizemas crônicasqued.Evarista aprincípio tivera aideiadeseparar-sedoconsorte,masadordeperderacompanhiadetãograndehomem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio, e o casal veio a seraindamaisfelizdoqueantes.

Nãomenosíntimaficouaamizadedoalienistaedoboticário.Esteconcluiudo ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes emtempos de revolução, e aprecioumuito amagnanimidade do alienista que, aodar-lhealiberdade,estendeu-lheamãodeamigovelho.

— É um grande homem — disse ele à mulher, referindo aquelacircunstância.

Nãoépreciso falardoalbardeiro,doCosta,doCoelho,doMartimBritoeoutros,especialmentenomeadosnesteescrito;bastadizerquepuderamexercerlivrementeos seushábitos anteriores.OpróprioMartimBrito, reclusoporumdiscursoemquelouvaraenfaticamented.Evarista,fezagoraoutroemhonradoinsignemédico—“cujoaltíssimogênio,elevandoasasasmuitoacimadosol,deixouabaixodesitodososdemaisespíritosdaterra”.

—Agradeçoassuaspalavras—retorquiu-lheoalienista—,eaindamenãoarrependodeohaverrestituídoàliberdade.

Entretanto,aCâmara,queresponderaaoofíciodeSimãoBacamarte,coma

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ressalvadequeoportunamenteestatuiriaemrelaçãoaofinaldo§4o,tratouenfimde legislar sobre ele. Foi adotada, sem debate, uma postura autorizando oalienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo doperfeito equilíbrio das faculdadesmentais. E porque a experiência da Câmarativesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização eraprovisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoriapsicológica, podendo aCâmara, antesmesmo daquele prazo,mandar fechar aCasa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. OvereadorFreitaspropôstambémadeclaraçãodequeemnenhumcasofossemosvereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada eincluídanapostura, apesardas reclamaçõesdovereadorGalvão.Oargumentoprincipal destemagistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiênciacientífica,nãopodiaexcluiraspessoasdosseusmembrosdasconsequênciasdalei;aexceçãoeraodiosaeridícula.Malproferiraestasduraspalavras,romperamos vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este,porém,ouviu-oselimitou-seadizerquevotavacontraaexceção.

—Avereança—concluiuele—nãonosdánenhumpoderespecialnemnoseliminadoespíritohumano.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto àexclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fossecompelidoarecolhê-losàCasaVerde;acláusula,porém,eraamelhorprovadeque eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Nãoacontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cujamoderaçãonarespostadadaàsinvectivasdoscolegasmostravamdapartedeleumcérebrobem-organizado; pelo que rogava àCâmara que lho entregasse.ACâmara,sentindo-seaindaagravadapeloprocederdovereadorGalvão,estimouopedidodoalienista,evotouunanimementeaentrega.

Compreende-seque,pelateorianova,nãobastavaumfatoouumdito,pararecolheralguémàCasaVerde;eraprecisoumlongoexame,umvastoinquéritodopassadoedopresente.OpadreLopes,porexemplo, só foicapturado trintadias depois da postura, amulher do boticário quarenta dias. A reclusão destasenhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casaespumandodecólera,edeclarandoàspessoasaquemencontravaqueiaarrancaras orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essanotícia,esqueceuosmotivosdedissidência,ecorreuàcasadeSimãoBacamartea participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato aoprocedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer aretidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade;apertou-lhemuitoasmãos,erecolheu-oàCasaVerde.

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— Um caso destes é raro — disse ele à mulher pasmada. — AgoraesperemosonossoCrispim.

CrispimSoares entrou.A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou asorelhasaoalienista.Esteconsolouo seuprivado, assegurando-lhequenãoeracasoperdido;talvezamulhertivessealgumalesãocerebral;iaexaminá-lacommuita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhevantajosoreuni-los,porqueaastúciaevelhacariadomaridopoderiamdecertomodocurarabelezamoralqueeledescobriranaesposa,disseSimãoBacamarte:

—Osenhortrabalharáduranteodianabotica,masalmoçaráejantarácomsuamulher,ecápassaráasnoites,eosdomingosediassantos.

ApropostacolocouopobreboticárionasituaçãodoasnodeBuridan.Queriavivercomamulher,mas temiavoltaràCasaVerde;enessa lutaestevealgumtempo,atéqued.Evaristaotiroudadificuldade,prometendoqueseincumbiriadeveraamigaetransmitirosrecadosdeumparaoutro.CrispimSoaresbeijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceusublimeaoalienista.

Aocabodecincomesesestavamalojadasumasdezoitopessoas;masSimãoBacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando,interrogando, estudando; equandocolhiaumenfermo, levava-ocomamesmaalegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporçãoconfirmavaa teorianova;achara-seenfimaverdadeirapatologiacerebral.Umdia, conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tantoescrúpulo,queonãofezsenãodepoisdeestudarminuciosamentetodososseusatos,einterrogarosprincipaisdavila.Maisdeumavezesteveprestesarecolherpessoasperfeitamentedesequilibradas;foioquesedeucomumadvogado,emquem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais, que eraperigosodeixá-lonarua.Mandouprendê-lo;masoagente,desconfiado,pediu-lhepara fazerumaexperiência; foi ter comumcompadre,demandadoporumtestamentofalso,edeu-lhedeconselhoquetomasseporadvogadooSalustiano;eraonomedapessoaemquestão.

—Então,parece-lhe?...—Semdúvida:vá,confessetudo,averdadeinteira,sejaqualfor,econfie-

lheacausa.Ohomemfoitercomoadvogado,confessouterfalsificadootestamento,e

acaboupedindoquelhetomasseacausa.Nãosenegouoadvogado,estudouospapéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento eramaisqueverdadeiro.Ainocênciadoréufoisolenementeproclamadapelojuiz,eaherançapassou-lheàsmãos.Odistintojurisconsultodeveuaestaexperiênciaaliberdade. Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão

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Bacamarte,quedesdealgumtemponotavaozelo,asagacidade,apaciência,amoderaçãodaqueleagente,reconheceuahabilidadeeotinocomqueelelevaraacabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-loimediatamenteàCasaVerde;deu-lhe,todavia,umdosmelhorescubículos.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria demodestos,istoé,osloucosemquempredominavaestaperfeiçãomoral;outradetolerantes,outradeverídicos,outradesímplices,outradeleais,outrademagnânimos,outrade sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dosreclusosbradavamcontraateoria;ealgunstentaramcompeliraCâmaraacassaralicença.ACâmara,porém,nãoesqueceraalinguagemdovereadorGalvão,ese cassasse a licença, vê-lo-ia na rua, e restituído ao lugar; pelo que, recusou.SimãoBacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo,mas felicitando-osporesseatodevingançapessoal.

Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreramsecretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente,dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimentocontraaCâmaraeoalienista.Obarbeirorespondeu-lhesquenão;queaambiçãoo levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara,reconhecendooerropróprioeapoucaconsistênciadaopiniãodosseusmesmossequazes;queaCâmaraentenderaautorizaranovaexperiênciadoalienista,porum ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso amesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de umrecursoqueeleviufalharemsuasmãos,e issoa trocodemorteseferimentosqueseriamoseueternoremorso.

—Oqueéquemeestádizendo?—perguntouoalienistaquandoumagentesecretolhecontouaconversaçãodobarbeirocomosprincipaisdavila.

DousdiasdepoisobarbeiroerarecolhidoàCasaVerde.—Presoportercão,presopornãotercão!—exclamouoinfeliz.Chegouo fimdoprazo, aCâmaraautorizouumprazo suplementarde seis

mesesparaensaiodosmeiosterapêuticos.Odesfechodesteepisódiodacrônicaitaguaiense é de tal ordem, e tão inesperado, quemerecia nadamenos de dezcapítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate danarrativa, e um dosmais belos exemplos de convicção científica e abnegaçãohumana.

CapítuloXIII

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Plusultra!Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir

enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou atratá-los.Nestepontotodososcronistasestãodeplenoacordo:oilustrealienistafezcuraspasmosas,queexcitaramamaisvivaadmiraçãoemItaguaí.

Comefeito, eradifícil imaginarmais racional sistema terapêutico.Estandoosloucosdivididosporclasses,segundoaperfeiçãomoralqueemcadaumdelesexcedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidadepredominante.Suponhamosummodesto.Eleaplicavaamedicaçãoquepudesseincutir-lheosentimentooposto;enãoialogoàsdosesmáximas —graduava-as,conformeo estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo.Àsvezesbastavaumacasaca,umafita,umacabeleira,umabengala,pararestituirarazãoaoalienado; emoutros casosamoléstia eramais rebelde; recorria entãoaosanéisdebrilhantes,àsdistinçõeshonoríficas,etc.Houveumdoente,poeta,que resistiu a tudo. SimãoBacamarte começava a desesperar da cura, quandoteveideiademandarcorrermatraca,paraofimdeoapregoarcomoumrivaldeGarçãoedePíndaro.

—Foiumsantoremédio—contavaamãedoinfelizaumacomadre—;foiumsantoremédio.

Outro doente, tambémmodesto, opôs amesma rebeldia àmedicação;masnãosendoescritor(malsabiaassinaronome),nãoselhepodiaaplicaroremédiodamatraca.SimãoBacamartelembrou-sedepedirparaeleolugardesecretáriodaAcademiadosEncobertosestabelecidaemItaguaí.Oslugaresdepresidenteesecretárioseramdenomeaçãorégia,porespecialgraçadofinadoreid.JoãoV,eimplicavamotratamentodeExcelênciaeousodeumaplacadeouronochapéu.O governo deLisboa recusou o diploma;mas representando o alienista que onão pedia como prêmio honorífico ou distinção legítima, e somente como ummeio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente àsúplica; e ainda assim não o fez sem extraordinário esforço do ministro demarinhaeultramar,quevinhaaserprimodoalienado.Foioutrosantoremédio.

—Realmente,éadmirável!—dizia-senasruas,aoveraexpressãosadiaeenfunadadosdousex-dementes.

Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental eraatacadanoponto emque a perfeiçãopareciamais sólida; e o efeito era certo.Nemsempreeracerto.Casoshouveemqueaqualidadepredominanteresistiaatudo;então,oalienistaatacavaoutraparte,aplicandoàterapêuticaométododaestratégiamilitar,quetomaumafortalezaporumponto,seporoutroonãopodeconseguir.

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NofimdecincomesesemeioestavavaziaaCasaVerde;todoscurados!Overeador Galvão tão cruelmente afligido de moderação e equidade, teve afelicidadedeperderumtio;digofelicidade,porqueotiodeixouumtestamentoambíguo, e ele obteve uma boa interpretação, corrompendo os juízes, eembaçandoosoutrosherdeiros.Asinceridadedoalienistamanifestou-senesselance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vismedicatrixdanatureza.NãoaconteceuomesmocomopadreLopes.Sabendooalienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o defazerumaanálisecríticadaversãodosSetenta;opadreaceitouaincumbência,eem boa hora o fez; ao cabo de dous meses possuía um livro e a liberdade.Quantoàsenhoradoboticário,nãoficoumuitotemponacélulaquelhecoube,eondealiáslhenãofaltaramcarinhos.

—PorqueéqueoCrispimnãovemvisitar-me?—diziaelatodososdias.Respondiam-lhe ora uma cousa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade

inteira. A digna matrona não pôde conter a indignação e a vergonha. Nasexplosõesdacóleraescaparam-lheexpressõessoltasevagas,comoestas:

—Tratante!...velhaco!...ingrato!...Umpatifequetemfeitocasasàcustadeunguentosfalsificadosepodres...Ah!tratante!...

Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira aacusação contida nestas palavras, bastavam elas paramostrar que a excelentesenhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; eprontamentelhedeualta.

Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o últimohóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nossohomem.Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoriaverdadeiradaloucura;nãoocontentavaterestabelecidoemItaguaíoreinadodarazão.Plusultra!Nãoficoualegre,ficoupreocupado,cogitativo;algumacousalhediziaqueateorianovatinha,emsimesma,outraenovíssimateoria.

“Vejamos”,pensavaele,“vejamossechegoenfimàúltimaverdade.”Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica

bibliotecadosdomíniosultramarinosdeSuaMajestade.Umamplochambrededamasco,presoàcinturaporumcordãodeseda,comborlasdeouro(presentedeumauniversidade)envolviaocorpomajestosoeausterodo ilustrealienista.Acabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitaçõesquotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos emariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par desapatoscujasfivelasnãopassavamdesimplesemodestolatão.Vedeadiferença:— só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica; o quepropriamentevinhadele traziaacordamoderaçãoedasingeleza,virtudes tão

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ajustadasàpessoadeumsábio.Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta

biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as cousas que não fosse otenebrosoproblemadapatologiacerebral.Súbito,parou.Empé,diantedeumajanela,comocotoveloesquerdoapoiadonamãodireita,aberta,eoqueixonamãoesquerda,fechada,perguntoueleasi:

—Masdeverasestariamelesdoudos,eforamcuradospormim—ouoquepareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio docérebro?

E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem-organizadosqueeleacabavadecurareramtãodesequilibradoscomoosoutros.Sim,diziaeleconsigo,eunãoposso terapretensãodehaver-lhes incutidoumsentimento ou uma faculdade nova; uma e outra cousa existiam no estadolatente,masexistiam.

Chegadoaestaconclusão,oilustrealienistateveduassensaçõescontrárias,umadegozo,outradeabatimento.Adegozofoiporverque,aocabodelongasepacientes investigações,constantes trabalhos, luta ingentecomopovo,podiaafirmarestaverdade:—nãohavialoucosemItaguaí;Itaguaínãopossuíaumsómentecapto.Mas tão depressa esta ideia lhe refrescara a alma, outra apareceuqueneutralizouo primeiro efeito; foi a ideia da dúvida.Pois quê! Itaguaí nãopossuiria um único cérebro concertado?Esta conclusão tão absoluta não seriapor isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestosoedifíciodanovadoutrinapsicológica?

AafliçãodoegrégioSimãoBacamarteédefinidapeloscronistasitaguaiensescomo uma dasmaismedonhas tempestadesmorais que têm desabado sobre ohomem.Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contraelasefitamotrovão.Vinteminutosdepoisalumiou-seafisionomiadoalienistadeumasuaveclaridade.

“Sim,hádeserisso”,pensouele.Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito

equilíbriomentalemoral;pareceu-lhequepossuíaasagacidade,apaciência,aperseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas asqualidadesenfimquepodemformarumacabadomentecapto.Duvidou logo,écerto,echegoumesmoaconcluirqueera ilusão;massendohomemprudente,resolveuconvocarumconselhodeamigos,aqueminterrogoucomfranqueza.Aopiniãofoiafirmativa.

—Nenhumdefeito?—Nenhum—disseemcoroaassembleia.—Nenhumvício?

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—Nada.—Tudoperfeito?—Tudo.—Não, impossível.—bradouoalienista.—Digoquenão sintoemmim

essasuperioridadequeacabodeverdefinircomtantamagnificência.Asimpatiaéquevosfazfalar.Estudo-meenadaachoquejustifiqueosexcessosdavossabondade.

Aassembleiainsistiu;oalienistaresistiu;finalmenteopadreLopesexplicoutudocomesteconceitodignodeumobservador:

—Sabearazãoporquenãovêassuaselevadasqualidades,quealiástodosnósadmiramos?Éporque temaindaumaqualidadeque realçaasoutras:—amodéstia.

Eradecisivo.SimãoBacamartecurvouacabeça,juntamentealegreetriste,eaindamaisalegredoquetriste.Atocontínuo,recolheu-seàCasaVerde.Emvãoamulhereosamigos lhedisseramque ficasse,queestavaperfeitamentesãoeequilibrado:nemrogosnemsugestõesnemlágrimasodetiveramumsóinstante.

—Aquestãoécientífica—diziaele—;trata-sedeumadoutrinanova,cujoprimeiroexemplosoueu.Reúnoemmimmesmoateoriaeaprática.

—Simão!Simão!meuamor!—dizia-lheaesposacomorostolavadoemlágrimas.

Masoilustremédico,comosolhosacesosdaconvicçãocientífica, trancouosouvidos à saudadedamulher, e brandamente a repeliu.Fechada a porta daCasaVerde,entregou-seaoestudoeàcuradesimesmo.Dizemoscronistasqueelemorreu dali a 17meses, nomesmo estado em que entrou, sem ter podidoalcançarnada.Algunschegamaopontodeconjecturarquenuncahouveoutrolouco,alémdele,emItaguaí;masestaopinião,fundadaemumboatoquecorreudesde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boatoduvidoso, pois é atribuído ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara asqualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro commuitapompaerarasolenidade.

AEstação,outubrode1881amarçode1882;MachadodeAssis.

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Teoriadomedalhão

Diálogo

—Estáscomsono?—Não,senhor.—Nemeu;conversemosumpouco.Abreajanela.Quehorassão?—Onze.—Saiuoúltimoconvivadonossomodesto jantar.Comque,meuperalta,

chegasteaosteus21anos.Há21anos,nodia5deagostode1854,vinhastuàluz,umpirralhodenada,eestáshomem,longosbigodes,algunsnamoros...

—Papai...—Nãoteponhascomdenguices,efalemoscomodousamigossérios.Fecha

aquelaporta;voudizer-tecousas importantes.Senta-teeconversemos.Vinteeum anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, namagistratura,na imprensa,na lavoura,na indústria,nocomércio,nas letrasounasartes.Háinfinitascarreirasdiantedeti.Vinteeumanos,meurapaz,formamapenasaprimeirasílabadonossodestino.OsmesmosPitteNapoleão,apesardeprecoces,nãoforamtudoaos21anos.Mas,qualquerquesejaaprofissãodatuaescolha,omeudesejoéquetefaçasgrandeeilustre,oupelomenosnotável,quetelevantesacimadaobscuridadecomum.Avida,Janjão,éumaenormeloteria;os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de umageraçãoéqueseamassamasesperançasdeoutra.Istoéavida;nãoháplanger,nemimprecar,masaceitarascousasintegralmente,comseusônusepercalços,glóriasedesdouros,eirpordiante.

—Sim,senhor.—Entretanto,assimcomoédeboaeconomiaguardarumpãoparaavelhice,

assimtambémédeboapráticasocialacautelarumofícioparaahipótesedequeosoutrosfalhem,ounãoindenizemsuficientementeoesforçodanossaambição.Éistooqueteaconselhohoje,diadatuamaioridade.

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—Creiaquelheagradeço;masqueofício,nãomedirá?—Nenhummeparecemaisútilecabidoqueodemedalhão.Sermedalhão

foiosonhodaminhamocidade;faltaram-me,porém,asinstruçõesdeumpai,eacabocomovês,semoutraconsolaçãoerelevomoral,alémdasesperançasquedepositoemti.Ouve-mebem,meuqueridofilho,ouve-meeentende.Ésmoço,tensnaturalmenteoardor,aexuberância,osimprovisosdaidade;nãoosrejeites,masmodera-osdemodoqueaos45anospossasentrarfrancamentenoregímendo aprumo e do compasso.O sábio que disse: “a gravidade é ummistério docorpo”,definiuacomposturadomedalhão.Nãoconfundasessagravidadecomaquelaoutraque,emboraresidanoaspecto,éumpuroreflexoouemanaçãodoespírito;essaédocorpo,tãosomentedocorpo,umsinaldanaturezaouumjeitodavida.Quantoàidadede45anos...

—Éverdade,porque45anos?—Nãoé,comopodessupor,umlimitearbitrário,filhodopurocapricho;éa

data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa amanifestar-seentreos45ecinquentaanos,conquantoalgunsexemplossedeementreos55eossessenta;masestessãoraros.Há-ostambémdequarentaanos,eoutrosmaisprecoces,de35edetrinta;nãosão,todavia,vulgares.Nãofalodosde25anos;essemadrugaréprivilégiodogênio.

—Entendo.—Venhamos ao principal.Umavez entrado na carreira, deves pôr todo o

cuidadonas ideiasquehouveresdenutrirparausoalheioepróprio.Omelhorserá não as ter absolutamente; cousa que entenderás bem, imaginando, porexemplo,umatordefraudadodousodeumbraço.Elepode,porummilagredeartifício,dissimularodefeitoaosolhosdaplateia;maseramuitomelhordispordos dous. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las,escondê-lasatéàmorte;masnemessahabilidadeécomum,nemtãoconstanteesforçoconviriaaoexercíciodavida.

—Masquemlhedizqueeu...— Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia

mental,convenienteaousodestenobreofício.Nãomerefirotantoàfidelidadecom que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa,porque esse fato, posto indique certa carênciade ideias, ainda assimpodenãopassardeuma traiçãodamemória.Não; refiro-meaogestocorretoeperfiladocom que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca docortedeumcolete,dasdimensõesdeumchapéu,dorangeroucalardasbotasnovas.Eisaíumsintomaeloquente,eisaíumaesperança.Noentanto,podendoacontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias,urgeaparelharfortementeoespírito.Asideiassãodesuanaturezaespontânease

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súbitas;pormaisqueassofreemos,elasirrompemeprecipitam-se.Daíacertezacom que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhãocompletodomedalhãoincompleto.

—Creioqueassimseja;masumtalobstáculoéinvencível.— Não é; há um meio; é lançar mão de um regímen debilitante, ler

compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc.Ovoltarete, o dominó e owhistsãoremédiosaprovados.Owhisttematéararavantagemdeacostumaraosilêncio,queéaformamaisacentuadadacircunspecção.Nãodigoomesmodanatação,daequitaçãoedaginástica,emboraelasfaçamrepousarocérebro;maspor isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividadeperdidas.Obilharéexcelente.

—Comoassim,setambéméumexercíciocorporal?—Nãodigoquenão,mashácousasemqueaobservaçãodesmenteateoria.

Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas maisescrupulosasmostramque trêsquartaspartesdoshabituadosdo tacopartilhamas opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio eparada,éutilíssimo,comacondiçãodenãoandaresdesacompanhado,porqueasolidãoéoficinadeideias,eoespíritodeixadoasimesmo,emboranomeiodamultidão,podeadquirirumatalouqualatividade.

—Masseeunãotiveràmãoumamigoaptoedispostoaircomigo?—Não fazmal; tens o valente recurso demesclar-te aos pasmatórios, em

quetodaapoeiradasolidãosedissipa.Aslivrarias,ouporcausadaatmosferadolugar,ouporqualqueroutrarazãoquemeescapa,nãosãopropíciasaonossofim;e,nãoobstante,hágrandeconveniênciaementrarporelas,dequandoemquando,nãodigoàsocultas,masàsescâncaras.Podesresolveradificuldadedeummodosimples:vaiali falardoboatododia,daanedotada semana,deumcontrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer cousa, quando nãoprefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas deMazade;75%dessesestimáveiscavalheirosrepetir-te-ãoasmesmasopiniões,euma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regímen, durante oito,dez, 18 meses — suponhamos dous anos —, reduzes o intelecto, por maispródigoqueseja,àsobriedade,àdisciplina,aoequilíbriocomum.Nãotratodovocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de sernaturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores declarim...

—Istoéodiabo!Nãopoderadornaroestilo,dequandoemquando...— Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de

Lerna,porexemplo,acabeçadeMedusa,otoneldasDanaides,asasasdeÍcaro,e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando

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precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardosjurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos desobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant, consules é umexcelentefechodeartigopolítico;omesmodireidoSivispacemparabellum.Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frasenova,originalebela,masnãoteaconselhoesseartifício:seriadesnaturar-lheasgraçasvetustas.Melhordoquetudoisso,porém,queafinalnãopassademeroadorno,sãoasfrasesfeitas,aslocuçõesconvencionais,asfórmulasconsagradaspelosanos, incrustadasnamemória individualepública.Essas fórmulas têmavantagemdenãoobrigarosoutrosaumesforçoinútil.Nãoasrelacionoagora,masfá-lo-eiporescrito.Deresto,omesmoofícioteiráensinandooselementosdessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema,basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito,subsisteomal.Eisaíumaquestãoquepodeaguçarascuriosidadesvadias,darensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos eobservações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possíveis, umestudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, damanipulaçãodo remédio,das circunstânciasdaaplicação;matéria, enfim,paratodo um andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teussemelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis,reformemososcostumes!—Eestafrasesintética,transparente,límpida,tiradaaopecúliocomum,resolvemaisdepressaoproblema,entrapelosespíritoscomoumjorrosúbitodesol.

—Vejoporaíquevosmecêcondenatodaequalqueraplicaçãodeprocessosmodernos.

—Entendamo-nos.Condeno a aplicação, louvo a denominação.Omesmodirei de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto orasgopeculiardomedalhãosejaumacertaatitudededeusTérmino,easciênciassejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde,convémtomarasarmasdoteutempo.Ededuasuma:ouelasestarãousadasedivulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas: no primeiro caso,pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer,paramostrarquetambéméspintor.Deoutiva,comotempo,irássabendoaqueleis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque ométodo deinterrogar os própriosmestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos ememórias,alémdetediosoecansativo,trazoperigodeinocularideiasnovas,eé radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a assenhorear-te doespírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-lascomum talouqual comedimento, comoacostureira—esperta e afreguesada

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—,que,segundoumpoetaclássico,Quantomaispanotem,maispoupaocorte,Menosmontealardeiaderetalhos;eestefenômeno,tratando-sedeummedalhão,équenãoseriacientífico.—Upa!queaprofissãoédifícil.—Eaindanãochegamosaocabo.—Vamosaele.—Não te falei ainda dos benefícios da publicidade.A publicidade é uma

dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos,confeitos, almofadinhas, cousas miúdas, que antes exprimem a constância doafetodoqueoatrevimentoeaambição.Qued.Quixotesoliciteosfavoresdelamedianteaçõesheroicasoucustosaséumsestroprópriodesseilustrelunático.Overdadeiromedalhãotemoutrapolítica.LongedeinventarumTratadocientíficodacriaçãodoscarneiros,compraumcarneiroedá-oaosamigossobaformadeum jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Umanotícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos domundo.Comissões oudeputações para felicitar umagraciado, umbenemérito,um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades eassociações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Ossucessosde certa ordem, emboradepoucamonta, podem ser trazidos a lume,contantoqueponhamemrelevoatuapessoa.Explico-me.Secaíresdeumcarro,semoutrodano,alémdosusto,éútilmandá-lodizeraosquatroventos,nãopelofato em si, que é insignificante,mas pelo efeito de recordar umnome caro àsafeiçõesgerais.Percebeste?

—Percebi.—Essaépublicidadeconstante,barata,fácil,detodososdias;masháoutra.

Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento dafamília,aamizadepessoaleaestimapúblicainstigamàreproduçãodasfeiçõesdeumhomemamadooubenemérito.Nadaobstaaquesejasobjetodeumataldistinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em tirepugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidezmandamaceitaroretratoouobusto,comoseriadesazadoimpedirqueosamigoso expusessem em qualquer casa pública.Dessamaneira o nome fica ligado àpessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessãoinauguraldaUniãodosCabeleireiros,reconhecerãonacomposturadasfeiçõesoautordessaobragrave,emquea“alavancadoprogresso”e“osuordotrabalho”vencemas“fauceshiantes”damiséria.Nocasodequeumacomissãoteleveà

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casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio degratidãoeumcopod’água:éusoantigo,razoávelehonesto.Convidarásentãoos melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas derepresentação.Mais.Se essedia é umdia deglória ou regozijo, nãovejoquepossas, decentemente, recusar um lugar àmesa aos reporters dos jornais. Emtodo caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podesajudá-losdecertamaneira, redigindo tumesmoanotíciada festa;e,dadoqueporumtalouqualescrúpulo,aliásdesculpável,nãoqueirascomaprópriamãoanexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algumamigoouparente.

—Digo-lhequeoquevosmecêmeensinanãoénadafácil.—Nem eu te digo outra cousa. É difícil, come tempo,muito tempo, leva

anos,paciência,trabalho,efelizesosquechegamaentrarnaterraprometida!Osque lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tutriunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompassagradas.Sóentãopoderásdizerqueestásfixado.Começanessediaatuafasede ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se anecessidadede farejar ocasiões, comissões, irmandades; elasvirão ter contigo,comoseuarpesadãoecrudesubstantivosdesadjetivados,etuserásoadjetivodessasoraçõesopacas,oodoríferodasflores,oaniladodoscéus,oprestimosodos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal,porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. Osubstantivoéarealidadenuaecrua,éonaturalismodovocabulário.

— E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para osdeficitsdavida?

—Decerto;nãoficaexcluídanenhumaoutraatividade.—Nempolítica?— Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações

capitais.Podespertenceraqualquerpartido,liberalouconservador,republicanoou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial aessesvocábulos,ereconhecer-lhesomenteautilidadedoscibbolethbíblico.

—Seforaoparlamento,possoocuparatribuna?— Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à

matériadosdiscursos,tensàescolha:—ouosnegóciosmiúdos,ouametafísicapolítica,masprefereametafísica.Osnegóciosmiúdos,forçaéconfessá-lo,nãodesdizemdaquelachatezadebom-tom,própriadeummedalhãoacabado;mas,sepuderes,adotaametafísica—émaisfácilemaisatraente.Supõequedesejassaberporquemotivoa7aCompanhiadeInfantariafoitransferidadeUruguaianapara Canguçu; serás ouvido tão somente pelo ministro da Guerra, que te

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explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Umdiscurso demetafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público,chamaosaparteseasrespostas.Edepoisnãoobrigaapensaredescobrir.Nesseramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado,encaixotado;ésóproverosalforjesdamemória.Emtodocaso,nãotranscendasnuncaoslimitesdeumainvejávelvulgaridade.

—Fareioquepuder.Nenhumaimaginação?—Nenhuma;antesfazecorreroboatodequeumtaldoméínfimo.—Nenhumafilosofia?— Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada.

“Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar comfrequência,masproíbo-tequecheguesaoutrasconclusõesquenãosejamasjáachadasporoutros.Fogeatudoquepossacheirarareflexão,originalidade,etc.,etc.

—Tambémaoriso?—Comoaoriso?—Ficarsério,muitosério...—Conforme.Tensumgêniofolgazão,prazenteiro,nãohásdesofreá-lonem

eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizermelancólico.Umgravepodeterseusmomentosdeexpansãoalegre.Somente—eestepontoémelindroso...

—Diga.—Somentenãodevesempregaraironia,essemovimentoaocantodaboca,

cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído porLuciano,transmitidoaSwifteVoltaire,feiçãoprópriadoscéticosedesabusados.Não.Usaantesachalaça,anossaboachalaçaamiga,gorducha,redonda,franca,sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como umapalmada,fazpularosanguenasveias,earrebentarderisoossuspensórios.Usaachalaça.Queéisto?

—Meia-noite.—Meia-noite?Entrasnos teus22anos,meuperalta; estásdefinitivamente

maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho.Guardadasasproporções,aconversadestanoitevaleoPríncipedeMachiavelli.Vamosdormir.

GazetadeNotícias,18dedezembrode1881;MachadodeAssis.

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D.Benedita

(Umretrato)

CapítuloI

A cousamais árduadomundo, depois doofício de governar, seria dizer a

idadeded.Benedita.Unsdavam-lhequarentaanos,outros45, alguns36.Umcorretordefundosdesciaaos29;masestaopinião,eivadadeintençõesocultas,careciadaquelecunhodesinceridadequetodosgostamosdeacharnosconceitoshumanos. Nem eu a cito, senão para dizer, desde logo, que d. Benedita foisempreumpadrãodebonscostumes.Aastúciadocorretornãofezmaisdoqueindigná-la, embora, momentaneamente; digo momentaneamente. Quanto àsoutrasconjecturas,oscilandoentreos36eos45,nãodesdiziamdasfeiçõesded.Benedita, que eram maduramente graves e juvenilmente graciosas. Mas, sealgumacousaadmiraéquehouvessesuposiçõesnestenegócio,quandobastavainterrogá-laparasaberaverdadeverdadeira.

D.Beneditafez42anosnodomingo19desetembrode1869.Sãoseishorasda tarde; amesa da família está ladeada de parentes e amigos, emnúmero devinteou25pessoas.Muitasdessasestiveramnojantarde1868,node1867enode1866,eouviramsemprealudir francamenteà idadedadonadacasa.Alémdisso,veem-seali,àmesa,umamoçaeumrapaz,seusfilhos;esteé,decerto,notamanho e nasmaneiras, um tantomenino;mas amoça, Eulália, contando 18anos,pareceter21,taléaseveridadedosmodosedasfeições.

A alegria dos convivas, a excelência do jantar, certas negociaçõesmatrimoniais incumbidas aocônegoRoxo, aquipresente, edasquais se falarámaisabaixo,asboasqualidadesdadonadacasa,tudoissodáàfestaumcaráteríntimo e feliz. O cônego levanta-se para trinchar o peru. D. Benedita acatavaesseusonacionaldascasasmodestasdeconfiaroperuaumdosconvivas,emvezdeofazerretalharforadamesapormãosservis,eocônegoeraopianistadaquelasocasiõessolenes.Ninguémconheciamelhoraanatomiadoanimal,nem

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sabia operar com mais presteza. Talvez — e este fenômeno fica para osentendidos—,talvezacircunstânciadocanonicatoaumentasseaotrinchante,noespírito dos convivas, uma certa soma de prestígio, que ele não teria, porexemplo, se fosseumsimplesestudantedematemáticas,ouumamanuensedesecretaria.Mas,poroutrolado,umestudanteouumamanuense,semaliçãodolongo uso, poderia dispor da arte consumada do cônego? É outra questãoimportante.

Venhamos, porém, aos demais convivas, que estão parados, conversando;reinaoburburinhoprópriodosestômagosmeioregalados,orisodanaturezaquecaminhaparaarepleção;éuminstantederepouso.

D.Beneditafala,comoassuasvisitas,masnãofalapara todas,senãoparauma,queestá sentadaaopédela.Essaéumasenhoragorda, simpática,muitorisonha,mãedeumbacharelde22anos,oLeandrinho,queestásentadodefrontedelas.D.Beneditanãosecontentadefalaràsenhoragorda,temumadasmãosdestaentreassuas;enãosecontentadelheterpresaamão,fita-lheunsolhosnamorados, vivamente namorados. Não os fita, note-se bem, de um modopersistenteelongo,masinquieto,miúdo,repetido,instantâneo.Emtodocaso,hámuitaternuranaquelegesto;e,dadoquenãoahouvesse,nãoseperderianada,porqued.Beneditarepetecomabocaad.MariadosAnjostudooquecomosolhoslhetemdito:—queestáencantada,queconsideraumafortunaconhecê-la,queémuitosimpática,muitodigna,quetrazocoraçãonosolhos,etc.,etc.Umadesuasamigasdiz-lhe,rindo,queestácomciúmes.

—Quearrebente!—respondeela,rindotambém.Evoltando-separaaoutra:—Nãoacha?ninguémdevemeter-secomanossavida.Eaí tornavamas finezas,osencarecimentos,os risos,asofertas,mais isto,

mais aquilo—umprojeto de passeio, outro de teatro, e promessas demuitasvisitas, tudocom tamanhaexpansãoecalor,queaoutrapalpitavadealegriaereconhecimento.

Operuestácomido.D.MariadosAnjosfazumsinalaofilho;estelevanta-seepedequeoacompanhememumbrinde:

—Meus senhores, é preciso desmentir estamáxima dos franceses:— lesabsentsonttort.Bebamosaalguémqueestálonge,muitolonge,noespaço,masperto, muito perto, no coração de sua digna esposa: — bebamos ao ilustredesembargadorProença.

Aassembleianãocorrespondeuvivamenteaobrinde;eparacompreendê-lobastaverorostotristedadonadacasa.Osparenteseosmaisíntimosdisserambaixinho entre si que oLeandrinho fora estouvado; enfim, bebeu-se,mas semestrépito; ao que parece, para não avivar a dor de d.Benedita.Vã precaução!

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D. Benedita, não podendo conter-se, deixou rebentarem-lhe as lágrimas,levantou-se da mesa, retirou-se da sala. D. Maria dos Anjos acompanhou-a.Sucedeu um silêncio mortal entre os convivas. Eulália pediu a todos quecontinuassem,queamãevoltavajá.

—Mamãeémuitosensível—disseela—,eaideiadequepapaiestálongedenós...

O Leandrinho, consternado, pediu desculpa a Eulália.Um sujeito, ao ladodele,explicou-lhequed.Beneditanãopodiaouvirfalardomaridosemreceberumgolpenocoração—echorarlogo;aoqueoLeandrinhoacudiudizendoquesabia da tristeza dela,mas estava longe de supor que o seu brinde tivesse tãomauefeito.

—Poiseraacousamaisnatural—explicouosujeito—porqueelamorrepelomarido.

—Ocônego—acudiuLeandrinho—disse-mequeele foiparaoParáháunsdousanos...

—Dousanosemeio;foinomeadodesembargadorpeloministérioZacarias.ElequeriaaRelaçãodeS.Paulo,oudaBahia;masnãopôdesereaceitouadoPará.

—Nãovoltoumais?—Nãovoltou.—D.Beneditanaturalmentetemmedodeembarcar...—Creioquenão.JáfoiumavezàEuropa.Sebemmelembro,elaficoupara

arranjaralgunsnegóciosdefamília;masfoificando,ficando,eagora...— Mas era muito melhor ter ido em vez de padecer assim... Conhece o

marido?—Conheço;umhomemmuitodistinto,eaindamoço,forte;nãoterámaisde

45 anos. Alto, barbado, bonito. Aqui há tempos disse-se que ele não teimavacomamulher,porqueestavaládeamorescomumaviúva.

—Ah!—Ehouve até quemviesse contá-lo a elamesma. Imagine comoa pobre

senhoraficou!Chorouumanoiteinteira,nodiaseguintenãoquisalmoçar,edeutodasasordensparaseguirnoprimeirovapor.

—Masnãofoi?—Nãofoi;desfezaviagemdaíatrêsdias.D.Beneditavoltounessemomento,pelobraçoded.MariadosAnjos.Trazia

um sorriso envergonhado; pediu desculpa da interrupção, e sentou-se com arecenteamigaaolado,agradecendooscuidadosquelhedeu,pegando-lheoutraveznamão.

—Vejoquemequerbem—disseela.

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—Asenhoramerece—dissed.MariadosAnjos.—Mereço?—inquiriuelaentredesvanecidaemodesta.Edeclarouquenão,queaoutraéqueeraboa,umanjo,umverdadeiroanjo;

palavra que ela sublinhou com o mesmo olhar namorado, não persistente elongo,masinquietoerepetido.Ocônego,pelasuaparte,comofimdeapagaralembrançadoincidente,procurougeneralizaraconversa,dando-lheporassuntoaeleiçãodomelhordoce.Ospareceresdivergirammuito.Unsacharamqueeraode coco, outros o de caju, alguns o de laranja, etc. Um dos convivas, oLeandrinho,autordobrinde,diziacomosolhos—nãocomaboca—,edizia-odeummodo astucioso, queomelhor doce eramas faces deEulália, umdocemoreno,corado;ditoqueamãedele interiormenteaprovava,equeamãedelanãopodiaver, tãoentregueestavaàcontemplaçãodarecenteamiga.Umanjo,umverdadeiroanjo!

CapítuloII

D.Beneditalevantou-se,nodiaseguinte,comaideiadeescreverumacarta

aomarido,umalongacartaemquelhenarrasseafestadavéspera,nomeasseosconvivas e os pratos, descrevesse a recepçãonoturna, e, principalmente, dessenotíciadasnovasrelaçõescomd.MariadosAnjos.Amalafechava-seàsduashorasdatarde,d.Beneditaacordaraàsnove,e,nãomorandolonge(moravanoCampo daAclamação), um escravo levaria a carta ao correiomuito a tempo.Demais, chovia; d. Benedita arredou a cortina da janela, deu com os vidrosmolhados; era uma chuvinha teimosa, o céu estava todobrochadodeuma corpardo-escura,malhadadegrossasnuvensnegras.Aolonge,viuflutuarevoaropanoquecobriaobalaioqueumapretalevavaàcabeça:concluiuqueventava.Magníficodiaparanãosair,e,portanto,escreverumacarta,duascartas,todasascartasdeumaesposaaomaridoausente.Ninguémviriatentá-la.

Enquantoelacompõeosbabadinhoserendasdoroupãobranco,umroupãodecambraiaqueodesembargadorlhederaem1862,nomesmodiaaniversário,19desetembro,convidoaleitoraaobservar-lheasfeições.VêquenãolhedouVênus; também não lhe douMedusa. Ao contrário deMedusa, nota-se-lhe oalisadosimplesdocabelo,presosobreanuca.Osolhossãovulgares,mastêmuma expressão bonachã. A boca é daquelas que, ainda não sorrindo, são

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risonhas, e tem esta outra particularidade, que é uma boca sem remorsos nemsaudades:podiadizersemdesejos,maseusódigooquequero,esóquerofalardassaudadesedosremorsos.Todaessacabeça,quenãoentusiasma,nemrepele,assenta sobreumcorpoantesaltodoquebaixo,enãomagronemgordo,masfornidonaproporçãodaestatura.Paraquefalar-lhedasmãos?Hádeadmirá-laslogo,aotravardapenaedopapel,comosdedosafiladosevadios,dousdelesornadosdecincoouseisanéis.

Creio que é bastante ver o modo por que ela compõe as rendas e osbabadinhosdoroupãoparacompreenderqueéumasenhorapichosa,amigadoarranjodascousasedesimesma.Notoquerasgouagoraobabadinhodopunhoesquerdo,maséporque,sendotambémimpaciente,nãopodiamais“comavidadeste diabo”. Essa foi a sua expressão, acompanhada logo de um “Deus meperdoe!”queinteiramente lheextraiuoveneno.Nãodigoqueelabateucomopé,masadivinha-se,porserumgestonaturaldealgumassenhorasirritadas.Emtodocaso,acóleraduroupoucomaisdemeiominuto.D.Beneditafoiàcaixinhade costura para dar um ponto no rasgão, e contentou-se com um alfinete. Oalfinete caiu no chão, ela abaixou-se a apanhá-lo. Tinha outros, é verdade,muitosoutros,masnãoachavaprudentedeixaralfinetesnochão.Abaixando-se,aconteceu-lhe ver a ponta da chinela, na qual pareceu-lhe descobrir um sinalbranco;sentou-senacadeiraquetinhaperto,tirouachinela,eviuoqueera:eraum roidinhodebarata.Outra raivaded.Benedita,porquea chinela eramuitogalante,efora-lhedadaporumaamigadoanopassado.Umanjo,umverdadeiroanjo!D.Beneditafitouosolhosirritadosnosinalbranco;felizmenteaexpressãobonachãdelesnãoeratãobonachãquesedeixasseeliminardetodoporoutrasexpressõesmenospassivas,eretomouoseulugar.D.Beneditaentrouavirarerevirarachinela,eapassá-ladeumaparaoutramão,aprincípiocomamor,logodepois maquinalmente, até que as mãos pararam de todo, a chinela caiu noregaço,ed.Beneditaficouaolharparaoar,parada,fixa.Nistoorelógiodasaladejantarcomeçouabaterhoras.D.Beneditalogoàsprimeirasduasestremeceu:

—Jesus!Dezhoras!E,rápida,calçouachinela,consertoudepressaopunhodoroupão,edirigiu-

seàescrivaninha,paracomeçaracarta.Escreveu,comefeito,adata,eum:—“Meu ingrato marido”; enfim, mal traçara estas linhas: — “Você lembrou-seontemdemim?Eu...”,quandoEulálialhebateuàporta,bradando:

—Mamãe,mamãe,sãohorasdealmoçar.D.Beneditaabriuaporta,Euláliabeijou-lheamão,depoislevantouassuas

aocéu:—MeuDeus!quedorminhoca!—Oalmoçoestápronto?

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—Háqueséculos!—Maseutinhaditoquehojeoalmoçoeramaistarde...Estavaescrevendoa

teupai.Olhoualgunsinstantesparaafilha,comodesejosadelhedizeralgumacousa

grave,aomenosdifícil, taleraaexpressãoindecisaesériadosolhos.Masnãochegouadizernada;afilharepetiuqueoalmoçoestavanamesa,pegou-lhedobraçoelevou-a.

Deixemo-lasalmoçaràvontade;descansemosnessaoutrasala,adevisitas,sem aliás inventariar osmóveis dela, como o não fizemos em nenhuma outrasalaouquarto.Nãoéqueelesnãoprestem,ousejamdemaugosto;aocontrário,sãobons.Masaimpressãogeralqueserecebeéesquisita,comoseaotrastejardaquelacasahouvessepresididoumplanotruncado,ouumasucessãodeplanostruncados.Mãe,filhaefilhoalmoçaram.Deixemosofilho,quenosnãoimporta,umpirralhode12anos,quepareceteroito,tãomofinoéele.Euláliainteressa-nos, não só pelo que vimos de relance no capítulo passado, como porque,ouvindoamãefalaremd.MariadosAnjosenoLeandrinho,ficoumuitosériae,talvez,umpoucoamuada.D.Beneditapercebeuqueoassuntonãoeraaprazívelàfilha,erecuoudaconversa,comoalguémquedesandaumaruaparaevitarumimportuno;recuoueergueu-se:afilhaveiocomelaparaasaladevisitas.

Eramonzehorasmenosumquarto.D.Beneditaconversoucoma filhaatédepois domeio-dia, para ter tempo de descansar o almoço e escrever a carta.Sabemqueamalafechaàsduashoras.Defato,algunsminutos,poucos,depoisdo meio-dia, d. Benedita disse à filha que fosse estudar piano, porque ela iaacabaracarta.Saiudasala;Euláliafoiàjanela,relanceouavistapeloCampo,e,selhesdisserquecomumapontazinhadetristezanosolhos,podemcrerqueéapura verdade. Não era todavia a tristeza dos débeis ou dos indecisos; era atristezadosresolutos,aquemdóideantemãoumatopelamortificaçãoquehádetrazer a outros, e que, nãoobstante, jurama simesmospraticá-lo, e praticam.Convenho que nem todas essas particularidades podiam estar nos olhos deEulália,masporissomesmoéqueashistóriassãocontadasporalguém,queseincumbedepreencheras lacunasedivulgaroescondido.Queerauma tristezamáscula,era—equedaíapoucoosolhos sorriamdeumsinaldeesperança,tambémnãoémentira.

—Istoacaba—murmurouela,vindoparadentro.Justamentenessaocasiãoparavaumcarroàporta, apeava-seumasenhora,

ouvia-seacampainhadaescada,desciaummolequeaabriracancela,esubiaasescadasd.MariadosAnjos.D.Benedita,quandolhedisseramquemera,largouapena,alvoroçada;vestiu-seàpressa,calçou-se,efoiàsala.

—Comestetempo!—exclamou.—Ah!istoéqueéquererbemàgente!

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— Vim sem esperar pela sua visita, só para mostrar que não gosto decerimônias,equeentrenósdevehaveramaiorliberdade.

Vieram os cumprimentos de estilo, as palavrinhas doces, os afagos davéspera.D.Benedita não se fartava de dizer que a visita naquele dia era umagrandefineza,umaprovadeverdadeiraamizade;masqueriaoutra,acrescentoudaíauminstante,qued.MariadosAnjosficasseparajantar.Estadesculpou-sealegandoquetinhadeiraoutraspartes;demais,essaeraaprovaquelhepedia—a de ir jantar à casa dela primeiro.D.Benedita não hesitou, prometeu quesim,naquelamesmasemana.

—Estavaagoramesmoescrevendooseunome—continuou.—Sim?—Estouescrevendoameumarido,efalodasenhora.Nãolherepitooque

escrevi, mas imagine que falei muito mal da senhora, que era antipática,insuportável,maçante,aborrecida...Imagine!

—Imagino, imagino.Podeacrescentarque,apesardeser tudoisso,emaisalgumacousa,apresento-lheosmeusrespeitos.

— Como ela tem graça para dizer as cousas! — comentou d. Beneditaolhandoparaafilha.

Eulália sorriu semconvicção.Sentadanacadeira fronteiraàmãe,aopédaoutra ponta do sofá em que estava d. Maria dos Anjos, Eulália dava àconversação das duas a soma de atenção que a cortesia lhe impunha, e nadamais.

Chegavaapareceraborrecida;cadasorrisoque lheabriaabocaeradeumamarelopálido,umsorrisodefavor.Umadastranças—erademanhã,traziaocabelo emduas tranças caídas pelas costas abaixo—uma delas servia-lhe depretexto a alhear-se de quando em quando, porque puxava-a para a frente econtava-lheosfiosdocabelo—oupareciacontá-los.Assimocreud.MariadosAnjos, quando lhe lançou uma ou duas vezes os olhos, curiosa, desconfiada.D. Beneditaéquenãovianada;viaaamiga,afeiticeira,comolhechamouduasoutrêsvezes—“feiticeiracomoelasó”.

—Já!D. Maria dos Anjos explicou que tinha de ir a outras visitas; mas foi

obrigadaaficaraindaalgunsminutos,apedidodaamiga.Comotrouxesseummanteletederendapreta,muitoelegante,d.Beneditadissequetinhaumigual,emandoubuscá-lo.Tudodemoras.MasamãedoLeandrinhoestavatãocontente!D. Beneditaenchia-lheocoração;achavanelatodasasqualidadesquemelhorseajustavam à sua alma e aos seus costumes, ternura, confiança, entusiasmo,simplicidade, uma familiaridade cordial e pronta. Veio o mantelete; vieramoferecimentosdealgumacousa,umdoce,um licor,umrefresco;d.Mariados

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Anjosnãoaceitounadamaisdoqueumbeijoeapromessadequeiriamjantarcomelanaquelasemana.

—Quinta-feira—dissed.Benedita.—Palavra?—Palavra.—Quequerquelhefaçasenãofor?Hádeserumcastigobemforte.—Bemforte?Nãomefalemais.D.Maria dos Anjos beijou commuita ternura a amiga; depois abraçou e

beijoutambémaEulália,masaefusãoeramuitomenordeparteaparte.Umaeoutra mediam-se, estudavam-se, começavam a compreender-se. D. Beneditalevouaamigaatéopatamardaescada,depoisfoiàjanelaparavê-laentrarnocarro;aamiga,depoisdeentrarnocarro,pôsacabeçadefora,olhouparacima,edisse-lheadeus,comamão.

—Nãofalte,ouviu?—Quinta-feira.Euláliajánãoestavanasala;d.Beneditacorreuaacabaracarta.Eratarde;

não relatara o jantar da véspera, nem já agora podia fazê-lo. Resumiu tudo;encareceumuitoasnovasrelações;enfim,escreveuestaspalavras:

O cônego Roxo falou-me em casar Eulália com o filho de d. Maria dos

Anjos; é ummoço formado em direito este ano; é conservador, e espera umapromotoria, agora, se o Itaboraí não deixar o ministério. Eu acho que ocasamentoéomelhorpossível.Odr.Leandrinho(éonomedele)émuitobem-educado;fezumbrindeavocê,cheiodepalavrastãobonitas,queeuchorei.EunãoseiseEuláliaquereráounão;desconfiodeoutrosujeitoqueoutrodiaesteveconosconasLaranjeiras.Masvocêquepensa?Devolimitar-meaaconselhá-la,ou impor-lhe a nossa vontade? Eu acho que devo usar um pouco de minhaautoridade;masnãoquerofazernadasemquevocêmediga.Omelhorseriasevocêviessecá.

Acabou e fechou a carta; Eulália entrou nessa ocasião, ela deu-lha para

mandar,semdemora,aocorreio;eafilhasaiucomacartasemsaberquetratavadela e do seu futuro.D.Benedita deixou-se cair no sofá, cansada, exausta.Acarta era muito comprida apesar de não dizer tudo; e era-lhe tão enfadonhoescrevercartascompridas!

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CapítuloIII

Era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas! Esta palavra, fecho do

capítulopassado,explicaalongaprostraçãoded.Benedita.Meiahoradepoisdecairno sofá, ergueu-seumpouco, epercorreuogabinete comosolhos, comoprocurandoalgumacousa.Essacousaeraumlivro.Achouolivro,epodiadizerachouoslivros,poisnadamenosdetrêsestavamali,dousabertos,ummarcadoemcertapágina,todosemcadeiras.Eramtrêsromancesqued.Beneditaliaaomesmo tempo. Um deles, note-se, custou-lhe não pouco trabalho. Deram-lhenotícianarua,pertodecasa,commuitoselogios;chegaradaEuropanavéspera.D.Benedita ficou tão entusiasmada, que apesar de ser longe e tarde, arrepioucaminho e foi ela mesma comprá-lo, correndo nada menos de três livrarias.Voltouansiosa,namoradadolivro,tãonamoradaqueabriuasfolhas,jantando,eleu os cinco primeiros capítulos naquelamesma noute. Sendo preciso dormir,dormiu;nodiaseguintenãopôdecontinuar,depoisesqueceu-o.Agora,porém,passadosoitodias,querendoleralgumacousa,aconteceu-lhejustamenteachá-loàmão.

—Ah!Eei-laquetornaaosofá,queabreolivrocomamor,quemergulhaoespírito,

osolhos eo coraçãona leitura tãodesastradamente interrompida.D.Beneditaamaosromances,énatural;eadoraosromancesbonitos,énaturalíssimo.Nãoadmiraqueesqueça tudopara lereste; tudo,atéa liçãodepianodafilha,cujoprofessor chegou e saiu, sem que ela fosse à sala. Eulália despediu-se doprofessor;depoisfoiaogabinete,abriuaporta,caminhoupéantepéatéosofá,eacordouamãecomumbeijo.

—Dorminhoca!—Aindachove?—Não,senhora;agoraparou.—Acartafoi?—Foi;mandeioJoséatodaapressa.Apostoquemamãeesqueceu-sededar

lembrançasapapai?Poisolhe,eunãomeesqueçonunca.D. Benedita bocejou. Já não pensava na carta; pensava no colete que

encomendaraàCharavel,umcoletedebarbatanasmaismolesdoqueoúltimo.Nãogostavadebarbatanasduras;tinhaocorpomuisensível,Euláliafalouaindaalgum tempo do pai, mas calou-se logo, e vendo no chão o livro aberto, ofamosoromance,apanhou-o,fechou-o,pô-loemcimadamesa.Nessemomentovieram trazer uma carta a d. Benedita; era do cônego Roxo, que mandava

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perguntarseestavamemcasanaqueledia,porqueiriaaoenterrodosossos.—Poisnão!—bradoud.Benedita.—Estamosemcasa,venha,podevir.Euláliaescreveuobilhetinhoderesposta.Daíatrêsquartosdehorafaziao

cônego a sua entrada na sala de d. Benedita. Era um bom homem o cônego,velho amigo daquela casa, na qual, além de trinchar o peru nos dias solenes,comovimos,exerciaopapeldeconselheiro,eexercia-ocom lealdadeeamor.Eulália, principalmente, merecia-lhe muito; vira-a pequena, galante, travessa,amiga dele, e criou-lhe uma afeição paternal, tão paternal que tomara a peitocasá-labem,enenhumnoivomelhordoqueoLeandrinho,pensavaocônego.Naqueledia,aideiadeirjantarcomelaseraantesumpretexto;ocônegoqueriatrataronegóciodiretamentecomafilhadodesembargador.Eulália,ouporqueadivinhasse isso mesmo, ou porque a pessoa do cônego lhe lembrasse oLeandrinho,ficoulogopreocupada,aborrecida.

Mas, preocupadaou aborrecida, nãoquer dizer triste oudesconsolada.Eraresoluta, tinha têmpera,podiaresistir,eresistiu,declarandoaocônego,quandoelenaquelanoutelhefaloudoLeandrinho,queabsolutamentenãoqueriacasar.

—Palavrademoçabonita?—Palavrademoçafeia.—Mas,porquê?—Porquenãoquero.—Esemamãequiser?—Nãoqueroeu.—Mau!issonãoébonito,Eulália.Eulália deixou-se estar. O cônego ainda tornou ao assunto, louvou as

qualidadesdocandidato,asesperançasda família,asvantagensdocasamento;ela ouvia tudo, sem contestar nada. Mas quando o cônego formulava de ummododiretoaquestão,arespostainvariáveleraesta:

—Jádissetudo.—Nãoquer?—Não.Odesconsolodobomcônegoeraprofundoesincero.Queriacasá-labem,e

não achavamelhor noivo.Chegou a interrogá-la discretamente, sobre se tinhaalguma preferência em outra parte. Mas Eulália, não menos discretamente,respondiaquenão,quenão tinhanada;nãoquerianada;nãoqueria casar.Elecreuqueeraassim,masreceoutambémquenãofosseassim;faltava-lheotratosuficientedasmulheresparaleratravésdeumanegativa.Quandoreferiutudoad.Benedita,estaficouassombradacomostermosdarecusa;mastornoulogoasi,edeclarouaopadrequeafilhanãotinhavontade,fariaoqueelaquisesse,eelaqueriaocasamento.

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—Jáagoranemesperorespostadopai—concluiu—;declaro-lhequeelahádecasar.Quinta-feiravoujantarcomd.MariadosAnjos,ecombinaremosascousas.

—Devo dizer-lhe— ponderou o cônego— que d.Maria dosAnjos nãodesejaquesefaçanadaàforça.

—Qualforça!Nãoéprecisoforça.Ocônegorefletiuuminstante.—Emtodocaso,nãoviolentaremosqualqueroutraafeição,queelapossater

—disseele.D.Beneditanãorespondeunada;masconsigo,nomaisfundodesimesma,

jurouque,houvesseoquehouvesse,acontecesseoqueacontecesse,afilhaserianoraded.MariadosAnjos.Eaindaconsigo,depoisde sairocônego:“Tinhaquever!umticodegente,comfumaçasdegovernaracasa!”

Aquinta-feiraraiou.Eulália—oticodegente—levantou-sefresca,lépida,loquaz, com todas as janelas da alma abertas ao sopro azul damanhã.Amãeacordou ouvindo um trecho italiano, cheio de melodia; era ela que cantava,alegre,semafetação,comaindiferençadasavesquecantamparasiouparaosseus,enãoparaopoeta,queasouveetraduznalínguaimortaldoshomens.D.Beneditaafagaramuitoaideiadeaverabatida,carrancuda,egastaraumacertasomade imaginaçãoemcomporosseusmodos,delinearosseusatos,ostentarenergia e força. E nada!Emvez de uma filha rebelde, uma criatura gárrula esubmissa.Eracomeçarmalodia;erasairaparelhadaparadestruirumafortaleza,e dar com uma cidade aberta, pacífica, hospedeira, que lhe pedia o favor deentrarepartiropãodaalegriaedaconcórdia.Eracomeçarodiamuitomal.

A segunda causa do tédio de d.Benedita foi umameaçode enxaqueca, àstrês horas da tarde; um ameaço, ou uma suspeita de possibilidade de ameaço.Chegouatransferiravisita,masafilhaponderouquetalvezavisitalhefizessebem,eemtodocaso,eratardeparadeixardeir.D.Beneditanãoteveremédio,aceitou o reparo. Ao espelho, penteando-se, esteve quase a dizer quedefinitivamenteficava:chegouainsinuá-loàfilha.

—Mamãe,vejaqued.MariadosAnjoscontacoma senhora—disse-lheEulália.

—Poissim—redarguiuamãe—,masnãoprometiirdoente.Enfim, vestiu-se, calçou as luvas, deu as últimas ordens; e devia doer-lhe

muito a cabeça, porque os modos eram arrebitados, uns modos de pessoaconstrangidaaoquenãoquer.Afilhaanimava-amuito,lembrava-lheovidrinhodos sais, instava que saíssem, descrevia a ansiedade de d. Maria dos Anjos,consultavadedousemdousminutosopequeninorelógio,quetrazianacintura,etc.Umaamofinação,realmente.

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—Oquetuestásémeamofinando—disse-lheamãe.Esaiu,saiuexasperada,comumagrandevontadedeesganarafilha,dizendo

consigoqueapiorcousadomundoeraterfilhas.Osfilhosaindavá:criam-se,fazemcarreiraporsi;masasfilhas!

Felizmente, o jantar de d. Maria dos Anjos aquietou-a; e não digo que aenchessedegrandesatisfação,porquenãofoiassim.Osmodosded.Beneditanãoeramosdocostume;eramfrios,secos,ouquasesecos;ela,porém,explicoudesimesmaadiferença,noticiandooameaçodaenxaqueca,notíciamaistristedoquealegre,eque,aliás,alegrouaalmaded.MariadosAnjos,porestarazãofina e profunda: antes a frieza da amiga fosse originada na doença do que naquebradoafeto.Demais,adoençanãoeragrave.Equefossegrave!Nãohouvenaquele dia mãos presas, olhos nos olhos, manjares comidos entre caríciasmútuas; não houve nada do jantar de domingo.Um jantar apenas conversado;nãoalegre,conversado;foiomaisquealcançouocônego.Amávelcônego!Asdisposições de Eulália, naquele dia, cumularam-no de esperanças; o riso quebrincava nela, a maneira expansiva da conversa, a docilidade com que seprestavaatudo,atocar,acantar,eorostoafável,meigo,comqueouviaefalavaao Leandrinho, tudo isso foi para a alma do cônego uma renovação deesperanças. Logo hoje é que d. Benedita estava doente! Realmente, eracaiporismo.

D. Benedita reanimou-se um pouco, à noite, depois do jantar. Conversoumais, discutiu um projeto de passeio ao Jardim Botânico, chegou mesmo apropor que fosse logo no dia seguinte;mas Eulália advertiu que era prudenteesperar um ou dous dias até que os efeitos da enxaqueca desaparecessem detodo;eoolharquemereceuàmãe,emtrocadoconselho,tinhaapontaagudadeum punhal. Mas a filha não tinha medo dos olhos maternos. De noite, aodespentear-se, recapitulando o dia, Eulália repetiu consigo a palavra que lheouvimos,diasantes,àjanela:

—Istoacaba.E, satisfeita de si, antes de dormir, puxou uma certa gaveta, tirou uma

caixinha, abriu-a, aventou um cartão de alguns centímetros de altura — umretrato. Não era retrato de mulher, não só por ter bigodes, como por estarfardado;era,quandomuito,umoficialdemarinha.Sebonitooufeio,ématériadeopinião.Euláliaachava-obonito;aprovaéqueobeijou,nãodigoumavez,mastrês.Depoismirou-o,comsaudade,tornouafechá-loeguardá-lo.

Quefaziastu,mãecautelosaeríspida,quenãovinhasarrancaràsmãoseàbocadafilhaumvenenotãosutilemortal?D.Benedita,àjanela,olhavaanoite,entreasestrelaseos lampiõesdegás, coma imaginaçãovagabunda, inquieta,roída de saudades e desejos. O dia tinha-lhe saído mal, desde manhã. D.

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Benedita confessava, naquela doce intimidade da alma consigomesma, que ojantarded.MariadosAnjosnãoprestaraparanada,equeaprópriaamiganãoestavaprovavelmentenosseusdiasdecostume.Tinhasaudades,nãosabiabemde quê, e desejos, que ignorava. De quando em quando, bocejava ao modopreguiçoso e arrastado dos que caemde sono;mas se alguma cousa tinha erafastio—fastio,impaciência,curiosidade.D.Beneditacogitouseriamenteemirter com omarido; e tão depressa a ideia domarido lhe penetrou no cérebro,como se lhe apertou o coração de saudades e remorsos, e o sangue pulou-lhenumtalímpetodeirverodesembargadorque,seopaquetedoNorteestivessenaesquinadaruaeasmalasprontas,elaembarcarialogoelogo.Nãoimporta;opaquetedevia estarprestes a sair, oitooudezdias; erao tempodearranjar asmalas.Iriaportrêsmesessomente,nãoeraprecisolevarmuitacousa.

Ei-laqueseconsoladagrandecidadefluminense,dasimilitudedosdias,daescassezdascousas,dapersistênciadascaras,damesmafixidezdasmodas,queeraumdosseusárduosproblemas:—porqueéqueasmodashãodedurarmaisdequinzedias?

—Vou,nãoháquever,vouaoPará—disseelaameia-voz.Comefeito,nodiaseguinte,logodemanhã,comunicouaresoluçãoàfilha,

quearecebeusemabalo.Mandouverasmalasquetinha,achouqueeraprecisomais uma, calculou o tamanho, e determinou comprá-la. Eulália, por umainspiraçãosúbita:

—Mas,mamãe,nósnãovamosportrêsmeses?—Três...oudous.—Pois,então,nãovaleapena.Asduasmalaschegam.—Nãochegam.—Bem; se não chegarem, pode-se comprar na véspera. Emamãemesmo

escolhe;émelhordoquemandarestagentequenãosabenada.D.Beneditaachouareflexãojudiciosa,eguardouodinheiro.Afilhasorriu

paradentro.Talvezrepetisseconsigoafamosapalavradajanela:“Istoacaba.”Amãe foi cuidar dos arranjos, escolha de roupa, lista das cousas que precisavacomprar,umpresenteparaomarido,etc.Ah!Quealegriaqueeleiater!Depoisdomeio-diasaíramparafazerencomendas,visitas,compraraspassagens,quatropassagens;levavamumaescravaconsigo.Euláliaaindatentouarredá-ladaideia,propondoatransferênciadaviagem;masd.Beneditadeclarouperemptoriamentequenão.NoescritóriodaCompanhiadePaquetesdisseram-lhequeodoNortesaía na sexta-feira da outra semana. Ela pediu as quatro passagens; abriu acarteirinha,tirouumanota,depoisduas,refletiuuminstante.

—Bastavirnavéspera,não?—Basta,maspodenãoacharmais.

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—Bem;osenhorguardeosbilhetes:eumandobuscar.—Oseunome?—Onome?Omelhorénãotomaronome;nósviremostrêsdiasantesde

sairovapor.Naturalmenteaindahaverábilhetes.—Podeser.—Hádehaver.Na rua,Eulália observouque eramelhor ter comprado logoos bilhetes; e,

sabendo-sequeelanãodesejavairparaoNortenemparaoSul,salvonafragataem que embarcasse o original do retrato da véspera, há de supor-se que areflexão da moça era profundamente maquiavélica. Não digo que não. D.Benedita, entretanto, noticiou a viagemaos amigos e conhecidos, nenhumdosquaisaouviuespantado.Umchegouaperguntar-lhese,enfim,daquelavezeracerto.D.MariadosAnjos,quesabiadaviagempelocônego,sealgumacousaaassombrou,quandoaamigasedespediudela,foramasatitudesgeladas,oolharfixo no chão, o silêncio, a indiferença. Uma visita de dez minutos apenas,duranteosquaisd.Beneditadissequatropalavrasnoprincípio:—VamosparaoNorte.Eduasnofim:—Passebem.Eosbeijos?Doustristesbeijosdepessoamorta.

CapítuloIV

Aviagemnãosefezporummotivosupersticioso.D.Benedita,nodomingo

ànoute,advertiuqueopaqueteseguianasexta-feira,eachouqueodiaeramau.Iriamnooutropaquete.Nãoforamnooutro;masdestavezosmotivosescapaminteiramenteaoalcancedoolharhumano,eomelhoralvitreemtaiscasosénãoteimar como impenetrável.A verdade é que d.Benedita não foi,mas iria noterceiropaquete,anãoserumincidentequelhetrocouosplanos.

Tinhaafilhainventadoumafestaeumaamizadenova.Anovaamizadeerauma famíliadoAndaraí; a festanão se sabeaquepropósito foi,masdeve tersidoesplêndida,porqued.Beneditaaindafalavadelatrêsdiasdepois.Trêsdias!Realmente, era demais. Quanto à família, era impossível sermais amável; aomenos,aimpressãoquedeixounaalmaded.Beneditafoiintensíssima.Usoestesuperlativo,porqueelamesmaoempregou:éumdocumentohumano.

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—Aquelagente?Oh!deixou-meumaimpressãointensíssima.E toca a andar para Andaraí, namorada de d. Petronilha, esposa do

conselheiro Beltrão, e de uma irmã dela, d. Maricota, que ia casar com umoficialdemarinha,irmãodeoutrooficialdemarinha,cujosbigodes,olhos,cara,porte, cabelos são os mesmos do retrato que o leitor entreviu há tempos nagavetinha de Eulália. A irmã casada tinha 32 anos, e uma seriedade, umasmaneiras tão bonitas, que deixaram encantada a esposa do desembargador.Quanto à irmã solteira era uma flor, uma flor de cera, outra expressão de d.Benedita,quenãoalterocomreceiodeentibiaraverdade.

Umdospontosmaisobscurosdestacuriosahistóriaéapressacomqueasrelaçõessetravaram,eosacontecimentossesucederam.Porexemplo,umadaspessoas que estiveram emAndaraí, com d.Benedita, foi o oficial demarinharetratado no cartão particular de Eulália, primeiro-tenenteMascarenhas, que oconselheiro Beltrão proclamou futuro almirante. Vede, porém, a perfídia dooficial:vinhafardado;ed.Benedita,queamavaosespetáculosnovos,achou-otãodistinto,tãobonito,entreosoutrosmoçosàpaisana,queopreferiuatodos,elhodisse.Ooficialagradeceucomovido.Elaofereceu-lheacasa;elepediu-lhelicençaparafazerumavisita.

—Umavisita?Vájantarconosco.Mascarenhasfezumacortesiadeaquiescência.—Olhe—dissed.Benedita—,váamanhã.Mascarenhasfoi,efoimaiscedo.D.Beneditafalou-lhedavidadomar;ele

pediu-lheafilhaemcasamento.D.Beneditaficousemvoz,pasmada.Lembrou-se, é verdade, que desconfiara dele, um dia, nas Laranjeiras; mas a suspeitaacabara. Agora não os vira conversar nem olhar uma só vez. Em casamento!Mas seria mesmo em casamento? Não podia ser outra cousa; a atitude séria,respeitosa,implorativadorapazdiziabemquesetratavadeumcasamento.Quesonho! Convidar um amigo, e abrir a porta a um genro: era o cúmulo doinesperado.Masosonhoerabonito;ooficialdemarinhaeraumgalhardorapaz,forte, elegante, simpático, metia toda a gente no coração, e principalmentepareciaadorá-la,aela,d.Benedita.Quemagníficosonho!D.Beneditavoltoudopasmo, e respondeu que sim, que Eulália era sua.Mascarenhas pegou-lhe namãoebeijou-afilialmente.

—Masodesembargador?—disseele.—Odesembargadorconcordarácomigo.Tudoandouassimdepressa.Certidõespassadas,banhoscorridos,marcou-se

o dia do casamento; seria 24 horas depois de recebida a resposta dodesembargador.Quealegriaadaboamãe!queatividadenopreparodoenxoval,noplanoenasencomendasdafesta,naescolhadosconvidados,etc.!Elaiade

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umladoparaoutro,oraapé,oradecarro,fizessechuvaousol.Nãosedetinhanomesmoobjetomuito tempo; a semanado enxoval não era a dopreparodafesta,nemadasvisitas;alternavaascousas,voltavaatrás,comcertaconfusão,éverdade.Masaíestavaafilhaparasuprirasfaltas,corrigirosdefeitos,cercearasdemasias, tudocoma suahabilidadenatural.Aocontráriode todososnoivos,estenãoasimportunava;nãojantavatodososdiascomelas,segundolhepediaadonadacasa;jantavaaosdomingos,evisitava-asumavezporsemana.Matavaassaudadespormeiodecartas,queeramcontínuas,longasesecretas,comonotempodonamoro.D.Beneditanãopodiaexplicaruma talesquivança,quandoelamorria por ele; e então vingava-se da esquisitice,morrendo aindamais, edizendodeleportodaaparteasmaisbelascousasdomundo.

—Umapérola!umapérola!—Eumbonitorapaz—acrescentavam.—Nãoé?Detruz.Amesmacousarepetiaaomaridonascartasquelhemandava,antesedepois

dereceberarespostadaprimeira.Arespostaveio;odesembargadordeuoseuconsentimento,acrescentandoquelhedoíamuitonãopodervirassistiràsbodas,porachar-seum tantoadoentado;masabençoavade longeos filhos,epediaoretratodogenro.

Cumpriu-se o acordo à risca. Vinte e quatro horas depois de recebida aresposta do Pará efetuou-se o casamento, que foi uma festa admirável,esplêndida,nodizerded.Benedita,quandoacontouaalgumasamigas.OficiouocônegoRoxo,eclaroéqued.MariadosAnjosnãoestevepresente,emenosaindaofilho.Elaesperou,note-se,atéàúltimahoraumbilhetedeparticipação,umconvite,umavisita, emboraseabstivessedecomparecer;masnão recebeunada. Estava atônita, revolvia a memória a ver se descobria algumainadvertênciasuaquepudesseexplicarafriezadasrelações;nãoachandonada,supôs alguma intriga. E supôs mal, pois foi um simples esquecimento. D.Benedita,nodiadoconsórcio,demanhã,teveideiadequed.MariadosAnjosnãoreceberaparticipação.

—Eulália,parecequenãomandamosparticipaçãoad.MariadosAnjos?—disseelaàfilha,almoçando.

—Nãosei;mamãeéquemseincumbiudosconvites.—Parecequenão—confirmoud.Benedita.—João,dácámaisaçúcar.Ocopeirodeu-lheoaçúcar;ela,mexendoochá,lembrou-sedocarroqueiria

buscarocônegoereiterouumaordemdavéspera.Mas a fortuna é caprichosa. Quinze dias depois do casamento, chegou a

notícia do óbito do desembargador. Não descrevo a dor de d. Benedita; foidilaceranteesincera.Osnoivos,quedevaneavamnaTijuca,vieramtercomela;

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d. Benedita chorou todas as lágrimas de uma esposa austera e fidelíssima.Depoisdamissadosétimodia,consultouafilhaeogenroacercadaideiadeirao Pará, erigir um túmulo ao marido, e beijar a terra em que ele repousava.Mascarenhastrocouumolharcomamulher;depoisdisseàsograqueeramelhoriremjuntos,porqueeledeviaseguirparaoNortedaíatrêsmesesemcomissãodogoverno.D.Beneditarecalcitrouumpouco,masaceitouoprazo,dandodesdelogotodasasordensnecessáriasàconstruçãodotúmulo.Otúmulofez-se;masacomissãonãoveio,ed.Beneditanãopôdeir.

Cincomeses depois, deu-se umpequeno incidente na família.D.BeneditamandaraconstruirumacasanocaminhodaTijuca,eogenro,comopretextodeuma interrupção na obra, propôs acabá-la. D. Benedita consentiu, e o ato eratanto mais honroso para ela, quanto que o genro começava a parecer-lheinsuportávelcomasuaexcessivadisciplina,comassuasteimas,impertinências,etc.Verdadeiramente,nãohaviateimas;nesseparticular,ogenroded.Beneditacontava tanto coma sinceridade da sogra que nunca teimava; deixava que elaprópriasedesmentissediasdepois.Maspodeserqueistomesmoamortificasse.Felizmente, o governo lembrou-se de omandar aoSul;Eulália, grávida, ficoucomamãe.

Foi por esse tempo que um negociante viúvo teve ideia de cortejar d.Benedita.Oprimeiroanodeviuvezestavapassado.D.Beneditaacolheuaideiacommuitasimpatia,emborasemalvoroço.Defendia-seconsigo;alegavaaidadeeosestudosdofilho,queembreveestariaacaminhodeS.Paulo,deixando-asó,sozinha no mundo. O casamento seria uma consolação, uma companhia. Econsigo,naruaouemcasa,nashorasdisponíveis,aprimoravaoplanocomtodososfloreiosdaimaginaçãovivazesúbita;eraumavidanova,poisdesdemuito,antesmesmo damorte domarido, pode-se dizer que era viúva. O negociantegozavadomelhorconceito:aescolhaeraexcelente.

Nãocasou.Ogenro tornoudoSul, a filhadeuà luzummenino robustoelindo,que foi apaixãodaavóduranteosprimeirosmeses.Depois, ogenro, afilhaeonetoforamparaoNorte.D.Beneditaachou-sesóetriste;ofilhonãobastava aos seus afetos. A ideia de viajar tornou a rutilar-lhe na mente, mascomoumfósforo,queseapagalogo.Viajarsozinhaeracansareaborrecer-seaomesmotempo;achoumelhorficar.

Uma companhia lírica, adventícia, sacudiu-lhe o torpor, e restituiu-a àsociedade.Asociedadeincutiu-lheoutravezaideiadocasamento,eapontou-lhelogoumpretendente,destavezumadvogado,tambémviúvo.

—Casarei?nãocasarei?Uma noite, volvendo d. Benedita este problema, à janela da casa de

Botafogo,paraondesemudaradesdealgunsmeses,viuumsingularespetáculo.

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Primeiramenteumaclaridadeopaca, espéciede luz coadaporumvidro fosco,vestiaoespaçodaenseada, fronteiroà janela.Nessequadroapareceu-lheumafiguravagaetransparente,trajadadenévoas,toucadadereflexos,semcontornosdefinidos,porquemorriamtodosnoar.Afiguraveioatéopeitorildajaneladed.Benedita; e de um gesto sonolento, com uma voz de criança, disse-lhe estaspalavrassemsentido:

— Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas...casando...

D.Benedita ficouaterrada, sempodermexer-se;masainda tevea forçadeperguntaràfiguraquemera.Afiguraachouumprincípioderiso,masperdeu-ologo; depois respondeu que era a fada que presidira ao nascimento de d.Benedita:MeunomeéVeleidade—concluiu;e,comoumsuspiro,dispersou-senanoiteenosilêncio.

AEstação,abril-junhode1882;MachadodeAssis.

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Oempréstimo

Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do

vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta éverdadeira;podiacitaralgumaspessoasqueasabemtãobemcomoeu.Nemelaandou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse afilosofia. Como deveis saber, há em todas as cousas um sentido filosófico.Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; eninguémignoraqueosnúmeros,muitoantesdaloteriadoIpiranga,formavamosistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso deempréstimo;idesversemeengano.

E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquelemoralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vidadentrodavida.Nãodigoquenão;masporquenãoacrescentouelequemuitasvezesumasóhoraéarepresentaçãodeumavidainteira?Vedeesterapaz:entranomundo com uma grande ambição, uma pasta deministro, um banco, umacoroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinquenta anos, vamos achá-losimplesapontadordealfândega,ousacristãoda roça.Tudo issoquesepassouemtrintaanos,podealgumBalzacmetê-loemtrezentaspáginas;porquenãohádeavida,quefoiamestradeBalzac,apertá-loemtrintaousessentaminutos?

Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à rua doRosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam aspenasdegansonapontadesedapretaquependiadagavetaaolado;fecharamasgavetas, concertaram os papéis, arrumaram os autos e os livros, lavaram asmãos; alguns que mudavam de paletó à entrada despiram o do trabalho eenfiaramodarua;todossaíram.VazNunesficousó.

Estehonesto tabeliãoeraumdoshomensmaisperspicazesdoséculo.Estámorto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante eagudo.Eleadivinhavaocaráterdaspessoasqueobuscavamparaescriturarosseusacordoseresoluções;conheciaaalmadeumtestadormuitoantesdeacabaro testamento; farejavaasmanhas secretaseospensamentos reservados.Usavaóculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendomíope, olhava porcimadeles,quandoqueriaver,eatravésdeles,sepretendianãoservisto.Finóriocomo ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha

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cinquenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outrosserventuários,roíamuitocaladinhoosseusduzentoscontosderéis.

—Quemé?—perguntouelederepente,olhandoparaaportadarua.Estavaàporta,paradonasoleira,umhomemqueelenãoconheceulogo,e

mal pôde reconhecer daí a pouco.VazNunes pediu-lhe o favor de entrar; eleobedeceu,cumprimentou-o,estendeu-lheamão,esentou-senacadeiraaopédamesa.Não traziaoacanhonaturalaumpedinte;aocontrário,pareciaquenãovinhaali senãoparadarao tabeliãoalgumacousapreciosíssimae rara.E,nãoobstante,VazNunesestremeceueesperou.

—Nãoselembrademim?—Nãomelembro...—Estivemosjuntosumanoite,háalgunsmeses,naTijuca...Nãoselembra?

EmcasadoTeodorico, aquelagrandeceiadeNatal;por sinalque lhe fizumasaúde...VejaseselembradoCustódio.

—Ah!Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um

homemdequarentaanos.Vestiapobremente,masescovado,apertado,correto.Usavaunhaslongas,curadascomesmero,etinhaasmãosmuitobem-talhadas,macias,aocontráriodapeledorosto,queeraagreste.Notíciasmínimas,ealiásnecessárias ao complemento de umcerto ar duplo quedistinguia este homem,umardepedinteegeneral.Narua,andando,semalmoço,semvintém,parecialevarapóssiumexército.Acausanãoeraoutramaisdoqueocontrasteentreanatureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com avocaçãodariqueza,semavocaçãodotrabalho.Tinhaoinstintodaselegâncias,o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dosmóveisraros,umvoluptuoso,e,atécertoponto,umartista,capazderegeravilaTorloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nemaptidãooupachorradeoganhar;poroutrolado,precisavaviver.Ilfautbienqueje vive dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n’en vois pas lanécessité, redarguiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta aoCustódio;davam-lhedinheiro,umdez,outrocinco,outrovintemil-réis,edetaisespórtulaséqueeleprincipalmentetiravaoalbergueeacomida.

Digoqueprincipalmenteviviadelas,porqueoCustódionãorecusavameter-seemalgunsnegócios,comacondiçãodeosescolher,eescolhiasempreosquenão prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas,adivinhavalogoainsensata,emetiaombrosaela,comresolução.Ocaiporismo,queoperseguia,faziacomqueas19prosperassem,eavigésimalheestourassenasmãos.Nãoimporta;aparelhava-separaoutra.

Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com

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cinco contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nosprimeiros seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com oanunciante. Era uma grande ideia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, deimensofuturo.Eosplanos,osdesenhosdafábrica,osrelatóriosdeBirmingham,osmapasdeimportação,asrespostasdosalfaiates,dosdonosdearmarinho,etc.,todos os documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos deCustódio,estreladosdealgarismos,queelenãoentendia,equeporissomesmolhepareciamdogmáticos.Vinteequatrohoras;nãopediamaisde24horasparatrazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, amimado pelo anunciante, que,ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos.Mas os cinco contos,menosdóceisoumenosvagabundosqueoscincomil-réis,sacudiamincredulamenteacabeça,edeixavam-seestarnasarcas, tolhidosdemedoedesono.Nada.Oitooudezamigos,aquemfalou,disseram-lhequenemdispunhamagoradasomapedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças, quandoaconteceusubiraruadoRosárioelernoportaldeumcartórioonomedeVazNunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, asfrases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era osalvadordasituação.

—Venhopedir-lheumaescritura...VazNunes,armadoparaoutrocomeço,nãorespondeu:espiouporcimados

óculoseesperou.—Umaescrituradegratidão—explicouoCustódio—;venhopedir-lheum

grandefavor,umfavorindispensável,econtoqueomeuamigo...—Seestivernasminhasmãos...—Onegócioéexcelente,note-sebem;umnegóciomagnífico.Nemeume

metia a incomodar os outros sem certeza do resultado. A cousa está pronta;foramjáencomendasparaaInglaterra;eéprovávelquedentrodedousmesesestejatudomontado,éumaindústrianova.Somostrêssócios;aminhapartesãocincocontos.Venhopedir-lheestaquantia,aseismeses—,ouatrês,comjuromódico...

—Cincocontos?—Sim,senhor.—Mas, sr. Custódio, não posso, não disponho de tão grande quantia. Os

negóciosandammal; eaindaqueandassemmuitobem,nãopoderiadispordetanto.Queméquepodeesperarcincocontosdeummodestotabeliãodenotas?

—Ora,seosenhorquisesse...— Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena,

acomodada aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cincocontos!Creiaqueéimpossível.

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AalmadeCustódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu;masemvezdedescercomoosanjosnosonhobíblico, rolouabaixoecaiudebruços.Eraaúltimaesperança;e justamentepor tersido inesperada,équeelesupôsquefossecerta,pois,comotodososcoraçõesqueseentregamaoregímendoeventual,odoCustódioerasupersticioso.Opobre-diabosentiuenterrarem-se-lhenocorpoosmilhõesdeagulhasqueafábricateriadeproduzirnoprimeirosemestre.Calado,comosolhosnochão,esperouqueotabeliãocontinuasse,quese compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia issomesmona almadoCustódio, estava tambémcalado, girando entre os dedos aboceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nasal e implicante.Custódioensaiou todas as atitudes;orapedinte,orageneral.O tabeliãonão semexia.Custódioergueu-se.

—Bem—disseele,comumapontazinhadedespeito—,hádeperdoaroincômodo...

—Nãoháqueperdoar; eu éque lhepeçodesculpadenãopoder servi-lo,comodesejava.Repito:sefossealgumaquantiamenosavultada,muitomenos,nãoteriadúvida;mas...

EstendeuamãoaoCustódio,quecomaesquerdapegaramaquinalmentenochapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele,apenas convalescida da queda, que lhe tirara as últimas energias. Nenhumaescadamisteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabelião.Adeus,agulhas!Arealidadeveiotomá-looutravezcomassuasunhasdebronze.Tinhade voltar ao precário, ao adventício, às velhas contas, com os grandes zerosarregaladoseoscifrõesretorcidosàlaiadeorelhas,quecontinuariamafitá-loeaouvi-lo,aouvi-loeafitá-lo,alongandoparaeleosalgarismosimplacáveisdefome.Quequeda! equeabismo!Desenganado,olhouparao tabeliãocomumgestodedespedida;mas,umaideiasúbitaclareou-lheanoutedocérebro.Seaquantiafossemenor,VazNunespoderiaservi-lo,ecomprazer;porquenãoseriauma quantia menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia fazer omesmo a uns aluguéis atrasados, a dous ou três credores, etc., e uma somarazoável,quinhentosmil-réis,porexemplo,umavezqueotabeliãotinhaaboavontadedeemprestar-lhos,vinhamaponto.AalmadoCustódioempertigou-se;vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores,nemremorsos.Opresenteeratudo.Opresenteeramosquinhentosmil-réis,queeleiaversurdirdaalgibeiradotabelião,comoumalvarádeliberdade.

—Poisbem—disseele—,vejaoquemepodedar,eeuireitercomoutrosamigos...Quanto?

—Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma cousamuitomodesta.

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—Quinhentosmil-réis?—Não;nãoposso.—Nemquinhentosmil-réis?—Nem isso— replicou firme o tabelião.—De que se admira?Não lhe

negoquetenhoalgumaspropriedades;mas,meuamigo,nãoandocomelasnobolso;etenhocertasobrigaçõesparticulares...Diga-me,nãoestáempregado?

—Não,senhor.— Olhe; dou-lhe cousa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao

ministrodaJustiça,tenhorelaçõescomele,e...Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um

movimentonatural,ouumadiversãoastuciosaparanãoconversardoemprego,éoque totalmente ignoro;nempareceque seja essencial aocaso.Oessencial éque ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitavaduzentos;bastavam-lheduzentos,nãoparaaempresa,poisadotavaoconselhodos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil-réis, visto que o tabelião estavadispostoaajudá-lo,eramparaumanecessidadeurgente—“taparumburaco”.Eentão relatou tudo, respondeu à franqueza com franqueza: era a regra da suavida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera em mente acudirtambémaumcredorpertinaz,umdiabo,umjudeu,querigorosamenteaindalhedevia,mastiveraaaleivosiadetrocardeposição.Eramduzentosepoucosmil-réis;edez,parece,masaceitavaduzentos...

—Realmente,custa-merepetir-lheoquedisse;mas,enfim,nemosduzentosmil-réispossodar.Cemmesmo,seosenhorospedisse,estãoacimadasminhasforçasnestaocasião.Noutrapodeser,enãotenhodúvida,masagora...

—Nãoimaginaosapurosemqueestou!—Nemcem,repito.Tenhotidomuitasdificuldadesnestesúltimostempos.

Sociedades, subscrições,maçonaria...Custa-lhe crer, não é?Naturalmente: umproprietário.Mas,meuamigo,émuitobomtercasas:osenhoréquenãocontaosestragos,osconsertos,aspenas-d’água,asdécimas,oseguro,oscalotes,etc.Sãoosburacosdopote,porondevaiamaiorpartedaágua...

—Tivesseeuumpote!—suspirouCustódio.—Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter

cuidados, despesas, e até credores... Creia o senhor que também eu tenhocredores.

—Nemcemmil-réis!—Nemcemmil-réis,pesa-medizê-lo,maséaverdade.Nemcemmil-réis.

Quehorassão?Levantou-se, e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado,

desesperado.Nãopodiaacabardecrerqueotabeliãonãotivesseaomenoscem

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mil-réis.Queméquenãotemcemmil-réisconsigo?Cogitouumacenapatética,masocartórioabriaparaarua;seriaridículo.Olhouparafora.Nalojafronteira,umsujeitoapreçavaumasobrecasaca,àporta,porqueentardeciadepressa,eointerior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava opano comavista e comosdedos, depois as costuras, o forro...Este incidenterasgou-lheumhorizontenovo,emboramodesto;eratempodeaposentaropaletóquetrazia.Masnemcinquentamil-réispodiadar-lheotabelião.Custódiosorriu—nãodedesdém,nãoderaiva,masdeamarguraedúvida;eraimpossívelqueelenãotivessecinquentamil-réis.Vinte,aomenos?Nemvinte.Nemvinte!Não;falsotudo;tudomentira.

Custódiotirouolenço,alisouochapéudevagarinho;depoisguardouolenço,concertouagravata,comumarmistodeesperançaedespeito.Vieracerceandoasasasàambição,plumaapluma;restavaaindaumapenugemcurtaefina,quelhemetia umas veleidades de voar.Mas o outro, nada.VazNunes cotejava orelógiodeparedecomodobolso,chegavaesteaoouvido,limpavaomostrador,calado,transpirandoportodososporosimpaciênciaefastio.Estavamapingarascinco; deram, enfim, e o tabelião, que as esperava, desengatilhou adespedida.Eratarde;moravalonge.Dizendoisto,despiuopaletódealpaca,evestiuodecasimira,mudoudeumparaoutroabocetaderapé,olenço,acarteira...Oh!acarteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos,invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, amatériamesmadopreciosoreceptáculo.Lávaiela;mergulhoudetodonobolsodopeitoesquerdo;otabeliãoabotoou-se.Nemvintemil-réis!Eraimpossívelquenãolevassealivintemil-réis,pensavaele;nãodiriaduzentos,masvinte,dezquefossem...

—Pronto!—disse-lheVazNunes,comochapéunacabeça.Era o fatal instante. Nenhuma palavra do tabelião, um convite ao menos,

para jantar; nada; findara tudo. Mas os momentos supremos pedem energiassupremas. Custódio sentiu toda força deste lugar-comum, e, súbito, como umtiro,perguntouaotabeliãosenãolhepodiadaraomenosdezmil-réis.

—Querver?Eotabeliãodesabotoouopaletó,tirouacarteira,abriu-a,emostrou-lheduas

notasdecincomil-réis.—Não tenhomais—disse ele—; o que posso fazer é reparti-los como

senhor;dou-lheumadecinco,eficocomaoutra;serve-lhe?Custódio aceitouos cincomil-réis, não triste, oudemácara,mas risonho,

palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo.Estendeuamãoaooutro,agradeceu-lheoobséquio,despediu-seatébreve—umatébrevecheiodeafirmaçõesimplícitas.Depoissaiu;opedinteesvaiu-seàporta

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do cartório; o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarandofraternalmenteosinglesesdocomércioquesubiamaruaparasetransportaremaosarrabaldes.Nuncaocéulhepareceutãoazul,nematardetãolímpida;todososhomens traziamna retinaaalmadahospitalidade.Comamãoesquerdanobolsodascalças,eleapertavaamorosamenteoscincomil-réis, resíduodeumagrandeambição,queaindahápoucosaíracontraosol,numímpetodeáguia,eorabatiamodestamenteasasasdefrangorasteiro.

GazetadeNotícias,30dejulhode1882;MachadodeAssis.

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Oespelho

EsboçodeumanovateoriadaalmahumanaQuatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta

transcendência,semqueadisparidadedosvotostrouxesseamenoralteraçãoaosespíritos.AcasaficavanomorrodeSantaTeresa,asalaerapequena,alumiadaavelas,cujaluzfundia-semisteriosamentecomoluarquevinhadefora.Entreacidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelaspestanejavam,atravésdeumaatmosferalímpidaesossegada,estavamosnossosquatrooucincoinvestigadoresdecousasmetafísicas,resolvendoamigavelmenteosmaisárduosproblemasdouniverso.

Porquequatrooucinco?Rigorosamenteeramquatroosquefalavam;mas,alémdeles,havianasalaumquintopersonagem,calado,pensando,cochilando,cuja espórtulanodebatenãopassavadeumououtro resmungodeaprovação.Essehomemtinhaamesmaidadedoscompanheiros,entrequarentaecinquentaanos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao queparece, astuto e cáustico.Nãodiscutia nunca; e defendia-se da abstenção comumparadoxo,dizendoqueadiscussãoéaformapolidado instintobatalhador,quejaznohomem,comoumaherançabestial;eacrescentavaqueosserafinseos querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual eeterna. Como desse estamesma resposta naquela noite, contestou-lha um dospresentes,edesafiou-oademonstraroquedizia,seeracapaz.Jacobina(assimsechamavaele)refletiuuminstante,erespondeu:

—Pensandobem,talvezosenhortenharazão.Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da

palavra,enãodousoutrêsminutos,mastrintaouquarenta.Aconversa,emseusmeandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente osquatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesmadiscussão, tornou-se difícil, senão impossível, pelamultiplicidade de questõesque se deduziramdo tronco principal, e umpouco, talvez, pela inconsistênciados pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião—umaconjectura,aomenos.

—Nemconjectura,nemopinião—redarguiuele—;umaououtrapodedar

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lugaradissentimento,e,comosabem,eunãodiscuto.Mas,sequeremouvir-mecalados,possocontar-lhesumcasodeminhavida,emqueressaltaamaisclarademonstraçãoacercadamatériadequesetrata.Emprimeirolugar,nãoháumasóalma,háduas...

—Duas?— Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas

consigo:umaqueolhadedentroparafora,outraqueolhadeforaparadentro...Espantem-se àvontade; podem ficardeboca aberta, dardeombros, tudo;nãoadmitoréplica.Semereplicarem,acaboocharutoevoudormir.Aalmaexteriorpode ser umespírito, um fluido, umhomem,muitos homens, umobjeto, umaoperação.Hácasos,porexemplo,emqueumsimplesbotãodecamisaéaalmaexteriordeumapessoa—eassimtambémapolca,ovoltarete,umlivro,umamáquina,umpardebotas,umacavatina,umtambor,etc.Estáclaroqueoofíciodessasegundaalmaétransmitiravida,comoaprimeira;asduascompletamohomem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma dasmetadesperdenaturalmentemetadedaexistência;ecasoshá,nãoraros,emqueaperdadaalmaexteriorimplicaadaexistênciainteira.Shylock,porexemplo.Aalmaexteriordaquelejudeueramosseusducados;perdê-losequivaliaamorrer.“Nuncamaisvereiomeuouro,dizeleaTubal;éumpunhalquemeenterrasnocoração.”Vejambemestafrase;aperdadosducados,almaexterior,eraamorteparaele.Agora,éprecisosaberqueaalmaexteriornãoésempreamesma...

—Não?—Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas

absorventes,comoapátria,comaqualdisseoCamõesquemorria,eopoder,que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas eexclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Hácavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi umchocalhoouumcavalinhodepau,emais tardeumaprovedoriade irmandade,suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora — na verdade,gentilíssima—quemudadealmaexteriorcinco,seisvezesporano.Duranteaestação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se poroutra:umconcerto,umbailedoCassino,aruadoOuvidor,Petrópolis...

—Perdão;essasenhoraquemé?— Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome: chama-se

Legião...E assimoutrosmuitos casos.Eumesmo tenhoexperimentadodessastrocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhesfalei.Umepisódiodosmeus25anos...

Osquatrocompanheiros,ansiososdeouvirocasoprometido,esqueceramacontrovérsia.Santacuriosidade!tunãoéssóaalmadacivilização,éstambémo

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pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo damitologia.Asala, atéhápouco ruidosade físicaemetafísica,éagoraummarmorto; todos os olhos estão no Jacobina, que concerta a ponta do charuto,recolhendoasmemórias.Eisaquicomoelecomeçouanarração:

—Tinha 25 anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guardanacional.Nãoimaginamoacontecimentoqueistofoiemnossacasa.Minhamãeficoutãoorgulhosa!tãocontente!Chamava-meoseualferes.Primosetios,foitudoumaalegriasinceraepura.Navila,note-sebem,houvealgunsdespeitados;choroerangerdedentes,comonaEscritura;eomotivonãofoioutrosenãoqueopostotinhamuitoscandidatosequeestesperderam.Suponhotambémqueumapartedodesgostofoiinteiramentegratuita:nasceudasimplesdistinção.Lembra-medealguns rapazes,que sedavamcomigo, epassaramaolhar-mede revés,durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaramsatisfeitascomanomeação;eaprovaéquetodoofardamentomefoidadoporamigos... Vai então uma das minhas tias, d. Marcolina, viúva do capitãoPeçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário,desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui,acompanhadodeumpajem,quedaíadiastornouàvila,porqueatiaMarcolinaapenasmepilhouno sítio, escreveuaminhamãedizendoquenãome soltavaantes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seualferes.Achava-meum rapagão bonito.Como era um tanto patusca, chegou aconfessarque tinha invejadamoçaquehouvessede serminhamulher. Juravaqueemtodaaprovíncianãohaviaoutroquemepusesseopéadiante.Esemprealferes;eraalferesparacá,alferesparalá,alferesatodaahora.Eupedia-lhequeme chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando quenão,queerao“senhoralferes”.Umcunhadodela,irmãodofinadoPeçanha,quealimorava,nãomechamavadeoutramaneira.Erao“senhoralferes”,nãoporgracejo,masasério,eàvistadosescravos,quenaturalmenteforampelomesmocaminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Nãoimaginam.SelhesdisserqueoentusiasmodatiaMarcolinachegouaopontodemandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, quedestoavadorestodacasa,cujamobíliaeramodestaesimples...Eraumespelhoquelhederaamadrinha,equeestaherdaradamãe,queocompraraaumadasfidalgasvindasem1808comacorteded.JoãoVI.Nãoseioquehavianissodeverdade;eraatradição.Oespelhoestavanaturalmentemuitovelho;masvia-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nosângulossuperioresdamoldura,unsenfeitesdemadrepérolaeoutroscaprichosdoartista.Tudovelho,masbom...

—Espelhogrande?

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—Grande.Efoi,comodigo,umaenormefineza,porqueoespelhoestavanasala; era amelhor peça da casa.Mas não houve forças que a demovessemdopropósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, efinalmentequeo“senhoralferes”mereciamuitomais.Ocertoéquetodasessascousas,carinhos,atenções,obséquios,fizeramemmimumatransformação,queonaturalsentimentodamocidadeajudouecompletou.Imaginam,creioeu?

—Não.— O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas

equilibraram-se;masnãotardouqueaprimitivacedesseàoutra;ficou-meumaparte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que eradantesosol,oar,ocampo,osolhosdasmoças,mudoudenatureza,epassouaseracortesiaeosrapapésdacasa,tudooquemefalavadoposto,nadadoquemefalavadohomem.Aúnicapartedocidadãoqueficoucomigofoiaquelaqueentendia como exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.Custa-lhesacreditar,não?

—Custa-meatéentender—respondeuumdosouvintes.— Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos; os fatos são

tudo.Amelhordefiniçãodoamornãovaleumbeijodemoçanamorada;e, sebemmelembro,umfilósofoantigodemonstrouomovimentoandando.Vamosaos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem seobliterava,adoalferestornava-sevivaeintensa.Asdoreshumanas,asalegriashumanas,seeramsóisso,malobtinhamdemimumacompaixãoapáticaouumsorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Eraexclusivamentealferes.Ora,umdiarecebeuatiaMarcolinaumanotíciagrave;umadesuasfilhas,casadacomumlavradorresidentedaliacincoléguas,estavamaleàmorte.Adeus,sobrinho!adeus,alferes!Eramãeextremosa,armoulogoumaviagem,pediuaocunhadoquefossecomela,eamimquetomassecontadosítio.Creioque,senãofosseaaflição,disporiaocontrário;deixariaocunhado,e iria comigo.Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa.Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma cousasemelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadasem tornodemim.Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada aalgunsespíritosboçais.Oalferescontinuavaadominaremmim,emboraavidafossemenosintensa,eaconsciênciamaisdébil.Osescravospunhamumanotadehumildadenassuascortesias,quedecertamaneiracompensavaaafeiçãodosparentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite,queelesredobravamderespeito,dealegria,deprotestos.Nhôalferesdeminutoaminuto.Nhôalferesémuitobonito;nhôalfereshádesercoronel;nhôalfereshá de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e

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profecias, que me deixou extático. Ah! pérfidos! mal podia eu suspeitar aintençãosecretadosmalvados.

—Matá-lo?—Antesassimfosse.—Cousapior?—Ouçam-me.Namanhãseguinteachei-mesó.Osvelhacos,seduzidospor

outros,oudemovimentopróprio,tinhamresolvidofugirduranteanoite;eassimfizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante doterreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casatoda,asenzala,tudo,nada,ninguém,ummolequinhoquefosse.Galosegalinhastãosomente,umpardemulas,quefilosofavamavida,sacudindoasmoscas,etrêsbois.Osmesmoscãesforamlevadospelosescravos.Nenhumentehumano.Parece-lhes que isto eramelhor do que termorrido? era pior. Não pormedo;juro-lhes que não tinhamedo; era um pouco atrevidinho, tanto que não sentinada,duranteasprimeirashoras.Fiquei tristeporcausadodanocausadoà tiaMarcolina;fiqueitambémumpoucoperplexo,nãosabendosedeviairtercomela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei osegundoalvitre,paranãodesampararacasa,eporque,seaminhaprimaenfermaestava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum;finalmente,espereiqueoirmãodotioPeçanhavoltassenaquelediaounooutro,vistoquetinhasaídohaviajá36horas.Masamanhãpassousemvestígiodele;eà tarde comecei a sentir uma sensação como de pessoa que houvesse perdidotodaaaçãonervosa,enãotivesseconsciênciadaaçãomuscular.OirmãodotioPeçanhanãovoltounessedia,nemnooutro,nememtodaaquelasemana.Minhasolidãotomouproporçõesenormes.Nuncaosdiasforammaiscompridos,nuncao sol abrasou a terra comumaobstinaçãomais cansativa.Ashoras batiamdeséculoaséculo,novelhorelógiodasala,cujapêndula,tic-tac,tic-tac,feria-meaalma interior, comoumpiparote contínuo da eternidade.Quando,muitos anosdepois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com estefamosoestribilho:Never,forever!—Forever,never!confesso-lhesquetiveumcalafrio:recordei-medaquelesdiasmedonhos.Erajustamenteassimquefaziaorelógio da tia Marcolina: — Never, for ever! — For ever, never! Não eramgolpesdepêndula,eraumdiálogodoabismo,umcochichodonada.Eentãodenoite!Nãoqueanoitefossemaissilenciosa.Osilêncioeraomesmoquededia.Masanoiteeraasombra,eraasolidãoaindamaisestreitaoumaislarga.Tic-tac,tic-tac.Ninguémnassalas,navaranda,noscorredores,noterreiro,ninguémempartenenhuma...Riem-se?

—Sim,parecequetinhaumpoucodemedo.— Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico

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daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medovulgarmenteentendido.Tinhaumasensaçãoinexplicável.Eracomoumdefuntoandando, um sonâmbulo, umbonecomecânico.Dormindo, era outra cousa.Osono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas poroutra.Achoquepossoexplicarassimesse fenômeno:—osono,eliminandoanecessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos,fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que meelogiavamogarbo,quemechamavamalferes;vinhaumamigodenossacasa,eprometia-meopostodetenente,outroodecapitãooumajor;etudoissofazia-meviver.Masquandoacordava,diaclaro,esvaía-secomosonoaconsciênciadomeu ser novo eúnico—porque a alma interior perdia a ação exclusiva, eficavadependentedaoutra,que teimavaemnão tornar...Não tornava.Eusaíafora,aumladoeoutro,aversedescobriaalgumsinalderegresso.SoeurAnne,soeurAnne,nevois-turienvenir?Nada,cousanenhuma;talqualcomonalendafrancesa.Nadamaisdoqueapoeiradaestradaeocapinzaldosmorros.Voltavaparacasa,nervoso,desesperado,estirava-menocanapédasala.Tic-tac,tic-tac.Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Emcerta ocasião lembrei-me de escrever alguma cousa, um artigo político, umromance,umaode;nãoescolhinadadefinitivamente;sentei-meetraceinopapelalgumaspalavrasefrasessoltas,paraintercalarnoestilo.Masoestilo,comoatia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Cousa nenhuma.Quandomuitovianegrejaratintaealvejaropapel.

—Masnãocomia?—Comiamal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo,

massuportariatudoalegremente,senãoforaaterrívelsituaçãomoralemquemeachava.Recitavaversos,discursos,trechoslatinos,lirasdeGonzaga,oitavasdeCamões, décimas, uma antologia em trinta volumes.Às vezes fazia ginástica;outrasdavabeliscõesnaspernas;masoefeitoerasóumasensaçãofísicadedoroudecansaço,emaisnada.Tudosilêncio,umsilênciovasto,enorme,infinito,apenassublinhadopeloeternotic-tacdapêndula.Tic-tac,tic-tac...

—Naverdade,eradeenlouquecer.—Vãoouvir cousa pior.Convémdizer-lhes que, desde que ficara só, não

olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinhamotivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dous, aomesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nadaprova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias, deu-me naveneta olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dous.Olhei erecuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não meestampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de

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sombra.Arealidadedasleisfísicasnãopermitenegarqueoespelhoreproduziu-metextualmente,comosmesmoscontornosefeições;assimdeviatersido.Mastalnãofoiaminhasensação.Então tivemedo;atribuío fenômenoàexcitaçãonervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. — Vou-meembora,dissecomigo.Elevanteiobraçocomgestodemauhumor,eaomesmotempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso,esgarçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo semtosse,sacudindoaroupacomestrépito,afligindo-meafriocomosbotões,paradizeralgumacousa.Dequandoemquando,olhavafurtivamenteparaoespelho;aimagemeraamesmadifusãodelinhas,amesmadecomposiçãodecontornos...Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por umimpulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi aminhaideia...

—Diga.— Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado,

contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem delinhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes deadivinhar.

—Mas,diga,diga.— Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e,

como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; ovidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhumcontornodiverso;eraeumesmo,oalferes,queachava,enfim,aalmaexterior.Essaalmaausentecomadonadosítio,dispersaefugidacomosescravos,ei-larecolhidanoespelho. Imaginaiumhomemque,poucoapouco,emergedeumletargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dosobjetos,masnãoconheceindividualmenteunsnemoutros;enfim,sabequeesteéFulano,aqueleéSicrano;aquiestáumacadeira,aliumsofá.Tudovoltaaoqueeraantesdosono.Assimfoicomigo.Olhavaparaoespelho,iadeumladoparaoutro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo.Não eramais umautômato,eraumenteanimado.Daíemdiante,fuioutro.Cadadia,aumacertahora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando,meditando;nofimdeduas, trêshoras,despia-meoutravez.Comesteregímenpudeatravessarmaisseisdiasdesolidão,semossentir...

Quandoosoutrosvoltaramasi,onarradortinhadescidoasescadas.GazetadeNotícias,8desetembrode1882;MachadodeAssis.

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DeHistóriassemdata

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AigrejadoDiabo

CapítuloI

DeumaideiamiríficaConta um velhomanuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a

ideiadefundarumaigreja.Emboraosseuslucrosfossemcontínuosegrandes,sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, semorganização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada.Vivia, por assimdizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nadafixo,nadaregular.Porquenãoteriaeleasuaigreja?UmaigrejadoDiaboeraomeioeficazdecombaterasoutrasreligiões,edestruí-lasdeumavez.

— Vá, pois, uma igreja — concluiu ele. — Escritura contra Escritura,breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, asminhasprédicas, bulas, novenas e todoodemais aparelho eclesiástico.Omeucredoseráonúcleouniversaldosespíritos,aminhaigrejaumatendadeAbraão.Edepois,enquantoasoutrasreligiõessecombatemesedividem,aminhaigrejaserá única; não acharei diante de mim, nemMaomé, nem Lutero. Há muitosmodosdeafirmar;hásóumdenegartudo.

Dizendoisto,oDiabosacudiuacabeçaeestendeuosbraços,comumgestomagníficoevaronil.Emseguida,lembrou-sedeirtercomDeusparacomunicar-lheaideia,edesafiá-lo;levantouosolhos,acesosdeódio,ásperosdevingança,edisseconsigo:“Vamos,étempo.”Erápido,batendoasasas,comtalestrondoque abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinitoazul.

CapítuloII

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EntreDeuseoDiaboDeus recolhia umancião, quandooDiabo chegou ao céu.Os serafins que

engrinaldavamorecém-chegadodetiveram-selogo,eoDiabodeixou-seestaràentradacomosolhosnoSenhor.

—Quemequerestu?—perguntoueste.—NãovenhopelovossoservoFausto—respondeuoDiaborindo—,mas

portodososFaustosdoséculoedosséculos.—Explica-te.—Senhor,aexplicaçãoéfácil;maspermitiquevosdiga:recolheiprimeiro

essebomvelho;dai-lheomelhor lugar,mandaiqueasmaisafinadascítarasealaúdesorecebamcomosmaisdivinoscoros...

— Sabes o que ele fez?— perguntou o Senhor, com os olhos cheios dedoçura.

—Não,masprovavelmenteédosúltimosquevirãoterconvosco.Nãotardamuitoqueocéufiquesemelhanteaumacasavazia,porcausadopreço,queéalto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar umaigreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual eadventício.É tempodeobteravitória final ecompleta.Eentãovimdizer-vosisto, com lealdade, para queme não acuseis de dissimulação...Boa ideia, nãovosparece?

—Viestedizê-la,nãolegitimá-la—advertiuoSenhor.—Tendesrazão—acudiuoDiabo—;masoamor-própriogostadeouviro

aplauso dosmestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de ummestrevencido,eumatalexigência...Senhor,desçoàterra;voulançaraminhapedrafundamental.

—Vai.—Quereisquevenhaanunciar-vosorematedaobra?—Nãoépreciso;bastaquemedigasdesde jáporquemotivo,cansadohá

tantodatuadesorganização,sóagorapensasteemfundarumaigreja?ODiabosorriucomcertoardeescárnioetriunfo.Tinhaalgumaideiacruel

no espírito, algum reparo picante no alforje damemória, qualquer cousa que,nessebreve instanteda eternidade, o fazia crer superior aopróprioDeus.Masrecolheuoriso,edisse:

—Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e éque as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas,cujomantodeveludorematasseemfranjasdealgodão.Ora,euproponho-meapuxá-lasporessafranja,etrazê-lastodasparaminhaigreja;atrásdelasvirãoasdesedapura...

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—Velhoretórico!—murmurouoSenhor.—Olhaibem.Muitoscorposqueajoelhamaosvossospés,nostemplosdo

mundo,trazemasanquinhasdasalaedarua,osrostostingem-sedomesmopó,os lenços cheiram aosmesmos cheiros, as pupilas centelhamde curiosidade edevoçãoentreolivrosantoeobigodedopecado.Vedeoardor—aindiferença,aomenos—comqueessecavalheiropõeemletraspúblicasosbenefíciosqueliberalmente espalha— ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquerdessasmatériasnecessáriasàvida...Masnãoqueroparecerquemedetenhoemcousas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz deirmandade,nasprocissões,carregapiedosamenteaopeitoovossoamoreumacomenda...Vouanegóciosmaisaltos...

Nistoosserafinsagitaramasasaspesadasdefastioesono.MigueleGabrielfitaramnoSenhorumolhardesúplica.DeusinterrompeuoDiabo.

— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tuaespécie —replicou-lheoSenhor.—Tudooquedizesoudigasestáditoereditopelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nemoriginalidadepararenovarumassuntogasto,melhoréquetecalese teretires.Olha;todasasminhaslegiõesmostramnorostoossinaisvivosdotédioquelhesdás.Essemesmoanciãopareceenjoado;esabestuoqueelefez?

—Jávosdissequenão.—Depois de umavida honesta, teve umamorte sublime.Colhido emum

naufrágio,iasalvar-senumatábua;masviuumcasaldenoivos,naflordavida,quesedebatiamjácomamorte;deu-lhesa tábuadesalvaçãoemergulhounaeternidade.Nenhumpúblico:aáguaeocéuporcima.Ondeachasaíafranjadealgodão?

—Senhor,eusou,comosabeis,oespíritoquenega.—Negasestamorte?—Negotudo.Amisantropiapodetomaraspectodecaridade;deixaravida

aosoutros,paraummisantropo,érealmenteaborrecê-los...—Retóricoe sutil!—exclamouoSenhor.—Vai,vai, fundaa tua igreja;

chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens...Mas,vai!vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma cousa mais. Deus impusera-lhesilêncio; os serafins, a um sinal divino, encheramo céu com as harmonias deseuscânticos.ODiabosentiu,derepente,queseachavanoar;dobrouasasas,e,comoumraio,caiunaterra.

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CapítuloIII

Aboa-novaaoshomensUmaveznaterra,oDiabonãoperdeuumminuto.Deu-sepressaemenfiara

cogulabeneditina,comohábitodeboafama,eentrouaespalharumadoutrinanovae extraordinária, comumavozque reboavanas entranhasdo século.Eleprometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, osdeleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o pararetificaranoçãoqueoshomenstinhamdeleedesmentirashistóriasqueaseurespeitocontavamasvelhasbeatas.

—Sim,souoDiabo—repetiaele—;nãooDiabodasnoitessulfúreas,doscontossoníferos,terrordascrianças,masoDiaboverdadeiroeúnico,oprópriogênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração doshomens.Vede-megentileairoso.Souovossoverdadeiropai.Vamoslá: tomaidaquelenome,inventadoparameudesdouro,fazeideleumtroféueumlábaro,eeuvosdareitudo,tudo,tudo,tudo,tudo,tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar osindiferentes,congregar,emsuma,asmultidõesaopédesi.Eelasvieram;elogoquevieram,oDiabopassouadefiniradoutrina.Adoutrinaeraaquepodiasernabocadeumespíritodenegação.Issoquantoàsubstância,porque,acercadaforma,eraumasvezessutil,outrascínicaedeslavada.

Clamavaelequeasvirtudesaceitasdeviamsersubstituídasporoutras,queeramasnaturaiselegítimas.Asoberba,aluxúria,apreguiçaforamreabilitadas,eassimtambémaavareza,quedeclarounãosermaisdoqueamãedaeconomia,comadiferençaqueamãeera robusta, e a filhaumaesgalgada.A ira tinhaamelhordefesanaexistênciadeHomero;semofurordeAquiles,nãohaveriaaIlíada: “Musa, canta a cóleradeAquiles, filhodePeleu...”Omesmodissedagula, que produziu asmelhores páginas deRabelais, emuitos bons versos doHissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas deLuculo,masdassuasceias;foiagulaquerealmenteofezimortal.Mas,aindapondodelado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valorintrínsecodaquelavirtude,quemnegariaqueeramuitomelhorsentirnabocaeno ventre os bonsmanjares, em grande cópia, do que osmaus bocados, ou asalivadojejum?PelasuaparteoDiaboprometiasubstituiravinhadoSenhor,expressãometafórica,pelavinhadoDiabo,locuçãodiretaeverdadeira,poisnãofaltarianuncaaos seus como frutodasmaisbelas cepasdomundo.Quantoàinveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades

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infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao própriotalento.

Asturbascorriamatrásdeleentusiasmadas.ODiaboincutia-lhes,agrandesgolpes de eloquência, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção delas,fazendoamarasperversasedetestarassãs.

Nadamaiscurioso,porexemplo,doqueadefiniçãoqueeledavadafraude.Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; econcluía:muitoshomenssãocanhotos,eis tudo.Ora,elenãoexigiaque todosfossemcanhotos;nãoeraexclusivista.Queunsfossemcanhotos,outrosdestros;aceitavaatodos,menososquenãofossemnada.Ademonstração,porém,maisrigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou aconfessarqueeraummonumentodelógica.Avenalidade,disseoDiabo,eraoexercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tuacasa,o teuboi,o teusapato,o teuchapéu,cousasquesão tuasporumarazãojurídicaelegal,masque,emtodocaso,estãoforadeti,comoéquenãopodesvenderatuaopinião,oteuvoto,atuapalavra,atuafé,cousasquesãomaisdoquetuas,porquesãoatuaprópriaconsciência,istoé,tumesmo?Negá-loécairnoabsurdoenocontraditório.Poisnãohámulheresquevendemoscabelos?nãopode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outrohomemanêmico?eosangueeoscabelos,partesfísicas,terãoumprivilégioquesenegaaocaráter,àporçãomoraldohomem?Demonstrandoassimoprincípio,o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal oupecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviriadissimularoexercíciodeumdireito tão legítimo,oqueeraexerceraomesmotempoavenalidadeeahipocrisia,istoé,merecerduplicadamente.

Edescia,esubia,examinavatudo,retificavatudo.Estáclaroquecombateuoperdão das injúrias e outrasmáximas de brandura e cordialidade.Não proibiuformalmenteacalúniagratuita,masinduziuaexercê-lamedianteretribuição,oupecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse umaexpansãoimperiosadaforçaimaginativa,enadamais,proibiarecebernenhumsalário,poisequivaliaafazerpagaratranspiração.Todasasformasderespeitoforamcondenadasporele,comoelementospossíveisdeumcertodecorosocialepessoal;salva, todavia,aúnicaexceçãodointeresse.Masessamesmaexceçãofoilogoeliminada,pelaconsideraçãodequeointeresse,convertendoorespeitoemsimplesadulação,eraesteosentimentoaplicadoenãoaquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda asolidariedadehumana.Comefeito,oamordopróximoeraumobstáculograveànova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção deparasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão

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indiferença;emalgunscasos,ódiooudesprezo.Chegoumesmoàdemonstraçãode que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre deNápoles, aquele fino e letradoGaliani, que escrevia a uma dasmarquesas doantigoregime:“Leveabrecaopróximo!Nãohápróximo!”Aúnicahipóteseemque ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damasalheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outracousamaisdoqueoamordoindivíduoasimesmo.E,comoalgunsdiscípulosachassemqueuma talexplicação,pormetafísica,escapavaàcompreensãodasturbas, oDiabo recorreu a um apólogo:—Cem pessoas tomam ações de umbanco,paraasoperaçõescomuns;mascadaacionistanãocuidarealmentesenãonosseusdividendos:éoqueaconteceaosadúlteros.Esteapólogofoiincluídonolivrodasabedoria.

CapítuloIV

FranjasefranjasA previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo

acabavaemfranjadealgodão,umavezpuxadaspelafranja,deitavamacapaàsurtigasevinhamalistar-senaigrejanova.Atrásforamchegandoasoutras,eotempoabençoouainstituição.Aigrejafundara-se;adoutrinapropagava-se;nãohavia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não atraduzisse,umaraçaquenãoaamasse.ODiaboalçoubradosdetriunfo.

Umdia,porém,longosanosdepoisnotouoDiaboquemuitosdosseusfiéis,às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nemintegralmente,masalgumas,porpartes,e,comodigo,àsocultas.Certosglutõesrecolhiam-seacomerfrugalmentetrêsouquatrovezesporano, justamenteemdias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruasmalpovoadas;váriosdilapidadoresdoeráriorestituíam-lhepequenasquantias;osfraudulentos falavam,umaououtravez, comocoraçãonasmãos,mascomomesmorostodissimulado,parafazercrerqueestavamembaçandoosoutros.

Adescoberta assombrouoDiabo.Meteu-sea conhecermaisdiretamenteomal,eviuquelavravamuito.Algunscasoseramatéincompreensíveis,comoodeumdroguistadoLevante,queenvenenaralongamenteumageraçãointeira,e,comoproduto das drogas, socorria os filhos das vítimas.NoCairo achouum

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perfeitoladrãodecamelos,quetapavaacaraparairàsmesquitas.ODiabodeucom ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou,dizendoqueiaaliroubarocamelodeumdrogman;roubou-o,comefeito,àvistado Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. Omanuscritobeneditinocitamuitasoutrasdescobertasextraordinárias,entreelasesta,quedesorientoucompletamenteoDiabo.Umdosseusmelhoresapóstolosera um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos,quepossuíaumabelacasanacampanharomana,telas,estátuas,biblioteca,etc.Era a fraude em pessoa; chegava ameter-se na cama para não confessar queestava são. Pois esse homem não só não furtava ao jogo, como ainda davagratificaçõesaoscriados.Tendoangariadoaamizadedeumcônego,iatodasassemanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhedesvendassenenhumadassuasaçõessecretas,benzia-seduasvezes,aoajoelhar-se, eao levantar-se.ODiabomalpôdecrer tamanhaaleivosia.Masnãohaviaduvidar;ocasoeraverdadeiro.

Nãosedeteveuminstante.Opasmonãolhedeutempoderefletir,comparare concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao passado. Voou denovo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tãosingularfenômeno.Deusouviu-ocominfinitacomplacência;nãoointerrompeu,não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhosnele,edisse-lhe:

—Quequerestu,meupobreDiabo?Ascapasdealgodãotêmagorafranjasde seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É aeternacontradiçãohumana.

GazetadeNotícias,12defevereirode1883;MachadodeAssis.

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Cantigadeesponsais

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma

daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a artemusical.Sabemoque éumamissa cantada; podem imaginar oque seria umamissacantadadaquelesanosremotos.Nãolhechamoaatençãoparaospadreseossacristães,nemparaosermão,nemparaosolhosdasmoçascariocas,quejáeram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, oscalções,ascabeleiras,assanefas,asluzes,osincensos,nada.Nãofalosequerdaorquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, acabeçadessevelhoqueregeaorquestra,comalmaedevoção.

Chama-seRomãoPires;terásessentaanos,nãomenos,nasceunoValongo,ouporesseslados.Ébommúsicoebomhomem;todososmúsicosgostamdele.MestreRomãoéonomefamiliar;edizerfamiliarepúblicoeraamesmacousaem tal matéria e naquele tempo. “Quem rege a missa é mestre Romão” —equivaliaaestaoutraformadeanúncio,anosdepois:“EntraemcenaoatorJoãoCaetano”—ouentão:“OatorMartinhocantaráumade suasmelhoresárias.”Eraotemperocerto,ochamarizdelicadoepopular.MestreRomãoregeafesta!QuemnãoconheciamestreRomão,comoseuarcircunspecto,olhosnochão,risotriste,epassodemorado?Tudoissodesapareciaàfrentedaorquestra;entãoa vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olharacendia-se,orisoiluminava-se:eraoutro.Nãoqueamissafossedele;esta,porexemplo,queeleregeagoranoCarmoédeJoséMaurício;maselerege-acomomesmoamorqueempregaria,seamissafossesua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rostoapenasalumiadodaluzordinária.Ei-loquedescedocoro,apoiadonabengala;vaiàsacristiabeijaramãoaospadreseaceitaumlugaràmesadojantar.Tudoissoindiferenteecalado.Jantou,saiu,caminhouparaaruadaMãedosHomens,onde reside, comumpretovelho,pai José,queé a suaverdadeiramãe, equenestemomentoconversacomumavizinha.

—MestreRomãolávem,paiJosé—disseavizinha.—Eh!eh!adeus,sinhá,atélogo.PaiJosédeuumsalto,entrouemcasa,eesperouosenhor,quedaíapouco

entrava com omesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem

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alegre.Nãotinhaomenorvestígiodemulher,velhaoumoça,nempassarinhosquecantassem,nemflores,nemcoresvivasoujocundas.Casasombriaenua.Omais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes,estudando.Sobreumacadeira,aopé,algunspapéisdemúsica;nenhumadele...

Ah! semestreRomão pudesse seria umgrande compositor. Parece que háduas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeirasrealizam-se;asúltimasrepresentamumalutaconstanteeestérilentreoimpulsointerioreaausênciadeummododecomunicaçãocomoshomens.Romãoeradestas. Tinha a vocação íntima damúsica; trazia dentro de simuitas óperas emissas,ummundodeharmoniasnovaseoriginais,quenãoalcançavaexprimirepôrnopapel.EstaeraacausaúnicadatristezademestreRomão.Naturalmenteo vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta dedinheiro,algumdesgostoantigo;masaverdadeéesta:—acausadamelancoliademestreRomãoeranãopodercompor,nãopossuiromeiode traduziroquesentia.Nãoéquenãorabiscassemuitopapelenãointerrogasseocravo,durantehoras;mastudolhesaíainforme,semideianemharmonia.Nosúltimostempostinhaatévergonhadavizinhança,enãotentavamaisnada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um cantoesponsalício,começadotrêsdiasdepoisdecasado,em1779.Amulher,quetinhaentão 21 anos, e morreu com 23, não era muito bonita, nem pouco, masextremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois decasado, mestre Romão sentiu em si alguma cousa parecida com inspiração.Ideouentãoocantoesponsalício, equis compô-lo;masa inspiraçãonãopôdesair.Comoumpássaroqueacabadeserpreso,eforcejaportransporasparedesdagaiola,abaixo,acima,impaciente,aterrado,assimbatiaainspiraçãodonossomúsico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumasnotaschegaramaligar-se;eleescreveu-as;obradeumafolhadepapel,nãomais.Teimounodiaseguinte,dezdiasdepois,vintevezesduranteotempodecasado.Quandoamulhermorreu,elereleuessasprimeirasnotasconjugais,eficouaindamaistriste,pornãoterpodidofixarnopapelasensaçãodefelicidadeextinta.

—PaiJosé—disseeleaoentrar—,sinto-mehojeadoentado.—Sinhôcomeualgumacousaquefezmal...—Não;jádemanhãnãoestavabom.Vaiàbotica...O boticáriomandou alguma cousa, que ele tomou à noite; no dia seguinte

mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia docoração: —moléstiagraveecrônica.PaiJoséficouaterrado,quandoviuqueoincômodonãocederaaoremédio,nemaorepouso,equischamaromédico.

—Paraquê?—disseomestre.—Istopassa.Odianãoacaboupior;eanoitesuportou-aelebem,nãoassimopreto,que

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malpôdedormirduashoras.Avizinhançaapenassoubedoincômodo,nãoquisoutromotivodepalestra;osqueentretinhamrelaçõescomomestreforamvisitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; umacrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que oboticário lhedavanogamão—outroqueeramamores.MestreRomãosorria,masconsigomesmodiziaqueeraofinal.

“Estáacabado”,pensavaele.Umdiademanhã,cincodepoisdafesta,omédicoachou-orealmentemal;e

foiissooqueelelheviunafisionomiaportrásdaspalavrasenganadoras:—Istonãoénada;éprecisonãopensaremmúsicas...Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um

pensamento.Logoque ficou só, como escravo, abriu agavetaondeguardavadesde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas acusto, e não concluídas. E então teve uma ideia singular: — rematar a obraagora,fossecomofosse;qualquercousaservia,umavezquedeixasseumpoucodealmanaterra.

—Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que ummestreRomão...

Oprincípiodocantorematavaemumcertolá;estelá,quelhecaíabemnolugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhelevassemocravoparaasaladofundo,quedavaparaoquintal:era-lheprecisoar.Pela janelaviuna janelados fundosdeoutra casadous casadinhosdeoitodias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas.MestreRomãosorriucomtristeza.

—Aqueleschegam—disseele.—Eusaio.Comporeiaomenosestecantoqueelespoderãotocar...

Sentou-seaocravo;reproduziuasnotasechegouaolá...—Lá,lá,lá...Nada,nãopassavaadiante.E,contudo,elesabiamúsicacomogente.Lá,dó...lá,mi...lá,si,dó,ré...ré...ré...Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente

original, mas enfim alguma cousa, que não fosse de outro e se ligasse aopensamentocomeçado.Voltavaaoprincípio,repetiaasnotas,buscavareaverumretalhodasensaçãoextinta,lembrava-sedamulher,dosprimeirostempos.Paracompletarailusão,deitavaosolhospelajanelaparaoladodoscasadinhos.Estescontinuavamali, comasmãospresaseosbraçospassadosnosombrosumdooutro;adiferençaéquesemiravamagora,emvezdeolharparabaixo.MestreRomão,ofegantedamoléstiaedeimpaciência,tornavaaocravo;masavistadocasalnãolhesupriraainspiração,easnotasseguintesnãosoavam.

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—Lá...lá...lá...Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse

momento, amoça, embebida no olhar domarido, começou a cantarolar à toa,inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem sabida, na qual cousaum certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestreRomãoprocuraraduranteanossemacharnunca.Omestreouviu-acomtristeza,abanouacabeça,eànoiteexpirou.

AEstação,15demaiode1883;MachadodeAssis.

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Singularocorrência

—Háocorrênciasbemsingulares.Estávendoaqueladamaquevaientrando

naigrejadaCruz?Parouagoranoadroparadarumaesmola.—Depreto?—Justamente;lávaientrando;entrou.—Nãoponhamaisnacarta.Esseolharestádizendoqueadamaéumasua

recordaçãodeoutrotempo,enãohádeserdemuitotempo,ajulgarpelocorpo:émoçadetruz.

—Deveter46anos.—Ah!conservada.Vamoslá;deixedeolharparaochão,econte-metudo.

Estáviúva,naturalmente?—Não.—Bem;omaridoaindavive.Évelho?—Nãoécasada.—Solteira?—Assim, assim.Deve chamar-se hoje d.Maria de tal.Em1860 florescia

com o nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nemmestrademeninas;váexcluindoasprofissõese láchegará.Moravana ruadoSacramento.Jáentãoeraesbelta,e,seguramente,maislindadoquehoje;modossérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, semespavento,arrastavaamuitos,aindaassim.

—Porexemplo,aosenhor.—Não,masaoAndrade,umamigomeu,de26anos,meioadvogado,meio

político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, donde viera em 1859. Erabonita amulher dele, afetuosa,meiga e resignada; quando os conheci, tinhamumafilhinhadedousanos.

—Apesardisso,aMarocas...?— É verdade, dominou-o. Olhe, se não tem pressa, conto-lhe uma cousa

interessante.—Diga.—A primeira vez que ele a encontrou foi à porta da loja PaulaBrito, no

Rocio.Estavaali,viuadistânciaumamulherbonita,eesperou, jáalvoroçado,porqueele tinhaemaltograuapaixãodasmulheres.Marocasvinhaandando,

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parandoeolhandocomoquemprocuraalgumacasa.Defrontedalojadeteve-seuminstante;depois,envergonhadaeamedo,estendeuumpedacinhodepapelaoAndrade, e perguntou-lhe onde ficava o número ali escrito.Andrade disse-lhequedooutroladodoRocio,eensinou-lheaalturaprováveldacasa.Elacortejoucommuitagraça;eleficousemsaberoquepensassedapergunta.

—Comoeuestou.—Nadamaissimples:Marocasnãosabialer.Elenãochegouasuspeitá-lo.

Viu-aatravessaroRocio,queaindanãotinhaestátuanemjardim,eiràcasaquebuscava,aindaassimperguntandoemoutras.DenoitefoiaoGinásio;dava-seaDamadasCamélias; Marocas estava lá, e, no último ato, chorou como umacriança.Nãolhedigonada;nofimde15diasamavam-seloucamente.Marocasdespediu todososseusnamorados,ecreioquenãoperdeupouco; tinhaalgunscapitalistasbembons.Ficousó,sozinha,vivendoparaoAndrade,nãoquerendooutraafeição,nãocogitandodenenhumoutrointeresse.

—ComoaDamadasCamélias.—Justo.Andradeensinou-lhealer.—Estoumestre-escola,disse-meeleum

dia;efoientãoquemecontouaanedotadoRocio.Marocasaprendeudepressa.Compreende-se;ovexamedenãosaber,odesejodeconhecerosromancesemqueelelhefalava,efinalmenteogostodeobedeceraumdesejodele,delheseragradável...Nãomeencobriunada;contou-metudocomumrisodegratidãonosolhos,queosenhornãoimagina.Eutinhaaconfiançadeambos.Jantávamosàsvezesostrêsjuntos;e...nãoseiporquenegá-lo—algumasvezesosquatro.Nãocuide que eram jantares de gente pândega; alegres, mas honestos. Marocasgostavadalinguagemafogada,comoosvestidos.Poucoapoucoestabeleceu-seintimidadeentrenós;elainterrogava-meacercadavidadoAndrade,damulher,da filha, dos hábitos dele, se gostava deveras dela, ou se era um capricho, setiveraoutros,seeracapazdeaesquecer,umachuvadeperguntas,eumreceiodeoperder,quemostravamaforçaeasinceridadedaafeição...Umdia,umafestadeSão João, oAndrade acompanhoua família àGávea, onde ia assistir a umjantareumbaile;dousdiasdeausência.Eufuicomeles.Marocas,aodespedir-se,recordouacomédiaqueouviraalgumassemanasantesnoGinásio—Jantocomminhamãe—edisse-meque,nãotendofamíliaparapassarafestadeSãoJoão,iafazercomoaSofiaArnoultdacomédia, iajantarcomumretrato;masnão seria o da mãe, porque não tinha, e sim do Andrade. Este dito ia-lherendendoumbeijo;oAndradechegoua inclinar-se; ela,porém,vendoqueeuestavaali,afastou-odelicadamentecomamão.

—Gostodessegesto.— Ele não gostou menos. Pegou-lhe na cabeça com ambas as mãos, e,

paternalmente,pingou-lheobeijonatesta.SeguimosparaaGávea.Decaminho

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disse-me a respeito da Marocas as maiores finezas, contou-me as últimasfrioleirasdeambos,falou-medoprojetoquetinhadecomprar-lheumacasaemalgumarrabalde,logoquepudessedispordedinheiro;e,depassagem,elogiouamodéstia da moça, que não queria receber dele mais do que o estritamentenecessário. “Há mais do que isso”, disse-lhe eu, e contei-lhe uma cousa quesabia, isto é, que cerca de três semanas antes, aMarocas empenhara algumasjoiasparapagarumacontadacostureira.Estanotíciaabalou-omuito;nãojuro,mas creio que ficou comos olhosmolhados.Em todo caso, depois de cogitaralgumtempo,disse-mequedefinitivamenteiaarranjar-lheumacasaepô-laaoabrigo da miséria. Na Gávea ainda falamos da Marocas, até que as festasacabaram,enósvoltamos.OAndradedeixouafamíliaemcasa,naLapa,efoiaoescritórioaviaralgunspapéisurgentes.Poucodepoisdomeio-diaapareceu-lheumtalLeandro,ex-agentedecertoadvogadoapedir-lhe,comodecostume,dousoutrêsmil-réis.Eraumsujeitorelesevadio.Viviaaexplorarosamigosdoantigopatrão.Andradedeu-lhetrêsmil-réis,e,comoovisseexcepcionalmenterisonho, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde. O Leandro piscou osolhoselambeuosbeiços:oAndrade,quedavaocavacoporanedotaseróticas,perguntou-lheseeramamores.Elemastigouumpouco,econfessouquesim.

—Olhe;lávemelasaindo;nãoéela?—Elamesma;afastemo-nosdaesquina.—Realmente,devetersidomuitobonita.Temumardeduquesa.—Nãoolhouparacá;nãoolhanuncaparaos lados.Vai subirpela ruado

Ouvidor...—Sim,senhor.CompreendooAndrade.—Vamosaocaso.OLeandroconfessouquetiveranavésperaumafortuna

rara, ou antes única, uma cousa que ele nunca esperara achar, nem mereciamesmo,porque se conhecia enãopassavadeumpobre-diabo.Mas, enfim,ospobres também são filhos deDeus. Foi o caso que, na véspera, perto das dezhorasdanoite,encontraranoRocioumadamavestidacomsimplicidade,vistosadecorpo,emuitoembrulhadanumxalegrande.Adamavinhaatrásdele,emaisdepressa;aopassarrentezinhacomele,fitou-lhemuitoosolhos,efoiandandodevagar,comoquemespera.Opobre-diaboimaginouqueeraenganodepessoa;confessouaoAndradeque,apesardaroupasimples,viulogoquenãoeracousaparaosseusbeiços.Foiandando;amulher,parada,fitou-ooutravez,mascomtal instância,queelechegouatrever-seumpouco;elaatreveu-seo resto...Ah!umanjo!Equecasa,quesalarica!Cousapapa-fina.Edepoisodesinteresse...“Olhe,acrescentouele,paraVossaSenhoriaéqueeraumbomarranjo.”Andradeabanouacabeça;não lhecheiravaocomborço.MasoLeandro teimou;eranaruadoSacramento,númerotantos...

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—Nãomedigaisso!—ImaginecomonãoficouoAndrade.Elemesmonãosoubeoquefeznem

oquedisseduranteosprimeirosminutos,nemoquepensounemoquesentiu.Afinal teve força para perguntar se era verdade o que estava contando;mas ooutroadvertiuquenãotinhanenhumanecessidadedeinventarsemelhantecousa;vendo,porém,oalvoroçodoAndrade,pediu-lhesegredo,dizendoqueele,pelasua parte, era discreto. Parece que ia sair; Andrade deteve-o e propôs-lhe umnegócio;propôs-lheganharvintemil-réis.—“Pronto!”—“Dou-lhevintemil-réis,sevocêforcomigoàcasadessamoçaedisserempresençadelaqueéelamesma.”

—Oh!—NãodefendooAndrade;acousanãoerabonita;masapaixão,nessecaso,

cega osmelhores homens.Andrade era digno, generoso, sincero;mas o golpefora tão profundo, e ele amava-a tanto, que não recuou diante de uma talvingança.

—Ooutroaceitou?—Hesitouumpouco,estouquepormedo,nãopordignidade;masvintemil-

réis... Pôs uma condição: não metê-lo em barulhos... Marocas estava na sala,quandooAndradeentrou.Caminhouparaaporta,naintençãodeoabraçar;masoAndradeadvertiu-a,comogesto,quetraziaalguém.Depois,fitando-amuito,fezentraroLeandro;Marocasempalideceu.—“Éestasenhora?”perguntouele.—“Sim,senhor”,murmurouoLeandrocomvozsumida,porqueháaçõesaindamaisignóbeisdoqueoprópriohomemqueascomete.Andradeabriuacarteiracomgrandeafetação,tirouumanotadevintemil-réisedeu-lha;e,comamesmaafetação,ordenou-lhequeseretirasse.OLeandrosaiu.Acenaqueseseguiufoibreve,mas dramática.Não a soube inteiramente, porque o próprioAndrade équemecontoutudo,e,naturalmente,estavatãoatordoado,quemuitacousalheescapou.Elanãoconfessounada;masestavaforadesi,e,quandoele,depoisdelhedizerascousasmaisdurasdomundo,atirou-separaaporta,elarojou-se-lheaos pés, agarrou-lhe as mãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; eficouatiradaaochão,nopatamardaescada;eledesceuvertiginosamenteesaiu.

— Na verdade, um sujeito reles, apanhado na rua; provavelmente eramhábitosdela?

—Não.—Não?—Ouçaoresto.Denoiteseriamoitohoras,oAndradeveioàminhacasa,e

esperoupormim.Jámetinhaprocuradotrêsvezes.Fiqueiestupefato;mascomoduvidar,seeletiveraaprecauçãodelevaraprovaatéàevidência?Nãolhecontooqueouvi,osplanosdevingança,asexclamações,osnomesquelhechamou,

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todooestiloetodoorepertóriodessascrises.Meuconselhofoiqueadeixasse;que,afinal,vivesseparaamulherea filha,amulher tãoboa, tãomeiga...Eleconcordava,mastornavaaofuror.Dofurorpassouàdúvida;chegouaimaginarqueaMarocas,comofimdeoexperimentar, inventaraoartifícioepagaraaoLeandroparavirdizer-lheaquilo;eaprovaéqueoLeandro,nãoquerendoelesaber quem era, teimou e lhe disse a casa e o número. E agarrado a estainverossimilhança,tentavafugiràrealidade;masarealidadevinha—apalidezdeMarocas,aalegriasinceradoLeandro,tudooquelhediziaqueaaventuraeracerta. Creio até que ele arrependia-se de ter ido tão longe. Quanto a mim,cogitavanaaventura,sematinarcomaexplicação.Tãomodesta!maneiras tãoacanhadas!

—Háumafrasedeteatroquepodeexplicaraaventura,umafrasedeAugier,creioeu:“anostalgiadalama”.

—Achoquenão;masváouvindo.Àsdezhorasapareceu-nosemcasaumacriada de Marocas, uma preta forra, muito amiga da ama. Andava aflita emprocura do Andrade, porque aMarocas, depois de chorar muito, trancada noquarto, saiu de casa sem jantar, e não voltara mais. Contive o Andrade, cujoprimeiro gesto foi para sair logo. A preta pedia-nos por tudo que fôssemosdescobrir a ama. “Não é costume dela sair?”, perguntou o Andrade comsarcasmo.Masapretadissequenãoeracostume.“Estáouvindo?”,bradoueleparamim.Eraaesperançaquedenovoempolgaraocoraçãodopobre-diabo.“Eontem?...”, disse eu. A preta respondeu que na véspera sim; mas não lheperguntei mais nada, tive compaixão do Andrade, cuja aflição crescia, e cujopundonor iacedendodiantedoperigo.SaímosembuscadaMarocas; fomosatodas as casas em que era possível encontrá-la; fomos à polícia; mas a noitepassou-sesemoutroresultado.Demanhãvoltamosàpolícia.Ochefeouumdosdelegados,nãomelembra,eraamigodoAndrade,quelhecontoudaaventuraaparte conveniente; aliás a ligação doAndrade e daMarocas era conhecida detodos os seus amigos. Pesquisou-se tudo; nenhum desastre se dera durante anoite;asbarcasdapraiaGrandenãoviramcairaomarnenhumpassageiro;ascasas de armas não venderam nenhuma; as boticas nenhum veneno.A políciapôsemcampotodososseusrecursos,enada.NãolhedigooestadodeafliçãoemqueopobreAndradeviveuduranteessaslongashoras,porquetodoodiasepassou em pesquisas inúteis. Não era só a dor de a perder; era também oremorso, a dúvida, ao menos, da consciência, em presença de um possíveldesastre,quepareciajustificaramoça.Eleperguntava-me,acadapasso,senãoeranatural fazeroque fez, nodelírioda indignação, se eunão faria amesmacousa. Mas depois tornava a afirmar a aventura, e provava-me que eraverdadeira,comomesmoardorcomquenavésperatentaraprovarqueerafalsa;

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oqueelequeriaeraacomodararealidadeaosentimentodaocasião.—Mas,enfim,descobriramaMarocas?— Estávamos comendo alguma cousa, em um hotel, eram perto de oito

horas,quandorecebemosnotíciadeumvestígio:—umcocheiroquelevaranavéspera uma senhora para o Jardim Botânico, onde ela entrou em umahospedaria,eficou.Nemacabamosojantar;fomosnomesmocarroaoJardimBotânico.Odonodahospedariaconfirmouaversão;acrescentandoqueapessoaserecolheraaumquarto,nãocomeranadadesdequechegounavéspera;apenaspediu uma xícara de café; parecia profundamente abatida. Encaminhamo-nosparaoquarto;odonodahospedariabateuàporta;elarespondeucomvozfraca,eabriu.OAndradenemmedeutempodeprepararnada;empurrou-me,ecaíramnosbraçosumdooutro.Marocaschoroumuitoeperdeuossentidos.

—Tudoseexplicou?— Cousa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um

naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. Areconciliação fez-se depressa. O Andrade comprou-lhe, meses depois, umacasinha em Catumbi; aMarocas deu-lhe um filho, quemorreu de dous anos.QuandoeleseguiuparaoNorte,emcomissãodogoverno,aafeiçãoeraaindaamesma, posto que os primeiros ardores não tivessem já amesma intensidade.Não obstante, ela quis ir também; fui eu que a obriguei a ficar. O Andradecontava tornar ao fim de pouco tempo, mas, como lhe disse, morreu naprovíncia.AMarocas sentiuprofundamente amorte, pôs luto, e considerou-seviúva; sei que nos três primeiros anos ouvia sempre uma missa no diaaniversário.Hádezanosperdi-adevista.Quelheparecetudoisto?

— Realmente, há ocorrências bem singulares, se o senhor não abusou daminhaingenuidadederapazparaimaginarumromance...

—Nãoinventeinada;éarealidadepura.—Pois,senhor,écurioso.Nomeiodeumapaixãotãoardente,tãosincera...

Euaindaestounaminha;achoquefoianostalgiadalama.—Não:nuncaaMarocasdesceuatéaosLeandros.—Entãoporquedescerianaquelanoite?—Era umhomemque ela supunha separado, por um abismo, de todas as

suasrelaçõespessoais;daíaconfiança.Masoacaso,queéumdeuseumdiaboaomesmotempo...Enfim,cousas!

GazetadeNotícias,30demaiode1883;MachadodeAssis.

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Galeriapóstuma

CapítuloI

Não,nãosedescreveaconsternaçãoqueproduziuemtodooEngenhoVelho,

eparticularmentenocoraçãodosamigos,amortedeJoaquimFidélis.Nadamaisinesperado.Erarobusto,tinhasaúdedeferro,eaindanavésperaforaaumbaile,onde todos o viram conversado e alegre. Chegou a dançar, a pedido de umasenhora sexagenária, viúva de um amigo dele, que lhe tomou do braço, e lhedisse:

— Venha cá, venha cá, vamos mostrar a estes criançolas como é que osvelhossãocapazesdedesbancartudo.

Joaquim Fidélis protestou sorrindo; mas obedeceu e dançou. Eram duashoras quando saiu, embrulhando os seus sessenta anos numa capa grossa—estávamosem junhode1879—,metendoacalvanacarapuça, acendendoumcharutoeentrandolepidamentenocarro.

No carro é possível que cochilasse; mas, em casa, malgrado a hora e ograndepesodaspálpebras,aindafoiàsecretária,abriuumagaveta,tirouumdemuitosfolhetosmanuscritos—eescreveudurantetrêsouquatrominutosumasdezouonzelinhas.Asúltimaspalavraseramestas:“Emsuma,bailechinfrim;uma velha gaiteira obrigou-me a dançar uma quadrilha; à porta um crioulopediu-measfestas.Chinfrim!”Guardouofolheto,despiu-se,meteu-senacama,dormiuemorreu.

Sim, a notícia consternou a todoo bairro.Tão amadoque ele era, comosmodosbonitosquetinha,sabendoconversarcomtodaagente,instruídocomosinstruídos,ignorantecomosignorantes,rapazcomosrapazes,eatémoçacomasmoças.Edepois,muitoserviçal,prontoaescrevercartas,afalaraamigos,aconcertarbrigas,aemprestardinheiro.Emcasadele reuniam-seànoitealgunsíntimos da vizinhança, e às vezes de outros bairros; jogavamo voltarete ou owhist,falavamdepolítica.JoaquimFidélistinhasidodeputadoatéàdissolução

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da Câmara pelo marquês de Olinda, em 1863. Não conseguindo ser reeleito,abandonouavidapública.Eraconservador,nomequeamuitocustoadmitiu,porlheparecergalicismopolítico.Saquaremaéoqueelegostavadeserchamado.Mas abriu mão de tudo; parece até que nos últimos tempos desligou-se dopróprio partido, e afinal damesma opinião.Há razões para crer que, de certadataemdiante,foiumprofundocéptico,enadamais.

Era ricoe letrado.Formara-seemdireitonoanode1842.Agoranão fazianadaeliamuito.Nãotinhamulheresemcasa.Viúvodesdeaprimeirainvasãodafebreamarela,recusoucontrairsegundasnúpcias,comgrandemágoadetrêsouquatro damas, que nutriram essa esperança durante algum tempo. Uma delaschegou a prorrogar perfidamenteos seusbelos cachosde1845 atémeadosdosegundoneto; outra,maismoça e tambémviúva, pensou retê-lo comalgumasconcessões,tãogenerosasquãoirreparáveis.“MinhaqueridaLeocádia,diziaelenas ocasiões em que ela insinuava a solução conjugal, por que nãocontinuaremosassimmesmo?Omistérioéoencantodavida.”Moravacomumsobrinho, o Benjamim, filho de uma irmã, órfão desde tenra idade. JoaquimFidélis deu-lhe educação e fê-lo estudar, até obter diploma de bacharel emciênciasjurídicas,noanode1877.

Benjamimficouatordoado.Nãopodiaacabardecrernamortedotio.Correuao quarto, achou o cadáver na cama, frio, olhos abertos, e um leve arregaçoirônico ao canto esquerdo da boca. Chorou muito e muito. Não perdia umsimples parente, mas um pai, um pai terno, dedicado, um coração único.Benjamimenxugou,enfim,as lágrimas;e,porque lhe fizessemalverosolhosabertosdomorto,eprincipalmenteo lábioarregaçado,consertou-lheambasascousas. A morte recebeu assim a expressão trágica, mas a originalidade damáscaraperdeu-se.

— Não me digam isto!— bradava daí a pouco um dos vizinhos, DiogoVilares,aorecebernotíciadocaso.

Diogo Vilares era um dos cinco principais familiares de Joaquim Fidélis.Devia-lheoempregoqueexerciadesde1857.Veioele;vieramosoutrosquatro,logodepois,umaum,estupefatos,incrédulos.PrimeirochegouoEliasXavier,quealcançaraporintermédiodofinado,segundosedizia,umacomenda;depoisentrou o JoãoBrás, deputado que foi, no regime das suplências, eleito com oinfluxodoJoaquimFidélis.Vieram,enfim,oFragosoeoGaldino,quelhenãodeviam diplomas, comendas nem empregos, mas outros favores. Ao Galdinoadiantou ele alguns poucos capitais, e ao Fragoso arranjou-lhe um bomcasamento... Emorto!morto para todo sempre! De redor da cama, fitavam orosto sereno e recordavama última festa, a do outro domingo, tão íntima, tãoexpansiva!E,mais perto ainda, a noite da antevéspera, emqueo voltarete do

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costumefoiatéàsonzehoras.—Amanhãnãovenham—disse-lhesoJoaquimFidélis—;vouaobailedo

Carvalhinho.—Edepois?...—Depoisdeamanhã,cáestou.E,àsaída,deu-lhesaindaummaçodeexcelentescharutos,segundofaziaàs

vezes, com um acréscimo de doces secos para os pequenos, e duas ou trêspilhériasfinas...Tudoesvaído!tudodisperso!tudoacabado!

Aoenterroacudirammuitaspessoasgradas,doussenadores,umex-ministro,titulares, capitalistas, advogados, comerciantes, médicos; mas as argolas docaixãoforamseguraspeloscincofamiliareseoBenjamim.Nenhumdelesquiscederaninguémesseúltimoobséquio,considerandoqueeraumdevercordialeintransferível. O adeus do cemitério foi proferido pelo João Brás, um adeustocante, com algum excesso de estilo para um caso tão urgente, mas, enfim,desculpável.Deitadaapádeterra,cadaumsefoiarredandodacova,menososseis, que assistiram ao trabalho posterior e indiferente dos coveiros. Nãoarredaram pé antes de ver cheia a cova até acima, e depositadas sobre ela ascoroasfúnebres.

CapítuloII

Amissadosétimodiareuniu-osnaigreja.Acabadaamissa,oscincoamigos

acompanharamàcasaosobrinhodomorto.Benjamimconvidou-osaalmoçar.— Espero que os amigos do tio Joaquim serão também meus amigos—

disseele.Entraram, almoçaram.Ao almoço falaram domorto; cada um contou uma

anedota,umdito;eramunânimesnolouvorenassaudades.Nofimdoalmoço,como tivessem pedido uma lembrança do finado, passaram ao gabinete, eescolheramàvontade,esteumacanetavelha,aqueleumacaixadeóculos,umfolheto,umretalhoqualqueríntimo.Benjamimsentia-seconsolado.Comunicou-lhesquepretendiaconservarogabinetetalqualestava.Nemasecretáriaabriraainda.Abriu-a então, e, comeles, inventariouo conteúdode algumasgavetas.Cartas,papéissoltos,programasdeconcertos,menusdegrandes jantares, tudoaliestavademisturaeconfusão.Entreoutrascousasacharamalgunscadernos

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manuscritos,numeradosedatados.—Umdiário!—disseBenjamim.Com efeito, era umdiário das impressões do finado, espécie dememórias

secretas,confidênciasdohomemasimesmo.Grandefoiacomoçãodosamigos;lê-lo era ainda conversá-lo. Tão reto caráter! tão discreto espírito! Benjamimcomeçoualeitura;masavozembargou-se-lhedepressa,eJoãoBráscontinuou-a.

Ointeressedoescritoadormeceuadordoóbito.Eraumlivrodignodoprelo.Muita observação política e social, muita reflexão filosófica, anedotas dehomenspúblicos,doFeijó,doVasconcelos,outraspuramentegalantes,nomesdesenhoras, o da Leocádia, entre outros; um repertório de fatos e comentários.Cada um admirava o talento do finado, as graças do estilo, o interesse damatéria. Uns opinavam pela impressão tipográfica; Benjamim dizia que sim,com a condição de excluir alguma cousa, ou inconveniente ou demasiadoparticular.Econtinuavamaler,saltandopedaçosepáginas,atéquebateumeio-dia.Levantaram-setodos;DiogoVilaresiajáchegaràrepartiçãoforadehoras;João Brás e Elias tinham onde estar juntos. Galdino seguia para a loja. OFragoso precisava mudar a roupa preta, e acompanhar a mulher à rua doOuvidor. Concordaram em nova reunião para prosseguir a leitura. Certasparticularidades tinham-lhesdadoumacomichãodeescândalo,eascomichõescoçam-se:éoqueelesqueriamfazer,lendo.

—Atéamanhã—disseram.—Atéamanhã.Umavez só,Benjamimcontinuou a ler omanuscrito.Entre outras cousas,

admirou o retrato da viúva Leocádia, obra-prima de paciência e semelhança,emboraadatacoincidissecomadosamores.Eraprovadeumararaisençãodeespírito. De resto, o finado era exímio nos retratos. Desde 1873 ou 1874, oscadernosvinhamcheiosdeles,unsdevivos,outrosdemortos,algunsdehomenspúblicos, Paula Sousa, Aureliano, Olinda, etc. Eram curtos e substanciais, àsvezes trêsouquatrorasgosfirmes,comtal fidelidadeeperfeição,queafigurapareciafotografada.Benjamimialendo;derepentedeucomoDiogoVilares.Eleuestaspoucaslinhas:

DiogoVilares.—Tenho-me referidomuitas vezesa este amigo, e fá-lo-ei

algumasoutrasmais, se eleme nãomatar de tédio, cousa em que o reputoprofissional.Pediu-meháanosque lhearranjasseumemprego,earranjei-lho.Nãomeavisoudamoedaemquemepagaria.Quesingulargratidão!Chegouaoexcesso de compor um soneto e publicá-lo. Falava-me do obséquio a cadapasso, dava-me grandes nomes; enfim, acabou. Mais tarde relacionamo-nos

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intimamente.Conheci-o então aindamelhor.C’est le genre ennuyeux.Não émauparceirodevoltarete.Dizem-mequenãodevenadaaninguém.Bompaidefamília.Estúpidoecrédulo.Com intervalodequatrodias, já lheouvidizerdeumministérioqueeraexcelenteedetestável:—diferençadosinterlocutores.Rimuitoemal.Todaagente,quandoovêpelaprimeiravez,começaporsupô-loumvarãograve;nosegundodiadá-lhepiparotes.Arazãoéa figura,ou,maisparticularmente,asbochechas,quelheemprestamumcertoarsuperior.

A primeira sensação do Benjamim foi a do perigo evitado. Se o Diogo

Vilaresestivesseali?Releuoretratoemalpodiacrer;masnãohaviacomonegá-lo,eraopróprionomedoDiogoVilares,eraamesmaletradotio.Enãoeraoúnicodosfamiliares;folheouomanuscritoedeucomoElias:

Elias Xavier.— Este Elias é um espírito subalterno, destinado a servir

alguém, ea servir com desvanecimento, como os cocheirosde casa elegante.Vulgarmentetrataasminhasvisitasíntimascomalgumaarrogânciaedesdém:políticadelacaioambicioso.Desdeasprimeirassemanas,compreendiqueelequeriafazer-semeuprivado;enãomenoscompreendique,nodiaquerealmenteofosse,punhaosoutrosnomeiodarua.Háocasiõesemquemechamaaumvão da janela para falar-me secretamente do sol e da chuva.O fim claro éincutirnosoutrosasuspeitadequeháentrenóscousasparticulares,ealcançaissomesmo,porquetodoslherasgammuitascortesias.É inteligente,risonhoefino. Conversa muito bem. Não conheço compreensão mais rápida. Não époltrão nem maldizente. Só fala mal de alguém, por interesse; faltando-lheinteresse,cala-se;eamaledicência legítimaégratuita.Dedicadoe insinuante.Não tem ideias,éverdade;mashá estagrandediferença entre ele e oDiogoVilares:— oDiogo repete pronta eboçalmenteas queouve,ao passoque oEliassabe fazê-lassuaseplantá-lasoportunamentenaconversação.Um casode 1865 caracteriza bem a astúciadeste homem. Tendo dado alguns libertosparaaguerradoParaguai, iareceberuma comenda.Nãoprecisavademim;masveiopediraminhaintercessão,duasoutrêsvezes,comumarconsternadoesúplice.Faleiaoministro,quemedisse:—“OEliasjásabequeodecretoestálavrado; falta sóa assinatura do imperador.”Compreendi então que era umestratagema para poder confessar-me essa obrigação. Bom parceiro devoltarete;umpoucobrigão,masentendido.

—Ora o tio Joaquim!—exclamouBenjamim levantando-se.E depois de

algunsinstantes,reflexionouconsigo:—Estoulendoumcoração,livroinédito.Conhecia a edição pública, revista e expurgada. Este é o texto primitivo e

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interior, a lição exata e autêntica. Mas quem imaginaria nunca... Ora o tioJoaquim!

E, tornando a sentar-se, releu também o retrato do Elias, com vagar,meditando as feições.Posto lhe faltasseobservação, para avaliar a verdadedoescrito, achou que em muitas partes, ao menos, o retrato era semelhante.Cotejava essas notas iconográficas, tão cruas, tão secas, com as maneirascordiaisegraciosasdotio,esentia-setomadodeumcertoterroremal-estar.Ele,por exemplo, que teria dito dele o finado? Com esta ideia, folheou ainda omanuscrito,passouporaltoalgumasdamas,algunshomenspúblicos,deucomoFragoso—umesboço curto e curtíssimo—, logo depois oGaldino, e quatropáginas adiante o João Brás. Justamente o primeiro levara dele uma caneta,poucoantes,talvezamesmacomqueofinadooretratara.Curtoeraoesboço,ediziaassim:

Fragoso.—Honesto,maneirasaçucaradasebonito.Nãomecustoucasá-lo;

vivemuitobemcomamulher.Seiqueme temumaextraordináriaadoração —quasetantacomoasimesmo.Conversaçãovulgar,polidaechocha.

GaldinoMadeira.—Omelhorcoraçãodomundoeumcarátersemmácula;masasqualidadesdoespíritodestroemasoutras.Emprestei-lhealgumdinheiro,pormotivodafamília,eporquemenãofaziafalta.Hánocérebrodeleumcertofuro, porondeo espírito escorrega e cai no vácuo.Não reflete trêsminutosseguidos.Viveprincipalmentede imagens,de frases translatas.Os“dentesdacalúnia” eoutras expressões, surradas como colchões de hospedaria, são osseus encantos. Mortifica-se facilmente no jogo, e, uma vez mortificado, faztimbre em perder, e em mostrar que é de propósito. Não despede os mauscaixeiros.Senão tivesseguarda-livros,éduvidosoquesomasseosquebrados.Umsubdelegado,meuamigo,quelhedeveualgumdinheiro,durantedousanos,dizia-mecommuitagraçaqueoGaldinoquandoovia na rua, em vezde lhepediradívida,pedia-lhenotíciasdoministério.

JoãoBrás.—Nemtolonembronco.Muitoatencioso,emborasemmaneiras.Nãopodeverpassarumcarrodeministro;ficapálidoeviraosolhos.Creioqueé ambicioso; mas na idade em que está, sem carreira, a ambição vai-se-lheconvertendo em inveja. Durante os dous anos em que serviu de deputado,desempenhou honradamente o cargo: trabalhou muito, e fez alguns discursosbons,nãobrilhantes,massólidos,cheiosdefatoserefletidos.Aprovadequelheficouum resíduode ambiçãoéo ardor comqueanda à catade alguns cargoshonoríficos ou preeminentes; há alguns meses consentiu em ser juiz de umairmandadedeS.José,esegundomedizem,desempenhaocargocomumzeloexemplar.Creioqueéateu,masnãoafirmo.Ripoucoediscretamente.Avidaé

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pura e severa, mas o caráter tem uma ou duas cordas fraudulentas, a que sófaltouamãodoartista;nascousasmínimas,mentecomfacilidade.

Benjamim, estupefato, deu enfim consigomesmo.— “Estemeu sobrinho,

dizia o manuscrito, tem 24 anos de idade, um projeto de reforma judiciária,muitocabelo,eama-me.Eunãooamomenos.Discreto,lealebom—bomatéàcredulidade. Tão firme nas afeições como versátil nos pareceres. Superficial,amigodenovidades,amandonodireitoovocabulárioeasfórmulas.”

Quis reler, e não pôde; essas poucas linhas davam-lhe a sensação de umespelho. Levantou-se, foi à janela, mirou a chácara e tornou dentro paracontemplaroutravezassuasfeições.Contemplou-as;erampoucas,falhas,masnão pareciam caluniosas. Se ali estivesse um público, é provável que amortificaçãodorapazfossemenor,porqueanecessidadededissiparaimpressãomoraldosoutrosdar-lhe-iaaforçanecessáriaparareagircontraoescrito;mas,asós, consigo, teve de suportá-lo sem contraste. Então considerou se o tio nãoteriacompostoessaspáginasnashorasdemauhumor;comparou-asaoutrasemqueafraseeramenosáspera,masnãocogitousealiabranduravinhaounãodemolde.

Paraconfirmaraconjectura,recordouasmaneirasusuaisdofinado,ashorasde intimidade e riso, a sós com ele, ou de palestra comos demais familiares.Evocouafiguradotio,comoolharespirituosoemeigo,eapilhériagrave;emlugar dessa, tão cândida e simpática, a que lhe apareceu foi a do tio morto,estendido na cama, com os olhos abertos e o lábio arregaçado. Sacudiu-a doespírito, mas a imagem ficou. Não podendo rejeitá-la, Benjamim tentoumentalmentefechar-lheosolhoseconsertar-lheaboca;mastãodepressaofazia,comoapálpebratornavaalevantar-se,eaironiaarregaçavaobeiço.Jánãoeraohomem,eraoautordomanuscrito.

Benjamimjantoumaledormiumal.Nodiaseguinte,àtarde,apresentaram-se os cinco familiares para ouvir a leitura. Chegaram sôfregos, ansiosos;fizeram-lhemuitasperguntas;pediram-lhecominstânciaparaveromanuscrito.MasBenjamimtergiversava,diziaistoeaquilo,inventavapretextos;pormaldepecados, apareceu-lhe na sala, por trás deles, a eterna boca do defunto, e estacircunstânciafê-loaindamaisacanhado.Chegouamostrar-sefrio,paraficarsó,e ver se com eles desaparecia a visão. Assim se passaram trinta a quarentaminutos. Os cinco olharam enfim uns para os outros, e deliberaram sair;despediram-secerimoniosamente,eforamconversando,parasuascasas:

—Que diferença do tio! que abismo! a herança enfunou-o! deixá-lo!Ah!JoaquimFidélis!ah!JoaquimFidélis!

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GazetadeNotícias,2deagostode1883;MachadodeAssis.

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Anedotapecuniária

Chama-se Falcão o meu homem. Naquele dia— 14 de abril de 1870—

quem lheentrasseemcasa, àsdezhorasdanoite,vê-lo-iapassearna sala, emmangas de camisa, calça preta e gravata branca, resmungando, gesticulando,suspirando, evidentemente aflito. Às vezes, sentava-se; outras, encostava-se àjanela,olhandoparaapraia,queeraadaGamboa.Mas,emqualquerlugarouatitude,demorava-sepoucotempo.

—Fizmal—dizia ele—,muitomal. Tãominha amiga que ela era! tãoamorosa! Ia chorando, coitadinha! Fiz mal, muito mal... Ao menos, que sejafeliz!

Seeudisserqueestehomemvendeuumasobrinha,nãomehãodecrer;sedesceradefiniropreço,dezcontosderéis,voltar-me-ãoascostascomdesprezoeindignação.Entretanto,bastaveresteolharfelino,estesdousbeiços,mestresde cálculo, que, ainda fechados, parecem estar contando alguma cousa, paraadivinhar logo que a feição capital do nosso homem é a voracidade do lucro.Entendamo-nos:elefazartepelaarte,nãoamaodinheiropeloqueelepodedar,maspeloqueéemsimesmo!Ninguémlheváfalardosregalosdavida.Nãotemcama fofa, nem mesa fina, nem carruagem, nem comenda. Não se ganhadinheiroparaesbanjá-lo,diziaele.Vivedemigalhas;tudooqueamontoaéparaacontemplação.Vaimuitasvezesàburra,queestánaalcovadedormir,comoúnicofimdefartarosolhosnosrolosdeouroemaçosdetítulos.Outrasvezes,por um requinte de erotismo pecuniário, contempla-os só de memória. Nesteparticular, tudo o que eu pudesse dizer ficaria abaixo de uma palavra delemesmo,em1857.

Já então milionário, ou quase, encontrou na rua dous meninos, seusconhecidos,quelheperguntaramseumanotadecincomil-réis,quelhesderaumtio,eraverdadeira.Corriamalgumasnotas falsas, eospequenos lembraram-sedissoemcaminho.Falcãoiacomumamigo.Pegoutrêmulonanota,examinou-abem,virou-a,revirou-a...

—Éfalsa?—perguntoucomimpaciênciaumdosmeninos.—Não;éverdadeira.—Dêcá—disseramambos.Falcãodobrouanotavagarosamente,semtirar-lheosolhosdecima;depois,

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restituiu-a aos pequenos, e, voltando-se para o amigo, que esperava por ele,disse-lhecomamaiorcanduradomundo:

—Dinheiro,mesmoquandonãoédagente,fazgostover.Eraassimqueeleamavaodinheiro,atéàcontemplaçãodesinteressada.Que

outromotivopodialevá-loaparar,diantedasvitrinasdoscambistas,cinco,dez,15 minutos, lambendo com os olhos os montes de libras e francos, tãoarrumadinhoseamarelos?Omesmosobressaltocomquepegounanotadecincomil-réiseraumrasgosutil,eraoterrordanotafalsa.Nadaaborreciatantocomoos moedeiros falsos, não por serem criminosos, mas prejudiciais, pordesmoralizaremodinheirobom.

A linguagem do Falcão valia um estudo. Assim é que, um dia, em 1864,voltandodoenterrodeumamigo, referiuo esplendordopréstito, exclamandocom entusiasmo:— “Pegavam no caixão três mil contos!” E, como um dosouvintes não o entendesse logo, concluiu do espanto, que duvidava dele, ediscriminou a afirmação: — “Fulano quatrocentos, Sicrano seiscentos... Sim,senhor,seiscentos;hádousanos,quandodesfezasociedadecomosogro,iaemmais de quinhentos; mas suponhamos quinhentos...” E foi por diante,demonstrando,somandoeconcluindo:—“Justamente,trêsmilcontos!”

Nãoeracasado.Casarerabotardinheirofora.Masosanospassaram,eaos45entrouasentirumacertanecessidademoral,quenãocompreendeulogo,eeraasaudadepaterna.Nãomulher,nãoparentes,masumfilhoouumafilha,seeleotivesse, era como receberumpatacãodeouro. Infelizmente, esseoutro capitaldevia ter sido acumulado em tempo; não podia começá-lo a ganhar tão tarde.Restavaaloteria;aloteriadeu-lheoprêmiogrande.

Morreu-lheo irmão,e trêsmesesdepoisacunhada,deixandoumafilhadeonzeanos.Elegostavamuitodestaedeoutrasobrinha,filhadeumairmãviúva;dava-lhes beijos, quando as visitava; chegavamesmo ao delírio de levar-lhes,umaououtravez,biscoutos.Hesitouumpouco,mas,enfim,recolheuaórfã;eraa filha cobiçada. Não cabia em si de contente; durante as primeiras semanas,quasenãosaíadecasa,aopédela,ouvindo-lhehistóriasetolices.

Chamava-seJacinta,enãoerabonita;mastinhaavozmelodiosaeosmodosfagueiros. Sabia ler e escrever; começava a aprender música. Trouxe o pianoconsigo,ométodoealgunsexercícios;nãopôdetrazeroprofessor,porqueotioentendeuqueeramelhorirpraticandooqueaprendera,eumdia...maistarde...Onze anos, 12 anos, 13 anos, cada ano que passava eramais um vínculo queatavaovelhosolteirãoàfilhaadotiva,evice-versa.Aos13,Jacintamandavanacasa; aos 17 era verdadeira dona. Não abusou do domínio; era naturalmentemodesta,frugal,poupada.

—Umanjo!—diziaoFalcãoaoChicoBorges.

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EsteChicoBorgestinhaquarentaanos,eeradonodeumtrapiche.IajogarcomoFalcãoànoite.Jacintaassistiaàspartidas.Tinhaentão18anos;nãoeramaisbonita,masdiziamtodos“queestavaenfeitandomuito”.Erapequenina,eotrapicheiroadoravaasmulherespequeninas.Corresponderam-se,onamorofez-sepaixão.

—Vamosaelas—diziaoChicoBorgesaoentrar—,poucodepoisdeave-marias.

As cartas eram o chapéu de sol dos dous namorados. Não jogavam adinheiro; mas o Falcão tinha tal sede ao lucro, que contemplava os própriostentos,semvalor,econtava-osdedezemdezminutos,paraverseganhavaouperdia.Quandoperdia,caía-lheorostonumdesalentoincurável,eelerecolhia-sepoucoapoucoaosilêncio.Seasorteteimavaempersegui-lo,acabavaojogo,e levantava-se tão melancólico e cego, que a sobrinha e o parceiro podiamapertaramão,uma,duas,trêsvezes,semqueelevissecousanenhuma.

Eraistoem1869.Noprincípiode1870Falcãopropôsaooutroumavendadeações.Nãoastinha;masfarejouumagrandebaixa,econtavaganhardeumsólancetrintaaquarentacontosaoChicoBorges.Esterespondeu-lhefinamenteque andava pensando em oferecer-lhe a mesma cousa. Uma vez que ambosqueriam vender e nenhum comprar, podiam juntar-se e propor a venda a umterceiro.Acharamoterceiro,efecharamocontratoasessentadias.Falcãoestavatãocontente,aovoltardonegócio,queosócioabriu-lheocoraçãoepediu-lheamãodeJacinta.Foiomesmoque,sederepente,começasseafalarturco.Falcãoparou,embasbacado,sementender.Quelhedesseasobrinha?Masentão...

—Sim;confessoavocêqueestimariamuitocasarcomela,eela...pensoquetambémestimariacasarcomigo.

—Qual,nada!—interrompeuoFalcão.—Não,senhor;estámuitocriança,nãoconsinto.

—Masreflita...—Nãoreflito,nãoquero.Chegouacasairritadoeaterrado.Asobrinhaafagou-otantoparasaberoque

era,queeleacaboucontandotudo,echamando-lheesquecidaeingrata.Jacintaempalideceu;amavaosdous,evia-os tãodados,quenãoimaginoununcaessecontrastede afeições.Noquarto chorou à larga; depois escreveuumacarta aoChicoBorgespedindo-lhepelascincochagasdeNossoSenhorJesusCristoquenãofizessebarulhonembrigassecomotio;dizia-lhequeesperasse,ejurava-lheumamoreterno.

Não brigaram os dous parceiros; mas as visitas foram naturalmente maisescassasefrias.Jacintanãovinhaàsala,ouretirava-selogo.OterrordoFalcãoeraenorme.Eleamavaasobrinhacomumamordecão,quepersegueemorde

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aosestranhos.Queria-aparasi,nãocomohomem,mascomopai.Apaternidadenatural dá forças para o sacrifício da separação; a paternidade dele era deempréstimo,e,talvez,porissomesmo,maisegoísta.Nuncapensaraemperdê-la;agora, porém, eram trintamil cuidados, janelas fechadas, advertências à preta,uma vigilância perpétua, um espiar os gestos e os ditos, uma campanha de d.Bartolo.

Entretanto,o sol,modelode funcionários, continuoua servirpontualmenteosdias,umaum,atéchegaraosdousmesesdoprazomarcadoparaaentregadas ações. Estas deviam baixar, segundo a previsão dos dous; mas as ações,como as loterias e as batalhas, zombam dos cálculos humanos.Naquele caso,alémdezombaria,houvecrueldade,porquenembaixaram,nemficaramaopar;subiramatéconverteroesperadolucrodequarentacontosnumaperdadevinte.

Foi aqui que o Chico Borges teve uma inspiração de gênio. Na véspera,quando o Falcão, abatido e mudo, passeava na sala o seu desapontamento,propôs ele custear todo o deficit, se lhe desse a sobrinha. Falcão teve umdeslumbramento.

—Queeu...?—Issomesmo—interrompeuooutro,rindo.—Não,não...Nãoquis;recusoutrêsequatrovezes.Aprimeiraimpressãoforadealegria,

eram os dez contos na algibeira. Mas a ideia de separar-se de Jacinta erainsuportável, e recusou.Dormiumal.Demanhã, encarou a situação, pesou ascousas,considerouque,entregandoJacintaaooutro,nãoaperdiainteiramente,aopassoqueosdezcontosiam-seembora.E,depois,seelagostavadeleeeledela,porquerazãosepará-los?Todasasfilhascasam-se,eospaiscontentam-sedeasverfelizes.CorreuàcasadoChicoBorges,echegaramaacordo.

—Fizmal,muitomal—bradavaelenanoitedocasamento.—Tãominhaamigaqueelaera!Tãoamorosa!Iachorando,coitadinha...Fizmal,muitomal.

Cessara o terror dos dez contos; começara o fastio da solidão. Namanhãseguinte, foivisitarosnoivos. Jacintanão se limitoua regalá-locomumbomalmoço, encheu-o de mimos e afagos; mas nem estes, nem o almoço lherestituíram a alegria.Ao contrário, a felicidade dos noivos entristeceu-omais.Ao voltar para casa não achou a carinha meiga de Jacinta. Nunca mais lheouviriaascantigasdemeninaemoça;nãoseriaelaquemlhefariaochá,quemlhetraria,ànoite,quandoelequisesseler,ovelhotomoensebadodoSaint-ClairdasIlhas,dádivade1850.

—Fizmal,muitomal...Pararemediaromalfeito,transferiuascartasparaacasadasobrinha,eialá

jogar,ànoite,comoChicoBorges.Masafortuna,quandoflagelaumhomem,

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corta-lhe todas asvazas.Quatromesesdepois, os recém-casados forampara aEuropa;asolidãoalargou-sedetodaaextensãodomar.Falcãocontavaentão54anos.JáestavamaisconsoladodocasamentodeJacinta;tinhamesmooplanodeir morar com eles, ou de graça, ou mediante uma pequena retribuição, quecalculou ser muito mais econômica do que a despesa de viver só. Tudo seesboroou;ei-looutraveznasituaçãodeoitoanosantes,comadiferençaqueasortearrancara-lheataçaentredousgoles.

Vaisenãoquandocai-lheoutrasobrinhaemcasa.Eraafilhadairmãviúva,quemorreuelhepediuaesmoladetomarcontadela.Falcãonãoprometeunada,porque um certo instinto o levava a não prometer cousa nenhuma a ninguém,masaverdadeéquerecolheuasobrinha, tãodepressaa irmãfechouosolhos.Não teve constrangimento; ao contrário, abriu-lhe as portas de casa, com umalvoroçodenamorado,equaseabençoouamortedairmã.Eraoutravezafilhaperdida.

—Estahádefechar-meosolhos—diziaeleconsigo.Nãoerafácil.Virgíniatinha18anos,feiçõeslindaseoriginais;eragrandee

vistosa. Para evitar que lha levassem, Falcão começou por onde acabara daprimeiravez:—janelascerradas,advertênciasàpreta,rarospasseios,sócomeleedeolhosbaixos.Virgínianãosemostrouenfadada.

—Nuncafuijaneleira—diziaela—,eachomuitofeioqueumamoçavivacomosentidonarua.

OutracauteladoFalcãofoinãotrazerparacasasenãoparceirosdecinquentaanosparacimaoucasados.Enfim,nãocuidoumaisdabaixadasações.Etudoissoeradesnecessário,porqueasobrinhanãocuidavarealmentesenãodeleedacasa. Às vezes, como a vista do tio começava a diminuir muito, lia-lhe elamesmaalgumapáginadoSaint-ClairdasIlhas.Parasuprirosparceiros,quandoeles faltavam, aprendeu a jogar cartas, e, entendendo que o tio gostava deganhar,deixava-sesempreperder.Iamaislonge:quandoperdiamuito,fingia-sezangadaoutriste,comoúnicofimdedaraotioumacréscimodeprazer.Eleriaentão à larga,mofavadela, achava-lheonariz comprido, pedia um lençoparaenxugar-lheaslágrimas;masnãodeixavadecontarosseustentosdedezemdezminutos, e se algum caía no chão (eram grãos de milho) descia a vela paraapanhá-lo.

Nofimdetrêsmeses,Falcãoadoeceu.Amoléstianãofoigravenemlonga;maso terrordamorteapoderou-se-lhedoespírito,e foientãoquesepôdevertodaaafeiçãoqueeletinhaàmoça.Cadavisitaqueselhechegavaerarecebidacom rispidez, ou pelomenos com sequidão. Osmais íntimos padeciammais,porqueeledizia-lhesbrutalmentequeaindanãoeracadáver,queacarniçaaindaestava viva, que os urubus enganavam-se de cheiro, etc. Mas nunca Virgínia

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achou nele um só instante demau humor. Falcão obedecia-lhe em tudo, comumapassividadedecriança,e,quandoria,éporqueelaofaziarir.

— Vamos, tome o remédio — deixe-se disso —, vosmecê agora é meufilho...

Falcão sorria e bebia a droga.Ela sentava-se ao pé da cama, contando-lhehistórias, espiava o relógio para dar-lhe os caldos ou a galinha, lia-lhe osempiterno Saint-Clair. Veio a convalescença. Falcão saiu a alguns passeios,acompanhado de Virgínia. A prudência com que esta, dando-lhe o braço, iamirando as pedras da rua, com medo de encarar os olhos de algum homem,encantavaoFalcão.

—Esta há de fechar-me os olhos— repetia ele consigomesmo.Um dia,chegouapensá-loemvozalta:—Nãoéverdadequevocêmehádefecharosolhos?

—Nãodigatolices!Conquanto estivesse na rua, ele parou, apertou-lhe muito as mãos,

agradecido, não achando que dizer. Se tivesse a faculdade de chorar, ficariaprovavelmentecomosolhosúmidos.Chegandoàcasa,Virgíniacorreuaoquartopararelerumacartaquelheentregaranavésperaumad.Bernarda,amigadesuamãe. Era datada de New York, e trazia por única assinatura este nome:Reginaldo.Umdostrechosdiziaassim:

Voudaquinopaquetede25.Espera-mesemfalta.Nãoseiaindaseireiver-te

logoounão.Teutiodevelembrar-sedemim;viu-meemcasademeutioChicoBorges,nodiadocasamentodetuaprima...

Quarenta dias depois, desembarcava este Reginaldo, vindo de New York,

comtrintaanosfeitosetrezentosmildólaresganhos.VinteequatrohorasdepoisvisitouoFalcão,queorecebeuapenascompolidez.MasoReginaldoerafinoeprático; atinou com a principal corda do homem, e vibrou-a. Contou-lhe osprodígiosdenegócionosEstadosUnidos,ashordasdemoedasquecorriamdeumaoutrodosdousoceanos.Falcãoouviadeslumbrado,epediamais.Entãoooutrofez-lheumaextensacomputaçãodascompanhiasebancos,ações,saldosde orçamento público, riquezas particulares, receita municipal de New York;descreveu-lheosgrandespaláciosdocomércio...

—Realmente,éumgrandepaís—diziaoFalcão,dequandoemquando.Edepoisdetrêsminutosdereflexão:—Mas,peloqueosenhorconta,sóháouro?

—Ouro só, não; hámuita prata e papel;mas ali papel e ouro é amesmacousa.Emoedasdeoutrasnações?Heidemostrar-lheumacoleçãoque trago.Olhe;paraveroqueéaquilobastapôrosolhosemmim.Fuiparalápobre,com

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23anos;nofimdeseteanos,tragoseiscentoscontos.Falcãoestremeceu:—Eu,comasuaidade—confessouele—,malchegariaacem.Estava encantado. Reginaldo disse-lhe que precisava de duas ou três

semanas,paralhecontarosmilagresdodólar.—Comoéqueosenhorlhechama?—Dólar.—Talveznãoacreditequenuncaviessamoeda.Reginaldotiroudobolsodocoleteumdólaremostrou-lho.Falcão,antesde

lhepôramão,agarrou-ocomosolhos.Comoestavaumpoucoescuro,levantou-seefoiatéàjanela,paraexaminá-lobem—deambososlados;depoisrestituiu-o, gabando muito o desenho e a cunhagem, e acrescentando que os nossosantigospatacõeserambembonitos.

As visitas repetiram-se.Reginaldo assentou de pedir amoça. Esta, porém,disse-lhe que era preciso ganhar primeiro as boas graças do tio; não casariacontraavontadedele.Reginaldonãodesanimou.Tratouderedobrarasfinezas;abarrotouotiodedividendosfabulosos.

—A propósito, o senhor nuncamemostrou a sua coleção demoedas—disse-lheumdiaoFalcão.

—Váamanhãàminhacasa.Falcãofoi.Reginaldomostrou-lheacoleçãometidanummóvelenvidraçado

por todos os lados. A surpresa de Falcão foi extraordinária; esperava umacaixinhacomumexemplardecadamoeda,eachoumontesdeouro,deprata,debronzeedecobre.Falcãomirou-asprimeirodeumolharuniversal ecoletivo;depois,começouafixá-lasespecificamente.Sóconheceuaslibras,osdólareseosfrancos;masoReginaldonomeou-astodas:florins,coroas,rublos,dracmas,piastras, pesos, rupias, toda a numismática do trabalho, concluiu elepoeticamente.

—Masquepaciênciaasuaparaajuntartudoisto!—disseele.—Nãofuieuqueajuntei—replicouoReginaldo—;acoleçãopertenciaao

espólio de um sujeito de Filadélfia. Custou-se uma bagatela: — cinco mildólares.

Naverdade,valiamais.Falcãosaiudalicomacoleçãonaalma;faloudelaàsobrinha,e, imaginariamente,desarrumouetornouaarrumarasmoedas,comoumamantedesgrenhaaamanteparatoucá-laoutravez.Denoitesonhouqueeraum florim, que um jogador o deitava à mesa do lansquenet, e que ele traziaconsigo para a algibeira do jogadormais de duzentos florins.Demanhã, paraconsolar-se, foicontemplarasprópriasmoedasque tinhanaburra;masnãoseconsolounada.Omelhordosbenséoquesenãopossui.

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Daliadias,estandoemcasa,nasala,pareceu-lheverumamoedanochão.Inclinou-se a apanhá-la; não eramoeda, era uma simples carta. Abriu a cartadistraidamenteeleu-aespantado:eradeReginaldoaVirgínia...

— Basta!— interrompe-me o leitor.— Adivinho o resto. Virgínia casoucomoReginaldo,asmoedaspassaramàsmãosdoFalcão,eeramfalsas...

Não, senhor, eramverdadeiras.Eramaismoral que, para castigo do nossohomem, fossem falsas;mas, ai demim! eu não souSêneca, não passo de umSuetônioquecontariadezvezesamortedeCésar,seeleressuscitassedezvezes,poisnãotornariaàvida,senãoparatornaraoimpério.

GazetadeNotícias,6deoutubrode1883;MachadodeAssis.

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Umasenhora

Nuncaencontroestasenhoraquemenãolembreaprofeciadeumalagartixa

aopoetaHeine,subindoosApeninos:“Diaviráemqueaspedrasserãoplantas,asplantasanimais,osanimaishomenseoshomensdeuses.”Edá-mevontadededizer-lhe: — A senhora, d. Camila, amou tanto a mocidade e a beleza, queatrasouoseurelógio,afimdeversepodiafixaressesdousminutosdecristal.Nãosedesconsole,d.Camila.Nodiadalagartixa,asenhoraseráHebe,deusadajuventude;asenhoranosdaráabeberonéctardaperenidadecomassuasmãoseternamentemoças.

A primeira vez que a vi, tinha ela 36 anos, posto só parecesse 32, e nãopassassedacasados29.Casaéummododedizer.Nãohácastelomaisvastodoque a vivenda destes bons amigos, nem tratamentomais obsequioso do que oque eles sabem dar às suas hóspedes. Cada vez que d. Camila queria ir-seembora, eles pediam-lhemuito que ficasse, e ela ficava.Vinham então novosfolguedos,cavalhadas,música,dança,umasucessãodecousasbelas,inventadascomoúnicofimdeimpedirqueestasenhoraseguisseoseucaminho.

—Mamãe,mamãe— dizia-lhe a filha crescendo—, vamos embora, nãopodemosficaraquitodaavida.

D. Camila olhava para elamortificada, depois sorria, dava-lhe um beijo emandava-abrincarcomasoutrascrianças.Queoutrascrianças?Ernestinaestavaentão entre 14 e 15 anos, era muito espigada, muito quieta, com uns modosnaturaisdesenhora.Provavelmentenãosedivertiriacomasmeninasdeoitoenoveanos;nãoimporta,umavezquedeixasseamãetranquila,podiaalegrar-seouenfadar-se.Mas,aitriste!háumlimiteparatudo,mesmoparaos29anos.D.Camila resolveu, enfim, despedir-se desses dignos anfitriões, e fê-lo ralada desaudades. Eles ainda instaram por uns cinco ou seis meses de quebra; a beladama respondeu-lhes que era impossível e, trepando no alazão do tempo, foialojar-senacasadostrinta.

Elaera,porém,daquelacastademulheresqueriemdosoledosalmanaques.Corde leite, fresca, inalterável,deixavaàsoutraso trabalhodeenvelhecer.Sóqueriaodeexistir.Cabelonegro,olhoscastanhosecálidos.Tinhaasespáduaseo colo feitos de encomenda para os vestidos decotados, e assim também osbraços, que eu não digo que eram os da Vênus de Milo, para evitar uma

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vulgaridade,masprovavelmentenãoeramoutros.D.Camila sabiadisto; sabiaqueerabonita,nãosóporquelhodiziaoolharsorrateirodasoutrasdamas,comoporumcertoinstintoqueabelezapossui,comootalentoeogênio.Restadizerqueeracasada,queomaridoeraruivo,equeosdousamavam-secomonoivos;finalmente,queerahonesta.Nãooera,note-sebem,portemperamento,masporprincípio,poramoraomarido,ecreioqueumpoucopororgulho.

Nenhumdefeito,pois,excetooderetardarosanos;maséissoumdefeito?Há,nãomelembraemquepáginadaEscritura,naturalmentenosProfetas,umacomparaçãodosdiascomaságuasdeumrioquenãovoltammais.D.Camilaqueriafazerumarepresaparaseuuso.Notumultodestamarchacontínuaentreonascimentoeamorte, elaapegava-seà ilusãodaestabilidade.Sóse lhepodiaexigirquenãofosseridícula,enãooera.Dir-me-áoleitorqueabelezavivedesi mesma, e que a preocupação do calendário mostra que esta senhora viviaprincipalmentecomosolhosnaopinião.Éverdade;mascomoquerquevivamasmulheresdonossotempo?

D. Camila entrou na casa dos trinta e não lhe custou passar adiante.Evidentemente o terror era uma superstição. Duas ou três amigas íntimas,nutridas de aritmética, continuavam a dizer que ela perdera a conta dos anos.Não advertiam que a natureza era cúmplice no erro, e que aos quarenta anos(verdadeiros) d. Camila trazia um ar de trinta e poucos. Restava um recurso:espiar-lheoprimeirocabelobranco,umfiozinhodenada,masbranco.Emvãoespiavam;odemôniodocabelopareciacadavezmaisnegro.

Nisto enganavam-se.O fio branco estava ali; era a filha de d.Camila queentravanos19anos,e,pormaldepecados,bonita.D.Camilaprolongou,quantopôde, os vestidos adolescentes da filha, conservou-a no colégio até tarde, feztudo para proclamá-la criança. A natureza, porém, que não é só imoral, mastambém ilógica, enquanto sofreava os anos de uma, afrouxava a rédea aos daoutra, e Ernestina, moça feita, entrou radiante no primeiro baile. Foi umarevelação.D.Camilaadoravaafilha;saboreou-lheaglóriaatragosdemorados.Nofundodocopoachouagotaamargae fezumacareta.Chegouapensarnaabdicação;mas umgrande pródigo de frases feitas disse-lhe que ela parecia airmãmaisvelhadafilha,eoprojetodesfez-se.Foidessanoiteemdiantequed.Camilaentrouadizeratodosquecasaramuitocriança.

Umdia, poucosmesesdepois, apontounohorizonteoprimeironamorado.D.Camilapensaravagamentenessacalamidade,semencará-la,semaparelhar-separa a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta.Interrogouafilha;descobriu-lheumalvoroçoindefinível,ainclinaçãodosvinteanos,eficouprostrada.Casá-laeraomenos;mas,seosseressãocomoaságuasdaEscritura,quenãovoltammais,éporqueatrásdelesvêmoutros,comoatrás

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daságuasoutraságuas;eparadefiniressasondassucessivaséqueoshomensinventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, edeterminou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como nãoformularaaideiadoperigo.Aalmaentende-seasimesma;umasensaçãovaleumraciocínio.Asqueela teveforamrápidas,obscuras,nomais íntimodoseuser,dondenãoasextraiuparanãoserobrigadaaencará-las.

—MasqueéquevocêachademaunoRibeiro?—perguntou-lheomarido,umanoite,àjanela.

D.Camilalevantouosombros.—Acho-lheonariztorto—disse.—Mau!Vocêestánervosa;falemosdeoutracousa—respondeuomarido.

E,depoisdeolharunsdousminutosparaarua,cantarolandonagarganta,tornouaoRibeiro,queachavaumgenroaceitável,eselhepedisseErnestina,entendiaque deviam ceder-lha. Era inteligente e educado. Era também o herdeiroprovável de uma tia de Cantagalo. E depois tinha um coração de ouro.Contavam-sedelecousasmuitobonitas.Naacademia,porexemplo...D.Camilaouviu o resto, batendo com a ponta do pé no chão e rufando comos dedos asonatadaimpaciência;mas,quandoomaridolhedissequeoRibeiroesperavaumdespachodoministrodeestrangeiros,umlugarparaosEstadosUnidos,nãopôdeter-seecortou-lheapalavra:

—Oquê?separar-medeminhafilha?Não,senhor.Emquedoseentraranestegritooamormaternoeosentimentopessoaléum

problemadifícilde resolver,principalmenteagora, longedosacontecimentosedaspessoas.Suponhamosqueempartes iguais.Averdadeéqueomaridonãosoube que inventar para defender o ministro de estrangeiros, as necessidadesdiplomáticas, a fatalidade do matrimônio, e, não achando que inventar, foidormir.Dousdiasdepoisveioanomeação.Noterceirodia,amoçadeclarouaonamoradoquenãoapedisseaopai,porquenãoqueriaseparar-sedafamília.Erao mesmo que dizer: prefiro a família ao senhor. É verdade que tinha a voztrêmula e sumida, e um ar de profunda consternação; mas o Ribeiro viu tãosomentearejeição,eembarcou.Assimacabouaprimeiraaventura.

D.Camilapadeceucomodesgostodafilha;masconsolou-sedepressa.Nãofaltamnoivos,refletiuela.Paraconsolarafilha,levou-aapassearatodaparte.Eramambasbonitas,eErnestinatinhaafrescuradosanos;masabelezadamãeeramaisperfeita,eapesardosanossuperavaadafilha.Nãovamosaopontodecrerqueosentimentodasuperioridadeéqueanimavad.Camilaaprolongarerepetir os passeios. Não: o amor materno, só por si, explica tudo. Masconcedamosqueanimasseumpouco.Quemalhánisso?Quemalháemqueumbravocoroneldefendanobremente apátria, e as suasdragonas?Nempor isso

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acabaoamordapátriaeoamordasmães.Mesesdepoisdespontouaorelhadeumsegundonamorado.Destavez era

umviúvo,advogado,27anos.Ernestinanãosentiuporeleamesmaemoçãoqueo outro lhe dera; limitou-se a aceitá-lo. D. Camila farejou depressa a novacandidatura. Não podia alegar nada contra ele; tinha o nariz reto como aconsciência,eprofundaaversãoàvidadiplomática.Mashaveriaoutrosdefeitos,deviahaveroutros.D.Camilabuscou-os comalma; indagoude suas relações,hábitos,passado.Conseguiuacharumascoisinhasmiúdas, tãosomenteaunhadaimperfeiçãohumana,alternativasdehumor,ausênciadegraçasintelectuais,e,finalmente, um grande excesso de amor-próprio. Foi nesse ponto que a beladama o apanhou. Começou a levantar vagarosamente a muralha do silêncio;lançouprimeiro a camadadas pausas,mais oumenos longas, depois as frasescurtas, depois os monossílabos, as distrações, as absorções, os olharescomplacentes,osouvidosresignados,osbocejosfingidosportrásdaventarola.Elenãoentendeulogo;mas,quandoreparouqueosenfadosdamãecoincidiamcom as ausências da filha, achou que era ali de mais e retirou-se. Se fossehomemde luta, tinha saltadoamuralha;maseraorgulhosoe fraco.D. Camiladeugraçasaosdeuses.

Houveumtrimestrederespiro.Depoisapareceramalgunsnamoricosdeumanoite,insetosefêmeros,quenãodeixaramhistória.D.Camilacompreendeuqueeles tinham demultiplicar-se, até vir algum decisivo que a obrigasse a ceder;mas aomenos, dizia ela a simesma, queria umgenro que trouxesse à filha amesma felicidade que omarido lhe deu. E, uma vez, ou para robustecer estedecretodavontade,ouporoutromotivo,repetiuoconceitoemvozalta,emborasó ela pudesse ouvi-lo. Tu, psicólogo sutil, podes imaginar que ela queriaconvencer-seasimesma;euprefirocontaroquelheaconteceuem186...

Erademanhã.D.Camilaestavaaoespelho,ajanelaaberta,achácaraverdeesonoradecigarrasepassarinhos.Elasentiaemsiaharmoniaquealigavaàscousas externas. Só a beleza intelectual é independente e superior. A belezafísicaéirmãdapaisagem.D.Camilasaboreavaessafraternidadeíntima,secreta,umsentimentodeidentidade,umarecordaçãodavidaanteriornomesmoúterodivino.Nenhumalembrançadesagradável,nenhumaocorrênciavinhaturvaressaexpansãomisteriosa.Aocontrário,tudopareciaembebê-ladeeternidade,eos42anosemqueianãolhepesavammaisdoqueoutrastantasfolhasderosa.Olhavapara fora,olhavaparaoespelho.De repente,comose lhesurdisseumacobra,recuouaterrada.Tinhavisto,sobreafonteesquerda,umcabelinhobranco.Aindacuidou que fosse do marido; mas reconheceu depressa que não, que era delamesma,umtelegramadavelhice,queaívinhaamarchasforçadas.Oprimeirosentimento foi de prostração. D. Camila sentiu faltar-lhe tudo, tudo, viu-se

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encanecidaeacabadanofimdeumasemana.—Mamãe,mamãe—bradouErnestina,entrandonasaleta.—Estáaquio

camarotequepapaimandou.D.Camilateveumsobressaltodepudor,einstintivamentevoltouparaafilha

oladoquenãotinhaofiobranco.Nuncaaachoutãograciosaelépida.Fitou-acomsaudade.Fitou-a tambémcom inveja,e,paraabafareste sentimentomau,pegounobilhetedecamarote.Eraparaaquelamesmanoite.Umaideiaexpeleoutra;d.Camilaanteviu-senomeiodasluzesedasgentes,edepressalevantouocoração.Ficandosó,tornouaolharparaoespelho,ecorajosamentearrancouocabelinho branco, e deitou-o à chácara.Out,damnedspot!Out!Mais feliz doqueaoutraladyMacbeth,viuassimdesapareceranódoanoar,porquenoânimodela,avelhiceeraumremorso,eafealdadeumcrime.Sai,malditamancha!sai!

Mas,seosremorsosvoltam,porquenãohãodevoltaroscabelosbrancos?Ummêsdepois, d.Camiladescobriuoutro, insinuadonabela e fartamadeixanegra, e amputou-o sem piedade. Cinco ou seis semanas depois, outro. Esteterceirocoincidiucomumterceirocandidatoàmãodafilha,eambosacharamd.Camilanumahoradeprostração.Abeleza,quelhesupriraamocidade,parecia-lhe prestes a ir também, como uma pomba sai em busca da outra. Os diasprecipitavam-se.Criançasqueelaviraaocolo,oudecarrinhoempuxadopelasamas,dançavamagoranosbailes.Osqueeramhomensfumavam;asmulherescantavamaopiano.Algumasdestasapresentavam-lheosseusbabies,gorduchos,uma segunda geração que mamava, à espera de ir bailar também, cantar oufumar,apresentaroutrosbabiesaoutraspessoas,eassimpordiante.

D. Camila apenas tergiversou um pouco, acabou cedendo. Que remédio,senãoaceitarumgenro?Mas,comoumvelhocostumenãoseperdedeumdiaparaoutro,d.Camilaviuparalelamente,naquelafestadocoração,umcenárioegrandecenário.Preparou-segalhardamente,eoefeitocorrespondeuaoesforço.Na igreja, no meio de outras damas; na sala, sentada no sofá (o estofo queforrava estemóvel, assimcomoopapel daparede foram sempre escurosparafazer sobressair a tez de d. Camila), vestida a capricho, sem o requinte daextremajuventude,mastambémsemarigidezmatronal,ummeio-termoapenas,destinado a pôr em relevo as suas graças outoniças, risonha, e feliz, enfim, arecentesogracolheuosmelhoressufrágios.Eracertoqueaindalhependiadosombrosumretalhodepúrpura.

Púrpura supõe dinastia. Dinastia exige netos. Restava que o Senhorabençoasseaunião,eeleabençoou-a,noanoseguinte.D.Camilaacostumara-seà ideia; mas era tão penoso abdicar, que ela aguardava o neto com amor erepugnância. Esse importuno embrião, curioso da vida e pretensioso, eranecessárionaterra?Evidentemente,não;masapareceuumdia,comasfloresde

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setembro.Duranteacrise,d.Camilasótevedepensarnafilha;depoisdacrise,pensounafilhaenoneto.Sódiasdepoiséquepôdepensaremsimesma.Enfim,avó. Não havia que duvidar; era avó. Nem as feições, que eram aindaconcertadas, nem os cabelos, que eram pretos (salvo meia dúzia de fiosescondidos),podiamporsisósdenunciararealidade;masarealidadeexistia;elaera,enfim,avó.

Quisrecolher-se;eparateronetomaispertodesi,chamouafilhaparacasa.Masacasanãoeraummosteiro,easruaseosjornaiscomosseusmilrumoresacordavamnelaosecosdeoutrotempo.D.Camilarasgouoatodeabdicaçãoetornouaotumulto.

Umdia,encontrei-aaoladodeumapreta,quelevavaaocoloumacriançadecincoaseismeses.D.Camilaseguravanamãoochapelinhodesolabertoparacobrir a criança.Encontrei-aoitodiasdepois, comamesmacriança, amesmapretaeomesmochapéudesol.Vintediasdepois,etrintadiasmaistarde,torneia vê-la, entrando para o bonde, com a preta e a criança.— Você já deu demamar?diziaelaàpreta.Olheosol.Nãovácair.Nãoapertemuitoomenino.Acordou?Nãomexacomele.Cubraacarinha,etc.,etc.

Era o neto.Ela, porém, ia tão apertadinha, tão cuidadosada criança, tão amiúdo,tãosemoutrasenhora,queantespareciamãedoqueavó;emuitagentepensavaqueeramãe.Quetalfosseaintençãoded.Camilanãoojuroeu.(“Nãojurarás”, Mat. V., 34.) Tão somente digo que nenhuma outra mãe seria maisdesveladadoqued.Camilacomoneto;atribuírem-lheumsimples filhoeraacousamaisverossímildomundo.

GazetadeNotícias,27deoutubrode1883;MachadodeAssis.

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Noitedealmirante

Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de

marinhaeenfioupelaruadeBragança.Batiamtrêshorasdatarde.Eraafinaflordosmarujose,demais, levavaumgrandeardefelicidadenosolhos.Acorvetadele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio a terra tãodepressaalcançoulicença.Oscompanheirosdisseram-lhe,rindo:

—Ah!Venta-Grande!Quenoitedealmirantevaivocêpassar!ceia,violaeosbraçosdeGenoveva.ColozinhodeGenoveva...

Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como elesdizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra.Começara apaixão trêsmeses antesde sair a corveta.Chamava-seGenoveva,caboclinhadevinteanos,esperta,olhonegroeatrevido.Encontraram-seemcasadeterceiroeficarammorrendoumpelooutro,atalpontoqueestiveramprestesadarumacabeçada,eledeixariaoserviçoeelaoacompanhariaparaavilamaisrecônditadointerior.

AvelhaInácia,quemoravacomela,dissuadiu-osdisso;Deolindonãoteveremédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses deausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento defidelidade.

—JuroporDeusqueestánocéu.Evocê?—Eutambém.—Dizdireito.—JuroporDeusqueestánocéu;aluzmefaltenahoradamorte.Estavacelebradoocontrato.Nãohaviadescrerdasinceridadedeambos;ela

chorava doidamente, elemordia o beiço para dissimular.Afinal separaram-se,Genovevafoiversairacorvetaevoltouparacasacomumtalapertonocoraçãoquepareciaque“lhe iadarumacousa”.Não lhedeunada, felizmente;osdiasforampassando,assemanas,osmeses,dezmeses,aocabodosquaisacorvetatornoueDeolindocomela.

Lávaieleagora,pelaruadeBragança,PrainhaeSaúde,atéaoprincípiodaGamboa,ondemoraGenoveva.Acasaéumarotulazinhaescura,portalrachadodosol,passandoocemitériodosIngleses;ládeveestarGenoveva,debruçadaàjanela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já

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formulou esta: “Jurei e cumpri”,mas procura outramelhor.Aomesmo tempolembraasmulheresqueviuporessemundodeCristo,italianas,marselhesasouturcas,muitasdelasbonitas,ouquelhepareciamtais.Concordaquenemtodasseriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso denenhuma.SópensavaemGenoveva.Amesmacasinhadela,tãopequenina,eamobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, issomesmo lhe lembrava diantedospaláciosdeoutras terras.Foi à custademuita economiaque comprouemTriesteumpardebrincos,quelevaagoranobolsocomalgumasbugigangas.Eelaquelheguardaria?Podeserqueumlençomarcadocomonomedeleeumaâncoranaponta,porqueelasabiamarcarmuitobem.NistochegouàGamboa,passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma vozconhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandesexclamaçõesdeprazer.Deolindo,impaciente,perguntouporGenoveva.

—Nãomefalenessamaluca—arremeteuavelha.—Estoubemsatisfeitacomoconselhoquelhedei.Olhelásefugisse.Estavaagoracomoolindoamor.

—Masquefoi?quefoi?Avelhadisse-lhequedescansasse,quenãoeranada,umadessascousasque

aparecemnavida;nãovaliaapenazangar-se.Genovevaandavacomacabeçavirada...

—Masviradaporquê?— Está com ummascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de

fazendas?Estácomele.Nãoimaginaapaixãoqueelestêmumpelooutro.Elaentão andamaluca. Foi omotivo da nossa briga. José Diogo nãome saía daporta;eramconversasemaisconversas,atéqueeuumdiadissequenãoqueriaaminha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genovevainvestiu paramim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamouninguémenãoprecisavadeesmolas.Queesmolas,Genoveva?Oquedigoéquenão quero esses cochichos à porta, desde as aves-marias... Dous dias depoisestavamudadaebrigadacomigo.

—Ondemoraela?—NapraiaFormosa,antesdechegaràpedreira,umarótulapintadadenovo.Deolindo não quis ouvirmais nada.A velha Inácia, um tanto arrependida,

aindalhedeuavisosdeprudência,maselenãoosescutouefoiandando.Deixode notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As ideiasmarinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de umaconfusãodeventoseapitos.Entreelasrutilouafacadebordo,ensanguentadaevingadora. Tinha passado a Gamboa, o saco do Alferes, entrara na praiaFormosa. Não sabia o número da casa,mas era perto da pedreira, pintada denovo,ecomauxíliodavizinhançapoderiaachá-la.Nãocontoucomoacasoque

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pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em queDeolindoiapassando.Eleconheceu-aeparou;ela,vendoovultodeumhomem,levantouosolhosedeucomomarujo.

— Que é isso? — exclamou espantada. — Quando chegou? Entre, seuDeolindo.

E,levantando-se,abriuarótulaefê-loentrar.Qualqueroutrohomemficariaalvoroçadode esperanças, tão francas eramasmaneirasda rapariga; podia serqueavelhaseenganasseoumentisse;podiasermesmoqueacantigadomascateestivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa doraciocínio ou da reflexão,mas em tumulto e rápido.Genoveva deixou a portaaberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo;nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Emfalta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era umpedacinhodegente,eduranteosprimeirosminutosnãopensouemoutracousa.

—Seitudo—disseele.—Quemlhecontou?Deolindolevantouosombros.—Fossequemfosse—tornouela—,disseram-lhequeeugostavamuitode

ummoço?—Disseram.—Disseramaverdade.Deolindochegouaterumímpeto;elafê-lopararsócomaaçãodosolhos.

Emseguidadisseque,selheabriraaporta,éporquecontavaqueerahomemdejuízo.Contou-lheentãotudo,assaudadesquecurtira,aspropostasdomascate,assuasrecusas,atéqueumdia,semsabercomo,amanheceragostandodele.

—Podecrerquepenseimuitoemuitoemvocê.SinháInáciaquelhedigasenãochoreimuito...Masocoraçãomudou...Mudou...Conto-lhetudoisto,comoseestivessediantedopadre—concluiusorrindo.

Nãosorriadeescárnio.Aexpressãodaspalavraséqueeraumamescladecanduraecinismo,de insolênciaesimplicidade,quedesistodedefinirmelhor.Creioatéqueinsolênciaecinismosãomal-aplicados.Genovevanãosedefendiade um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrãomoral das ações. O que dizia, em resumo, é que eramelhor não termudado,dava-sebemcomaafeiçãodoDeolindo,aprovaéquequisfugircomele;mas,uma vez que omascate venceu omarujo, a razão era domascate, e cumpriadeclará-lo.Quevos parece?Opobremarujo citava o juramento de despedida,comoumaobrigaçãoeterna,diantedaqualconsentiraemnãofugireembarcar:“JuroporDeusqueestánocéu;aluzmefaltenahoradamorte.”Seembarcou,foiporqueelalhejurouisso.Comessaspalavraséqueandou,viajou,esperoue

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tornou;foramelasquelhederamaforçadeviver.JuroporDeusqueestánocéu;aluzmefaltenahoradamorte...

—Pois, sim,Deolindo, era verdade.Quando jurei, era verdade. Tanto eraverdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se eraverdade! Mas vieram outras cousas... Veio este moço e eu comecei a gostardele...

—Masagentejuraéparaissomesmo;éparanãogostardemaisninguém...— Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de

partes...—AquehorasvoltaJoséDiogo?—Nãovoltahoje.—Não?—Não volta; está lá para os lados deGuaratiba com a caixa; deve voltar

sexta-feiraousábado...Eporqueéquevocêquersaber?Quemallhefezele?Podeserquequalqueroutramulhertivesseigualpalavra;poucaslhedariam

umaexpressãotãocândida,nãodepropósito,masinvoluntariamente.Vedequeestamosaquimuitopróximosdanatureza.Quemallhefezele?Quemallhefezestapedraquecaiude cima?Qualquermestrede física lhe explicaria aquedadaspedras.Deolindodeclarou,comumgestodedesespero,quequeriamatá-lo.Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu ummuxoxo; e,comoelelhefalassedeingratidãoeperjúrio,nãopôdedisfarçaropasmo.Queperjúrio? Que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou eraverdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se eraverdadeounão.Eraassimquelhepagavaoquepadeceu?Eelequetantoenchiaabocadefidelidadetinha-selembradodelaporondeandou?

Arespostadelefoimeteramãonobolsoetiraropacotequelhetrazia.Elaabriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos.Nãoeramnempoderiamserricos;erammesmodemaugosto,masfaziamumavistadetodososdiabos.Genovevapegoudeles,contente,deslumbrada,mirou-osporumladoeoutro,pertoelongedosolhos,eafinalenfiou-osnasorelhas;depois foi ao espelhodepataca, suspensonaparede, entre a janela e a rótula,para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça dadireitaparaaesquerdaedaesquerdaparaadireita.

—Sim, senhor,muitobonito—disse ela, fazendoumagrandemesuradeagradecimento.—Ondeéquecomprou?

Creio que ele não respondeu nada, nem teria tempo para isso, porque eladisparoumaisduasoutrêsperguntas,umaatrásdaoutra,tãoconfusaestavadereceber ummimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatrominutos;podeserquedous.Nãotardouquetirasseosbrincos,eoscontemplasse

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epusessenacaixinhaemcimadamesaredondaqueestavanomeiodasala.Elepelasuapartecomeçouacrerque,assimcomoaperdeu,estandoausente,assimo outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe juraranada.

—Brincando,brincando,énoite—disseGenoveva.Comefeito,anoiteiacaindorapidamente.Jánãopodiamverohospitaldos

Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas,postasemseco,defrontedacasa,confundiam-secomaterraeolododapraia.Genovevaacendeuumavela.Depoisfoisentar-senasoleiradaportaepediu-lheque contasse alguma cousa das terras por onde andara. Deolindo recusou aprincípio;dissequeseiaembora,levantou-seedeualgunspassosnasala.Masodemôniodaesperançamordiaebabujavaocoraçãodopobre-diabo,eelevoltouasentar-se,paradizerduasoutrêsanedotasdebordo.Genovevaescutavacomatenção. Interrompidosporumamulherdavizinhança,quealiveio,Genovevafê-lasentar-setambémparaouvir“asbonitashistóriasqueosr.Deolindoestavacontando”.Nãohouveoutraapresentação.Agrandedamaqueprolongaavigíliaparaconcluiraleituradeumlivrooudeumcapítulonãovivemaisintimamenteavidadospersonagensdoqueaantigaamantedomarujoviviaascenasqueeleia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos nãohouvessemais que uma narração de episódios.Que importa à grande dama oautordolivro?Queimportavaaestaraparigaocontadordosepisódios?

A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-sedefinitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amigavisseosbrincos,efoimostrar-lhoscomgrandesencarecimentos.Aoutraficouencantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu aGenovevaqueospusesse.

—Realmente,sãomuitobonitos.Querocrerqueoprópriomarujoconcordoucomessaopinião.Gostoudeos

ver,achouquepareciamfeitosparaelae,durantealgunssegundos,saboreouoprazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram sóalgunssegundos.

Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lheagradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas cousasmeigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu estapalavra:“Deixadisso,Deolindo”;eestaoutradomarinheiro:“Vocêverá.”Nãopôdeouviroresto,quenãopassoudeumsussurro.

Deolindoseguiu,praiafora,cabisbaixoelento,nãojáorapazimpetuosodatarde,mas com um ar velho e triste, ou, para usar outrametáfora demarujo,comoumhomem“quevaidomeiocaminhoparaterra”.Genovevaentroulogo

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depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amoresmarítimos,gaboumuitoogêniodoDeolindoeosseusbonitosmodos;aamigadeclarouachá-lograndementesimpático.

— Muito bom rapaz — insistiu Genoveva. — Sabe o que ele me disseagora?

—Quefoi?—Quevaimatar-se.—Jesus!—Qualoquê!Nãosemata,não.Deolindoéassimmesmo;dizascousas,

masnão faz.Vocêveráquenãosemata.Coitado,sãociúmes.Masosbrincossãomuitoengraçados.

—Euaquiaindanãovidestes.—Nemeu—concordouGenoveva,examinando-osàluz.Depoisguardou-

os e convidou a outra a coser.—Vamos coser umbocadinho, quero acabar omeucorpinhoazul...

A verdade é que omarinheiro não sematou. No dia seguinte, alguns doscompanheirosbateram-lhenoombro,cumprimentando-opelanoitedealmirante,epediram-lhenotíciasdeGenoveva,seestavamaisbonita,sechoraramuitonaausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, umsorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha darealidadeepreferiumentir.

GazetadeNotícias,10defevereirode1884;MachadodeAssis.

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Evolução2

Chamo-meInácio;ele,Benedito.Nãodigoorestodosnossosnomesporum

sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta.Contentem-se comBenedito.Não émuito,mas é alguma cousa, e está comafilosofia de Julieta: “Que valem nomes? perguntava ela ao namorado.A rosa,comoquerqueselhechame,terásempreomesmocheiro.”VamosaocheirodoBenedito.

EdesdelogoassentemosqueeleeraomenosRomeudestemundo.Tinha45anos,quandooconheci;nãodeclaroemquetempo,porquetudonestecontoháde sermisterioso e truncado.Quarenta e cinco anos, emuitos cabelos pretos;paraosqueonãoeramusavaumprocessoquímico, tãoeficazquenãose lhedistinguiamospretosdosoutros—salvoaolevantardacama;masaolevantardacamanãoapareciaaninguém.Tudomaiseranatural,pernas,braços,cabeça,olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala. O próprio alfinete dediamante,quetrazianagravata,umdosmaislindosquetenhovisto,eranaturalelegítimo,custou-lhebomdinheiro;eumesmoovicomprarnacasado...lámeiaescapandoonomedojoalheiro—fiquemosnaruadoOuvidor.

Moralmente,eraelemesmo.Ninguémmudadecaráter,eodoBeneditoerabom—ouparamelhordizer,pacato.Mas,intelectualmente,équeeleeramenosoriginal.Podemoscompará-loaumahospedariabem-afreguesada,aondeiamterideiasde todaparteede todasorte,quesesentavamàmesacoma famíliadacasa.Àsvezes,aconteciaacharem-sealiduaspessoasinimigas,ousimplesmenteantipáticas; ninguém brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes aindulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie deateísmovagocomduasirmandadesquefundou,nãoseisenaGávea,naTijucaounoEngenhoVelho.Usavaassim,promiscuamente,adevoção,airreligiãoeasmeiasdeseda.Nuncalheviasmeias,note-se;maselenãotinhasegredosparaosamigos.

Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem eentradona diligência que nos ia levar da estação à cidade.Trocamos algumaspalavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das circunstânciasquenosimpunhamaconvivência,antesmesmodesaberqueméramos.

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Naturalmente,oprimeiroobjetofoioprogressoquenostraziamasestradasde ferro. Benedito lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita àscostasdeburro.Contamosentãoalgumasanedotas,falamosdealgunsnomes,eficamosdeacordoemqueasestradasdeferroeramumacondiçãodeprogressodopaís.Quemnuncaviajounãosabeovalorque temumadessasbanalidadesgraves e sólidas para dissipar os tédios do caminho. O espírito areja-se, ospróprios músculos recebem uma comunicação agradável, o sangue não salta,fica-seempazcomDeuseoshomens.

—Nãoserãoosnossosfilhosqueverãotodoestepaíscortadodeestradas —disseele.

—Não,decerto.Osenhortemfilhos?—Nenhum.— Nem eu. Não será ainda em cinquenta anos; e, entretanto, é a nossa

primeiranecessidade.EucomparooBrasilaumacriançaqueestáengatinhando;sócomeçaráaandarquandotivermuitasestradasdeferro.

—Bonitaideia!—exclamouBeneditofaiscando-lheosolhos.—Importa-mepoucoquesejabonita,contantoquesejajusta.—Bonita e justa— redarguiu ele com amabilidade.— Sim, senhor, tem

razão:—oBrasilestáengatinhando;sócomeçaráaandarquandotivermuitasestradasdeferro.

Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camaradaantigo;eledemorou-seumdiaeseguiuparaointerior.OitodiasdepoisvolteiaoRiodeJaneiro,massozinho.Umasemanamais tarde,voltouele;encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabouconvidando-meairalmoçarcomelenodiaseguinte.Fui;deu-meumalmoçodepríncipe,bonscharutosepalestraanimada.Noteiqueaconversadelefaziamaisefeitonomeiodaviagem—arejandooespíritoedeixandoagenteempazcomDeuseoshomens;masdevodizerqueoalmoçopode terprejudicadooresto.Realmenteeramagnífico;eseria impertinênciahistóricapôramesadeLuculonacasadePlatão.Entreocaféeocognac,disse-meele,apoiandoocotovelonabordadamesa,eolhandoparaocharutoqueardia:

—Naminhaviagemagora,acheiocasiãodevercomoosenhor temrazãocomaquelaideiadoBrasilengatinhando.

—Ah!— Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de

Vassouras.Sócomeçaremosaandarquando tivermosmuitasestradasde ferro.Nãoimaginacomoissoéverdade.

E referiu muita cousa, observações relativas aos costumes do interior,dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da

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população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo nãocorrespondiaàsnecessidadesdapátria;pareciaatéinteressadoemmantê-laatrásdasoutrasnaçõesamericanas.Maseraindispensávelquenospersuadíssemosdequeos princípios são tudo e os homensnada.Não se fazemos povospara osgovernos,masosgovernosparaospovos;eabyssusabyssuminvocat.Depoisfoimostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me ascoleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinhaespadasefloretes,masconfessouquenãosabiaesgrimir.Entreosquadrosviumlindoretratodemulher;perguntei-lhequemera.Beneditosorriu.

—Nãoireiadiante—disseeusorrindotambém.—Não,nãoháquenegar—acudiuele—; foiumamoçadequemgostei

muito.Bonita, não?Não imagina a beleza que era.Os lábios erammesmodecarmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E que dentes!verdadeiraspérolas.Ummimodanatureza.

Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial,mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem-encadernados,ummapa-múndi,dousmapasdoBrasil.Asecretáriaeradeébano,obrafina;sobreela,casualmenteaberto,umalmanaquedeLaemmert.Otinteiroera de cristal— “cristal de rocha”, disse-me ele, explicando o tinteiro, comoexplicava as outras cousas.Na sala contíguahavia umórgão.Tocavaórgão, egostava muito de música, falou dela com entusiasmo, citando as óperas, ostrechosmelhores,enoticiou-meque,empequeno,começaraaaprender flauta;abandonou-a logo — o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, uminstrumento muito saudoso.Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao jardim,queeraesplêndido,tantoajudavaaarteànatureza,etantoanaturezacoroavaaarte. Em rosas, por exemplo (não há negar, disse-me ele, que é a rainha dasflores),emrosas,tinha-asdetodacastaedetodasasregiões.

Saíencantado.Encontramo-nosalgumasvezes,narua,noteatro,emcasadeamigoscomuns, tiveocasiãodeapreciá-lo.Quatromesesdepois fui àEuropa,negócioquemeobrigavaaausênciadeumano;eleficoucuidandodaeleição;queria serdeputado.Fuieumesmoqueo induzia isso, semamenor intençãopolítica,mascomoúnicofimdelheseragradável;malcomparando,eracomoselheelogiasseocortedocolete.Elepegoudaideia,eapresentou-se.Umdia,atravessandoumaruadeParis,deisubitamentecomoBenedito.

—Queéisto?—exclamei.—Perdiaeleição—disseele—,evimpassearàEuropa.Nãomedeixoumais;viajamosjuntosorestodotempo.Confessou-mequea

perda da eleição não lhe tirara a ideia de entrar no parlamento.Ao contrário,incitara-omais.Falou-medeumgrandeplano.

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—Querovê-loministro—disse-lhe.Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas

disfarçoudepressa.—Nãodigoisso—respondeu.—Quando,porém,sejaministro,creiaque

serei tão somente ministro industrial. Estamos fartos de partidos; precisamosdesenvolverasforçasvivasdopaís,osseusgrandesrecursos.Lembra-sedoquenósdizíamosnadiligênciadeVassouras?OBrasilestáengatinhando;sóandarácomestradasdeferro...

— Tem razão— concordei um pouco espantado.— E por que é que eumesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as cousasarranjadasemLondres.

—Sim?—Perfeitamente.Mostrei-lhe os papéis; ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então

recolhidoalgunsapontamentos,dadosestatísticos,folhetos,relatórios,cópiasdecontratos, tudo referente a matérias industriais, e lhos mostrasse, Beneditodeclarou-mequeiatambémcoligiralgumascousasdaquelas.E,naverdade,vi-oandar porministérios, bancos, associações, pedindomuitas notas e opúsculos,queamontoavanasmalas;masoardorcomqueofez,sefoiintenso,foicurto;eradeempréstimo.Beneditorecolheucommuitomaisgostoosanexinspolíticose fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nasconversas comigo repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava nelesgrandeprestígioevalor inestimável.Muitoseramde tradição inglesa, eeleospreferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns.Saboreava-os tanto que eunão sei se ele aceitaria jamais a liberdade real semaqueleaparelhoverbal;creioquenão.Creioatéque,setivessedeoptar,optariapor essas formas curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todasaxiomáticas,quenãoforçamareflexão,preenchemosvazios,edeixamagenteempazcomDeuseoshomens.

Regressamos juntos;mas eu fiquei em Pernambuco, e torneimais tarde aLondres, donde vim aoRio de Janeiro, um ano depois. Já entãoBenedito eradeputado. Fui visitá-lo; achei-o preparando o discurso de estreia.Mostrou-mealgunsapontamentos, trechosde relatórios, livrosdeeconomiapolítica, algunscompáginasmarcadas,pormeiodetirasdepapelrubricadasassim:—Câmbio,Taxadasterras,QuestãodoscereaisemInglaterra,OpiniãodeStuartMill,ErrodeThierssobrecaminhosdeferro,etc.Erasincero,minuciosoecálido.Falava-me daquelas cousas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, abovo; tinhaapeitomostraraoshomenspráticosdaCâmaraque tambémeleeraprático.Emseguida,perguntou-mepelaempresa;disse-lheoquehavia.

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—Dentrodedousanoscontoinauguraroprimeirotrechodaestrada.—Eoscapitalistasingleses?—Quetem?—Estãocontentes,esperançados?—Muito;nãoimagina.Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu

distraidamente —ouporqueaminhanarraçãofosseemextremocomplicada,oupor outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue aomovimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito fez-me ofavordeleroexórdiododiscursoquedeviaproferirdaliadias.

—Estáaindaemborrão—explicou-me—;masasideiascapitaisficam.Ecomeçou:

No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que

encobre as vozes dos legítimos interesses, permiti que alguém faça ouvir umasúplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar, exclusivamente—, notai quedigoexclusivamente—,dosmelhoramentosmateriaisdopaís.Nãodesconheçoo que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só deestômago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração para sentir.Respondo-vosque tudo issonãovaleránadaoupouco, seelanão tiverpernasparacaminhar;eaquirepetireioque,háalgunsanos,diziaeuaumamigo,emviagempelointerior:oBrasiléumacriançaqueengatinha;sócomeçaráaandarquandoestivercortadodeestradasdeferro...

Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei

assombrado, desvairado diante do abismo que a psicologia rasgava aos meuspés.Estehomemésincero,penseicomigo,estápersuadidodoqueescreveu.Efui por aí abaixo até ver se achava a explicação dos trâmites por que passouaquela recordação da diligência deVassouras.Achei (perdoem-me se há nistoenfatuação), achei ali mais um efeito da lei da evolução, tal como a definiuSpencer—SpencerouBenedito,umdeles.

GazetadeNotícias,24dejunhode1884;MachadodeAssis.

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DeVáriashistórias

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Oenfermeiro

Parece-lheentãoqueoquesedeucomigoem1860podeentrarnumapágina

de livro?Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nadaantes daminhamorte.Não esperarámuito, pode ser que oito dias, se não formenos;estoudesenganado.

Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outrascousas interessantes,mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu sótenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina demadrugada.Nãotardaosoldooutrodia,umsoldosdiabos,impenetrávelcomoavida.Adeus,meucarosenhor,leiaistoequeira-mebem;perdoe-meoquelheparecermau,enãomaltratemuitoaarruda,selhenãocheiraarosas.Pediu-meumdocumento humano, ei-lo aqui.Nãome peça tambémo império doGrão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos dedefuntoenãoosdouaninguémmais.

Jásabequefoiem1860.Noanoanterior,alipelomêsdeagosto,tendoeu42anos,fiz-meteólogo—querodizer,copiavaosestudosdeteologiadeumpadredeNiterói,antigocompanheirodecolégio,queassimmedava,delicadamente,casa,camaemesa.Naquelemêsdeagostode1859,recebeueleumacartadeumvigário de certa vila do interior perguntando se conhecia pessoa entendida,discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao coronelFelisberto,mediante um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com ambas as mãos,estavajáenfaradodecopiarcitaçõeslatinasefórmulaseclesiásticas.Vimàcortedespedir-medeumirmão,eseguiparaavila.

Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável,estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos.Gastavamaisenfermeirosqueremédios.Adousdelesquebrouacara.Respondiquenãotinhamedo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com ovigário,quemeconfirmouasnotíciasrecebidas,emerecomendoumansidãoecaridade,seguiparaaresidênciadocoronel.

Achei-onavarandadacasaestiradonumacadeira,bufandomuito.Nãomerecebeumal.Começoupornãodizernada;pôsemmimdousolhosdegatoqueobserva;depois,umaespéciederisomalignoalumiou-lheasfeições,queeramduras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera prestava para

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nada, dormiammuito, eram respondões e andavamao faro das escravas; douseramatégatunos!

—Vocêégatuno?—Não,senhor.Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de

espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo?Achouquenãoeranomedegente,epropôschamar-metãosomenteProcópio,ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-lhe estaparticularidade, não só porqueme parece pintá-lo bem, como porque aminharesposta deu de mim a melhor ideia ao coronel. Ele mesmo o declarou aovigário,acrescentandoqueeueraomaissimpáticodosenfermeirosquetivera.Averdadeéquevivemosumaluademeldesetedias.

Nooitavodia,entreinavidadosmeuspredecessores,umavidadecão,nãodormir,nãopensaremmaisnada,recolherinjúrias,e,àsvezes,rirdelas,comumarde resignaçãoe conformidade; repareique eraummodode lhe fazer corte.Tudoimpertinênciasdemoléstiaedotemperamento.Amoléstiaeraumrosáriodelas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecçõesmenores.Tinhapertodesessentaanos,edesdeoscincotodaagentelhefaziaavontade.Sefossesórabugento,vá;maseleeratambémmau,deleitava-secomador e a humilhaçãodosoutros.No fimde trêsmeses estava fartodeo aturar;determineivirembora;sóespereiocasião.

Nãotardouaocasião.Umdia,comolhenãodesseatempoumafomentação,pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não era preciso mais;despedi-meimediatamente,efuiaprontaramala.Elefoitercomigo,aoquarto,pediu-mequeficasse,quenãovaliaapenazangarporumarabugicedevelho.Instoutantoquefiquei.

—Estounadependura,Procópio—dizia-meeleànoite—,nãopossovivermuitotempo.Estouaqui,estounacova.Vocêhádeiraomeuenterro,Procópio;nãoodispensopornada.Hádeir,háderezaraopédaminhasepultura.Senãofor—acrescentourindo—,euvoltareidenoiteparalhepuxaraspernas.Vocêcrêemalmasdeoutromundo,Procópio?

—Qualoquê!— E por que é que não há de crer, seu burro? — redarguiu vivamente,

arregalandoosolhos.Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas;mas as

injúriasficaramasmesmas,senãopiores.Eu,comotempo,fuicalejando,enãodavamaispornada;eraburro,camelo,pedaçod’asno,idiota,moleirão,eratudo.Nem,aomenos,haviamaisgentequerecolhesseumapartedessesnomes.Nãotinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou

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princípiosdejulho,emMinas.Osamigosiamporláàsvezesaprová-lo,aplaudi-lo,enadamais;cinco,dezminutosdevisita.Restavaeu;eraeusozinhoparaumdicionário inteiro.Mais de uma vez resolvi sair;mas, instado pelo vigário, iaficando.

Nãosóasrelaçõesforam-setornandomelindrosas,maseuestavaansiosoportornar à corte. Aos 42 anos não é que havia de acostumar-me à reclusãoconstante,aopédeumdoentebravio,nointerior.Paraavaliaromeuisolamento,bastasaberqueeunemliaosjornais;salvoalgumanotíciamaisimportantequelevavamaocoronel,eunadasabiadorestodomundo.Entendi,portanto,voltarparaacorte,naprimeiraocasião,aindaquetivessedebrigarcomovigário.Bomédizer(vistoquefaçoumaconfissãogeral)que,nadagastandoetendoguardadointegralmenteosordenados,estavaansiosoporvirdissipá-losaqui.

Eraprovávelqueaocasiãoaparecesse.Ocoronelestavapior,feztestamento,descompondo o tabelião, quase tanto como amim. O trato eramais duro, osbreveslapsosdesossegoebrandurafaziam-seraros.Jáporessetempotinhaeuperdidoaescassadosedepiedadequemefaziaesquecerosexcessosdodoente;trazia dentro demim um fermento de ódio e aversão.No princípio de agostoresolvidefinitivamentesair;ovigárioeomédico,aceitandoasrazões,pediram-me que ficasse algum tempomais. Concedi-lhes ummês; no fim de ummêsviria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou deprocurar-mesubstituto.

Vaiveroqueaconteceu.Nanoitede24deagosto,ocoronelteveumacessode raiva, atropelou-me, disse-memuito nome cru, ameaçou-me de um tiro, eacabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o prato foi cair naparede,ondesefezempedaços.

—Hásdepagá-lo,ladrão!—bradouele.Resmungouaindamuitotempo.Àsonzehoraspassoupelosono.Enquanto

ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d’Arlincourt,traduzido,queláachei,epus-mealê-lo,nomesmoquarto,apequenadistânciada cama; tinhade acordá-lo àmeia-noite para lhedar o remédio.Ou fossedecansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda página adormecitambém.Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, queparecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão damoringaearremessá-lacontramim.Não tive tempodedesviar-me;amoringabateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vimais nada; atirei-me aodoente,pus-lheasmãosaopescoço,lutamos,eesganei-o.

Quandopercebiqueodoenteexpirava,recueiaterrado,edeiumgrito;masninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde;arrebentaraoaneurisma, eo coronelmorreu.Passei à sala contígua, edurante

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duashorasnãoouseivoltaraoquarto.Nãopossomesmodizertudooquepassei,duranteessetempo.Eraumatordoamento,umdelíriovagoeestúpido.Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos davítima,antesdalutaedurantealuta,continuavamarepercutirdentrodemim,eo ar, para onde quer queme voltasse, aparecia recortado de convulsões. Nãocreiaqueestejafazendoimagensnemestilo;digo-lhequeeuouviadistintamenteumasvozesquemebradavam:assassino!assassino!

Tudo omais estava calado.Omesmo som do relógio, lento, igual e seco,sublinhavaosilêncioeasolidão.Colavaaorelhaàportadoquartonaesperançadeouvirumgemido,umapalavra,umainjúria,qualquercousaquesignificasseavida,emerestituísseapazàconsciência.Estariaprontoaapanhardasmãosdocoronel,dez,vinte,cemvezes.Masnada,nada; tudocalado.Voltavaaandaràtoa,nasala,sentava-me,punhaasmãosnacabeça;arrependia-medetervindo.— “Maldita a hora em que aceitei semelhante cousa!” — exclamava. EdescompunhaopadredeNiterói,omédico,ovigário,osquemearranjaramumlugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me àcumplicidadedosoutroshomens.

Comoosilêncioacabasseporaterrar-me,abriumadasjanelas,paraescutarosom do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranquila, as estrelasfulguravam,comaindiferençadepessoasquetiramochapéuaumenterroquepassa, e continuam a falar de outra cousa. Encostei-me ali por algum tempo,fitandoanoite,deixando-meiraumarecapitulaçãodavida,aversedescansavadadorpresente.Sóentãopossodizerquepenseiclaramentenocastigo.Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou oremorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé.Minutos depois, vi três ouquatrovultosdepessoas,noterreiro,espiando,comumardeemboscada;recuei,osvultosesvaíram-senoar;eraumaalucinação.

Antesdoalvorecercureiacontusãodaface.Sóentãoouseivoltaraoquarto.Recuei duas vezes,mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo àcama.Tremiam-measpernas,ocoraçãobatia-me;chegueiapensarnafuga;maseraconfessarocrime,e,aocontrário,urgiafazerdesaparecerosvestígiosdele.Fui até a cama;vio cadáver, comosolhosarregaladose abocaaberta, comodeixandopassaraeternapalavradosséculos:“Caim,quefizestedeteuirmão?”Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei aoqueixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que ocoronelamanheceramorto;mandeirecadoaovigárioeaomédico.

Aprimeiraideiafoiretirar-melogocedo,apretextodetermeuirmãodoente,e,naverdade, receberacartadele, algunsdiasantes,dizendo-meque se sentiamal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e

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fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho emíope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem algumacousa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam;mas não ousava fitarninguém.Tudomedavaimpaciências:ospassosdeladrãocomqueentravamnasala,oscochichos,ascerimôniaseas rezasdovigário.Vindoahora, fecheiocaixão,comasmãostrêmulas,tãotrêmulasqueumapessoa,quereparounelas,disseaoutracompiedade:

—CoitadodoProcópio!apesardoquepadeceu,estámuitosentido.Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A

passagem da meia escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grandeabalo;receeiquefosseentãoimpossívelocultarocrime.Metiosolhosnochão,e fui andando.Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens.Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente dedesassossegoeaflição.NãoéprecisodizerquevimlogoparaoRiodeJaneiro,nemqueviviaquiaterrado,emboralongedocrime;nãoria,falavapouco,malcomia,tinhaalucinações,pesadelos...

—Deixa lá o outro quemorreu— diziam-me.—Não é caso para tantamelancolia.

Eeuaproveitavaa ilusão, fazendomuitoselogiosaomorto, chamando-lheboa criatura, impertinente, é verdade,mas um coração de ouro. E, elogiando,convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômenointeressante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso,mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja doSacramento.Nãofizconvites,nãodissenadaaninguém;fuiouvi-la,sozinho,eestivedejoelhostodootempo,persignando-meamiúdo.Dobreiaespórtuladopadre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queriaembairoshomens;aprovaéquefuisó.Paracompletaresteponto,acrescentareique nunca aludia ao coronel, que não dissesse: “Deus lhe fale n’alma!” Econtavadelealgumasanedotasalegres,rompantesengraçados...

SetediasdepoisdechegaraoRiodeJaneiro,recebiacartadovigário,quelhemostrei,dizendo-mequeforaachadootestamentodocoronel,equeeueraoherdeiro universal. Imagine omeu pasmo. Pareceu-me que liamal, fui ameuirmão, fui aos amigos; todos leram a mesma cousa. Estava escrito; era eu oherdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; masadverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivessedescoberto.Demais,euconheciaaprobidadedovigário,quenãoseprestariaaserinstrumento.Reliacarta,cinco,dez,muitasvezes;láestavaanotícia.

—Quantotinhaele?—perguntava-memeuirmão.—Nãosei,maserarico.

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—Realmente,provouqueerateuamigo.—Era...Era...Assim,porumaironiadasorte,osbensdocoronelvinhampararàsminhas

mãos.Cogiteiemrecusaraherança.Parecia-meodiosoreceberumvintémdotalespólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, eesbarravasemprenaconsideraçãodequearecusapodiafazerdesconfiaralgumacousa.Nofimdostrêsdias,assenteinummeio-termo;receberiaaherançaedá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também omododeresgatarocrimeporumatodevirtude;pareceu-mequeficavaassimdecontassaldas.

Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me iaaproximando,recordavaotristesucesso;ascercaniasdavilatinhamumaspectodetragédia,easombradocoronelparecia-mesurgirdecadalado.Aimaginaçãoiareproduzindoaspalavras,osgestos,todaanoitehorrendadocrime...

Crimeouluta?Realmente,foiumalutaemqueeu,atacado,defendi-me,enadefesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa ideia. Ebalanceavaosagravos,punhanoativoaspancadas,asinjúrias...Nãoeraculpadocoronel,bemo sabia, eradamoléstia,queo tornavaassim rabugentoeatémau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite...Considereitambémqueocoronelnãopodiavivermuitomais;estavaporpouco;elemesmoosentiaedizia.Viveriaquanto?Duassemanas,ouuma;podeseratéquemenos.Jánãoeravida,eraummolambodevida, se istomesmosepodiachamaraopadecercontínuodopobrehomem...Equemsabemesmosealutaeamortenãoforamapenascoincidentes?Podiaser,eraatéomaisprovável;nãofoioutracousa.Fixei-metambémnessaideia...

Pertodavilaapertou-se-meocoração,equisrecuar;masdominei-meefui.Receberam-mecomparabéns.Ovigáriodisse-measdisposiçõesdotestamento,oslegadospios,edecaminhoialouvandoamansidãocristãeozelocomqueeuserviraaocoronel,que,apesardeásperoeduro,soubesergrato.

—Semdúvida—diziaeuolhandoparaoutraparte.Estavaatordoado.Todaagentemeelogiavaadedicaçãoe apaciência.As

primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila.Constituí advogado; as cousas correram placidamente. Durante esse tempo,falava muita vez do coronel. Vinham contar-me cousas dele, mas sem amoderaçãodopadre;eudefendia-o,apontavaalgumasvirtudes,eraaustero...

—Qualaustero!Jámorreu,acabou;maseraodiabo.E referiam-mecasosduros, açõesperversas, algumasextraordinárias.Quer

quelhediga?Eu,aprincípio,iaouvindocheiodecuriosidade;depois,entrou-menocoraçãoumsingularprazer,queeusinceramentebuscavaexpelir.Edefendia

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ocoronel,explicava-o,atribuíaalgumacousaàsrivalidades locais;confessava,sim, que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada,interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todosdiziamamesmacousa;evinhamoutrasanedotas,vinhatodaavidadodefunto.Os velhos lembravam-se das crueldades dele, emmenino. E o prazer íntimo,calado, insidioso, cresciadentrodemim,espéciede têniamoral,quepormaisqueaarrancasseaospedaços,recompunha-selogoeiaficando.

Asobrigaçõesdoinventáriodistraíram-me;eporoutroladoaopiniãodavilaera tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo paramim afeição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança,converti-aemtítulosedinheiro.Eramentãopassadosmuitosmeses,eaideiadedistribuí-latodaemesmolasedonativospiosnãomedominoucomodaprimeiravez;acheimesmoqueeraafetação.Restringioplanoprimitivo;distribuíalgumacousaaospobres,deiàmatrizdavilaunsparamentosnovos,fizumaesmolaàSantaCasadaMisericórdiaetc.:aotodo32contos.Mandeitambémlevantarumtúmuloaocoronel,tododemármore,obradeumnapolitano,queaquiesteveaté1866,efoimorrer,creioeu,noParaguai.

Osanosforamandando,amemóriatornou-secinzentaedesmaiada.Pensoàsvezesnocoronel,massemos terroresdosprimeirosdias.Todososmédicosaquemconteiasmoléstiasdeleforamacordesemqueamorteeracerta,esóseadmiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente,exagerasseadescriçãoqueentãolhesfiz;masaverdadeéqueeledeviamorrer,aindaquenãofosseaquelafatalidade...

Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem algumacousa,pague-metambémcomumtúmulodemármore,aoqualdaráporepitáfioestaemendaquefaçoaquiaodivinosermãodamontanha:“Bem-aventuradososquepossuem,porqueelesserãoconsolados.”

GazetadeNotícias,13de julhode1884 (como título“Cousas íntimas”);

MachadodeAssis.

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Contodeescola

AescolaeranaruadoCosta,umsobradinhodegradedepau.Oanoerade

1840.Naquele dia— uma segunda-feira, domês demaio— deixei-me estaralguns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar amanhã. Hesitavaentre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esseparqueatual,construçãodegentleman,masumespaçorústico,maisoumenosinfinito,alastradodelavadeiras,capimeburrossoltos.Morrooucampo?Taleraoproblema.Derepentedissecomigoqueomelhoreraaescola.Eguieiparaaescola.Aquivaiarazão.

Na semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi opagamentodasmãosdemeupai,quemedeuumasovadevarademarmeleiro.As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado doArsenaldeGuerra,ríspidoeintolerante.Sonhavaparamimumagrandeposiçãocomercial,e tinhaânsiademevercomoselementosmercantis, ler,escreverecontar,paramemeterdecaixeiro.Citava-menomesdecapitalistasquetinhamcomeçado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levounaquelamanhãparaocolégio.Nãoeraummeninodevirtudes.

Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei atempo; ele entrou na sala três ou quatrominutos depois. Entrou com o andarmanso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada edesbotada,calçabrancaetesaegrandecolarinhocaído.Chamava-sePolicarpoetinha perto de cinquenta anos oumais.Umavez sentado, extraiu da jaqueta abocetaderapéeolençovermelho,pô-losnagaveta;depoisrelanceouosolhospela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele,tornaramasentar-se.Tudoestavaemordem;começaramostrabalhos.

—Seu Pilar, eu preciso falar com você— disse-me baixinho o filho domestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligênciatarda.Raimundogastavaduashorasemreteraquiloqueaoutroslevavaapenastrintaoucinquentaminutos;venciacomotempooquenãopodiafazerlogocomocérebro.Reuniaa issoumgrandemedoaopai.Eraumacriançafina,pálida,caradoente;raramenteestavaalegre.Entravanaescoladepoisdopaieretirava-seantes.Omestreeramaisseverocomeledoqueconosco.

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—Oqueéquevocêquer?—Logo—respondeuelecomvoztrêmula.Começoualiçãodeescrita.Custa-medizerqueeueradosmaisadiantados

da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por umescrúpulofácildeentenderedeexcelenteefeitonoestilo,masnãotenhooutraconvicção.Note-sequenãoerapálidonemmofino;tinhaboascoresemúsculosdeferro.Naliçãodeescrita,porexemplo,acabavasempreantesdetodos,masdeixava-meestararecortarnarizesnopapelounatábua,ocupaçãosemnobrezanemespiritualidade,masemtodocasoingênua.Naquelediafoiamesmacousa;tãodepressaacabei,comoentreiareproduzironarizdomestre,dando-lhecincoou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, adubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante deprimeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Osoutros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar aescrita,evoltarparaomeulugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso,ardiaporandar lá fora, e recapitulavaocampoeomorro,pensavanosoutrosmeninosvadios,oChicoTelha,oAmérico,oCarlosdasEscadinhas,afinaflordobairroedogênerohumano.Paracúmulodedesespero,viatravésdasvidraçasdaescola,noclaroazuldocéu,porcimadomorrodoLivramento,umpapagaiodepapel,altoelargo,presodeumacordaimensa,quebojavanoar,umacousasoberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e agramáticanosjoelhos.

—Fuiumboboemvir—disseeuaoRaimundo.—Nãodigaisso—murmurouele.Olheiparaele;estavamaispálido.Então lembrou-meoutravezquequeria

pedir-me alguma cousa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu denovo,e,rápido,disse-mequeesperasseumpouco;eraumacousaparticular.

—SeuPilar...—murmuroueledaíaalgunsminutos.—Queé?—Você...—Vocêquê?Eledeitouosolhosaopai,edepoisaalgunsoutrosmeninos.Umdestes,o

Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essacircunstância,pediualgunsminutosmaisdeespera.Confessoquecomeçavaaarder de curiosidade.Olhei para oCurvelo, e vi que parecia atento; podia seruma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser tambémalgumacousaentreeles.EsseCurveloeraumpoucolevadododiabo.Tinha11anos,eramaisvelhoquenós.

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Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito,falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguémcuidavadelenemdemim.Ouentão,detarde...

—Detarde,não—interrompeu-meele—,nãopodeserdetarde.—Entãoagora...—Papaiestáolhando.Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho,

buscava-omuitas vezes com os olhos, para trazê-lomais aperreado.Mas nóstambém éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinalcansouetomouasfolhasdodia,trêsouquatro,queeleliadevagar,mastigandoasideiaseaspaixões.NãoesqueçamqueestávamosentãonofimdaRegência,eque era grande a agitaçãopública. Policarpo tinha decerto algumpartido,masnunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era apalmatória.Eessaláestava,penduradadoportaldajanela,àdireita,comosseuscincoolhosdodiabo.Era só levantaramão,despendurá-laebrandi-la, comaforçadocostume,quenãoerapouca.Edaí,podeserquealgumavezaspaixõespolíticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção.Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse;levantavaosolhosdequandoemquando,ou tomavaumapitada,mas tornavalogoaosjornais,eliaavaler.

Nofimdealgumtempo—dezou12minutos—Raimundometeuamãonobolsodascalçaseolhouparamim.

—Sabeoquetenhoaqui?—Não.—Umapratinhaquemamãemedeu.—Hoje?—Não,nooutrodia,quandofizanos...—Pratinhadeverdade?—Deverdade.Tirou-avagarosamente,emostrou-medelonge.Eraumamoedadotempodo

rei,cuidoque12vinténsoudoustostões,nãomelembra;maseraumamoeda,etãomoedaquemefezpularosanguenocoração.Raimundorevolveuemmimoolhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe queestavacaçoando,maselejurouquenão.

—Masentãovocêficasemela?—Mamãe depoisme arranja outra. Ela temmuitas que vovô lhe deixou,

numacaixinha;algumassãodeouro.Vocêqueresta?Minharespostafoiestender-lheamãodisfarçadamente,depoisdeolharpara

amesadomestre.Raimundorecuouamãodeleedeuàbocaumgestoamarelo,

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quequeriasorrir.Emseguidapropôs-meumnegócio,umatrocadeserviços;eleme daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Nãoconseguirareternadadolivro,eestavacommedodopai.Econcluíaapropostaesfregandoapratinhanosjoelhos...

Tiveuma sensação esquisita.Nãoéque eupossuíssedavirtudeuma ideiaantesprópriadehomem;nãoétambémquenãofossefácilemempregarumaououtramentiradecriança.Sabíamosambosenganaraomestre.Anovidadeestavanos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva,toma lá,dácá; tal foi acausada sensação.Fiqueiaolharparaele, à toa, sempoderdizernada.

Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que oRaimundo, não otendoaprendido,recorriaaummeioquelhepareceuútilparaescaparaocastigodo pai. Se me tem pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo,comodeoutrasvezes;masparecequeeraalembrançadasoutrasvezes,omedodeacharaminhavontadefrouxaoucansada,enãoaprendercomoqueria—epodesermesmoqueemalgumaocasiãolhetivesseensinadomal—,parecequetal foiacausadaproposta.Opobre-diabocontavacomo favor—masqueriaassegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu àmoeda que amãe lhe dera e que eleguardavacomorelíquiaoubrinquedo;pegoudelaeveioesfregá-lanosjoelhos,àminha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muitobranca;eparamim,quesótraziacobrenobolso,quandotraziaalgumacousa,umcobrefeio,grosso,azinhavrado...

Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, quecontinuava a ler, com tal interesse, que lhepingavao rapédonariz.—Ande,tome— dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos,como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que malhavia?E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais lendo com fogo,comindignação...

—Tome,tome...Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao

Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, entãodissimulei;masdaí a pouco, deitei-lhe outra vez o olho, e— tanto se ilude avontade! —nãolhevimaisnada.Entãocobreiânimo.

—Dêcá...Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das

calças,comumalvoroçoquenãopossodefinir.Cáestavaelacomigo,pegadinhaàperna.Restavaprestaroserviço,ensinaralição,enãomedemoreiemfazê-lo,nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em umretalhodepapel,queelerecebeucomcautelaecheiodeatenção.Sentia-seque

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despendia um esforço cinco ou seis vezesmaior para aprender um nada;mascontantoqueeleescapasseaocastigo,tudoiriabem.

Derepente,olheiparaoCurveloeestremeci;tinhaosolhosemnós,comumriso queme pareceumau.Disfarcei;mas daí a pouco, voltando-me outra vezparaele,achei-odomesmomodo,comomesmoar,acrescendoqueentravaaremexer-senobanco, impaciente.Sorri para ele e elenão sorriu; ao contrário,franziuatesta,oquelhedeuumaspectoameaçador.Ocoraçãobateu-memuito.

—Precisamosmuitocuidado—disseeuaoRaimundo.—Diga-meistosó—murmurouele.Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso,

lembrava-meocontratofeito.Ensinei-lheoqueera,disfarçandomuito;depois,tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso,dantesmau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara embrasas,ansiosoqueaaulaacabasse;masnemorelógioandavacomodasoutrasvezes,nemomestre faziacasodaescola;este liaos jornais, artigoporartigo,pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duaspancadinhasnamesa.Eláfora,nocéuazul,porcimadomorro,omesmoeternopapagaio,guinandoaumladoeoutro,comosemechamassea ir tercomele.Imaginei-meali,comoslivroseapedraembaixodamangueira,eapratinhanobolsodascalças,queeunãodariaaninguém,nemquemeserrassem;guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me nãofugisse,ia-aapalpando,roçando-lheosdedospelocunho,quaselendopelotatoainscrição,comumagrandevontadedeespiá-la.

—Oh!seuPilar!—bradouomestrecomvozdetrovão.Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei

com omestre, olhando paramim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé damesa,empé,oCurvelo.Pareceu-meadivinhartudo.

—Venhacá!—bradouomestre.Fuiepareidiantedele.Eleenterrou-mepelaconsciênciadentroumparde

olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguémmaislia,ninguémfaziaumsómovimento.Eu,conquantonãotirasseosolhosdomestre,sentianoaracuriosidadeeopavordetodos.

— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? —disse-meoPolicarpo.

—Eu...—Dêcáamoedaqueesteseucolegalhedeu!—clamou.Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito.

Policarpobradoudenovoquelhedesseamoeda,eeunãoresistimais,metiamãonobolso,vagarosamente,saquei-aeentreguei-lha.Eleexaminou-adeume

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outrolado,bufandoderaiva;depoisestendeuobraçoeatirou-aàrua.Eentãodisse-nosumaporçãodecousasduras,quetantoofilhocomoeuacabávamosdepraticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemploíamossercastigados.Aquipegoudapalmatória.

—Perdão,seumestre...—soluceieu.—Nãoháperdão!Dêcáamão!dêcá!vamos!sem-vergonha!dêcáamão!—Mas,seumestre...—Olhequeépior!Estendi-lhe amãodireita, depois a esquerda, e fui recebendoos bolos uns

porcimadosoutros,atécompletardoze,quemedeixaramaspalmasvermelhaseinchadas.Chegouavezdofilho,efoiamesmacousa;nãolhepoupounada,dous,quatro,oito,dozebolos.Acabou,pregou-nosoutrosermão.Chamou-nossem-vergonhas, desaforados, e jurou que, se repetíssemos o negócio,apanharíamos tal castigo que, nos havia de lembrar para todo o sempre. Eexclamava:Porcalhões!tratantes!faltosdebrio!

Eu,pormim,tinhaacaranochão.Nãoousavafitarninguém,sentiatodososolhosemnós.Recolhi-meaobanco,soluçando,fustigadopelosimpropériosdomestre.Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém fariaigualnegócio.CreioqueopróprioCurveloenfiarademedo.Nãoolheilogoparaele,cádentrodemimjuravaquebrar-lheacara,narua,logoquesaíssemos,tãocertocomotrêsedousseremcinco.

Daíaalgumtempoolheiparaele;eletambémolhavaparamim,masdesviouacara,epensoqueempalideceu.Compôs-se,eentroualeremvozalta;estavacommedo.Começouavariardeatitude,agitando-seàtoa,coçandoosjoelhos,onariz.Podeseratéquesearrependessedenosterdenunciado;enaverdade,porquedenunciar-nos?Emqueéquelhetirávamosalgumacousa?

“Tumepagas!tãodurocomoosso!”,diziaeucomigo.Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria

brigaralimesmo,naruadoCosta,pertodocolégio;haviadesernarualargadeS. Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmenteescondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei emoutrascasas, perguntei por ele a algumaspessoas, ninguémmedeunotícia.De tardefaltouàescola.

Emcasanãoconteinada,éclaro;masparaexplicarasmãosinchadas,mentia minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite,mandandoaodiaboosdousmeninos,tantoodadenúnciacomoodamoeda.Esonheicomamoeda;sonheique,aotornaràescola,nodiaseguinte,deracomelanarua,eaapanhara,semmedonemescrúpulos...

De manhã, acordei cedo. A ideia de ir procurar a moeda fez-me vestir

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depressa.O dia estava esplêndido, um dia demaio, solmagnífico, ar brando,semcontarascalçasnovasqueminhamãemedeu,porsinalqueeramamarelas.Tudoisso,eapratinha...Saídecasa,comosefossetreparaotronodeJerusalém.Piqueiopassoparaqueninguémchegasseantesdemimàescola;aindaassimnãoandei tãodepressaqueamarrotasseascalças.Não,queelaserambonitas!Mirava-as,fugiaaosencontros,aolixodarua...

Naruaencontreiumacompanhiadobatalhãodefuzileiros,tamboràfrente,rufando.Nãopodiaouviristoquieto.Ossoldadosvinhambatendoopérápido,igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram pormim, e foramandando.Eusentiumacomichãonospés,etiveímpetodeiratrásdeles.Jálhesdisse:odiaestavalindo,edepoisotambor...Olheiparaumeoutrolado;afinal,não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio quecantarolandoalgumacousa:Ratonacasaca...Nãofuiàescola,acompanheiosfuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na praia da Gamboa.Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nemressentimentonaalma.Econtudoapratinhaerabonita,eforameles,RaimundoeCurvelo,quemederamoprimeiroconhecimento,umdacorrupção,outrodadelação;masodiabodotambor...

GazetadeNotícias,8desetembrode1884;MachadodeAssis.

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D.Paula

Nãoerapossívelchegarmaisaponto.D.Paulaentrounasala,exatamente

quando a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar. Compreende-se oassombro da tia. Entender-se-á também o da sobrinha, em se sabendo qued. PaulavivenoaltodaTijuca,donderarasvezesdesce;aúltimafoipeloNatalpassado,eestamosemmaiode1882.Desceuontem,àtarde,efoiparacasadairmã,ruadoLavradio.Hoje,tãodepressaalmoçou,vestiu-seecorreuavisitarasobrinha.Aprimeira escravaque a viu, quis ir avisar a senhora,masd.Paulaordenou-lhequenão,efoipéantepé,muitodevagar,paraimpedirorumordassaias,abriuaportadasaladevisitas,eentrou.

—Queéisto?—exclamou.Venancinhaatirou-se-lheaosbraços,as lágrimasvieram-lhedenovo.A tia

beijou-amuito,abraçou-a,disse-lhepalavrasdeconforto,epediu,equisquelhecontasseoqueera,sealgumadoença,ou...

—Antesfosseumadoença!antesfosseamorte!—interrompeuamoça.—Nãodigastolices;masquefoi?anda,quefoi?Venancinhaenxugouosolhosecomeçouafalar.Nãopôdeiralémdecinco

ou seis palavras; as lágrimas tornaram, tão abundantes e impetuosas, qued. Paulaachoudebomavisodeixá-lascorrerprimeiro.Entretanto,foitirandoacapa de rendas pretas que a envolvia, e descalçando as luvas.Era uma bonitavelha,elegante,donadeumpardeolhosgrandes,quedeviamtersidoinfinitos.Enquanto a sobrinha chorava, ela foi cerrar cautelosamente a porta da sala, evoltou ao canapé. No fim de algunsminutos, Venancinha cessou de chorar, econfiouàtiaoqueera.

Eranadamenosqueumabrigacomomarido,tãoviolenta,quechegaramafalardeseparação.Acausaeramciúmes.Desdemuitoqueomaridoembirravacomumsujeito;masnavésperaànoite,emcasadoC...,vendo-adançarcomeleduas vezes e conversar algunsminutos, concluiu que eramnamorados.Voltouamuadoparacasa;demanhã,acabadooalmoço,acóleraestourou,eeledisse-lhecousasduraseamargas,queelarepeliucomoutras.

—Ondeestáteumarido?—perguntouatia.—Saiu;parecequefoiparaoescritório.D. Paula perguntou-lhe se o escritório era ainda omesmo, e disse-lhe que

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descansasse,quenãoeranada;daliaduashorastudoestariaacabado.Calçavaasluvasrapidamente.

—Titiavailá?— Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom; são arrufos. 104? Vou lá;

esperapormim,queasescravasnãotevejam.Tudoissoeraditocomvolubilidade,confiançaedoçura.Calçadasasluvas,

pôsomantelete,easobrinhaajudou-a,falandotambém,jurandoque,apesardetudo,adoravaoConrado.Conradoeraomarido,advogadodesde1874.D. Paulasaiu, levando muitos beijos da moça. Na verdade, não podia chegar mais aponto.Decaminho,parecequeela encarouo incidente,nãodigodesconfiada,mascuriosa,umpoucoinquietadarealidadepositiva;emtodocasoiaresolutaareconstruirapazdoméstica.

Chegou,nãoachouosobrinhonoescritório,maseleveiologo,e,passadooprimeiro espanto, não foi preciso que d. Paula lhe dissesse o objeto da visita;Conradoadivinhou tudo.Confessouque fora excessivo emalgumas cousas, e,por outro lado, não atribuía àmulher nenhuma índole perversa ou viciosa. Sóisso; no mais, era uma cabeça de vento, muito amiga de cortesias, de olhosternos,depalavrinhasdoces,ealeviandadetambéméumadasportasdovício.Em relação à pessoa de quem se tratava, não tinha dúvida de que eramnamorados.Venancinhacontarasóofatodavéspera;nãoreferiuoutros,quatrooucinco,openúltimonoteatro,ondechegouahavertalouqualescândalo.Nãoestavadispostoacobrircomasuaresponsabilidadeosdesazosdamulher.Quenamorasse,masporcontaprópria.

D. Paula ouviu tudo, calada; depois falou também. Concordava que asobrinhafosseleviana;eraprópriodaidade.Moçabonitanãosaiàruasematrairosolhos,eénaturalqueaadmiraçãodosoutrosa lisonjeie.Tambéménaturalqueoqueelafizerdelisonjeadapareçaaosoutroseaomaridoumprincípiodenamoro:afatuidadedeunseociúmedooutroexplicamtudo.Pelapartedela,acabavadeveramoçachorar lágrimassinceras;deixou-aconsternada,falandodemorrer, abatida com o que ele lhe dissera. E se ele próprio só lhe atribuíaleviandade,porquenãoprocedercomcautelaedoçura,pormeiodeconselhoede observação, poupando-lhe as ocasiões, apontando-lhe o mal que fazem àreputaçãodeumasenhoraasaparênciasdeacordo,desimpatia,deboavontadeparaoshomens?

Não gastoumenos de vinte minutos a boa senhora em dizer essas cousasmansas,comtãoboasombra,queosobrinhosentiuapaziguar-se-lheocoração.Resistia, é verdade; duas ou três vezes, para não resvalar na indulgência,declarou à tia que entre eles tudo estava acabado. E, para animar-se, evocavamentalmente as razões que tinha contra a mulher. A tia, porém, abaixava a

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cabeçaparadeixarpassaraonda,esurgiaoutravezcomosseusgrandesolhossagazes e teimosos. Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi então qued. Paulapropôsummeio-termo.

—Vocêperdoa-lhe,fazemaspazes,eelavaiestarcomigo,naTijuca,umoudousmeses;umaespéciededesterro.Eu,duranteestetempo,encarrego-medelhepôrordemnoespírito.Valeu?

Conradoaceitou.D.Paula, tãodepressaobteveapalavra,despediu-separalevar a boa-nova à outra; Conrado acompanhou-a até à escada. Apertaram asmãos; d. Paula não soltou a dele sem lhe repetir os conselhos de brandura eprudência;depois,fezestareflexãonatural:

—E vão ver que o homemde quem se trata nemmerece umminuto dosnossoscuidados...

—ÉumtalVascoMariaPortela...D. Paula empalideceu. Que Vasco Maria Portela? Um velho, antigo

diplomata,que...Não,esseestavanaEuropadesdealgunsanos,aposentado,eacabavadereceberumtítulodebarão.Eraumfilhodele,chegadodepouco,umpelintra...D.Paulaapertou-lheamão,edesceurapidamente.Nocorredor,semter necessidade de ajustar a capa, fê-lo durante alguns minutos, com a mãotrêmulaeumpoucodealvoroçona fisionomia.Chegoumesmoaolharparaochão, refletindo. Saiu; foi ter com a sobrinha, levando a reconciliação e acláusula.Venancinhaaceitoutudo.

Dousdiasdepois forampara aTijuca.Venancinha iamenos alegredoqueprometera; provavelmente era o exílio, ou pode ser também que algumassaudades.Emtodocaso,onomedeVascosubiuaTijuca,senãoemambasascabeças, aomenos na da tia, onde era uma espécie de eco, um som remoto ebrando,algumacousaquepareciavirdotempodaStoltzedoministérioParaná.Cantora e ministério, cousas frágeis, não o erammenos que a ventura de sermoça,eonde iamessas trêseternidades?Jaziamnas ruínasde trintaanos.Eratudooqued.Paulatinhaemsiediantedesi.

Já se entende que o outro Vasco, o antigo, também foi moço e amou.Amaram-se, fartaram-se um do outro, à sombra do casamento, durante algunsanos,e,comooventoquepassanãoguardaapalestradoshomens,nãohámeiodeescreveraquioqueentãosedissedaaventura.Aaventuraacabou;foiumasucessão de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, dearroubos, drogas várias com que encheram a esta senhora a taça das paixões.D. Paulaesgotou-ainteiraeemborcou-adepoisparanãomaisbeber.Asaciedadetrouxe-lheaabstinência,ecomo tempofoiestaúltimafasequefezaopinião.Morreu-lhe o marido e foram vindo os anos. D. Paula era agora uma pessoaausteraepia,cheiadeprestígioeconsideração.

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Asobrinhaéquelhelevouopensamentoaopassado.Foiapresençadeumasituaçãoanáloga,demisturacomonomeeosanguedomesmohomem,quelheacordoualgumasvelhaslembranças.NãoesqueçamqueelasestavamnaTijuca,queiamviverjuntasalgumassemanas,equeumaobedeciaàoutra;eratentaredesafiaramemória.

— Mas nós deveras não voltamos à cidade tão cedo? — perguntouVenancinharindo,nooutrodiademanhã.

—Jáestásaborrecida?—Não,não,issonunca,maspergunto...D. Paula, rindo também, fez com o dedo um gesto negativo; depois,

perguntou-lhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha respondeu quenenhumas; eparadarmais força à resposta, acompanhou-adeumdescair doscantos daboca, amodode indiferença e desdém.Erapôr demais na carta.D.Paulatinhaobomcostumedenãoleràscarreiras,comoquemvaisalvaropaidaforca,masdevagar,enfiandoosolhosentreassílabaseentreasletras,paravertudo,eachouqueogestodasobrinhaeraexcessivo.

“Elesamam-se!”,pensouela.Adescobertaavivouoespíritodopassado.D.Paulaforcejouporsacudirfora

essasmemóriasimportunas;elas,porém,voltavam,oudemansooudeassalto,comoraparigasqueeram,cantando,rindo,fazendoodiabo.D.Paulatornouaosseusbailesdeoutro tempo, às suas eternasvalsasque faziampasmar a todaagente,àsmazurcas,queelametiaàcaradasobrinhacomosendoamaisgraciosacousadomundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aosbeijos;mas tudoisso—eestaéasituação—tudoissoeracomoasfriascrônicas,esqueletodahistória, sem a alma da história. Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentavaemparelharocoraçãocomocérebro,aversesentiaalgumacousaalémdapurarepetição mental, mas, por mais que evocasse as comoções extintas, não lhevoltavanenhuma.Cousastruncadas!

Seelaconseguisseespiarparadentrodocoraçãodasobrinha,podeserqueachassealiasuaimagem,eentão...Desdequeestaideiapenetrounoespíritoded. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de reparação e cura. Era sincera,tratava da alma da outra, queria vê-la restituída aomarido. Na constância dopecado é que se pode desejar que outros pequem também, para descer decompanhiaaopurgatório;masaquiopecadojánãoexistia.D.Paulamostravaàsobrinhaasuperioridadedomarido,assuasvirtudeseassimtambémaspaixões,quepodiamdarummaudesfechoaocasamento,piorquetrágico,orepúdio.

Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias depois, confirmou aadvertênciada tia; entrou frio e saiu frio.Venancinha ficouaterrada.Esperavaque os nove dias de separação tivessem abrandado o marido, e, em verdade,

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assimera;maselemascarou-seàentradaeconteve-separanãocapitular.Eistofoimais salutar que tudo omais.O terror de perder omarido foi o principalelementoderestauração.Oprópriodesterronãopôdetanto.

Vaisenãoquando,dousdiasdepoisdaquelavisita,estandoambasaoportãoda chácara, prestes a sair para o passeio do costume, viram vir um cavaleiro.Venancinhafixouavista,deuumpequenogrito,ecorreuaesconder-seatrásdomuro.D.Paulacompreendeueficou.Quisverocavaleirodemaisperto;viu-odaliadousoutrêsminutos,umgalhardorapaz,elegante,comassuasfinasbotaslustrosas,muitobem-postonoselim;tinhaamesmacaradooutroVasco,eraofilho;omesmojeitodacabeça,umpoucoàdireita,osmesmosombroslargos,osmesmosolhosredondoseprofundos.

Nessamesmanoite,Venancinhacontou-lhetudo,depoisdaprimeirapalavraqueelalhearrancou.Tinham-sevistonascorridas,umavez,logoqueelechegoudaEuropa.Quinzediasdepois, foi-lheapresentadoemumbaile,epareceu-lhetão bem, comum ar tão parisiense, que ela falou dele, namanhã seguinte, aomarido.Conradofranziuosobrolho,efoiestegestoquelhedeuumaideiaqueaté então não tinha. Começou a vê-lo com prazer; daí a pouco com certaansiedade.Elefalava-lherespeitosamente,dizia-lhecousasamigas,queelaeraamais bonitamoça doRio, e amais elegante, que já emParis ouvira elogiá-lamuito, por algumas senhoras da famíliaAlvarenga.Tinhagraça emcriticar osoutros,esabiadizertambémumaspalavrassentidas,comoninguém.Nãofalavadeamor,masperseguia-acomosolhos, e ela,pormaisqueafastasseos seus,não podia afastá-los de todo. Começou a pensar nele, amiudadamente, cominteresse,equandoseencontravam,batia-lhemuitoocoração;podeserqueelelhevisseentão,norosto,aimpressãoquefazia.

D.Paula,inclinadaparaela,ouviaessanarração,queaíficaapenasresumidaecoordenada.Tinhatodaavidanosolhos;abocameioaberta,pareciabeberaspalavrasdasobrinha,ansiosamente,comoumcordial.Epedia-lhemais,quelhecontasse tudo, tudo.Venancinha criou confiança.O ar da tia era tão jovem, aexortação tãomeiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali umaconfidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu,mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digocálculo; d. Paula enganava-se a simesma. Podemos compará-la a um generalinválido,queforcejaporacharumpoucodoantigoardornaaudiênciadeoutrascampanhas.

—Jávêsqueteumaridotinharazão—diziaela—,fosteimprudente,muitoimprudente...

Venancinhaachouquesim,masjurouqueestavatudoacabado.—Receioquenão.Chegasteaamá-lodeveras?

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—Titia...—Tuaindagostasdele!— Juro que não. Não gosto; mas confesso... sim... confesso que gostei...

Perdoe-me tudo; não diga nada a Conrado; estou arrependida... Repito que aprincípioumpoucofascinada...Masquequerasenhora?

—Eledeclarou-tealgumacousa?— Declarou; foi no teatro, uma noite, no teatro Lírico, à saída. Tinha

costumedeirbuscar-meaocamaroteeconduzir-meatéocarro,efoiàsaída...duaspalavras...

D.Paulanãoperguntou,porpudor,asprópriaspalavrasdonamorado,masimaginouascircunstâncias,ocorredor,osparesquesaíam,asluzes,amultidão,orumordasvozes,eteveopoderderepresentar,comoquadro,umpoucodassensaçõesdela;epediu-lhascominteresse,astutamente.

— Não sei o que senti — acudiu a moça cuja comoção crescente iadesatandoa língua—,nãome lembrodosprimeiroscincominutos.Creioquefiquei séria; em todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me que toda genteolhava para nós, que teriam ouvido, e quando alguém me cumprimentavasorrindo,dava-meideiadeestarcaçoando.Desciasescadasnãoseicomo,entreino carro sem saber o que fazia; ao apertar-lhe amão, afrouxei bemos dedos.Juro-lhe que não queria ter ouvido nada. Conrado disse-me que tinha sono, eencostou-seaofundodocarro;foimelhorassim,porqueeunãoseiquediria,setivéssemosdeirconversando.Encostei-metambém,masporpoucotempo;nãopodiaestarnamesmaposição.Olhavapara foraatravésdosvidros,evia sóoclarão dos lampiões, de quando em quando, e afinal nem issomesmo; via oscorredores do teatro, as escadas, as pessoas todas, e ele ao pé de mim,cochichando aspalavras, duaspalavras só, e nãopossodizer oquepensei emtodoessetempo;tinhaasideiasbaralhadas,confusas,umarevoluçãoemmim...

—Mas,emcasa?—Emcasa,despindo-me,équepuderefletirumpouco,masmuitopouco.

Dormi tarde, emal. Demanhã, tinha a cabeça aturdida. Não posso dizer queestava alegre nem triste; lembro-me que pensavamuito nele, e para arredá-loprometiamimmesmarevelartudoaoConrado;masopensamentovoltavaoutravez. De quando em quando, parecia-me escutar a voz dele, e estremecia.Chegueialembrar-meque,àdespedida,lhederaosdedosfrouxos,esentia,nãoseicomodiga,umaespéciedearrependimento,ummedodeoterofendido...edepoisvinhaodesejodeoveroutravez...Perdoe-me,titia;asenhoraéquequerquelhecontetudo.

A resposta de d. Paula foi apertar-lhe muito a mão e fazer um gesto decabeça. Afinal achava alguma cousa de outro tempo, ao contacto daquelas

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sensações ingenuamente narradas. Tinha os olhos, ora meio cerrados, nasonolênciadarecordação—oraaguçadosdecuriosidadeecalor,eouviatudo,dia por dia, encontro por encontro, a própria cena do teatro, que a sobrinha aprincípiolheocultara.Evinhatudoomais,horasdeânsia,desaudade,demedo,de esperança, desalentos, dissimulações, ímpetos, toda a agitação de umacriaturaemtaiscircunstâncias,nadadispensavaacuriosidadeinsaciáveldatia.Nãoeraumlivro,nãoerasequerumcapítulodeadultério,masumprólogo—interessanteeviolento.

Venancinhaacabou.A tianão lhedissenada,deixou-se estarmetidaemsimesma;depoisacordou,pegou-lhenamãoepuxou-a.Nãolhefaloulogo;fitouprimeiro,edeperto,todaessamocidadeinquietaepalpitante,abocafresca,osolhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a sobrinha lhe pediu outra vezperdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e a austeridade da mãe lhepoderiadizer,falou-lhedecastidade,deamoraomarido,derespeitopúblico;foitãoeloquentequeVenancinhanãopôdeconter-se,echorou.

Veio o chá, mas não há chá possível depois de certas confidências.Venancinharecolheu-selogo,e,comoaluzeraagoramaior,saiudasalacomosolhosbaixos,paraqueocriadolhenãovisseacomoção.D.Paulaficoudianteda mesa e do criado. Gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber umaxícaradecháeroerumbiscouto,eapenasficousó,foiencostar-seàjanela,quedavaparaachácara.

Ventava um pouco, as folhas moviam-se sussurrando, e, conquanto nãofossemasmesmasdooutro tempo,aindaassimperguntavam-lhe:“Paula,vocêlembra-sedooutrotempo?”Queestaéaparticularidadedasfolhas,asgeraçõesque passam contam às que chegam as cousas que viram, e é assim que todassabemtudoeperguntamportudo.Vocêlembra-sedooutrotempo?

Lembrar,lembrava;masaquelasensaçãodehápouco,reflexoapenas,tinhaagoracessado.Emvãorepetiaaspalavrasdasobrinha,farejandooaragrestedanoite: era só na cabeça que achava algum vestígio, reminiscências, cousastruncadas.Ocoraçãoempacaradenovo;osangueiaoutravezcomaandaduradocostume.Faltava-lheocontactomoraldaoutra.Econtinuava,apesardetudo,diante da noite, que era igual às outras noites de então, e nada tinha que separecessecomasdotempodaStoltzedomarquêsdeParaná;mascontinuava,eládentroaspretasespalhavamosonocontandoanedotas,ediziam,umaououtravez,impacientes:

—Sinhávelhahojedeitatardecomodiabo!GazetadeNotícias,12deoutubrode1884;MachadodeAssis.

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Acartomante

HamletobservaaHorácioquehámaiscousasnocéuenaterradoquesonha

anossafilosofia.EraamesmaexplicaçãoquedavaabelaRitaaomoçoCamilo,numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido navésperaconsultarumacartomante;adiferençaéqueofaziaporoutraspalavras.

—Ria,ria.Oshomenssãoassim;nãoacreditamemnada.Poissaibaquefui,equeelaadivinhouomotivodaconsulta,antesmesmoqueeulhedissesseoqueera. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de umapessoa...”Confesseiquesim,eentãoelacontinuouabotarascartas,combinou-as,enofimdeclarou-mequeeutinhamedodequevocêmeesquecesse,masquenãoeraverdade...

—Errou!—interrompeuCamilo,rindo.—Nãodigaisso,Camilo.Sevocêsoubessecomoeutenhoandado,porsua

causa.Vocêsabe;jálhedisse.Nãoriademim,nãoria...Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe

queriamuito,queos seussustospareciamdecriança;em todoocaso,quandotivessealgumreceio,amelhorcartomanteeraelemesmo.Depois,repreendeu-a;disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, edepois...

—Qualsaber!tivemuitacautela,aoentrarnacasa.—Ondeéacasa?—Aquiperto,naruadaGuardaVelha;nãopassavaninguémnessaocasião.

Descansa;eunãosoumaluca.Camiloriuoutravez:—Tucrêsdeverasnessascousas?—perguntou-lhe.Foientãoqueela, semsaberque traduziaHamletemvulgar,disse-lheque

haviamuitacousamisteriosaeverdadeiranestemundo.Seelenãoacreditava,paciência;masocertoéqueacartomanteadivinharatudo.Quemais?Aprovaéqueelaagoraestavatranquilaesatisfeita.

Cuidoqueele ia falar,masreprimiu-se.Nãoqueriaarrancar-lheas ilusões.Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenalinteirodecrendices,queamãelheincutiu,equeaosvinteanosdesapareceram.Nodiaemquedeixoucairtodaessavegetaçãoparasita,eficousóotroncoda

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religião, ele, como tivesse recebido damãe ambos os ensinos, envolveu-os namesmadúvida,e logodepoisemumasónegação total.Camilonãoacreditavaemnada.Porquê?Nãopoderiadizê-lo,nãopossuíaumsóargumento;limitava-seanegartudo.Edigomal,porquenegaréaindaafirmar,eelenãoformulavaaincredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foiandando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de seramada;Camilonãosóoestava,masvia-aestremecerearriscar-seporele,correràs cartomantes, e, pormais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-selisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, ondemoravaumacomprovincianadeRita.Estadesceupela ruadasMangueiras,nadireçãode Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando depassagemparaacasadacartomante.

Vilela,CamiloeRita, trêsnomes,umaaventuraenenhumaexplicaçãodasorigens.Vamosaela.Osdousprimeiroseramamigosdeinfância.Vilelaseguiuacarreirademagistrado.Camiloentrounofuncionalismo,contraavontadedopai,quequeriavê-lomédico;masopaimorreu,eCamilopreferiunãosernada,atéqueamãe lhearranjouumempregopúblico.Noprincípiode1869,voltouVileladaprovíncia,ondecasaracomumadamaformosae tonta;abandonouamagistraturaeveioabrirbancadeadvogado.Camiloarranjou-lhecasaparaosladosdeBotafogo,efoiabordorecebê-lo.

—Éo senhor?—exclamouRita, estendendo-lhe amão.—Não imaginacomomeumaridoéseuamigo;falavasempredosenhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,CamiloconfessoudesiparasiqueamulherdoVilelanãodesmentiaascartasdomarido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina einterrogativa.Eraumpoucomaisvelhaqueambos:contava trintaanos,Vilela29eCamilo26.Entretanto,oportegravedeVilelafazia-oparecermaisvelhoqueamulher,enquantoCamiloeraumingênuonavidamoraleprática.Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe noberçodealgunsparaadiantarosanos.Nemexperiência,nemintuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depoismorreu amãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dous mostraram-se grandesamigosdele.Vilelacuidoudoenterro,dossufrágiosedoinventário;Ritatratouespecialmentedocoração,eninguémofariamelhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é quegostavadepassarashorasaoladodela;eraasuaenfermeiramoral,quaseumairmã,masprincipalmenteeramulherebonita.Odordi femmina: eisoqueeleaspiravanela,eemvoltadela,paraincorporá-loemsipróprio.Liamosmesmos

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livros,iamjuntosateatrosepasseios.Camiloensinou-lheasdamaseoxadrezejogavamàsnoites—elamal—,ele,paralheseragradável,poucomenosmal.Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, queprocuravammuitavezosdele,queosconsultavamantesdeofazeraomarido,asmãosfrias,asatitudesinsólitas.Umdia,fazendoeleanos,recebeudeVilelaumarica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgarcumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; nãoconseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas hávulgaridadessublimes,ou,pelomenos,deleitosas.Avelhacaleçadepraça,emquepelaprimeiravezpasseastecomamulheramada,fechadinhosambos,valeocarrodeApolo.Assiméohomem,assimsãoascousasqueocercam.

Camiloquissinceramentefugir,masjánãopôde.Rita,comoumaserpente,foi-seacercandodele,envolveu-otodo,fez-lheestalarosossosnumespasmo,epingou-lheovenenonaboca.Eleficouatordoadoesubjugado.Vexame,sustos,remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitóriadelirante.Adeus,escrúpulos!Nãotardouqueosapatoseacomodasseaopé,eaíforam ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima deervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quandoestavamausentesumdooutro.AconfiançaeestimadeVilelacontinuavamaserasmesmas.

Umdia,porém,recebeuCamiloumacartaanônima,quelhechamavaimoralepérfido,ediziaqueaaventuraerasabidadetodos.Camilotevemedo,e,paradesviarassuspeitas,começouararearasvisitasàcasadeVilela.Estenotou-lheasausências.Camilorespondeuqueomotivoeraumapaixãofrívoladerapaz.Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaraminteiramente. Pode ser que entrasse tambémnisso um pouco de amor-próprio,uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura aaleivosiadoato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada emedrosa, correu à cartomantepara consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimosque a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por terfeitooquefez.Correramaindaalgumassemanas.Camilorecebeumaisduasoutrês cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência davirtude,masdespeitodealgumpretendente; tal foiaopiniãodeRita,que,poroutras palavras malcompostas, formulou este pensamento: “a virtude épreguiçosaeavara,nãogastatemponempapel;sóointeresseéativoepródigo”.

Nempor issoCamiloficoumaissossegado; temiaqueoanônimofosse tercom Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que erapossível.

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—Bem—disseela—,eulevoossobrescritosparacompararaletracomasdascartasqueláaparecerem;sealgumaforigual,guardo-aerasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-sesombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo aooutro,esobreissodeliberaram.AopiniãodelaéqueCamilodeviatornaràcasadeles, tatear omarido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algumnegócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses eraconfirmarasuspeitaoudenúncia.Maisvaliaacautelarem-se,sacrificando-seporalgumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso denecessidade,esepararam-secomlágrimas.

Nodiaseguinte,estandonarepartição,recebeuCamiloestebilhetedeVilela:“Vemjá, já,ànossacasa;precisofalar-tesemdemora.”Eramaisdemeio-dia.Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo aoescritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosserealidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousascomanotíciadavéspera.

—Vemjá,já,ànossacasa;precisofalar-tesemdemora—repetiaelecomosolhosnopapel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada elacrimosa,Vilela indignado, pegandoda pena e escrevendoo bilhete, certo deque ele acudiria, e esperando-o paramatá-lo.Camilo estremeceu, tinhamedo;depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de recuar, e foiandando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado deRita,quelheexplicassetudo.Nãoachounada,nemninguém.Voltouàrua,eaideia de estaremdescobertos parecia-lhe cada vezmais verossímil; era naturalumadenúnciaanônima,atédaprópriapessoaqueoameaçaraantes;podia serque Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, semmotivoaparente,apenascomumpretextofútil,viriaconfirmaroresto.

Camiloiaandandoinquietoenervoso.Nãoreliaobilhete,masaspalavrasestavamdecoradas,diantedosolhos,fixas;ouentão—oqueeraaindapior—eram-lhemurmuradas ao ouvido, com a própria voz deVilela. “Vem já, já, ànossacasa;precisofalar-tesemdemora.”Ditasassim,pelavozdooutro,tinhamumtomdemistérioeameaça.Vem,já,já,paraquê?Erapertodeumahoradatarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iriapassar,quechegouacrê-loevê-lo.Positivamente,tinhamedo.Entrouacogitaremirarmado,considerandoque,senadahouvesse,nadaperdia,eaprecauçãoeraútil.Logodepoisrejeitavaaideia,vexadodesimesmo,eseguia,picandoopasso,nadireçãodolargodaCarioca,paraentrarnumtílburi.Chegou,entrouemandouseguiratrotelargo.

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“Quantoantes,melhor”,pensouele,“nãopossoestarassim...”Masomesmotrotedocavaloveioagravar-lheacomoção.Otempovoava,e

elenãotardariaaentestarcomoperigo.QuasenofimdaruadaGuardaVelha,otílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra.Camilo,emsimesmo,estimouoobstáculo,eesperou.Nofimdecincominutos,reparouqueaolado,àesquerda,aopédotílburi,ficavaacasadacartomante,aquemRitaconsultaraumavez,enuncaeledesejoutantocrernaliçãodascartas.Olhou,viuasjanelasfechadas,quandotodasasoutrasestavamabertasepejadasdecuriososdoincidentedarua.Dir-se-iaamoradadoindiferenteDestino.

Camiloreclinou-senotílburi,paranãovernada.Aagitaçãodeleeragrande,extraordinária, e do fundodas camadasmorais emergiam alguns fantasmas deoutro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas.O cocheiropropôs-lhevoltar àprimeira travessa, e irporoutrocaminho; ele respondeuquenão,queesperasse.Einclinava-separafitaracasa...Depoisfezumgestoincrédulo:eraaideiadeouviracartomante,quelhepassavaaolonge,muitolonge,comvastasasascinzentas;desapareceu,reapareceu,etornouaesvair-senocérebro;masdaíapoucomoveuoutravezasasas,maisperto, fazendounsgirosconcêntricos...Narua,gritavamoshomens,safandoacarroça:

—Anda!agora!empurra!vá!vá!Daíapoucoestariaremovidooobstáculo.Camilofechavaosolhos,pensava

emoutrascousas;masavozdomaridosussurrava-lheàsorelhasaspalavrasdacarta:“Vem,já,já...”Eeleviaascontorçõesdodramaetremia.Acasaolhavaparaele.Aspernasqueriamdescereentrar.Camiloachou-sediantedeumlongovéuopaco...pensourapidamentenoinexplicáveldetantascousas.Avozdamãerepetia-lheumaporçãodecasosextraordinários;eamesmafrasedopríncipedeDinamarcareboava-lhedentro:“Hámaiscousasnocéuenaterradoquesonhaafilosofia...”Queperdiaele,se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, erápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degrauscomidosdospés,ocorrimãopegajoso;maselenãoviunemsentiunada.Trepoue bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, acuriosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bateruma,duas,trêspancadas.Veioumamulher;eraacartomante.Camilodissequeiaconsultá-la,elafê-loentrar.Dalisubiramaosótão,porumaescadaaindapiorque a primeira emais escura. Em cima, havia uma salinha,mal-alumiada poruma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredessombrias,umardepobreza,queantesaumentavadoquedestruíaoprestígio.

Acartomantefê-losentardiantedamesa,esentou-sedoladooposto,comascostasparaajanela,demaneiraqueapoucaluzdeforabatiaemcheionorosto

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de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas eenxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não derosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,morenaemagra,comgrandesolhossonsoseagudos.Voltoutrêscartassobreamesa,edisse-lhe:

— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grandesusto...

Camilo,maravilhado,fezumgestoafirmativo.—Equersaber—continuouela—selheaconteceráalgumacousaounão...—Amimeaela—explicouvivamenteele.Acartomantenãosorriu;disse-lhesóqueesperasse.Rápidopegououtravez

das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas;baralhou-as bem, transpôs osmaços, uma, duas, três vezes; depois começou aestendê-las.Camilotinhaosolhosnela,curiosoeansioso.

—Ascartasdizem-me...Camiloinclinou-separabeberumaaumaaspalavras.Entãoeladeclarou-lhe

quenãotivessemedodenada.Nadaacontecerianemaumnemaoutro;ele,oterceiro, ignorava tudo.Nãoobstante, era indispensávelmuitacautela; ferviaminvejasedespeitos.Falou-lhedoamorqueosligava,dabelezadeRita...Camiloestava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as nagaveta.

—Asenhora restituiu-meapazaoespírito—disseele estendendoamãoporcimadamesaeapertandoadacartomante.

Estalevantou-se,rindo.—Vá—disseela—vá,ragazzoinnamorato...Edepé,comodedoindicador,tocou-lhenatesta.Camiloestremeceu,como

se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi àcômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas,começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes quedesmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um arparticular.Camilo,ansiosoporsair,nãosabiacomopagasse;ignoravaopreço.

—Passascustamdinheiro—disseeleafinal,tirandoacarteira.—Quantasquermandarbuscar?

—Pergunteaoseucoração—respondeuela.Camilo tirou uma nota de dezmil-réis, e deu-lha.Os olhos da cartomante

fuzilaram.Opreçousualeradousmil-réis.—Vejobemqueosenhorgostamuitodela...Efazbem;elagostamuitodo

senhor.Vá,vá,tranquilo.Olheaescada,éescura;ponhaochapéu...Acartomantetinhajáguardadoanotanaalgibeira,edesciacomele,falando,

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comumlevesotaque.Camilodespediu-sedelaembaixo,edesceuaescadaquelevava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estavalivre.Entroueseguiuatrotelargo.

Tudolhepareciaagoramelhor,asoutrascousastraziamoutroaspecto,océuestava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamoupueris; recordouos termosdacartadeVilelaereconheceuqueeramíntimosefamiliares.Ondeéqueelelhedescobriraaameaça?Advertiutambémqueeramurgentes,equefizeramalemdemorar-setanto;podiaseralgumnegóciograveegravíssimo.

—Vamos,vamosdepressa—repetiaeleaococheiro.E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa;

parecequeformoutambémoplanodeaproveitaroincidenteparatornaràantigaassiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras dacartomante. Emverdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, aexistência de um terceiro; por que não adivinharia o resto?O presente que seignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças dorapaziamtornandoaodecima,eomistérioempolgava-ocomasunhasdeferro.Àsvezesqueriarir,eriadesimesmo,algovexado;masamulher,ascartas,aspalavrassecaseafirmativas,aexortação:—Vá,vá,ragazzo innamorato;enofim,aolonge,abarcaroladadespedida,lentaegraciosa,taiseramoselementosrecentes,queformavam,comosantigos,umafénovaevivaz.

Averdadeéqueocoraçãoiaalegreeimpaciente,pensandonashorasfelizesdeoutroraenasquehaviamdevir.AopassarpelaGlória,Camiloolhouparaomar,estendeuosolhosparafora,atéondeaáguaeocéudãoumabraçoinfinito,eteveassimumasensaçãodofuturo,longo,longo,interminável.

DaíapoucochegouàcasadeVilela.Apeou-se,empurrouaportadeferrodojardimeentrou.Acasaestavasilenciosa.Subiuosseisdegrausdepedra,emaltevetempodebater,aportaabriu-se,eapareceu-lheVilela.

—Desculpa,nãopudevirmaiscedo;quehá?Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e

foramparaumasaletainterior.Entrando,Camilonãopôdesufocarumgritodeterror:—ao fundo sobre o canapé, estavaRitamorta e ensanguentada.Vilelapegou-opelagola,e,comdoustirosderevólver,estirou-omortonochão.

GazetadeNotícias,28denovembrode1884;MachadodeAssis.

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Umapólogo

Eraumavezumaagulha,quedisseaumnovelodelinha:—Porqueestávocêcomessear,todacheiadesi,todaenrolada,parafingir

quevalealgumacousanestemundo?—Deixe-me,senhora.—Queadeixe?Queadeixe,porquê?Porquelhedigoqueestácomumar

insuportável?Repitoquesim,efalareisemprequemedernacabeça.—Quecabeça,senhora?Asenhoranãoéalfinete,éagulha.Agulhanãotem

cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.Importe-secomasuavidaedeixeadosoutros.

—Masvocêéorgulhosa.—Decertoquesou.—Masporquê?—Éboa!Porquecoso.Entãoosvestidoseenfeitesdenossaama,quemé

queoscose,senãoeu?—Você?Estaagoraémelhor.Vocêéqueoscose?Vocêignoraquequemos

cosesoueu,emuitoeu?—Vocêfuraopano,nadamais;euéquecoso,prendoumpedaçoaooutro,

doufeiçãoaosbabados...—Sim,masquevaleisso?Euéquefuroopano,vouadiante,puxandopor

você,quevematrás,obedecendoaoqueeufaçoemando...—Tambémosbatedoresvãoadiantedoimperador.—Vocêéimperador?—Nãodigoisso.Masaverdadeéquevocêfazumpapelsubalterno, indo

adiante;vaisómostrandoocaminho,vaifazendootrabalhoobscuroe ínfimo.Euéqueprendo,ligo,ajunto...

Estavamnisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa.Não sei sedissequeistosepassavaemcasadeumabaronesa,quetinhaamodistaaopédesi, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou daagulha,pegoudalinha,enfioualinhanaagulha,eentrouacoser.Umaeoutraiamandandoorgulhosas,pelopanoadiante,queeraamelhordassedas,entreosdedosdacostureira,ágeiscomoosgalgosdeDiana—paradaraistoumacorpoética.Ediziaaagulha:

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—Então,senhoralinha,aindateimanoquediziahápouco?Nãoreparaqueestadistintacostureirasóseimportacomigo;euéquevouaquientreosdedosdela,unidinhaaeles,furandoabaixoeacima.

Alinhanãorespondianada;iaandando.Buracoabertopelaagulhaeralogoenchidoporela,silenciosaeativa,comoquemsabeoquefaz,enãoestáparaouvirpalavras loucas.Aagulha,vendoqueelanão lhedavaresposta,calou-setambém, e foi andando.E era tudo silênciona saleta de costura; não se ouviamais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureiradobrouacostura,paraodiaseguinte;continuouaindanesseenooutro,atéquenoquartoacabouaobra,eficouesperandoobaile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se.A costureira, que a ajudou avestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum pontonecessário.Eenquantocompunhaovestidodabeladama,epuxavaaumladoououtro,arregaçavadaquioudali, alisando,abotoando,acolchetando,a linha,paramofardaagulha,perguntou-lhe:

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa,fazendopartedovestidoedaelegância?Queméquevaidançarcomministrosediplomatas,enquantovocêvoltaparaacaixinhadacostureira,antesdeirparaobalaiodasmucamas?Vamos,digalá.

Parecequeaagulhanãodissenada;masumalfinete,decabeçagrandeenãomenorexperiência,murmurouàpobreagulha:

—Anda,aprende,tola.Cansas-teemabrircaminhoparaelaeelaéquevaigozardavida,enquantoaíficasnacaixinhadecostura.Fazecomoeu,quenãoabrocaminhoparaninguém.Ondemeespetam,fico.

Conteiestahistóriaaumprofessordemelancolia,quemedisse,abanandoacabeça:

—Tambémeutenhoservidodeagulhaamuitalinhaordinária!Gazeta de Notícias, 1º de março de 1885 (com o título “A agulha e a

linha”);MachadodeAssis.

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Acausasecreta

Garcia,empé,miravaeestalavaasunhas;Fortunato,nacadeiradebalanço,

olhavaparaoteto;MariaLuísa,pertodajanela,concluíaumtrabalhodeagulha.Haviajácincominutosquenenhumdelesdizianada.Tinhamfaladododia,queestiveraexcelente,deCatumbi,ondemoravaocasalFortunato,edeumacasadesaúde,queadianteseexplicará.Comoostrêspersonagensaquipresentesestãoagoramortoseenterrados,tempoédecontarahistóriasemrebuço.

Tinhamfaladotambémdeoutracousa,alémdaquelas três,cousatãofeiaegrave,quenãolhesdeixoumuitogostoparatratardodia,dobairroedacasadesaúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agoramesmo, osdedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto deGarciaumaexpressãodeseveridade,quelhenãoéhabitual.Emverdade,oquese passou foi de tal natureza, que, para fazê-lo entender, é preciso remontar àorigemdasituação.

Garcia tinha-se formado emmedicina, no ano anterior, 1861.No de 1860,estandoaindanaEscola,encontrou-secomFortunato,pelaprimeiravez,àportadaSantaCasa; entrava, quandoooutro saía.Fez-lhe impressão a figura;mas,ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos diasdepois.Morava na rua de D.Manoel. Uma de suas raras distrações era ir aoteatrodeS.Januário,queficavaperto,entreessaruaeapraia;iaumaouduasvezespormês,enuncaachavaacimadequarentapessoas.Sóosmaisintrépidosousavamestenderospassosatéaquelerecantodacidade.Umanoite,estandonascadeiras,apareceualiFortunato,esentou-seaopédele.

A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações eremorsos;masFortunatoouvia-acomsingularinteresse.Noslancesdolorosos,aatençãodeleredobrava,osolhosiamavidamentedeumpersonagemaoutro,atal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais dovizinho.Nofimdodrama,veioumafarsa;masFortunatonãoesperouporelaesaiu;Garciasaiuatrásdele.FortunatofoipelobecodoCotovelo,ruadeS.José,atéo largodaCarioca. Iadevagar,cabisbaixo,parandoàsvezes,paradarumabengaladaemalgumcãoquedormia;ocãoficavaganindoeeleiaandando.Nolargo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça daConstituição.Garciavoltouparacasasemsabermaisnada.

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Decorreramalgumassemanas.Umanoite,eramnovehoras,estavaemcasa,quandoouviurumordevozesnaescada;desceulogodosótão,ondemorava,aoprimeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este, quealgunshomensconduziam,escadaacima,ensanguentado.Opretoqueoserviaacudiu a abrir a porta; o homemgemia, as vozes eram confusas, a luz pouca.Depostooferidonacama,Garciadissequeeraprecisochamarummédico.

—Jáaívemum—acudiualguém.Garciaolhou:eraoprópriohomemdaSantaCasaedoteatro.Imaginouque

seriaparenteouamigodoferido;masrejeitouasuposição,desdequelheouviraperguntarseeste tinhafamíliaoupessoapróxima.Disse-lheopretoquenãoeeleassumiuadireçãodoserviço,pediuàspessoasestranhasqueseretirassem,pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que oGarcia eravizinhoeestudantedemedicinapediu-lhequeficasseparaajudaromédico.Emseguidacontouoquesepassara.

— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fuivisitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois umajuntamento.Parecequeeles feriram tambémaumsujeitoquepassava, equeentrouporumdaquelesbecos;maseusóviaestesenhor,queatravessavaaruanomomentoemqueumdoscapoeiras,roçandoporele,meteu-lheopunhal.Nãocaiulogo;disseondemorava,e,comoeraadouspassos,acheimelhortrazê-lo.

—Conhecia-oantes?—perguntouGarcia.—Não,nuncaovi.Quemé?—Éumbomhomem,empregadonoarsenaldeguerra.Chama-seGouveia.—Nãoseiquemé.Médicoesubdelegadovieramdaíapouco;fez-seocurativo,e tomaram-se

as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes daSilveira,sercapitalista,solteiro,moradoremCatumbi.Aferidafoireconhecidagrave.Durante o curativo, ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado,segurandoabacia,avela,ospanos,semperturbarnada,olhandofriamenteparaoferido,quegemiamuito.Nofim,entendeu-separticularmentecomomédico,acompanhou-oatéopatamardaescada,ereiterouaosubdelegadoadeclaraçãode estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dous saíram, ele e oestudanteficaramnoquarto.

Garciaestavaatônito.Olhouparaele,viu-osentar-setranquilamente,estiraraspernas,meterasmãosnasalgibeirasdascalças,efitarosolhosnoferido.Osolhos eram claros, cor de chumbo,moviam-se devagar, e tinham a expressãodura,secaefria.Caramagraepálida;umatiraestreitadebarba,porbaixodoqueixo, edeuma têmporaaoutra, curta, ruivae rara.Teriaquarentaanos.Dequando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma cousa

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acercadoferido;mastornavalogoaolharparaele,enquantoorapazlhedavaaresposta.Asensaçãoqueoestudanterecebiaeraderepulsaaomesmotempoquede curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de raradedicação, e se eradesinteressadocomoparecia, nãohaviamaisque aceitar ocoraçãohumanocomoumpoçodemistérios.

Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes,mas acurafez-sedepressa,e,antesdeconcluída,desapareceusemdizeraoobsequiadoondemorava.Foioestudantequelhedeuasindicaçõesdonome,ruaenúmero.

—Vouagradecer-lhe a esmolaqueme fez, logoquepossa sair—disseoconvalescente.

Correu aCatumbi daí a seis dias.Fortunato recebeu-o constrangido, ouviuimpaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada eacabou batendo com as borlas do chambre no joelho.Gouveia, defronte dele,sentadoecalado,alisavaochapéucomosdedos,levantandoosolhosdequandoem quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediulicençaparasair,esaiu.

—Cuidadocomoscapoeiras!—disse-lheodonodacasa,rindo-se.O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o

desdém,forcejandoporesquecê-lo,explicá-loouperdoá-lo,paraquenocoraçãosó ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento,hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que odesgraçadonãotevemaisquetreparàcabeçaerefugiar-sealicomoumasimplesideia.Foiassimqueoprópriobenfeitorinsinuouaestehomemosentimentodaingratidão.

TudoissoassombrouoGarcia.Estemoçopossuía,emgérmen,afaculdadede decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, esentiao regalo,quediziasersupremo,depenetrarmuitascamadasmorais,atéapalparosegredodeumorganismo.Picadodecuriosidade,lembrou-sedeirtercomohomemdeCatumbi,masadvertiuquenemreceberadeleooferecimentoformal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achounenhum.

Tempos depois, estando já formado, e morando na rua de Mata-cavalos,perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o aindaoutrasvezes,eafrequênciatrouxeafamiliaridade.UmdiaFortunatoconvidou-oairvisitá-loaliperto,emCatumbi.

—Sabequeestoucasado?—Nãosabia.— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco

domingo.

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—Domingo?—Nãoestejaforjandodesculpas;nãoadmitodesculpas.Vádomingo.Garciafoiládomingo.Fortunatodeu-lheumbomjantar,bonscharutoseboa

palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele nãomudara; os olhos eram asmesmas chapas de estanho, duras e frias; as outrasfeições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se nãoresgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. MariaLuísaéquepossuíaambososfeitiços,pessoaemodos.Eraesbelta,airosa,olhosmeigosesubmissos;tinha25anoseparecianãopassarde19.Garcia,àsegundavezqueláfoi,percebeuqueentreeleshaviaalgumadissonânciadecaracteres,poucaounenhumaafinidademoral,edapartedamulherparacomomaridounsmodosquetranscendiamorespeitoeconfinavamnaresignaçãoenotemor.Umdia,estandoostrêsjuntos,perguntouGarciaaMariaLuísasetiveranotíciadascircunstânciasemqueeleconheceraomarido.

—Não—respondeuamoça.—Vaiouvirumaaçãobonita.—Nãovaleapena—interrompeuFortunato.—Asenhoravaiversevaleapena—insistiuomédico.Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada.

Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha eagradecida,comoseacabassededescobrir-lheocoração.Fortunatosacudiaosombros,masnãoouviacomindiferença.Nofimcontouelepróprioavisitaqueoferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavrasatadas,dossilêncios,emsuma,umestúrdio.Eriamuitoaocontá-la.Nãoeraorisodadobrez.Adobrezéevasivaeoblíqua;orisodeleerajovialefranco.

“Singularhomem!”,pensouGarcia.MariaLuísa ficoudesconsoladacomazombariadomarido;masomédico

restituiu-lheasatisfaçãoanterior,voltandoareferiradedicaçãodesteeassuasrarasqualidadesdeenfermeiro;tãobomenfermeiro,concluiuele,que,sealgumdiafundarumacasadesaúde,ireiconvidá-lo.

—Valeu?—perguntouFortunato.—Valeuoquê?—Vamosfundarumacasadesaúde?—Nãovaleunada;estoubrincando.—Podia-sefazeralgumacousa;eparaosenhor,quecomeçaaclínica,acho

queseriabembom.Tenhojustamenteumacasaquevaivagar,eserve.Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia tinha-se metido na

cabeçaaooutro,enãofoipossívelrecuarmais.Naverdade,eraumaboaestreiaparaele,epodiaviraserumbomnegócioparaambos.Aceitoufinalmente,daía

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dias,efoiumadesilusãoparaMariaLuísa.Criaturanervosaefrágil,padeciasócom a ideia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidadeshumanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se ecumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nementão, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe deenfermeiros,examinavatudo,ordenavatudo,comprasecaldos,drogasecontas.

GarciapôdeentãoobservarqueadedicaçãoaoferidodaruadeD.Manoelnãoeraumcasofortuito,masassentavanapróprianaturezadestehomem.Via-oservir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conheciamoléstiaaflitivaourepelente,eestavasempreprontoparatudo,aqualquerhorado dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava,acompanhavaasoperações,enenhumoutrocuravaoscáusticos.—Tenhomuitafénoscáusticos—diziaele.

Acomunhãodosinteressesapertouoslaçosdaintimidade.Garciatornou-sefamiliarnacasa;alijantavaquasetodososdias,aliobservavaapessoaeavidade Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lheduplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma cousa o agitava,quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto dajanela, ou tocava aopianoumasmúsicas tristes.Manso emanso, entrou-lheoamor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele eFortunatonãohouvesseoutrolaçoqueodaamizade;masnãopôde.Pôdeapenastrancá-lo;MariaLuísacompreendeuambasascousas,aafeiçãoeosilêncio,masnãosedeuporachada.

Nocomeçodeoutubrodeu-seum incidentequedesvendouaindamaisaosolhosdomédicoasituaçãodamoça.Fortunatometera-seaestudaranatomiaefisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães.Comoosguinchosdosanimaisatordoavamosdoentes,mudouolaboratórioparacasa, e amulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, nãopodendomais,foitercomomédicoepediu-lheque,comocousasua,alcançassedomaridoacessaçãodetaisexperiências.

—Masasenhoramesma...MariaLuísaacudiu,sorrindo:—Elenaturalmenteacharáquesoucriança.Oqueeuqueriaéqueosenhor,

comomédico,lhedissessequeissomefazmal;ecreiaquefaz...Garciaalcançouprontamentequeooutroacabassecom taisestudos.Seos

foifazeremoutraparte,ninguémosoube,maspodeserquesim.MariaLuísaagradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia verpadecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha algumacousa,elarespondeuquenada.

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—Deixeveropulso.—Nãotenhonada.Nãodeuopulso,eretirou-se.Garciaficouapreensivo.Cuidava,aocontrário,

queelapodiateralgumacousa,queeraprecisoobservá-laeavisaromaridoemtempo.

Dousdiasdepois—exatamenteodiaemqueosvemosagora—Garciafoilájantar.Nasaladisseram-lhequeFortunatoestavanogabinete,eelecaminhouparaali;iachegandoàporta,nomomentoemqueMariaLuísasaíaaflita.

—Queé?—perguntou-lhe.—Orato!orato!—exclamouamoçasufocadaeafastando-se.Garcia lembrou-se que, na véspera, ouvira ao Fortunato queixar-se de um

rato,quelhelevaraumpapelimportante;masestavalongedeesperaroqueviu.ViuFortunatosentadoàmesa,quehavianocentrodogabinete,esobreaqualpuseraumpratocomespíritodevinho.Olíquidoflamejava.Entreopolegareoíndicedamãoesquerdaseguravaumbarbante,decujapontapendiaoratoatadopelacauda.Nadireitatinhaumatesoura.NomomentoemqueoGarciaentrou,Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até achama,rápido,paranãomatá-lo,edispôs-seafazeromesmoàterceira,poisjálhehaviacortadoaprimeira.Garciaestacouhorrorizado.

—Mate-ologo!—disse-lhe.—Jávai.E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma cousa que

traduziaadelíciaíntimadassensaçõessupremas,Fortunatocortouaterceirapataao rato,e fezpela terceiravezomesmomovimentoatéachama.Omiserávelestorcia-se,guinchando,ensanguentado,chamuscado,enãoacabavademorrer.Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu amão paraimpedirqueosuplíciocontinuasse,masnãochegouafazê-lo,porqueodiabodohomem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia.Faltavacortaraúltimapata;Fortunatocortou-amuitodevagar,acompanhandoatesouracomosolhos;apatacaiu,eeleficouolhandoparaoratomeiocadáver.Aodescê-lopelaquartavez,atéachama,deuaindamaisrapidezaogesto,parasalvar,sepudesse,algunsfarraposdevida.

Garcia,defronte,conseguiadominararepugnânciadoespetáculoparafixaracara do homem.Nem raiva, nemódio; tão somente umvasto prazer, quieto eprofundo,comodariaaoutroaaudiçãodeumabelasonataouavistadeumaestátuadivina,algumacousaparecidacomapurasensaçãoestética.Pareceu-lhe,e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, nãoestariafingindo,edeviaseraquilomesmo.Achamaiamorrendo,oratopodiaser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato

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aproveitou-oparacortar-lheofocinhoepelaúltimavezchegaracarneaofogo.Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura dechamuscoesangue.

Aolevantar-sedeucomomédicoeteveumsobressalto.Então,mostrou-seenraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cóleraevidentementeerafingida.

“Castiga sem raiva”, pensou o médico, “pela necessidade de achar umasensaçãodeprazer,quesóadoralheialhepodedar:éosegredodestehomem.”

Fortunatoencareceuaimportânciadopapel,aperdaquelhetrazia,perdadetempo,écerto,masotempoagoraera-lhepreciosíssimo.Garciaouviasó,semdizernada,nemlhedarcrédito.Relembravaosatosdele,graveseleves,achavaamesmaexplicaçãoparatodos.Eraamesmatrocadas teclasdasensibilidade,umdiletantismosuigeneris,umareduçãodeCalígula.

QuandoMariaLuísavoltouaogabinete,daíapouco,omaridofoi tercomela,rindo,pegou-lhenasmãosefalou-lhemansamente:

—Fracalhona!Evoltando-separaomédico:—Hádecrerquequasedesmaiou?MariaLuísadefendeu-seamedo,dissequeeranervosaemulher;depoisfoi

sentar-seàjanelacomassuaslãseagulhas,eosdedosaindatrêmulos,talqualavimosnocomeçodestahistória.Hãodelembrar-seque,depoisdeteremfaladodeoutrascousas,ficaramcaladosostrês,omaridosentadoeolhandoparaoteto,omédico estalando asunhas.Poucodepois foram jantar;maso jantar não foialegre.MariaLuísacismavaetossia;omédicoindagavadesimesmoseelanãoestaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenaspossível;mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela ecuidoudeosvigiar.

Elatossia,tossia,enãosepassoumuitotempoqueamoléstianãotirasseamáscara.Eraa tísica,velhadama insaciável,quechupaavida toda,atédeixarumbagaçodeossos.Fortunatorecebeuanotíciacomoumgolpe;amavadeverasamulher, a seumodo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Nãopoupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos ospaliativos.Masfoitudovão.Adoençaeramortal.

Nosúltimosdias,empresençadostormentossupremosdamoça,aíndoledomaridosubjugouqualqueroutraafeição.Nãoadeixoumais;fitouoolhobaçoefrionaqueladecomposiçãolentaedolorosadavida,bebeuumaaumaasafliçõesda bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada demorte.Egoísmoaspérrimo,famintodesensações,nãolheperdoouumsóminutodeagonia,nemlhospagoucomumasólágrima,públicaouíntima.Sóquando

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elaexpirou,équeeleficouaturdido.Voltandoasi,viuqueestavaoutravezsó.Denoite,indorepousarumaparentadeMariaLuísa,queaajudaraamorrer,

ficaramnasalaFortunatoeGarcia,velandoocadáver,ambospensativos;masoprópriomaridoestavafatigado,omédicodisse-lhequerepousasseumpouco.

—Vádescansar,passepelosonoumahoraouduas:euireidepois.Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo.

Vinteminutosdepoisacordou,quisdormiroutravez,cochiloualgunsminutos,até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para nãoacordaraparenta,quedormiaperto.Chegandoàporta,estacouassombrado.

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara poralguns instantes as feições defuntas. Depois, como se amorte espiritualizassetudo,inclinou-seebeijou-anatesta.FoinessemomentoqueFortunatochegouàporta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser oepílogodeumlivroadúltero.Nãotinhaciúmes,note-se;anaturezacompô-lodemaneira que lhe nãodeu ciúmesnem inveja,mas dera-lhe vaidade, quenão émenoscativaaoressentimento.Olhouassombrado,mordendoosbeiços.

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver, masentão não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderamconter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, eirremediáveldesespero.Fortunato,àporta,ondeficara,saboreoutranquiloessaexplosãodedormoralquefoilonga,muitolonga,deliciosamentelonga.

GazetadeNotícias,1odeagostode1885;MachadodeAssis.

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Unsbraços

Inácioestremeceu,ouvindoosgritosdosolicitador,recebeuopratoqueeste

lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes,malandro,cabeçadevento,estúpido,maluco.

—Ondeandaquenuncaouveoquelhedigo?Heidecontartudoaseupai,paraquelhesacudaapreguiçadocorpocomumaboavarademarmelo,ouumpau;sim,aindapodeapanhar,nãopensequenão.Estúpido!maluco!

—Olhequeláforaéistomesmoquevocêvêaqui—continuou,voltando-separad.Severina,senhoraqueviviacomelemaritalmente,háanos.—Confunde-meospapéistodos,erraascasas,vaiaumescrivãoemvezdeiraoutro,trocaosadvogados:éodiabo!Éotalsonopesadoecontínuo.Demanhãéoquesevê;primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei deacordá-loapaudevassoura!

D.Severinatocou-lhenopé,comopedindoqueacabasse.Borgesespeitorouaindaalgunsimpropérios,eficouempazcomDeuseoshomens.

Nãodigoqueficouempazcomosmeninos,porqueonossoInácionãoerapropriamentemenino. Tinha 15 anos feitos e bem-feitos. Cabeça inculta,masbela,olhosderapazquesonha,queadivinha,queindaga,quequersaberenãoacabade sabernada.Tudo issoposto sobreumcorponãodestituídodegraça,ainda que malvestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente,escrevente,ouquequerqueera,dosolicitadorBorges,comesperançadevê-lono foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito.Passava-seistonaruadaLapa,em1870.

Durantealgunsminutosnãoseouviumaisqueotinirdostalhereseoruídoda mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se paravirgularaoraçãocomumgolpedevinhoecontinuavalogocalado.

Inácioiacomendodevagarinho,nãoousandolevantarosolhosdoprato,nempara colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges odescompôs.Verdadeéqueseriaagoramuitoarriscado.Nuncaelepôsosolhosnosbraçosded.Severinaquesenãoesquecessedesiedetudo.

Também a culpa era antes de d. Severina em trazê-los assim nus,constantemente.Usavamangascurtasemtodososvestidosdecasa,meiopalmoabaixodoombro; dali emdiante ficavam-lheos braços àmostra.Naverdade,

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erambelosecheios,emharmoniacomadona,queeraantesgrossaquefina,enãoperdiamacornemamaciezporviveremaoar;maséjustoexplicarqueelaos não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos demangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneiosengraçados;ele,entretanto,quasequesóaviaàmesa,onde,alémdosbraços,malpoderiamirar-lheobusto.Nãosepodedizerqueerabonita;mas tambémnãoerafeia.Nenhumadorno;oprópriopenteadoconstademuipouco;alisouoscabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente detartarugaqueamãelhedeixou.Aopescoço,umlençoescuro;nasorelhas,nada.Tudoissocom27anosfloridosesólidos.

Acabaramdejantar.Borges,vindoocafé,tirouquatrocharutosdaalgibeira,comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes.Acesoocharuto,fincouoscotovelosnamesaefalouad.SeverinadetrintamilcousasquenãointeressavamnadaaonossoInácio;mas,enquantofalava,nãoodescompunhaeelepodiadevanearàlarga.

Inácio demorou o café omais que pôde. Entre um e outro gole, alisava atoalha,arrancavadosdedospedacinhosdepeleimaginários,oupassavaosolhospelos quadros da sala de jantar, que eram dous, um s. Pedro e um s. João,registros trazidosdefestaseencaixilhadosemcasa.Váquedisfarçassecoms.João, cuja cabeçamoça alegra as imaginações católicas;mas como austero s.Pedroerademais.AúnicadefesadomoçoInácioéqueelenãovianemumnemoutro;passavaosolhosporalicomopornada.Viasóosbraçosded. Severina—ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com elesimpressosnamemória.

—Homem,vocênãoacabamais?—bradouderepenteosolicitador.Nãohaviaremédio;Ináciobebeuaúltimagota,jáfria,eretirou-se,comode

costume,paraoseuquarto,nosfundosdacasa.Entrando,fezumgestodezangaedesesperoe foidepoisencostar-seaumadasduas janelasquedavamparaomar.Cincominutosdepois,avistadaságuaspróximasedasmontanhasaolongerestituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem,alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinhavontadedeiremboraedeficar.Haviacincosemanasquealimorava,eavidaera sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências ecartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aosoficiaisdejustiça.Voltavaàtarde,jantavaerecolhia-seaoquarto,atéahoradaceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que secompunhaapenasded.Severina,nemInácioaviamaisde trêsvezespordia,duranteasrefeições.Cincosemanasdesolidão,detrabalhosemgosto,longedamãeedasirmãs;cincosemanasdesilêncio,porqueelesófalavaumaououtra

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veznarua;emcasa,nada.“Deixeestar”,pensouele,“umdia,fujodaquienãovoltomais.”Nãofoi;sentiu-seagarradoeacorrentadopelosbraçosded.Severina.Nunca

vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitiaencará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos,vexado.Encarou-ospoucoapouco,aoverqueelesnãotinhamoutrasmangas,eassimosfoidescobrindo,mirandoeamando.Nofimdetrêssemanaserameles,moralmentefalando,assuastendasderepouso.Aguentavatodaatrabalheiradefora,todaamelancoliadasolidãoedosilêncio,todaagrosseriadopatrão,pelaúnicapagadever,trêsvezespordia,ofamosopardebraços.

Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (nãotinhaalioutracama),d.Severina,nasaladafrente,recapitulavaoepisódiodojantare,pelaprimeiravez,desconfioualgumacousa.Rejeitouaideialogo,umacriança!Masháideiasquesãodafamíliadasmoscasteimosas:pormaisqueagenteassacuda,elas tornamepousam.Criança?Tinha15anos;eelaadvertiuqueentreonarizeabocadorapazhaviaumprincípioderascunhodebuço.Queadmira que começasse a amar?E não era ela bonita?Esta outra ideia não foirejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, osesquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eramsintomas,econcluiuquesim.

—Que é que você tem?—disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, aocabodealgunsminutosdepausa.

—Nãotenhonada.—Nada?Parecequecáemcasaandatudodormindo!Deixemestar,queeu

seideumbomremédioparatirarosonoaosdorminhocos...E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente

incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severinainterrompia-oquenão,queeraengano,nãoestavadormindo,estavapensandonacomadreFortunata.Não a visitavamdesde oNatal; por que não iriam lá umadaquelas noites? Borges redarguia que andava cansado, trabalhava como umnegro,nãoestavaparavisitasdeparola;edescompôsacomadre,descompôsocompadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele,Borges, comdez anos, já sabia ler, escrever e contar, nãomuitobem, é certo,massabia.Dezanos!Haviadeterumbonitofim:—vadio,eocôvadoemeionascostas.Atarimbaéqueviriaensiná-lo.

D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, ocaiporismodocompadre,efazia-lhecarinhos,amedo,queelespodiamirritá-lomais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, queacabavamdeacender,eviuoclarãodelenasjanelasdacasafronteira.Borges,

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cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foifechandoosolhosepegandonosono,edeixou-asónasala,àsescuras,consigoecomadescobertaqueacabadefazer.

Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita aimpressãodoassombro,trouxe-lheumacomplicaçãomoral,queelasóconheceupelosefeitos,nãoachandomeiodediscerniroqueera.Nãopodiaentender-senem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele quemandasse embora o fedelho.Mas que era tudo?Aqui estacou: realmente, nãohaviamaisquesuposição,coincidênciaepossivelmenteilusão.Não,não,ilusãonão era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, oacanhamento,asdistrações,pararejeitaraideiadeestarenganada.Daíapouco(capciosanatureza!),refletindoqueseriamauacusá-losemfundamento,admitiuque se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem arealidadedascousas.

Jánessanoite,d.SeverinamiravaporbaixodosolhososgestosdeInácio;não chegou a achar nada, porqueo tempodo chá era curto e o rapazinhonãotirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observarmelhor, e nos outrosotimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente evirgem,retidopelos liamessociaiseporumsentimentode inferioridadequeoimpediadereconhecer-seasimesmo.D.Severinacompreendeuquenãohaviarecear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada aosolicitador; poupava-lheumdesgosto, e outro àpobre criança. Já sepersuadiabemqueeleeracriança,eassentoudeo tratar tãosecamentecomoatéali,ouaindamais.Eassimfez;Ináciocomeçouasentirqueelafugiacomosolhos,oufalava áspero, quase tanto comoopróprioBorges.Deoutras vezes, é verdadequeo tomdavoz saíabrandoe atémeigo,muitomeigo; assimcomooolhar,geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinhapousarnacabeçadele;mastudoissoeracurto.

—Vou-meembora—repetiaelenaruacomonosprimeirosdias.Chegavaacasaenãoseiaembora.Osbraçosded.Severinafechavam-lhe

umparêntesenomeiodolongoefastidiosoperíododavidaquelevava,eessaoração intercalada trazia uma ideia original e profunda, inventada pelo céuunicamenteparaele.Deixava-seestareiaandando.Afinal,porém,tevedesair,eparanuncamais;eisaquicomoeporquê.

D.Severina tratava-odesdealgunsdiascombenignidade.Arudezadavozpareciaacabada,ehaviamaisdoquebrandura,haviadesveloecarinho.Umdiarecomendava-lhequenãoapanhassear,outroquenãobebesseáguafriadepoisdo café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhelançaramnaalmaaindamaiorinquietaçãoeconfusão.Ináciochegouaoextremo

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deconfiançaderirumdiaàmesa,cousaquejamaisfizera;eosolicitadornãootratoumaldessavez,porqueeraelequecontavaumcasoengraçado,eninguémpuneaoutropeloaplausoquerecebe.Foientãoqued.Severinaviuqueabocadomocinho,graciosaestandocalada,nãooeramenosquandoria.

A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nementender-se.Não estavabememparte nenhuma.Acordavadenoite, pensandoemd.Severina.Na rua, trocavade esquinas, errava asportas,muitomaisquedantes,enãoviamulher,aolongeouaoperto,quelhanãotrouxesseàmemória.Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algumalvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhandoatravésdasgradesdepaudacancela,comotendoacudidoaverquemera.

Umdomingo—nuncaeleesqueceuessedomingo—estavasónoquarto,àjanela,viradoparaomar,quelhefalavaamesmalinguagemobscuraenovaded.Severina.Divertia-seemolharparaasgaivotas,quefaziamgrandesgirosnoar, ou pairavam em cima d’água, ou avoaçavam somente. O dia estavalindíssimo.Nãoerasóumdomingocristão;eraumimensodomingouniversal.

Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos trêsfolhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão,debaixo do passadiço do largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estavacansado,dormiramalanoite,depoisdehaverandadomuitonavéspera;estirou-senarede,pegouemumdosfolhetos,aPrincesaMagalona,ecomeçoua ler.Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas históriastinhamamesmacaraetalheded.Severina,masaverdadeéqueostinham.Aocabodemeiahora,deixoucairofolhetoepôsosolhosnaparede,donde,cincominutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que seespantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas, viu-adesprender-sedetodo,parar,sorrireandarparaarede.Eraelamesma;eramosseusmesmosbraços.

É certo, porém, que d. Severina, tanto não podia sair da parede, dado quehouvessealiportaourasgão,queestavajustamentenasaladafrenteouvindoospassosdo solicitadorquedescia as escadas.Ouviu-odescer; foi à janelavê-losair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da rua dasMangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural,inquieta,quasemaluca;levantando-se,foipegarnajarraqueestavaemcimadoaparadoredeixou-anomesmolugar;depoiscaminhouatéàporta,deteve-seevoltou,aoqueparece,semplano.Sentou-seoutravez,cincooudezminutos.Derepente,lembrou-sequeInáciocomerapoucoaoalmoçoetinhaoarabatido,eadvertiuquepodiaestardoente;podiaseratéqueestivessemuitomal.

Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do

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mocinho,cujaportaachouescancarada.D.Severinaparou,espiou,deucomelenarede,dormindo,comobraçoparaforaeofolhetocaídonochão.Acabeçainclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, oscabelosrevoltoseumgrandearderisoedebeatitude.

D.Severinasentiubater-lheocoraçãocomveemênciaerecuou.Sonharadenoitecomele;podeserqueeleestivessesonhandocomela.Desdemadrugadaque a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos, como uma tentaçãodiabólica.Recuouainda,depoisvoltou,olhoudous,três,cincominutos,oumais.ParecequeosonodavaàadolescênciadeInácioumaexpressãomaisacentuada,quasefeminina,quasepueril.—Umacriança!—disseelaasimesma,naquelalíngua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta ideia abateu-lhe oalvoroçodosangueedissipou-lheemparteaturvaçãodossentidos.

—Umacriança!Emirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço

caído;mas,aomesmotempoqueoachavacriança,achava-obonito,muitomaisbonito que acordado, e uma dessas ideias corrigia ou corrompia a outra. Derepente, estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta doengomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltandodevagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro acriança!Orumorqueaabalaratantonãoofezsequermudardeposição.Eelacontinuouavê-lodormir—dormiretalvezsonhar.

Quenãopossamosverossonhosunsdosoutros!D.Severinater-se-iavistoasi mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha eparada;depoisinclinar-se,pegar-lhenasmãos,levá-lasaopeito,cruzandoaliosbraços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia aspalavrasdela,queeramlindas,cálidas,principalmentenovas—ou,pelomenos,pertenciamaalgumidiomaqueelenãoconhecia,postoqueoentendesse.Duas,trêsequatrovezesafiguraesvaía-se,paratornarlogo,vindodomaroudeoutraparte, entregaivotas, ou atravessandoo corredor, com toda agraça robustadeque era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos ecruzava ao peito os braços, até que, inclinando-se, ainda mais, muito mais,abrochouoslábiosedeixou-lheumbeijonaboca.

Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e asmesmas bocas uniram-se naimaginaçãoeforadela.Adiferençaéqueavisãonãorecuou,eapessoarealtãodepressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dalipassouàsaladafrente,aturdidadoquefizera,semolharfixamenteparanada.Afiavaoouvido,iaatéofimdocorredor,averseescutavaalgumrumorquelhedissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foipassando.Naverdade,acriançatinhaosonoduro;nadalheabriaosolhos,nem

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osfracassoscontíguos,nemosbeijosdeverdade.Mas,seomedofoipassando,ovexameficouecresceu.D.Severinanãoacabavadecrerquefizesseaquilo;parecequeembrulharaosseusdesejosnaideiadequeeraumacriançanamoradaque ali estava sem consciência nem imputação; e, meio mãe, meio amiga,inclinara-se ebeijara-o.Fossecomo fosse, estavaconfusa, irritada, aborrecida,malconsigoemalcomele.Omedodequeelepodiaestarfingindoquedormiaapontou-lhenaalmaedeu-lheumcalefrio.

Masaverdadeéquedormiuaindamuito,esóacordouparajantar.Sentou-seàmesalépido.Conquantoachassed.Severinacaladaeseveraeosolicitadortãoríspidocomonosoutrosdias,nemarispidezdeum,nemaseveridadedaoutrapodiamdissipar-lheavisãograciosaqueaindatraziaconsigo,ouamortecer-lheasensaçãodobeijo.Nãoreparouqued.Severinatinhaumxalequelhecobriaosbraços; reparoudepois,na segunda-feira, ena terça-feira, também,até sábado,quefoiodiaemqueBorgesmandoudizeraopaiquenãopodiaficarcomele;enãoofezzangado,porqueotratourelativamentebemeaindalhedisseàsaída:

—Quandoprecisardemimparaalgumacousa,procure-me.—Sim,senhor.Asra.donaSeverina...—Estáláparaoquarto,commuitadordecabeça.Venhaamanhãoudepois

despedir-sedela.Inácio saiu sementendernada.Não entendia adespedida, nema completa

mudança de d. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tãobem!falava-lhecomtantaamizade!Comoéque,derepente...Tantopensouqueacabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que aofendera; não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria osbraços tãobonitos...Não importa; levava consigoo sabordo sonho.E atravésdosanos,pormeiodeoutrosamores,maisefetivoselongos,nenhumasensaçãoachoununcaigualàdaqueledomingo,naruadaLapa,quandoeletinhaquinzeanos.Elemesmoexclamaàsvezes,semsaberqueseengana:

—Efoiumsonho!umsimplessonho!GazetadeNotícias,5denovembrode1885;MachadodeAssis.

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Entresantos

Quandoeu era capelãode s.FranciscodePaula (contavaumpadrevelho)

aconteceu-meumaaventuraextraordinária.Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nuncame recolhi

tardequenãofosseverprimeiroseasportasdotemploestavambemfechadas.Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado àprocura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber quefizesse.Aluz,semsermuitointensa,era-odemaisparaladrões;alémdissonoteiqueerafixaeigual,nãoandavadeumladoparaoutro,comoseriaadasvelasoulanternasdepessoasqueestivessemroubando.Omistérioarrastou-me;fuiacasabuscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha idopassar a noite emNiterói),benzi-meprimeiro,abriaportaeentrei.

O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhavadevagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e asegunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se amesmaluze,porventura,maisintensaquedoladodarua.Fuiandando,atéquedeicomaterceiraportaaberta.Pusaumcantoalanterna,comomeulençoporcima,paraquemenãovissemdedentro,eaproximei-meaespiaroqueera.

Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramentedesarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja semmais defesaqueasduasmãos.Correramaindaalgunsminutos.Naigrejaaluzeraamesma,igualegeral,edeumacordeleitequenãotinhaaluzdasvelas.Ouvitambémvozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, masregulares,clarasetranquilas,àmaneiradeconversação.Nãopudeentenderlogooquediziam.Nomeiodisto, assaltou-meuma ideiaqueme fez recuar.Comonaquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que aconversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algumtempo,équepudereagirechegaroutravezàporta,dizendoamimmesmoquesemelhanteideiaeraumdisparate.Arealidadeiadar-mecousamaisassombrosaque um diálogo demortos. Encomendei-me aDeus, benzi-me outra vez e fuiandando,sorrateiramente,encostadinhoàparede,atéentrar.Vientãoumacousaextraordinária.

Dousdos três santos dooutro lado, s. José e s.Miguel (à direita de quem

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entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavamsentadosnosseusaltares.Asdimensõesnãoeramasdasprópriasimagens,masdehomens.Falavamparaoladodecá,ondeestãoosaltaresdes.JoãoBatistaes.FranciscodeSales.Nãopossodescreveroque senti.Durantealgum tempo,que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nempara trás, arrepiado etrêmulo.Comcerteza, andeibeirandoo abismoda loucura, enãocaínelepormisericórdia divina. Que perdi a consciência de mimmesmo e de toda outrarealidadequenãofosseaquela,tãonovaetãoúnica,possoafirmá-lo;sóassimseexplicaatemeridadecomque,daliaalgumtempo,entreimaispelaigreja,afimdeolhartambémparaoladooposto.Viaíamesmacousa:s.FranciscodeSalese s. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outrossantos.

Tinha sido tal aminha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu,sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri apercepção delas e pude compreender que não tinham interrompido aconversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colherdesde logoosentido.Umdossantos, falandoparao ladodoaltar-mor, fez-mevoltaracabeça,evientãoques.FranciscodePaula,ooragodaigreja,fizeraamesmacousaqueosoutrose falavaparaeles, comoeles falavamentre si.Asvozesnãosubiamdotommédioe,contudo,ouviam-sebem,comoseasondassonorastivessemrecebidoumpodermaiordetransmissão.Mas,setudoissoeraespantoso,nãomenosoeraa luz,quenãovinhadepartenenhuma,porqueoslustresecastiçaisestavamtodosapagados;eracomoumluar,quealipenetrasse,semqueosolhospudessemveralua;comparaçãotantomaisexataquantoque,sefosserealmenteluar,teriadeixadoalgunslugaresescuros,comoaliacontecia,efoinumdessesrecantosquemerefugiei.

Jáentãoprocediaautomaticamente.Avidaquevividuranteessetempotodonãosepareceucomaoutravidaanterioreposterior.Bastaconsiderarque,diantede tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente semmedo; perdi a reflexão,apenassabiaouvirecontemplar.

Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam ecomentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava algumacousa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dosfiéis,edesfibravamossentimentosdecadaum,comoosanatomistasescalpelamumcadáver.S.JoãoBatistaes.FranciscodePaula,durosascetas,mostravam-seàsvezesenfadadoseabsolutos.Nãoeraassims.FranciscodeSales;esseouviaou contava as cousas com a mesma indulgência que presidira ao seu famosolivrodaIntroduçãoàvidadevota.

Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e

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comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros deindiferença,dissimulaçãoeversatilidade;osdousascetasestavamamaisemaisanojados,mass.FranciscodeSalesrecordava-lhesotextodaEscritura:muitossãooschamadosepoucososescolhidos,significandoassimquenemtodososquealiiamàigrejalevavamocoraçãopuro.S.Joãoabanavaacabeça.

—FranciscodeSales,digo-tequevoucriandoumsentimentosingularemsanto:começoadescrerdoshomens.

—Exagerastudo,JoãoBatista—atalhouosantobispo—,nãoexageremosnada.Olha,aindahojeaconteceuaquiumacousaquemefezsorrir,epodeser,entretanto,queteindignasse.Oshomensnãosãopioresdoqueeramemoutrosséculos;descontemosoquehánelesruim,eficarámuitacousaboa.Crêistoehásdesorrirouvindoomeucaso.

—Eu?—Tu,JoãoBatista,etutambém,FranciscodePaula,etodosvóshaveisde

sorrircomigo;e,pelaminhaparte,possofazê-lo,poisjáintercediealcanceidoSenhoraquilomesmoquemeveiopedirestapessoa.

—Quepessoa?—Umapessoamaisinteressantequeoteuescrivão,José,equeoteulojista,

Miguel...—Podeser—atalhous.José—,masnãohádesermaisinteressantequea

adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhelimpasseocoraçãodalepradaluxúria.Brigaraontemmesmocomonamorado,queainjurioutorpemente,epassouanoiteemlágrimas.Demanhã,determinouabandoná-loeveiobuscaraquiaforçaprecisaparasairdasgarrasdodemônio.Começourezandobem,cordialmente;maspoucoapoucoviqueopensamentoaia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras, paralelamente,iamficandosemvida.Jáaoraçãoeramorna,depoisfria,depoisinconsciente;oslábios,afeitosàreza,iamrezando;masaalma,queeuespiavacádecima,essajánãoestavaaqui,estavacomooutro.Afinalpersignou-se, levantou-seesaiusempedirnada.

—Melhoréomeucaso.—Melhorqueisto?—perguntous.Josécurioso.—Muitomelhor—respondeus.FranciscodeSales—,enãoétristecomo

odessa pobre alma ferida domal da terra, que a graça doSenhor ainda podesalvar.Eporquenãosalvarátambémaestaoutra?Lávaioqueé.

Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando.Aqui fiqueicommedo; lembrou-mequeeles,queveemtudooquesepassano interiordagente,comose fôssemosdevidro,pensamentos recônditos, intenções torcidas,ódiossecretos,bempodiamter-melidojáalgumpecadoougérmendepecado.

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Masnãotivetempoderefletirmuito;s.FranciscodeSalescomeçouafalar.— Tem cinquenta anos o meu homem— disse ele—; a mulher está de

cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflitoporque omal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, atéondepodeirumpreconceitopúblico.NinguémacreditanadordoSales(eletemomeunome),ninguémacreditaqueeleameoutracousaquenãosejadinheiro,elogoquehouvenotíciadasuaaflição,desabouemtodoobairroumaguaceirodemotesedichotes;nemfaltouquemacreditassequeelegemiaantecipadamentepelosgastosdasepultura.

—Bempodiaserquesim—ponderous.João.—Mas não era.Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a

vida, e avaro, como amorte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente daalgibeiradosoutrosoouro,aprata,opapeleocobre;ninguémosamuoucommaiszeloeprontidão.Moedaquelhecainamãodificilmentetornaasair;etudooque lhe sobradascasasmoradentrodeumarmáriode ferro, fechadoa setechaves.Abre-oàsvezes,porhorasmortas,contemplaodinheiroalgunsminutos,efecha-ooutravezdepressa;masnessasnoitesnãodorme,oudormemal.Nãotemfilhos.Avidaque levaésórdida;comeparanãomorrer,poucoe ruim.Afamíliacompõe-sedamulheredeumapretaescrava,compradacomoutra,hámuitosanos,eàsescondidas,porseremdecontrabando.Dizematéquenemaspagou, porqueovendedor faleceu logo semdeixar nada escrito.Aoutra pretamorreu há pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio daeconomia;Saleslibertouocadáver...

Eosantobispocalou-separasaborearoespantodosoutros.—Ocadáver?—Sim,ocadáver.Fezenterraraescravacomopessoalivreemiserável,para

nãoacudiràsdespesasdasepultura.Poucoembora,eraalgumacousa.Eparaelenãohápouco;compingosd’águaéquesealagamas ruas.Nenhumdesejoderepresentação,nenhumgostonobiliário;tudoissocustadinheiro,eeledizqueodinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família.Ouveecontaanedotasdavidaalheia,queéregalogratuito.

—Compreende-seaincredulidadepública—ponderous.Miguel.—Nãodigoquenão,porqueomundonãovaialémdasuperfíciedascousas.

O mundo não vê que, além de caseira eminente, educada por ele, e suaconfidente demais de vinte anos, amulher deste Sales é amada deveras pelomarido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flordescoradaesemcheiro,masflor.Abotânicasentimentaltemdessasanomalias.Salesamaaesposa;estáabatidoedesvairadocomaideiadeaperder.Hojedemanhã,muitocedo,nãotendodormidomaisdeduashoras,entrouacogitarno

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desastrepróximo.Desesperandodaterra,voltou-separaDeus;pensouemnós,eespecialmenteemmimquesouosantodoseunome.Sóummilagrepodiasalvá-la; determinou vir aqui.Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia oolharbrilhanteeesperançado;podiaseraluzdafé,maseraoutracousamuitoparticular,quevoudizer.Aquipeço-vosqueredobreisdeatenção.

Viosbustosinclinarem-seaindamais;eupróprionãopudeesquivar-meaomovimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa emiúda,aanálisetãocomplicada,quenãoasponhoaquiintegralmente,masemsubstância.

—Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa,Salesteveumaideiaespecíficadeusurário,adeprometer-meumapernadecera.Não foiocrente,que simbolizadestamaneiraa lembrançadobenefício; foiousurárioquepensouemforçaragraçadivinapelaexpectaçãodolucro.Enãofoisóausuraquefalou,mastambémaavareza;porqueemverdade,dispondo-seàpromessa,mostravaelequererdeverasavidadamulher—intuiçãodeavaro—;despenderédocumentar: só sequerdecoraçãoaquiloque sepagaadinheiro,disse-lho a consciência pelamesma boca escura. Sabeis que pensamentos taisnão se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam napenumbradaconsciência.Maseulitudonelelogoqueaquientroualvoroçado,comoolharfúlgidodeesperança;litudoeespereiqueacabassedebenzer-seerezar.

—Aomenos,temalgumareligião—ponderous.José.—Algumatem,masvagaeeconômica.Nãoentroununcaemirmandadese

ordensterceiras,porquenelasseroubaoquepertenceaoSenhor;éoqueeledizparaconciliaradevoçãocomaalgibeira.Masnãosepodetertudo;écertoqueeletemeaDeusecrênadoutrina.

—Bem,ajoelhou-seerezou.— Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras,

conquantoaesperançacomeçasseatrocar-seemcertezaintuitiva.Deustinhadesalvaradoente,porforça,graçasàminhaintervenção,eeuiainterceder;éoqueele pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando aoração, ficou Sales algum tempo olhando, com asmãos postas; afinal falou abocadohomem,falouparaconfessarador,parajurarquenenhumaoutramão,alémdadoSenhor,podia atalharogolpe.Amulher iamorrer... iamorrer... iamorrer... E repetia a palavra, sem sair dela.Amulher iamorrer.Não passavaadiante.Prestesaformularopedidoeapromessanãoachavapalavrasidôneas,nem aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era odescostumededaralgumacousa.Afinalsaiuopedido;amulheriamorrer,elerogava-mequeasalvasse,quepedisseporelaaoSenhor.Apromessa,porém,é

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que não acabava de sair. Nomomento em que a boca ia articular a primeirapalavra,agarradaavarezamordia-lheasentranhasenãodeixavasairnada.Queasalvasse...queintercedesseporela...

Noar,diantedosolhos,recortava-se-lheapernadecera,elogoamoedaqueelahaviadecustar.Apernadesapareceu,masficouamoeda, redonda, luzidia,amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meualtar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda,girando,girando,girando.Eosolhosaapalpavam,delonge,etransmitiam-lheasensaçãofriadometaleatéadorelevodocunho.Eraelamesma,velhaamigade longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar,girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava noaltar,indodaEpístolaaoEvangelho,outilintavanospingentesdolustre.

Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas epuramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, dehumilhação,dedesamparo;eabocaiadizendoalgumascousassoltas—Deus—os anjosdoSenhor—asbentas chagas—palavras lacrimosas e trêmulas,como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só apromessadapernaéquenãosaía.Àsvezes,aalma,comopessoaquerecolheasforças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher erebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo,quandoiaadarosalto,recuava.Amoedaemergiadeleeapromessaficavanocoraçãodohomem.

O tempo ia passando.A alucinação crescia, porque amoeda, acelerando emultiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidadedelas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que amulher podia estar expirando gelou o sangue ao pobre homem e ele quisprecipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que intercedesse por ela, que asalvasse...

Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca deespécie,dizendo-lhequeovalordaoraçãoera superfinoemuitomaisexcelsoqueodasobrasterrenas.EoSales,curvo,contrito,comasmãospostas,oolharsubmisso,desamparado,resignado,pedia-mequelhesalvasseamulher.Quelhesalvasse amulher, e prometia-me trezentos— nãomenos— trezentos padre-nossosetrezentasave-marias.Erepetiaenfático:trezentos,trezentas,trezentos...Foisubindo,chegouaquinhentos,amilpadre-nossosemilave-marias.Nãoviaesta soma escrita por letras do alfabeto, mas em algarismos, como se ficasseassimmaisviva,mais exata, e aobrigaçãomaior, emaior tambéma sedução.Milpadre-nossos,milave-marias.Evoltaramaspalavraslacrimosasetrêmulas,as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1.000— 1. 000— 1.000. Os quatro

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algarismosforamcrescendotanto,queencheramaigrejadealtoabaixo,ecomeles,cresciaoesforçodohomem,eaconfiançatambém;apalavrasaía-lhemaisrápida,impetuosa,jáfalada,mil,mil,mil,mil...Vamoslá,podeisriràvontade,concluius.FranciscodeSales.

Eosoutrossantosriramefetivamente,nãodaquelegranderisodescompostodosdeusesdeHomero,quandoviramocoxoVulcanoserviràmesa,masdeumrisomodesto,tranquilo,beatoecatólico.

Depois,nãopudeouvirmaisnada.Caíredondamentenochão.Quandodeipormim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e dasacristia,paradeixarentrarosol,inimigodosmaussonhos.

GazetadeNotícias,1ºdejaneirode1886;MachadodeAssis.

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Trioemlámenor

i

AdagiocantabileMariaReginaacompanhouaavóatéoquarto,despediu-seerecolheu-seao

seu.Amucamaqueaservia,apesardafamiliaridadequeexistiaentreelas,nãopôde arrancar-lhe umapalavra, e saiu,meia hora depois, dizendo queNhanhãestavamuitoséria.Logoque ficousó,MariaReginasentou-seaopédacama,comaspernasestendidas,ospéscruzados,pensando.

A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em doushomens ao mesmo tempo. Um de 27 anos, Maciel — outro de cinquenta,Miranda. Convenho que é abominável, mas não posso alterar a feição dascousas,nãopossonegarqueseosdoushomensestãonamoradosdela,elanãooestá menos de ambos. Uma esquisita, em suma; ou, para falar como as suasamigasdecolégio,umadesmiolada.Ninguémlhenegacoraçãoexcelenteeclaroespírito;mas a imaginação é que é omal, uma imaginação adusta e cobiçosa,insaciável principalmente, avessa à realidade, sobrepondo às cousas da vidaoutrasdesimesma;daícuriosidadesirremediáveis.

Avisitadosdoushomens(queanamoravamdepouco)duroucercadeumahora.MariaReginaconversoualegrementecomeles,etocouaopianoumapeçaclássica, uma sonata, que fez a avó cochilar um pouco. No fim discutirammúsica.Mirandadissecousaspertinentesacercadamúsicamodernaeantiga;aavó tinha a religião deBellini e daNorma, e falou das toadas do seu tempo,agradáveis, saudosas e principalmente claras. A neta ia com as opiniões doMiranda;Macielconcordoupolidamentecomtodos.

Ao pé da cama, Maria Regina reconstruía agora tudo isso, a visita, aconversação,amúsica,odebate,osmodosdeserdeumedeoutro,aspalavrasdoMirandaeosbelosolhosdoMaciel.Eramonzehoras,aúnicaluzdoquartoeraalamparina,tudoconvidavaaosonhoeaodevaneio.MariaRegina,àforça

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derecomporanoite,viualidoushomensaopédela,ouviu-os,econversoucomelesduranteumaporçãodeminutos,trintaouquarenta,aosomdamesmasonatatocadaporela:lá,lá,lá...

ii

AllegromanontroppoNodiaseguinteaavóeanetaforamvisitarumaamiganaTijuca.Navoltaa

carruagem derribou ummenino que atravessava a rua, correndo. Uma pessoaqueviuistoatirou-seaoscavalos,e,comperigodesiprópria,conseguiudetê-losesalvaracriança,queapenasficouferidaedesmaiada.Gente,tumulto,amãedopequeno acudiu em lágrimas.Maria Regina desceu do carro e acompanhou oferidoatéàcasadamãe,queeraaliaopé.

Quemconheceatécnicadodestinoadivinhalogoqueapessoaquesalvouopequenofoiumdosdoushomensdaoutranoite;foioMaciel.Feitooprimeirocurativo,oMacielacompanhouamoçaatéàcarruagemeaceitouolugarqueaavólheofereceuatéàcidade.EstavamnoEngenhoVelho.NacarruageméqueMaria Regina viu que o rapaz trazia a mão ensanguentada. A avó inquiria amiúdo se o pequeno estava muito mal, se escaparia; Maciel disse-lhe que osferimentos eram leves. Depois contou o acidente: estava parado, na calçada,esperandoquepassasseum tílburi, quandoviuopequenoatravessar a ruapordiantedoscavalos;compreendeuoperigo,etratoudeconjurá-lo,oudiminuí-lo.

—Masestáferido—disseavelha.—Cousadenada.—Está,está—acudiuamoça—,podiater-securadotambém.—Nãoénada—teimouele—,foiumarranhão;enxugoistocomolenço.Não teve tempode tiraro lenço;MariaReginaofereceu-lheoseu.Maciel,

comovido,pegounele,mashesitouemmaculá-lo.—Vá,vá,dizia-lheela—;e,vendo-oacanhado,tirou-lhoeenxugou-lhe,ela

mesma,osanguedamão.Amãoerabonita,tãobonitacomoodono;masparecequeeleestavamenos

preocupado com a ferida da mão que com o amarrotado dos punhos.Conversando,olhavaparaelesdisfarçadamenteeescondia-os.MariaReginanãovianada, via-o a ele, via-lheprincipalmente a açãoque acabavadepraticar, e

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que lhepunhaumaauréola.Compreendeuque anaturezagenerosa saltaraporcima dos hábitos pausados e elegantes do moço, para arrancar à morte umacriança que ele nem conhecia. Falaram do assunto até a porta da casa delas;Macielrecusou,agradecendo,acarruagemqueelaslheofereciam,edespediu-seatéànoite.

—Atéànoite!—repetiuMariaRegina.Esperou-o ansiosa. Ele chegou, por volta de oito horas, trazendo uma fita

pretaenroladanamão,epediudesculpadevirassim;masdisseram-lhequeerabompôralgumacousaeobedeceu.

—Masestámelhor!—Estoubom,nãofoinada.—Venha,venha—disse-lheaavó,dooutroladodasala.—Sente-seaqui

aopédemim:osenhoréumherói.Maciel ouvia sorrindo. Tinha passado o ímpeto generoso, começava a

receber os dividendos do sacrifício. Omaior deles era a admiração deMariaRegina,tãoingênuaetamanha,queesqueciaaavóeasala.Macielsentara-seaoladodavelha,MariaReginadefrontedeambos.Enquantoaavó, restabelecidado susto, contava as comoções que padecera, a princípio sem saber de nada,depois imaginando que a criança teria morrido, os dous olhavam um para ooutro, discretamente, e afinal esquecidamente. Maria Regina perguntava a simesma onde acharia melhor noivo. A avó, que não era míope, achou acontemplação excessiva, e falou de outra cousa; pediu ao Maciel algumasnotíciasdesociedade.

iii

AllegroappassionatoMacielerahomem,comoelemesmodiziaemfrancês, trèsrépandu; sacou

daalgibeiraumaporçãodenovidadesmiúdaseinteressantes.Amaiordetodasfoiadeestardesfeitoocasamentodecertaviúva.

—Nãomedigaisso!—exclamouaavó.—Eela?—Parecequefoielamesmaqueodesfez:ocertoéqueesteveanteontemno

baile,dançoueconversoucommuitaanimação.Oh!abaixodanotícia,oquefezmaissensaçãoemmimfoiocolarqueelalevava,magnífico...

—Comumacruzdebrilhantes?—perguntouavelha.—Conheço;émuitobonito.

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—Não,nãoéesse.Macielconheciaodacruz,queelalevaraàcasadeumMascarenhas;nãoera

esse. Este outro ainda há poucos dias estava na loja do Resende, uma cousalinda.Edescreveu-o todo, número, disposição e facetadodas pedras; concluiudizendoquefoiajoiadanoite.

—Paratantoluxoeramelhorcasar—ponderoumaliciosamenteaavó.—Concordoqueafortunadelanãodáparaisso.Ora,espere!Vouamanhã,

aoResende,porcuriosidade,saberopreçoporqueovendeu.Nãofoibarato,nãopodiaserbarato.

—Masporqueéquesedesfezocasamento?—Nãopudesaber;mastenhodejantarsábadocomoVenancinhoCorreia,e

eleconta-metudo.Sabequeaindaéparentedela?Bomrapaz;estáinteiramentebrigadocomobarão...

Aavónãosabiadabriga;Macielcontou-lhadeprincípioafim,comtodasassuascausaseagravantes.Aúltimagotanocálixfoiumditoàmesadejogo,umaalusão ao defeito do Venancinho, que era canhoto. Contaram-lhe isto, e elerompeu inteiramente as relações comobarão.Obonito é queos parceiros dobarãoacusaram-seunsaosoutrosdeteremidocontaraspalavrasdeste.Macieldeclarou que era regra sua não repetir o que ouvia àmesa do jogo, porque élugaremquehácertafranqueza.

Depois fez a estatísticada ruadoOuvidor, navéspera, entreumaequatrohoras da tarde. Conhecia os nomes das fazendas e todas as cores modernas.Citouasprincipaistoilettesdodia.Aprimeirafoiademme.PenaMaia,baianadistinta, très pschutt. A segunda foi a de mlle. Pedrosa, filha de umdesembargadordeSãoPaulo,adorable.Eapontoumais três,comparoudepoisascinco,deduziueconcluiu.Àsvezesesquecia-seefalavafrancês;podemesmoser que não fosse esquecimento, mas propósito; conhecia bem a língua,exprimia-secomfacilidadeeformularaumdiaesteaxiomaetnológico—queháparisiensesemtodaaparte.Decaminho,explicouumproblemadevoltarete.

—Asenhora temcinco trunfosdeespadilhaemanilha, temreiedamadecopas...

MariaReginaiadescambandodaadmiraçãonofastio;agarrava-seaquieali,contemplavaafiguramoçadoMaciel,recordavaabelaaçãodaqueledia,masiasempre escorregando; o fastio não tardava a absorvê-la. Não havia remédio.Entãorecorreuaumsingularexpediente.Tratoudecombinarosdoushomens,opresente com o ausente, olhando para um, e escutando o outro de memória;recursoviolentoedoloroso,mastãoeficaz,queelapôdecontemplarporalgumtempoumacriaturaperfeitaeúnica.

Nisto apareceu o outro, o próprio Miranda. Os dous homens

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cumprimentaram-sefriamente;Macieldemorou-seaindaunsdezminutosesaiu.Miranda ficou. Era alto e seco, fisionomia dura e gelada. Tinha o rosto

cansado,oscinquentaanosconfessavam-setais,noscabelosgrisalhos,nasrugasenapele.Sóosolhoscontinhamalgumacousamenoscaduca.Erampequenos,eescondiam-seporbaixodavastaarcadadosobrolho;maslá,aofundo,quandonão estavampensativos, centelhavamdemocidade.A avó perguntou-lhe, logoqueMacielsaiu,sejátinhanotíciadoacidentedoEngenhoVelho,econtou-lhocomgrandesencarecimentos,masooutroouviatudosemadmiraçãoneminveja.

—Nãoachasublime?—perguntouela,nofim.—Achoqueelesalvoutalvezavidaaumdesalmadoquealgumdia,semo

conhecer,podemeter-lheumafacanabarriga.—Oh!—protestouaavó.—Oumesmoconhecendo—emendouele.—Não sejamau— acudiuMaria Regina—, o senhor era bem capaz de

fazeromesmo,sealiestivesse.Miranda sorriu de um modo sardônico. O riso acentuou-lhe a dureza da

fisionomia. Egoísta e mau, este Miranda primava por um lado único:espiritualmente,eracompleto.MariaReginaachavaneleotradutormaravilhosoefieldeumaporçãodeideiasquelutavamdentrodela,vagamente,semformaouexpressão.Eraengenhosoefinoeatéprofundo, tudosempedantice,esemmeter-sepormatos cerrados, antesquase semprenaplaníciedas conversaçõesordinárias;tãocertoéqueascousasvalempelasideiasquenossugerem.Tinhamambososmesmosgostosartísticos;Mirandaestudaradireitoparaobedecer aopai;asuavocaçãoeraamúsica.

Aavó, prevendo a sonata, aparelhou a almapara alguns cochilos.Demais,não podia admitir tal homem no coração; achava-o aborrecido e antipático.Calou-senofimdealgunsminutos.Asonataveio,nomeiodeumaconversaçãoqueMariaRegina achoudeleitosa, e nãoveio senãoporque ele lhe pediu quetocasse;eleficariadebomgradoaouvi-la.

—Vovó—disseela—,agorahádeterpaciência...Miranda aproximou-se do piano. Ao pé das arandelas, a cabeça dele

mostrava toda a fadiga dos anos, ao passo que a expressão da fisionomia eramuitomaisdepedraefel.MariaReginanotouagraduação,etocavasemolharparaele;difícilcousa,porque,seelefalava,aspalavrasentravam-lhetantopelaalma,queamoçainsensivelmentelevantavaosolhos,edavalogocomumvelhoruim.EntãoéqueselembravadoMaciel,dosseusanosemflor,dafisionomiafranca,meigaeboa,eafinaldaaçãodaqueledia.ComparaçãotãocruelparaoMiranda,comoforaparaoMacielocotejodosseusespíritos.Eamoçarecorreuao mesmo expediente. Completou um pelo outro; escutava a este com o

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pensamentonaquele;eamúsicaiaajudandoaficção,indecisaaprincípio,maslogo viva e acabada. Assim Titânia, ouvindo namorada a cantiga do tecelão,admirava-lheasbelasformas,semadvertirqueacabeçaeradeburro.

iv

MinuettoDez,vinte, trintadiaspassaramdepoisdaquelanoite,eaindamaisvinte,e

depoismaistrinta.Nãohácronologiacerta;melhoréficarnovago.Asituaçãoeraamesma.Eraamesmainsuficiênciaindividualdosdoushomens,eomesmocomplementoidealporpartedela;daíumterceirohomem,queelanãoconhecia.

MacieleMirandadesconfiavamumdooutro,detestavam-seamaisemais,epadeciammuito,Mirandaprincipalmente,queerapaixãodaúltimahora.Afinalacabaramaborrecendoamoça.Estaviu-osirpoucoapouco.Aesperançaaindaosfezrelapsos,mastudomorre,atéaesperança,eelessaíramparanuncamais.As noites foram passando, passando...Maria Regina compreendeu que estavaacabado.

Anoiteemquesepersuadiubemdistofoiumadasmaisbelasdaqueleano,clara,fresca,luminosa.Nãohavialua;masanossaamigaaborreciaalua—nãosesabebemporquê—ouporquebrilhadeempréstimo,ouporquetodaagentea admira, e pode ser que por ambas as razões. Era uma das suas esquisitices.Agoraoutra.

Tinhalidodemanhã,emumanotíciadejornal,queháestrelasduplas,quenosparecemumsóastro.Emvezdeirdormir,encostou-seàjaneladoquarto,olhando para o céu, a ver se descobria alguma delas; baldado esforço. Não adescobrindonocéu,procurou-aemsimesma,fechouosolhosparaimaginarofenômeno;astronomiafácilebarata,masnãosemrisco.Opiorqueelatemépôros astros ao alcance damão; pormodo que, se a pessoa abre os olhos e elescontinuamafulgurarláemcima,grandeéodesconsoloecertaablasfêmia.Foio que sucedeu aqui. Maria Regina viu dentro de si a estrela dupla e única.Separadas,valiambastante; juntas,davamumastroesplêndido.Eelaqueriaoastroesplêndido.Quandoabriuosolhoseviuqueofirmamentoficavatãoalto,concluiuqueacriaçãoeraumlivrofalhoeincorreto,edesesperou.

Nomurodachácaraviuentãoumacousaparecidacomdousolhosdegato.

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Aprincípio tevemedo,mas advertiu logo que não eramais que a reproduçãoexternadosdousastrosqueelaviraemsimesmaequetinhamficadoimpressosna retina.A retinadestamoça fazia refletir cá fora todas as suas imaginações.Refrescandooventorecolheu-se,fechouajanelaemeteu-senacama.

Não dormiu logo, por causa de duas rodelas de opala que estavamincrustadasnaparede;percebendoqueeraaindaumailusão,fechouosolhosedormiu.Sonhouquemorria,queaalmadela,levadaaosares,voavanadireçãodeumabelaestreladupla.Oastrodesdobrou-se,eelavoouparaumadasduasporções; não achou ali a sensação primitiva e despenhou-se para outra; igualresultado, igual regresso, e ei-la a andar de uma para outra das duas estrelasseparadas.Entãoumavozsurgiudoabismo,compalavrasqueelanãoentendeu:

—Éa tuapena,almacuriosadeperfeição;a tuapenaéoscilarpor todaaeternidadeentredousastrosincompletos,aosomdestavelhasonatadoabsoluto:lá,lá,lá...

GazetadeNotícias,20dejaneirode1886;MachadodeAssis.

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Viver!

Fim dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita longamente o

horizonte, onde passam duas águias, cruzando-se. Medita, depois sonha. Vaideclinandoodia.

AHASVERUS—Chegoàcláusuladostempos;esteéolimiardaeternidade.A

terraestádeserta;nenhumoutrohomemrespiraoardavida.Souoúltimo;possomorrer.Morrer! deliciosa ideia!Séculos de séculos vivi, cansado,mortificado,andandosempre,masei-losqueacabamevoumorrercomeles.Velhanatureza,adeus!Céuazul,nuvensrenascentes,rosasdeumdiaedetodososdias,águasperenes,terrainimiga,quemenãocomesteosossos,adeus!Oerrantenãoerrarámais.Deusmeperdoará,sequiser,masamorteconsola-me.Aquelamontanhaéáspera comoaminhador; aquelas águias, que ali passam,devemser famintascomoomeudesespero.Morrereistambém,águiasdivinas?

PROMETEU—Certoqueoshomensacabaram;aterraestánuadeles.AHASVERUS—Ouço ainda uma voz... Voz de homem? Céus implacáveis,

não sou então o último? Ei-lo que se aproxima... Quem és tu? Há em teusgrandes olhos alguma cousa parecida com a luz misteriosa dos arcanjos deIsrael;nãoéshomem...

PROMETEU—Não.AHASVERUS—Raçadivina?PROMETEU—Tuodisseste.AHASVERUS—Nãoteconheço;masqueimportaquetenãoconheça?Nãoés

homem;possoentãomorrer;poissouoúltimo,efechoaportadavida.PROMETEU—A vida, como a antiga Tebas, tem cem portas. Fechas uma,

outrasseabrirão.Ésoúltimodatuaespécie?Viráoutraespéciemelhor,nãofeitadomesmobarro,masdamesmaluz.Sim,homemderradeiro, todaaplebedosespíritos perecerá para sempre; a flor deles é que voltará à terra para reger ascousas.Os tempos serão retificados.Omal acabará; os ventos não espalharãomais,nemosgermesdamorte,nemoclamordosoprimidos,mastãosomenteacantigadoamorpereneeabênçãodauniversaljustiça...

AHASVERUS — Que importa à espécie que vai morrer comigo toda essadelícia póstuma? Crê-me, tu que és imortal, para os ossos que apodrecem na

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terraaspúrpurasdeSidônianãovalemnada.OquetumecontaséaindamelhorqueosonhodeCampanella.Nacidadedestehaviadelitoseenfermidades;atuaexclui todas as lesões morais e físicas. O Senhor te ouça! Mas deixa-me irmorrer.

PROMETEU—Vai,vai.Quepressatensemacabarosteusdias?AHASVERUS—Apressa de umhomemque temvividomilheiros de anos.

Sim, milheiros de anos. Homens que apenas respiraram por dezenas deles,inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles nunca puderamconhecer,aomenosemtodaasuaimplacávelevastarealidade,porqueéprecisohavercalcado,comoeu, todasasgeraçõesetodasasruínas,paraexperimentaresseprofundofastiodaexistência.

PROMETEU—Milheirosdeanos?AHASVERUS—Meunome éAhasverus: vivia em Jerusalém, ao tempo em

queiamcrucificarJesusCristo.Quandoelepassoupelaminhaporta,afrouxouaopesodomadeiroquelevavaaosombros,eeuempurrei-o,bradando-lhequenãoparasse,quenãodescansasse,quefosseandandoatéàcolina,ondetinhadeser crucificado... Então uma voz anunciou-me do céu que eu andaria sempre,continuamente,atéofimdostempos.Taléaminhaculpa;nãotivepiedadeparacomaquelequeiamorrer.Nãoseimesmocomoistofoi.Osfariseusdiziamqueo filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso matá-lo; eu, pobreignorante,quisrealçaromeuzeloedaíaaçãodaqueledia.Quedevezesviistomesmo, depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelopenetrou numa alma subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpairremissível.

PROMETEU—Graveculpa,emverdade,masapenafoibenévola.Osoutroshomensleramdavidaumcapítulo,tulesteolivrointeiro.Quesabeumcapítulodeoutrocapítulo?Nada;masoqueosleuatodos,liga-oseconclui.Hápáginasmelancólicas?Háoutrasjoviaisefelizes.Àconvulsãotrágicaprecedeadoriso,a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamaisabandoná-lointeiramente;éassimquetudoseconcertaerestitui.Tuvisteisso,nãodezvezes,nãomilvezes,mastodasasvezes;visteamagnificênciadaterracurandoaafliçãodaalma,eaalegriadaalmasuprindoàdesolaçãodascousas;dança alternada da natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita aSardanapalo.

AHASVERUS—Quesabestudaminhavida?Nada;ignorasavidahumana.PROMETEU— Ignoro a vida humana? deixa-me rir! Eia, homem perpétuo,

explica-te.Conta-metudo;saístedeJerusalém...AHASVERUS—Saíde Jerusalém.Comeceiaperegrinaçãodos tempos. Iaa

todaaparte,qualquerquefossearaça,ocultooualíngua;sóiseneves,povos

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bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem, aírespirei eu.Nuncamais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse refúgio.Cadamanhãachavacomigoamoedadodia...Vede;cáestáaúltima.Ide,quejánão sois precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas,sempre,sempre,sempre,umdiaeoutrodia,umanoeoutroano,etodososanos,etodososséculos.Aeternajustiçasoubeoquefez:somouaeternidadecomaociosidade.As gerações legavam-me umas às outras.As línguas quemorriamficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos,esquecia-setudo;osheróisdissipavam-seemmitos,napenumbra,aolonge;eahistória ia caindo aos pedaços, não lhe ficandomais que duas ou três feiçõesvagaseremotas.Eeuvia-asdeummodoedeoutromodo.Falasteemcapítulo?Felizesosquesóleramavidaemumcapítulo.Osqueseforam,ànascençadosimpérios,levaramaimpressãodaperpetuidadedeles;osqueexpiraramquandoelesdecaíam,enterraram-secomaesperançada recomposição;massabes tuoqueéverasmesmascousas,semparar,amesmaalternativadeprosperidadeedesolação,desolaçãoeprosperidade,eternasexéquiaseeternasaleluias,aurorassobreauroras,ocasossobreocasos?

PROMETEU—Masnãopadeceste,creio;éalgumacousanãopadecernada.AHASVERUS — Sim, mas vi padecer os outros homens, e, para o fim, o

espetáculodaalegriadava-meamesmasensaçãoqueosdiscursosdeumdoudo.Fatalidadesdosangueedacarne,conflitossemfim,tudovipassarameusolhos,apontoqueanoiteme fezperderogostoaodia,eacabonãodistinguindoasfloresdasurzes.Tudosemeconfundenaretinaenfarada.

PROMETEU—Pessoalmentenão tedoeunada; e euquepadecipor temposinúmerosoefeitodacóleradivina?

AHASVERUS—Tu?PROMETEU—Prometeuéomeunome.AHASVERUS—TuPrometeu?PROMETEU — E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e água os primeiros

homens,edepois,compadecido, roubeiparaelesofogodocéu.Tal foiomeucrime.Júpiter,queentão regiaoOlimpo,condenou-meaomaiscruel suplício.Anda,sobecomigoaesterochedo.

AHASVERUS—Contas-meumafábula.Conheçoessesonhohelênico.PROMETEU — Velho incrédulo! Anda ver as próprias correntes que me

agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a divindadeorgulhosaeterrível...Chegamos,olha,aquiestãoelas...

AHASVERUS—Otempoquetudoróinãoasquisentão?PROMETEU—Eramdemãodivina;fabricou-asVulcano.Dousemissáriosdo

céu vieram atar-me ao rochedo, e uma águia, como aquela que lá corta o

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horizonte, comia-me o fígado, sem consumi-lo nunca. Durou isto tempos quenãocontei.Não,nãopodesimaginarestesuplício...

AHASVERUS—Nãome iludes?Tu Prometeu?Não foi então um sonho daimaginaçãoantiga?

PROMETEU—Olhabemparamim,palpaestasmãos.Vêseexisto.AHASVERUS — Moisés mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros

homens?PROMETEU—Foiomeucrime.AHASVERUS — Sim, foi o teu crime, artífice do inferno; foi o teu crime

inexpiável.Aquidevias terficadopor todosostempos,agrilhoadoedevorado,tu,origemdosmalesquemeafligiram.Carecidepiedade,écerto;mastu,quemetrouxesteàexistência,divindadeperversa,fosteacausaoriginaldetudo.

PROMETEU—Amortepróximaobscurece-tearazão.AHASVERUS—Sim,éstumesmo,tensafronteolímpica,forteebelotitão:és

tumesmo...Sãoestasascadeias?Nãovejoosinaldastuaslágrimas.PROMETEU—Chorei-aspelatuaraça.AHASVERUS—Elachoroumuitomaisportuaculpa.PROMETEU—Ouve,últimohomem,últimoingrato!AHASVERUS — Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos,

divindadeperversa.Aquiestãoascadeias.Vêcomoaslevantonasmãos;ouveotinirdosferros...Quemtedesagrilhoououtrora?

PROMETEU—Hércules.AHASVERUS—Hércules...Vêseele tepresta igual serviço,agoraquevais

sernovamenteagrilhoado.PROMETEU—Deliras.AHASVERUS—O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o

segundo e derradeiro. Nem Hércules poderá mais romper estes ferros. Olhacomo os agito no ar, à maneira de plumas; é que eu represento a força dosdesesperos milenários. Toda a humanidade está em mim. Antes de cair noabismo,escrevereinestapedraoepitáfiodeummundo.Chamareiaáguia,eelavirá;dir-lhe-eiqueoderradeirohomem,aopartirdavida,deixa-lheumregalodedeuses.

PROMETEU—Pobreignorante,querejeitasumtrono!Não,nãopodesmesmorejeitá-lo.

AHASVERUS—És tuagoraquedeliras.Eia,prostra-te,deixa-meligar-teosbraços.Assim,bem,nãoresistirásmais;arquejaparaaí.Agoraaspernas...

PROMETEU—Acaba, acaba. São as paixões da terra que se voltam contramim;mas eu, que não sou homem, não conheço a ingratidão.Não arrancarásuma letra ao teu destino, ele se cumprirá inteiro. Tu mesmo serás o novo

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Hércules.Eu,queanuncieiaglóriadooutro,anuncioatua;enãoserásmenosgenerosoqueele.

AHASVERUS—Delirastu?PROMETEU—Averdade ignotaaoshomenséodelíriodequemaanuncia.

Anda,acaba.AHASVERUS—Aglórianãopaganada,eextingue-se.PROMETEU—Estanãoseextinguirá.Acaba,acaba;ensinaaobicoaduncoda

águiacomomehádedevoraraentranha;masescuta...Não,nãoescutesnada;nãopodesentender-me.

AHASVERUS—Fala,fala.PROMETEU—Omundopassageironãopodeentenderomundoeterno;mas

tuserásoeloentreambos.AHASVERUS—Dizetudo.PROMETEU—Nãodigonada;anda,apertabemestespulsos,paraqueeunão

fuja,paraquemeachesaquiàtuavolta.Quetedigatudo?Játedissequeumaraçanovapovoaráaterra,feitadosmelhoresespíritosdaraçaextinta;amultidãodosoutrosperecerá.Nobrefamília,lúcidaepoderosa,seráaperfeitacomunhãododivinocomohumano.Outrosserãoostempos,masentreeleseestesumeloépreciso,eesseeloéstu.

AHASVERUS—Eu?PROMETEU—Tumesmo, tu,eleito, tu, rei.Sim,Ahasverus, tuserás rei.O

errantepousará.Odesprezadodoshomensgovernaráoshomens.AHASVERUS—Titãoartificioso,iludes-me...Rei,eu?PROMETEU — Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma

tradiçãodomundovelho,eninguémpodefalardeumaoutrocomotu.Assimnão haverá interrupção entre as duas humanidades. O perfeito procederá doimperfeito, e a tuabocadir-lhe-á as suas origens.Contarás aos novoshomenstodoobemetodoomalantigo.Reviverásassimcomoaárvoreaquecortaramasfolhassecas,econservatãosomenteasviçosas;masaquioviçoéeterno.

AHASVERUS—Visãoluminosa!Eumesmo?PROMETEU—Tumesmo.AHASVERUS — Estes olhos... estas mãos... vida nova e melhor... Visão

excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa é a remissãogloriosadomeupecado.Vivereieu?eumesmo?Vidanovaemelhor?Não, tumofasdemim.

PROMETEU—Bem,deixa-me,voltarásumdia,quandoeste imensocéuforaberto para que desçamos espíritos da vida nova.Aquime acharás tranquilo.Vai.

AHASVERUS—Saudareioutravezosol?

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PROMETEU—Essemesmoqueoravaiacair.Solamigo,olhodos tempos,nuncamaissefecharáatuapálpebra.Fita-o,sepodes.

AHASVERUS—Nãoposso.PROMETEU — Podê-lo-ás depois quando as condições da vida houverem

mudado. Então a tua retina fitará o sol sem perigo, porque no homem futuroficaráconcentradotudooquehámelhornanatureza,enérgicoousutil,cintilanteoupuro.

AHASVERUS—Juraquemenãomentes.PROMETEU—Verásseminto.AHASVERUS—Fala,falamais,conta-metudo.PROMETEU — A descrição da vida não vale a sensação da vida; tê-la-ás

prodigiosa.OseiodeAbraãodastuasvelhasEscriturasnãoésenãoessemundoulterioreperfeito.LáverásDavideosprofetas.Lácontarásàgenteestupefatanãosóasgrandesaçõesdomundoextinto,comotambémosmalesqueelanãohá de conhecer, lesão ou velhice, dolo, egoísmo, hipocrisia, a aborrecidavaidade,a inopinável toleimaeo resto.Aalma terá, comoa terra,uma túnicaincorruptível.

AHASVERUS—Vereiaindaesteimensocéuazul!PROMETEU—Olhacomoébelo.AHASVERUS—Beloeserenocomoaeternajustiça.Céumagnífico,melhor

que as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolherás os meuspensamentos,comooutrora;tumedarásosdiasclaroseasnoitesamigas...

PROMETEU—Aurorassobreauroras.AHASVERUS—Eia,fala,falamais.Conta-metudo.Deixa-medesatar-teestas

cadeias...PROMETEU—Desata-as,Hércules novo, homemderradeiro de ummundo,

que vais ser o primeiro de outro. É o teu destino; nem tu nem eu, ninguémpoderá mudá-lo. És mais ainda que o teuMoisés. Do alto do Nebo, viu ele,prestesamorrer, todaa terradeJericó,que iapertenceràsuaposteridade;eoSenhorlhedisse:“Tuavistecomteusolhos,enãopassarásaela.”Tupassarásaela,Ahasverus;tuhabitarásJericó.

AHASVERUS—Põeamãosobreaminhacabeça,olhabemparamim;incute-mea tua realidadeea tuapredição;deixa-mesentirumpoucodavidanovaeplena...Reidisseste?

PROMETEU—Reieleitodeumaraçaeleita.AHASVERUS—Nãoédemaispararesgataroprofundodesprezoemquevivi.

Ondeumavidacuspiulama,outravidaporáumaauréola.Anda,falamais...falamais...(Continuasonhando.Asduaságuiasaproximam-se.)

UMAÁGUIA—Ai,ai,aidesteúltimohomem,estámorrendoeaindasonha

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comavida.AOUTRA—Nemeleaodioutanto,senãoporqueaamavamuito.GazetadeNotícias,28defevereirode1886;MachadodeAssis.

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Adesejadadasgentes

—Ah!conselheiro,aícomeçaafalaremverso.—Todososhomensdevemterumaliranocoração—ounãosejamhomens.

Quealiraressoeatodaahora,nemporqualquermotivo,nãoodigoeu;masdelongeemlonge,eporalgumasreminiscênciasparticulares...Sabeporqueéquelhe pareço poeta, apesar dasOrdenações do Reino e dos cabelos grisalhos? éporque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria deEstrangeiros...Láestáoouteirocélebre...Adianteháumacasa...

—Vamosandando.—Vamos...DivinaQuintília! Todas essas caras que aí passam são outras,

mas falam-medaquele tempo, como se fossemasmesmasde outrora; é a liraqueressoa,eaimaginaçãofazoresto.DivinaQuintília!

— Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola deMedicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela dacidade.

—Hádeseramesma,porquetinhaessafama.Magraealta?—Isso.Quefimlevou?—Morreuem1859.Vintedeabril.Nuncamehádeesqueceressedia.Vou

contar-lhe um caso interessante paramim, e creio que também para o senhor.Olhe, a casa era aquela...Morava com um tio, chefe de esquadra reformado;tinhaoutracasanoCosmeVelho.QuandoconheciQuintília...Queidadepensaqueteria,quandoaconheci?

—Sefoiem1855...—Em1855.—Deviatervinteanos.—Tinhatrinta.—Trinta?—Trintaanos.Nãoosparecia,nemeranenhumainimigaquelhedavaessa

idade.Elaprópriaaconfessava,eatécomafetação.Aocontrário,umadesuasamigas afirmavaqueQuintília nãopassavadosvinte e sete;mas comoambastinhamnascidonomesmodia,diziaissoparadiminuir-seasiprópria.

—Mau,nadadeironias;olhequeaironianãofazboacamacomasaudade.—Queéasaudadesenãoumaironiadotempoedafortuna?Vejalá;começo

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a ficar sentencioso. Trinta anos; mas, em verdade, não os parecia. Lembra-sebem que eramagra e alta; tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciamcortados da capa da última noite,mas apesar de noturnos, semmistérios nemabismos.Avozerabrandíssima,umtantoapaulistada,abocalarga,eosdentes,quandoelasimplesmentefalava,davam-lheàbocaumarderiso.Riatambém,eforam os risos dela, de parceria com os olhos, queme doerammuito durantecertotempo.

—Masseosolhosnãotinhammistérios...—Tantonãoos tinhamquechegueiaopontodesuporqueeramasportas

abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já aconhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambosprincipiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca noslembrounamorá-la.Elaandavaentãonogalarim;erabela, rica, elegante, edaprimeira roda. Mas um dia, no antigo teatro Provisório, entre dous atos dosPuritanos,estandoeunumcorredor,ouviumgrupodemoçosquefalavamdela,comodeuma fortaleza inexpugnável.Dousconfessaramhaver tentadoalgumacousa,massemfruto;e todospasmavamdocelibatodamoçaquelhespareciasemexplicação.Echalaceavam:umdiziaqueerapromessaatéverseengordavaprimeiro;outroqueestavaesperandoasegundamocidadedotioparacasarcomele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu;trivialidades queme aborrecerammuito, e da parte dos que confessavam tê-lacortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que elesestavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foramentusiastasesinceros.

—Oh!aindamelembro!...eramuitobonita.— No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não

vinham,contei aoNóbregaaconversaçãodavéspera.Nóbrega riu-sedocaso,refletiu, e depois dedar algunspassos, paroudiante demim,olhando, calado.“Aposto que a namoras?”, perguntei-lhe. “Não”, disse ele, “nem tu? Poislembrou-meumacousa:vamostentaroassaltoàfortaleza?Queperdemoscomisso?Nada;ouelanospõenarua,ejápodemosesperá-lo,ouaceitaumdenós,etantomelhor para o outro que verá o seu amigo feliz.” “Estás falando sério?”“Muito sério.” Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a faziaatraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas eraprincipalmenteumsonhadorquevivia lendoe construindoaparelhos sociais epolíticos.Segundoele,ostaisrapazesdoteatroevitavamfalardosbensdamoça,queeramumdosfeitiçosdela,eumadascausasprováveisdadesconsolaçãodeuns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: “Escuta, nem divinizar o dinheiro,nemtambémbani-lo;nãovamoscrerqueeledátudo,masreconheçamosquedá

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algumacousaeatémuitacousa—esterelógio,porexemplo.Combatamospelanossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou maisbonitoquetu.”

—Conselheiro,aconfissãoégrave;foiassimbrincando...?—Foi assimbrincando, cheirando ainda aosbancosda academia, quenos

metemosemnegóciodetantaponderação,quepodiaacabaremnada,masdeumuitodesi.Eraumcomeçoestouvado,quaseumpassatempodecrianças,semanotadasinceridade;masohomempõeeaespéciedispõe.Conhecíamo-la,postonãotivéssemosencontrosfrequentes;umavezquenosdispusemosaumaaçãocomum,entrouumelementonovonanossavida,edentrodeummêsestávamosbrigados.

—Brigados?—Ouquase.Não tínhamos contadocomela, quenos enfeitiçou a ambos,

violentamente. Em algumas semanas já pouco falávamos de Quintília, e comindiferença; tratávamosde enganarumaooutro edissimular oque sentíamos.Foiassimqueasnossasrelaçõessedissolveram,nofimdeseismeses,semódio,nemluta,nemdemonstraçãoexterna,porqueaindanosfalávamos,ondeoacasonosreunia;masjáentãotínhamosbancaseparada.

—Começoaverumapontinhadodrama...— Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano

verbalqueelalhedesse,oupordesesperodevencer,Nóbregadeixou-mesóemcampo.Arranjouumanomeaçãodejuizmunicipal láparaossertõesdaBahia,ondedefinhouemorreuantesdeacabaroquatriênio.E juro-lhequenão foioinculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tantofalaradasvantagensdodinheiro,morreuapaixonadocomoumsimplesWerther.

—Menosapistola.— Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma

cousaparecidocomisso;foioqueomatou,eoqueaindahojemedói...Mas,vejopeloseuditoqueoestouaborrecendo...

—PeloamordeDeus.Juro-lhequenão; foiumagraçolaquemeescapou.Vamosadiante,conselheiro;ficousóemcampo.

—Quintílianãodeixavaninguémestar sóemcampo—nãodigoporela,maspelosoutros.Muitosvinhamalitomarumcálixdeesperanças,eiamcearaoutraparte.Elanãofavoreciaaummaisqueaoutro;maseralhana,graciosaetinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homensciumentos.Tiveciúmesamargose,àsvezes,terríveis.Todoargueiromepareciaumcavaleiro, e todocavaleiroumdiabo.Afinal acostumei-meaverqueerampassageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinhamdentro da luva das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas,

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massemresultado.Quintíliadeclarouquenadafariasemconsultarotio,eotioaconselhou a recusa — cousa que ela sabia de antemão. O bom velho nãogostava nunca da visita de homens, com receio de que a sobrinha escolhessealgumecasasse.Estavatãoacostumadoatrazê-laaopédesi,comoumamuletadavelhaalmaaleijada,quetemiaperdê-lainteiramente.

—Nãoseriaessaacausadaisençãosistemáticadamoça?—Vaiverquenão.—Oquenotoéqueosenhoreramaisteimosoqueosoutros...—...Iludido,aprincípio,porquenomeiodetantascandidaturasmalogradas,

Quintília preferia-me a todos os outros homens, conversava comigo maislargamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que noscasávamos.

—Masconversavamdequê?—Detudooqueelanãoconversavacomosoutros;eeradefazerpasmar

queumapessoatãoamigadebailesepasseios,devalsarerir,fossecomigotãoseveraegrave,tãodiferentedoquecostumavaoupareciaser.

—Arazãoéclara:achavaasuaconversaçãomenosinsossaqueadosoutroshomens.

— Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-seacentuandocomostempos.Quandoavidacáembaixoaaborreciamuito,iaparaoCosmeVelho,ealiasnossasconversaçõeserammaisfrequentesecompridas.Não lhepossodizer, nemo senhor compreenderianada,oque foramashorasquealipassei,incorporandonaminhavidatodaavidaquejorravadela.Muitasvezes quis dizer-lhe o que sentia,mas as palavras tinhammedo e ficavam nocoração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ouinchadas de estilo.Demais, ela não dava ensejo a nada; tinha um ar de velhaamiga.Noprincípiode1857adoeceumeupaiemItaboraí;corriavê-lo,achei-omoribundo.Estefatoreteve-meforadaCorteunsquatromeses.Volteipelosfinsdemaio. Quintília recebeu-me triste daminha tristeza, e vi claramente que omeulutopassaraaosolhosdela...

—Masqueeraissosenãoamor?—Assimocri,edispusaminhavidaparadesposá-la.Nisto,adoeceuotio

gravemente.Quintílianão ficava só, se elemorresse,porque, alémdosmuitosparentesespalhadosquetinha,moravacomelaagora,nacasadaruadoCatete,umaprima,d.Ana,viúva;mas,écertoqueaafeiçãoprincipal ia-seemboraenessatransiçãodavidapresenteàvidaulteriorpodiaeualcançaroquedesejava.Amoléstiadotiofoibreve;ajudadadavelhice,levou-oemduassemanas.Digo-lheaquiqueamortedelelembrou-meademeupai,eadorqueentãosentifoiquase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e,

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segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez quetínhamosdeorecebersemfaltaetãobreve.Apalavrapareceu-meumconvitematrimonial;dousmesesdepoiscuideidepedi-laemcasamento.D.AnaficaramorandocomelaeestavamnoCosmeVelho.Fuiali,achei-asjuntasnoterraço,que ficavapertodamontanha.Eramquatrohorasda tardedeumdomingo.D.Ana,quenospresumianamorados,deixou-noscampolivre.

—Enfim!— No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira

palavra.Omeuplanoera justamenteprecipitar tudo, commedodeque, cincominutos de conversa,me tirassem as forças.Ainda assim, não sabe o quemecustou;custariamenosumabatalha,ejuro-lhequenãonasciparaguerras.Masaquelamulhermagrinhaedelicadaimpunha-se-me,comonenhumaoutra,antesedepois...

—Eentão?—Quintíliaadivinhara,pelo transtornodomeurosto,oque lhe iapedir,e

deixou-mefalarparapreparararesposta.Arespostafoiinterrogativaenegativa.Casarparaquê?Eramelhorqueficássemosamigoscomodantes.Respondi-lheque a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; nãopodendomaiscontê-lo,deixouqueelesaísse.Quintíliasorriudametáfora,oqueme doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou depersuadir-medequeeramelhornãocasar. “Estouvelha, disse ela; vouem33anos.” Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção decousas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depoisinsistiunasrelaçõesdeamizade;disseque,postoquemaismoçoqueela,tinhaagravidade de um homemmais velho, e inspirava-lhe confiança como nenhumoutro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez enarrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro daacademia,easeparaçãoemqueficamos,sentiu-se,nãoseisediga,magoadaouirritada.Censurou-nosaambos,nãovaliaapenaquechegássemosa talponto.“A senhora diz isso porque não sente a mesma cousa.” “Mas então é umdelírio?” “Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fossenecessário, separar-me-iadeleumaecemvezes;ecreiopoderafirmar-lhequeelefariaamesmacousa.”Aquiolhouelaespantadaparamim,comoseolhaparaumapessoacujasfaculdadesparecemtranstornadas;depoisabanouacabeça,erepetiu que fora um erro; não valia a pena. “Fiquemos amigos”, disse-me,estendendo a mão. “É impossível; pede-me cousa superior às minhas forças,nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada;dir-lhe-eiatéquenemmais insisto,porquenãoaceitariaoutra respostaagora.”Trocamosaindaalgumaspalavras,eretirei-me...Vejaaminhamão.

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—Treme-lheainda...—Enãolheconteitudo.Nãolhedigoaquiosaborrecimentosquetive,nem

a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia terprovocado aquele desengano desde as primeiras semanas; mas a culpa foi daesperança,queéumaplantadaninha,quemecomeuo lugardeoutrasplantasmelhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram algunsinteressesdo inventáriodemeupai.Quandovoltei, trêssemanasdepois,acheiemcasaumacartadeQuintília.

—Oh!— Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos

últimossucessos,ediziacousasmeigasegraves.Quintíliaafirmavateresperadopormimtodososdias,nãocuidandoqueeulevasseoegoísmoaténãovoltarlámais,porissoescrevia-me,pedindoquefizessedosmeussentimentospessoaisesemecoumapáginadehistóriaacabada;queficassesóoamigo,eláfosseverasuaamiga.Econcluíacomestassingularespalavras:“Querumagarantia?Juro-lhequenãocasareinunca.”Compreendiqueumvínculodesimpatiamoralnosligavaumaooutro;comadiferençaqueoqueeraemmimpaixãoespecífica,eranela uma simples eleição de caráter. Éramos dous sócios, que entravam nocomérciodavidacomdiferentecapital: eu, tudooquepossuía; ela,quaseumóbolo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minhaobediênciaeomeuamor,quecedia,masdemávontade,porque,depoisdoquese passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo, jáescrita,parapoderirvê-lasemestevexame;bastavaooutro.

—Apostoqueseguiuatrásdacarta?Éoqueeufaria,porqueessamoça,oueumeenganoouestavamortaporcasarcomosenhor.

—Deixeasuafisiologiausual;estecasoéparticularíssimo.—Deixe-meadivinharoresto;ojuramentoeraumanzolmístico;depois,o

senhor,queorecebera,podiadesobrigá-ladele,umavezqueaproveitassecomaabsolvição.Mas,enfim,correuàcasadela.

—Nãocorri;fuidousdiasdepois.Nointervalo,respondeuelaàminhacartacom um bilhete carinhoso, que rematava com esta ideia: “não fale dehumilhação, onde não houve público”. Fui, voltei uma e mais vezes erestabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio,custou-memuitopareceroqueeradantes;depois,odemôniodaesperançaveiopousaroutraveznomeucoração;e,semnadaexprimir,cuideiqueumdia,umdia tarde,elaviesseacasarcomigo.Efoiessaesperançaquemeretificouaosmeus próprios olhos, na situação em que me achava. Os boatos de nossocasamento correram mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negavaformalmenteesério;eladavadeombroseria.Foiessafasedanossavidaamais

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serenaparamim, salvoum incidentecurto,umdiplomataaustríacoounão seiquê,rapagão,elegante,ruivo,olhosgrandeseatrativos,efidalgoaindaporcima.Quintíliamostrou-se-lhetãograciosa,queelecuidouestaraceito,etratoudeiradiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco dapercepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legaçãoaustríaca.Poucodepoiselaadoeceu;efoientãoqueanossaintimidadecresceudevulto.Ela,enquantosetratava,resolveunãosair,eissomesmolhedisseramos médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, oujogávamos os três, ou então lia-se alguma cousa; a maior parte das vezesconversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suasleiturasviqueoslivrospuramenteamorososachava-osincompreensíveis,e,seas paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim porignorante;tinhanotíciavagadaspaixões,eassistiraaalgumasalheias.

—Dequemoléstiapadecia?—Daespinha.Osmédicosdiziamqueamoléstianãoeratalvezrecente,eia

tocandoopontomelindroso.Chegamosassima1859.Desdemarçodesseanoamoléstiaagravou-semuito; teveumapequenaparada,masparaosfinsdomêschegouaoestadodesesperador.Nuncavidepoiscriaturamaisenérgicadiantedaiminentecatástrofe;estavaentãodeumamagrezatransparente,quasefluida;ria,ouantes,sorriaapenas,evendoqueeuescondiaasminhaslágrimas,apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe averdade;eleiamentir;eladisse-lhequeerainútil,queestavaperdida.“Perdida,não”, murmurou o médico. “Jura que não estou perdida?” Ele hesitou, elaagradeceu-lho.Umavezcertaquemorria,ordenouoqueprometeraasimesma.

—Casoucomosenhor,aposto?—Nãome relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la,

porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusas nem pedidosmeus;casoucomigoàbeiradamorte.Foinodia18deabrilde1859.Passeiosúltimosdousdias,até20deabril,aopédaminhanoivamoribunda,eabracei-apelaprimeiravez,feitacadáver.

—Tudoissoébemesquisito.—Nãoseioquediráasua fisiologia.Aminha,queédeprofano,crêque

aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meiodefunta,àsportasdonada.Chame-lhemonstro,sequer,masacrescentedivino.

GazetadeNotícias,15dejulhode1886;MachadodeAssis.

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Umhomemcélebre

—Ah!osenhoréqueéoPestana?—perguntouSinhazinhaMota,fazendo

um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: —Desculpemeumodo,mas...émesmoosenhor?

Vexado,aborrecido,Pestanarespondeuquesim,queeraele.Vinhadopiano,enxugandoatestacomolenço,eiaachegaràjanela,quandoamoçaofezparar.Nãoerabaile;apenasumsarauíntimo,poucagente,vintepessoasaotodo,quetinhamidojantarcomaviúvaCamargo,ruadoAreal,naquelediadosanosdela,cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga,apesardossessentaanosemqueentrava,efoiaúltimavezquefolgoueriu,poisfaleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma ediligência arranjouali umasdanças, logodepoisdo jantar, pedindoaoPestanaquetocasseumaquadrilha!Nemfoiprecisoacabaropedido;Pestanacurvou-segentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha,mal teriam descansado unsdez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio muiparticular.

—Diga,minhasenhora.—ÉquenostoqueagoraaquelasuapolcaNãobulacomigo,nhonhô.Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem

gentileza,efoiparaopiano,sementusiasmo.Ouvidososprimeiroscompassos,derramou-sepelasalaumaalegrianova,oscavalheiroscorreramàsdamas,eospares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicadavintediasantes,ejánãohaviarecantodacidadeemquenãofosseconhecida.Iachegandoàconsagraçãodoassobioedacantarolanoturna.

SinhazinhaMota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira àmesadejantaredepoisaopiano,metidonumasobrecasacacorderapé,cabelonegro, longoecacheado,olhoscuidosos,queixo rapado, eraomesmoPestanacompositor;foiumaamigaquelhodissequandooviuvirdopiano,acabadaapolca.Daíaperguntaadmirativa.Vimosqueelerespondeuaborrecidoevexado.Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a maismodesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez maisenfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para sair.Nem elas,nemadonadacasa,ninguémlogrouretê-lo.Ofereceram-lheremédioscaseiros,

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algumrepouso,nãoaceitounada,teimouemsairesaiu.Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só

afrouxou,depoisquedobrouaesquinadaruaFormosa.Masaímesmoesperava-oasuagrandepolcafestiva.Deumacasamodesta,àdireita,apoucosmetrosdedistância,saíamasnotasdacomposiçãododia,sopradasemclarineta.Dançava-se.Pestanaparoualgunsinstantes,pensouemarrepiarcaminho,masdispôs-seaandar,estugouopasso,atravessouarua,eseguiupeloladoopostoaodacasadobaile.Asnotasforam-seperdendo,aolonge,eonossohomementrounaruadoAterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dous homens: um deles,passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca,rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo namúsica, e aí foram os dousabaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria ameter-seemcasa.

Emcasa,respirou.Casavelha,escadavelha,umpretovelhoqueoservia,equeveiosaberseelequeriacear.

—Nãoqueronada—bradouoPestana—,faça-mecaféevádormir.Despiu-se,enfiouumacamisola,efoiparaasaladosfundos.Quandoopreto

acendeuogásda sala,Pestana sorriue,dentrod’alma,cumprimentouunsdezretratosquependiamdaparede.Umsóeraaóleo,odeumpadre,queoeducara,quelheensinaralatimemúsica,eque,segundoosociosos,eraoprópriopaidoPestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhostrastes,aindadotempodePedroi.Compuseraalgunsmotetesopadre,eradoudopor música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhetransmitiunosangue,seéquetinhamrazãoasbocasvadias,cousadequesenãoocupaaminhahistória,comoidesver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart,Beethoven,Gluck,Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outroslitografados, todos mal-encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos alicomosantosdeumaigreja.Opianoeraoaltar;oevangelhodanoite láestavaaberto:eraumasonatadeBeethoven.

Veioocafé;Pestanaengoliuaprimeiraxícara,esentou-seaopiano.Olhoupara o retrato deBeethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si,desvairadoouabsorto,mascomgrandeperfeição.Repetiuapeça;depoisparoualgunsinstantes,levantou-seefoiaumadasjanelas.Tornouaopiano;eraavezdeMozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a almaalhures.Haydnlevou-oàmeia-noiteeàsegundaxícaradecafé.

Entremeia-noite e uma hora, Pestana poucomais fez que estar à janela eolharparaasestrelas,entrareolharparaosretratos.Dequandoemquandoiaaopiano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum

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pensamento;masopensamentonãoapareciaeelevoltavaaencostar-seàjanela.Asestrelaspareciam-lheoutrastantasnotasmusicaisfixadasnocéuàesperadealguémqueasfossedescolar;tempoviriaemqueocéutinhadeficarvazio,masentãoaterraseriaumaconstelaçãodepartituras.Nenhumaimagem,desvariooureflexão traziauma lembrançaqualquerdeSinhazinhaMota, que entretanto, aessa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcasamadas. Talvez a ideia conjugal tirou àmoça algunsmomentos de sono.Quetinha?Elaiaemvinteanos,eleemtrinta,boaconta.Amoçadormiaaosomdapolca,ouvidadecor,enquantooautordestanãocuidavanemdapolcanemdamoça,masdasvelhasobrasclássicas,interrogandoocéueanoite,rogandoaosanjos,emúltimocasoaodiabo.Porquenãofariaeleumasóquefossedaquelaspáginasimortais?

Àsvezes,comoqueiasurgirdasprofundezasdoinconscienteumaauroradeideia;elecorriaaopiano,paraaventá-lainteira,traduzi-la,emsons,maseraemvão; a ideia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedoscorrerem,àventura,averseasfantasiasbrotavamdeles,comodosdeMozart;masnada,nada,ainspiraçãonãovinha,aimaginaçãodeixava-seestardormindo.Se acaso uma ideia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peçaalheia,queamemóriarepetia,equeelesupunhainventar.Então,irritado,erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dezminutos,ei-looutravez,comosolhosemMozart,aimitá-loaopiano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado,desanimado,morto;tinhaquedarliçõesnodiaseguinte.Poucodormiu;acordouàssetehoras.Vestiu-seealmoçou.

—Meu senhor quer a bengala ou o chapéu de sol?—perguntou o preto,segundoasordensquetinha,porqueasdistraçõesdosenhoreramfrequentes.

—Abengala.—Masparecequehojechove.—Chove—repetiuPestanamaquinalmente.—Parecequesim,senhor,océuestámeioescuro.Pestanaolhavaparaopreto,vago,preocupado.Derepente:—Esperaaí.Correuàsaladosretratos,abriuopiano,sentou-seeespalmouasmãosno

teclado.Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e pronta,umapolca,umapolcabuliçosa comodizemos anúncios.Nenhuma repulsadapartedocompositor;osdedos iamarrancandoasnotas, ligando-as,meneando-as;dir-se-iaqueamusacompunhaebailavaaumtempo.Pestanaesqueceraasdiscípulas,esqueceraopreto,queoesperavacomabengalaeoguarda-chuva,esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só,

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teclandoouescrevendo,semosvãosesforçosdavéspera,semexasperação,semnada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida,graça,novidade,escorriam-lhedaalmacomodeumafonteperene.

Empoucotempoestavaapolcafeita.Corrigiuaindaalgunspontos,quandovoltou para jantar: mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; nacomposição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação.Dousdiasdepois, foi levá-laaoeditordasoutraspolcassuas,queandariamjáporumastrinta.Oeditorachou-alinda.

—Vaifazergrandeefeito.Veioaquestãodotítulo.Pestana,quandocompôsaprimeirapolca,em1871,

quisdar-lheumtítulopoético,escolheueste:Pingosdesol.Oeditorabanouacabeça,edisse-lhequeostítulosdeviamser,jádesi,destinadosàpopularidade,ouporalusãoaalgumsucessododia—oupelagraçadaspalavras;indicou-lhedous:Aleide28desetembro,ouCandongasnãofazemfesta.

—MasquequerdizerCandongasnãofazemfesta?—perguntouoautor.—Nãoquerdizernada,maspopulariza-selogo.Pestana,aindadonzelinédito,recusouqualquerdasdenominaçõeseguardou

a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidadelevou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem maisatraentesouapropriados.Assimsereguloupelotempoadiante.

Agora,quandoPestanaentregouanovapolca,epassaramaotítulo,oeditoracudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lheapresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona,guardeoseubalaio.

—Eparaavezseguinte—acrescentou—játragooutrodecor.Expostaàvenda,esgotou-selogoaprimeiraedição.Afamadocompositor

bastava à procura;mas a obra em simesma era adequada aogênero, original,convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre.Pestana,duranteosprimeiros,andoudeverasnamoradodacomposição,gostavadeacantarolarbaixinho,detinha-senarua,paraouvi-latocaremalgumacasa,ezangava-se quando não a tocavam bem.Desde logo, as orquestras de teatro aexecutaram,eeleláfoiaumdeles.Nãodesgostoutambémdeaouvirassobiada,umanoite,porumvultoquedesciaaruadoAterrado.

Essa luademeldurouapenasumquartode lua.Comodasoutrasvezes, emaisdepressaainda,osvelhosmestresretratadosofizeramsangrarderemorsos.Vexadoeenfastiado,Pestanaarremeteucontraaquelaqueovieraconsolartantasvezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aívoltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca damoda,e juntamenteoesforçodecomporalgumacousaaosaborclássico,uma

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página que fosse, uma só,mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach eSchumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sairbatizado.Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que avontadeeratudo,eque,umavezqueabrissemãodamúsicafácil...

—Aspolcasquevãoparaoinfernofazerdançarodiabo—disseeleumdia,demadrugada,aodeitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, àprópria sala dos retratos, irrompiam tãoprontas, que ele não tinhamais queotempode as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, etornaràsvelhasfontes,dondelhenãomanavanada.Nessaalternativaviveuatécasar,edepoisdecasar.

—Casarcomquem?—perguntouSinhazinhaMotaaotioescrivãoquelhedeuaquelanotícia.

—Vaicasarcomumaviúva.—Velha?—Vinteeseteanos.—Bonita?—Não,nemfeia,assim,assim.Ouvidizerqueeleseenamoroudela,porque

aouviucantarnaúltimafestades.FranciscodePaula.Masouvi tambémqueelapossuioutraprenda,quenãoérara,masvalemenos:estátísica.

Osescrivãesnãodeviamterespírito—mauespírito,querodizer.Asobrinhadestesentiunofimumpingodebálsamo,quelhecurouadentadinhadainveja.Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de 27 anos, boacantoraetísica.Recebeu-acomoaesposaespiritualdoseugênio.Ocelibatoera,sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo;artisticamenteconsiderava-seumarruadordehorasmortas; tinhaaspolcasporaventuras de petimetres.Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obrassérias,profundas,inspiradasetrabalhadas.

Essaesperançaabotooudesdeasprimeirashorasdoamor,edesabrochouàprimeiraauroradocasamento.Maria,balbuciouaalmadele,dá-meoquenãoacheinasolidãodasnoites,nemnotumultodosdias.

Desdelogo,paracomemoraroconsórcio,teveideiadecomporumnoturno.Chamar-lhe-iaAve,Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio deinspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava àsescondidas; cousa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinhatocarcomele,ououvi-losomente,horasehoras,nasaladosretratos.Chegarama fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Umdomingo,porém,não sepôde teromarido, e chamouamulherpara tocarumtrecho do noturno; não lhe disse o que era, nem de quem era. De repente,

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parando,interrogou-acomosolhos.—Acaba—disseMaria—,nãoéChopin?Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dous trechos e

ergueu-se.Mariaassentou-seaopiano,e,depoisdealgumesforçodememória,executouapeçadeChopin.Aideia,omotivoeramosmesmos;Pestanaachara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições.Triste,desesperado,saiudecasa,edirigiu-separaoladodaponte,caminhodeS.Cristóvão.

—Paraquelutar?—diziaele.—Voucomaspolcas...Vivaapolca!Homensquepassavamporele,eouviamisto, ficavamolhando,comopara

um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre aambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira daestradadeferro,teveideiadeirpelotrilhoacimaeesperaroprimeirotremqueviesseeoesmagasse.Oguardafê-lorecuar.Voltouasietornouacasa.

Poucosdiasdepois—umaclaraefrescamanhãdemaiode1876—eramseishoras,Pestanasentiunosdedosumfrêmitoparticulareconhecido.Ergueu-sedevagarinho,paranãoacordarMaria,quetossiratodaanoite,eagoradormiaprofundamente.Foiparaasaladosretratos,abriuopiano,e,omaissurdamenteque pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dousmeses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; iatossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido,apavoradoedesesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque navizinhançahaviaumbaile,emquesetocaramváriasdesuasmelhorespolcas.Jáo baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia eperversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos,porventuralúbricos,aqueobrigavaalgumadaquelascomposições;tudoissoaopédocadáverpálido,ummolhodeossos,estendidonacama...Todasashorasdanoite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, deáguas-da-colôniaedeLabarraque,saltandosemparar,comoaosomdapolcadeumgrandePestanainvisível.

Enterradaamulher,oviúvo teveumaúnicapreocupação:deixaramúsica,depois de compor um réquiem, que faria executar no primeiro aniversário damorte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate,qualquercousaquelhefizesseesqueceraarteassassinaesurda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até oscaprichos do acaso, como fizera outrora, imitandoMozart. Releu e estudou oRequiemdesteautor.Passaram-sesemanasemeses.Aobra,célereaprincípio,afrouxouoandar.Pestanatinhaaltosebaixos.Oraachava-aincompleta,nãolhe

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sentiaaalmasacra,nemideia,neminspiração,nemmétodo;oraelevava-se-lheocoraçãoe trabalhavacomvigor.Oitomeses,nove,dez,11,eo réquiemnãoestava concluído. Redobrou de esforços; esqueceu lições e amizades. Tinharefeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse.Quinzedias,oito,cinco...Aauroradoaniversárioveioachá-lotrabalhando.

Contentou-sedamissa rezadae simples,paraele só.Não sepodedizer setodasaslágrimasquelhevieramsorrateiramenteaosolhosforamdomarido,ousealgumaseramdocompositor.Certoéquenuncamaistornouaoréquiem.

—Paraquê?—diziaeleasimesmo.Correuaindaumano.Noprincípiode1878,apareceu-lheoeditor.—Lávãodousanos—disse este—quenosnãodáumarda suagraça.

Todaagenteperguntaseosenhorperdeuotalento.Quetemfeito?—Nada.—Bemseiogolpequeoferiu;maslávãodousanos.Venhopropor-lheum

contrato:vintepolcasdurantedozemeses;opreçoantigo,eumaporcentagemmaiornavenda.Depois,acabadooano,podemosrenovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa parasaldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso.Aceitouocontrato.

—Masaprimeirapolcahádeserjá—explicouoeditor.—Éurgente.ViuacartadoImperadoraoCaxias?Osliberaisforamchamadosaopoder;vãofazerareforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não épolítica;éumbomtítulodeocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo desilêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma notagenial.Asoutraspolcasvieramvindo,regularmente.Conservaraosretratoseosrepertórios;masfugiadegastartodasasnoitesaopiano,paranãocairemnovastentativas. Jáagorapediaumaentradadegraça, semprequehaviaalgumaboaóperaouconcertodeartista,ia,metia-seaumcanto,gozandoaquelaporçãodecousasquenuncalhehaviamdebrotardocérebro.Umaououtravez,aotornarparacasa,cheiodemúsica,despertavaneleomaestroinédito;então,sentava-seaopiano, e, sem ideia, tirava algumasnotas, até que ia dormir, vinte ou trintaminutosdepois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhedefinitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas oprimeirolugardaaldeianãocontentavaaesteCésar,quecontinuavaapreferir-lhe,nãoosegundo,masocentésimoemRoma.Tinhaaindaasalternativasdeoutro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menosviolentas.Nementusiasmonasprimeirashoras,nemhorrordepoisdaprimeira

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semana;algumprazerecertofastio.Naqueleano,apanhouumafebredenada,queempoucosdiascresceu,até

virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que nãosabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lheuma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro, referiu-lhe oestado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é queinstouparaquelhedissesseoqueera;oeditorobedeceu.

—Mashádeserquandoestiverbomdetodo—concluiu.—Logoqueafebredeclineumpouco—disseoPestana.Seguiu-seumapausadealgunssegundos.Oclarinetafoipéantepépreparar

oremédio;oeditorlevantou-seedespediu-se.—Adeus.—Olhe—disseoPestana—,comoéprovávelqueeumorraporestesdias,

faço-lhelogoduaspolcas;aoutraserviráparaquandosubiremosliberais.Foiaúnicapilhériaquedisseemtodaavida,eeratempo,porqueexpirouna

madrugadaseguinte,às4h05,bemcomoshomensemalconsigomesmo.GazetadeNotícias,29dejunhode1888;MachadodeAssis.

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DePáginasrecolhidas

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Ocasodavara

Damião fugiudo seminário àsonzehorasdamanhãdeuma sexta-feirade

agosto.Não seibemoano; foi antesde1850.Passados algunsminutosparouvexado;nãocontavacomoefeitoqueproduzianosolhosdaoutragenteaqueleseminaristaqueiaespantado,medroso,fugitivo.Desconheciaasruas,andavaedesandava;finalmenteparou.Paraondeiria?Paracasa,não;láestavaopaiqueodevolveriaaoseminário,depoisdeumbomcastigo.Nãoassentaranopontoderefúgio, porque a saída estavadeterminadaparamais tarde; uma circunstânciafortuitaaapressou.Paraondeiria?Lembrou-sedopadrinho,JoãoCarneiro,masopadrinhoeraummoleirãosemvontade,queporsisónãofariacousaútil.Foielequeolevouaoseminárioeoapresentouaoreitor:

—Trago-lheograndehomemquehádeser—disseeleaoreitor.— Venha — acudiu este —, venha o grande homem, contanto que seja

tambémhumildeebom.Averdadeiragrandezaéchã.Moço...Tal foi a entrada. Pouco tempodepois fugiu o rapaz ao seminário.Aqui o

vemosagoranarua,espantado, incerto,sematinarcomrefúgionemconselho;percorreudememóriaascasasdeparenteseamigos,semsefixaremnenhuma.Derepente,exclamou:

—Voupegar-mecomSinháRita!Elamandachamarmeupadrinho,diz-lhequequerqueeusaiadoseminário...Talvezassim...

Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umasideias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar.Ondemorava?Estava tãoatordoado,quesódaíaalgunsminutoséquelheacudiuacasa;eranolargodoCapim.

—SantonomedeJesus!Queé isto?—bradouSinháRita,sentando-senamarquesa,ondeestavareclinada.

Damião acabava de entrar espavorido; nomomento de chegar à casa, virapassarumpadre,edeuumempurrãoàporta,queporfortunanãoestavafechadaachavenem ferrolho.Depoisde entrar espioupela rótula, averopadre.Estenãodeuporeleeiaandando.

—Masqueéisto,sr.Damião?—bradounovamenteadonadacasa,quesóagoraoconhecera.—Quevemfazeraqui?

Damião, trêmulo,mal podendo falar, disse que não tivessemedo, não era

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nada;iaexplicartudo.—Descanse,eexplique-se.—Jálhedigo;nãopratiqueinenhumcrime,issojuro;masespere.SinháRitaolhavaparaeleespantada,etodasascrias,decasa,edefora,que

estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todasfizerampararosbilroseasmãos.SinháRitaviviaprincipalmentedeensinarafazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou àspequenasquetrabalhassem,eesperou.Afinal,Damiãocontoutudo,odesgostoque lhedavao seminário; estavacertodequenãopodia serbompadre; faloucompaixão,pediu-lhequeosalvasse.

—Comoassim?Nãopossonada.—Pode,querendo.—Não—replicouelaabanandoacabeça—,nãomemetoemnegóciosde

suafamília,quemalconheço;eentãoseupai,quedizemqueézangado!Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos,

desesperado.—Podemuito,SinháRita;peço-lhepeloamordeDeus,peloqueasenhora

tiver demais sagrado, por alma de seumarido, salve-medamorte, porque eumato-me,sevoltarparaaquelacasa.

SinháRita, lisonjeada com as súplicas domoço, tentou chamá-lo a outrossentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhemostrariaqueeramelhorvencerasrepugnânciaseumdia...Não,nada,nunca!redarguiaDamião,abanandoacabeçaebeijando-lheasmãos;erepetiaqueeraasuamorte.SinháRitahesitouaindamuito tempo;afinalperguntou-lheporquenãoiatercomopadrinho.

—Meupadrinho?Esseéaindapiorquepapai;nãomeatende,duvidoqueatendaaninguém...

—Nãoatende?—interrompeuSinháRitaferidaemseusbrios.—Ora,eulhemostroseatendeounão...

Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do sr. João Carneirochamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia serencontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falarimediatamente.

—Anda,moleque.Damiãosuspiroualtoetriste.Ela,paramascararaautoridadecomquedera

aquelasordens,explicouaomoçoqueosr.JoãoCarneiroforaamigodomaridoearranjara-lhealgumascriasparaensinar.Depois,comoelecontinuasse triste,encostadoaumportal,puxou-lheonariz,rindo:

—Andelá,seupadreco,descansequetudosehádearranjar.

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SinháRita tinhaquarentaanosnacertidãodebatismo,e27nosolhos.Eraapessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava comodiabo.Quisalegrarorapaz,e,apesardasituação,nãolhecustoumuito.Dentrodepouco,amboselesriam,elacontava-lheanedotas,epedia-lheoutras,queelereferia comsingulargraça.Umadestas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir aumadas crias deSinháRita, que esquecera o trabalho, paramirar e escutar omoço.SinháRitapegoudeumavaraqueestavaaopédamarquesa,eameaçou-a:

—Lucrécia,olhaavara!Apequenaabaixouacabeça,aparandoogolpe,masogolpenãoveio.Era

umaadvertência;seànoitinhaatarefanãoestivessepronta,Lucréciareceberiaocastigodocostume.Damiãoolhouparaapequena;eraumanegrinha,magricela,um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mãoesquerda. Contava 11 anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro,surdamente,afimdenãointerromperaconversação.Tevepenadanegrinha,eresolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria operdão...Demais,elariraporachar-lhegraça;aculpaerasua,seháculpaemterchiste.

Nisto,chegouJoãoCarneiro.Empalideceuquandoviualioafilhado,eolhoupara Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que erapreciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vidaeclesiástica,eantesumpadredemenosqueumpadreruim.CáforatambémsepodiaamareserviraNossoSenhor.JoãoCarneiro,assombrado,nãoachouquereplicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu oafilhadoportervindoincomodar“pessoasestranhas”,eemseguidaafirmouqueocastigaria.

—Qualcastigar,qualnada!—interrompeuSinháRita.—Castigarporquê?Vá,váfalaraseucompadre.

—Nãoafiançonada,nãocreioquesejapossível...—Hádeserpossível,afiançoeu.Seosenhorquiser—continuouelacom

certo tom insinuativo—, tudosehádearranjar.Peça-lhemuito,queelecede.Ande, sr. JoãoCarneiro, seuafilhadonãovoltaparao seminário;digo-lhequenãovolta...

—Mas,minhasenhora...—Vá,vá.JoãoCarneironãoseanimavaasair,nempodiaficar.Estavaentreumpuxar

de forçasopostas.Não lhe importava, em suma,queo rapaz acabasse clérigo,advogadooumédico,ououtraqualquercousa,vadioquefosse;masopioréquelhecometiamumalutaingentecomossentimentosmaisíntimosdocompadre,

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semcertezado resultado; e, se este fossenegativo,outra luta comSinháRita,cujaúltimapalavraeraameaçadora:“digo-lhequeelenãovolta”.Tinhadehaverpor força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, apálpebratrêmula,opeitoofegante.OsolharesquedeitavaaSinháRitaeramdesúplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outracousa?Porquelhenãoordenavaquefosseapé,debaixodechuva,àTijuca,ouJacarepaguá?Maslogopersuadiraocompadrequemudasseacarreiradofilho...Conheciaovelho; era capazde lhequebraruma jarrana cara.Ah! seo rapazcaísseali,derepente,apoplético,morto!Eraumasolução—cruel,écerto,masdefinitiva.

—Então?—insistiuSinháRita.Elefez-lheumgestodemãoqueesperasse.Coçavaabarba,procurandoum

recurso.Deusdocéu!umdecretodopapadissolvendoaIgreja,ou,pelomenos,extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltariapara casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão eraencarregadodecomandarabatalhadeAusterlitz...MasaIgrejacontinuava,osseminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos,esperando,semsoluçãoapoplética.

—Vá,vá—disseSinháRitadando-lheochapéueabengala.Nãoteveremédio.Obarbeirometeuanavalhanoestojo,travoudaespadae

saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma,olhosfincadosnochão,acabrunhado.SinháRitapuxou-lhedestavezoqueixo.

—Andejantar,deixe-sedemelancolias.—Asenhoracrêqueelealcancealgumacousa?—Hádealcançartudo—redarguiuSinháRitacheiadesi.—Ande,quea

sopaestáesfriando.Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve,

Damiãoestevemenosalegreaojantarquenaprimeirapartedodia.Nãofiavadocarátermoledopadrinho.Contudo,jantoubem;e,paraofim,voltouàspilhériasdamanhã. À sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se ovinhamprender.

—Hãodeserasmoças.Levantaram-se e passaram à sala. Asmoças eram cinco vizinhas que iam

todasastardestomarcafécomSinháRita,ealificavamatéocairdanoite.Asdiscípulas,findoojantardelas,tornaramàsalmofadasdotrabalho.Sinhá

Ritapresidiaa todoessemulheriodecasaedefora.Osussurrodosbilroseopalavreardasmoçaseramecostãomundanos,tãoalheiosàteologiaeaolatim,que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeirosminutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou

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depressa.Umadelascantouumamodinha,aosomdaguitarra,tangidaporSinháRita,eatardefoipassandodepressa.Antesdofim,SinháRitapediuaDamiãoque contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rirLucrécia.

—Ande,sr.Damião,nãosefaçaderogado,queasmoçasqueremirembora.Vocêsvãogostarmuito.

Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e aexpectação,queserviamadiminuirochisteeoefeito,aanedotaacabouentrerisadasdasmoças.Damião,contentedesi,nãoesqueceuLucréciaeolhouparaela,averseriratambém.Viu-acomacabeçametidanaalmofadaparaacabaratarefa.Nãoria;outeriaridoparadentro,comotossia.

Saíramasvizinhas,eatardecaiudetodo.AalmadeDamiãofoi-sefazendotenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, iaespiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra dopadrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros, foi àpolícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário.DamiãoperguntouaSinháRitaseacasanãoteriasaídapelosfundos;correuaoquintal,ecalculouquepodiasaltaromuro.Quisaindasabersehaveriamododefugirparaa ruadaVala,ou seeramelhor falar aalgumvizinhoque fizesseofavordeo receber.Opior era abatina; seSinháRita lhepudesse arranjarumrodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de umrodaque,lembrançaouesquecimentodeJoãoCarneiro.

—Tenhoumrodaquedomeudefunto—disseela,rindo—,masparaqueestácomessessustos?Tudosehádearranjar,descanse.

Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, comuma cartaparaSinháRita.Onegócioaindanãoestavacomposto;opaificoufuriosoequisquebrartudo;bradouquenão,senhor,queoperaltahaviadeirparaoseminário,ou entãometia-o noAljube ou na presiganga. JoãoCarneiro lutoumuito paraconseguirqueocompadrenãoresolvesselogo,quedormisseanoite,emeditassebemseeraconvenientedaràreligiãoumsujeitotãorebeldeevicioso.Explicavanacartaquefalouassimparamelhorganharacausa.Nãoatinhaporganha;masnodiaseguinteláiriaverohomem,eteimardenovo.Concluíadizendoqueomoçofosseparaacasadele.

Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. “Não tenho outratábuadesalvação”,pensouele.SinháRitamandouvirumtinteirodechifre,enameiafolhadaprópriacartaescreveuestaresposta:“Joãozinho,ouvocêsalvaomoço, ou nunca mais nos vemos.” Fechou a carta com obreia, e deu-a aoescravo,paraquealevassedepressa.Voltouareanimaroseminarista,queestavaoutraveznocapuzdahumildadeedaconsternação.Disse-lhequesossegasse,

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queaquelenegócioeraagoradela.—Hãodeverparaquantopresto!Não,queeunãosoudebrincadeiras!Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as

discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada,meneandoosbilros,jásemver;SinháRitachegou-seaela,viuqueatarefanãoestavaacabada,ficoufuriosa,eagarrou-aporumaorelha.

—Ah!malandra!—Nhanhã,nhanhã!peloamordeDeus!porNossaSenhoraqueestánocéu.—Malandra!NossaSenhoranãoprotegevadias!Lucréciafezumesforço,soltou-sedasmãosdasenhora,efugiuparadentro;

asenhorafoiatráseagarrou-a.—Andacá!—Minhasenhora,meperdoe!—tossiaanegrinha.—Nãoperdoo,não.Ondeestáavara?E tornaramambasà sala,umapresapelaorelha,debatendo-se, chorandoe

pedindo;aoutradizendoquenão,queahaviadecastigar.—Ondeestáavara?Avaraestavaàcabeceiradamarquesa,dooutroladodasala.SinháRita,não

querendosoltarapequena,bradouaoseminarista:—Sr.Damião,dê-meaquelavara,fazfavor?Damiãoficoufrio...Cruelinstante!Umanuvempassou-lhepelosolhos.Sim,

tinhajuradoapadrinharapequena,queporcausadeleatrasaraotrabalho...—Dê-meavara,sr.Damião!Damião chegou a caminhar na direção damarquesa.A negrinha pediu-lhe

então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por NossoSenhor...

—Meacuda,meusinhômoço!SinháRita,comacaraemfogoeosolhosesbugalhados,instavapelavara,

sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-secompungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa,pegounavaraeentregou-aaSinháRita.

GazetadeNotícias,1ºdefevereirode1891;MachadodeAssis.

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Missadogalo

Nunca pude entender a conversação que tive comuma senhora, hámuitos

anos, contava eu17, ela trinta.Era noite deNatal.Havendo ajustado comumvizinhoirmosàmissadogalo,preferinãodormir;combineiqueeuiriaacordá-loàmeia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivãoMeneses, que foracasado, emprimeirasnúpcias, comumademinhasprimas.Asegundamulher,Conceição,eamãedestaacolheram-mebem,quandovimdeMangaratibaparaoRio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquelacasaassobradadadaruadoSenado,comosmeuslivros,poucasrelações,algunspasseios.Afamíliaerapequena,oescrivão,amulher,asograeduasescravas.Costumesvelhos.Àsdezhorasdanoitetodaagenteestavanosquartos;àsdezemeiaacasadormia.Nuncatinhaidoaoteatro,emaisdeumavez,ouvindodizeraoMenesesqueiaaoteatro,pedi-lhequemelevasseconsigo.Nessasocasiões,asografaziaumacareta,easescravasriamàsocapa;elenãorespondia,vestia-se,saíaesótornavanamanhãseguinte.Maistardeéqueeusoubequeoteatroeraumeufemismoemação.Menesestraziaamorescomumasenhora,separadadomarido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, aprincípio,comaexistênciadacomborça;mas,afinal,resignara-se,acostumara-se,eacabouachandoqueeramuitodireito.

BoaConceição!Chamavam-lhe“asanta”,efaziajusaotítulo,tãofacilmentesuportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamentomoderado,semextremos,nemgrandeslágrimas,nemgrandesrisos.Nocapítulode que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparênciassalvas.Deusme perdoe, se a julgomal. Tudo nela era atenuado e passivo.Opróprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos umapessoa simpática.Não diziamal de ninguém, perdoava tudo.Não sabia odiar;podeseratéquenãosoubesseamar.

NaquelanoitedeNatal foioescrivãoao teatro.Erapelosanosde1861ou1862.EujádeviaestaremMangaratiba,emférias;masfiqueiatéoNatalparaver “amissa do galo na corte”. A família recolheu-se à hora do costume; eumeti-menasaladafrente,vestidoepronto.Dalipassariaaocorredordaentradae sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o

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escrivão,eulevariaoutra,aterceiraficavaemcasa.—Mas, sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo?— perguntou-me a

mãedeConceição.—Leio,d.Inácia.Tinha comigoum romance, osTrêsMosqueteiros, velha tradução creio do

JornaldoCommercio.Sentei-meàmesaquehavianocentrodasala,eàluzdeum candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez aocavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estavacompletamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do quecostumamfazer,quandosãodeespera;ouvibateronzehoras,masquasesemdarporelas,umacaso.Entretanto,umpequenorumorqueouvidentroveioacordar-medaleitura.Eramunspassosnocorredorqueiadasaladevisitasàdejantar;levanteiacabeça;logodepoisviassomaràportadasalaovultodeConceição.

—Aindanãofoi?—perguntouela.—Nãofui;parecequeaindanãoémeia-noite.—Quepaciência!Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um

roupão branco, mal-apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visãoromântica,nãodisparatadacomomeulivrodeaventuras.Fecheiolivro;elafoisentar-senacadeiraqueficavadefrontedemim,pertodocanapé.Comoeulheperguntasse se a havia acordado, semquerer, fazendobarulho, respondeu compresteza:

—Não!qual!Acordeiporacordar.Fitei-aumpoucoeduvideidaafirmativa.Osolhosnãoeramdepessoaque

acabassededormir; pareciamnão ter aindapegadono sono.Essaobservação,porém,quevaleriaalgumacousaemoutroespírito,depressaabotei fora, semadvertir que talvez não dormisse justamente porminha causa, ementisse paramenãoafligirouaborrecer.Jádissequeelaeraboa,muitoboa.

—Masahorajáhádeestarpróxima—disseeu.—Quepaciênciaa suadeesperaracordado,enquantoovizinhodorme!E

esperar sozinho! Não temmedo de almas do outromundo? Eu cuidei que seassustassequandomeviu.

—Quandoouviospassosestranhei;masasenhoraapareceulogo.—Queéqueestavalendo?Nãodiga,jásei,éoromancedosMosqueteiros.—Justamente:émuitobonito.—Gostaderomances?—Gosto.—JáleuaMoreninha?—Dodr.Macedo?TenholáemMangaratiba.

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—Eu gostomuito de romances,mas leio pouco, por falta de tempo.Queromanceséquevocêtemlido?

Comeceiadizer-lheosnomesdealguns.Conceiçãoouvia-mecomacabeçareclinadano espaldar, enfiandoos olhos por entre as pálpebrasmeio cerradas,sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, paraumedecê-los.Quandoacabeidefalar,nãomedissenada;ficamosassimalgunssegundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre elespousaroqueixo,tendooscotovelosnosbraçosdacadeira,tudosemdesviardemimosgrandesolhosespertos:

“Talvezestejaaborrecida”,penseieu.Elogoalto:—D.Conceição,creioquevãosendohoras,eeu...—Não,não,aindaécedo.Viagoramesmoorelógio;sãoonzeemeia.Tem

tempo.Você,perdendoanoite,écapazdenãodormirdedia?—Játenhofeitoisso.—Eu,não;perdendoumanoite,nooutrodiaestouquenãoposso,e,meia

horaqueseja,heidepassarpelosono.Mastambémestouficandovelha.—Quevelhaoquê,d.Conceição?Talfoiocalordaminhapalavraqueafezsorrir.Decostumetinhaosgestos

demoradoseasatitudestranquilas;agora,porém,ergueu-serapidamente,passouparaooutroladodasalaedeualgunspassos,entreajaneladaruaeaportadogabinetedomarido.Assim,comodesalinhohonestoque trazia,dava-meumaimpressão singular.Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, comoquem lhecusta levarocorpo;essa feiçãonuncamepareceu tãodistintacomonaquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ouconcertandoaposiçãodealgumobjetonoaparador;afinaldeteve-se,antemim,comamesadepermeio.Estreitoeraocírculodassuasideias;tornouaoespantode me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nuncaouviramissadogalonacorte,enãoqueriaperdê-la.

—Éamesmamissadaroça;todasasmissasseparecem.—Acredito;masaquihádehavermaisluxoemaisgentetambém.Olhe,a

semanasantanacorteémaisbonitaquena roça.S. Joãonãodigo,nemsantoAntônio...

Poucoapouco,tinha-sereclinado;fincaraoscotovelosnomármoredamesaemeteraorostoentreasmãosespalmadas.Nãoestandoabotoadasasmangas,caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menosmagrosdoquesepoderiasupor.Avistanãoeranovaparamim,postotambémnãofossecomum;naquelemomento,porém,aimpressãoquetivefoigrande.Asveias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu

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lugar.ApresençadeConceiçãoespertara-meaindamaisqueolivro.Continueiadizeroquepensavadas festasda roçaedacidade,edeoutrascousasquemeiamvindoàboca.Falavaemendandoosassuntos,semsaberporquê,variandodelesou tornandoaosprimeiros,e rindopara fazê-lasorrirever-lheosdentesqueluziamdebrancos,todosiguaizinhos.Osolhosdelanãoerambemnegros,masescuros;onariz,secoelongo,umtantinhocurvo,dava-lheaorostoumarinterrogativo.Quandoeualteavaumpoucoavoz,elareprimia-me:

—Maisbaixo!mamãepodeacordar.E não saía daquela posição, queme enchia de gosto, tão perto ficavam as

nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido;cochichávamos os dous, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes,ficavaséria,muitoséria,comatestaumpoucofranzida.Afinal,cansou;trocoudeatitudeedelugar.Deuvoltaàmesaeveiosentar-sedomeulado,nocanapé.Voltei-me,epudever,afurto,obicodaschinelas;masfoisóotempoqueelagastouemsentar-se,o roupãoeracompridoecobriu-as logo.Recordo-mequeerampretas.Conceiçãodissebaixinho:

— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora,coitada,tãocedonãopegavanosono.

—Eutambémsouassim.—Oquê?—perguntouelainclinandoocorpo,paraouvirmelhor.Fuisentar-menacadeiraqueficavaaoladodocanapéerepeti-lheapalavra.

Riu-sedacoincidência;tambémelatinhaosonoleve;éramostrêssonosleves.—Háocasiõesemquesoucomomamãe;acordando,custa-medormiroutra

vez, rolonacama,à toa, levanto-me,acendovela,passeio, tornoadeitar-meenada.

—Foioquelheaconteceuhoje.—Não,não—atalhouela.Nãoentendianegativa; elapode serque tambémnãoaentendesse.Pegou

daspontasdocintoebateucomelas sobreos joelhos, istoé,o joelhodireito,porque acabava de cruzar as pernas.Depois referiu uma história de sonhos, eafirmou-mequesótiveraumpesadelo,emcriança.Quissaberseeuostinha.Aconversa reatou-se assim lentamente, longamente, semque eu desse pela horanem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, elainventavaoutraperguntaououtramatéria, e eupegavanovamentenapalavra.Dequandoemquando,reprimia-me:

—Maisbaixo,maisbaixo...Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via

dormir;masosolhos,cerradosporuminstante,abriam-se logosemsononemfadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes

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creioquedeupormimembebidona suapessoa, e lembra-mequeos tornouafechar, não sei se apressadaouvagarosamente.Há impressõesdessanoitequemeaparecemtruncadasouconfusas.Contradigo-me,atrapalho-me.Umadasqueaindatenhofrescaséque,emcertaocasião,ela,queeraapenassimpática,ficoulinda,ficoulindíssima.Estavadepé,osbraçoscruzados;eu,emrespeitoaela,quislevantar-me;nãoconsentiu,pôsumadasmãosnomeuombro,eobrigou-mea estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como setivesseumarrepiodefrio,voltouascostasefoisentar-senacadeira,ondemeacharalendo.Dalirelanceouavistapeloespelho,queficavaporcimadocanapé,faloudeduasgravurasquependiamdaparede.

—Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para compraroutros.

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio destehomem.Umrepresentava“Cleópatra”;nãomerecordooassuntodooutro,maserammulheres.Vulgaresambos;naqueletemponãomepareciamfeios.

—Sãobonitos—disseeu.— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia

duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou debarbeiro.

—Debarbeiro?Asenhoranuncafoiacasadebarbeiro.— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e

namoros,enaturalmenteodonodacasaalegraavistadelescomfigurasbonitas.Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso;mas eu pensomuita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenhouma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é deescultura,nãosepodepôrnaparede,nemeuquero.Estánomeuoratório.

Aideiadooratóriotrouxe-meadamissa,lembrou-mequepodiasertardeequisdizê-lo.Pensoquechegueiaabriraboca,mas logoa fecheiparaouviroqueelacontava,comdoçura,comgraça,comtalmolezaque traziapreguiçaàminha alma e fazia esquecer amissa e a igreja. Falava das suas devoções demenina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos depasseio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção.Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, dascanseiras de família, que lhe diziam sermuitas, antes de casar,mas não eramnada.Nãomecontou,maseusabiaquecasaraaos27anos.

Jáagoranãotrocavadelugar,comoaprincípio,equasenãosaíradamesmaatitude.Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para asparedes.

—Precisamosmudaropapeldasala—dissedaíapouco,comosefalasse

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consigo.Concordei,paradizeralgumacousa,parasairdaespéciedesonomagnético,

ouoquequerqueeraquemetolhiaalínguaeossentidos.Queriaenãoqueriaacabaraconversação;faziaesforçoparaarredarosolhosdela,earredava-osporum sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento,quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa iamorrendo.Narua,osilêncioeracompleto.

Chegamos a ficar por algum tempo — não posso dizer quanto —inteiramentecalados.Orumorúnicoeescasso,eraumroerdecamundongonogabinete, queme acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele,masnão acheimodo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi umapancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: “Missa do galo!missadogalo!”

—Aíestáocompanheiro—disseelalevantando-se.—Temgraça;vocêéqueficoudeiracordá-lo,eleéquevemacordarvocê.Vá,quehãodeserhoras;adeus.

—Jáserãohoras?—perguntei.—Naturalmente.—Missadogalo!—repetiramdefora,batendo.—Vá,vá,nãosefaçaesperar.Aculpafoiminha.Adeus,atéamanhã.Ecomomesmobalançodocorpo,Conceiçãoenfioupelocorredordentro,

pisandomansinho.Saíàruaeacheiovizinhoqueesperava.Guiamosdaliparaaigreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez,entremimeopadre;fiqueistoàcontadosmeus17anos.Namanhãseguinte,aoalmoço, falei damissa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar acuriosidadedeConceição.Duranteodia,achei-acomosempre,natural,benigna,semnadaquefizesselembraraconversaçãodavéspera.Peloano-bomfuiparaMangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinhamorridodeapoplexia.ConceiçãomoravanoEngenhoNovo,masnemavisiteinemaencontrei.Ouvimais tardequecasaracomoescrevente juramentadodomarido.

ASemana,12demaiode1894;MachadodeAssis.

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Umerradio

—Aporta abriu-se...Deixa-me contar a história à laia de novela—disse

Tostaàmulher,ummêsdepoisdecasados,quandoelalheperguntouquemeraohomemrepresentadonumavelhafotografia,achadanasecretáriadomarido. —A porta abriu-se, e apareceu este homem, alto e sério, moreno, metido numainfinitasobrecasacacorderapé,queosrapazeschamavamopa.

—AívemaopadoElisiário.—Entreaopasó.—Não,aopanãopode;entresóoElisiário,mas,primeirohádeglosarum

mote.Quemdáomote?Ninguém dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada por um

alfaiate, quemorava nos fundos com a família; rua doLavradio, 1.866.Era asegundavezqueiaaliaconvitedeumdosrapazes.Nãopodesterideiadasalaedavida.ImaginaummunicípiodopaísdaBoêmia,tudodesordenadoeconfuso;além dos poucosmóveis pobres, que eram do alfaiate, havia duas redes, umacanastra, um cabide, um baú de folha de flandres, livros, chapéus, sapatos.Moravamcinco rapazes,masapareciamoutros, e todoseram tudo, estudantes,tradutores,revisores,namoradores,eaindalhessobravatempopararedigirumafolha política e literária, publicada aos sábados. Que longas palestras quetínhamos! Solapávamos as bases da sociedade, descobríamos mundos novos,constelaçõesnovas,liberdadesnovas.Tudoeranovíssimo.

—Lávaimote—disseafinalumdosrapazes,erecitou:PodiaembrulharomundoAopadoElisiário.Parado à porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os,

passoupelatestaolençoquetraziafechadonamão,emformadebolo,erecitouuma glosa de improviso. Rimo-nosmuito; eu, que não tinha ideia do que eraimproviso,cuideiaprincípioqueacomposiçãoeravelhaeacenaumlogroparamim.Elisiáriodespiua sobrecasaca, levantou-anapontadabengala,deuduasvoltaspelasala,comar triunfal,e foipendurá-laaumprego,porqueocabideestavacheio.Emseguida,atirouochapéuaoteto,apanhou-oentreasmãos,efoi

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pô-loemcimadoaparador.—Lugarparaum!—dissefinalmente.Dei-mepressaemceder-lheosofá;eledeitou-se,fincouosjoelhosnoar,e

perguntouquenovidadeshavia.—Queojantaréduvidoso—respondeuoredatorprincipaldoCenáculo —;

oChicofoiversecobravaalgumaassinatura.Searranjardinheiro, traz logoojantardacasadepasto.Vocêjájantou?

—Jáebem—respondeuElisiário—,janteinumacasadecomércio.MasvocêsporqueéquenãovendemoChico?éumbonitocrioulo.Élivre,nãohádúvida, mas por isso mesmo compreenderá que, deixando-se vender comoescravo, terãovocêscomquepagar-lheosordenados...Dousmil-réischegam?Romeu,vêalinobolsodasobrecasaca.Hádehaverunsdousmil-réis.

Havia só 1.500, mas não foram precisos. Cincominutos depois voltava oChico, trazendo um tabuleiro com o jantar e o resto da assinatura de umsemestre.

—Nãoépossível!—bradouElisiário.—Umaassinatura!Vemcá,Chico.Quem foi que pagou?Que figura tinha o homem?Baixo?Não é possível quefosse baixo; a ação é tão sublime que nenhum homembaixo podia praticá-la.Confessa que era alto.Confessa aomenos que era demeia altura.Confessas?Aindabem!Comosechama?Guimarães?Rapazes,vamosperpetuarestenomeemumaplacadebronze.Acreditoquenãolhedesterecibo,Chico.

—Dei,sim,senhor.— Recibo! Mas a um assinante que paga não se dá recibo, para que ele

pagueoutravez;nãosematamesperanças,Chico.Tudo isto, dito por ele, tinhamuitomais graça que contado.Não te posso

pintarosgestos,osolhoseumrisoquenãoria,umrisoúnico,semalteraraface,nemmostrarosdentes.Essafeiçãoeraamenossimpática;mas tudoomais,afala,as ideias,eprincipalmentea imaginaçãofecundaemoça,quesedesfaziaemditos,anedotas,epigramas,versos,descrições,orasério,quasesublime,orafamiliar, quase rasteiro, mas sempre original, tudo atraía e prendia. Trazia abarbapor fazer,ocabeloàescovinha;a testa,queeraalta, tinhagrossas rugasverticais.Calado,pareciaestarpensando.Voltava-seamiúdonosofá,erguia-se,sentava-se,tornavaadeitar-se.Láodeixei,quandosaí,àsnovehorasdanoite.

Comeceia frequentaracasada ruadoLavradio,masduranteosprimeirosdias não apareceu o Elisiário. Disseram-me que era muito incerto. Tinhatemporadas.Àsvezes,iatodososdias;repentinamente,falhavauma,duas,trêssemanasseguidas,emais.Eraprofessorde latimeexplicadordematemáticas.Não era formado em cousa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina edireito,deixandoemtodasasfaculdadesfamadegrandetalentosemaplicação.

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Seriabomprosador,sefossecapazdeescrevervinteminutosseguidos;erapoetadeimproviso,nãoescreviaosversos,osoutroséqueosouviametransladavamaopapel,dando-lhecópias,muitasdasquaisperdia.Nãotinhafamília;tinhaumprotetor,odr.Lousada,operadordealgumnome,quedeveraobséquiosaopaideElisiário,equispagá-losaofilho.Eraatrevidoporcausadeumasombrinhadeamor-próprio, que não tolerava a menor picada. Naquela casa era bonachão.Trintaecincoanos;omaisvelhodosrapazescontavaapenas21.Afamiliaridadeentreeleeosoutroseracomoadeumtiocomsobrinhos,umpoucomenosdeautoridade,umpoucomaisdeliberdade.

Nofimdeumasemana,apareceuElisiárionaruadoLavradio.Vinhacomaideia de escrever um drama, e queria ditá-lo. Escolheram-me a mim, porescreverdepressa.Estacolaboraçãomentalemanualdurouduasnoitesemeia.Escreveu-se um ato e as primeiras cenas de outro; Elisiário não quisabsolutamente acabar a peça.A princípio disse que depois,mais tarde, estavaindisposto, e falava de outras cousas; afinal, declarou-nos que a peça nãoprestavaparanada.Espantogeral,porqueaobraparecia-nosexcelente,eaindaagoracreioqueoera.Masoautorpegoudapalavraedemonstrouquenemoescrito prestava, nem o resto do plano valia cousa nenhuma. Falou como setratassedeoutrem.Nós contestávamos; euprincipalmente achavaumcrime, erepetia esta palavra com alma, com fogo— achava um crime não acabar odrama,queeradeprimeiraordem.

—Nãovalenada—diziaelesorrindoparamimcomsimpatia.—Menino,vocêquantosanostem?

—Dezoito.—Tudoésublimeaos18anos.Cresçaeapareça.Odramanãopresta;mas,

deixeestarquehavemosdeescreveroutrodaquiadias.Andocomumaideia.—Sim?—Umaboaideia—continuouelecomosolhosvagos—;essa,sim,creio

quedaráumdrama.Cincoatos;talvezfaçaemverso.Oassuntopresta-se...Nunca mais falou em tal ideia; mas o drama começado fez com que nos

ligássemos um pouco mais intimamente. Ou simpatia, ou amor-própriosatisfeito, porverqueomais consternadocoma interrupção e condenaçãodotrabalhofuieu—ouqualqueroutracausaquenãoacheinemvaleapenabuscar,Elisiárioentrouadistinguir-meentreosoutros.Quissaberquemerammeuspaiseoquefazia.Disse-lhequenãotinhamãe;meupaieralavradoremBaturité,euestudava preparatórios, intercalando-os com versos, e andava com ideias decomporumpoema,umdramaeumromance.Tinhajáumalistadesubscritoresparaosversos.Pareceque,deenvoltacomasnotícias literárias,algumacousalhe disse ou ele percebeu acerca dosmeus sentimentos demoço. Propôs-se a

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ajudar-menosestudoscomoseupróprioensino,latim,francês,inglês,história...Cheiodeorgulho,nãomenosquedesensibilidade,proferialgumaspalavrasqueelegostoudeouvir,eaquerespondeugravemente:

—Querofazerdevocêumhomem.Estávamossós;eunadaconteiaosoutros,paraosnãomolestar,nemseise

elesperceberamdaíemdiantealgumadiferençanotratodoElisiário,emrelaçãoamim.Écerto,porém,queadiferençanãoeragrande,nemoplanode“fazer-meumhomem”foialémdasimpatiaedabenevolência.Ensinava-mealgumasmatérias,quandoeulhepedialições,eeuraramenteaspedia.Queriasóouvi-lo,ouvi-lo,ouvi-loaténãoacabar.Nãoimaginasaeloquênciadessehomem,cálidae forte, mansa e doce, as imagens que lhe brotavam no discurso, as ideiasarrojadas,asformasnovasegraciosas.MuitavezficávamososdoussósnaruadoLavradio, ele falando, eu ouvindo.Ondemorava?Disseram-mevagamenteque para os lados daGamboa,mas nuncame convidou a lá ir, nem ninguémsabiapositivamenteondeera.

Na rua era lento, direito, circunspecto. Nada faria então suspeitar odesengonçadodacasadoLavradio,e,sefalava,erampoucasemeiaspalavras.Nos primeiros dias, encontrava-me sem alvoroço, quase sem prazer, ouvia-meatento,respondiapouco,estendiaosdedosecontinuavaaandar.Iaatodaparte;era comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, S.Cristóvão,Andaraí.Quandolhedavanaveneta,metia-senabarcaeiaaNiterói.Chamava-seasimesmoerradio.

—Eusouumerradio.Nodiaemqueparardevez,juremqueestoumorto.Umdiaencontrei-onaruadeS.José.Disse-lhequeiaaoCasteloveraigreja

dosJesuítas,quenuncavira.—Poisvamos—disseele.Subimosaladeira,achamosaigrejaabertaeentramos.Enquantoeumirava

os altares, ele ia falando,mas empoucosminutoso espetáculo era ele só, umespetáculovivo,comosetudorenasceratalqualera.Viosprimeirostemplosdacidade,ospadresdaCompanhia,avidamonásticaeleiga,osnomesprincipaiseosfatosculminantes.Quandosaímos,efomosatéàmuralha,descobrindoomarepartedacidade,Elisiáriofez-meviverdousséculosatrás.Viaexpediçãodosfranceses, como se a houvesse comandado ou combatido. Respirei o ar dacolônia, contemplei as figuras velhas emortas. A imaginação evocativa era agrandeprendadessehomem,quesabiadarvidaàscousasextintaserealidadeàsinventadas.

Mas não era só do passado local que ele sabia, nem unicamente dos seussonhos. Vês aquela estatuazinha que ali tenho na parede? Sabes que é umareduçãodaVênusdeMilo.Umavez,abrindo-seaexposiçãodasbelas-artes,fui

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visitá-la; achei lá o meu Elisiário, passeando grave, com a sua imensasobrecasaca.Acompanhou-me;aopassarpelasaladeescultura,deicomosolhosnacópiadestaVênus.Eraaprimeiravezqueavia.Soubequeeraelapelafaltadosbraços.

—Oh!admirável!—exclamei.Elisiário entrou a comentar a bela obra anônima, com tal abundância e

agudezaquemedeixouaindamaispasmado.QuedecousasmedisseapropósitodaVênusdeMilo,edaVênusemsimesma!Faloudaposiçãodosbraços,quegestofariam,queatitudedariamàfigura,formulandoumaporçãodehipótesesgraciosas e naturais. Falou da estética, dos grandes artistas, da vida grega, domármore grego, da alma grega. Era um grego, um puro grego, que ali meaparecia e transportavadeuma rua estreita paradiantedoPártenon.AopadoElisiáriotransformou-seemclâmide,alínguadeviaseradaHélade,conquantoeunadasoubesseatalrespeito,nementão,nemagora.Maserafeiticeiroodiabodohomem.

Saímos;fomosatéocampodaAclamação,queaindanãopossuíaoparquedehoje,nemtinhaoutrapolíciaalémdanatureza,quefaziabrotarocapim,edaslavadeiras,quebatiameensaboavamaroupadefrontedoquartel.Euiacheiododiscurso do Elisiário, ao lado dele, que levava a cabeça baixa e os olhospensativos.Derepente,ouvidizerbaixinho:

—Adeus,Ioiô!Eraumaquitandeiradedoces,umacrioulabaiana,segundomepareceupelos

bordadose crivosda saia eda camisa.VinhadaCidadeNovae atravessavaocampo.Elisiáriorespondeuàsaudação:

—Adeus,Zeferina.Estacoueolhouparamim,rindosemriso,e,depoisdealgunssegundos:—Não se espante,menino.Hámuitas espéciesdeVênus.Oqueninguém

dirá é que a esta lhe faltem braços— continuou olhando para os braços daquitandeira,maisnegrosaindapelocontrastedamangacurtaealvadacamisa.

Eu,devexado,nãoacheiresposta.Não contei esse episódio na rua do Lavradio; podiam meter à bulha o

Elisiário, e não queria parecer indiscreto. Tinha-lhe não sei que veneraçãoparticular, que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos a jantar juntosalgumasvezes,eumanoitefomosaoteatro.Oquemaislhecustavanoteatroeraestarmuito tempo namesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com genteadianteeatrásdesi.Nasnoitesdeenchente,emqueeramprecisastravessasnaplateia, ficava aflito com a ideia de não poder sair no meio de um ato, sequisesse.Naquela,acabadooterceiroato(apeçatinhacinco),disse-mequenãopodiamaisequeiaembora.

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Fomos tomar chá ao botequim próximo, e deixei-me estar, esquecido doespetáculo. Ficamos até o fechar das portas. Tínhamos falado de viagens; eucontei-lheavidadosertãocearense,eleouviueprojetoumiljornadasaosertãodoBrasil inteiro,porserras,camposerios,demulaedecanoa.Colheriatudo,plantas, lendas, cantigas, locuções. Narrou a vida do caipira, falou de Eneias,citou Virgílio e Camões, com grande espanto dos criados, que paravamboquiabertos.

—Vocêeracapazdeirdaquiapé,atéS.Cristóvão,agora?—perguntou-menarua.

—Podeser.—Não,vocêestácansado.—Nãoestou,vamos.—Estácansado,adeus;atédepois—concluiu.Realmente,estavafatigado,precisavadormir.Quandoiaavoltarparacasa,

pergunteiamimmesmoseele iria sozinho,àquelahora, edeu-mevontadedeacompanhá-lodelonge,atécertoponto.AindaoapanheinaruadosCiganos.Iadevagar,comabengaladebaixodobraço,easmãosoraatrás,oranasalgibeirasdas calças.Atravessou o campo daAclamação, enfiou pela rua de S. Pedro emeteu-sepeloaterradoacima.Eu,nocampo,quisvoltar,masacuriosidadefez-me ir andando também. Quem sabe se esse erradio não teria pouso certo deamoresescondidos?Nãogosteidestareflexão,equispunir-medesandando;masacuriosidadelevara-meosonoedava-mevigoràspernas.FuiandandoatrásdoElisiário. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela,desembocamos na rua de S. Cristóvão. Ele algumas vezes parava, ou paraacenderumcharuto,ouparanada.Tudodeserto,umaououtrapatrulha,algumtílburi,raro,apassocochilado,tudodesertoelongo.AssimchegamosaocaisdaIgrejinha.Juntoaocaisdormiamosbotesque,duranteodia,conduziamgentepara o saco doAlferes.Maré frouxa, apenas o ressonarmanso da água.Apósalgunsminutos,quandomepareceuqueiavoltarpelomesmocaminho,acordouos remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo àcidade.Nãoseiquantoofereceu;vique,depoisdealgumarelutância,aceitaramaproposta.

Elisiárioentrounobote,queseafastoulogo,osremosferiramaágua,eláseperdeunanoiteenomaromeuprofessordelatimeexplicadordematemáticas.Tambémeumeacheiperdido, longedacidadeeexausto.Valeu-meumtílburi,queatravessavaocampodeS.Cristóvão,tãocansadocomoeu,maspiedosoenecessitado.

— Você não quis ir comigo anteontem a S. Cristóvão? Não sabe o queperdeu;anoiteestavalinda,opasseiofoimuitoagradável.Chegandoaocaisda

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Igrejinha,meti-menumboteevimdesembarcarnosacodoAlferes.Eraumbompedaçoatéacasa; fiqueinumahospedariadocampodeSant’Ana.Fuiatacadoporumcachorro,nocaminhodosaco,epordousnaruadeS.Diogo,masnãosentiaspulgasdahospedaria,porquedormicomoumjusto.Evocêquefez?

—Eu?Não querendomentir, se ele me tivesse pressentido, nem confessar que o

acompanharadelonge,respondisumariamente:—Eu?Eutambémdormicomoumjusto.—Justus,justa,justum.EstávamosnacasadaruadoLavradio.Elisiáriotrazianopeitodacamisaum

botãodecoral,objetodegrandeespantoeaclamaçãodapartedosrapazes,quenuncajamaisoviramcomjoias.Maior,porém,foiomeuespanto,depoisqueosrapazes saíram. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar sapatos,Elisiário sacouo botão de coral e disse queme fosse calçar comele.Recuseienergicamente,mastivedeaceitá-loàforça.Nãoovendinemempenhei;nodiaseguintepedialgumdinheiroadiantadoaocorrespondentedemeupai,calcei-mede novo, e esperei que chegasse o paquete doNorte, para restituir o botão aoElisiário.Sevissesacaradedesconsolocomqueorecebeu!

—Mas o senhor não disse outro dia que lhe tinham dado este botão depresente?—repliqueiàpropostaquemefezdeficarcomajoia.

—Sim,disseeéverdade;masparaquemeservemjoias?Achoqueficammelhor nos outros. Bem pensado, como é presente, posso guardar o botão.Deveras,nãooquerparasi?

—Não,senhor;umpresente...—Presentedeanos—continuoumirandoapedracomoolharvago.—Fiz

35.Estouvelho,meumenino;nãotardoempedirreformaeirmorreremalgumburaco.

Tinhaacabadodereporobotãonacamisa.—Fezanos,enãomedisse.—Paraquê?Paravisitar-me?Nãorecebonessedia;decostumejantocomo

meuvelhoamigodr.Lousada,quetambémfazoseuversinho,àsvezes,eoutrodiabrindou-mecomumsoneto impressoempapelazul...Láo tenhoemcasa;nãoémau.

—Foielequelhedeuobotão...—Não, foi a filha...O soneto temumversomuitoparecidocomoutrode

Camões; o meu velho Lousada possui as suas letras clássicas, além de serexcelentemédico...Masomelhordeleéaalma...

Quiseram fazê-lo deputado. Ouvi que dois amigos dele, homens políticos,entenderamqueoElisiáriodariaumbomoradorparlamentar.Nãoseopôs,pediu

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apenasaosinventoresdoprojetoquelheemprestassemalgumasideiaspolíticas;riram-se,eoprojetonãofoiadiante.

Querocrerquelhenãofaltassemideias, talvezastivessedesobra,mastãocontrárias umas às outras que não chegariam a formar uma opinião. Pensavasegundo a disposição do dia, liberal exaltado ou conservador corcunda. Oprincipalmotivodarecusaeraaimpossibilidadedeobedeceraumpartido,aumchefe,aumregimentodecâmara.Sehouvesseliberdadedealterarashorasdasessão, uma de manhã, outra de noite, outra de madrugada, ao acaso dafrequência, semordemdodia,comdireitodediscutiroaneldeSaturnoouossonetosdePetrarca,omeuerradioElisiárioaceitariaocargo,contantoquenãofosseobrigadoaestarcalado,nemafalar,quandolhechegasseavez.

Aítensoqueeraessehomemfotografadoem1862.Emsuma,boacriatura,muito talento, excelente conversador, alma inquieta e doce, desconfiada eirritadiça, sem futuro nem passado, sem saudades nem ambições, um erradio.Senão quando... Mas é muito falar sem fumar um charuto... Consentes?Enquantoacendoocharuto,olhaparaesseretrato,descontando-lheosolhos,quenãosaírambem;parecemolhosdegatoeinquisidor,espetadosnagente,comoquerendofuraraconsciência.Nãoeramisso;olhavammaisparadentroqueparafora,equandoolhavamparaforaderramavam-seportodaaparte.

Senãoquando,umatarde,jáescuro,porvoltadassetehoras,apareceu-menacasa de pensão o meu amigo Elisiário. Havia três semanas que o não via, e,como tratavade fazer exames, epassavamais tempometidoemcasa, nãomeadmirei da ausência, nem cuidei dela. Demais, já me acostumara aos seuseclipses.Oquartoestavaescuro,euiasaireacabavadeapagaravela,quandoafigura alta e magra do Elisiário apareceu à porta. Entrou, foi direito a umacadeira,sentei-meaopédele,perguntei-lheporondeandara.Elisiárioabraçou-me chorando. Fiquei tão assombrado que não pude dizer nada; abracei-otambém,eleenxugouosolhoscomo lenço,quedecostume trazia fechadonamão,esuspiroulargo.Creioqueaindachorousilenciosamente,porqueenxugavaosolhosdequandoemquando.Eu,cadavezmaisassombrado,esperavaqueelemedissesseoquetinha;afinalmurmurei:

—Queé?quefoi?—Tosta,casei-mesábado...Cada vez mais espantado, não tive tempo de lhe pedir outra explicação,

porqueoElisiáriocontinuou logo,dizendoqueeraumcasamentodegratidão,não de amor, uma desgraça. Não sabia que respondesse à confidência, nãoacabavadecrernanotícia,eprincipalmente,nãoentendiaoabatimentonemadordohomem.AfiguradoElisiário,qualarecompusdepois,nãomeapareciapor esse tempo com a significação verdadeira.Cheguei a supor alguma cousa

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maisqueosimplescasamento;talvezamulherfosseidiotaoutísica;masquemoobrigariaadesposarumadoente?

—Umadesgraça!—repetiabaixinho,falandoparasi.—Umadesgraça!Comoeumelevantassedizendoqueiaacenderumavela,Elisiárioreteve-me

pelaabadofraque.—Nãoacenda,nãomevexe,oescuroémelhor,paralheexporestaminha

desgraça. Ouça-me. Uma desgraça. Casado! Não é que ela me não ame; aocontrário,morriapormimháseteanos.Temvinteecinco...Boacriatura!Umadesgraça!

Apalavradesgraça eraaquemaisvezes lhe tornavaaodiscurso.Eu,parasaberoresto,quasenãorespirava;masnãoouvigrandecousa,poisohomem,depoisdealgumaspalavrasdescosidas,suspendeuaconferência.Fiqueisabendosóqueamulhererafilhadodr.Lousada,seuprotetoreamigo,amesmaquelhederaobotãodecoral.Elisiáriocalou-sederepente,edepoisdealgunsinstantes,como arrependido ou vexado, pediu-me que não referisse a pessoa algumaaquelacenadelecomigo.

—Osenhordeveconhecer-me...—Conheço,eporqueoconheçoéquevimaqui.Nãoseiqueoutrapessoa

memerecesseagoraigualconfiança.Adeus,nãolhedigomaisnada,nãovaleapena.Vocêémoço,Tosta; senão tivervocaçãoparaocasamento,nãosecasenunca,nemporgratidão,nemporinteresse.Hádeserumsuplício.Adeus.Nãolhedigoondemoro,morocommeusogro,masnãomeprocure.

Abraçou-me e saiu. Fiquei à porta do quarto. Quando me lembrei deacompanhá-loatéaescada,eratarde;iadescendoosúltimosdegraus.Olampiãode azeite alumiava mal a escada, e a figura descia vagarosa, apoiada aocorrimão,cabeçabaixaeavastasobrecasacaalegre,agoratriste.

SódezmesesdepoistorneiaveroElisiário.Aprimeiraausênciafoiminha;tinhaidoaoCeará,vermeupai,duranteasférias.Quandovoltei,soubequeelefora aoRioGrandedoSul.Umdia, almoçando, li nos jornais que chegaranavéspera,ecorriabuscá-lo.Achei-oemSantaTeresa,umacasinhapequena,comumjardim,poucomaiorqueela.Elisiárioabraçou-mecomalvoroço;falamosdecousaspassadas;perguntei-lhepelosversos.

—PubliqueiumvolumeemPortoAlegre.Nãofoiporminhavontade,masminhamulher teimou tantoque afinal cedi; elamesmaos copiou.Temalgunserros;heidefazeraquiumasegundaedição.

Elisiáriodeu-meumexemplardolivro,masnãoconsentiuquelessealinada.Queriasófalardostemposidos.Perderaosogro,quelhedeixaraalgumacousa,e ia continuar a lecionar, para ver se achava as impressões de outrora. Ondeestavam os rapazes da rua do Lavradio? Recordava cenas antigas, noitadas,

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algazarra, grandes risotas, que me iam lembrando cousas análogas, e assimgastamosduasboashorascompridas.Quandomedespedi,pegou-meparajantar.

—Vocêaindanãoviuminhamulher—disseele.Eindoàportaquedavaparadentro:—Cintinha!

—Lávou!—respondeuumavozdoce.D. Jacinta chegou logo depois, com os seus 26 anos,mais baixa que alta,

mais feia que bonita, expressão boa e séria, grande quietação de maneiras.Quandoelelhedisseomeunome,olhouparamimespantada.

—Nãoéumbonitorapaz?Elaconfirmouaopiniãoinclinandomodestamenteacabeça.Elisiáriodisse-

lhequeeujantavacomeles;amoçaretirou-sedasala.—Boacriatura—disse-meele—,dedicada,serviçal.Parecequemeadora.

Jámenãofaltambotõesnospaletósquetrago...Pena!melhorqueeleseramosbotõesquefaltavam.Asobrecasacadeoutrora,lembra-se?

PodiaembrulharomundoAopadoElisiário.—Lembra-me.— Creio que me durou cinco anos. Onde vai ela! Hei de fazer-lhe um

epicédio,comumaepígrafedeHorácio...Jantamos alegremente. D. Jacinta falou pouco; deixou que eu e o marido

gastássemos o tempo em relembrar o passado. Naturalmente o marido tinhasurtosde eloquência, comooutrora; amulher erapoucaparaouvi-lo.Elisiárioesquecia-sedenós, elade si, e euachavaamesmanotaantiga, tãovivae tãoforte.Eracostumedeleconcluirumdiscursodesseseficaralgumtempocalado.Resumiadentro de si o que acabavade dizer?Continuava amesmaordemdeideias?Deixava-se iraindapelamúsicadapalavra?Nãosei;achei-lheovelhocostumedeficarcaladosemdarpelosoutros.Nessasocasiõesamulhercalava-se também, a olhar para ele, não cheia de pensamento, mas de admiração.Sucedeuissoduasvezes.Emambaschegouaserbonita.

Elisiáriodisse-me,aocafé,queviriacomigoabaixo.—Vocêdeixa,Cintinha?D.Jacintasorriuparamim,comosedissessequeopedidoeradesnecessário.

Tambémelafalounolivrodeversosdomarido.— Elisiário é preguiçoso; o senhor há de ajudar-me a fazer com que ele

trabalhe.Meiahoradepoisdescíamosaladeira.Elisiárioconfessou-meque,desdeque

casara,nãotiveraocasiãoderelembraravidadesolteiro,eaochegarmosabaixo

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declarou-mequeiríamosaoteatro.—Masvocênãoavisouemcasa...—Quetem?Avisodepois.Cintinhaéboa,nãosezangaporisso.Queteatro

hádeser?Nãofoinenhum;falamosdeoutrascousas,eàsnovehoras,tornouparacasa.

Voltei aSantaTeresapoucosdiasdepois, nãoo achei,mas amulherdisse-mequeoesperasse,nãotardaria.

—Foiaumavisitaaquimesmonomorro—disseela—,hádegostarmuitodeover.

Enquantofalava,iafechandodissimuladamenteumlivro,efoipô-loemumamesa, a um canto. Tratamos domarido; ela pediu-me que lhe dissesse o quepensavadele,seeraumgrandeespírito,umgrandepoeta,umgrandeorador,umgrande homem, em suma. As palavras não seriam propriamente essas, masvinhamadarnelas.Eu,queoadmirava,confirmei-lheosentimento,eogostocomquemeouviufoipagabastanteaotalouqualesforçoqueempregueiparadaràminhaopiniãoamesmaênfase.

—Fazbememseramigodele—concluiu—,elesempremefaloubemdosenhor;diziaqueeraummeninomuitosério.

O gabinete tinha flores frescas e uma gaiola com passarinho. Tudo emordem, cada cousa em seu lugar, obra visível da mulher. Daí a pouco entrouElisiário,comagravatanopescoço,olaçonafrente,abarbarapada,corretoeemflor.SóentãonoteiadiferençaentreesteElisiárioeooutro.Aincoerênciadosgestoserajámenor,ouestavaprestesaacabarinteiramente.Ainquietaçãodesaparecera. Logo que ele entrou, amulher deixou-nos para ir mandar fazercafé,evoltoupoucodepois,comumtrabalhodeagulha.

—Não,senhora,vamosprimeiroaolatim—bradouomarido.D.Jacintacorouextraordinariamente,masobedeceuaomaridoefoibuscaro

livro,queestavalendoquandoeucheguei.— Tosta é de confiança — continuou Elisiário —, não vai dizer nada a

ninguém.Evoltando-separamim:— Não pense que sou eu que lhe imponho isto; ela mesma é que quis

aprender.Nãocrendooqueelemedizia,quispouparàmoçaaliçãodelatim,masfoi

elaprópriaquemedispensouoauxílio,indobuscaralegrementeagramáticadopadrePereira.Vencidaavergonha,deualição,comoumsimplesaluno.Ouviacomatenção,articulavacomprazeremostravaaprendercomvontade.Acabadoo latim, omarido quis passar à lição de história; mas foi ela, dessa vez, querecusou obedecer, para me não roubá-lo a mim. Eu, pasmado, desfiz-me em

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louvores; realmente achava tão fora de propósito aquela escola de latimconjugal,quenãoalcançavaexplicação,nemousavapedi-la.

Amiudei as visitas. Jantava com eles algumas vezes. Ao domingo ia sóalmoçar.D. Jacintaeraumprimor.Não imaginasagraçaque tinhaem falar eandar, tudo sem perder a compostura dos modos nem a gravidade dospensamentos.Sabiamuitostrabalhosdemãos,apesardolatimedahistóriaqueomarido lhe ensinava.Vestia com simplicidade, usava os cabelos lisos e nãotrazia joiaalguma;podiaserafetação,mas taleraa sinceridadequepunhaemtudo,queparecianaturalnissocomonoresto.

Aodomingo,oalmoçoeranojardim.JáachavaoElisiárioàminhaespera,àporta,ansiosoqueeuchegasse.Amulherestavaacabandodearranjarasfloresefolhagensquetinhamdeadornaramesa.Alémdissoedomais,adornavacartõescontendoa listadospratos,comemblemaspoéticosenomesdemusasparaascomidas.Nemtodasasmusaspodiamentrar,elesnãoeramricos,nemnóstãocomilões;entravamasquepodiam.EraaoalmoçoqueElisiário,nosprimeirostempos, mais geralmente improvisava alguma cousa. Improvisava décimas—elepreferiaessaestrofeaqualqueroutra;mais tarde, foidiminuindoonúmerodelas,eparadiantenãopassavadeduasoudeuma.D.Jacintapedia-lheentãosonetos; sempre eram 14 versos. Ela e eu copiávamos logo, a lápis, comretificaçõesqueelefazia,rindo:—“Paraquequeremvocêsisso?”Afinalperdeuo costume, com grande mágoa da mulher, e minha também. Os versos erambons,ainspiraçãofácil;faltava-lhessóocalorantigo.

UmdiapergunteiaElisiárioporquenãoreimprimiao livrodeversos,queelediziatersaídocomincorreções;euajudariaalerasprovas.D.Jacintaapoioucomentusiasmoaproposta.

—Pois,sim—disseele—,umdiadestes;começaremosdomingo.No domingo, d. Jacinta, estando a sós comigo, um instante, pediu-me que

nãoesquecessearevisãodolivro.—Não,senhora,deixeestar.—Nãoenfraqueça,seelequiseradiarotrabalho—continuouamoça—,é

provável que ele fale em guardar para outra vez,mas teime sempre, diga quenão,quesezanga,quenãovoltacá...

Apertou-me a mão com tanta força, que me deixou abalado. Os dedostremiam-lhe;pareciaumapertodenamorada.Cumprioquedisse, ela ajudou-me,eaindaassimgastamosmeiahoraantesqueelesedispusesseao trabalho.Afinalpediu-nosqueesperássemos,iabuscarolivro.

—Destavez,vencemos—disseeu.D.Jacintafezcomabocaumgestodedesconfiança,epassoudaalegriaao

abatimento.

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—Elisiárioestápreguiçoso.Hádeverquenãoacabamosnada.Poisnãovêque não faz versos senão à força de muito pedido, e poucos? Podia escrevertambém, quando mais não fosse alguns daqueles discursos que costumaimprovisar, mas os próprios discursos são raros e curtos. Tenho-me oferecidotantasvezesparaescreveroqueelemandar...Chegoaprepararopapel,pegonapenaeespero;eleri,disfarça,dizumgracejo,erespondequenãoestádisposto.

—Nemsempreestará.— Pois sim; mas então declaro que estou pronta para quando vier a

inspiração,epeço-lhequemechame.Nãochamanunca.Umaououtraveztemplanos; eu vou animando,mas os planos ficamnomesmo.Entretanto, o livroqueeleimprimiuemPortoAlegrefoibem-recebido,podiaanimá-lo.

—Animá-lo?Maselenãoprecisadeanimações;basta-lheograndetalentoquetem.

—Nãoéverdade?—disseelachegando-seamim,comosolhoscheiosdefogo.—Masépena!tantotalentoperdido!

—Nósoacharemos;heidetratá-locomoseelefossemaismoçoqueeu.Omaufoideixá-locairnaociosidade...

Elisiáriotornoucomumexemplardolivro.Nãotraziatintanempena;elafoibuscá-las. Começamos o trabalho da revisão; o plano era emendar, não só oserros de imprensa, mas o próprio texto. A novidade do caso interessougrandementeonossopoeta,durantepertodeduashoras.Verdadeéqueamaiorparte do tempo era interrompido com a história das poesias, a notícia daspessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa porção das composições eradedicada a amigos ou homens públicos. Naturalmente fizemos pouco: nãopassamosdevintepáginas.Elisiárioconfessouqueestavacomsono,adiamosotrabalho,enuncamaispegamosnele.

D. Jacinta chegou a pedir ao marido que nos deixasse a nós a tarefa deemendarolivro;eleveriadepoisotextoemendadoepronto.Elisiáriorespondeuquenão, que elemesmo faria tudo, que esperássemos, nãohavia pressa.Mas,como disse, nunca mais pegamos no livro. Já raro improvisava, e, como nãotinhapaciênciaparacomporescrevendo,osversosiamescasseandomais.Jálhesaíamfrouxos;opoetarepetia-se.Quisemosaindaassimpropor-lheoutrolivro,recolhendo o que havia, e antes de o propor, tratamos de compilá-lo. O todoprecisava de revisão; Elisiário consentiu em fazê-la, mas a tentativa teve omesmoresultadoqueaoutra.Osprópriosdiscursos iamacabando.Ogostodapalavramorria.Falavacomotodosnósfalamos;nãoerajánemsombradaquelacatadupade ideias,de imagens,defrases,quemostravamnooradorumpoeta.Paraofim,nemfalava;jámerecebiasementusiasmo,aindaquecordialmente.Afinalviviaaborrecido.

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Com poucos anos de casada, d. Jacinta tinha no marido um homem deordem, de sossego, mas sem inspiração nem calor. Ela própria foi mudandotambém.Nãoinstavajápelacomposiçãodeversosnovos,nempelacorreçãodosvelhos.Ficoutãodesinteressadacomoele.Osjantareseosalmoçoseramcomoosdequalquerpessoaquenãocuidedeletras.D.Jacintabuscavanãotocaremtalassuntoqueerapenosoaomaridoeaela;euimitava-os.Quandomeformei,Elisiáriocompôsumsonetoemhonraminha;masjálhecustoumuito,e,afalarverdade,nãoeradomesmohomemdeoutrotempo.

D. Jacinta vivia então, não direi triste, mas desencantada. A razão não secompreenderá bem, senão sabendo as origens da afeição que a levara aocasamento.

Peloquepudecolhereobservar,nuncaessamoçaamouverdadeiramenteohomem com quem casou. Elisiário acreditou que sim, e o disse, porque o paidelapensavaqueeradeverasumamorcomoosoutros.Averdade,porém,équeosentimentoded.Jacintaerapuraadmiração.Tinhaumapaixãointelectualporesse homem, nadamais, e nos primeiros anos não pensou em casar com ele.QuandoElisiárioiaàcasadodr.Lousada,d.Jacintaviviaasmelhoreshorasdavida,escutando-lheosversos,novosouvelhos—osquetraziadecoreosqueimprovisava ali mesmo. Possuía boa cópia deles.Mas, ainda que não fossemversos,contentava-seemouvi-loparaadmirá-lo.Elisiário,queaconheciadesdepequena,falava-lhecomoaumairmãmaismoça.Depoisviuqueerainteligente,maisdoqueocomumdasmulheres,equehavianelaumsentimentodepoesiaede arte que a faziam superior. O apreço em que a tinha era grande, mas nãopassavadisso.

Assim se passaram anos.D. Jacinta começou a pensar emumato de puradedicação. Conhecia a vida de Elisiário, os dias perdidos, as noitadas, aincoerência e o desarranjo de uma existência que ameaçava acabar nainutilidade.Nenhumestímulo,nenhumaambiçãodefuturo.D.Jacintaacreditavanogênio deElisiário.Muitos eramos admiradores; nenhum tinha a fé viva, adevoção calada e profunda daquelamoça.O projeto era desposá-lo.Uma vezcasados,elalhedariaaambiçãoquenãotinha,oestímulo,ohábitodotrabalhoregular, metódico, e naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e ainspiraçãoemcousasfúteisouconversasociosas,comporiaobrasdefôlego,nasboas horas, e para ele quase todas as horas eram excelentes. O grande poetaafirmar-se-ia perante o mundo. Assim disposta, não lhe foi difícil obter acolaboração do pai, sem todavia confessar-lhe omotivo secreto da ação; seriadizerquesecasavasemamor.Oqueeladissefoiqueoamavadeveras.

Quehajanissoumanota romanesca, éverdade;maso romanescoeraaquiobra de piedade, vinha de um sentimento de admiração, e podia ser um

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sacrifício.Talvezmaisdeumtentassecasarcomela.D.Jacintanãopensouemninguém, até que lhe surdiu a ideia generosade seduzir o poeta. Já sabesqueestecasouporobediência.

Oresultadofoiinteiramenteopostoàsesperançasdamoça.Opoeta,emvezdoslouros,enfiouumacarapuçanacabeça,emandoubugiarapoesia.Acabouemnada. Para o fim dos tempos nem lia já obras de arte.D. Jacinta padeceugrandemente;viuesvair-se-lheosonho,e,senãoperdeu,antesganhouolatim,perdeu aquela língua sublime em que cuidou falar às ambições de um grandeespírito.A conclusão a que chegou foi aindaumdesconsolopara si.Concluiuqueocasamentoesterilizaraumainspiraçãoquesótinhaambientenaliberdadedocelibato.Sentiuremorsos.Assim,alémdenãoacharasdoçurasdocasamentona união com Elisiário, perdeu a única vantagem a que se propusera nosacrifício.

Errava naturalmente. Para mim Elisiário era o mesmo erradio, ainda queparecesse agorapousado;mas era tambémum talentodepoucadura; tinhadeacabar, ainda que não casasse. Não foi a ordem que lhe tirou a inspiração.Certamente, a desordem iamais com ele que tanto tinha de agitado, como desolitário;masaquietaçãoeométodonãodariamcabodopoeta,seapoesianelenãofosseumagrandefebredamocidade...Emmiméquenãopassoudeligeiraconstipaçãodaadolescência.Pede-metuamor,queoterás;nãomepeçasversos,quedesaprendihámuito,concluiuTosta,beijandoamulher.

AEstação,setembro-novembrode1894;MachadodeAssis.

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DeRelíquiasdeCasaVelha

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Paicontramãe

Aescravidãolevouconsigoofícioseaparelhos,comoterásucedidoaoutras

instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certoofício.Umdeles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia tambémamáscaradefolhadeflandres.Amáscarafaziaperderovíciodaembriaguezaosescravos, por lhes tapar aboca.Tinha só trêsburacos, dousparaver, umpararespirar,eera fechadaatrásdacabeçaporumcadeado.Comovíciodebeber,perdiama tentaçãode furtar,porquegeralmenteeradosvinténsdosenhorqueeles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e asobriedadeeahonestidadecertas.Eragrotescatalmáscara,masaordemsocialehumana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Osfunileirosastinhampenduradas,àvenda,naportadaslojas.Masnãocuidemosdemáscaras.

O ferro aopescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai umacoleiragrossa,comahastegrossatambémàdireitaouàesquerda,atéoaltodacabeçaefechadaatráscomchave.Pesava,naturalmente,maseramenoscastigoquesinal.Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, ecompoucoerapegado.

Hámeio século, os escravos fugiam com frequência. Erammuitos, e nemtodos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, enemtodosgostavamdeapanharpancada.Grandeparteeraapenasrepreendida;havia alguém de casa que servia de padrinho, e omesmo dono não eramau;além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheirotambémdói.Afugarepetia-se,entretanto.Casoshouve,aindaqueraros,emqueoescravodecontrabando,apenascompradonoValongo,deitavaacorrer, semconhecerasruasdacidade.Dosqueseguiamparacasa,nãoraro,apenasladinos,pediamaosenhorquelhesmarcassealuguel,eiamganhá-lofora,quitandando.

Quemperdiaumescravoporfugadavaalgumdinheiroaquemlholevasse.Punhaanúnciosnasfolhaspúblicas,comossinaisdofugido,onome,aroupa,odefeito físico,seo tinha,obairroporondeandavaeaquantiadegratificação.Quandonãovinhaaquantia,vinhapromessa:“gratificar-se-ágenerosamente” —ou“receberáumaboagratificação”.Muitavezoanúnciotraziaemcimaouaoladoumavinheta,figuradepreto,descalço,correndo,varaaoombro,enaponta

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umatrouxa.Protestava-secomtodoorigordaleicontraquemoacoutasse.Ora,pegarescravos fugidoseraumofíciodo tempo.Nãoserianobre,mas

porserinstrumentodaforçacomquesemantêmaleieapropriedade,traziaestaoutra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em talofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, ainaptidãoparaoutrostrabalhos,oacaso,ealgumavezogostodeservirtambém,aindaqueporoutravia,davamoimpulsoaohomemquesesentiabastanterijoparapôrordemàdesordem.

CândidoNeves— em família, Candinho—, é a pessoa a quem se liga ahistória de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegarescravosfugidos.Tinhaumdefeitograveessehomem,nãoaguentavaempregonemofício,careciadeestabilidade;éoqueelechamavacaiporismo.Começouporquereraprendertipografia,masviucedoqueeraprecisoalgumtempoparacomporbem,eaindaassimtalveznãoganhasseobastante;foioqueeledisseasi mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algumesforçoentroudecaixeiroparaumarmarinho.Aobrigação,porém,deatendereservira todosferia-onacordadoorgulho,eaocabodecincoouseissemanasestavanaruaporsuavontade.Fieldecartório,contínuodeumarepartiçãoanexaao ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados poucodepoisdeobtidos.

QuandoveioapaixãodamoçaClara,nãotinhaelemaisquedívidas,aindaque poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois deváriastentativasparaobteremprego,resolveuadotaroofíciodoprimo,dequealiás já tomara algumas lições.Não lhe custou apanhar outras,mas, querendoaprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas,apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em quetrabalharquandocasasse,eocasamentonãosedemoroumuito.

Contavatrintaanos.Clara22.Elaeraórfã,moravacomumatia,Mônica,ecosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas osnamorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho.Passavamàstardes,olhavammuitoparaela,elaparaeles,atéqueanoiteafaziarecolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixavasaudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos.Queriacasar,naturalmente.Era,comolhediziaatia,umpescardecaniço,averseopeixepegava,masopeixepassavadelonge;algumqueparasse,erasóparaandaràrodadaisca,mirá-la,cheirá-la,deixá-laeiraoutras.

Oamortrazsobrescritos.QuandoamoçaviuCândidoNeves,sentiuqueeraesteopossívelmarido,omaridoverdadeiroeúnico.Oencontrodeu-seemumbaile;talfoi—paralembraroprimeiroofíciodonamorado—,talfoiapágina

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inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. Ocasamento fez-se onzemeses depois, e foi amais bela festa das relações dosnoivos.AmigasdeClara,menosporamizadequeporinveja,tentaramarredá-lado passo que ia dar.Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhetinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia apatuscadas.

—Poisaindabem—replicavaanoiva—;aomenos,nãocasocomdefunto.—Não,defuntonão;maséque...Nãodiziamoqueera.TiaMônica,depoisdocasamento,nacasapobreonde

elesseforamabrigar,falou-lhesumaveznosfilhospossíveis.Elesqueriamum,umsó,emboraviesseagravaranecessidade.

—Vocês,setiveremumfilho,morremdefome—disseatiaàsobrinha.—NossaSenhoranosdarádecomer—acudiuClara.TiaMônicadeviater-lhesfeitoaadvertência,ouameaça,quandoelelhefoi

pediramãodamoça;mastambémelaeraamigadepatuscadas,eocasamentoseriaumafesta,comofoi.

Aalegriaeracomumaos três.Ocasal riaapropósitode tudo.Osmesmosnomeseramobjetodetrocados,Clara,Neves,Cândido;nãodavamquecomer,masdavamquerir,eorisodigeria-sesemesforço.Elacosiaagoramais,elesaíaaempreitadasdeumacousaeoutra;nãotinhaempregocerto.

Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daqueledesejoespecífico,deixava-seestarescondidonaeternidade.Umdia,porém,deusinaldesiacriança;varãooufêmea,eraofrutoabençoadoqueviriatrazeraocasalasuspiradaventura.TiaMônicaficoudesorientada,CândidoeClarariramdosseussustos.

—Deusnoshádeajudar,titia—insistiaafuturamãe.Anotíciacorreudevizinhaavizinha.Nãohouvemaisqueespreitaraaurora

dodiagrande.Aesposatrabalhavaagoracommaisvontade,eassimerapreciso,uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos oenxovaldacriança.Àforçadepensarnela,viviajácomela,media-lhefraldas,cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônicaajudava,écerto,aindaquedemávontade.

—Vocêsverãoatristevida—suspiravaela.—Masasoutrascriançasnãonascemtambém?—perguntouClara.— Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que

pouco...—Certacomo?—Certa,umemprego,umofício,umaocupação,masemqueéqueopai

dessainfelizcriaturaqueaívemgastaotempo?

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CândidoNeves, logoquesoubedaquelaadvertência, foi tercoma tia,nãoáspero,masmuitomenosmansoquedecostume,elheperguntousejáalgumdiadeixaradecomer.

— A senhora ainda não jejuou senão pela Semana Santa, e isso mesmoquandonãoquerjantarcomigo.Nuncadeixamosdeteronossobacalhau...

—Bemsei,massomostrês.—Seremosquatro.—Nãoéamesmacousa.—Quequerentãoqueeufaça,alémdoquefaço?—Alguma cousamais certa. Veja omarceneiro da esquina, o homem do

armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo...Nãofique zangado; não digo que você seja vadio,mas a ocupação que escolheu évaga.Vocêpassasemanassemvintém.

—Sim,mas lávemumanoitequecompensa tudo,atédesobra.Deusnãomeabandona,epretofugidosabequecomigonãobrinca;quasenenhumresiste,muitosentregam-selogo.

Tinhaglórianisto,falavadaesperançacomodecapitalseguro.Daíapoucoria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada nobatizado.

CândidoNevesperderajáoofíciodeentalhador,comoabriramãodeoutrosmuitos,melhoresoupiores.Pegarescravosfugidostrouxe-lheumencantonovo.Nãoobrigavaaestarlongashorassentado.Sóexigiaforça,olhovivo,paciência,coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os,metia-osnobolsoesaíaàspesquisas.Tinhaboamemória.Fixadosossinaiseoscostumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo,amarrá-loelevá-lo.Aforçaeramuita,aagilidadetambém.Maisdeumavez,auma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo comoosoutros,edescobrialogoqueiafugido,quemera,onome,odono,acasadesteea gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhavalogo,espreitavalugarazado,edeumsaltotinhaagratificaçãonasmãos.Nemsempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, masgeralmenteeleosvenciasemomenorarranhão.

Umdiaoslucrosentraramaescassear.Osescravosfugidosnãovinhamjá,comodantes,meter-senasmãosdeCândidoNeves.Haviamãosnovasehábeis.Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numacorda, foiaos jornais,copiouanúnciosedeitou-seàcaçada.Noprópriobairrohavia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Nevescomeçaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dosprimeiros tempos.Avidafez-sedifíciledura.Comia-sefiadoemal;comia-se

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tarde.Osenhoriomandavapelosaluguéis.Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa aomarido, tanta era a

necessidade de coser para fora. TiaMônica ajudava a sobrinha, naturalmente.Quandoelechegavaàtarde,via-se-lhepelacaraquenãotraziavintém.Jantavaesaíaoutravez,àcatadealgumfugido.Jálhesucedia,aindaqueraro,enganar-sede pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era acegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se emdesculpas,mas recebeu grande soma demurros que lhe deramos parentes dohomem.

—Éoquelhefaltava!—exclamouatiaMônica,aovê-loentrar,edepoisdeouvir narrar o equívoco e suas consequências. — Deixe-se disso, Candinho;procureoutravida,outroemprego.

Cândidoquiseraefetivamentefazeroutracousa,nãopelarazãodoconselho,masporsimplesgostodetrocardeofício;seriaummododemudardepeleoudepessoa.Opioréquenãoachavaàmãonegócioqueaprendessedepressa.

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado àmãe, antes denascer.Chegouooitavomês,mêsdeangústiasenecessidades,menosaindaqueonono,cujanarraçãodispensotambém.Melhorédizersomenteosseusefeitos.Nãopodiamsermaisamargos.

—Não, tiaMônica!—bradouCandinho, recusando um conselho quemecustaescrever,quantomaisaopaiouvi-lo.—Issonunca!

Foi na última semana do derradeiromês que a tiaMônica deu ao casal oconselhodelevaracriançaquenascesseàrodadosenjeitados.Emverdade,nãopodiahaverpalavramaisdurade toleraradous jovenspaisqueespreitavamacriança,parabeijá-la,guardá-la,vê-larir,crescer,engordar,pular...Enjeitarquê?enjeitarcomo?Candinhoarregalouosolhosparaatia,eacaboudandoummurronamesa de jantar. Amesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a sedesfazerinteiramente.Clarainterveio.

—Titianãofalapormal,Candinho.—Pormal?—replicoutiaMônica.—Pormalouporbem,sejaoquefor,

digo que é omelhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e ofeijãovãofaltando.Senãoapareceralgumdinheiro,comoéqueafamíliahádeaumentar?E depois, há tempo;mais tarde, quando o senhor tiver a vidamaissegura,osfilhosquevieremserãorecebidoscomomesmocuidadoqueesteoumaior. Este será bem-criado, sem lhe faltar nada. Pois então a roda é algumapraiaoumonturo?Lánãosemataninguém,ninguémmorreàtoa,enquantoqueaquiécertomorrer,seviveràmíngua.Enfim...

TiaMônica terminoua frasecomumgestodeombros,deuascostase foimeter-senaalcova.Tinha já insinuadoaquela solução,masera aprimeiravez

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queofaziacomtalfranquezaecalor—crueldade,sepreferes.Claraestendeuamãoaomarido,comoaamparar-lheoânimo;CândidoNevesfezumacareta,echamoumaluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida poralguémquebatiaàportadarua.

—Quemé?—perguntouomarido.—Soueu.Eraodonodacasa, credorde trêsmesesdealuguel,quevinhaempessoa

ameaçaroinquilino.Estequisqueeleentrasse.—Nãoépreciso...—Façafavor.O credor entrou e recusou sentar-se; deitouos olhos àmobília para ver se

dariaalgoàpenhora;achouquepouco.Vinhareceberosaluguéisvencidos,nãopodiaesperarmais;sedentrodecincodiasnãofossepago,pô-lo-ianarua.Nãohavia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que eraproprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre CândidoNeves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinaçãode promessa e súplica aomesmotempo.Odonodacasanãocedeumais.

— Cinco dias ou rua!— repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta esaindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca aodesespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mascontava.Demais,recorreuaosanúncios.Achouvários,algunsjávelhos,masemvãoosbuscavadesdemuito.Gastoualgumashorassemproveito,etornouparacasa.Aofimdequatrodias,nãoachourecursos;lançoumãodeempenhos,foiapessoasamigasdoproprietário,nãoalcançandomaisqueaordemdemudança.

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa quelhesemprestassealguma;erairparaarua.Nãocontavamcomatia.TiaMônicateveartedealcançaraposentoparaostrêsemcasadeumasenhoravelhaerica,que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira,paraosladosdeumpátio.Teveaindaaartemaiordenãodizernadaaosdous,paraqueCândidoNeves,nodesesperodacrise,começasseporenjeitarofilhoeacabassealcançandoalgummeioseguroeregulardeobterdinheiro;emendaravida,emsuma.OuviaasqueixasdeClara,semas repetir,écerto,massemasconsolar.Nodiaemquefossemobrigadosadeixaracasa,fá-los-iaespantarcomanotíciadoobséquioeiriamdormirmelhordoquecuidassem.

Assimsucedeu.Postosforadacasa,passaramaoaposentodefavor,edousdiasdepoisnasceuacriança.Aalegriadopaifoienorme,ea tristezatambém.TiaMônicainsistiuemdaracriançaàroda.“Sevocênãoaquerlevar,deixeissocomigo; eu vou à rua dos Barbonos.” Cândido Neves pediu que não, que

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esperasse,queelemesmoalevaria.Notaiqueeraummenino,equeambosospais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, comochovesseànoite,assentouopailevá-loàrodananoiteseguinte.

Naquelareviutodasassuasnotasdeescravosfugidos.Asgratificaçõespelamaior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa.Uma,porém, subia a cemmil-réis.Tratava-sedeumamulata; vinham indicaçõesdegestoedevestido.CândidoNevesandaraapesquisá-la semmelhor fortuna, eabrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesserecolhido.Agora,porém,avistanovadaquantiaeanecessidadedelaanimaramCândidoNeves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu demanhã a ver eindagarpela ruae largodaCarioca, ruadoPartoedaAjuda,ondeelapareciaandar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da rua daAjudaselembravadetervendidoumaonçadequalquerdroga,trêsdiasantes,àpessoaquetinhaossinaisindicados.CândidoNevespareciafalarcomodonodaescrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outrosfugidosdegratificaçãoincertaoubarata.

Voltouparaatristecasaquelhehaviamemprestado.TiaMônicaarranjaradesimesmaadietaparaarecentemãe,etinhajáomeninoparaserlevadoàroda.Opai,nãoobstanteoacordofeito,malpôdeesconderadordoespetáculo.NãoquiscomeroquetiaMônicalheguardara;nãotinhafome,disse,eeraverdade.Cogitoumilmodosdeficarcomofilho;nenhumprestava.Nãopodiaesqueceropróprioalbergueemquevivia.Consultouamulher,quesemostrou resignada.Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendosucederqueofilhoachasseamortesemrecurso.CândidoNevesfoiobrigadoacumprirapromessa;pediuàmulherquedesseaofilhoorestodoleitequeelebeberiadamãe.Assimsefez;opequenoadormeceu,opaipegoudele,esaiunadireçãodaruadosBarbonos.

Que pensassemais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; nãomenoscertoéqueoagasalhavamuito,queobeijava,quelhecobriaorostoparapreservá-lo do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Cândido Nevescomeçouaafrouxaropasso.

—Heideentregá-loomaistardequepuder—murmurouele.Masnãosendoaruainfinitaousequerlonga,viriaaacabá-la;foientãoque

lheocorreuentrarporumdosbecosqueligavamaquelaàruadaAjuda.Chegouaofimdobecoe,indoadobraràdireita,nadireçãodolargodaAjuda,viudoladoopostoumvultodemulher;eraamulatafugida.NãodouaquiacomoçãodeCândidoNeves por não podê-lo fazer com a intensidade real.Um adjetivobasta;digamosenorme.Descendoamulher,desceueletambém;apoucospassosestavaafarmáciaondeobtiveraainformação,quereferiacima.Entrou,achouo

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farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viriabuscá-lasemfalta.

—Mas...CândidoNevesnão lhedeu tempodedizernada; saiu rápido,atravessoua

rua,atéaopontoemquepudessepegaramulhersemdaralarma.Noextremodarua,quandoelaiaadesceradeS.José,CândidoNevesaproximou-sedela.Eraamesma,eraamulatafujona.

—Arminda!—bradou,conformeanomeavaoanúncio.Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o

pedaçodecordadaalgibeira,pegoudosbraçosdaescrava,queelacompreendeuequisfugir.Erajáimpossível.CândidoNeves,comasmãosrobustas,atava-lheospulsosediziaqueandasse.Aescravaquisgritar,parecequechegouasoltaralguma vozmais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém virialibertá-la,aocontrário.PediuentãoqueasoltassepeloamordeDeus.

— Estou grávida, meu senhor! — exclamou. — Se Vossa Senhoria temalgum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vouservi-lopelotempoquequiser.Mesolte,meusenhormoço!

—Siga!—repetiuCândidoNeves.—Mesolte!—Nãoquerodemoras;siga!Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho.

Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era enaturalmentenão acudia.Arminda ia alegandoqueo senhor eramuitomau, eprovavelmente a castigaria com açoutes— cousa que, no estado em que elaestava,seriapiordesentir.Comcerteza,elelhemandariadaraçoutes.

—Vocêéque temculpa.Quem lhemanda fazer filhos e fugirdepois?—perguntouCândidoNeves.

Nãoestavaemmaréderiso,porcausadofilhoqueláficaranafarmácia,àespera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foiarrastando a escrava pela rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onderesidiaosenhor.Naesquinadestaalutacresceu;aescravapôsospésàparede,recuoucomgrandeesforço,inutilmente.Oquealcançoufoi,apesardeseracasapróxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim,arrastada,desesperada,arquejando.Aindaaliajoelhou-se,masemvão.Osenhorestavaemcasa,acudiuaochamadoeaorumor.

—Aquiestáafujona—disseCândidoNeves.—Éelamesma.—Meusenhor!—Anda,entra...

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Armindacaiunocorredor.Alimesmoosenhordaescravaabriuacarteiraetirouoscemmil-réisdegratificação.CândidoNevesguardouasduasnotasdecinquentamil-réis, enquantoo senhornovamentedizia à escravaque entrasse.No chão, onde jazia, levada domedo e da dor, e após algum tempode luta aescravaabortou.

Ofrutodealgumtempoentrousemvidanestemundo,entreosgemidosdamãeeosgestosdedesesperododono.CândidoNevesviutodoesseespetáculo.Nãosabiaquehoraseram.Quaisquerquefossem,urgiacorreràruadaAjuda,efoioqueelefezsemquererconhecerasconsequênciasdodesastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lheentregara.Quisesganá-lo.Felizmente,ofarmacêuticoexplicoutudoatempo;omeninoestavaládentrocomafamília,eambosentraram.Opairecebeuofilhocomamesmafúriacomquepegaraaescravafujonadehápouco,fúriadiversa,naturalmente,fúriadeamor.Agradeceudepressaemal,esaiuàscarreiras,nãoparaarodadosenjeitados,masparaacasadeempréstimo,comofilhoeoscemmil-réis de gratificação. TiaMônica, ouvida a explicação, perdoou a volta dopequeno,umavezquetraziaoscemmil-réis.Disse,éverdade,algumaspalavrasduras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves,beijandoofilho,entrelágrimasverdadeiras,abençoavaafugaenãoselhedavadoaborto.

—Nemtodasascriançasvingam—bateu-lheocoração.PublicadooriginalmenteemRelíquiasdeCasaVelha(1906).

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Suje-segordo!

Umanoite,hámuitosanos,passeavaeucomumamigonoterraçodoteatro

deS.PedrodeAlcântara.EraentreosegundoeoterceiroatodapeçaAsentençaouotribunaldojúri.Sómeficouotítulo,efoijustamenteotítuloquenoslevouafalardainstituiçãoedeumfatoquenuncamaismeesqueceu.

— Fui sempre contrário ao júri — disse-me aquele amigo —, não pelainstituiçãoemsi,queéliberal,masporquemerepugnacondenaralguém,eporaquele preceito do Evangelho: “Não queirais julgar para que não sejaisjulgados.”Nãoobstante,serviduasvezes.OtribunaleraentãonoantigoAljube,fimdaruadosOurives,princípiodaladeiradaConceição.

Taleraomeuescrúpuloque,salvodous,absolvitodososréus.Comefeito,oscrimesnãomepareceramprovados;umoudousprocessoserammalfeitos.Oprimeiroréuquecondeneieraummoço limpo,acusadodehaver furtadocertaquantia,nãogrande,antespequena,comfalsificaçãodeumpapel.Nãonegouofato,nempodiafazê-lo,contestouquelhecoubesseainiciativaouinspiraçãodocrime.Alguém,quenãocitava,foiquelhelembrouessemododeacudiraumanecessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminosoverdadeiroomerecidocastigo.Disseissosemênfase,triste,apalavrasurda,osolhosmortos,comtalpalidezquemetiapena;opromotorpúblicoachounessamesmacordogestoaconfissãodocrime.Aocontrário,odefensormostrouqueoabatimentoeapalidezsignificavamalástimadainocênciacaluniada.

Poucasvezes tereiassistidoadebate tãobrilhante.Odiscursodopromotorfoi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. Adefesa,alémdotalentodoadvogado,tinhaacircunstânciadeseraestreiadelenatribuna.Parentes,colegaseamigosesperavamoprimeirodiscursodorapaz,enão perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se elepudessesersalvo,masocrimemetia-sepelosolhosdentro.Oadvogadomorreudous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite,quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre umvelho...Masvamosaoqueiacontando.Houveréplicadopromotoretréplicadodefensor.Opresidentedotribunalresumiuosdebates,e,lidososquesitos,foramentreguesaopresidentedoConselho,queeraeu.

Não digo o que se passou na sala secreta; alémde ser secreto o que lá se

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passou,nãointeressaaocasoparticular,queeramelhorficassetambémcalado,confesso.Contareidepressa;oterceiroatonãotarda.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais queninguémconvencidododelitoedodelinquente.Oprocesso foiexaminado,osquesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivoestava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficousatisfeito,dissequeseriaumatodefraqueza,oucousapior,aabsolviçãoquelhedéssemos.Umdos jurados,certamenteoquevotarapelanegativa—,proferiualgumaspalavrasdedefesadomoço.Oruivo—chamava-seLopes—replicoucomaborrecimento:

—Como,senhor?Masocrimedoréuestámaisqueprovado.—Deixemosdedebate—disseeu,etodosconcordaramcomigo.—Nãoestoudebatendo,estoudefendendoomeuvoto—continuouLopes.

—Ocrimeestámaisqueprovado.Osujeitonega,porquetodooréunega,masocertoéqueelecometeua falsidade, eque falsidade!Tudoporumamiséria,duzentosmil-réis!Suje-segordo!Quersujar-se?Suje-segordo!

“Suje-segordo!”Confesso-lhequefiqueidebocaaberta,nãoqueentendesseafrase,aocontrário;nemaentendinemaacheilimpa,efoiporissomesmoquefiqueidebocaaberta.Afinalcaminheiebatiàporta,abriram-nos,fuiàmesadojuiz,deiasrespostasdoConselhoeoréusaiucondenado.Oadvogadoapelou;sea sentença foi confirmadaouaapelaçãoaceita,não sei;perdionegóciodevista.

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-meentendê-la.“Suje-segordo!”eracomosedissessequeocondenadoeramaisqueladrão,eraumladrãoreles,umladrãodenada.AcheiestaexplicaçãonaesquinadaruadeS.Pedro;vinhaaindapeladosOurives.Chegueiadesandarumpouco,aversedescobriaoLopesparalheapertaramão;nemsombradeLopes.Nodiaseguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; nãovalia a pena procurá-lo, nemme ficou de cor. Assim são as páginas da vida,como diziameu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vãopassandoumassobreoutras,esquecidasapenaslidas.Rimavaassim,masnãomelembraaformadosversos.

Emprosadisse-meele,muitotempodepois,queeunãodeviafaltaraojúri,para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, ecitei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, umserviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui ejulgueitrêsprocessos.

Umdestes eradeumempregadodoBancodoTrabalhoHonrado,o caixa,acusadodeumdesviodedinheiro.Ouvira falarnocaso,queos jornaisderam

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sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusadoapareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homemmagro eruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquelejulgamentodeanosantes.Nãopoderiareconhecê-lologoporestaragoramagro,maseraamesmacordoscabelosedasbarbas,omesmoar,eporfimamesmavozeomesmonome:Lopes.

—Comosechama?—perguntouopresidente.—AntôniodoCarmoRibeiroLopes.Jámenãolembravamostrêsprimeirosnomes,oquartoeraomesmo,eos

outrossinaisvieramconfirmandoasreminiscências;nãometardoureconhecerapessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essascircunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, emuitascousasmeescaparam.Quandomedispusaouvi-lobem,estavaquasenofim.Lopesnegavacomfirmezatudooquelheeraperguntado,ourespondiademaneiraquetraziaumacomplicaçãoaoprocesso.Circulavaosolhossemmedonemansiedade;nãoseiatésecomumapontinhaderisonoscantosdaboca.

Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de 110contosderéis.Nãolhedigocomosedescobriuocrimenemocriminoso,porjásertarde;aorquestraestáafinandoosinstrumentos.Oquelhedigocomcertezaéquealeituradosautosmeimpressionoumuito,oinquérito,osdocumentos,atentativade fugadocaixa euma sériede circunstâncias agravantes;por fimodepoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes.Tambémeleouvia,mascomorostoalto,mirandooescrivão,opresidente,otetoe as pessoas que o iam julgar; entre elas eu.Quandoolhouparamimnãomereconheceu;fitou-mealgumtempoesorriu,comofaziaaosoutros.

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal comoserviram,temposantes,osgestoscontráriosdooutroacusado.Opromotorachounelesarevelaçãoclaradocinismo,oadvogadomostrouquesóainocênciaeacertezadaabsolviçãopodiamtrazeraquelapazdeespírito.

Enquantoosdousoradoresfalavam,vimpensandonafatalidadedeestarali,no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, enaturalmente repeti comigo o texto evangélico: “Não queirais julgar, para quenãosejaisjulgados.”Confesso-lhequemaisdeumavezmesentifrio.Nãoéqueeumesmoviesseacometeralgumdesviodedinheiro,maspodia,emocasiãoderaiva,mataralguémousercaluniadodedesfalque.Aqueleque julgavaoutroraeraagorajulgadotambém.

Aopédapalavrabíblicalembrou-mederepenteadomesmoLopes:“Suje-segordo!”Nãoimaginaosacudimentoquemedeuestalembrança.Evoqueitudooqueconteiagora,odiscursinhoquelheouvinasalasecreta,atéaquelaspalavras:

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“Suje-se gordo!” Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim degrandevalor.Overboéquedefiniaduramenteaação.“Suje-segordo!”Queriadizerqueohomemnãosedevialevaraumatodaquelaespéciesemagrossurada soma.A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas.Quer sujar-se? Suje-segordo!

Ideias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar peloresumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu osquesitoserecolhemo-nosàsalasecreta.Possodizer-lheaquiemparticularquevotei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos 110 contos. Havia,entreoutrosdocumentos,umacartadeLopesque faziaevidenteocrime.Masparecequenemtodosleramcomosmesmosolhosqueeu.Votaramcomigodousjurados.NovenegaramacriminalidadedoLopes,asentençadeabsolviçãofoilavradaelida,eoacusadosaiuparaarua.Adiferençadavotaçãoeratamanhaque cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agoramesmosintounsrepelõesdeconsciência.Felizmente,seoLopesnãocometeudeverasocrime,nãorecebeuapenadomeuvoto,eestaconsideraçãoacabaporme consolar do erro,mas os repelões voltam.Omelhor de tudo é não julgarninguémparanãoviraserjulgado.Suje-segordo!suje-semagro!suje-secomolheparecer!omaisseguroénãojulgarninguém...Acabouamúsica,vamosparaasnossascadeiras.

PublicadooriginalmenteemRelíquiasdeCasaVelha(1906).

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OescrivãoCoimbra

Aparentemente há poucos espetáculos tão melancólicos como um ancião

comprandoumbilhetede loteria.Bemconsiderado, é alegre; essapersistênciaemcrer,quando tudoseajustaaodescrer,mostraqueapessoaéainda forteemoça. Que os dias passem e com eles os bilhetes brancos, pouco importa; oancião estende os dedos para escolher o número que há de dar a sorte grandeamanhã—oudepois—,umdia, enfim,porque todasas cousaspodemfalharnestemundo,menosasortegrandeaquemcompraumbilhetecomfé.

NãoeraaféquefaltavaaoescrivãoCoimbra.Tambémnãoeraaesperança.Umacousanãovaisemoutra.NãoconfundasafénaFortunacomaféreligiosa.Também tivera esta em anos verdes e maduros, chegando a fundar umairmandade,a irmandadedes.Bernardo,queeraosantodeseunome;masaoscinquenta, por efeito do tempooude leituras, achou-se incrédulo.Nãodeixoulogo a irmandade; a esposa pôde contê-lo no exercício do cargo demesário elevava-oàsfestasdosanto;ela,porém,morreu,eoviúvorompeudevezcomosantoeoculto.Resignouocargodamesaefez-seirmãoremidoparanãotornarlá.Nãobuscouarrastaroutrosnemobstruirocaminhodaoração; eleéque jánãorezavaporsinemporninguém.Comamigos,seeramdomesmoestadodealma,confessavaomalquesentiadareligião.Comfamiliares,gostavadedizerpilhériassobredevotasepadres.

Aos sessenta anos já não cria emnada, fosse do céu ou da terra, exceto aloteria.Aloteriasim,tinhatodaasuaféeesperança.Poucosbilhetescompravaaprincípio,masaidadeedepoisasolidãovieramapurandoaquelecostume,eolevaramanãodeixarpassarloteriasembilhete.

Nosprimeirostempos,nãovindoasortegrande,prometianãocomprarmaisbilhetes,edurantealgumasloteriascumpriaapromessa.Masláapareciaalguémqueoconvidavaaficarcomumbonitonúmero,compravaonúmeroeesperava.Assimveioandandopelotempoforaatéchegaraqueleemqueloteriasrimaramcomdias,epassouacomprarseisbilhetesporsemana;repousavaaosdomingos.Oescrevente juramentado,umAmaralqueaindavive, foiodemônio tentadornos seus desfalecimentos. Tão depressa descobriu a devoção do escrivão,começou a animá-lo nela, contando-lhe lances de pessoas que tinhamenriquecidodeummomentoparaoutro.

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—Fulanofoiassim,Sicranoassim—dizia-lheAmaralexpondoaaventuradecadaum.

Coimbraouviaecria.Jáagoracediaàsmilmaneirasdeconvidarasorte,aqueasuperstiçãopodeemprestarcerteza,númerodeunsautos,somadeumascustas,umarranjocasualdealgarismos,tudoeracombinaçãoparaencomendarbilhetes, comprá-los e esperar. Na primeira loteria de cada ano comprava onúmerodoano; empregouestemétododesde1884.Naúltima loteriade1892inventou outro, trocou os algarismos da direita para a esquerda e comprou onúmero 2981. Já então não cansava por duas razões fundamentais e umaacidental. Sabeis das primeiras, a necessidade e o costume; a última é que aFortuna negaceava com gentileza. Nem todos os bilhetes saíam brancos. Àsvezes(pareciadepropósito)Coimbradiziadeumbilhetequeeraoúltimoenãocomprariaoutroselhesaíssebranco;corriaaroda,tiravacinquentamil-réis,oucem,ouvinte,ouaindaomesmodinheiro.Querdizerquetambémpodiatirarasortegrande;emtodocaso,aqueledinheirodavaparacomprardegraçaalgunsbilhetes. “Comprar de graça” era a sua própria expressão. Uma vez a sortegrande saiu dous números adiante do dele, 7377; o dele era 7375.O escrivãocrioualmanova.

AssimviveuosúltimosanosdoImpérioeosprimeirosdaRepública,semjácreremnenhumdosdousregimes.Nãocriaemnada.Aprópriajustiça,emqueeraoficial,nãotinhaasuafé;parecia-lheumainstituiçãofeitaparaconciliarouperpetuarosdesacordoshumanos,maspordiversosecontrárioscaminhos,oraàdireita,oraàesquerda.NãoconhecendoasOrdenaçõesdoReino,salvodenome,nem as leis imperiais e republicanas, acreditava piamente que tanto valiamnaboca de autores como de réus, isto é, que formavam um repositório dedisposiçõesavessasecabidasatodasassituaçõesepretensões.Nãolheatribuasnenhum ceticismo elegante; não era dessa casta de espíritos que temperam adescrença nos homens e nas cousas com um sorriso fino e amigo. Não, adescrençaeranelecomoumacapaesfarrapada.

UmasóvezsaiudoRiodeJaneiro;foiparairaoEspíritoSantoàcatadeunsdiamantes que não achou. Houve quem dissesse que essa aventura é que lhepegouogostoeafénaloteria; tambémnãofaltouquemsugerisseocontrário,queafénaloteriaéquelhederaavistaantecipadadosdiamantes.Umaeoutraexplicação é possível. Também é possível terceira explicação, alguma causacomumadiamanteseprêmios.Aalmahumanaétãosutilecomplicadaquetrazconfusãoàvistanassuasoperaçõesexteriores.Fossecomofosse,sódaquelavezsaiudoRiodeJaneiro.Omaisdotempoviveunestacidade,ondeenvelheceuemorreu.Airmandadedes.Bernardotomouasidar-lhecovaetúmulo,nãoquelhe faltassem a ele meios disso, como se vai ver, mas por uma espécie de

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obrigaçãomoralcomoseufundador.Morreu no começo da presidência Campos Sales, em 1899, fins de abril.

Vinha de assistir ao casamento do escrevente Amaral, na qualidade detestemunha,quandofoiacometidodeumacongestão,eantesdameia-noiteeradefunto.Osconselhosqueselheacharamnotestamentopodemtodosresumir-senestapalavra:persistir.Amaralrequereutrasladodaqueledocumentoparausoeguia do filho, que vai em cinco anos, e entrou para o colégio. Fê-lo comsinceridade,enãosemtristeza,porqueamortedeCoimbrasemprelhepareceuefeito de seu caiporismo; não dera tempo a nenhuma lembrança afetuosa dovelhoamigo,testemunhadocasamentoeprovávelcompadre.

Antesdogolpequeolevou,Coimbranãopadecianada,nãotinhaamenorlesão,apenasalgumcansaço.Todososseusórgãosfuncionavambem,emesmoocérebro,senuncafoigrandecousa,nãoeraagoramenosquedantes.Talvezamemóriaacusassealgumadebilidade,maseleconsolava-sedomaldizendoque“com a memória lhe saíram muitas cousas ruins da cabeça”. No foro erabenquistoenocartóriorespeitado.Em1897,peloS.João,oescreventeAmaralinsinuou-lheaconveniênciadedescansarepropôs-seaficaràtestadocartórioparaseguir“oexemplofortificantedoamigo”.Coimbrarecusou,agradecendo.Entretanto,nãodeixavadetemerqueviesseafraquearecairdetodo,semmaiscorpo nem alma que dar ao ofício. Já não saía do cartório, às tardes, semumolhardesaudadesprévias.

Chegou o Natal de 1898. Desde a primeira semana de dezembro forampostosàvendaosbilhetesdagrandeloteriadequinhentoscontos,chamadaporalgunscambistas,nosanúncios, loteria-monstro.Coimbracomprouum.Pareceque dessa vez não cedeu a nenhuma combinação de algarismos; escolheu obilhetedentreosquelheapresentaramnobalcão.Emcasa,guardou-onagavetadamesaeesperou.

—Desta vez, sim— disse ele no dia seguinte ao escrevente Amaral—,destavezcessodetentarfortuna;senãotirarnada,deixodejogarnaloteria.

Amaraliaaprovararesolução,masumaideiacontráriasuspendeuapalavraantesqueelalhecaíssedaboca,eeletrocouaafirmaçãoporumaconsulta.Porquedeixarparasempre?Loteriaémulher,podeacabarcedendoumdia.

—Jánãoestouemidadedeesperar—retrucouoescrivão.—Esperança não tem idade— sentenciouAmaral, recordandouns versos

que fizeraoutrora, e concluiucomestevelhoadágio:—Quemespera semprealcança.

— Pois eu não esperarei e não alcançarei — teimou o escrivão —; estebilheteéoúltimo.

Tendoafirmadoamesmacousa tantasvezes, eraprovávelqueaindaagora

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desmentisseaafirmação,e,malogradonodiadeNatal,voltariaàsortenodiadeReis.FoioqueAmaralpensouenãoinsistiuemconvencê-lodeumvícioqueestavano sangue.Averdade,porém,équeCoimbraera sincero.Tinhaaquelatentação por última. Não pensou no caso de ser favorecido, como de outrasvezes,comalgunscinquentaoucemmil-réis,quantiamínimaparaosefeitosdaambição, mas bastante para convidá-lo a reincidir. Pôs a alma nos dousextremos:nadaouquinhentoscontos.Sefossenada,eraofim.Fariacomofezcomairmandadeeareligião;deitariaohábitoàsurtigas,remia-sedefreguêseiriaouviramissadoDiabo.

Os dias começaram a passar, como eles costumam, com as suas 24 horasiguaisumasàsoutras,namesmaordem,comamesmasucessãodeluzetrevas,trabalho e repouso.Aalmado escrivão aguardavaodia24, vésperadoNatal,quandodeviacorreraroda,econtinuouostraslados,juntadaseconclusõesdosseusautos.Convémdizer,emlouvordestehomem,quenenhumapreocupaçãoestranha lhe tirara o gosto à escrivania, por mais que preferisse a riqueza aotrabalho.

Sóquandoodia20alvoreceuepôsamenordistânciaadatafatídicaéqueaimagemdosquinhentoscontosveiointerpor-sedevezaospapéisdoforo.Masnãofoisóamaiorproximidadequetrouxeesteefeito,foramasconversasnaruaenomesmocartórioacercadesortesgrandes,e,maisqueconversas,aprópriafigura de um homem beneficiado com uma delas, cinco anos antes. CoimbrareceberaumtalGuimarães,testamenteirodeumimportadordesapatos,quealifoi assinar um termo. Enquanto se lavrava o termo, alguém que ia com eleperguntou-lheseestava“habilitadoparaaloteriadoNatal”.

—Não—disseGuimarães.—Tambémnemsemprehádeserfeliz.Coimbranãoteve tempodeperguntarnada;oamigodotestamenteirodeu-

lhe notícia de que este, em 1893, tirara duzentos contos. Coimbra fitou otestamenteirocheiodeespanto.Eraele,eraopróprio,eraalguémque,medianteuma pequena quantia e um bilhete numerado, entrara na posse de duzentoscontosderéis.Coimbraolhoubemparaohomem.Eraumhomem,umfeliz.

—Duzentoscontos?—disseeleparaouviraconfirmaçãodopróprio.—Duzentoscontos—repetiuGuimarães.—Nãofoipormeuesforçonem

desejo—explicou—, não costumava comprar, e daquela vez quase quebro acabeçaaopequenoquemequeriavenderobilhete;eraumitaliano.Guardate,signore, implorava elemetendo-me o bilhete à cara.Cansado de ralhar, entreinum corredor e comprei o bilhete. Três dias depois tinha o dinheiro namão.Duzentoscontos.

Oescrivãonãoerrouotermoporquenelejáosdedoséqueeramescrivães;

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realmente,nãopensouemnadamaisquedecoraressehomem,reproduzi-lonamemória, escrutá-lo, bradar-lhe que também tinha bilhete para os quinhentoscontosdodia24eexigir-lheosegredodeostirar.Guimarãesassinouotermoesaiu;Coimbrateveímpetodeiratrásdele,apalpá-lo,verseeramesmogente,seera carne, se era sangue... Então era verdade? Havia prêmios? Tiravam-seprêmiosgrandes?E apaz comque aquele sujeito contavao lanceda compra!Também ele seria assim, se lhe saíssem os duzentos contos, quanto mais osquinhentos!

Essasfrasescortadasqueaíficamdizemvagamenteaconfusãodasideiasdoescrivão.Atéagoratraziaemsiafé,masjáreduzidaacostumesó,umcostumelongo e forte, sem assombros nem sobressaltos. Agora via um homem quepassaradenadaaduzentoscontoscomumsimplesgestodefastio.Queelenemsequertinhaogostoeacomichãodaloteria;aocontrário,quisquebraracabeçadaFortuna;ela,porém,comolhosdenamorada, fê-lo trocara impaciênciaemcondescendência,pagar-lhecincooudezmil-réis,e trêsdiasdepois...Coimbrafeztodoomaistrabalhododiaautomaticamente.

Detarde,caminhandoparacasa,foi-se-lhemetendonaalmaapersuasãodosquinhentoscontos.Eramaisqueosduzentosdooutro,mastambémelemereciamais,teimandocomovinhadeanosestirados,desertosebrancos,malborrifadosdealgumascentenas,raras,demil-réis.Tinhamaiordireitoqueooutro, talvezmaiorqueninguém.Jantou,foiàcasapegada,ondenadacontoupeloreceiodenão tirar cousa nenhuma e rirem-se dele.Dormiu e sonhou como bilhete e oprêmio; foi o próprio cambista que lhe deu a nova da felicidade. Não selembrava bem, de manhã, se o cambista o procurou ou se ele procurou ocambista;lembrava-sebemdasnotas,eramparecequeverdes,grandesefrescas.Aindaapalpouasmãosaoacordar;purailusão!

Ilusãoembora,deixara-lhenaspalmasamaciezdosonho,ofresco,overde,oavultadodoscontos.AopassarpeloBancodaRepúblicapensouquepoderialevaraliodinheiro,antesdeoempregaremcasas,títuloseoutrosbens.Essedia21 foi pior, em ânsia, que o dia 20.Coimbra estava tão nervoso que achou otrabalho demasiado, quando de ordinário ficava alegre com a concorrência depapéis.Melhorouumpouco, à tarde;mas, ao sair entrou aouvirmeninosquevendiambilhetesdeloteria,eesta linguagem,gritadadagrandebancapública,novamentelhefezagitaraalma.

Ao passar pela igreja onde era venerada a imagem de s. Bernardo, cujairmandadeele fundou,Coimbradeitouolhossaudososaopassado.Temposemqueelecria!Outrorafariaumapromessaaosanto;agora...

—Infelizmentenão!—suspirouconsigo.Sacudiuacabeçaeguiouparacasa.Nãojantousemqueaimagemdosanto

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viesseespreitá-loduasoutrêsvezes,comoolharseráficoeogestodeimortalbem-aventurança. Ao pobre escrivão vinha agoramais estamágoa, este outrodeserto árido emaior.Não cria; faltava-lhe a doce fé religiosa, dizia consigo.Saiuapasseio,ànoitee,paraencurtarcaminho,enfiouporumbeco.Deixandoobeco,pareceu-lhequealguémchamavaporele,voltouacabeçaeviuapessoadosanto,agoramaisceleste;jánãoeraaimagemdemadeira,eraapessoa,comodigo,apessoavivadograndedoutorcristão.Ailusãofoitãocompletaquelhepareceu ver o santo estender-lhe asmãos, e nelas as notas do sonho, aquelasnotaslargasefrescas.

Imagina essa noite de 21 e a manhã de 22. Não chegou ao cartório sempassar pela igreja da irmandade e entrar outra vez nela.A razão que deu a simesmo foi saber se a gente local trataria a sua instituição com o zelo doprincípio.Achouláosacristão,umvelhozelosoqueveioparaelecomaalmanosolhos,exclamando:

—VossaSenhoriaporaqui!—Eumesmo, éverdade.Passei, lembrou-me saber comoé aqui tratadoo

meuhóspede.— Que hóspede? — perguntou o sacristão sem entender a linguagem

figurada.—Omeuvelhos.Bernardo.—Ah!s.Bernardo!Comohádesertratadoumsantomilagrosocomoeleé?

VossaSenhoriaveioàfestadesteano?—Nãopude.—Poisestevemuitobonita.Houvemuitasesmolasegrandeconcorrência.A

mesafoireeleita,sabe?Coimbranãosabia,masdissequesim,esinceramenteachouquedeviasabê-

lo; chamou-se descuidado, relaxado, e voltou para a imagem olhos que supôscontritosepodeserqueofossem.Aosacristãopareceramdevotos.Tambémesteelevouos seus à imageme fez a reverênciahabitual, inclinandomeio corpo edobrandoaperna.Coimbranãofoitãoextenso,masimitouogesto.

—Aescolavaibem,sabe?—disseosacristão.—Aescola?Ah!sim.Aindaexiste?—Seexiste?Tem79alunos.Tratava-se de uma escola que ainda em tempo da esposa do escrivão, a

irmandadefundaracomonomedosanto,aEscoladeS.Bernardo.Odesapegoreligioso do escrivão chegara ao ponto de não acompanhar a prosperidade doestabelecimento, quase esquecê-lo de todo.Ouvindo a notícia, ficou pasmado.No tempo dele não houvemais de uma dúzia de alunos, agora eram 79. Poralgumasperguntassobreaadministração,soubequea irmandadepagavaaum

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diretor e três professores.No fim do ano ia haver a distribuição dos prêmios,grandefestaaqueesperavamtrazeroarcebispo.

Quando saiu da igreja, trazia Coimbra não sei que ressurreições vagas ecinzentas.Propriamentenãotinhamcor,masestaexpressãoserveaindicarumafeiçãonemviva,comodantes,nemtotalmentemorta.Ocoraçãonãoésóberçoetúmulo,étambémhospital.Guardaalgumdoente,queumdia,semsabercomo,convalesce do mal, sacode a paralisia e dá um salto em pé. No coração deCoimbraoenfermonãodeusalto,entrouamoverosdedoseoslábios,comtaissinais de vida que pareciam chamar o escrivão e dizer-lhe cousas de outrotempo.

—Oúltimo!Quinhentoscontos!—bradavamosmeninos,quandoeleiaaentrarnocartório.—Quinhentoscontos!Oúltimo!

Estasvozesentraramcomeleerepetiram-seváriasvezesduranteodia,oudabocadeoutrosvendedoresoudosouvidosdelemesmo.Quandovoltouparacasa,passounovamentepelaigrejamasnãoentrou;umdiaboouoquequerqueeradesviouogestoqueelecomeçouafazer.

Nãofoimenosinquietoodia23.Coimbralembrou-sedepassarpelaEscolade S. Bernardo; já não era na casa antiga; estava em outra, uma boa casaassobradada,desete janelas,portãodeferroao ladoe jardim.Comoéqueeleforaumdosprimeirosautoresdeobratãoconspícua?Passouduasvezesporela,chegouaquererentrar,masnãosaberiaquedissesseaodiretore temeuo risodosmeninos.Foiparaocartórioe,decaminho,milrecordaçõeslherestituíamotempoemqueaprendiaa ler.Queele tambémandounaescola,eevitoumuitapalmatoadacompromessasdeoraçõesasantos.Umdia,emcasa,ameaçadodeapanharporhavertiradoaopaiumdoce,aliásindigesto,prometeuumaveladecera a Nossa Senhora. A mãe pediu por ele e alcançou que o marido lheperdoasse; ele pediu à mãe o preço da vela e cumpriu a promessa.Reminiscências velhas e amigas que vinham temperar o árido preparo dospapéis.Aomesmos.Bernardofizeramaisdeumapromessa,quandoerairmãoefetivoemesário,ecumpriu-astodas.Ondeiamtaistempos?

Enfim,surdiuamanhãde24dedezembro.Arodatinhadecorreraomeio-dia. Coimbra acordou mais cedo que de costume, mal começava a clarear.Conquanto trouxessedecoronúmerodobilhete, lembrou-sedeoescrevernafolhadacarteiraparahavê-lobemfixo,enocasodetirarasortegrande...Estaideia fê-lo estremecer. Uma derradeira esperança (que o homem de fé nuncaperde) lhe perguntou sem palavras: que é que lhe impedia tirar os quinhentoscontos?Quinhentoscontos!Taiscousasviunestealgarismoquefechouosolhosdeslumbrados. O ar, como um eco, repetiu: Quinhentos contos! E as mãosapalparamamesmaquantia.

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Decaminho,foiàigreja,queachouabertaedeserta.Não,nãoestavadeserta.Umapretavelha, ajoelhadadiantedoaltarde s.Bernardo, comum rosárionamão, parecia pedir-lhe alguma cousa, se não é que lhe pagava em orações obenefício já recebido.Coimbraviuaposturaeogesto.Advertiuqueeleeraoautor daquela consolação da devota e olhou também para a imagem. Era amesmadoseutempo.Apretaacaboubeijandoacruzdorosário,persignou-se,levantou-seesaiu.

Ia a sair também quando duas figuras lhe passaram pelo cérebro: a sortegrande, naturalmente, e a escola. Atrás delas veio uma sugestão, depois umcálculo.Estecálculo,pormaisquedigamdoescrivãoqueeleamavaodinheiro(eamava), foidesinteressado;eradardesimuitacousa,contribuirparaelevarmaisemaisaescola,queeratambémobrasua.Prometeudarcemcontosderéisparao ensino, para aEscola,EscoladeS.Bernardo, se tirasse a sortegrande.Não fez a promessa nominalmente,mas por estas palavras sem sobrescrito, etodaviasinceras:“Prometodarcemcontosde réisàEscoladeS.Bernardo,setirar a sorte grande.” Já na rua, considerou bem que não perdia nada se nãotirasseasorte,eganhariaquatrocentoscontos,seatirasse.Picouopassoeaindaumavezpenetrounocartório,ondebuscouenterrar-senotrabalho.

Nãosecontamasagoniasdaqueledia24dedezembrode1898.Imagine-asquem já esperouquinhentos contos de réis.Nempor isso deixoude receber econtarasquantiasquelheeramdevidasporatosjudiciais.Parecequeentreonzehorasemeio-dia,depoisdeumaautuaçãoeantesdeumaconclusão, repetiuapromessadecemcontosàescola:“Prometodaretc.”Bateumeio-diaeocoraçãodoCoimbranãobateumenos,comadiferençaqueasdozepancadasdorelógiode São Francisco de Paula foram o que elas são desde que se inventaramrelógios, uma ação certa, pausada e acabada, e as do coração daquele homemforamprecipitadas,convulsas,desiguais,semacabarnunca.QuandoeleouviuaúltimadeSãoFrancisco,nãosepôdeterquenãopensassemaisvivonarodaouoquequerqueeraquefariasairosnúmeroseosprêmiosdaloteria.Eraagora...Teve ideia de ir dali saber notícias, mas recuou. Mal se concebe tantaimpaciênciaemjogador tãovelho.Parecequeestavaadivinhandooque lhe iaacontecer.

Desconfiasoquelheaconteceu?Àsquatrohorasemeia,acabadootrabalho,saiu com a alma nas pernas e correu à primeira casa de loterias. Lá estavam,escritosagizemtábuapreta,onúmerodobilhetedeleeosquinhentoscontos.Aalma,seeleatinhanaspernas,eradechumbo,porqueelasnãoandarammais,nem a luz lhe tornou aos olhos senão algunsminutos depois. Restituído a si,consultouacarteira;eraonúmeroexato.Aindaassim,podiater-seenganado,aocopiá-lo.Voounumtílburiacasa;nãoseenganara,eraonúmerodele.

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Tudo se cumpriu com lealdade. Cinco dias depois, a mesa da irmandaderecebiaoscemcontosderéisparaaEscoladeS.Bernardoeexpediaumofíciodeagradecimentoaofundadordasduasinstituições,entregueaesteportodososmembrosdamesaemcomissão.

No fim de abril casara o escrevente Amaral, servindo-lhe Coimbra detestemunha, e morrendo na volta, como ficou dito atrás. O enterro que airmandade lhe fez e o túmulo que lhe mandou levantar no cemitério de S.Francisco Xavier corresponderam aos benefícios que lhe devia. A escola temhoje mais de cem alunos e os cem contos dados pelo escrivão receberam adenominaçãodePatrimônioCoimbra.

AlmanaqueBrasileiroGarnier,janeirode1907.

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Sobreoautor

Mestiço de origem humilde que frequentou apenas a escola primária e foi

obrigadoa trabalhardesdea infância,MachadodeAssis(1839-1908)obteveaconsideração social numa época em que o Brasil era ainda uma monarquiaescravocrata.AutodidataqueseformounabibliotecadoGabinetePortuguêsdeLeitura, sendoaprendizde tipógrafoe,depois, revisor, aprendeu tudosozinho.Precoce—a suaprimeirapoesiadatados16 anos—, triunfou cedo, eviu-seconsagradocomopoetaaos25anoscomolivroCrisálidas.

Masovalordocontistaedo romancistaé tãoexcepcionalqueobrilhodasuaestrelapoéticanosparecepálido.Éconsideradoomaiorescritorbrasileirode todos os tempos, omais extraordinário contista do idioma e um dos rarosromancistasdeinteresseuniversal,comooatestamastraduçõesdassuasobrasmais representativas para os principais idiomas cultos, sem que haja influídonessa preferência a atualidade dos seus livros, mas, sim, a perenidade da suaquase ferinaanálisedaalmahumana.AsMemóriaspóstumas (1881)eoDomCasmurro (1900),principalmente,mas tambémQuincasBorba (1891),Esaú eJacó(1904),MemorialdeAires (1908)emuitosdosseuscontos, incluídosemPapéis avulsos (1882),Histórias sem data (1884), Várias histórias (1896) ePáginas recolhidas (1899), dão-lhe o direito de ocupar a posição-cume daliteratura brasileira, pela originalidade da concepção, pela agudeza dosconceitos, pela penetrante análise dos sentimentos e pela perfeição do estilosóbrioeconciso.

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ConheçaoutrostíítulosdaColeçãoSaraivadeBolso

1.DomCasmurro,MachadodeAssis2.Opríncipe,NicolauMaquiavel3.Aartedaguerra,SunTzu4.ARepública,Platão5.AssassinatonoExpressodoOriente,AgathaChristie6.Memóriasdeumsargentodemilícias,ManuelAntôniodeAlmeida7.MemóriaspóstumasdeBrásCubas,MachadodeAssis8.Discursodométodo,RenêDescartes9.Ocontratosocial,Jean-JacquesRousseau10.Orgulhoepreconceito,JaneAusten11.Caiopano,AgathaChristie12.Seustrintamelhorescontos,MachadodeAssis13.Anáusea,Jean-PaulSartre14.Hamlet,WilliamShakespeare15.Omanifestocomunista,KarlMarx16.MorteemVeneza,ThomasMann17.Ocortiço,AluísioAzevedo18.Orlando,VirginiaWoolf19.Ilíada,Homero20.Odisseia,Homero21.Ossertões,EuclidesdaCunha22.Antologiapolítica,FernandoPessoa23.Apolítica,Aristóteles24.Poliana,EleanorH.Porter25.RomeueJulieta,WilliamShakespeare26.Iracema,JosédeAlencar27.ApologiadeSócrates,Platão28.Comovejoomundo,AlbertEinstein29.AconsciênciadeZeno,ItaloSvevo30.Avidacomoelaé,NelsonRodrigues31.MadameBovary,GustaveFlaubert

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32.Oanticristo,FriedrichNietzsche33.Razãoesentimento,JaneAusten34.Senhora,JosédeAlencar35.Oprimeirohomem,AlbertCamus36.KamaSutra,MallanagaVatsyayana37.EsaúeJacó,MachadodeAssis38.Oprofeta,KhalilGibran39.Dosdelitosedaspenas,CesareBeccaria40.Elogiodaloucura,ErasmodeRoterdã

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1)Nãofoiincluídoemlivropeloautor.(N.E.)↵

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2)IncluídopeloautoremRelíquiasdeCasaVelha, figuraneste lugarcomafinalidadedemanteraordemcronológicadoscontos.(N.E.)↵