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I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO – NUPPE Instituto de Arte / Universidade Federal de Uberlândia – IARTE/UFU MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 10 a 13 de setembro de 2012, Uberlândia – MG – Brasil DE UM ASPIRANTE A ARTISTA PARA UM ASPIRANTE A HISTORIADOR: ANÁLISE DE UM PROCESSO DE PESQUISA Vitor Marcelino Em francês, há uma velha expressão, ‘la patte’, que significa o toque do artista, seu estilo pessoal, sua pata. Eu quero fugir da ‘patte’ e de toda pintura retiniana. Marcel Duchamp Durante minha graduação em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Uberlândia tive um contato maior com a pintura, talvez pela antiga estrutura do curso. Durante as disciplinas de Pintura I, II e III, ministradas pelos professores Ms. Afonso Lana, Esp. Alexandre França e Dra. Aninha Duarte, acabei desenvolvendo uma determinada poética artística que veio tornando-se mais efetiva em disciplinas anteriores, como as de desenho e as de gravuras. Era comum entre os alunos essa busca de uma poética própria, um “estilo” único que diferenciasse o seu trabalho dos trabalhos dos outros estudantes. Era quase incessante essa busca da “pata” a que Duchamp refere- se. Lembro-me perfeitamente de ficar incomodado, e acredito que isso deve ter acontecido e ainda acontece com muitos outros artistas ou estudantes, quando algumas pessoas falavam que meu “estilo” era parecido com o de algum outro colega. Encarava aquilo como uma provocação para que a busca incessante e romântica da minha “pata” se concretizasse. Essa minha busca por um “estilo” acabou tornando- se mais concreta ao descobrir ironicamente duas questões que ajudaram a defini-lo: a forte influência dos meus amigos mais próximos que também estavam em processo de graduação e a forte influência da cultura global como um todo no meu trabalho, a partir não só do trabalho de outros artistas visuais, como também do trabalho de cineastas, músicos, escritores, jornalistas e profissionais (ou não) da televisão, da propaganda e da internet. Foi nesse momento que descobri que minha principal característica enquanto artista não era criar, mas sim roubar aquilo que já estava criado e organizar todos esses delitos no plano pictórico.

DE UM ASPIRANTE A ARTISTA PARA UM ASPIRANTE A …nuppe.art.br/simposio2012/anais/PDF/VitorMarcelino.pdf · e Nelson Leirner para a prática de apropriação de imagens na arte contemporânea

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I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO – NUPPE Instituto de Arte / Universidade Federal de Uberlândia – IARTE/UFU

MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 10 a 13 de setembro de 2012, Uberlândia – MG – Brasil

DE UM ASPIRANTE A ARTISTA PARA UM ASPIRANTE A HISTORIADOR:

ANÁLISE DE UM PROCESSO DE PESQUISA

Vitor Marcelino

Em francês, há uma velha expressão, ‘la patte’, que significa o toque do

artista, seu estilo pessoal, sua pata. Eu quero fugir da ‘patte’ e de toda pintura

retiniana.

Marcel Duchamp

Durante minha graduação em Artes Plásticas pela Universidade Federal de

Uberlândia tive um contato maior com a pintura, talvez pela antiga estrutura do curso.

Durante as disciplinas de Pintura I, II e III, ministradas pelos professores Ms. Afonso

Lana, Esp. Alexandre França e Dra. Aninha Duarte, acabei desenvolvendo uma

determinada poética artística que veio tornando-se mais efetiva em disciplinas

anteriores, como as de desenho e as de gravuras. Era comum entre os alunos essa busca

de uma poética própria, um “estilo” único que diferenciasse o seu trabalho dos trabalhos

dos outros estudantes. Era quase incessante essa busca da “pata” a que Duchamp refere-

se.

Lembro-me perfeitamente de ficar incomodado, e acredito que isso deve ter

acontecido e ainda acontece com muitos outros artistas ou estudantes, quando algumas

pessoas falavam que meu “estilo” era parecido com o de algum outro colega. Encarava

aquilo como uma provocação para que a busca incessante e romântica da minha “pata”

se concretizasse.

Essa minha busca por um “estilo” acabou tornando- se mais concreta ao

descobrir ironicamente duas questões que ajudaram a defini-lo: a forte influência dos

meus amigos mais próximos que também estavam em processo de graduação e a forte

influência da cultura global como um todo no meu trabalho, a partir não só do trabalho

de outros artistas visuais, como também do trabalho de cineastas, músicos, escritores,

jornalistas e profissionais (ou não) da televisão, da propaganda e da internet. Foi nesse

momento que descobri que minha principal característica enquanto artista não era criar,

mas sim roubar aquilo que já estava criado e organizar todos esses delitos no plano

pictórico.

MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil

Minha coleção de delitos era enorme, e ainda é, e se configurava

majoritariamente no âmbito imaterial das lembranças. Vez por outra, algumas dessas

coleções materializava-se em listas de palavras ou em pinturas. O critério de

catalogalização dessas listas e pinturas era fundamentalmente mnemônico e temporal.

Cada lista de palavras ou coleção de imagens referia-se a determinado momento da

minha vida. Esse momento escolhido era o momento atual que por sua vez ligava-se a

inúmeros outros momentos anteriores, montando uma espécie de rede na qual o fio

condutor se dava pela memória. A memória por sua vez, materializava-se em palavras e

imagens. Assim era necessária uma “tradução” da palavra falada, que ecoava em minhas

lembranças, para uma palavra não só escrita como também visual na qual a tipografia

(industrial ou manuscrita), o tamanho e a cor utilizada mantinham importantes aspectos

não só poéticos como também composicionais.

Entretanto, era no campo próprio da imagem que a apropriação e o próprio

trabalho ganhavam maior expressividade. Um número não muito criterioso de imagens

habitava o plano pictórico. Número esse que se estendia entre fotografias pessoais de

família e amigos, cenas e cartazes de cinema, imagens publicitárias e televisivas,

reproduções de obras de arte visuais e padrões de estampas encontrados basicamente em

vestuário e decorações internas de ambientes.

Todas as imagens eram então escolhidas e digitalizadas, poucas delas eram

produzidas manualmente. Posteriormente elas eram organizadas em um editor de

imagens. A partir desse momento, as imagens tornavam-se elementos unicamente

visuais e sua disposição obedecia a critérios basicamente composicionais. Dentro dessa

construção composicional, todas as imagens eram planarizadas com tons únicos de

cores que respeitavam as cores dos tubos de tinta acrílica. Praticamente não se criava

cores novas. Esse achatamento da imagem e a base colorida da tinta acabavam

formando uma imagem altamente colorida e que revelavam excessivamente a influência

da art pop sobre o meu trabalho.

Após a criação dessa imagem digital, eu projetava esse resultado na tela, fazia

a marcação das linhas e então começava o processo de pintura propriamente dito. Eu

respeitava fielmente as minhas marcações e a escolha das cores, afinal de contas as

pinturas eram a princípio de grandes dimensões o que, de certo modo, amedrontava-me

a propor alguma mudança da composição. Nesse momento, não agregaria nenhuma

diferença significativa à obra se ela fosse pintada por mim, por um robô ou por um

grupo de artesões.

MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil

Hoje percebo que todo esse processo altamente industrial foi um dos principais

causadores da crise que me impede de “pintar” há algum tempo. Afinal de contas, eu

sempre falava de questões do universo pessoal que não eram efetivamente traduzidas

nessa feitura industrial da obra. Obviamente que não se pode negar a forte influência

que a indústria exerce não apenas sobre mim, como sobre qualquer outra pessoa, mas

ela acabou se tornando um grande peso na minha obra que não se justificava

visualmente. Não propunha nenhuma discussão mais complexa sobre o papel da

indústria no cotidiano que fundamentasse essa utilização maciça de procedimentos

industriais, muito menos analisava qual a influência desses procedimentos na imagem

de modo geral.

Muito se discute se a art pop tinha uma postura crítica ou complacente perante

a cultura de massa, no caso das minhas pinturas essa dúvida não existe: sempre fui

complacente perante tal indústria, na verdade, era muito mais que complacência, era um

fascínio. Esse processo de planificação gráfica das pinturas acabou homogeneizando

todas as imagens que me apropriava, desse modo fotografias pessoais importantes para

a minha memória estavam no mesmo patamar que imagens publicitárias, e isso para

mim é inadmissível atualmente. Essa “massificação” e planarização das imagens não

tinham nenhum propósito que não fosse puramente retiniano e técnico. Não existia

maturidade suficiente em meu trabalho capaz de discutir e analisar as questões das

próprias imagens apropriadas, elas eram simplesmente apresentadas ao espectador.

Embora eu desejasse falar de questões como memória, de âmbito tanto pessoal como

coletiva, as minhas imagens, pela apresentação que eu propunha, acabavam vendo suas

histórias sendo dizimadas pelo aspecto publicitário, sedutor e asséptico que as pinturas

apresentavam. Manchas, marcas de pincel, linhas tortas, tons terciários, o aspecto

envelhecido das fotografias, os pequenos defeitos das imagens, eram todos

inadmissíveis. A imagem se apresentava quase que robótica ao espectador. Vejamos

uma dessas pinturas:

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MARCELINO, Vitor. Eu sou tudo isso nº3. 2007. Acrílica sobre tela. 143 x 192 cm. Coleção do artista.

Mas nesse processo, nem tudo é espinho. A estrutura do curso exigia que não

apenas produzíssemos “obras de arte”, mas também reflexões teóricas sobre a produção.

Esse trabalho escrito acabou tornando-se um instigante processo de pesquisa. Na

monografia, busquei elencar todos os elementos que eram mais determinantes no meu

trabalho e buscar reflexões sobre eles a partir da análise de obras e textos de teóricos.

Uma tímida história de alguns desses elementos também foi traçada.

A leitura de alguns textos para essa escrita acabou se mostrando prazerosa, pois

me encantava não apenas o que os autores discutiam, como também a maneira como

eles discutiam, o modo como eles descreviam as obras, como relacionavam-nas com

outras obras, com outros autores, com outros momentos. Gostava das palavras e

expressões típicas de cada autor, a capacidade de que alguns tinham de não somente

escrever, mas também de conversar com o leitor. Passei a ver a história, a teoria e crítica

como uma espécie de “outra” arte.

Passei a entender aquilo que já tinha ouvido falar inúmeras vezes antes, mas

que nunca tinha refletido o suficiente: que o pesquisador é detetive, é aquele que

investiga determinadas questões em busca de determinadas respostas, que facilmente

tornam-se outras questões. Os elementos norteadores de minha pintura eram então

minhas pistas, a minha própria pintura era a cena do crime, as pessoas que vinham

comentar minha obra eram minhas testumunhas, o cruzamento das análises dos textos

era meu método de investigação, a minha monografia era meu dossiê, a banca de defesa

da monografia era meu júri e eu ocupava os complexos papéis de detetive, vítima, réu,

advogado de defesa e juiz.

Foi desse modo que passei a entrar no universo da teoria da arte e entendê-lo

como algo autônomo da minha produção como artista. A história da arte passou a ser

MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil

vista pra mim como um organismo vivo que matinha inúmeras questões próprias e não

mais como uma muleta. Dentro desse processo de pesquisa para a monografia, o

elemento norteador de toda minha produção poética, a apropriação de imagens, acabou

mostrando-se inóspito enquanto estudo teórico, embora se apresentasse extremamente

simples. O máximo que meu fôlego permitiu foi uma concisa análise dos movimentos

artísticos da art pop e do dadá com enfoque na produção de Marcel Duchamp. É sabida

da revolução que ambos os movimentos proporcionaram a história da questionando

inclusive o próprio conceito de arte. Mas uma análise mais pontual da prática de

apropriação de imagens não foi plenamente percebida das discussões pop e dadaísta.

Foi a partir dessa lacuna, que minha pesquisa teórica foi se concretizando.

Propus então, um projeto de pesquisa para o programa de pós-graduação em Artes da

Universidade Federal de Uberlândia, a nível de mestrado, que investigasse a prática de

apropriação de imagens, especialmente na arte produzida no Brasil. Fui aceito no

programa e sob a orientação do professor Dr. Marco Antônio Pasqualini de Andrade,

desenvolvi a dissertação “Desvios de linguagem: as contribuições de Rubens Gerchman

e Nelson Leirner para a prática de apropriação de imagens na arte contemporânea no

Brasil” defendida em março de 2012.

Inicialmente, nessa pesquisa, eu tinha o objetivo de descobrir quais eram as

origens da prática da apropriação de imagens no Brasil. Objetivo esse que rapidamente

se mostrou ingênuo para não dizer utópico. Definimos melhor nossos objetivos e

focamos no estudo sobre a arte no Brasil nos anos 1960 que se mostrou, tanto pela

produção artística como crítica, um terreno propício para que a apropriação de imagens

se efetivasse no Brasil.

Gostaria, antes de tudo, de informar que esta dissertação não teve a pretensão

de esgotar todo o assunto, mas sim propor alguma contribuição. Pouca coisa foi escrita,

especialmente no Brasil, por isso tivemos que recorrer a muitos estudos e ensaios

estrangeiros. Majoritariamente, esses estudos trouxeram a noção de que a apropriação

de imagens é uma prática essencialmente de âmbito cultural que se reflete na produção

artística, afinal de contas considerável parte dos artistas que se apropriam e se

apropriaram de imagens produziram seus trabalhos a partir da forte influência que a

televisão, o cinema e a publicidade, por exemplo, exerceram e exercem sobre suas

vidas. Vejamos como exemplo desses estudos a seguinte declaração do crítico norte-

americano Douglas Crimp:

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Apropriação, pastiche, citação – esses métodos estendem-se virtualmente a

todos os aspectos de nossa cultura, dos produtos mais unicamente calculados

da indústria da moda e do entretenimento às atividades críticas mais

comprometidas dos artistas; das obras mais claramente retrógradas [...] às

práticas aparentemente mais progressistas. (CRIMP, 2005: 115)

Crimp é um nome indispensável para qualquer estudo sobre a apropriação na

arte contemporânea devido a sua prática curatorial e crítica que, no final dos anos 1970

e início dos anos 1980, revelou importantes nomes da chamada appropriation art como

Cindy Sherman, Sherrie Levine e Richard Prince. O autor vê a prática da apropriação

como essencialmente pós-moderna, pois não lida com o ideal de novidade típica da

produção modernista. Entretanto, os estudos de Douglas Crimp não devem ser

entendidos como base para o estudo da apropriação. Para isso, devemos nos voltar a

dois teóricos conhecidos: Roland Barthes com suas teorias do mito (1980) e da morte do

autor (1988: 49-53) e Walter Benjamin (1994: 165-196) com sua teoria do fim da aura

na obra de arte.

* * *

A produção artística brasileira dos anos 1960 foi marcada por uma

efervescência que gerou um interessante debate por meio não só das obras como

também pela extensa produção teórica dos artistas e críticos. Vejamos uma exemplar

declaração do artista Sérgio Ferro, apresentada originalmente no seminário Propostas 65

no ano de 1965, que sintetiza importantes questões:

Os problemas que a pintura nova examina são os do subdesenvolvimento,

imperialismo, o choque direita-esquerda, o (bom) comportamento burguês,

seus padrões, a alienação, a ‘má-fé’, a hipocrisia social, a angústia

generalizada etc. Política, relações econômicas e suas ressonâncias

internacionais, ideologias são decompostas, expostas em suas dubiedades,

seu vazio, sua crueldade. As respostas oscilam entre a desesperança niilista,

as utopias e o engajamento crítico. A nova pintura arma-se com todos os

instrumentos disponíveis. Recorre para responder às suas necessidades, a

quaisquer veículos úteis: ao academismo, a maneirismos de mil espécies, a

artifícios mais ou menos elaborados; importa, empresta, rouba e cria seu

vocabulário com a liberdade indispensável para o reexame profundo que

efetua. [...] Inexiste a preocupação (mau-acabamento) com a unidade, a

correção, a elegância de linguagem: para dizer o novo, com a crueza

necessária, há que esquecer as boas maneiras e as limitações gramaticais.

(FERRO, 1979: 26)

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O país passava por um crítico período político que inevitavelmente se refletiu

na produção artística. O termo “nova pintura”, utilizado por Ferro, transmite a ideia de

renovação e reexame que os jovens artistas almejavam, uma renovação que tem em sua

base importações, empréstimos, roubos e criações.

A movimentação e subversão de valores que esta década produziu fez com que

os próprios artistas e críticos dos anos 1960, denominassem esse período da história da

arte no Brasil como “vanguarda brasileira”. Ao buscar uma conceitualização do termo,

os críticos Ferreira Gullar (1978), Frederico Morais (1978) e os artistas Pedro

Escosteguy (1978) e Hélio Oiticica (1978), perceberam importantes características

como a busca de uma linguagem nova, a participação ativa do espectador, um

engajamento político nas obras com preocupações de ordem coletiva e a retomada do

conceito de antropofagia de Oswald de Andrade (1995). Entendendo política como “[...]

habilidade no relacionar-se com os outros tendo em vista a obtenção de resultados

desejados” (HOUAISS, 2007), percebe-se de modo geral, que a figura do outro era

essencial para a elaboração de uma teoria da vanguarda brasileira. Uma alteridade que

se manifesta tanto no papel do espectador participante como no papel daquele que foi

deglutido simbolicamente no retorno a antropofagia. Um outro geral e complexo que

orbita a obra do artista e que se configura tanto como espectador, linguagem ou até

como outro artista.

Outra importante questão percebida nesse período foi a aproximação da arte

com a cultura de massa que crescia, por sua vez, ao mesmo passo que os grandes

centros urbanos do país. Aqui destaco as reflexões de Mário Pedrosa. O crítico cunha

prematuramente o conceito de “arte pós-moderna” (PEDROSA, 1975: 87-92) para se

referir à produção artística na qual a tecnologia e a cultura de massa passam a ter efetiva

participação formadora para a criação de um novo estado da arte. A forte relação que foi

se criando entre arte e cultura de massa, fez com que, segundo Pedrosa, nascesse uma

dominação visual sobre a cultura em detrimento a questões de ordem verbal. Vejamos o

lamento do crítico sobre essa situação:

A substituição do verbal pelo visual apresenta-se como uma derrota do saber em face

das conseqüências da participação do real. Faltam-lhe todos os meios culturais de que

dispunha outrora. No mundo dos artistas existe por isso mesmo o desconforto. [...] Esta

– [a representação] do mundo – já não é mais elaborada pelos artistas, mas pela

informação visual e outras. Eis o drama da arte contemporânea. As técnicas de

comunicação avançam sobre a imaginação deles, num desenvolvimento cada vez mais

autônomo. Os artistas debatem-se dentro de uma representação sobre que não fizeram,

nem receberam faixa, mas que se elabora sem eles. (PEDROSA, 1975: 151)

MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil

É, portanto na percepção dessa dominação visual que os artistas brasileiros

começam a voltar o seu olhar para o tipo de imagem que vem sendo produzida com o

intuito de subvertê-la. Essa subversão não se deu apenas na apropriação dessas imagens,

mas também e principalmente pela apropriação de processos semelhantes à própria

produção industrial para a construção de obras que passam a questionar tradicionais

valores da arte assim como essa própria dominação. Importante ressaltar que o contexto

político-militar do país também influiu de maneira maciça nessa relação, pois mesmo

censurados, os meios de comunicação refletem o estado de repressão que nosso país

passava.

Tendo todos esses apontamentos como norte, não é de se espantar o porquê de

artistas da segunda metade da década de 1960 utilizarem frequentemente o recurso da

apropriação em suas obras.

Dentro desse complexo momento da história da arte no Brasil, proponho a

análise da obra Lindonéia – a Gioconda do subúrbio produzida no ano de 1966 por

Rubens Gerchman e a série Homenagem a Fontana, produzida por Nelson Leirner no

ano de 1967 que é constituída por três trabalhos, Homenagem a Fontana I, II e III para

que se compreenda pontualmente essas questões.

GERCHMAN, Rubens. Lindonéia – a Gioconda do subúrbio. 1966.

Vidro, colagem e metal sobre madeira. 60 x 60 cm. Coleção Gilberto

Chateaubriand do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil.

MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil

Fonte: imagem cedida pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Crédito: Pesquisa e Documentação do Museu de Arte Moderna do Rio de

Janeiro.

Embora pareça ser diretamente apropriada de uma fotografia de jornal,

Lindonéia é na verdade uma personagem inventada por Rubens Gerchman. O espelho

de aspecto kitsch denuncia sua origem de uma classe social mais baixa e os dizeres

anunciam o fim precoce de sua vida. Podemos perceber uma “objetualidade” na obra

não apenas pela moldura utilizada, mas também na própria imagem de Lindonéia, que

para o historiador Paulo Sérgio Duarte (1998, p. 42) não é um retrato, mas sim um

fragmento de uma nova paisagem que começava a se formar e que já não era mais

contemplada na natureza, mas nas primeiras páginas dos jornais.

A pose de Lindonéia é a pose padrão do retrato para carteiras de identidade que

neutraliza o retratado, destacando assim o anonimato de Lindonéia que passa a ser

confundida com qualquer outra pessoa. Essa imagética da obra e os jargões jornalísticos

utilizados fazem com que Gerchman transmita narrativamente um sentimento coletivo

através de fatos particulares usando como meio para isso a apropriação da linguagem do

jornal. Embora remeta a coletividade, em Lindonéia é também percebida determinada

solidão. Uma solidão vista tanto na figura representada, como na construção da obra que

se assemelha de certo modo, a uma espécie de bibelô de uma personagem já morta, algo

parecido com uma lápide.

É nítida, portanto, a relação entre Lindonéia e o jornal. Mas na obra, a

linguagem jornalística é muito mais desconstruída do que reproduzida. Os jargões

sensacionalistas se mostram ao mesmo tempo irônicos e melodramáticos. O aspecto

gráfico da construção do rosto se mostra canhestro e altamente simplificador da forma

tornando quase impossível o reconhecimento do rosto de Lindonéia, caso ela realmente

existisse. As retículas que Gerchman produz são disformes e irregulares, tão distantes

daquele padrão que Roy Lichtenstein entronizou.

Toda essa desconstrução do código do jornal remete a uma postura crítica do

artista que procura ruir a posição dominadora e transformadora da sociedade brasileira

que a mídia vem historicamente impondo. Isso se dá também através da apropriação da

frágil figura de uma das personagens da qual a mídia utiliza tanto como protagonista

como leitora: o cidadão “comum”.

Outra questão importante em Lindonéia é a presença da estética kitsch

percebida na utilização da popular moldura. O filósofo italiano Umberto Eco busca uma

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relação do kitsch com a vanguarda histórica européia, uma vez que as artistas

vanguardistas se opuseram a comestibilidade sem fadiga que segundo o filósofo era

almejada pelos artistas kitsch do início do século XX. Para Eco, os artistas kitsch

pretendiam apenas simular facilmente determinados efeitos em suas obras. E essa busca

de efeitos simulados levou a estética kitsch a se apropriar de alguns elementos da

vanguarda. Dessa maneira, Eco coloca a apropriação como cerne do kitsch, uma vez que

para o autor, o kitsch “[...] é a obra que, para justificar sua função de estimuladora de

efeitos, pavoneia-se com os espólios de outras experiências, e vende-se como arte, sem

reservas.” (ECO, 2004, p. 112)

Deste modo, o kitsch aparece em Lindonéia não apenas na apropriação da

moldura de vidro, como também na apropriação da linguagem do jornal impresso.

Obviamente, Gerchman não almejava simular efeitos superficialmente, muito menos

pavonear sua obra, mas sim apropriar-se daquilo que já estava “pavoneado” refletindo

por sua vez a melancolia, a solidão e o luto da população brasileira. Sem querer definir

kitsch como algo inferior à condição da arte, Gerchman traz para sua produção a estética

declaradamente popular desse tipo de objeto e linguagem de massa.

Analisemos então a partir de agora, a série Homenagem a Fontana de Nelson

Leirner:

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LEIRNER, Nelson. Homenagem a Fontana I. 1967. Lona e

zíper. 180 x 125 cm. Coleção Pinacoteca do Estado de São

Paulo.

Fonte: Chiarelli, 2002, p. 74.

Homenagem a Fontana é uma série composta de três trabalhos: Homenagem a

Fontana I, Homenagem a Fontana II e Homenagem a Fontana III. As três obras se

diferenciam pelas disposições dos zíperes que alteram suas composições, assim como

pela quantidade de camadas de tecido utilizados e pelas cores dos mesmos.

À primeira vista, Homenagem a Fontana não é uma série figurativa

questionando assim o conceito de nova figuração dado para esse período da arte no

Brasil. A série marca uma consistente relação com o concretismo brasileiro, seja pelo

rigor das composições geométricas como pela incitação à participação do público que

dá ao espectador a possibilidade de criar composições que acabam por desmanchar esse

rigor que poderia vir a existir.

Na série, Leirner apropria-se claramente da obra do artista ítalo-argentino

Lucio Fontana. Fontana foi um artista que produzia em suas telas violentos cortes com a

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intenção de que o espaço localizado entre a obra e a parede fosse incorporado ao

trabalho. Tais cortes e incorporações espaciais acabavam discutindo, segundo o artista,

questões de ordem imaterial e transcendental.

Entretanto, Leirner não se apropria da imagem das obras de Lucio Fontana,

mas sim de sua visualidade e de seu conceito para depois subvertê-los e extrapolá-los.

O corte seco e preciso de Fontana se torna maleável em Leirner. A principal marca do

artista ítalo-argentino, a sua autografia, é questionada num simples movimento de abrir

e fechar os zíperes. O público pode, sem medo de ferir profundamente a “pintura”,

simular a incisão do corte assim como cicatrizá-la novamente. Desse modo, Leirner

questiona o status de autoria que uma obra de arte carrega, matando a figura do autor.

Onde estaria o principal “ato criador” nessa obra, na estrutura que o artista constrói ou

na composição cromática que espectador produz?

Homenagem a Fontana ganhou um prêmio na IX Bienal de Tóquio em 1967.

Esse prêmio acabou colocando a obra em destaque no cenário brasileiro, fazendo com

que se criasse em torno da mesma determinada “aura” que acabou sendo dizimada em

pouco tempo, vejamos como.

Após a conquista do prêmio, Leirner apresenta a exposição Da produção em

massa de uma pintura (quadros a preço de custo) composta por várias cópias de

Homenagem a Fontana. Essa produção em série foi feita a partir de um projeto no qual

as características técnicas dos originais se mantiveram fielmente, questionando assim a

própria noção de originalidade assim como a de unidade da obra artística. É como se

Leirner se apropriasse de sua própria obra e a reproduzisse em escala industrial

atacando agora a unidade de seu próprio trabalho e não mais apenas a de Lucio Fontana.

A ironia de Leirner não termina ai. O artista estabelece um preço único para

cada trabalho de 112 cruzeiros novos. Preço esse gerado pelo cálculo sistemático dos

gastos com material e mão de obra, além da porcentagem de lucro destinada à galeria e

ao artista.

Desse modo, Leirner mimetiza todo o processo industrial, desde a produção em

massa de algo a partir de um projeto, passando pela apresentação do “produto” e um

claro estabelecimento de seu preço final, de acordo com o que foi gasto durante o

processo de construção. O preço final de cada obra é, devido à soma justa dos gastos,

acessível à população denotando a obra inevitável caráter político e democrático. Assim

a aproximação com o público ocorre novamente, pois o preço de Homenagem a

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Fontana é bem mais baixo que o preço que, geralmente, se dá a uma obra reconhecida

internacionalmente.

Leirner não compartilha da intenção utópica dadaísta de destruir a arte

enquanto instituição, mas sim infiltra-la para estremecê-la de dentro para fora tomando

como principal alvo o seu núcleo: a unidade da obra. O método que o artista utiliza para

atingir seu objetivo é inserir os impessoais procedimentos da produção industrial dentro

da prática artística, que sempre teve como uma de suas grandes características a

expressão da subjetividade.

Provocação é a palavra de ordem em Homenagem a Fontana. Leirner provoca

o objeto de arte, o status do artista, o sistema de arte, a indústria e o espectador. O

caminho de toda essa provocação é dado pelo ato de apropriar. A apropriação em

Leirner rompe os limites entre arte, público e indústria, mistura seus papéis, questiona

suas importâncias, estremece suas definições. A subversão anárquica de Leirner

demonstra que toda seriedade totêmica pode ser revirada do avesso assim como toda

simplicidade pode ser muito mais complexa e incisiva.

Vimos como Gerchman e Leirner deixam de lado questões tradicionais da arte

como autoria, originalidade e unidade tendo como meio para assim o procedimento de

apropriação. Ao negar essas tradições, tais artistas mostram um desligamento completo

da tradição modernista e embarcam na produção contemporânea, ou se preferirem, pós-

moderna da arte.

Mesmo com minha dissertação defendida e aprovada, ainda me encontro em

pleno processo de pesquisa na qual inúmeros questionamentos pululam aos meus olhos.

Mas de fato, o que percebo agora com o devido distanciamento, é que minha

experiência como “artista” foi de suma importância para esse começo de formação

enquanto historiador da arte. O processo de construção de minha pesquisa teórica é

extremamente semelhante a meu antigo processo de produção das minhas pinturas.

Comecemos pela forte influência que companheiros de mestrado, professores,

orientador, amigos íntimos e familiares. Esses influenciadores do campo acadêmico,

mesmo falando diretamente de minha pesquisa ou apresentando as próprias pesquisas,

foram importantes para que eu pensasse sobre minha produção acadêmica. Não era

importante apenas o que eles falavam, mas, sobretudo o modo como falavam, como

cada um tinha uma capacidade própria de relacionar tudo aquilo que fervilhava suas

cabeças e nos apresentar de modo tão claro e conciso. O modo como cada um tinha de

perceber os seus problemas e solucioná-los, fazendo com que assim eu também

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descobrisse problemas que até então passaram desapercebidos. Já os meus amigos

íntimos e familiares, influenciadores que estavam do lado de fora do programa de

mestrado, também ajudaram para que eu percebesse o quão complexa pode ser tornar

uma pesquisa. Inúmeras vezes me vi debatendo com eles sobre questões que acabara de

ler e eles, com a sabedoria de quem não estava no olho do furacão, mostravam questões

que também estavam passando desapercebidas. Sem falar, nos inúmeros acontecimentos

e conversas que ajudaram a destrinchar muito da abstrata teoria de alguns autores.

Essas influências, aliadas às minhas leituras e a influência geral da cultura

global, fez-me perceber que eu enquanto pesquisador, também sou um legítimo

apropriador. As tantas citações utilizadas são a prova mais cabal disso, mas inúmeras

outras referências são provas de meus delitos. A maneira como pensava na escrita de

determinado autor para produzir a minha própria, a minha organização de dados que se

assemelhava a outras organizações, o modo como buscava descrever cada obra e até em

elementos mais banais como a escolha da fonte tipográfica do texto final. Tudo foi

pautado em algo que já estava pronto. Barthes, em 1968, já havia percebido esses

apontamentos na produção de textos:

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir

um sentido único, de certa maneira teológica (que seria a ‘mensagem’ do

Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se

contestam escrituras variadas, das quais nenhum é original: o texto é um

tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura. (BARTHES, 1988, p. 68)

Vimos como Rubens Gerchman e Nelson Leirner questionaram o conceito de

autoria e essa não foi uma constatação que descobri apenas na obra dos artistas, mas

também na minha própria escrita. O meu texto já foge do conceito tradicional de autoria

e levanta outros questionamentos sobre essa minha experiência que podemos também

ampliá-la a um contexto maior: o que é um historiador atualmente? O que é um artista

atualmente? Por que esses papéis devem estar, dentro do estudo em e sobre artes tão

definidos? Será que o historiador não cria, não se expressa? Será que o artista não se

volta ao passado, não analisa e não se apropria? O que tem de artista no historiador e o

que tem de historiador no artista?

MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil

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