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1 A fotografia como poética crítica no período pós-ditadura militar Renata Cordeiro dos Santos 1 Nesse texto, pretende-se colocar algumas questões vindas de um estudo iniciado sobre o espaço urbano na arte atual e a fotografia como registro crítico desse espaço. Pensa-se, sobretudo, como a imagem fotográfica pode ser poética para tratar de nosso “estado de exceção como regra geral, como diria Walter Benjamin ou de nosso estado de exceção permanentecomo aponta Giorgio Agamben 2 . Assim, a fotografia será pensada aqui, como poética crítica e como arte contemporânea, sendo que essa ideia de uma poética crítica está ligada a questão do realismo na fotografia, visto que se trata de trabalhos artísticos onde é preciso pensar criticamente a atual configuração dos espaços, onde parece existir um comprometimento com o lugar/meio onde a fotografia se funda, onde ela se inscreve. O estudo centra-se na investigação do realismo nas fotografias de dois artistas contemporâneos brasileiros: Fernando Piola e Tuca Vieira. Ambos trabalham num espaço circunscrito como região central da cidade de São Paulo, nos arredores do antigo prédio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), dos anos de ditadura militar brasileira. Atualmente é o edifício museológico conhecido como Estação Pinacoteca. Sabe-se, ou pelo menos, imagina-se a longa e traumática história de repressão e tortura vivida no antigo prédio do DOPS. Ao mesmo tempo o que se observa, hoje, nesses arredores é a violência, a drogadição (principalmente pelo crack, droga mais assoladora do centro de São Paulo), a opressão e o abandono. Fernando Piola expôs, no ano de 2013, no espaço dedicado às exposições temporárias do Memorial da Resistência 3 . A exposição intitulada 10 exercícios de aproximação/representação de SP” mostrou o que o artista chama de obras/exercícios que refletiam sobre a repressão vivida de muitas maneiras em São Paulo. Piola explica que a 1 Mestranda em História da Arte pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo EFLCH-UNIFESP. 2 Esses termos estão expressos em: BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 222-232; AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. 3 O Memorial da Resistência é a instituição existente na parte térrea da Estação Pinacoteca, onde Fernando Piola expôs seus trabalhos em 2013.

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1

A fotografia como poética crítica no período pós-ditadura militar

Renata Cordeiro dos Santos1

Nesse texto, pretende-se colocar algumas questões vindas de um estudo iniciado sobre

o espaço urbano na arte atual e a fotografia como registro crítico desse espaço. Pensa-se,

sobretudo, como a imagem fotográfica pode ser poética para tratar de nosso “estado de exceção

como regra geral”, como diria Walter Benjamin ou de nosso “estado de exceção permanente”

como aponta Giorgio Agamben2. Assim, a fotografia será pensada aqui, como poética crítica e

como arte contemporânea, sendo que essa ideia de uma poética crítica está ligada a questão do

realismo na fotografia, visto que se trata de trabalhos artísticos onde é preciso pensar

criticamente a atual configuração dos espaços, onde parece existir um comprometimento com

o lugar/meio onde a fotografia se funda, onde ela se inscreve.

O estudo centra-se na investigação do realismo nas fotografias de dois artistas

contemporâneos brasileiros: Fernando Piola e Tuca Vieira. Ambos trabalham num espaço

circunscrito como região central da cidade de São Paulo, nos arredores do antigo prédio do

DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), dos anos de ditadura militar brasileira.

Atualmente é o edifício museológico conhecido como Estação Pinacoteca. Sabe-se, ou pelo

menos, imagina-se a longa e traumática história de repressão e tortura vivida no antigo prédio

do DOPS. Ao mesmo tempo o que se observa, hoje, nesses arredores é a violência, a drogadição

(principalmente pelo crack, droga mais assoladora do centro de São Paulo), a opressão e o

abandono.

Fernando Piola expôs, no ano de 2013, no espaço dedicado às exposições temporárias

do Memorial da Resistência3. A exposição intitulada “10 exercícios de

aproximação/representação de SP” mostrou o que o artista chama de obras/exercícios que

refletiam sobre a repressão vivida de muitas maneiras em São Paulo. Piola explica que a

1 Mestranda em História da Arte pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de

São Paulo – EFLCH-UNIFESP. 2 Esses termos estão expressos em: BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História”. In: Magia e técnica, arte e

política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 222-232; AGAMBEN,

Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. 3 O Memorial da Resistência é a instituição existente na parte térrea da Estação Pinacoteca, onde Fernando Piola

expôs seus trabalhos em 2013.

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sequência de trabalhos apresentados é composta por quatro projetos de intervenção na

paisagem, ele esclarece que a série “funda-se naquilo que é destruído ou oprimido no espaço

urbano. ” (PIOLA, 2013, p. 5).

Sendo assim, o artista propõe três projetos de jardins e um registro de intervenção

paisagística. Um desses projetos, mais alinhado com o Memorial da Resistência, chamou-se

Praça Vermelha. A ideia do artista era plantar espécies de folhagens, exclusivamente

vermelhas, na praça em frente ao Memorial. Vinte mudas da espécie chamada Euphorbia

cotinifolia foram plantadas na praça do Largo General Osório. Somente uma resistiu.

Há certa relação, na proposta do artista, com nomenclaturas e simbolismos que ora nos

deparamos. Por exemplo, a Praça Vermelha russa, considerada um monumento daquele país

com um longo histórico de movimentos políticos de esquerda; podemos pensar nos

simbolismos do vermelho em nossa sociedade ocidental, ligado comumente à luta popular, à

maioria dos movimentos socialistas e comunistas. Esse feito, uma praça vermelha,

aparentemente irreal aos nossos olhos tão neblinados e condicionados a não ver atentamente as

coisas da paisagem urbana paulistana, é um meio poético repleto de relações e também de certa

ambiguidade, que o artista instaura para trazer à tona a memória daquele lugar. Implementando

assim, uma espécie de monumento (ou contra monumento?) sensível e latente a esse local em

frente a um ex-aparelho repressivo da ditadura. Piola traz algo orgânico e vivificado – as

folhagens, suas cores e misto de fragilidade e força – como elemento de memória que nunca

esteve presente no espaço urbano do Estado de São Paulo.

A fotografia torna esses trabalhos um documento, uma espécie de testemunho como

Agamben define: “denominamos testemunho o sistema das relações entre o dentro e o fora da

langue, entre o dizível e o não dizível em toda língua – ou seja, entre uma potência de dizer e a

sua existência, entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer. ” (AGAMBEN, 2008,

p.146). As experiências de repressão, de regimes totalitários nos colocam diante de um trauma

onde a potência do testemunho, parece não se manifestar de maneira verbalizada. Walter

Benjamin discutira a pobreza de experiência ao citar a Primeira Grande Guerra, pois: “Na

época, já se podia notar os combatentes tinham voltado silenciosos, do campo de batalha. Mais

pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. ” (BENJAMIN, 1994, p.115). Quando

pertencente ao campo da imagem, o testemunho pode se materializar, porém permanece num

movimento entre o dentro e o fora, num paradoxo que lhe é próprio.

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O artista adota o termo “exercício” para as suas proposições artísticas pelo caráter

experimental imbuído nesse ato, sugerindo desta forma, uma oposição ao conceito de “obra”

como algo mais normativo e determinado, ele esclarece: “O termo exercício é um modo mais

franco de anunciar seu processo, assumir sua falibilidade e incorporar a imprevisibilidade dos

Espécie de folhagem vermelha, estudada

pelo artista para plantio na praça em frente

ao Memorial da Resistência.

Fonte: http://fernandopiola.com/2005-14-

Projeto-Praca-Vermelha.

Julho de 2013. Única muda da espécie Euphorbia

cotinifolia que resistiu.

Fonte: http://fernandopiola.com/2005-14-Projeto-

Praca-Vermelha.

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resultados. ” (PIOLA, 2013, p. 9). A feitura do trabalho se torna um experimento e sua

efemeridade é presente, já que se propõe ao espaço urbano contradizendo o que é posto como

perene.

Pensando em alguns caminhos da História da Arte brasileira, o caráter experimental da

arte pode ser observado, principalmente na década 60, nas propostas artísticas de Hélio Oiticica.

Não ao acaso, o momento político no qual o país se encontrava era de crise, de ditadura militar

a partir de 1964, e os artistas buscavam romper com a figuração e com toda forma normativa

de se fazer e discutir arte. Preocupavam-se em dar lugar à participação do espectador no

trabalho artístico, utilizando-se, por exemplo, da sensorialidade.

As proposições de Oiticica para o que ele cunhou como “Nova Objetividade Brasileira”

diziam respeito a um modo característico de arte, se configurando como uma vanguarda da

época. A Nova Objetividade Brasileira foi uma ideia que teve seu esboço iniciado pelo artista

em seu texto Esquema Geral da Nova Objetividade, onde ele trouxe questionamentos incisivos

como: “O fenômeno da vanguarda no Brasil não é mais hoje questão de um grupo provindo de

uma elite isolada, mas uma questão cultural ampla, de grande alçada, tendendo a soluções

coletivas. ” (BASUALDO, 2007, p.229). Oiticica afirma então, ser a “Nova Objetividade” uma

ruptura com qualquer movimento dogmático ou esteticista da arte. As experiências coletivas

são parte de uma múltipla trama de uma arte criada para adentrar o ambiente urbano ou natural.

Assim, o papel da figura do artista muda, ele é mais que um criador de objetos e situações, é

um questionador, um propositor de uma antiarte, Oiticica questiona:

... para quem faz o artista sua obra? Vê-se pois que sente esse artista uma necessidade

maior, não só de criar simplesmente, mas de comunicar algo que para ele é

fundamental, mas essa comunicação teria que se dar em grande escala, não numa elite

reduzida a experts, mas até contra essa elite, com a proposição de obras não acabadas,

“abertas”. É essa a tecla fundamental do novo conceito de antiarte: não apenas

martelar contra a arte do passado ou contra os conceitos antigos (como antes, ainda

uma atitude baseada na transcendentalidade), mas criar novas condições

experimentais, em que o artista assume o papel de “proposicionista”, ou “empresário”,

ou mesmo “educador”. O problema antigo de “fazer uma nova arte” ou o de derrubar

culturas já não se formula assim – a formulação certa seria a de se perguntar: quais as

proposições, promoções e medidas a que se devem recorrer para criar uma condição

ampla de participação popular nessas proposições abertas, no âmbito criador a que se

elegeram esses artistas. Disso depende sua própria sobrevivência e a do povo nesse

sentido. (BASUALDO, 2007, p. 231).

Desta forma, o processo criativo do artista se baseia mais em criar novas condições de

experimentação, no sentido de uma imanência participativa do artista-propositor com as

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pessoas, em oposição ao processo criativo que tem por objetivo atingir uma transcendência, ou

seja, uma excelência ou superioridade. Portanto, podemos pensar que Hélio Oiticica instaura

um esquema para a proposição de uma antiarte, comprometida com as mais diversas esferas da

vida e do cotidiano.

Pensando na arte feita para o espaço público de nossos tempos, as propostas artísticas

do projeto Arte Construtora não poderiam deixar de ser citadas aqui. Pois, dialogam com a arte

ambiental de Oiticica, pensando o ambiente como lugar de experimentação, por uma antiarte.

Tal projeto é elucidado por Virgínia Gil Araujo da seguinte forma:

O projeto é pensado por artistas que criam trabalhos para locais abandonados e

privilegia a poética do deslocamento, produzindo modificações provisórias em

lugares significativos, mas sem funcionalidade. As "atividades exploratórias"

compõem um espaço lúdico de vivências, agregando uma memória-presente. Elas

contêm em seu bojo a recuperação de algo que está perdido e fora da história, num

híbrido de eventos efêmeros vinculados às memórias do social, à ecologia e à

transgressão aos formalismos pensados para o espaço público. (ARAUJO, 2006, pp.

163-174).

O Arte Construtora pensa os lugares4 abandonados de maneira específica. Pois, os

artistas interveem nos sítios históricos de modo que não pretendem realizar propostas de caráter

monumental, e sim ações interventivas no ambiente que levem em consideração as memórias

do lugar que, muitas vezes, se perdem pelo imediatismo de construções verticalizadas. Assim,

é no território do abandono que os artistas agem para uma ativação do lugar que se encontrara

em esquecimento. Dentro da antiarte de Oiticica, bem como do pensamento do projeto Arte

Construtora estão inerentes os artistas que esta pesquisa aborda. A arte é então pensada imersa

nas esferas mais profundas da vida, do ambiente que a marca, o cotidiano.

Peter Bürger em seu texto Teoria da Vanguarda discute a arte de vanguarda como

atrelada à dimensão do cotidiano. O autor afirma que: “Para os vanguardistas, a característica

dominante da arte na sociedade burguesa é o seu descolamento da práxis vital. ” (BÜRGER,

2012 p. 96). A arte dentro da lógica burguesa estaria desprendida da prática cotidiana e imersa

num conteudismo, no qual a essência da “obra” estivesse descolada da vida. Porém, segundo

Bürger:

A práxis vital à qual – ao negá-la – o esteticismo se refere, é a vida cotidiana do

burguês ordenada segundo a racionalidade voltada para os fins. Não é objetivo dos

4 O Parque Modernista, em São Paulo, a Ilha da Casa da Pólvora, próxima à Porto Alegre, o Solar Grandjean

Montigny, no Rio de Janeiro.

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vanguardistas integrar a arte a essa práxis vital; ao contrário, eles compartilham da

rejeição a um mundo ordenado pela racionalidade-voltada-para-os-fins, tal como

formularam os esteticistas. O que os distingue destes é a tentativa de organizar, a partir

da arte, uma nova práxis vital. (BÜRGER, 2012 p.97).

Então, podemos inferir que a práxis vital que os movimentos de vanguarda tinham como

objetivo era aquela que fosse ativa e preocupada com o meio no qual viveram. Sem ordens e

racionalidades, essa ‘nova’ práxis teria como finalidade organizar outro modo de pensar e viver

o mundo.

Desta forma, aqui compreendemos o momento de apresentar outro foco dessa pesquisa,

os trabalhos fotográficos de Tuca Vieira. Uma série de fotografias, especificamente, nos

chamou a atenção pela clara coerência e proximidade com o que propomos para este estudo.

Trata-se de fotos de demolições na região conhecida, genericamente, como Cracolândia. Tal

região fica nos arredores do prédio da Estação Pinacoteca, com uma maior concentração de

pessoas usuárias de crack, droga que por anos padece dezenas de pessoas na região central de

São Paulo. A série de mais de dez fotos indicia a devastação ocorrida, em 2012, de construções

ocupadas por essas pessoas. A destruição ocorre por conta de uma ação do poder público que

esfacela os pontos de ‘moradia’ e espalha as pessoas a esmo para outros lugares do centro da

cidade.

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O interesse de Tuca Vieira era fotografar os “vestígios” das pessoas em meio a

devastação, como ele esclarece em uma breve descrição da série fotográfica em seu site: “As

condições em que essas pessoas viviam despertaram minha curiosidade sobre este local. Se o

lugar onde vivemos muito diz sobre nós mesmos, acreditei que poderia compreender melhor

essas pessoas através daqueles vestígios. ” (VIEIRA, 2012, não paginado).

Os vestígios humanos registrados nesses lugares em ruína, revelam as fotografias como

uma espécie de cicatriz, algo que não poderá ser apagado na imagem. Ao mesmo tempo, os

lugares que deixaram de existir ficam, nas fotos, etéreos. O autor Philippe Dubois observa a

respeito do modo como o ato fotográfico detém o instante e o perpetua no campo da imagem:

Se o ato fotográfico reduz o fio do tempo a um ponto, se faz da duração que escoa

infinitamente um simples instante detido, não é menos claro que esse simples ponto,

esse lapso curto, esse momento único, levantado do contínuo do tempo referencial,

torna-se, uma vez pego, um instante perpétuo: uma fração de segundo, decerto, mas

“eternizada”, captada de uma vez por todas, destinada (também) a durar, mas no

próprio estado em que ela foi captada e cortada. (DUBOIS, 1993, p. 168)

Fotografias da série “Cracolândia”. 2012.

Fonte: http://www.tucavieira.com.br/Cracolandia

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Espaço etéreo, essa poderia ser uma denominação para o que a foto capta. Dubois

explica que a temporalidade da foto é simbólica que ela foge de nosso tempo cronológico, é

uma temporalidade infinita no imutável. Para o caso da série de Tuca Vieira, assim como essas

fotos podem ser consideradas cicatrizes, elas também tratam de um realismo crítico, pois

indiciam espaços em processo de destruição, contrariando a homogeneidade muitas vezes

imposta à paisagem urbana. Revela-se, nas fotografias, a violência do Estado ao apagar

violentamente o que ele próprio insiste em velar/ocultar.

A arte do nosso tempo pode ser pensada sob alguns desvios. Isso quer dizer que ela não

compreende somente um modo de se projetar para o cotidiano, sua complexidade pode envolver

distintas produções que podem se mostrar como críticas ou não. Podemos pensar que a autora

Anne Cauquelin contribui com o debate da arte contemporânea ao observar que:

Para apreender a arte contemporânea, precisamos, então, estabelecer certos critérios,

distinções que isolarão o conjunto dito ‘contemporâneo’ da totalidade das produções

artísticas. Contudo, esses critérios não podem ser buscados apenas nos conteúdos das

obras, em suas formas, suas composições, no emprego deste ou daquele material,

também não no fato de pertencerem a este ou aquele movimento dito ou não de

vanguarda. (CAUQUELIN, 2005, pp. 11-12)

A arte contemporânea se lança nos temas do mundo, num entrelaçamento entre o

trabalho artístico e outras áreas do conhecimento como a literatura e a filosofia, por exemplo.

É preciso então, ter uma visão ampla da arte do tempo atual, ela é feita como bem observa a

autora de ‘agoras’ (CAUQUELIN, 2005, p.12). E não ao acaso Cauquelin nos fala sobre um

sistema da arte: “... há de fato um ‘sistema’ da arte, e é o conhecimento desse sistema que

permite apreender o conteúdo das obras. ” (CAUQUELIN, 2005, p.14). Trata-se, no texto da

autora, de um sistema recente, que possui somente duas décadas. Projetar algumas ideias e

conceitos expressos no texto de Cauquelin sobre a arte contemporânea, é fundamental para um

maior entendimento dos trabalhos artísticos brasileiros que esta pesquisa propõe.

Os artistas que esse estudo aborda se preocupam com uma poética da passagem pelos

ambientes da cidade, portanto os trabalhos fotográficos abordados demonstram uma

preocupação com a complexidade da paisagem urbana e seus arruinamentos. As transformações

do espaço urbano e o encontro com o acaso, tão presente nos trabalhos dos artistas, parecem

fundar uma espécie de cartografia política, atrelada às suas poéticas particulares, por meio do

ato de fotografar.

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Dentro de questões que envolvem uma poética crítica, cabe aqui mencionar o grupo

Internacional Situacionista, que teve Guy Debord como um de seus principias pensadores.

Compreendido como um movimento artístico e político surgido após a cisão do grupo

surrealista, o situacionismo pensava o espaço da cidade como lugar de participação, de

vivências que subvertiam com a lógica capitalista imposta ao ambiente urbano. O autor Anselm

Jappe comenta acerca do pensamento do grupo: “A elaboração de uma “ciência das situações”

será a resposta ao “espetáculo” e à não-participação. As artes não serão negadas, mas todas

farão parte dessa unidade de ambiência material e de comportamento que é a situação. ”

(JAPPE, 1999, p. 90). Os situacionistas acreditavam que a arte poderia ser meio de ampliação

da vida, inventando novas paixões desatreladas da ideia burguesa de felicidade. Portanto, a

vivência a partir de situações, criaria outro modo civilizatório.

Em “A sociedade do espetáculo”, Debord se debruça sobre o conceito de espetáculo

como uma representação, uma aparência da vida em sociedade: “O espetáculo não é um

conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. ” (DEBORD,

1997, p.14). As imagens são, então, parte integrante da vida em sociedade, o espetáculo atrela-

se a palavra “espectador” como aquele que assiste ao capitalismo, a mercadoria como imagem,

ou seja, passivamente vê o consumo acontecer.

Sendo assim, também contribui para o nosso estudo, algumas ideias e questões trazidas

por Paul Virilio. O pensamento acerca da cidade e da política, de certa configuração catastrófica

são alguns assuntos do autor:

... Quem negaria hoje que a PÓLIS, que emprestou sua etimologia à palavra

POLÍTICA, pertença ao domínio dos fatos da percepção? Se, de agora em diante,

pode-se vislumbrar tão facilmente o desaparecimento das cidades na estratégia

nuclear anticidade ou na reorganização pós-industrial é porque há quatro décadas a

imagem da cidade esfumaçou-se e dissipou-se a ponto de, hoje, não ser nada mais do

que uma lembrança, uma rememoração da unidade de vizinhança, unidade esta que

vem sofrendo continuamente os efeitos de mutação dos meios de comunicação de

massa, enquanto não desaparece no êxodo pós-industrial, no exílio de um desemprego

estrutural causado pela robotização, o reino soberano das máquinas de transferência.

(VIRILIO, 1993, p.22).

Virilio trata de uma crítica à ideologia do progresso imposta ao ambiente da cidade atual.

Os trabalhos artísticos que abordamos vão na contracorrente dessa ideologia, pois tendem a

declarar uma permanência do arruinamento e também de uma reinvenção e/ou reconstrução do

espaço, daquilo que está desaparecendo, ou do que é oprimido na cidade.

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Na discussão trazida por Walter Benjamin em seu texto “A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica”, escrito entre os anos de 1935 e 1936, ele dedica uma passagem sobre

a fotografia, na qual, discorre sobre a perda do valor de culto constatado quando a fotografia é

inventada na segunda metade do século XIX. Porém ele salienta que “o valor de culto não se

entrega sem oferecer resistência. Sua última trincheira é o rosto humano. Não é por acaso que

o retrato era o principal tema das primeiras fotografias. ” (BENJAMIN,1994, p.174). Com a

ausência da figura humana nas fotografias, seu valor de exposição sobressai em relação ao valor

de culto. Com as fotos das ruas da cidade sem a presença humana, o ato de fotografar se torna

o registro de um indício da passagem das pessoas, logo, o sentido político está presente, não de

forma literal, mas latente.

Nosso esforço nesse estudo centra-se na fotografia contemporânea para além do

registro, inerente a potência do testemunho que perpetua uma marca, uma inscrição na imagem.

Como os apontamentos do autor Giorgio Agamben nos esclarecem: “O testemunho é uma

potência que adquire realidade mediante uma impotência de dizer e uma impossibilidade que

adquire existência mediante uma possibilidade de falar. ” (AGAMBEN, 2008, p. 147). Assim

o registro fotográfico ultrapassa a mera retratação de uma realidade e se projeta para o campo

da ação, de um pensamento que se configura como crítico e se posiciona num âmbito que é

político, filosófico e imanente da História da Arte.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer

III). São Paulo: Boitempo, 2008.

____________________. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

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BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira [1967-1972].

São Paulo: Cosac Naify, 2007.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da

cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes,

2005.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, SP: Papirus, 1993.

JAPPE, Anselm. Guy Debord. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

Catálogos de exposição

ARAUJO, Virgínia Gil. “Apropiación de lugares olvidados: la artisticidad del proyecto Arte

Constructora/ Apropriação de lugares esquecidos: a artisticidade do projeto Arte Construtora”.

In: GOYANES, Guillermo Aymerich (org). Ciudad Invadida/ Cidade Invadida. Editorial

Universidad Politécnica de Valencia, Valencia, 2006, pp.163-174.

PIOLA, FERNANDO. 10 exercícios de aproximação/representação de SP / artista residente

Fernando Piola; textos Fernando Piola e Ana Cândida de Avelar; apresentação Ivo Mesquita e

Kátia Felipini Neves. São Paulo: Memorial da Resistência de São Paulo: Pinacoteca do Estado,

2013.

Sites:

VIEIRA, Tuca. “Cracolândia”. Disponível em: http://www.tucavieira.com.br/Cracolandia.

Acesso em: 30 mai. 2016.

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PIOLA, Fernando. “Projeto Praça Vermelha, 2005/14”. Disponível em:

http://fernandopiola.com/2005-14-Projeto-Praca-Vermelha. Acesso em: 02 mai. 2016.