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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 249 Das Cláusulas Abusivas e o Código Civil

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  • Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 249

    Palestra  proferida  no  Seminário  realizado  em14.06.2002.1 A autora agradece o gentil  convite do DesembargadorSergio  Cavalieri  e  as  interessantes  reflexões  do  deba-te,  realizado em  tão boa hora na EMERJ. A  forma oralfoi  preservada,  con  adição  de  textos  e  notas.2  Veja,  por  todos,  TEPEDINO, Gustavo  (Coord.), Direi-to Civil-Constitucional,  Renovar,  Rio  de  Janeiro,2001,  p.  11  e  12:  as  cláusulas  gerais  que,  previstaspelo  legislador  contemporâneo,  no  Código  de  Defesado  Consumidor...,  vêm  sendo  amplamente  utilizadaspelos  operadores.  Recupera-se,  então,  o  papel  da  ju-risprudência  e  da  doutrina...3  Veja    decisão  do    TJRS,  APC  70000037408,  j.18.10.2000, Des. Paulo Augusto Monte Lopes, 16ª Câm.Cível.:  Em qualquer negócio,  seja  qual  for  a natureza,seja qual  for  o  regime  jurídico aplicável,  o direito prote-ge  a  boa-fé.  Proteger  a  boa-fé    significa  preservar  oscontratantes de artimanhas e subterfúgios. Como o con-trato  é  lei  entre  as partes,  e uma delas pode   por  suavulnerabilidade  ou  hipossuficiência  diante  da  outra  ter  assinado  o  instrumento  sem compreender  por  com-pleto  tudo  o  que nele  se  dispôs  ou mesmo por  vício,  odireito  ampara  os  interesses  desse  contratante  fazendoprevalecer sobre a  literalidade do contrato os reais obje-tivos  pretendidos na  contratação.  (p.  4  do  original)

    A  boa-fé  (Treu und Glauben)1

    deve  estar  presente  em  todas  as  rela-ções  contratuais,  de  consumo,  civis  eentre  empresários.  Nesta  Escola  Supe-rior  da  Magistratura,  gostaria  derelembrar que o  tema da boa-fé  tem  ín-tima relação com a sua construção pelaJurisprudência  (Richterrecht).2  Assim,antes de que o princípio da boa-fé incidaainda com mais  força no Brasil,  atravésdo  novo  Código  Civil,  gostaria  de  teceralgumas  observações  sobre  a  boa-fé  noCódigo  de Defesa  do  consumidor,  tendocomo  base  a  pesquisa  jurisprudencialque realizamos no TJ/RS sobre o uso doprincípio da boa-fé de 1991 a 2001.3

    O Código  de Defesa  do Consumi-dor  (CDC)  está  em  vigor  a mais  de  10anos  no  Brasil,  com  seus  princípiosde  boa-fé  e  equilíbrio  nas  relaçõescontratuais de consumo e pode servir demanancial  de  jurisprudência,  inclusivepara a aplicação do novo Código Civil, Lei10.406/2002  (a  seguir CC/2002).

    Das Cláusulas Abusivas e o Código Civil

    CCCCCLÁUDIALÁUDIALÁUDIALÁUDIALÁUDIA L L L L LIMAIMAIMAIMAIMA M M M M MARQUESARQUESARQUESARQUESARQUESProfessora da Universidade do Rio Grande do Sul

    A  pesquisa  na  jurisprudência  doTribunal  de  Justiça  do  Rio  Grande  doSul,  cujo foco da análise foi a utilizaçãodo princípio da boa-fé,  levantou as deci-sões de março de 1991, quando o Códigoentrou em vigor, até agosto de 2001, ana-lisando estes mais de dez anos do Códi-go de Defesa do Consumidor na prática.O  resultado  da  pesquisa  foi  o  seguinte:encontramos  2.779  decisões,  que  utili-zam o  princípio  da  boa-fé. O mais  inte-ressante  foi  a  evolução  dessa  aplicaçãomassificada do princípio da boa-fé.  Em1991,  apenas  cinco  decisões  usavam  oreferido princípio, sendo que dessas cin-co, duas delas utilizavam-no ainda numavisão  subjetiva:  a má-fé  ou  a  boa-fé  doindivíduo naquele contrato específico ounaquela  relação  da  vida.4

    Já em 2001, pelo menos até agos-to,  encontramos  72  decisões  usando  oprincípio da boa-fé, sendo que 55 das 72citavam  expressamente  os  princípios  eas normas do Código de Defesa do Con-sumidor,  demonstrando  que  o  juiz  bra-sileiro  tem muito mais  facilidade  quan-do  a  lei  expressamente  prevê  a  possibi-lidade  de  uma  decisão  aberta,  atravésde uma cláusula geral. As cláusulas ge-rais do CDC permitem que o magistradoutilize  a  boa-fé  ou mesmo,  excepcional-mente,  a  eqüidade,  a  revisão  dos  con-tratos  por  onerosidade  excessiva,  figu-ras  agora  presentes no CC/2002.

    Em  outras  palavras,  não  se  digaque  o  magistrado  brasileiro  tende  aoexagero  ou  a não  aplicação  das  cláusu-las gerais. Quando a norma e seu man-dato  de  concretização  da  justiçacontratual  são  claros,  o  juiz  brasileirorealmente  atende  a  essa  idéia  e  a  apli-

    4 Veja detalhes sobre esta pesquisa em meu livro, Con-tratos no Código de Defesa do Consumidor,  4ªed.,RT,  São  Paulo,  2002,  p.  175  e  seg.

  • 250 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

    ca. Em nosso levantamento, 55 decisõesexpressamente se baseavam nas normasdo Código  de Defesa  do Consumidor,  eem seus princípios. Dentre os princípiosmais  citados  nestes  55  casos  estão:  oprincípio da função social do contrato (16casos), o princípio da eqüidade contratual(16  casos).  O mais  interessante  é  quedesses  cinqüenta  e  cinco  casos  que  ci-tam o Código de Defesa do Consumidor,em  trinta  e  sete,  a  decisão  foi  a  favordos  consumidores, mas  em  17  casos  oconsumidor não obteve ganho de causa,a demonstrar  que  o princípio da boa-fé,ou  a  valoração  através  do  princípio  daboa-fé  não significa um ganho de causapara o consumidor em cem por cento doscasos.  O  importante  aqui  é  a  procu-ra   da  just iça   no  caso  concreto(Vetragsgerechtigkeit).  A  concretizaçãoda boa-fé é, pois, um instrumento válidoe útil para a procura da Justiça no casoconcreto  ou aequitas.

    Como  ensina  o  Prof.  Paulo  NetoLobo,  o  princípio  da boa-fé  objetiva  vemrefuncionalizado no Direito do Consumi-dor, otimizado na sua dimensão de cláu-sula  geral,  e  assim  serve  de  parâmetrode  validade  dos  contratos  de  consumo,principalmente  para  as  condições  geraisde  consumo  e  os  contratos  de  adesão,hoje  também  regulados,  se  puramentecivis ou puramente empresariais no CC/2002, que unifica as regras sobre obriga-ções  civis  e  comerciais.

    Parece-me  que  essa  experiênciaque  tivemos  de  dez  anos  de  Código  deDefesa do Consumidor pode nos ajudar,agora, a imaginar essa revolução do con-trato,  essa  sociabilização  da  teoriacontratual  tão mencionada.  O  uso  doCódigo  de Defesa  do Consumidor  comoparâmetro,  como  oxigenação  do DireitoCivil  foi muito  comum,  tendo  sido  atémesmo mencionado  em  decisões  peloMinistro Ruy Rosado de Aguiar. No REsp.n°  80036,  de  25.03.96,  ao  explicar  estasurpreendente  oxigenação  (expressãodo  também magistrado  Antônio  JanyrDallAgnol),  que  o CDC pôde  realizar  noDireito Civil clássico, o Min. Ruy Rosadode  Aguiar  ensina:  O Código de Defesa

    do Consumidor traça regras que prescindem

    a situação específica de consumo, além dis-

    so define princípios gerais orientadores do

    Direito das Obrigações. Na teoria dos siste-

    mas, é um caso estranho, a lei do

    microssistema enunciar princípios gerais

    para o sistema como um todo, mas isto é o

    que está acontecendo no caso, por várias

    razões, mas principalmente porque a nova

    lei incorporou ao ordenamento civil legisla-

    do normas que expressam o desenvolvimen-

    to do mundo dos negócios e o atual estado

    da ciência, introduzindo na relação

    obrigacional a idéia de justiça contratual, da

    equivalência das prestações e da boa-fé. 5

    Então, de um lado, temos a expe-riência de dez anos de aplicação do CDCe  de  sua  cláusula  geral  de  boa-fé  e  deoutro  lado,  essa  pergunta:  o  que mudano Direito  civil  em matéria de cláusulasabusivas, com a entrada em vigor do Có-digo Civil de 2002, mesmo frente  ao pró-prio Código de Defesa do Consumidor?

    Para  bem  responder  esta  per-gunta  gostaria  de  dividir minha  expo-sição  em  duas  partes,  uma mais  teó-rica  analisando  o  diálogo  das  fonteslegislativas  novas  e  velhas,  isto  é,  osdiálogos possíveis entre o CDC e o CC/2002,  para  em  uma  segunda  concen-trar-me  em  um  destes  diálogos  possí-veis,  o de  influências  recíprocas,  ondea  jurisprudência  brasileira  já  desen-volvida sobre as  funções da boa-fé ob-jetiva,    podem  nos  ajudar  a  enten-der  como  se  dará  este  diálogo,  artigopor artigo do CC/2002.

    I Os diálogos possíveis entre o CDCe o CC/2002: a superação do conflitopelo diálogo entre fontes

    Segundo o § 2.o do art. 2.o da LICC,a  lei  nova,  que  estabeleça  disposiçõesgerais  a  par  das  já  existentes,  como  oCC/2002,  não  revoga  nem modifica  alei  anterior,  no  caso,  o  CDC.  Segundoo § 1.o do art. 2.o da LICC, a lei poste-rior  revogará a  anterior  quando: 1)  ex-pressamente  o  declare;  2)  regule  in-

    5  Assim, Min. Ruy Rosado de Aguiar,  in  voto  no Resp.80.036, Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  DJ  25.03.1996.

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    teiramente  a matéria  de  que  tratava  aanterior;  3)  seja  com  ela  incompatível.

    Os dois primeiros casos não pa-recem  ocorrer  na  prática;  nem  o  CC/2002  revogou  expressamente  o  CDC,nem tratou da  relação de consumo ouincorporou  normas  sobre  as  relaçõesde  consumo,  e  entre  as  duas  leis  háuma divergência  fundamental de cam-po  de  aplicação  subjetiva.  Uma  é  leiespecial  anterior  e  hierarquicamentesuperior  outra,  o CC/2002,  é  lei  geralposterior, lei entre iguais. O CDC umalei  especial  voltada  para  a  equidade(aequitas),  já  o    CC/2002  é  uma  leivoltada  para  a  igualdade  geral(aequalitas),6   tanto que unifica as re-gras  sobre  obrigações  civis  e  comerci-ais, mas não regula as relações de con-sumo  (relações  entre  diferentes,  umexpert,  o  fornecedor  e  outro  leigo  ouvulnerável,  o  consumidor).

    A) A idéia de diálogo das fonteslegislativas a superar a idéia de con-flito entre leis

    Em  seu  curso  Geral  de  Haia  de1995,  o  mestre  de  Heidelberg,  ErikJayme,  ensinava  que,  face  ao  atualpluralismo pós-moderno de um Direitocom fontes legislativas plúrimas, ressur-ge  a    necessidade  de  coordenação  entreas  leis  no mesmo  ordenamento,  comoexigência  para  um  sistema  jurídico  efi-ciente  e  justo.7  Efetivamente, cada vezmais  se  legisla,  nacional  e  internacio-nalmente,  sobre  temas  convergentes.  Apluralidade  de  leis  é  o  primeiro  desafiodo  aplicador  da  lei  contemporâneo.  Aexpressão  usada  comumente  era  a  deconflitos de leis no tempo8 , a significar quehaveria uma  colisão  ou conflito  entre oscampos de aplicação destas leis. Assim, por

    exemplo, uma  lei anterior,  como o Códigode Defesa do Consumidor de 1990 e umalei posterior, como o novo Código Civil Bra-sileiro de 2002, estariam em  conflito, daía necessária  solução do  conflito  atravésda prevalência de uma  lei sobre a outra ea conseqüente exclusão da outra do siste-ma  (ab-rogação, derrogação,  revogação).

    Em  outras  palavras,  nesta  visãoperfeita ou  moderna,  teríamos a  Tese(lei  antiga),  a  antítese  (lei  nova)  e  aconseqüente síntese (a revogação), a tra-zer  clareza    e  certeza  ao  sistema  (jurí-dico). Os  critérios  para  resolver  os  con-flitos de leis no tempo seriam assim ape-nas  três:  anterioridade,  especialidade  ehierarquia,  a  priorizar-se,  segundoBobbio,  a  hierarquia.9  A doutrina atua-lizada,  porém,  está  a  procura hoje maisda harmonia  e  da  coordenação  entre  asnormas  do  ordenamento  jurídico  (con-cebido  como  sistema),10  do que da ex-clusão.  É  a  denominada  coerência  de-rivada  ou  restaurada  (cohérencedérivée ou restaurée),11 que  em  ummomento  posterior  a  decodificação,  atópica  e  a micro-recodificação,12  procu-ra  uma  eficiência  não  só  hierárquica,13

    mas funcional14  do sistema plural e com-plexo  de nosso  direito  contemporâneo,15

    6 BERTHIAU, Denis, Le principe dégalité et le droitcivil des contrats, L.G.D.J.,  Paris,  1999,  p.  3  e  seg.7 JAYME, Erik, Identité culturelle et intégration: Le droitinternationale privé postmoderne  -  in: Recueil desCours de l Académie de Droit International de laHaye,  1995,  II,  p.  60  e  p.  251  e  seg.8  Preferível  é  a  expressão neutra Direito  intertemporal,já  usada  por  FRANÇA,  R.  Limogi,  DireitoIntertemporal Brasileiro,  2.  Ed.,  Revista  dos  Tribu-nais,  São  Paulo,  1968,  p.  9    e  seg.

    9  Veja BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurí-dico,  Ed.  Pollis/Universidade  de  Brasília,  S.  Paulo,Brasília,  1990, P.  92  e BOBBIO, Norberto,  Des  critèrespour  résoudre  les  antinomies,  in  PERELMAN,  CH.(Coord.),  Les antinomies en Droit,  Bruxelas,  Ed.Bruylant,  1965,  p.  255.10  Veja  SAUPHANOR,  Nathalie, LInfluence du Droitde la Consommation sur le système juridique, Pa-ris,  LGDJ,  2000,  p.  23  a  32.11  Expressão  de  SAUPHANOR,  p.  32.12  Mencione-se  aqui  que  a  sempre  citada  obra  deCANARIS,  Claus-Wilhelm, Pensamento sistemáticoe conceito de Sistema do Direito,  Gulbelkian,  Lis-boa,  1989,  constroi  sua  idéia  de  sistema  justamentecriticando  a  tópica,  p.  255  e  seg.  Sobre  tópica  vejaWIEHWEG,  Theodor. Tópica e Jurisprudência,  trad.Tércio S. Ferraz Jr., Brasília, Departamento de Impren-sa  Nacional, MJ-UnB,  1979.13  Veja  sobre a crise ou neutralização do critério da hie-rarquia e a utilização de outros critérios, GANNAGÉ, Léna,La hiérarchie des normes et les méthodes du droitinternational privé,  LGDJ, Paris,  2001, p.  25  e 26.14  SAUPHANOR,  p.  30.15 Veja sobre a necessidade de coordinamento con altredisposizioni  do  Código  Civil  e  das  leis  especiais  deproteção  do  consumidor,  ALPA, Guido  et  allii, La dis-ciplina generale dei contratti, 8.  ed.,  GiappichelliEd.  Torino,  2001  ,  p.  613  e  seg.

  • 252 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

    a  evitar  a  antinomia,  a  incompatibili-dade  ou  a  não-coerência.16

    Costumava-se  afirmar,  quanto  aotipo  de  conflitos  de  leis  no  tempo,  quepoderiam  existir:  conflitos  de  princípi-os  (diferentes  princípios  presentes  emdiferentes  leis  em  conflito),  conflitos  denormas  (conflitos entre normas de duasleis,  conflitos  reais  ou  aparentes,  con-forme  o  resultado  da  interpretação  queo  aplicador  das  leis  retirasse),  eantinomias  (conflitos  pontuais da con-vergência  eventual  e  parcial  do  campode aplicação de duas normas no caso con-creto).17

    Erik  Jayme18  alerta-nos que ostempos  pós-modernos,  onde  apluralidade, a complexidade, a distinçãoimpositiva  dos  direitos  humanos  e  dodroit à la différence (direito a ser dife-rente  e  ser  tratado  diferentemente,  semnecessidade mais  de  ser  igual  aos  ou-tros) não mais permitem este tipo de cla-reza ou de mono-solução. A solução sis-temática pós-moderna deve ser mais flu-ída, mais  flexível,  a  permitir maior mo-bilidade  e  fineza  de  distinções.  Nestestempos,  a  superação  de  paradigmas  ésubstituída  pela  convivência dosparadigmas,19  a revogação expressa pelaincerteza  da  revogação  tácita  indiretaatravés da  incorporação  (veja Art. 2.043do novo Código Civil), há  por fim a con-vivência  de  leis  com  campos  de  aplica-ção  diferentes,  campos  por  vezes  con-vergentes e,  em geral diferentes,  em ummesmo  sistema  jurídico,  que  parece  seragora um  sistema  (para  sempre)  plural,fluído, mutável  e  complexo.20  Não deixade  ser  um  paradoxo  que  o  sistema,  otodo  construído,  seja  agora  plural...  21

    O  grande mestre  de  Heidelbergpropõe  então  a  convivência  de  uma  se-gunda solução ao lado da tradicional: acoordenação  destas  fontes.22  Uma co-ordenação flexível e útil (effet utile) dasnormas em conflito no sistema a fim derestabelecer  a  sua  coerência,  isto  é,uma mudança de paradigma: da retira-da simples (revogação) de uma das nor-mas em conflito do sistema jurídico  (oudo monólogo de uma só norma possívela comunicar a solução justa), à convi-vência  destas  normas,  ao  diálogo  dasnormas  para  alcançar  a  sua  ratio,  afinalidade  narrada  ou  comunicadaem  ambas.

    Na  belíssima  expressão  de  ErikJayme,  é  o  atual  e  necessário  diálogodas  fontes  (dialogue de sources),23  apermitir a aplicação simultânea, coeren-te  e  coordenada  das  plurímas  fonteslegislativas    convergentes.24     Diálogoporque há  influências  recíprocas,  diálo-go  porque  há  aplicação  conjunta  dasduas normas ao mesmo tempo e ao mes-

    16  SAUPHANOR,  p.  31.17  Veja  detalhes  em meu  livro, Contratos no Códigode Defesa do Consumidor,  RT,  São  Paulo,  2002,  p.515  e  seg.18  JAYME, Recueil des Cours,  p.  60  e  p.  251.19  GANNAGÉ,  p.  17.20  Do  grande mestre  da USP,  vem a  expressão  sistemahiper-complexo,  veja   AZEVEDO, Antonio  Junqueira de,O  Direito  pós-moderno  e  a  codificação,  in RevistaDireito do Consumidor,  v.  33  (2000),  p.  124  e  seg.21 Veja a  favor do pluralismo  jurídico a bela análise deBELLEY,  Jean-guy,  Le  pluralisme  juridique  commedoctrine  de  la  science  du  droit, in  Pour un Droit

    22  JAYME, Recueil des Cours,  251  (1995),  p.  60.23  JAYME, Recueil des Cours,  251  (1995),  p.  259:Dès lors que lon évoque la communication en droitinternational privé, le phénomène le plus important est le

    fait que la solution des conflits de lois émerge comme

    résultat dun dialogue entre les sources le plus

    hétérogènes. Les droit de lhomme, les constitutions, les

    conventions internationales, les systèmes nationaux:

    toutes ces sources ne sexcluent pas mutuellement; elles

    parlent lune à lautre. Les juges sont tenus de coordonner

    ces sources en écoutant ce quelles disent.24  Como  ensina  SAUPHANOR,  p.  31,  em direito,  a  au-sência  de  coerência  consiste  na  constatação  de  umaantinomia,  definida  como  a  existência  de  uma  incom-patibilidade  entre  as  diretivas  relativas  ao mesmo  ob-jeto. No  original:  En droit, labsence de cohérence con-siste dans la constatation dune antinomie, définie comme

    lexistence dune incompatilité entre les directives relatives

    à un même objet.

    Pluriel-Etudes offertes au professeur Jean-FrançoisPerrin,  Helbing  &  Lichtenhahn,  Genbra,    2002,  p.135  e  seg.  O  autor  constata  a  pouca  tolerância  quetemos  para  o  plural  e  cita  expressamente  Perrin  (Lesrelations  entre  la  loi  et  les  règles  de  la  bonne  foi:collaboration  ou  conflit  internormatif?,  p.  42, nota 4  ),BELLEY, p. 136: La théorie du droit doit assumer souventla délicate mission dexprimer en termes généraux ce qui

    se pratique déjà légitimement mais silencieusement. Le

    discours pluraliste nest pas encore maîtrisé. Le dire fait

    plus peur que le faire. No Brasil, veja Fachin, Luiz Ed-son,  Transformações  do  direito  civil  brasileiro  con-temporâneo, in Diálogos sobre Direito Civil-Cons-truindo a Racionalidade Contemporânea, Org..  Car-men  Lucia  Ramos, Gustavo  Tepedino  et  alii,  Renovar,Rio  de  Janeiro,  2002,  p.  43.

  • Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 253

    mo  caso,  seja  complementariamente,25

    seja  subsidiariamente,26  seja permitin-do a opção voluntária das partes sobre afonte  prevalente  (especialmente  emmatéria  de  convenções  internacionais  eleis  modelos)27  ou mesmo permitindouma opção por uma das leis em conflitoabstrato.28  Uma solução flexível e aber-ta,  de  interpenetração  ou mesmo  a  so-lução mais  favorável  ao mais  fraco  darelação  (tratamento  diferente  dos  dife-rentes).

    Aceitando  a  definição  de  sistemade  direito,  consolidada  por  NatalieSauphanor,  como  um  todo  estruturado

    hierarquicamente29  e funcionalmente,30

    visto hoje como um complexo de elemen-tos  em  interação31   coerentes ou  orgâ-nicos,32  de  normas, princípios e  juris-prudência,33  parece  importante  frisaresta  visão  sistemática  do  ordenamentojurídico,  como um  conjunto  de  elemen-tos diversos cuja organização e interaçãofornece  a  todo a  ordem  jurídica positivareconhecida  como  tal  os meios  para  al-cançar  sua  coerência  e  seu  funciona-mento.34

    Por  fim,  repita-se  que  o novo Có-digo  Civil  Brasileiro,  Lei  10.406  de  10de janeiro de 2002, traz ao direito priva-do brasileiro geral os mesmos princípiosjá presentes no Código de Defesa do Con-sumidor  (como a  função  social dos  con-tratos,35  a boa-fé objetiva36  etc.). Real-mente,  a  convergência  de  princípios  en-tre  o  CDC  e  o  CC/2002  é  a  base  dainexistência  principiológica  de  conflitospossíveis entre estas duas  leis que, comigualdade  ou  equidade,  visam a harmo-nia  nas  relações,  civis  em  geral  e  nasde  consumo  ou  especiais.  Como  ensinaa Min. Eliana Calmon: O Código de De-fesa do Consumidor é diploma legislativoque  já  se  amolda aos novos postulados,inscritos  como  princípios  éticos,  taiscomo, boa-fé, lealdade, cooperação, equi-líbrio  e  harmonia  das  relações.37

    B) Os três tipos de diálogos possíveisentre o CDC e o CC/2002 e a aplicaçãosubsidiária do CC/2002 em relação àsrelações de consumo

    Seguindo  os  ensinamentos  de meucaro mestre  alemão,  Erik  Jayme,  cabe

    25  Veja  sobre  a  aplicação  simultânea  de  várias  leis,  oCC,  o CDC  e  inclusive  as  leis  administrativas  sobre  oSFH,  duas  recentes  decisões  do  STJ.  Na  bela  decisãono  Resp.  436.815-DF,  Min.  Nancy  Andrighi,  j.17.12.2002,  DJ  28.10.2002,  a  ementa  ensina:  Pro-cessual.  Civil....Contrato  de  compra  e  venda  de  imóvele  financiamento.  SFH.  Aplicação  do Código  de Defesado Consumidor.  empréstimo  concedido  por  associaçãoao associado. Deve ser afastada a aplicação da cláusu-la  que  prevê  foro  de  eleição  diverso  do  domicílio  dodevedor  em  contrato  de  compra  e  venda  de  imóvel  efinanciamento  regido  pelo  Sistema  Financeiro  da Ha-bitação,  quando  importar  em  prejuízo  de  sua  defesa.Há  relação  de  consumo  entre  o  agente  financeiro  doSFH,  que  concede  empréstimo  para  aquisição  de  casaprópria,  e  o mutuário...  E  a  igualmente  bela  decisãodo  Resp.  387.581-RS, Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  j.21.05.2002,  cuja  ementa  ensina:  Cartão  de  crédito.Prestação  de  contas. Mandato.  A  administradora  deveprestar contas sobre o modo pelo qual exerce o manda-to que  lhe concedeu o usuário para obter  financiamen-to  no mercado  a  fim  de  financiar  as  vendas  a  prazo.Código Civil  e  Código  de Defesa  do Consumidor.26  Veja  aplicação  simultânea  e  subsidiária  do  CDC,como  lei  geral,  face  à  existência  de  lei  especial  sobreprêmios, na  jurisprudência   do STJ: Publicidade. Con-curso.  Prêmio.  Numeração  ilegível.  Código  de  Defesado Consumidor...O  sistema  do CDC,  que  incide  nessarelação  de  consumo,  não  permite  à  fornecedora  -  quese  beneficia  com  a  publicidade    exonerar-se  do  cum-primento  da  sua  promessa  apenas  porque  a  numera-ção  que  ela mesma  imprimiu  é  defeituosa.  A  regra  doArt.  17  do Dec.  70.951/72  apenas  regula  a  hipóteseem que  o  defeito  tiver  sido  comprovodamente  causadopelo  consumidor.  (STJ,  Resp.  396.943-RJ, Min.  RuyRosado  de  aguiar,  j.  02.05.2002, DJ  05.08.2002)27  Veja por  exemplo  o  artigo 1 do Tratado de Olivos doMercosul, o qual prevê a opção possível pelo sistema desolução de controvérsias do Mercosur ou de outro foruminternational  (como a OMC etc.)  e a prevalência da  fon-te  escolhida  pelas  partes  em  conflito.  Veja  ARAÚJO,Nádia,  Dispute  resolution  in Mercosur:  The  Protocolof Las Leñas and the case  law of the Brazilian SupremeCourt,in  Inter-american Law Review  (University  ofMiami), Winter-Spring  2001,  v.  32,  nr.  1,  p.  25-56.28  Veja  sobre  o  tema  a  obra  de  BRIERE,  Carine, Lesconflits de conventions internationales en droitprivé,  LGDJ,  Paris,  2001,em  especial,  p.  266  e  seg.

    29  SAUPHANOR,  p.  23.30  SAUPHANOR,  p.  30.31  SAUPHANOR,  p.  24.32  SAUPHANOR,  p.  27.33  SAUPHANOR,  p.  28.34  SAUPHANOR,  p.  32.35  Assim  o  texto  aprovado:  Art.  421.  A  liberdade  decontratar  será  exercida  em  razão  e nos  limites da  fun-ção  social  do  contrato.36 Assim o  texto aprovado:  Art. 422. Os contratantes sãoobrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, comoem sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.37 CALMON,  Eliana,  As  gerações  dos  direitos  e  asnovas  tendências,  in Revista direito do Cosumidor,v.  39  (jul.-set.  2001),  p.  45.

  • 254 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

    agora  refletir  quais  seriam  os  diálogospossíveis  entre  o  Código  de  Defesa  doConsumidor-CDC,  como  lei  anterior,  es-pecial  e  hierarquicamente  constitucio-nal  (veja mandamento  expresso  sobresua  criação  no  sistema  jurídico  brasi-leiro  no Art.  48 ADCT/CF 1988  e  comoincluído  entre  os  direitos  fundamentais,Art. 5, XXXII da CF/88)38  e o novo Códi-go Civil, Lei 10.406/2002, que entrou emvigor  em  janeiro  de  2003,  como  lei  pos-terior,  geral  e  hierarquicamente  inferi-or,  mas  trazendo  algumas  normas  deordem  pública,  que  a  lei  nova mesmaconsidera de aplicação imperativa a con-tratos  novos  e  antigos  (veja  art.  2035,parágrafo único da Lei 10.406/2002).

    Em minha visão atual, três são ostipos  de  diálogo  possíveis  entre  estasduas  importantíssimas  leis  da  vida  pri-vada:

    1)  na  aplicação  simultânea  dasduas  leis,  uma  lei  pode  servir  de  baseconceitual para a outra (diálogo sistemá-tico de coerência),  especialmente  se umalei  é  geral  e  a  outra  especial;  se  uma  éa  lei  central  do  sistema39  e a outra ummicrossistema específico,40   não-comple-to  materialmente,  apenas  com  com-pletude subjetiva de tutela de um grupoda sociedade. Assim, por exemplo, o queé  nulidade,  o  que  é  pessoa  jurídica,  oque  é  prova,  decadência,  prescrição  eassim por  diante,  se  conceitos não defi-nidos no microssistema  (como vêm defi-nidos  consumidor,  fornecedor,  serviço  eproduto  nos  Art.  2,17,29  e  3  do CDC),terão  sua  definição  atualizada  pelo  en-trada em vigor do CC/2002;

    2)  na  aplicação  coordenada  dasduas  leis, uma  lei pode complementar aaplicação  da  outra,  a  depender  de  seu

    campo de aplicação no caso concreto (di-álogo sistemático de complementariedade e

    subsidiariedade  em  antinomias  aparen-tes ou reais), a  indicar a aplicação com-plementar  tanto de  suas normas,  quan-to de seus princípios, no que couber, noque  for  necessário  ou  subsidiariamente.Assim, por  exemplo,  as  cláusulas  geraisde uma  lei  podem  encontrar uso  subsi-diário  ou  complementar  em  caso  regu-lado  pela  outra  lei.  Subsidiariamente  osistema  geral  de  responsabilidade  civilsem  culpa  ou  o  sistema  geral  de  deca-dência  podem  ser  usados  para  regularaspectos  de  casos  de  consumo,  se  tra-zem normas mais  favoráveis  ao  consu-midor.  Este  diálogo  é  exatamente  con-traposto,  ou no  sentido  contrário  da  re-vogação ou ab-rogação clássicas, em queuma lei era superada e retirada do sis-tema pela  outra. Agora há  escolha  (pelolegislador,  veja art. 777,41  72142  e 73243

    da Lei 10.406/2002, ou pelo juiz no casoconcreto  do  favor debilis do  Art.  7  doCDC) daquela que vai  complementar aratio  da  outra  (veja  também art.  72944

    da Lei 10.406/2002 sobre aplicação con-junta  das  leis  comerciais);

    3) há o diálogo das influências re-cíprocas  sistemáticas,  como no  caso  deuma  possível  redefinição  do  campo  deaplicação  de  uma  lei  (assim,  por  exem-plo, as definições de consumidor strictosensu  e  de  consumidor  equiparado  po-dem  sofrer  influências  finalísticas  donovo Código Civil,  uma  vez  que  esta  leinova  vem  justamente  para  regular  asrelações  entre  iguais,  dois  iguais-con-sumidores  ou  dois  iguais-fornecedores

    38 Observe-se  que mesmo BRIERE,  p.  312  e  seg.  con-clui  que  há  uma  hierarquia  de  convenções,  se  de  di-reito  humanos,  o  que  se  pode  transpor  para  o  direitoprivado  como  valorando  o  critério  da hierarquia  e  ain-da mais  a  hierarquia  constitucional  dos  direitos  fun-damentais,  como  o  direito  do  consumidor.39  Veja  detalhes  in  PASQUALOTTO,  Adalberto,  O Có-digo de Defesa do Consumidor em face do novo CódigoCivil, Revista Direito do Consumidor,  nº  43  (jul-dez..2002),  p.  106.40  Veja  detalhes  sobre  o CDC  como microssistema,  inPASQUALOTTO,  p.  106  e  seg.

    41 O  texto  é  o  seguinte : Art.  777. O  disposto  no  pre-sente  Capítulo  aplica-se,  no  que  couber,  aos  segurosregidos  por  leis  próprias.42 O  texto  é  o  seguinte:  Art.  721.  Aplicam-se  ao  con-trato  de  agência  e  distribuição,  no  que  couber,  as  re-gras concernentes ao mandato e à comissão e as cons-tantes  de  lei  especial.43  O  texto  é  o  seguinte:  Art.  732.  Aos  contratos  detransporte,  em  geral,  são  aplicáveis,  quando  couber,desde  que  não  contrariem  as  disposições  deste  Códi-go,  os  preceitos  constantes  da  legislação  especial  e  detratados  e  convenções  internacionais.44  O  texto  é  o  seguinte:  Art.  729. Os  preceitos  sobrecorretagem  constantes  deste  Código  não  excluem  aaplicação  de  outras  normas  da  legislação  especial.

  • Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 255

    entre  si,  no  caso  de  dois  fornecedorestratam-se  de  relações  empresariais  tí-picas,  em que  o  destinatário  final  fáticoda coisa ou do fazer comercial é um ou-tro empresário ou comerciante), ou comono caso da possível transposição das con-quistas  do Richterrecht  (Direito  dosJuízes)  alcançadas  em  uma  lei  para  aoutra. É a  influência do  sistema especi-al  no  geral  e  do  geral  no  especial,  umdiálogo de double sens45  (diálogo de co-ordenação e adaptação sistemática).

    Assim, em resumo,  haveria o diá-logo sistemático de coerência, o diálogo sis-temático de complementariedade e

    subsidiariedade  em  antinomias  e  o diá-logo de coordenação e adaptação sistemáti-ca.

    Mister  refletir  aqui,  ainda que  ra-pidamente,  sobre  a  noção  de  igualdadeem direito privado e como esta noção iráinfluenciar  a  aplicação  casuística  doCódigo  Civil  de  2002,  um Código paraiguais ! E ainda, como esta visão da igual-dade e  do  tratamento  igual/desigualpara  os  iguais/desiguais,  no  caso  con-creto,  está  intrinsecamente  ligada  anoção  moderna    tão  importante  emmatéria contratual- da eqüidade  (Justiçapara o caso concreto) ! Mister frisar como,em seu espírito e  teleologia, o CDC estáligado a um novo paradigma de diferen-ça,  de  tratamento  de  grupos  ou  plural,de  interesses difusos  e  de  eqüidade,  emuma visão mais nova do moderno ou pós-moderna.  Face  ao  atual  pluralismo  defontes no  direito  privado brasileiro,  estareflexão  pode  ser  útil  para  o  aplicadorda lei, ao determinar o campo de aplica-ção do CC/2002.

    Repita-se  aqui  o  que  ensinaBerthiau,46  em sua magnífica obra so-bre  o  princípio  da  igualdade  e  o  direitocivil  dos  contratos:  há uma  ambigüida-de  original  entre  as  expressões/e/ounoções modernas de igualdade e de eqüi-dade. Vejamos. A  estrutura moderna danoção  de  igualdade  advém  do  latim

    aequalitas (igualdade, supondo a compa-ração com outro objeto), derivada por suavez  da  expressão aequalis  (igual)  e  deaetis. A partir das  evoluções  lingüísticasna  Idade Média  estas  expressões  perde-ram, em  francês e português, a partículaqua  (équalité-égalité-égal, equalidade-igualdade-igual). A evolução da expressãoequidade é semelhante, do latim aequitas(também aetis),47  que significava, segun-do  pesquisas  de Berthiau48,   justamenteigualdade e, mais precisamente,  igualda-de  de  alma,  equilíbrio,  calma  (égalitédâme, calme, équilibre), era derivada porsua vez  justamente da expressão aequus(igual-adjetivo).49

    Esta proximidade etimológica,  e adistinção  (distintio)  de  níveis  de  pen-samento,  levam  a  conclusão  que  tratarigualmente  os  iguais,  tratar  desigual-mente os desiguais e tratá-los com equi-líbrio e calma, é mais do que o princípioda  igualdade,  é  eqüidade,  uma  soluçãojusta para o caso concreto  !

    Igualdade supõe uma comparação,um contexto, uma identificação no caso. 50

    A  igualdade só pode ser abordada sob oponto de vista de uma comparação. 51  Eisaqui o desafio maior do Direito Civil bra-sileiro  atual,  face  a  unificação  do  regi-me das  obrigações  civis  e  comerciais noCódigo Civil  de  2002,  e  face  ao manda-mento  constitucional  de  discriminar  po-sitivamente  e  tutelar  de  forma  especialos  direitos  dos  consumidores  (art.  5,XXXII  da CF/88),  também  em  suas  re-lações  civis.  Assim,  em  um  só  tipocontratual  (por  exemplo,  o  contrato  demandato ou de seguro), podem estar pre-sentes várias naturezas, vários sujeitos dedireito,  iguais  ou diferentes na compara-

    45  Veja  a  obra  de  SAUPHANOR,  p.  32.46 BERTHIAU, Denis, Le principe dégalité et le droitcivil des contrats, L.G.D.J.,  Paris,  1999,  p.  3  e  seg.

    47  Veja  STOWASSER,  J.M.  et  alli,  Der KleineStowasser,  G.  Freytag  ed.,  Munique,  1980,  p.  18:aequitas, ätis, aequus - 1 Geduld, Ruhe, Gliechmut,Gelassenheit, animi. 2. Gleicheheit [vor dem Gesetz],

    Gerechtigkeit, Billigkeit...aequitas est iustitia maxime propria.48  BERTHIAU,  p.  3.49  Veja  STOWASSER,  J.M.  et  alli,  Der KleineStowasser,  G.  Freytag  ed.,  Munique,  1980,  p.  18:aequus gleich...Subst. aequum, Recht, Billigkeit: amantioraequi, aequi cultor, ex aequo bonoque.50  Assim  conclui  BERTHIAU,  p.  3.51  Frase  de  BERTHIAU,  p.  3.

  • 256 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

    ção  entre  si,  comparação  necessaria-mente casuística e finalistica, comparaçãono  caso,  no  papel  econômico  represen-tado  por  cada um naquele  contrato  emespecial,  a  constatar  o  seu  status  (em-presários,  civis,  consumidores)  daí  deri-vado. Determinar  o  campo  de  aplicaçãodo Código Civil de 2002 aos contratos é,pois,  tarefa  herculana,  neste  sistemajurídico  altamente  complexo, micro-co-dificado,  plural  e  fluído,  pois  os  papéisque  os  sujeitos  de  direito  representamno mercado  e  na  sociedade modificam-se de um ato para outro. Por exemplo, oprofissional liberal é empresário (Art. 966do CC/2002) em um momento e, no pró-ximo, pode ser consumidor de um servi-ço  para  sua  família  e  um  civis  perfeito,na  sua  relação  de  condomínio...52

    O mestre da USP, Antônio Junqueirade Azevedo53  alertou para este problemaantes da aprovação do CC/2002, ponderan-do que introduzir no sistema jurídico brasi-leiro,  já hiper-complexo, uma  regulamen-tação unitária  (igual) para as relações civise comerciais poderia resultar em um retro-cesso. E apontou a solução: a procura deuma igualdade com aequitas, a necessáriadistinção entre o que é igual e o que é dife-rente, na sociedade pós-moderna atual.

    Observando-se  o  mandamentoconstitucional  expresso  de  criação  nosistema  jurídico  brasileiro  (Art.  48ADCT/CF 1988) de um CDC e o  fato daproteção  do  consumidor  ter  sido  incluí-da  entre  os  direitos  fundamentais  (Art.5,  XXXII  da CF/88),54  não deve surpre-

    ender, portanto, que o CDC tenha hierar-quia superior que o CC/2002. Efetivamen-te,  todas suas normas civis são de ordempública (ex vi do Art. 1º do CDC), e de leiespecial, a aplicar-se prioritariamente nasrelações de  consumo. O CDC está a pro-cura  da  eqüidade,  do  tratamentocasuístico/tópico  da  justiça  contratual,com calma e equilíbrio, não voltado para oigual geral, mas para o  diferente a rela-ção  civil  diferente,  entre  fracos  e  fortes,daí  sua  especialidade.

    Por  fim, mencione-se  que  se  nãohouve  revogação  tácita,55     também nãohouve  revogação expressa  (Art. 2.045),56

    nem  incorporação  do CDC  ao CC/2002(Art.  2.043). O novo Código Civil  Brasi-leiro menciona  em  apenas  uma  normaa  expressão  consumidores,  como  sinô-nimo  de  fregueses,  57  e não utiliza a ex-pressão relação de consumo. Nas demais2.045 normas do CC/2002  são mencio-nadas  apenas  as  expressões  consumo,em  seu  sentido  clássico  de  destruição,no Art. 86, 307, 1290 e 1392,  bens des-tinados à consumo, nos Art. 206 e 592 ecrimes  contra  as  relações  de  consumo,no § 1 do Art. 1.011. Sendo assim, pode-mos  concluir,  com  certeza,  que  ao CDCnão  se  aplica  a norma do Art.  2.043 doCC/2002. Em outras palavras, podemosconcluir  que  o CDC  e  o  tema de  defesa

    52  Segundo  a  jurisprudência majoritária  dos  Tribunaissuperiores,  a  relação  de  condomínio  não  é  de  consu-mo: II - Não é relação de consumo a que se estabeleceentre  condôminos  para  efeitos  de  pagamento  de  des-pesas  em  comum.  III  - O Código  de Defesa  do Consu-midor  não  é  aplicável  no  que  se  refere  à multa  peloatraso  no  pagamento  de  aluguéis  e  de  quotascondominiais.  (STJ, RESP 239578/SP,  5ª  Turma, Rel.Min.  Felix  Fischer,  j.  08/02/2000).53  AZEVEDO,  Antônio  Junqueira  de,  O Direito  pós-moderno  e  a  codificação,  in Revista Direito do Con-sumidor,  v.  33  (2000),  p.  124.54 Observe-se  que mesmo BRIERE,  p.  312  e  seg.  con-clui  que  há  uma  hierarquia  de  convenções,  se  de  di-reito  humanos,  o  que  se  pode  transpor  para  o  direitoprivado  como  valorando  o  critério  da hierarquia  e  ain-da mais  a  hierarquia  constitucional  dos  direitos  fun-damentais,  como  o  direito  do  consumidor.

    55  Também  da  história  legislativa  do  projeto  podemosretirar  esta  conclusão.  A  redação  anterior  do  artigo  fi-nal do Código  (antigo Art. 2040) era mais abrangente eafirmava que ficariam: revogados o Código Civil e a Par-te Primeira do Código Comercial, Lei nº 556, de 25 de junho

    de 1850, e toda a legislação civil e mercantil abrangida por

    este Código, ou com ele incompatível... Mas, como expli-ca o relator, Deputado Fiúza, a boa técnica legislativao levou a Câmara a determinar quais as leis que o CC/2002  revogaria.  Veja Câmara  dos Deputados, Relatóriofinal  do Relator Deputado Ricardo  Fiuza, Código Civil,Brasília,  2000,  p.  115.56 O  texto  original  é:  Art.  2.045. Revogam-se  a  Lei  nº3.071,  de  1º  de  janeiro  de  1916  -  Código  Civil  e  aParte  Primeira  do Código Comercial,  Lei  nº  556,  de  25de  junho  de  1850.57  Trata-se  do  inciso  I  do  Art.  1467  que menciona  apalavra  consumidores,  como  sinônimo  de  fregueses,dos  hospedeiros  e  dos  fornecedores  de  alimentos  epousada ao regular o penhor  legal. O  texto é o seguin-te:  I  -os  hospedeiros,  ou  fornecedores  de  pousada  oualimento,  sobre  as  bagagens, móveis,  jóias  ou dinheiroque  os  seus  consumidores  ou  fregueses  tiverem  consi-go  nas  respectivas  casas  ou  estabelecimentos,  pelasdespesas  ou  consumo  que  aí  tiverem  feito;

  • Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 257

    do  consumidor  não  foi  incorporado  aoCC/2002.  Ao  contrário,  é  consideradopelo  próprio CC/2002  como um  tema  aser  regulado  por  lei  especial  (como  ali-ás  expressamente  prevê  a  ConstituiçãoFederal,  Art.  48 dos ADCT).

    Em  resumo, mister  preservar  aratio  de  ambas  as  leis  e  dar  preferên-cia  ao  tratamento  diferenciado  dos  dife-rentes  concretizado  nas  leis  especiais,como no CDC,  e  assim  respeitar  a  hie-rarquia  dos  valores  constitucionais,  so-bretudo coordenando e adaptando o sis-tema  para uma  convivência  coerente!  Aconvergência  de  princípios  e  cláusulasgerais entre o CDC e o CC/2002 e a égideda Constituição Federal  de  1988  garan-tem  que  haverá  diálogo  e  não  retroces-so na proteção dos mais fracos nas rela-ções  contratuais.  Vejamos  o  diálogoquanto à cláusula geral de boa-fé objeti-va nos contratos.

    II Das cláusulas abusivas no CC/2002e a cláusula geral de boa-fé

    A própria  idéia  de  abuso  do  di-reito,  agora  positivada  no  novo  Códi-go Civil de 2002, está relacionada coma  boa-fé  (Art.  187  do  CC/2002).  Se-guindo-se  esta  idéia  (e  retirando-a docampo  extracontratual  para  utilizá-laanalogicamente no campo contratual),e unindo-a a do Art. 4, III e Art. 51 IVe  §  1º  do  CDC,  poderíamos  afirmar,sucintamente,  que  cláusula  abusivaé  aquela  que  viola  a  boa-fé  obrigató-ria  das  relações  entre  iguais  (ex vinovo  Código  Civil)  e  entre  desiguais(ex vi  Código  de Defesa  do  Consumi-dor,  que  possui  este mesmo princípioda  boa-fé  e  quando  a  relação  civil  ouempresarial  é  desequil ibrada  pelocontrato de adesão, ex vi Art. 424 doCC/2002).

    Portanto, podemos dizer que umacláusula  desequilibra  um  contrato  por-que  ela  viola  um  dever  principal,  ine-rente  àquele  sistema,  àquele  tipo  decontrato (essa idéia está no artigo 51 doCódigo  de Defesa  do Consumidor), maspodemos  também dizer  que  determina-da  cláusula  é  abusiva,  porque  viola  os

    deveres  que  a  própria  boa-fé  introduziunaquela relação. Como afirmava antes oProf.  Arnoldo Wald:  a  relação  não  é  sómais  aquela  que  as  partes  determina-ram,  havendo  também as  cláusulas  ge-rais  da  lei.  A  cláusula  geral  da  boa-féfaz  nascer  deveres  para  aqueles  indiví-duos, mesmo que  tais deveres não este-jam  escritos,  ou  haja  uma  cláusula  ex-pressa exonerando a pessoa do dever deinformar,  do  dever  de  cooperar,  do  de-ver  de  cuidado.  Esses  três  deveres  deconduta,    portanto,  fazeres,  nascem di-retamente  do  princípio  da  boa-fé  ou  dacláusula  geral  de  boa-fé,  e  estão  hojena  relação  contratual,  civil,  empresari-al  e  de  consumo. Estes  deveres  de  con-duta de boa-fé vão tornar uma cláusula,uma  condição  geral  contratual,  umacláusula do contrato, ilícita ou nula tantono CDC  como  no CC/2002  justamenteporque há uma  violação  dos  deveres  daboa-fé.  Boa-fé  é  um  princípio  derepersonalização  da  relação  contratual.Como ensina o grande mestre da UFRGS,Clóvis  do Couto  e  Silva:  ...o  dever  quepromana  da  concreção  do  princípio  daboa-fé é dever de consideração para como  alter.58  Efetivamente, boa-fé objetivasignifica uma atuação  refletida,59   umaatuação refletindo, pensando no outro, noparceiro  contratual,  respeitando-o,  res-peitando  seus  interesses  legítimos,  suasexpectativas  razoáveis,  seus  direitos,agindo  com  lealdade,  sem  abuso,  semobstrução,  informando-o,  aconselhando-o,  cuidando,  sem  causar  lesão  ou  des-vantagem  excessiva,  cooperando  paraatingir o bom fim das obrigações: o cum-primento do objetivo contratual e a reali-zação  dos  interesses  das  partes.60  Boa-fé é cooperação e respeito, é conduta es-perada e  leal,  tutelada em todas as  rela-ções  sociais.

    58 COUTO E SILVA, Clóvis V. A Obrigação como Pro-cesso,  São  Paulo,  Ed.  J.  Bushtasky,  1976  p.  29.59  Veja  nosso  livro, Contratos no Código de Defesado Consumidor,  4.  edição,  2002.60  Sobre  boa-fé  como  regra  de  conduta,  como  limite  àautonomia  da  vontade  e  como  fonte  de  novos  deveresacessórios,  veja  a  obra  de MENEZES CORDEIRO,  An-tonio M. da Rocha e, Da Boa-fé no Direito Civil, v. 1,p.  632  e  ss.

  • 258 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

    Como  afirmamos  anteriormente,boa-fé  é,  em  resumo,  um  princípio  dematerialização  da  vontade  contratual,agora  balizada  pelas  exigências  de  con-siderara  as  expectativas  legítimas  dooutro.  61  Assim ensina o também grandemestre  da  UFRGS,  Ruy  Rosado  deAguiar62 :  A boa-fé  se  constitui  numafonte autônoma de deveres, independen-te da vontade, e por  isso a extensão e oconteúdo da  relação  obrigacional  já  nãose mede somente nela  (vontade),  e,  sim,pelas  circunstâncias  ou  fatos  referen-tes  ao  contrato,  permitindo-se  construirobjetivamente  o  regramento  do  negóciojurídico,  com  a  admissão  de  um  dina-mismo  que  escapa  ao  controle  das  par-tes.  (grifo  nosso)  Para  se  ter  a  impor-tância  desta  visão  renovadora  dos  con-tratos  envolvendo  consumidores  e  for-necedores,  afirma  Paulo  Luiz  NetoLôbo:  O princípio  da  boa-fé  objetiva  foirefuncionalizado no  direito  do  consumi-dor,  otimizando-se  sua  dimensão  decláusula  geral,  de  modo  a  servir  deparâmetro  de  validade  dos  contratos  deconsumo,  principalmente  nas  condiçõesgerais  dos  contratos.63

    Os  professores  Jauernig  eVolkommer,  64      na sua edição nova dosComentários ao Código Civil alemão, quesofreu  uma  grande  reforma  em  2000  e2001, mencionam que as funções da boa-fé  (aquelas  clássicas  que  conhecemos  eque foram aqui mencionadas: a de esta-belecer  os  deveres  anexos,  interpre-tadora  e  a  limitadora,  isto  é,  a  própriaidéia  de  abuso)  devem  ser  vistas  hojecom olhos mais voltados para o futuro.65

    Boa-fé é uma medida objetiva (objektive

    Masstab),  um  paradigma  de  condutadas  pessoas,  mas  ela  é,  sem  dúvidaalguma,  uma  medida  de  decisão(Entscheidungsmasstab).

    Por  vezes,  visualiza-se  a  boa-féapenas  como um  standard,  uma medi-da  de  conduta,  uma medida  de  efeitopreventivo:  como  devo  eu  conduzir-mena  sociedade  do  futuro,  como  devo  euatuar de acordo com a boa-fé. O que osreferidos  professores  alemães  estãoquerendo  lembrar  é  que  esse  é  apenasum lado  da moeda, a boa-fé possui ou-tro  lado  que  não  podemos  esquecer:  aboa-fé  é  sempre  também uma valoraçãoda  conduta. O Direito  valora  a  atuaçãodo outro como um paradigma, não maissubjetivamente  (não  temos mais  a  idéiade  culpa) mas  como  um  objetivo.  Nãopodemos discursar sobre a boa-fé  comouma idéia, um paradigma de conduta, edeixar de utilizar a boa-fé na prática comoum  instrumento  de  decisão  do  Judiciá-rio  (é  uma medida  de  decisão).

    Neste  ponto,  gostaria  de  dividir  aminha exposição justamente nesses doismomentos:  1)  a  boa-fé  teórica  (comomedida de conduta) e o Novo Código Ci-vil  (onde  está  essa  boa-fé,  pelo menosna  parte  voltada  para  as  cláusulasabusivas);  2)  e  a  boa-fé  na  prática,  istoé,  a  boa-fé  como  medida  valorativa,instrumentário  para  que  o  juiz  diga  seuma cláusula é abusiva de acordo com ocumprimento  ou não  do  paradigma dasexigências  de  boa-fé.

    A) As funções da boa-fé e a experiên-cia de mais de 10 anos do CDC

    Essa utilização forte da boa-fé podeser  dividida  em  quatro  funções,  que  jáforam muitas  delas  aqui mencionadaspelo  Professor  Arnoldo Wald,  que meantecedeu.  A  primeira  função  é  essa  defotografia do que é  e do que não é  rela-ção contratual hoje, chamada de  funçãode complementação ou concretização darelação  jurídica. Através do princípio daboa-fé objetiva, o julgador visualiza e pre-cisa quais são os deveres das partes. Seé uma  relação  entre  iguais    iguais    ci-vis  ou    entre  comerciantes  -  há  o  novo

    61  Assim  CANARIS,  in Archiv für die civilistischePraxis (AcP),  200  (2000),  p.  277  e  seg.62 AGUIAR,  Ruy  Rosado  de,  A  Boa-fé  na  relação  deconsumo,  in Direito do Consumidor,  v.  14,  p.  24.63  LOBO,  Paulo  Luiz  Neto  A  informação  como  direitofundamental  do  consumidor, in Direito do Consumi-dor  37,  p.  67.64 Veja  JAUERNIG,  Othomar  et  alli,  BürgerlichesGesetzbuch,  7.  ed,  Beck, Munique,  1994,  p.  172,  §242,  1  (Vollkommer).65 Veja  citações  e  detalhes  em meu  artigo,  Boa-fé  nosserviços bancários, financeiros, de crédito e securitáriose  o Código de Defesa do Consumidor:    informação,  co-operação  e  renegociação  ?,  in RDC  v.  43  (2002),  p.215-257.

  • Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 259

    Código  Civil  e  aqueles  deveres  que  es-tão aqui também oriundos da boa-fé. Sea  relação  é  entre  consumidores,  entredesiguais,  um  leigo  e  um  profissional,então  também o  princípio  da  boa-fé  es-tabelece  quais  são  os  deveres  de  infor-mação,  de  cuidado,  de  cooperação.

    Trata-se  da  função de comple-mentação ou concretização da relação(Ergänzungsfunktion),  podendo  oaplicador  da  lei,  através do princípio  daboa-fé  objetiva,  visualizar  e  precisarquais  os  deveres  e  direitos  decorrentesdaquela  relação  em  especial  (por  exem-plo,  incluindo as informações veiculadasem publicidade  por  uma  seguradora  ougrupo bancário, Art. 30 do CDC), 66   tam-bém chamada de  função  interpretativa.  67

    A expressão alemã é de valorar-se e des-tacar-se,  pois  bem  especifica  a  funçãoativa  do  juiz,  uma  vez  que  se  trata  doRichterrecht  (Direito  dos  Juízes),  istoé,  há  uma  atividade mais  completa  ecomplexa68    do que a simples  interpre-

    tação  pelo  juiz,  há,  sim,  concreção  decláusula  geral.69  E como ensina a CorteConstitucional  alemã  desde  1993,  70  naconcreção  das  cláusulas  gerais  de  boa-fé  e  bons  costumes  (em  especial,  noscontratos  bancários,  financeiros  e  decrédito)  as  cortes  civis  devem  fazer  va-ler os direitos humanos, os direitos fun-damentais  recepcionados nas Constitui-ções, 71  impregnando o direito privado deseu espírito de proteção da dignidade dapessoa humana, da privacidade, de pro-teção  dos  dados,  de  direito  à  informa-ção,  à  escolha  livre,  de  desenvolvimentoda  sua  personalidade  etc.

    A  expressão  atual  alemã  tambémesclarece  de  forma  pedagógica  que  aboa-fé é uma nova  fonte de deveres  (de-veres  anexos),  descobertos  nacomplementação,  na  fotografia  da  re-lação,  que  realiza  o magistrado:  infor-mar, cooperar, cuidar com o outro e, nãosó,  prestar...  Aqui,  está,  pois,  a  funçãoprimeira e mais complexa da boa-fé, quevalora  o  grau  de  informação,  de  trans-parência,  de  lealdade  nas  condutas  ecláusulas  dos  fornecedores,  de  forma  avisualizar/fotografar  que  relação  jurídi-ca  é  esta,  complexa,  conexa,  principal

    66 Belo  exemplo  é  a  decisão  do  TJ/RS,  já  citada:  Pro-paganda  enganosa. Garantia,  incondicional,  de  finan-ciamento  para  aquisição  de  unidade  imobiliária.Aplicabilidade  do  Código  de  Defesa  do  Consumidor.Propaganda  enganosa  que  garantiu,  incondicionalmen-te,  financiamento  à  aquisição  de  unidade  imobiliária.Improvadas as apontadas  irregularidades na documen-tação. Com  inversão  do  ônus  sucumbencial,  condena-ção  da  incorporadora    para  suportar,  às  suas  própriasexpensas,  o  parcelamento  da  dívida  (conforme  garan-tido  na  publicidade).(AC  598435063,Des.  GuintherSpode,  j.  22.12.98, in RDC  36/324).  Veja  também de-cisão  e as já citadas decisões do TJ/RS sobre embala-gem prometendo prêmios (AC 596126037, 5ª Câm. Cív.TJ  RS,  j.  em  22.08.96,  rel.  Des.  Araken  de  Assis)  esobre  publicidade  prometendo  carros  a  quem  comple-tasse um  bingo  (AC  596116764,  5ª Câm. Cív.  TJ RS,j.  em 14.11.96,  rel. Des.  Araken  de  Assis),  todas  cita-das  e  comentadas  no  belo  artigo  de   Guinther  Spode,O  controle  da  publicidade  à  luz  do CDC, in RDC 42(2002),  no  prelo.  Veja  também  sobre  promessa  de  re-compensa  e  premiação  de  tampa  de  vasilhame  de  re-frigerante  Resp.  289.346/MG,  DJ  25.06.2001, min.Nancy  Andrighi.67  É  o  que   MARTINS-COSTA,  Judith, Boa-fé no Di-reito Privado,  RT,  São  Paulo,  2001,  p.  428,  denomi-na  de  a  boa-fé  como  cânone hermenêutico-integrativoe  à  p.  431,  citando  Larenz,  denomina  interpretaçãoda  regulação  objetiva  criada  com o  contrato.68 Belo exemplo pode ser a decisão do TJ/RS, em casoenvolvendo  seguro  de  Condomínio  Residencial,  emque cláusula contratual dava direito ao conserto do ele-vador  somente  após  comunicação  à  seguradora  e inAPC598002079,  j.  03.06.1998,  Des.  Antônio  JanyrDallAgnol  Júnior  ensinou:  Seguro  de  dano.  Interpre-tação  de  cláusula.  comunicação  imediata,  não  neces-sariamente  prévia.  dano  em  elevador  de  edifício  de

    apartamentos  residenciais. Segundo  interpretação quese  ostenta  a melhor,  a  exigência,  em  casos  como  odos  autos,  é  de  comunicação,  sim,  e  imediata, masnão  necessariamente  prévia,  do  dano  em  elevador  deedifício  de  apartamentos  residenciais,  poisdesarrazoado  que  se  aguarde  providências  da  segura-dora,  para,  apenas  após,  efetivar  o  conserto,  sempreurgente  quando  se  cuida  deste meio  de  transporte  depessoas.69 Assim  também  no  Brasil,  TEPEDINO,  Gustavo(Coord.), Direito Civil-Constitucional,  Renovar,  Riode  Janeiro,  201,  p.  11  e  12:  as  cláusulas  gerais  que,previstas  pelo  legislador  contemporâneo,  no Código  deDefesa  do Consumidor...,  vêm  sendo  amplamente  uti-lizadas  pelos  operadores.  Recupera-se,  então,  o  papelda  jurisprudência  e  da  doutrina...70 BVerfG Beschl.  v.  19.101993  -  1BvR  567/89  u.la.,in:  NJW 1994,36.  A  ementa  original  é  a  seguinte:  DieZivilgerichte müssen - insbesondere bei derKonkretisierung und Anwendung von Generalklauseln wie§ 138 und §242 BGB - die grundrechtlcihe Gewährleistungder Privatautonomie in Art. 2,I GG beachten. Daraus ergibtsich ihre Pflicht zur Inhaltskontrole von Verträge, die einender beiden Vertragspartner ungewöhnlich stark belastenund das Egbnis strukturell ungleicher Verhandlungsstärkesind.71 Veja meu artigo  Os contratos de crédito e a  legisla-ção  brasileira  de  proteção  do  consumidor, in RDC  v.18,  p.  53-76.

  • 260 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

    ou acessória visando o consumo e se asexigências desta boa-fé  foram ou podemser  cumpridas. O  objetivo  é  alcançar  aigualdade,  o  reequilibrio  entre  as  par-tes, e a atuação do Juiz conforme a boa-fé é ativa, como ensina o TJ/RS: Ao ana-lisar o contrato, com suas diversidade, e quese constitui alvo especial do chamado Direi-to do Consumidor, está o juiz nesse alinha-mento bem longe da principiologia clássicado contrato, onde se presumia que as par-tes eram livres para contratar, e eram iguais,sem qualquer distinção de informação, co-nhecimento e poder de cada uma. A atuaçãodo magistrado, frente a uma relação de con-sumo, pode e deve ser mais dinâmica, pre-tendendo assegurar a igualdade das partesao mesmo plano jurídico. (Ementa da APC197278518, 21ª CC, Des. Francisco JoséMoesch,  TJ/RS,  j.  17.06.1998).

    Destaque-se  que  o  legislador  ale-mão,  ao  reformar  o  seu Código Civil  de1893 em 2002, incluiu uma nova normade  interpretação no § 241 do BGB, apli-cável  aos  contratos de  consumo  (novo  §13 c/c § 241 e § 242), que é a seguinte:§ 241- Deveres oriundos das relaçõesobrigacionais- (1)...(2) As relaçõesobrigacionais podem, de acordo com seuconteúdo (tipo), obrigar cada uma das par-tes a ter em conta os direitos, as coisas/patrimônio e os interesses da outra parte.72

    Note-se a beleza desta  linha que ampliaa visualização da relação, não só faz apa-recer  os  deveres  anexos  ao  contrato,como ajuda a valorar as práticas comer-ciais  do  fornecedor.  Ter  em  conta  osdireitos...e  os  interesses  da  outra  par-te  é  visualizar  o  alter  e  valorar  a  con-duta-conforme a boa-fé- daquele contra-tante mais  forte,  tanto  na  formação  docontrato  (cláusula  abusiva),  quanto  naexecução  do  contrato  (prática  comercialabusiva).

    Muitos denominam esta função deinterpretativa  ou  interpretadora  ,  en-tretanto, não quero aqui denominar estafunção  de  interpretação,  porque  essa  é

    uma  visão mais  clássica  da  boa-fé  e,como  afirmei,  parece-me  que  essa  idéiade concreção, de  fotografia mesmo com-pleta da relação é mais atualizada e maisatualizadora.  Essa  função  de  interpre-tar  pode  solucionar muitos  dos  proble-mas  que  também podemos  fazê-lo  atra-vés  do  uso  do  instrumentáriosancionatório  das  cláusulas  abusivas.Isto  é,  o  julgador  ao  interpretar  o  con-trato  ou  a  cláusula  já  o  faz  de  acordocom  o  instrumento  valorativo  que  é  aboa-fé  (medida  de  decisão).  Então,  sepode  interpretar  o  texto  de  forma que  acláusula examinada não viole a boa-fé eque proteja o mais fraco, ou seja favorá-vel a quem simplesmente aderiu ao con-trato  de  adesão,  estarei  utilizando  to-das  as  idéias  principiológicas  que  estãono Código Civil de 2002 e também, estãomais  fortemente  presentes  ainda,  noartigo 47 do Código de Defesa do Consu-midor. Assim o  julgador pode evitar queaquela  cláusula,  interpretada  de  outraforma,  viole  a boa-fé  e  seja nula. Vejamque dentro dessa função temos dois mo-mentos:  a  simples  interpretação  e  aidentificação  dos  deveres  que  objetiva-mente  as  partes  deveriam  cumprir.

    A  terceira conclusão dos  referidosprofessores  alemães  e  que me  pareceinteressante,  é  a  da  bilateralidade  dosdeveres de boa-fé. Geralmente, não men-cionamos muito  esta  característica  emmatéria  de Direito  do Consumidor  por-que  o Código  de Defesa  do Consumidorpositiva  que  o  dever  de  informar  é  im-posto ao  fornecedor, é um dever do pro-fissional  e  não  do  leigo,  o  consumidor.Mas agora, nesse outro mundo, que é oCódigo  Civil  de  2002,  na  relação  entreiguais,  há  bilateralidade  dos  deveres  deboa-fé:  um parceiro  deve  cuidar  do  ou-tro,  um deve  informar  ao  outro.  Se  sãodois  comerciantes,  obviamente  que  odever  de  informar  é  bilateral.  Há  o  de-ver  de  cooperar,  e  como mencionava  oProf. Arnoldo Wald, a idéia da parceria éjustamente  bilateral.  A  idéia  de  não  le-var o outro à ruína, que é uma idéia bas-tante  antiga  da  boa-fé,  uma  exceção  daruína,  a  qual  foi  aqui mencionada  pelo

    72 No original: § 241. Pflichten aus dem Schuldverhältnis.(1)...(2) Das Schuldverhältnis kann nach seinem Inhalt jednTeil zur Rücksicht auf die Rechte, Rechstgüter undInteressen des anderen Teils verpflichten.

  • Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 261

    Prof.  Arnoldo  Wald  com  a  idéia  derenegociação  dos  contratos,  é  um deverde  cooperar  para  evitar  a  ruína  econô-mica  do  outro,  é  um dever  bilateral  noCódigo Civil de 2002, imposto justamen-te pelo princípio da boa-fé positivado deforma  bilateral.

    Já no microssistema do Código deDefesa  do  Consumidor  essa  bila-teralidade  se  esmaece,  porque a próprianorma  impõe,  por  exemplo,  em matériade  banco  de  dados  (Art.  43  e  seg.  doCDC),  que  um  (fornecedores)  guarde  ecuide da informação que detêm do outro(consumidores),  que  um  (fornecedores)informe ao outro (consumidores). Portan-to, neste caso, o ônus, o peso do cumpri-mento  dos  deveres  de  boa-fé  foipositivado,  foi  regulado  em norma posi-tiva indisponível  (Art. 1º  do CDC), e so-mente  em  poucos momentos  existe  re-almente uma bilateralidade  dos  deveresde  boa-fé  no Código  de Defesa  do Con-sumidor. Um exemplo que  foi dado peloProf. Wald  foi  justamente  o  do  contratode  seguro,  em  que  há  uma  relação  deconsumo, mas em que também os deve-res  de  informação  do  consumidor  estãopositivados no Código Civil e mesmo as-sim  são  interpretados  sempre  favoravel-mente  a  eles  (art.  47  do CDC  em diálo-go!). Aqui nessa primeira função da boa-fé,  isto  é,  da  concretude,  daconcretização  da  relação,  está  a maiorpotencialidade  para  o  chamado  direitodos  juízes,  isto  é,  a  verdadeira  interpre-tação  dos  contratos,  a  visualização  datotalidade  da  relação  que não  é  só  con-centrada  no  cumprimento  dos  deveresprincipais, mas  nesse  novo mundo  emque os serviços são mais importantes queos  dares.  É  um mundo  tão  complexo,cheio  de  riscos,  onde  há  o  dever  de  in-formar, de colocar  junto com o produto,por  exemplo,  um manual  de  utilizaçãoou de colocar junto com o serviço bancá-rio o verdadeiro preço daquela  taxa, da-quele  extrato,  daquele  talão,  ou  do  en-vio do talão pelo correio e as possibilida-des  que  teria  o  consumidor  de manu-tenção  da  conta  de  forma  diferenciada,esta  informação  pode  ser  até mais  im-

    portante  do  que  o  verdadeiro  cumpri-mento  da  prestação  principal,  isto  é,manter  uma  escrituração  ou  de  entre-gar-me um bem que não sei usar, se nãotenho  um manual  de  informação.  Emoutras  palavras,  os  deveres  de  boa-fépotencializam-se  e  ganham  em  impor-tância nos dias de hoje, e aí está a pos-sibilidade  de  o  direito  dos  juízes  evoluira nossa visão do contrato na prática.

    A segunda função da boa-fé, maistípica  é  a  função  de  controle  e  de  limi-tação  das  condutas.  Aqui  está  a  proibi-ção das cláusulas abusivas. Temos liber-dade  de  contratar,  de  estabelecer  a  li-berdade  contratual,  portanto,  de  esta-belecer  o  conteúdo  do  contrato,  mascomo  essa  é  uma  liberdade  formal  emuitas  vezes  não  material,  parareequilibrar  a  situação  em matéria  decontratos  de  adesão  -  regulados  hojepelo Código Civil  de  2002  -  a  lei  limitaessa  liberdade.  Vejamos  o  que  os  arti-gos 423 e 424 do novo Código Civil men-cionam  sobre  isso:  Quando  houver  nocontrato  de  adesão  cláusulas  ambíguasou  contraditórias  dever-se-á  adotar  ainterpretação mais  favorável  ao  aderen-te,  primeira  idéia,  primeira  função.  Eno Artigo 424: Nos contratos de adesãosão nulas  as  cláusulas  que  estipulem arenúncia  antecipada  do  aderente  a  di-reito  resultante  da  natureza  do  negó-cio. Nesta norma temos dois momentosnormativos,  isto  é,  limita-se  a  possibili-dade  de  renúncia  por  uma  das  partes,através  de  cláusulas  exonerativas,cláusulas  de  exoneração  de  responsa-bilidade.  Assim,  no  contrato  de  trans-portes,  por  exemplo,  a  cláusulaexonerativa  de  responsabilidade  vai  serconsiderada  nula,  vai  ser  restringida,comple-mentando  essa  idéia.  Em maté-ria  de  seguros,  também,  há  artigos  es-pecificamente  prevendo  que  determina-das  cláusulas  não  são  possíveis  nessescontratos  ou  em  contratos  de  prestaçãode  serviço  (na  parte  especial).    Porém,aqui   na parte  geral do novo Código Ci-vil, a  idéia é que a renúncia, se ela é aoprincipal,  se  ela  é  aquela  resultante  danatureza  do  negócio,  esta  renúncia  ou

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    disposição per se já é nula. Aqui encon-tra-se  o maior  limitador,  a melhor  defi-nição do que podem ser essas cláusulasabusivas que o Código Civil de 2002 con-sidera  nulas.

    O Código  de Defesa  do Consumi-dor  também  tem  a  idéia  da  cláusulaabusiva,  só  que  ali,  para  a  proteção  domais  fraco,  a  potencialização  do  que  éabuso  é  ainda maior.  Considera-se,  noartigo  51,  parágrafo  1°,  como nulas  to-das  as  cláusulas  que  asseguram  umavantagem  exagerada para uma das par-tes,  que  destroem  o  sistema  em  que  ocontrato está e que, portanto, destroem,em   última  análise,  esse  objeto  do  con-trato,  a  expectativa  legítima  do  consu-midor.

    É  a  função de controle e del i mitação  das condutas   (Schran-kenfunktion),  pois    o  princípio,  de  for-ma  imanente,  está  a  limitar  as  posi-ções jurídicas dos contraentes e o exer-cício  de  seus  direitos,  dai,  por  exemplo,a  proibição  de  cláusulas  e  práticasabusivas  (Art.  39  e  51  do CDC).  Comoafirmamos,  a  boa-fé objetiva  é  umstandard,  um parâmetro  objetivo,  gené-rico,  um  patamar  geral  de  atuação,  dohomem médio, do bom pai de família queagiria de maneira normal e  razoável na-quela  situação  analisada.73  O julgadorvalora  a  atuação,  decidindo  se  esta  ul-trapassou ou não a  razoabilidade,  os  li-mites  impostos  por  esta  boa-fé  objetivaqualificada, que é a de consumo. Abusivaé  a  conduta  ou  a  cláusula  que  viola  aboa-fé,  os  deveres  impostos  pela  boa-fé

    aos  agentes  na  sociedade,  como  ensinao  STJ,  no    Resp.  219184/RJ,  j.26.10.1999, Min. Ruy Rosado de Aguiar:SERASA. Dano moral. - A inscrição do nomeda contratante na Serasa depois de propos-ta ação para revisar o modo irregular peloqual o banco estava cumprindo o contrato definanciamento, ação que acabou sendojulgada procedente, constitui exercícioindevido do direito e enseja indenização pelograve dano moral que decorre da inscriçãoem cadastro de inadimplentes. Recurso co-nhecido e provido.

    A  pergunta  atual  é  como  vamosrealizar a  interpretação desse artigo 424do Código Civil de 2002. A doutrina, emespecial  os  comentaristas    começam  afornecer  idéias  sobre  a  interpretaçãodesse  artigo. Normalmente,  porém,  cos-tumam  concentrar-se  não  na  cláusulageral  de  boa-fé  do Código  de Defesa  doConsumidor, mas no  primeiro  inciso  doartigo  51. O Art.  51  do CDC,  caput dis-põe:  São  nulas  de  pleno  direito,  entreoutras,  as  cláusulas  contratuais  relati-vas  ao  fornecimento  de  produtos  e  ser-viços  que:  I  -  impossibilitem,  exoneremou  atenuem  a  responsabilidade  do  for-necedor por vícios de qualquer naturezados  produtos  e  serviços  ou  impliquemrenúncia  ou  disposição  de  direitos....Esse  inciso  I, há que se mencionar, nãotermina  assim, mas possui uma segun-da  frase  que  permite,  nos  contratos  en-tre  pessoas  jurídicas,  em  plenomicrossistema  do  Código  de Defesa  doConsumidor,  a  limitação  da  responsabi-lidade.

    Por  que menciar  isso? Porque meparece  importante  para  estabelecermosa  diferença  entre  o  que  é  a  qualidadeda boa-fé ou a potencialidade de aplica-ção  da  boa-fé  no  Código  de  Defesa  doConsumidor  e  a  potencialidade  de  suaaplicação  no  Código  Civil  de  2002.    OCódigo Civil  de  2002  é um Código  paraiguais,  relação  entre  civis  e  relação  en-tre  comerciantes.  O  próprio  Código  deDefesa  do Consumidor,  que  possui  am-plas  definições  de  quem  é  consumidor(veja  a  linha  interpretativa  dosmaximalistas e dos finalistas, à qual me

    73  Neste  sentido,  veja-se  exemplar  decisão  do  Min.Carlos  Alberto Menezes Direito,  in  Resp.  158.728-RJ,16.03.1999,  cuja  ementa  ensina:  Plano  de  saúde.  Li-mite  temporal  da  internação.  Cláusula  abusiva.  2.  Oconsumidor não é senhor do prazo de sua  recuperação,que, como é curial, depende de muitos fatores, que nemmesmo os médicos são capazes de controlar. Se a enfer-midade  está  coberta  pelo  seguro,  não  é  possível,  sobpena de grave abuso, impor ao segurado que se retire daunidade de  tratamento  intensivo,  com o  risco  severo demorte,  porque  está  fora do  limite  temporal  estabelecidoem uma determinada  cláusula. Não pode  a  estipulaçãocontratual  ofender  o  princípio  da  razoabilidade,  e  se  ofaz,  comete  abusividade  vedada pelo  art.  51,  IV,  do Có-digo  de Defesa  do  Consumidor.  Anote-se  que  a  regraprotetiva,  expressamente,  refere-se  a uma desvantagemexagerada do  consumidor  e,  ainda,  a  obrigações  incom-patíveis com a boa-fé e a eqüidade.

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    filio),  já  pensando  nisso  e  antes  do  ad-vento do Código Civil de 2002, previa queem  matéria  de  relacionamentointercomerciantes, portanto, consumido-res  pessoas  jurídicas,  era  permitida  acláusula  de  limitação  da  responsabili-dade,  se  ela  não  atingia  a  natureza  docontrato,  o  objeto  do    contrato,  se  real-mente não violava a boa-fé entre comer-ciantes,  isto  é,  a  cláusula  geral  do  arti-go 51, IV do Código de Defesa do Consu-midor.  Como  podemos  interpretar  essaexceção  à  regra?  Podemos  interpretaratravés de uma visão de força, de quali-ficação. É claro que o princípio da boa-fé  atinge  tanto  o microssistema  do Có-digo  de Defesa  do  Consumidor  como  oCódigo Civil de 2002, mas aqui, em umarelação  entre  iguais,  a  idéia  do  que  éabusivo, do que atinge a natureza do con-trato  é,  de  qualquer maneira,  de  umavaloração mais  concreta;  porém,  para  aproteção obrigatória, ex vi lege, de umadas  partes  do  contrato,  realmente  nes-te  caso  a  boa-fé  se  ilumina/qualifica,sendo  portanto muito mais  exigente  epor  isso muito mais utilizada.

    A  terceira  função  é  a  função  decorreção  e  adaptação  em  caso  de mu-dança  das  circunstâncias,  que  tambémjá  foi mencionada  aqui  pelo  ProfessorArnoldo  Wald.  Hoje,  essa  função  é  aidéia  de  que  há  um direito  a  uma ma-nutenção do vínculo (pelo menos um di-reito  à  tentativa da manutenção do  vín-culo).  Por  isso  há,  dentro  da moção  deboa-fé,  a  idéia  de  um  dever  derenegociação  geral  dos  contratos  comer-ciais.  Este  dever  não  nasceu  no  direitodo  consumidor.  Essa  idéia  nasceu  nosgrandes  tratados  internacionais,  veja-seos princípios do UNIDROIT, na chamadaLex Mercatoria, isto é, nos contratos in-ternacionais  entre  comerciantes.74  E,

    foi  trazida para  o Direito Civil  interno  apartir daquela idéia antiga da boa-fé, queé  a  exceção  da  ruína:  no  cumprimentoconforme  a  boa-fé  dos  contratos  há  deevitar-se  a  conduta  que  leve  à  ruína  dooutro,  do  parceiro  contratual.

    O nossa visão atual do contrato éde uma parceria, contrato é um momentode cooperação. Porque o outro me esco-lheu  e  porque  eu  o  escolhi  -  (repita-seque  boa-fé  é  um  pensar  refletido),  nãoposso  eu  permitir  que  a  minhavinculação  a  uma  determinada  cláusu-la contratual leve o outro a ruína, como,por  exemplo,  no  sistema  financeiro  dahabitação. Se eu credor não permito queo  indivíduo me  devolva  o  imóvel,  se  eunão permito que o  indivíduo venda-o ouque passe o imóvel e a dívida a uma ou-tra pessoa, se o indivíduo perde a possi-bilidade  concreta  de  saldar,  se  há  umaimpossibilidade subjetiva de pagar (se elefica desempregado ou doente, por exem-plo)  e  eu  o mantenho  preso  como meudevedor, sei que o estou levando à ruína !Eu não  renegocio,  porque  eu  credor  te-nho o contrato,  tenho aquela cláusula,tenho  o  direito.  Não  preciso  eu  adap-tar,  renegociar,  mas  será  que  estouagindo  conforme  a  boa-fé? Obviamente,todos sabemos que o paradigma da boa-fé  é pensar no outro, nas suas expecta-tivas  legítimas,  no  fato  de  que  ele  real-mente  entrou no Sistema Financeiro  deHabitação  porque  não  podia  compraratravés  de  outros  financiamentos.  Tra-ta-se  de  um  contrato massificado,  parapessoas mais pobres, para  classe médiada sociedade  (se ele  fosse da classe altacompraria  à  vista  ou  faria um  financia-mento  direto  bancário).  O  dever  derenegociação  nasceu  nos  contratos  in-ternacionais do Direito Comercial e agoraestá  chegando  nesse  direito  entreiguais,  ou  direito  entre  diferentes,  o Di-reito  do  Consumidor,  e  aqui  está  tam-bém  -  em minha  opinião  -  na noção  deboa-fé do Código Civil de 2002.

    É a função de correção e de adap-tação em caso de mudança das cir-cunstâncias (Korrekturfunktion),  apermitir que o  julgador adapte e modifi-

    74  Veja  o  estudo  de MARTINEK, Michael,  Die  Lehrevon  de  Neuverhandlungspflichten-  Bestandaufnahme,Kritik...und  Ablehnung, in  Archiv für diecivilistische Praxis,  198  (1998),    p.  330  e  seg.  ,  oqual  apesar  de negar  a  existência  deste  dever  geral  derenegociação  (Neuverhandlungspflicht)  em  todos  oscontratos  de  longa  duração,  concorda  que  a  doutrinamajoritária  o  identifica  em muitíssimo  deles,  em  espe-cial  os  de  longa  duração  de  consumo,  p.  356  e  seg.

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    que o conteúdos dos contratos para que ovínculo permaneça (manutenção do vínculo)apesar da quebra da base objetiva do negó-cio, por exemplo, com a desvalorização dodólar em contratos de leasing,75  ou imponhadeveres  de  renegociação76   face à quebrasubjetiva da base do negócio, por exemplo,quando o consumidor perde seu emprego. Adecisão aqui é casuística, como ensina o STJ,no  mencionado  Resp.  200.019/SP  j.17.05.2001,  DJ  27.08.2001,  Min.  AriPargendler:Civil. Promessa de compra e ven-da. Rescisão. Ação de rescisão de compromissode compra e venda ajuizada pelo promitente com-prador que ficou sem condições de cumprir o con-trato. Procedência do pedido, à vista das circuns-tâncias do caso concreto.. . 77

    A  quarta  função,  e  com  isso  ter-mino  essa  parte  teórica,  é  de  autoriza-ção  para  decisão  por  eqüidade. No Bra-sil, costumamos dizer que a decisão poreqüidade  tem  que  ser  autorizada  ex vilege.  O Código  de Defesa  do Consumi-dor  é  um  sistema,  um microssistema,que  permite  a  decisão  por  eqüidade  emseu  artigo  7º.  Porém,    geralmente  nãoconcordamos  com a  idéia  alemã de  quedentro  da  boa-fé  está  uma  decisãocasuística,  uma  decisão  fora  do  siste-ma,  uma decisão  inovadora.  Aqui,  real-mente,  não  consegui  encontrar  nenhu-ma  decisão  do  Judiciário,  do  SuperiorTribunal de Justiça, para apoiar essa úl-tima  função  da  boa-fé. Minha  experiên-cia  é  que  realmente  essas  teoriasgermânicas, mais  dia menos  dia,  come-çam a ser aceitas entre nós. Assim comoa terceira, que é o dever de renegociação

    geral,  foi  aqui  mencionado  pelo  Prof.Arnoldo Wald,  parece-me  que  em brevenós  teremos  essa  idéia  de  abertura  dosistema  para  uma  decisão  casuísticacom base não só na função social do con-trato, que seria outra possibilidade, mascom base no princípio geral da boa-fé.

    É a  função de autorização para adecisão por eqüidade  (Ermächtigüngs-funktion), pois como cláusula geral suaconcreção  passa  pela  ativa  participaçãodo  julgador e não pode escapar à  tópicae à procura da eqüidade contratual, ori-ginando  assim  um  direito  de  eqüidade(Billigkeitsrecht)  adaptado  à  socieda-de  e  às  necessidades  atuais.  Comorelembra Hattenhauer,78  a fórmula boa-fé exige uma concretização no caso con-creto,  logo,  casuística  e  com  base  naeqüidade  (Billigkeit).

    B) Cláusulas abusivas no Código Civilde 2002 e no CDC: uma visão práticado diálogo das fontes

    Iniciando esta  segunda sub-parte,  aparte concreta, cabe perguntar o que signi-fica essa visão de diálogo e de  funções daboa-fé para a prática do Código Civil de 2002?

    Em 1993,  a Corte ConstitucionalAlemã,  em um  contrato  bancário,  deci-diu  que a  concretização da  cláusula  ge-ral  de boa-fé deveria  ser  feita de  acordocom  os  direitos  fundamentais  das  pes-soas.79  A decisão de 1993 abriu uma cri-

    75  Veja,  por  todos,  Resp.  361.694/RS,  j.  26.02.2002,Min.  Nancy  Andrighi,  DJ  25.03.2002.76  A doutrina  atual  está  estudando  fortemente  os deve-res de  renegociação,  tanto na Alemanha  (Norbert Horn,Jürgen Baur, Herbert Kronke, Ersnt Steindorff, GabrielleFecht,  Andreas  Nelle  etc.),  na  Itália  (Giovanni  deCristofaro, Giuseppe Gandolfi,  Franco Anelli,  todos  so-bre  cessão dos  contratos), nos Estados Unidos  (seja nosteóricos da Lw and Economics    renegotiation-,  seja nosinternacionalistas,  em  virtude  dos  Principíos  daUNIDROIT  para  os  contratos  internacionais  de  1994),assim relata em detalhes MARTINEK, Michael, Die Lehrevon  de  Neuverhandlungspflichten-  Bestandaufnahme,Kritik...und Ablehnung,  in  Archiv für die civilistischePraxis  (AcP),  198  (1998),    p.  330 a 398.

    trato, que não aproveitou e a devolução das parcelaspagas,  mesmo  se  a  outra  parte  se  opunha,  citandocomo  precedentes  os  Resp.  132.903-SP,  Min.  RuyRosado de Aguiar, DJ 19/12/97, Resp. 109.960-RSP,Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  DJ  24/03/97,  Resp.79.489-DF, Min.  Ruy  Rosado  de  Aguiar,  DJ  22/04/97      e  o  já  citado in    Resp.  109.331-SP,  DJ  31/03/97.78  HATTENHAUER,  Hans,   Grundbegriffe desBürgerlichen Rechts,  Beck,  Munique,  1982,    p.93.79 BVerfG Beschl.  v.  19.101993  -  1BvR  567/89  u.la.,in:  NJW  1994,36-39.  A  ementa  original  é  a  seguinte:Die  Zivilgerichte  müssen  -  insbesondere  bei  derKonkretisierung  und Anwendung  von Generalklauselnwie  §  138  und  §242  BGB  -  die  grundrechtlciheGewährleistung  der  Privatautonomie  in  Art.  2,I  GGbeachten.  Daraus  ergibt  sich  ihre  Pflicht  zurInhaltskontrole  von  Verträge,  die  einen  der  beidenVertragspartner  ungewöhnlich  stark  belasten  und  dasEgbnis  strukturell  ungleicher  Verhandlungsstärkesind.

    77 Neste caso o STJ permitiu ao devedor (inadimplente),que  perdera  seu  emprego,  requerer  a  rescisão  do  con-

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    se  no  sistema  alemão  e  levou  à modifi-cação do Código Civil, que era de 1896.80

    Nesse caso concreto de um contra-to  bancário  -  que  era  de milhares  demarcos - entre um empresário e um ban-co, o problema  todo se deu com relaçãoao  garantidor,  o  filho  desse  empresário,que  já  era maior,  e  garantiu  (assinandoa garantia) num valor absolutamente ex-traordinário em relação à potencialidadedele  (ele,  inclusive,  era  estudante  demedicina). O  banco  na  época  argumen-tou que precisava evitar a circulação dariqueza na família, isto é, que se ele nãofosse  fiador  ou  garantidor  do  pai,  o  paipoderia  transferir  aqueles  valores  paraele e com isso fugir à pressão do banco.

    No  final,  no  caso  concreto,  o  paivai  à  falência,  e  porque  é  um  comerci-ante com todas os privilégios de falido, obanco  prefere  acionar  o  filho,  então  jáum médico. Só que o valor do emprésti-mo,  que  ele  obviamente  garantiu  de  li-vre  vontade,  era  tão  grande  que  ele  le-varia  o  resto  da  vida  pagando. O  filhoperdeu  em  primeiro  grau,  sob  o  argu-mento da pacta sunt servanda; perdeuem  segundo  grau    pacta suntservanda- e  chegou à Corte Federal Ci-vil  alemã  (BGH)  e  esta  novamente  afir-mou:  não,  o  senhor  é maior,  o  senhorobrigou-se  e  não  temos  como  reverteressa situação agora, a não ser pelos exa-mes  de  fato. O  filho-garantidor  recorre,então,  à  Corte  Constitucional  alemã(BVerFG) que faz emite esta decisão queficou  clássica:  as  cortes  civis,  quandoda concretização das cláusulas gerais deboa-fé  e  bons  costumes,  deverão  consi-derar  os  direitos  fundamentais  do  cida-dão,  inclusive  o  direito  de  desenvolvi-mento  da