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DAS DIACRONIAS ÀS ISOTOPIAS: REFLEXÕES INICIAIS SOBRE “LEITURA DE IMAGENS NO ENSINO DE HISTÓRIA DA ARTE” Christian Fernandes 1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina Resumo Este artigo apresenta as reflexões que originaram um projeto de pesquisa de mestrado em que se propõe a discussão da aplicabilidade do conceito de isotopia, advindo das teorias semióticas discursivas, nas metodologias de ensino de História da Arte na Educação Básica. Originária do domínio da „ciências da natureza‟, a noção de isotopia é redefinida, no âmbito da semiótica discursiva, como a permanência de um efeito de sentido ao longo da cadeia do discurso, respondendo, portanto, por sua coerência semântica. Inicialmente discute-se algumas práticas de ensino de História da Arte passíveis de crítica para, num segundo momento, apontar-se manifestações no discurso de historiadores da arte brasileira oitocentista que revelam aproximações conceituais com princípios da semiotica discursiva, entre eles o conceito de isotopia. Palavras-chave: Semiótica, História da Arte, Isotopia, Figurativização, Tematização Ensino de História da Arte na Educação Básica: problematização Na condição de professor da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, atuando em cursos de nível médio e superior, há 21 anos, pude observar em relatos escritos de alunos egressos de diversas instituições das redes pública e privada de níveis Fundamental e Médio da grande Florianópolis 1 Bacharel em História; Licenciado em Artes Plásticas; Mestrando em Artes Visuais pelo PPGAV - CEART - UDESC. Professor de Artes Visuais, História da Arte e Semiótica Visual do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, campus Florianópolis.

DAS DIACRONIAS ÀS ISOTOPIAS: REFLEXÕES INICIAIS …leituradeimagens.art.br/5_seminario/artigos/89Christian.pdf · teorias semióticas ... alguns dos rumos que tem tomado o ensino

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DAS DIACRONIAS ÀS ISOTOPIAS:

REFLEXÕES INICIAIS SOBRE “LEITURA DE IMAGENS NO ENSINO DE HISTÓRIA DA ARTE”

Christian Fernandes1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina

Resumo

Este artigo apresenta as reflexões que originaram um projeto de pesquisa de mestrado em que se propõe a discussão da aplicabilidade do conceito de isotopia, advindo das teorias semióticas discursivas, nas metodologias de ensino de História da Arte na Educação Básica. Originária do domínio da „ciências da natureza‟, a noção de isotopia é redefinida, no âmbito da semiótica discursiva, como a permanência de um efeito de sentido ao longo da cadeia do discurso, respondendo, portanto, por sua coerência semântica. Inicialmente discute-se algumas práticas de ensino de História da Arte passíveis de crítica para, num segundo momento, apontar-se manifestações no discurso de historiadores da arte brasileira oitocentista que revelam aproximações

conceituais com princípios da semiotica discursiva, entre eles o conceito de isotopia.

Palavras-chave: Semiótica, História da Arte, Isotopia, Figurativização, Tematização

Ensino de História da Arte na Educação Básica: problematização

Na condição de professor da Rede Federal de Educação Profissional, Científica

e Tecnológica, atuando em cursos de nível médio e superior, há 21 anos, pude

observar em relatos escritos de alunos egressos de diversas instituições das

redes pública e privada de níveis Fundamental e Médio da grande Florianópolis

1 Bacharel em História; Licenciado em Artes Plásticas; Mestrando em Artes Visuais pelo PPGAV - CEART

- UDESC. Professor de Artes Visuais, História da Arte e Semiótica Visual do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, campus Florianópolis.

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e em conversas com colegas, em eventos acadêmicos e encontros informais,

alguns dos rumos que tem tomado o ensino de História da Arte na Educação

Básica em nossa região. Essa observação tem, pois me suscitado

preocupações quanto à percepção e valoração do papel desta área de

conhecimento nesse âmbito da educação.

Em grande número de escolas das referidas redes o estudo da „História da

Arte‟ continua presente, em alguns poucos casos isoladamente, buscando-se o

status de disciplina autônoma, ou, com maior frequência, diluído,

compartilhando carga-horária dentro do componente curricular Artes com

outros focos de prática Arte-educativa, como os propostos na já consagrada

Metodologia Triangular, entre outras.

Dada a amplitude da produção visual (desde as imagens visuais das

tradicionalmente chamadas “belas artes” até as mídias contemporâneas), que é

inversamente proporcional ao tempo destinado nos currículos oficiais a esse

ensino, várias dessas abordagens da História da Arte, por sua vez,

habitualmente têm organizado seus conteúdos a partir da tradicional acepção

temporal-linear, que reproduz os modelos dos compêndios comumente

disponibilizados pelo mercado bibliográfico e reproduzidos na internet em sites

que se propõem a oferecer verdadeiros “manuais didáticos” sobre a docência

do tema. Nestes, dentro da síntese possível, reexercita-se o culto às “obras

primas da arte universal”. A partir desses modelos aulas são ministradas pela

exibição sequencial de conjuntos das referidas “obras primas” em slides, fotos,

vídeos, ou reproduções das mais variadas técnicas, através das quais “visita-

se” virtualmente o “arcabouço imagético da cultura universal” e reproduz-se a

antiga tradição na qual determinadas imagens e artistas são canonizados como

ícones legitimamente representativos dos períodos histórico-estéticos em que

se situam.

O culto ao gênio criador e à personalidade do artista, baseado em dados

biográficos, complementa muitas vezes essa prática. Fenômeno recorrente não

só em nossas cidades, mas também em outras regiões do sul do Brasil como

podemos observar na fala de três componentes do Grupo de Estudos e

Pesquisa em Arte Educação e Cultura da UFSM sobre o ensino de História da

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Arte em sete escolas onde os alunos de seu curso de Licenciatura em Artes

Visuais tem campo de estágio curricular:

Percebemos a História da Arte ministrada nas escolas como a história dos artistas, atrelada a conceitos de genialidade, inspiração, talento, dom e uma série de conceitos subjetivos e vagos, baseados nas potencialidades individuais. (ROSA; SIQUEIRA; OLIVEIRA, 2007)

Na busca de uma solução para abarcar-se, sob os vários enfoques possíveis,

os exemplos mais significativos das galerias deste “arcabouço universal”,

segundo os relatos ouvidos e lidos, abordagens diacrônicas tradicionais

parecem ter predomínio, mas algumas experiências de tentativa de superação

já foram realizadas. Contudo, em grande parte das abordagens sincrônicas o

recorte do corpus de imagens apresentado é arbitrariamente eleito conforme os

padrões de apreciação e valoração do ministrante, recorrentemente se

omitindo até mesmo a simples alusão ao passado menos próximo e

explorando-se apenas o estudo da produção moderna e contemporânea.

Na mesma medida, agravando esta problemática, verifica-se com certa

frequência a adoção concomitante da esquematização classificatória em

conceitos e categorias de “estilos de autor e época”, e do chamado

“descritivismo emocional”, exercício pretensamente transliterador e explicitador

do discurso visual como tentativa de apreensão do sentido das obras de arte

pela manifestação dos sentimentos que pode evocar.

As recentes revisões teórico-metodológicas sobre a História da Arte nos fazem

entender que seu estudo não precisa pautar-se por princípios de temporalidade

linear, como se observa nos projetos pedagógicos dos primeiros cursos de

bacharelado em História da Arte em nosso país, consoante BAUGARTEM

(2009) e SIQUEIRA (2009)2, porque entende-se que História da Arte não se

constrói em um processo de „evolução gradativa‟ ou „progressão‟, mas de

oscilação entre permanências e rupturas, uma vez que, como componentes da 2 “Embora a ideia da reconstrução cronológica seja uma das maneiras de produzir a análise histórico -

artística, é hoje corrente o aceite de modelos analíticos que prescindem da reconstrução cronológica, apontando para novas abordagens do fenômeno artístico e visual.” (BAUGARTEM, 2009, p.1) “Queríamos participar, em nossa estrutura curricular, dos debates contemporâneos que buscam reformular a História da Arte, tentando liberá-la da temporalidade linear (...). Como pressupostos desse novo modo de lidar com a História da Arte, estão, portanto: 1. A eliminação da cronologia como forma de ordenação das disciplinas, através do recurso a um recorte conceitual que instigue cruzamentos temporais e espaciais, sem contudo fornecer um modelo de desdobramento para cada disciplina;” (SIQUEIRA, 2009, p.70)

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cultura das sociedades nas quais são produzidas as manifestações artísticas

estão, historicamente, em tensão com elas. É igualmente sabido que a

linearidade também tem sido condenada na educação, e não apenas no ensino

de arte. O pensamento de Gilles Deleuze é emblemático nesse sentido: “Não

há linha reta, nem nas coisas, nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos

desvios necessários a cada vez para revelar a vida das coisas.” (DELEUZE,

1997, p.12).

Se a classificação estilística, superficial e reducionista, permanece como vício

metodológico, fruto da ortodoxia construída sobre a contribuição de grandes

teóricos da abordagem a partir do conceito de estilo, como Heinrich Wölfflin3,

em contraponto pode-se “pensar os estilos como categorias analíticas inexatas

e não como instrumentos dotados de cientificidade” consoante COLI quando

propõe:

Importa não atribuir às palavras mais poderes do que elas realmente possuem, nem carregá-las de uma afetividade excessiva, sobretudo no que concerne aos conceitos classificatórios. Eles seriam muito úteis se apenas agrupassem objetos através de algumas afinidades, mas tornam-se perigosos porque rapidamente tendem a exprimir uma suposta essência daquilo que recobrem e substituir-se ao que nomeiam, como falsos semblantes escondendo os verdadeiros. Essa atitude não é “ingênua”, ou culturalmente desarmada. Ao contrário, ela pressupõe uma revisão no saber. São - caso se queira - precauções metodológicas em um momento de mudanças de posições. Seja como for, diante de qualquer obra, o olhar que interroga é sempre mais fecundo do que o conceito que define. Vale mais, portanto, colocar de lado as

noções e interrogar as obras. (2005, p.11, grifo meu)

A História da Arte pode, e deve penso, ser entendida como uma investigação

do fenômeno artístico que evidencie a natureza específica de seus “produtos”,

irredutíveis à condição genérica de simples documentos históricos, e que

transcenda seu status de objetos, para o de sujeitos da investigação conforme

COLI quando diz “Os livros e os professores levaram-me a perceber a obra de

arte no seu papel de sujeito: sujeito que pensa silenciosamente, sem conceitos,

3 Heinrich Wölfflin (1864-1945) autor de Conceitos Fundamentais da História da Arte (1915) considerado o

instaurador do estudo da História da Arte a partir do conceito de estilo, princípio da recorrência de

constantes formais no conjunto de obras de um determinado recorte histórico-temporal.

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que emite sinais em sintonia com as culturas individuais, geracionais,

coletivas.” (2010, p. 12, grifo meu)

É a partir dessa consideração, da obra como sujeito e das possibilidades

investigativas que essa condição epistêmica lhe confere, que evidenciam-se na

problemática aqui enfocada os pontos que em minha leitura mais merecem

destaque: a questão da eleição dos repertórios de imagens artísticas

estudados no ensino de História da Arte e, principalmente, da sistemática de

análise dos mesmos.

Sobre o primeiro, objeto da preocupação de pesquisadores que tem se

dedicado à revisão do conceito de construção da cultura visual brasileira, a

exclusão da arte anterior à contemporaneidade nos debates é herança,

convém explicitar, da depreciação preconceituosa da crítica modernista à

produção estética anterior à sua ascensão hegemônica, homologada pelo

mercado consumidor de bens artísticos no início do séc. XX. (COLI, 2005;

CASTRO, 2007; PEREIRA, 2008; CAVALCANTI, 2009). A revisão desta

postura, o resgate do valor do conjunto de obras que compõem ricos períodos

da história da arte brasileira, como o século XIX por exemplo, é o primeiro

motivo que me impulsiona a selecionar meus “sujeitos” de estudo.

Ao longo das duas últimas décadas um movimento de reação à desvalorização

da arte pré-modernista4 se verifica cada vez com mais força entre os

historiadores da arte brasileira (HERNÁNDEZ, 2008). A vasta gama de

produção acadêmica sobre o tema e sua presença, que vem se multiplicando

em eventos científicos, desde meados da década de 90 é prova cabal disto,

como afirma Castro:

Muitos estudos têm confrontado as abordagens construídas sob o olhar modernista e empenham-se em mostrar que embora os intelectuais e artistas brasileiros oitocentistas buscassem inspiração na Europa, o faziam não por faltar-lhes originalidade, mas por que tentavam inserir a nação brasileira, em processo de constituição, em um plano universal. A inspiração residia nos ideais de civilização europeus, mas estes eram apropriados na construção das especificidades

4 Está se falando aqui, obviamente, da tiranização crítica do modernismo que relegou a toda a produção

imagética que antecede a semana de 22, preconceituosamente rotulada de „acadêmica‟, uma posição

inferior na cultura brasileira

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nacionais. Tais estudos buscam compreender essa produção

artística em seu contexto. (CASTRO, 2007, p.24)

O reinteresse pela produção imagética do século XIX revela um

amadurecimento no meio acadêmico sobre o status do objeto artistico deste e

de outros momentos na formação da cultura visual brasileira e, por

conseguinte, um amadurecimento do próprio conceito de cultura visual.

Finalmente, no tocante à prática de análise das obras de arte, ou seja, sua

leitura, me parece necessário observar que a problemática no ensino de

História da Arte se agrava quando nele ignora-se a necessidade de questionar

a imagem artística em sua construção estética e comunicativa e analisar o uso

dos códigos a partir dos quais ela emanou e emana sentidos se constituindo

como texto-discurso para além de obra. Assim, entendo, o ensino da História

da arte certamente pode se fazer valer dos fundamentos teóricos e

instrumental analítico empregados por áreas de conhecimento que com ela

dialoguem, como a semiótica, para renovar-se.

No âmbito da produção historiográfica da arte oitocentista mais recente

observa-se uma certa timidez neste aspecto que não passa desapercebida à

PEREIRA (2008)5 quando diz:

(...) comento algumas questões que, no meu entendimento, precisam ser aprimoradas nos nossos estudos futuros, em termos de rigor metodológico: 1) Entre alguns pesquisadores, o perigo de se transformar a arte numa sequência pura e simples do contexto histórico e cultural evitando, desta forma, o embate frente à obra. (p. 14, grifo meu)

Essa posição ratifica a já manifesta há algum tempo por COLI que insiste em

suas falas e escritos na necessidade do historiador da arte “pensar por

imagens” (2005, p.14), como veremos a seguir.

5 Neste fragmento de seu texto, a Apresentação da publicação Oitocentos, que é a compilação dos artigos

apresentados no I Colóquio de Estudos sobre Arte Brasileira do século XIX, realizado em 2008 no Rio de Janeiro, Sonia Gomes Pereira avalia o êxito do evento e tece algumas considerações criticas sobre o „estado da arte‟ da produção historiográfica oitocentista.

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História da Arte e Semiótica: diálogos fecundos

O princípio que subjaz à concepção da textualidade da imagem visual aqui

empregada é manifesto numa eloquente fala de Jorge Coli que reitera o diálogo

existente entre os fundamentos da historiografia da arte e os estudos dos

fenômenos comunicacionais abarcados por áreas de estudo como a semiótica.

Em sua palestra “O tempo nas artes plásticas”6, o autor contextualiza e

exemplifica a transição da arte do chamado „antigo regime‟ para a do „novo

regime‟, analisando a produção de alguns de seus artistas. Ao apresentar a

obra As banhistas (1765) do “mais célebre pintor da corte de Luis XV”,

Fragonard,

As banhistas óleo sobre tela de Jean Honoré Fragonard, c. 1772-5, Louvre

ele a problematiza em suas dimensões construtivas e semânticas afirmando:

É uma pintura feita com a pincelada. Vejam, por exemplo a região dos tecidos: São largas pinceladas brancas que o pintor coloca na tela com uma rapidez muito grande. (…) Tudo é feito muito rápido e nós percebemos que este tecido é ao mesmo tempo tecido e é também pincelada evidente. (…) E essa pincelada que é ao mesmo tempo, que significa ao mesmo tempo, um tecido é uma pincelada que não quer se disfarçar. E esse é um ponto importante: a dinâmica desses quadros está associada à dinâmica do gesto. A dinâmica dessa pincelada, que rapidamente consegue construir e que deixa sua marca,

que deixa seus traços. (COLI, 2008, grifo meu)

6 “O tempo nas artes plásticas”. Conferência da série “Experiências no tempo” com curadoria da filósofa e

professora Olgária Matos (USP), que compõe o projeto cultural “A invenção do cotidiano”, criado e produzido pelo Espaço Cultural CPFL, em Campinas, e, em parceira com a Fundação Padre Anchieta, exibido pela TV Cultura de São Paulo, entre abril e junho de 2009. Disponível em DVD, produzido e distribuído pela editora Logon Multimídia, na série „Cultura marcas‟.

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Neste recorte de um discurso que inicialmente busca problematizar a pintura de

Fragonard historicizando-a, Coli semiotiza a obra deste artista ao desconstrui-la

tendo por referência o sistema visual no qual é concebida e os fundamentos

sintático-semânticos peculiares à sua natureza. Ele evidencia no plano da

expressão a práxis que consagra o autor pelo estilo em seu tempo e

simultaneamente constrói os efeitos de sentido que semantizam valores do

espírito da época, constantes da obra. Vemos aqui um diálogo fecundo entre

História da Arte e Semiótica.

Antes mesmo de proferir essa fala Coli já vem há algum tempo se referindo a

um fenômeno recorrente na História da Arte que não passa desabercebido aos

olhos do observador atento e curioso: a recorrência de formas e temas, nem

sempre associados, estabelecendo impressionante semelhança e que se

observa entre obras que, mesmo distanciadas no tempo, no espaço e na

cultura por grandes hiatos, dialogam entre si. Em conferências, e publicações

tem apontado para o fenômeno destas „ressonâncias visuais‟. Das anotações

de suas palestras, destaco a expressiva fala na conferência de encerramento

do I Encontro de História da Arte da Unicamp: “A produção artística se nutre de

„vasos comunicantes‟ existentes até entre inimigos. As obras de arte do século

XIX, por exemplo, só tem sentido se ligadas umas às outras. Bouguereau e

Matisse lado a lado, embora inimigos, fazem sentido.”7

A expressão “vasos comunicantes”, bem como “aproximações”, igualmente

empregada por Coli em alguns discursos na academia, suas participações em

bancas de defesa de dissertações e teses, por exemplo, é registrada no

prólogo de sua mais recente obra O corpo da liberdade: reflexões sobre a

pintura do século XIX:

De início, nos idos de 1974, minha vontade não era tanto de destrinchar um tema pictural preciso em clave universitária. Era antes intuir - sem pensar em texto final - relações entre comportamentos, imagens e convicções coletivas. Era ainda buscar graças a vasos comunicantes muito finos, difíceis de detectar, mais difíceis ainda de enunciar - interações em obras que, de hábito, estão isoladas por categorias históricas, estéticas ou temporais. (2010, p.9, grifo meu)

7 Estudar a arte brasileira do século XIX. Palestra de encerramento do “I Encontro de História da Arte do

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP”. Transcrito in loco em 8 de dezembro de 2004.

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“Vasos comunicantes”, “aproximações”, são termos que encontram no conceito

de isotopia, figurativa e temática, uma similitude referencial.

Encontramos, na vasta produção visual, ao longo da História da Arte, temáticas

recorrentes, sob o mesmo título ou não, fruto das experiências humanas que se

renovam. Estas grandes questões, arquetípicas, são retomadas, com novos

olhares, novos conhecimentos, sentimento e com novas formas de

representação. Assim sendo, são passíveis de análises comparativas, de onde

brotam semelhanças e diferenças, as quais possibilitam aprofundamentos,

tanto em termos formais, da “escrita” da arte, como em termos de efeitos de

sentido.

Para tratar desse fenômeno como problema de pesquisa, entende-se que o

conceito de isotopia oferece possibilidades teóricas e metodológicas. Ou seja,

o fenômeno denominado isotopia, figurativa e temática, estudado por Greimas

e Courtés (1979) apresenta novas alternativas para um ensino de História da

Arte que possibilite a exploração do uso da linguagem como matriz da reflexão

crítica sobre a historicidade do objeto artístico e sua compreensão como

enunciado estético-discursivo-histórico, em suma, a articulação de

conhecimentos que suplantem lacunas entre os dois campos de estudo.

Para entender os conceitos semióticos dessas duas categorias, com vistas a

um diálogo, são levantados, a seguir, alguns pontos de vista de conhecidos

teóricos da comunicação, entre eles o já citado Greimas, Denis Bertrand e José

Luis Fiorin, entre outros.

Isotopias figurativas e temáticas

A palavra isotopia etimologicamente advinda do grego isos (igual, semelhante),

e topos (plano, lugar) pode ser entendida como a existência de um parentesco

entre textos, visuais, verbais ou outros, de início, desconexos. Amplamente

aplicado no campo das ciências naturais como a física nuclear o termo,

designando a propriedade dos nuclídeos que possuem o mesmo número

atômico, mas cujos números de massa são distintos e também na química,

onde designa átomos que ocupam o mesmo lugar no sistema periódico, por

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serem de um mesmo elemento químico, apesar de possuírem massas

diferentes.

O fenômeno da isotopia pode assim ser considerado uma relação de

semelhança entre objetos ou imagens diferentes. Ou, de acordo com Greimas

& Courtés, “(...) a isotopia constitui um crivo de leitura que torna homogênea a

superfície do texto, uma vez que permite elidir ambigüidades”. Por analogia

pode-se pensar em textos ou imagens semelhantes, mas não iguais; essa

semelhança pode se dar através de uma mesma figuratividade ou de uma

mesma temática.

A figuratividade, termo proveniente da teoria estética, por sua vez, é definida

por Denis Bertrand como uma propriedade das linguagens verbais e não-

verbais de “produzir e restituir parcialmente significações análogas às de

nossas experiências perceptivas mais concretas”. Ou seja, em semiótica

significa semelhança, representação, “imitação do mundo pela disposição das

formas numa superfície”. (BERTRAND, 2003, p.153) A figuratividade rege

diferentes formas e gêneros discursivos, incluindo textos abstratos,

estabelecendo significação para tudo o que se liga a nossa percepção do

mundo exterior (pelos cinco sentidos: visão, tato, olfato, audição e gustação)

por meio do discurso (verbal ou não-verbal), isto é, articula “propriedades

sensíveis” a “propriedades discursivas” (Idem, p. 154). Um dos procedimentos

da figurativização é a iconização, responsável por uma ilusão referencial que

transforma as figuras em “imagens do mundo” já acabadas, assim como a

mímesis.

Fiorin (1989, p. 64-65) corrobora com essa acepção ao distinguir figuras de

temas. Pare ele, “figuras são termos que remetem a elementos do mundo

natural (efetivamente existente ou construído como tal): árvore, sol, vermelho,

enquanto temas são categorias que organizam, classificam, ordenam esses

elementos: elegância, vergonha, raciocinar, orgulhoso…”

Para Bertrand, a figuratividade está ligada à experiência sensível, que

representa, estabelece, na leitura, uma relação imediata por semelhança. Essa

correspondência entre as figuras semânticas que se apresentam aos olhos do

leitor e as do mundo, ele vivencia sem cessar em sua experiência sensível.

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A isotopia, propriedade afeita ao discurso, semioticamente significa, por

conseguinte, “a permanência de um efeito de sentido ao longo da cadeia do

discurso”. (BERTRAND, 2003, p.155) Na isotopia figurativa, tem-se uma

repetição de elementos, dispostos de forma semelhante. Ela se dá no plano de

expressão, ou seja, no plano relativo às características formais da imagem. A

isotopia temática pode ser totalmente diferente, mas há uma semelhança

estrutural ou de elementos constitutivos. Numa análise semântica, a isotopia

permite observar a permanência e a transformação dos elementos de

significação.

Concluo estas reflexões iniciais com minha primeira „hipótese visual‟ para

compor o corpus de análise desta pesquisa em andamento e faço algumas

considerações sobre a isotopia figurativa que ela nos traz.

Com a cabeça na mão: uma isotopia figurativa na “Mulata” de Ferrigno

Mulata quitandeira de Antonio Ferrigno, c. 1893-1905, PINASP8

A figura presentificada neste quadro quando vista pela primeira vez numa visita

à Pinacoteca do Estado de São Paulo me trouxe à memória a imagem de um

gesto sempre presente, um postura recorrente, que me persegue há 21 anos,

talvez a postura mais antológica de toda a história da relação ensino-

8 Pinacoteca do Estado de São Paulo

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aprendizagem em seu espaço de realização por excelência, a sala de aula. Tal

gesto foi reencontrado anos depois na conhecida obra teórica de Will Eisner,

Quadrinhos e arte sequencial (1989, p16). Neste estudo Eisner ao exemplificar

como o quadrinista pode, na sua palavra, “amplificar” a capacidade expressiva

da arte sequencial, através da caracterização da personagem e da atmosfera

que a envolve, elege um dos mais simples e polissêmicos exemplos que

compõem o repertório gestual básico que ele manipula. Ele apresenta essa

pose nada desconhecida de quem já se encontrou numa sala de aula e que

sempre suscita risos de identificação ou associação ao ser exibida a meus

alunos como provocação para iniciar-se a reflexão sobre leitura visual:

detalhe de desenho de Will Eisner em Quadrinhos e arte sequencial

desenho de Will Eisner em Quadrinhos e arte sequencial

Curiosamente em tempos recentes fui novamente assaltado pela imagem

dessa pose, justamente numa reconstituição de ambiente de sala de aula, em

sequência de episódio da telenovela Gabriela:

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Frame capturado de sequência do capítulo 3 da telenovela Gabriela produzida pela TV Globo

A despeito de não considerar-se aqui outros aspectos do sistema audiovisual,

em que é concebida a imagem do frame selecionado da sequência da

telenovela, a retórica da gestualidade se impõe à minha percepção e me

impele a realizar um diálogo inevitável a partir de uma sucinta descrição inicial:

alguém cuja cabeça inclinada, quase tombando lateralmente se abandona ao

repouso sobre sua própria mão.

Convido o leitor a observar comigo agora algumas das imagens que encontrei

até o momento para pensar minha primeira isotopia figurativa e com essa

sequência de imagens interrompo minha interlocução consigo:

Auto-retrato de Ernest Meissonier, 1889, Musée D‟Orsay

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Heraclitus, de Hendrik ter Brugghen, 1628, Rijksmuseum de Amsterdam

Venus Endormie, de Simon Vouet, c.1630-40, Musée des beaux-arts de Budapest

Referências

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