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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO - FACOM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA CONTEMPORÂNEAS Paula Karini Dias Ferreira Amorim Democracia e Internet: a transparência de gestão nos portais eletrônicos das capitais brasileiras Salvador 2012

Democracia e Internet: a transparência de gestão nos portais

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA

    FACULDADE DE COMUNICAO - FACOMPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM

    COMUNICAO E CULTURA CONTEMPORNEAS

    Paula Karini Dias Ferreira Amorim

    Democracia e Internet: a transparncia de gesto nos portais eletrnicos das capitais brasileiras

    Salvador2012

  • Paula Karini Dias Ferreira Amorim

    Democracia e Internet: a transparncia de gesto nos portais eletrnicos das capitais brasileiras

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas, Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor.

    Orientador: Prof. Dr. Othon Fernando Jambeiro

    Salvador2012

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  • Amorim, Paula Karini Dias FerreiraA524d Democracia e Internet: a transparncia de gesto nos portais

    eletrnicos das capitais brasileiras. / Paula Karini Dias Ferreira Amorim, Salvador, 2012

    347 f. il.

    Orientador: Prof Dr. Othon Fernando Jambeiro Tese (Doutorado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicao, Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contempornea, Salvador, BR-BA, 2012.

    1. Democracia. 2. Internet Transparncia digital. 3. Brasil. 4. Governo Municipal. I. Ttulo II. Comunicao.

    CDU: 316.774 CDU: 316.774

    Ficha catalogrfica elaborada pela Bibliotecria Maria Madalena de Camargo CRB8/298.

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  • 4

  • A Enzo e Josu,

    meus amores.

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  • AGRADECIMENTOS

    Esta tese certamente no se teria tornado uma realidade se eu no tivesse tido a oportunidade

    de contar com pessoas muito valiosas. Assim, resta-me agradecer profundamente a cada um

    daqueles que, ao seu modo, contriburam e acabaram se tornando coautores deste trabalho.

    Ao professor Doutor Othon Fernando Jambeiro, orientador desta tese, agradeo pela acolhida,

    pelos valiosos e rigorosos conhecimentos, assim como pela pacincia e seriedade.

    Ao professor Doutor Wilson Gomes, coordenador do curso, pelos ensinamentos essenciais

    para o meu amadurecimento acadmico, pela ateno e pelo profissionalismo.

    Aos professores Andr Lemos, Jos Carlos e Marcos Palacios, por terem promovido espaos

    genunos de aprendizagem e produo acadmica.

    Aos colegas do CP-redes, que me acolheram com carinho e que proporcionam debates e

    contribuies fundamentais para a minha pesquisa, de modo especial, agradeo Jussara

    Borges, Neuma Dantas, Suzana Andrade e Samuel Barros.

    Aos colegas do Centro de Estudos Avanados em Democracia Digital e Governo Eletrnico,

    pelas discusses e pelas sugestes.

    Capes, por fomentar a formao de doutores para a regio Norte do pas.

    Unitins, por propiciar a oportunidade de cursar este doutorado.

    Ao professor doutor Geraldo, pelos dilogos frutferos.

    Aos professores doutores Joel e Waldecy, pela gentileza e pelos prestimosos conhecimentos

    estatsticos.

    A Andr vila e Mileni Cunha, pela ajuda e colaborao.

    Aos meus colegas Igor Yepes, Marco Firmino, Fredson Costa, Snia Mara, Mariana Carla,

    Kyldes e Darlene, por estarem sempre dispostos a compartilhar conhecimento e esperana.

    minha me, meus irmos Csar e Leonardo, ao cl Amorim e a Sebastiana, pela presena e

    pelo apoio.

    A Josu Amorim, pelo carinho e amor em todos os momentos deste rduo processo de

    doutoramento.

    6

  • Para ser grande, s inteiro: nada

    Teu exagera ou exclui.

    S todo em cada coisa. Pe quanto s

    No mnimo que fazes.

    Assim em cada lago a lua toda

    Brilha, porque alta vive.

    Fernando Pessoa (Ricardo Reis), 14 fev. 1933.

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  • RESUMO

    O modelo hegemnico de democracia contempornea abraa a formatao liberal e concentra-se essencialmente na representao poltica. Esse trao caracterstico tem sido alvo de crticas por inmeros tericos, pesquisadores, organizaes civis e cidados a respeito do nvel de legitimidade. Atualmente h muitas reivindicaes no sentido de se criarem meios de fortalecer esse sistema poltico por intermdio da participao poltica do cidado, de maior abertura do Estado esfera civil, da deliberao pblica e do uso dos recursos da Internet como meio para superar barreiras de tempo e espao. Ao assumir que a transparncia um valor comum aos modelos de democracia, bem como instrumento que pode favorecer maior proximidade, cognicidade e controle dos negcios do Estado pelo cidado, prope-se os seguintes elementos para uma anlise sistematizada da transparncia dos websites governamentais: usabilidade, acessibilidade, hiperlinks, informaes contextuais, informaes institucionais, informaes e servios financeiro-oramentrios, informaes e servios administrativos, comunicao com o pblico e responsividade. Esta investigao teve por finalidade compreender os modos pelos quais os governos municipais das capitais estaduais e da capital federal do Brasil empregam os mecanismos de Internet para ofertar informao e servios que visem transparncia de gesto para a esfera civil. A partir das questes-problema levantadas para esta pesquisa, procurou-se compreender como os governos das capitais estaduais e da capital federal do Brasil utilizam os seus sites oficiais com a finalidade de favorecer a transparncia da gesto, aferir o nvel de desenvolvimento da transparncia dos sites pesquisados e verificar se existe associao entre o nvel de transparncia do portal e indicadores socioeconmicos (produto interno bruto, ndice de desenvolvimento humano, analfabetismo, populao, insero digital e partido poltico). O estudo foi realizado por meio de cinco etapas: reviso bibliogrfica, identificao dos experimentos, estudo exploratrio, navegao estruturada nos portais e anlise comparativa dos resultados. O corpus emprico foi composto pelos websites das capitais brasileiras e Distrito Federal. A anlise dos resultados revelou na maioria dos portais a transparncia digital moderada e que h uma associao entre a transparncia do municpio e o seu desenvolvimento econmico e social.

    Palavras-chave: Democracia. Internet. Transparncia digital. Governo municipal.

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  • ABSTRACT

    The hegemonic model of contemporary democracy holds the liberal form and concentrates itself essentially in political representations. This characteristic have been criticized by a number of theorists, researchers, civil organizations and citizens, regarding the level of legitimacy. Currently there is several claims aiming to create forms to strengthen the political system through political participation of citizens, increased openness from the State to civil sphere, public deliberation, and usage of Internet tools as a mean to overcome barriers of time and place. As we undertake that transparency is a common value to democracy models, as well as an instrument that could favor a greater proximity, cognition and control of the State business by the citizens, we propose the following elements for a systematic analysis of government websites transparency: usability, accessibility, hyper links, contextual information, institutional information, financial-budget information and services, administrative information and services, communication with the public and responsibility. This research intends to comprehend the manner in which the local government from the capital cities of Brazilian States and the capital of Brazil itself employ Internet mechanisms to offer information and services which directs management transparency to civil sphere. From the research question surveyed for this study, we tried to comprehend how the government from the capital cities mentioned above use their official websites aiming to favor management transparency, assess the development level of the websites that take part of this study and check if there is any type of association between the level of transparency of the website and social-economic indexes (gross domestic product, human development index, illiteracy, population, Internet usage and political parties adherence). The study was performed in five stages: literature review, experiment identification, exploratory study, structured browse in the sites, and comparative analysis of the results. Empirical corpus was made by the capital cities websites. Results analysis showed that in most websites digital transparency is moderate and there is an association between local transparency and local social-economic development.

    Keywords: Democracy. Internet. Digital transparency. Local government.

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  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Elementos da transparncia............................................................................. 62Figura 2 - As direes da transparncia........................................................................... 69Figura 3 - Imagem de fragmento do vdeo gerado durante a navegao no portal da Prefeitura de Aracaju....................................................................................................... 100Figura 4 - Modelo do formulrio utilizado para a navegao orientada.......................... 101

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  • LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1 - Estado da transparncia digital dos portais das capitais brasileiras............... 151Grfico 2 - Pontuao da dimenso informaes gerais dos websites avaliados, por cidade................................................................................................................................153Grfico 3 - Pontuao da dimenso informaes e servios tcnicos dos websites avaliados, por cidade........................................................................................................ 157Grfico 4 - Dimenses agrupadas, por regio.................................................................. 168Grfico 5 - Resultado da transparncia digital, por regio...............................................168Grfico 6 - Resultado da transparncia digital com PIB per capita, por regio............................................................................................................................... 169

    Grfico 7 - Resultado da transparncia digital com IDH-M, por regio..........................170Grfico 8 - Resultado da transparncia digital com percentual de utilizao da Internet, por regio........................................................................................................... 171Grfico 9 - Resultado da transparncia digital com percentual de analfabetismo, por regio................................................................................................................................ 172Grfico 10 - Comparativo da transparncia digital com os indicadores escolhidos para a pesquisa, por regio....................................................................................................... 173Grfico 11 - Correlao entre o ndice da transparncia e o IDH-M............................... 176Grfico 12 - Correlao entre o ndice da transparncia e o PIB per capita dos municpios........................................................................................................................ 177

    Grfico 13 - Correlao entre o ndice da transparncia e a populao........................... 178Grfico 14 - Correlao entre o ndice da transparncia e a insero digital...................179Grfico 15 - Correlao entre o ndice da transparncia e o analfabetismo.....................180Grfico 16 - Resultados da transparncia, por partido..................................................... 181Grfico 17 - Radar correlao entre o ndice da transparncia e o partido poltico......... 182Grfico 18 - Coeficientes de correlao entre o ndice de transparncia digital e as variveis socioeconmicas das capitais brasileiras.......................................................... 183

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  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 - Comparao das concepes habermasianas sobre esfera pblica................ 43Quadro 2 - Leis de acesso informao na Amrica Latina............................................ 51Quadro 3 - Os tipos de obstculos transparncia da informao................................... 66Quadro 4 - Transparncia processual versus transparncia eventual............................... 70Quadro 5 - Cidade e o seu respectivo endereo eletrnico.............................................. 98Quadro 6 - Aspectos avaliados na categoria cidade......................................................... 108Quadro 7 - Aspectos avaliados na categoria internet....................................................... 109Quadro 8 - Aspectos avaliados na categoria usabilidade................................................. 110Quadro 9 - Aspectos avaliados na categoria acessibilidade............................................. 112Quadro 10 - Aspectos avaliados na categoria hiperlink................................................... 114Quadro 11 - Aspectos avaliados na categoria informaes contextuais........................... 115Quadro 12 - Aspectos avaliados na categoria informaes institucionais........................ 116Quadro 13 - Aspectos avaliados na categoria informaes financeiro-oramentrias..... 119Quadro 14 - Aspectos avaliados na categoria informaes administrativas.................... 121Quadro 15 - Aspectos avaliados na categoria comunicao com o pblico..................... 124Quadro 16 - Aspectos avaliados na categoria responsividade.......................................... 126

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  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 - Pontuao dos conceitos.................................................................................. 105Tabela 2 - Intervalo percentual para a atribuio do conceito global............................... 108Tabela 3 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria internet.................................... 109Tabela 4 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria usabilidade.............................. 112Tabela 5 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria acessibilidade.......................... 113Tabela 6 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria hiperlink.................................. 114Tabela 7 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria informaes contextuais......... 116Tabela 8 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria informaes institucionais...... 118Tabela 9 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria informaes financeiro-oramentria..................................................................................................................... 120Tabela 10 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria informaes administrativas. 124Tabela 11 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria comunicao com o pblico.. 125Tabela 12 - Valor dos pesos dos indicadores da categoria responsividade...................... 127Tabela 13 - Resultados globais, por cidade na escala de pontuao dos conceitos da transparncia..................................................................................................................... 148Tabela 14 - Resultados da avaliao parcial e final da transparncia dos portais, em ordem crescente................................................................................................................ 150Tabela 15 - Caractersticas gerais dos portais.................................................................. 152Tabela 16 - Usabilidade dos portais................................................................................. 155Tabela 17 - Acessibilidade dos portais............................................................................. 155Tabela 18 - Hiperlink dos portais..................................................................................... 156Tabela 19 - Informaes e servios contextuais dos portais............................................ 159Tabela 20 - Informaes e servios institucionais dos portais......................................... 160Tabela 21 - Informaes e servios financeiro-oramentrios dos portais...................... 162Tabela 22 - Informaes e servios sobre processos internos.......................................... 163Tabela 23 - Comunicao com o pblico......................................................................... 164Tabela 24 - Responsividade.............................................................................................. 165Tabela 25 - Variveis da anlise correlacional................................................................. 174Tabela 26 - Estimativa dos determinantes dos ndices transparncia digital nas capitais 185

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  • SUMRIO

    ..............................................................................................................................1 INTRODUO 16

    ....................................................2 CONTEXTUALIZAO E DELIMITAO DA PESQUISA 182.1 OBJETIVOS, HIPTESES E VARIVEIS 222.2 PERCURSO METODOLGICO, CORPUS EMPRICO E MTODOS 242.3 MATRIZ METODOLGICA 272.4 LIMITAES DA PESQUISA 28

    ..............................................................................................3 DEMOCRACIA E INFORMAO 293.1 O CONTEXTO DA DEMOCRACIA CONTEMPORNEA 293.2 DEMOCRACIAS LOCAIS 343.3 PUBLICIDADE: A BASE DO PODER VISVEL 383.3.1 Publicidade como anttese do segredo 393.3.2 Publicidade como conceito vinculado esfera pblica 423.4 ACESSO INFORMAO GOVERNAMENTAL: UM REQUISITO PARA A DEMOCRACIA 453.4.1 Direito informao 463.4.1.1 Princpios do sistema de direito informao 493.4.2 Acesso informao pblica na Amrica Latina 513.5 TRANSPARNCIA COMO A MELHOR FORMA DE GOVERNO 563.5.1 Transparncia: evoluo histrica, doutrina e conceito 583.5.2 Diferena entre a transparncia, abertura e accountability 633.5.3 Tipos de transparncia 653.5.4 Variaes da transparncia 67

    ................................................................................................4 TRANSPARNCIA E INTERNET 744.1 DEMOCRACIA DIGITAL 744.2 GOVERNO ELETRNICO 804.3 TRANSPARNCIA DIGITAL 844.3.1 Transparncia, participao e deliberao 854.3.2 Os limites da transparncia digital 884.3.3 Dimenses analticas para a transparncia digital 904.3.3.1 Dimenso geral da transparncia digital 914.3.3.2 Dimenso tcnica da transparncia digital 924.3.3.3 Dimenso especfica da transparncia digital 92

    5 METODOLOGIA DE ANLISE DA TRANSPARNCIA PBLICA DOS WEBSITES DE ..........................................................................................................MUNICPIOS BRASILEIROS 96

    5.1 WEBSITES MUNICIPAIS: OBJETO DE INVESTIGAO 965.2 PARMETROS PARA A NAVEGAO ORIENTADA 995.3 CRITRIOS PARA A AVALIAO DA TRANSPARNCIA DIGITAL DOS WEBSITES DAS CIDADES BRASILEIRAS 1025.3.1 Descrio dos aspectos avaliados e critrios de avaliao, por categoria de anlise 108

    ....................6 O ESTADO DA TRANSPARNCIA DIGITAL DAS CAPITAIS BRASILEIRAS 1286.1 ARACAJU - SE 1286.2 BELM - PA 1296.3 BELO HORIZONTE - MG 1296.4 BOA VISTA - RR 1306.5 BRASLIA - DF 131

    14

  • 6.6 CAMPO GRANDE - MS 1326.7 CUIAB - MT 1326.8 CURITIBA - PR 1336.9 FLORIANPOLIS - SC 1346.10 FORTALEZA - CE 1356.11 GOINIA GO 1366.12 JOO PESSOA - PB 1366.13 MACAP - AP 1376.14 MACEI - AL 1386.15 MANAUS - AM 1396.16 NATAL - RN 1406.17 PALMAS - TO 1406.18 PORTO ALEGRE - RS 1416.19 PORTO VELHO - RO 1426.20 RECIFE - PE 1426.21 RIO BRANCO - AC 1436.22 RIO DE JANEIRO - RJ 1446.23 SALVADOR - BA 1456.24 SO LUS - MA 1456.25 SO PAULO - SP 1466.26 TERESINA - PI 1476.27 VITRIA - ES 1486.28 RESULTADOS CONSOLIDADOS DA TRANSPARNCIA DIGITAL 148

    .............................................................................................7 DISCUSSO DOS RESULTADOS 1527.1 EXAME DAS CARACTERSTICAS DA TRANSPARNCIA DOS MUNICPIOS ESTUDADOS 1527.1.1 Caractersticas tcnicas dos portais 1547.1.2 Caractersticas especficas da transparncia dos portais 1577.2 NDICE DA TRANSPARNCIA DIGITAL DAS CAPITAIS BRASILEIRAS, POR REGIO 1677.2.1 Anlise do ndice de transparncia com o PIB per capita, por regio 1697.2.2 Anlise do ndice de transparncia com o IDH-M, por regio 1697.2.3 Anlise do ndice de transparncia com percentual de insero digital, por regio 1707.2.4 Anlise do ndice de transparncia com percentual de analfabetos, por regio 1717.2.5 Resultado comparativo dos indicadores agrupados, por regio 1727.3 CORRELAO ENTRE O NDICE DA TRANSPARNCIA DIGITAL E O QUADRO SOCIOPOLTICO E ECONMICO DAS CAPITAIS BRASILEIRAS 1737.3.1 ndice de transparncia digital e o ndice de Desenvolvimento Humano por Municpio 1757.3.2 ndice de transparncia digital e o PIB per capita dos municpios 1767.3.3 ndice de transparncia digital e a populao 1777.3.4 ndice de transparncia digital e a insero digital 1787.3.5 ndice de transparncia digital e analfabetismo 1797.3.6 ndice transparncia digital e o partido poltico 1807.4 ANLISE MULTIVARIADA DAS CAUSAS DA VARIAO DO NDICE DE TRANSPARNCIA DIGITAL DAS CAPITAIS BRASILEIRAS 182

    ..............................................................................................................................8 CONCLUSO 187

    ...............................................................................................................................REFERNCIAS 196

    ....................................................................................................................................APNDICES 209

    15

  • 1 INTRODUO

    Os governos (em todas as esferas) tm sido pressionados pela sociedade e rgos

    reguladores a promoverem uma crescente racionalizao dos seus processos e maior

    eficincia e qualidade na prestao dos servios pblicos, bem como a insero de novas

    prticas/modelos gerenciais com nfase em resultado. Como desdobramento desses

    fenmenos, questes como a exigncia de novos parmetros em relao responsabilidade e

    controlabilidade das aes do gestor pblico passam a fazer parte da agenda da sociedade.

    Alm do componente social, sabidamente posicionado frente das estratgias

    governamentais, preciso observar com mincia a necessidade de atender aos requisitos

    legais da responsabilidade fiscal. No caso do Brasil, por fora da Lei Complementar n 101,

    de 4 de maio de 2000, nos artigos 48 e 49, a Unio, os Estados e os Municpios esto

    obrigados a dar ampla divulgao, inclusive em meios eletrnicos de acesso pblico, a seus

    planos, oramentos e leis de diretrizes oramentrias; suas prestaes de contas e respectivo

    parecer prvio; relatrio resumido da execuo oramentria e do relatrio de gesto fiscal.

    Para dar conta das demandas geradas pela necessidade de tornar pblico os

    investimentos, os gastos e as decises, os governos utilizam os recursos da Internet, atravs de

    seus portais eletrnicos, para noticiar, criar canais de comunicao, publicar relatrios, planos

    de ao, prestaes de contas, quadros, grficos, textos e outros tipos de documentos nos mais

    variados formatos. O que se observa que, em geral, apesar do avano tecnolgico, ainda h

    muito a se conhecer sobre os usos que os governos fazem de seus portais com vistas a tornar

    transparentes suas aes e decises. Via de regra, os usos mais avanados das TIC so

    observados naquelas cidades com maior desenvolvimento econmico e social, conforme Cruz

    et al (2012), Jambeiro, Andrade e Sobreira (2008) e Santana Jnior (2007), e tendem a se

    concentrar em servios que geram arrecadao, tais como emisso de documentos de tributos

    e impostos.

    Segundo Margetts (2006), o emprego do governo digital para a transparncia, a

    depender do uso, tem contornos extremamente variveis em todo o mundo. A maioria tem a

    transparncia como um dos aspectos da ampla agenda de governo eletrnico, o que resulta em

    diferentes performances de governo eletrnico e em distintas implicaes sobre a

    transparncia digital.

    16

  • Esta pesquisa teve como objetivo principal compreender como governos das capitais

    brasileiras esto empregando os mecanismos digitais para dar transparncia de gesto, bem

    como verificar se existe associao entre o desempenho da transparncia digital e os

    indicadores socioeconmicos dos municpios pesquisados. Para realizar o estudo, foi proposto

    um modelo de avaliao dos portais eletrnicos que permitisse analisar as informaes e

    servios ofertados sociedade com o fim especfico de tornar os governos mais transparentes.

    A presente tese est estruturada em seis partes. A primeira tem a finalidade de

    apresentar a contextualizao e a delimitao do tema da pesquisa, os objetivos e as hipteses,

    o percurso metodolgico, o corpus emprico, os mtodos empregados e as limitaes da

    pesquisa.

    A segunda parte, intitulada Democracia e informao, tem o objetivo de dar conta da

    discusso em torno do contexto da democracia contempornea, considerando as democracias

    locais, o princpio da publicidade como base do poder visvel, o acesso informao

    governamental como requisito para a democracia. Trata tambm da transparncia como a

    melhor forma de governana e aborda a evoluo histrica, a doutrina e o conceito, bem como

    as diferenas entre transparncia, abertura e accountability e as caractersticas da

    transparncia.

    Na terceira parte, denominada Transparncia e Internet, so tratados os efeitos da

    adoo de tecnologias de informao e comunicao para a democracia, na seo

    Democracia digital, e para os governos, na seo Governo eletrnico. Em Transparncia

    digital, so propostos elementos constitutivos para a anlise da transparncia digital dos

    municpios brasileiros.

    A quarta parte desta tese, intitulada Metodologia de anlise da transparncia pblica

    dos websites de municpios brasileiros, tem a finalidade de esclarecer os parmetros

    metodolgicos empregados para a anlise da transparncia pblica dos websites dos

    municpios brasileiros.

    Nas duas ltimas partes so apresentados os resultados decorrentes da pesquisa emprica

    realizada nos portais das prefeituras das capitais brasileiras e Distrito Federal e o exame das

    caractersticas e tendncias da transparncia, bem como a influncia que os aspectos

    econmicos, sociais e polticos exercem sobre a transparncia digital.

    17

  • 2 CONTEXTUALIZAO E DELIMITAO DA PESQUISA

    No recente a discusso em torno da imperiosa necessidade de os governos

    realizarem seus atos pblica e esclarecidamente. Em 1802, Thomas Jefferson escreveu sobre a

    esperana de se ter as finanas do governo de forma clara e inteligvel para favorecer a

    compreenso e o consequente controle pela sociedade. No ano de 1822, foram encontrados

    registros de uma carta enviada por James Madison a William Taylor Barry 1. Nessa carta,

    escreveu que um governo popular sem informao popular ou meios para obt-la o incio de

    uma farsa, ou uma catstrofe. O auto-governo tem como requisito fundamental o poder dado

    pelo conhecimento. Assim, o conhecimento deve suplantar a ignorncia. Um pouco mais

    tarde, em 1843, Jeremy Bentham, na obra Of publicity, esclareceu que a discusso sobre a

    publicidade deve se assentar nas razes para tal, no exame dos seus objetivos, nas

    excepcionalidades, nos aspectos sobre os quais a publicidade deve se ampliar, nos meios e nos

    critrios a serem observados para a sua prtica na Inglaterra (BENTHAM, 1843).

    No campo da poltica, a origem da transparncia vem da necessidade de reforar a

    atuao democrtica dos governos, dos princpios constitucionais que regem a organizao e

    o funcionamento do Estado e da urgncia de modernizao do modelo de gesto pblica. O

    primeiro resultado da expresso ideolgica, o segundo tem fora coercitiva, lei, e o

    terceiro fora competitiva, desafio a ser assumido pelos governos. Dessa forma, veem-se

    compromissos eleitorais dos candidatos, fundamentos das polticas de governo e justificao

    das aes governamentais, bem como iniciativas da sociedade civil organizada sustentando-se

    na transparncia como valor basilar para o bom funcionamento dos negcios pblicos.

    Segundo Marques (2008), por meio da aplicao dos princpios da publicidade e da

    visibilidade do poder, os agentes pblicos oferecem aos cidados a possibilidade de avaliar

    como feita a conduo dos negcios de interesse comum. Mediante a informao e o

    conhecimento dos assuntos pblicos, a avaliao se converte num instrumento coletivo e

    poltico, que possibilita a cada cidado conhecer e julgar, livremente, a esfera poltica e

    18

    1 Disponvel em: http://classicliberal.tripod.com/madison/barry.html. Acesso em: 22 out. 2011.

    http://classicliberal.tripod.com/madison/barry.htmlhttp://classicliberal.tripod.com/madison/barry.html

  • decidir quem rene as melhores condies para governar e poder, assim, corrigir possveis

    malversaes da coisa pblica.

    Modernamente, o princpio da publicidade se aproxima da noo de transparncia.

    Esta favorece a avaliao das aes governamentais, promove o descortinamento dos

    negcios pblicos e favorece a participao do cidado no governo ao longo do exerccio do

    mandato eletivo. Tradicionalmente, as eleies marcam o momento de participao do

    cidado no processo governamental. Contudo, em razo da sua periodicidade ter um espao

    de tempo longo (as eleies municipais, estaduais e federais ocorrem a cada quatro anos), esse

    modelo de participao pode causar prejuzos democracia e ao exerccio da cidadania. O

    acesso informao um requisito fundamental para a transparncia, a existncia de

    mecanismos equitativos e oportunos de manifestao de razes e vontades so requisitos

    necessrios ao cidado para tomar parte no debate acerca das decises que lhe afetam. No

    Brasil, diferentemente de outros pases que adotam o regime democrtico, a lei sobre o acesso

    informao pblica recente e ainda no produziu efeitos.

    As possibilidades comunicativas e transacionais da Internet representam uma grande

    promessa para revigorar a democracia, de modo particular no que tange relao governo-

    sociedade e a tornar as aes do Estado mais transparentes e efetivas. Os recursos tcnicos

    que a rede mundial de computadores dispe podem ser empregados para oferecer esfera

    civil o acesso s informaes e a servios pblicos de qualidade, ao debate racional,

    participao social e a accountability necessrios para nortear a construo das razes

    pblicas que conduzem o processo decisrio do poder constitudo (GOMES, 2005).

    Barnett (1997) afirma que as novas tecnologias oferecem grande potencial para

    expandir os horizontes da comunicao poltica e superar alguns dos problemas associados

    mdia tradicional na promoo do processo democrtico. As novas formas de comunicao

    podem promover maior interesse e participao dos cidados no processo poltico, de modo a

    favorecer o fortalecimento da democracia. Por meio de uma nica plataforma de

    comunicao, o cidado pode fiscalizar detalhadamente a aplicao de verbas e denunciar a

    m administrao do dinheiro pblico. Marques (2008, p. 269) refora que

    o papel do estado enquanto, por exemplo, provedor de informao poltica e enquanto agente a ofertar dados de naturezas diversas (tanto acerca de esclarecimento quanto sobre seu prprio funcionamento, estrutura e mecanismos de transparncia) conta com todas as condies tcnicas de se concretizar.

    19

  • Alm das condies tcnicas, deve-se levar em conta a necessidade da existncia das

    condies polticas e sociais, pois a cultura poltica do cidado, para utilizar as possibilidades

    que a Internet oferece, o acesso e a capacitao para fazer uso crtico das informaes e

    servios fornecidos pelos governos mediante as TIC Tecnologias da Informao e da

    Comunicao, so aspectos que desafiam a concretizao das potencialidades da internet.

    A apropriao das ferramentas da Internet pelos gestores pblicos, atravs de sites e

    portais de governo eletrnico, iniciou-se no Brasil em meados dos anos 90 e tem se

    expandido, expressivamente, pela aplicao da Internet nos diferentes nveis de governo

    (federal, estadual e municipal). Esse novo modelo de gesto de organizaes governamentais

    visa ao menor custo, a uma maior integrao e um melhor relacionamento entre governo e

    governo (G2G), governo e cidados (G2C) e governo e fornecedores (G2B) na oferta de

    servios e informaes 7 dias por semana, 24 horas por dia.

    O governo eletrnico (e-gov) se vale de sistemas avanados de informao que

    possibilitam o aumento da eficcia e da eficincia da gesto, a melhoria da qualidade dos

    servios, a transparncia e a ampliao das possibilidades de fiscalizao das aes e dos

    servios em planejamento, em andamento e j executados pelas instituies pblicas

    (LEMOS; ROCHA, 2007; SANTOS, 2004; TEIXEIRA, 2004). Um e-gov planejado e

    executado com a finalidade de promover e de facilitar o controle social pode possibilitar a

    participao dos atores sociais no processo de gesto dos municpios em favor da viso

    estratgica definida para a cidade.

    por meio de portais eletrnicos que os governos concentram e organizam contedo,

    linguagem e servios (DUARTE, 2004). De acordo com Santos (2004), alguns elementos

    devem ser centrais na concepo dos portais: foco no cidado-usurio, interao usurio-

    governo, transaes digitais que permitam eliminar intermedirios e soluo de problemas dos

    cidados, com nfase no autoatendimento. H, tambm, outros elementos que podem ser

    acrescidos aos descritos anteriormente, como: linguagem acessvel e simples, contedo

    minucioso, atualizao frequente, usabilidade, navegabilidade e outros.

    Atualmente, um nmero expressivo de tericos, polticos, membros de movimentos

    sociais e de organismos da sociedade civil tem tratado a transparncia como valor inerente

    democracia. Apesar de os modelos contemporneos de democracia tencionarem seu foco para

    a participao ou para a discusso ou a argumentao pblica como alternativa ao

    20

  • distanciamento gerado entre Estado e sociedade pelo modelo liberal, observa-se a existncia

    de processos mistos que conformam participao, deliberao e representao (SILVA, 2009).

    Os mecanismos digitais de comunicao tem colocado o Estado frente ao desafio de

    explor-los como novas formas de interao poltica com a sociedade. Exemplo disso so os

    portais governamentais na Internet como canal de comunicao em larga escala, de baixo

    custo e variadas funcionalidades. Esses dispositivos so repositrios pblicos de informao

    que podem ser potencialmente acessados por qualquer cidado, rompendo os

    constrangimentos de tempo e lugar; fornecem condies tcnicas para a oferta de servios

    pblicos; possibilitam a comunicao dialgica ou discursiva e at mesmo consultas,

    sondagens e eleies on-line. Pipa Norris (2001, p. 113) ressalta, contudo, que

    existe uma preocupao generalizada de que o pblico tenha perdido a confiana no desempenho das principais instituies que representam o governo e desejam um governo mais aberto e transparente, com servio de distribuio mais eficiente a ponto de ajudar a restaurar a confiana pblica2.

    Nota-se que os media digitais fornecem uma gama de possibilidades em razo das suas

    mltiplas funes, talvez por isso existam inmeras pesquisas empricas que abordam

    governo eletrnico e portais visando compreender como o Estado se apropria desse meio para

    ofertar servios e informaes e estabelecer parmetros para a participao e deliberao

    pblicos (AKUTSU, 2005; LEMOS; ROCHA, 2007; PINHO, 2008; MARQUES, 2008;

    SILVA, 2009). Outra abordagem que tambm vem ganhando destaque a da publicidade no

    mbito da comunicao poltica. Silva (2009, p. 113) ressalta que,

    embora os desafios da publicidade online se configurem como um tema inevitvel para a comunicao poltica, curiosamente no um problema aprofundado pela atual literatura sobre democracia digital. bastante comum ver o termo publicidade tratado como sub-tpico de abordagens mais populares como participao poltica e internet, esfera pblica e internet ou como sub-item do debate sobre deliberao online. Ao se apontar a publicidade como um dos trs requisitos democrticos para o ambiente digital, o intuito dar o devido lugar a um dos pilares da democracia moderna e da comunicao poltica, tentando pensar seus pormenores neste processo.

    Assim, faz-se necessria uma anlise mais minuciosa e detalhada do fenmeno da

    apropriao dos meios de comunicao poltica on-line pelo Estado, buscando compreender

    21

    2 Traduo livre da autora do original: There is widespread concern that the public has lost faith in the performance of the core institutions of representative government, and it is hoped that transparent government and more efficient service delivery could help restore public confidence.

  • as peculiaridades internas dos websites. Sero consideradas, de modo particular, a visibilidade

    das aes governamentais, o processo comunicacional dos portais governamentais mediante o

    estabelecimento de relaes densas de comunicao com discursos translcidos ao cidado

    comum sobre os negcios pblicos. Isso sinaliza razes para investigar os portais como

    mecanismos de fortalecimento do bom governo, pois, medida que forem mais desenvolvidos

    e utilizados, mais impactantes sero seus efeitos na comunicao poltica e, mais ainda, ser a

    sua influncia na reduo do dficit democrtico e na contribuio para um modelo forte de

    democracia (SILVA, 2009). Dessa forma, o uso da Internet, como dispositivo para cumprir

    alguns requisitos democrticos, como a transparncia, deve transcender o nvel normativo.

    O corpus emprico desta pesquisa formado pelos portais eletrnicos das prefeituras

    de todas as capitais brasileiras, inclusive o Distrito Federal. A escolha desse corpus se deve ao

    fato de que as capitais so cidades mais desenvolvidas econmica e socialmente, o que se

    configuram fatores favorveis para o desenvolvimento tecnolgico. Interessa para esta

    pesquisa verificar as experincias do esforo governamental de dar visibilidade s suas aes.

    O estudo visa compreender os modos pelos quais os governos municipais das capitais do

    Brasil e da capital federal empregam os mecanismos de Internet para ofertar informao e

    servios que visem transparncia de gesto para a esfera civil. Assim, a partir da reflexo

    exposta, lanam-se as questes norteadoras desta pesquisa: os governos das capitais

    estaduais e da capital federal do Brasil fornecem, atravs dos seus websites, informaes

    e servios que favoream a transparncia de gesto? E ainda, qual a relao entre o

    nvel de transparncia dos websites e fatores sociais (IDH-M e insero digital), polticos

    (ideologia partidria do chefe do poder executivo) e econmicos (PIB) da cidade?

    2.1 OBJETIVOS, HIPTESES E VARIVEIS

    Conforme anunciado na seo anterior e tendo em vista a compatibilizao dos

    estudos que envolvem os temas relacionados democracia, comunicao poltica, Internet,

    s iniciativas de governo eletrnico, ao governo das cidades e transparncia de gesto, o

    estudo proposto tem por objetivo compreender os modos de emprego dos mecanismos de

    Internet, pelos governos das capitais do Brasil e da capital federal, para ofertar informao e

    servios que visem transparncia administrativa para a esfera civil.

    E, de maneira especfica, esta pesquisa pretende:

    22

  • identificar, nas teorias da democracia, os aspectos que interessam ao argumento da

    Internet como modalidade de comunicao a ser empregada para o

    aperfeioamento das formas de governo democrticas, notadamente os

    mecanismos que favorecem a transparncia;

    propor, por meio da reviso de literatura, parmetros e indicadores que permitam

    examinar o estado da transparncia digital do portais eletrnicos dos municpios

    pesquisados;

    avaliar o estgio de desenvolvimento das ferramentas de informao e

    comunicao digital utilizados pelos governos municipais com a finalidade de

    favorecer a transparncia pblica;

    analisar, comparativamente, o desempenho da transparncia digital dos websites

    das prefeituras com os seus respectivos indicadores socioeconmicos e polticos

    para verificar se existe associao entre eles, bem como identificar os indicadores

    que melhor explicam o estado da transparncia.

    Para percorrer a trilha de informaes, premissas, argumentos e contra-argumentos, foi

    necessrio definir orientaes que guiariam o alcance dos objetivos propostos para esta

    pesquisa sem extrapolar os limites e as especificidades da pesquisa. Nesse sentido, foram

    testadas, discutidas e ponderadas ao longo do trabalho as seguintes hipteses primrias:

    Hiptese 1: os governos das capitais brasileiras empregam as potencialidades de

    comunicao poltica dos seus websites com a finalidade de dar transparncia pblica

    de gesto com variados estgios de desenvolvimento.

    Hiptese 2: existe associao entre o desempenho dos indicadores socioeconmicos e

    o partido poltico do chefe do executivo das cidades pesquisadas e o estgio de

    desenvolvimento da transparncia digital dos governos.

    A partir das hipteses anunciadas acima, apresenta-se como desdobramentos e

    detalhamentos as seguintes hipteses secundrias:

    a) o ndice de desenvolvimento humano do municpio tem poder preditivo para

    explicar a transparncia digital;

    b) o produto interno bruto do municpio tem poder preditivo para explicar a

    transparncia digital;

    23

  • c) o nmero de habitantes do municpio tem poder preditivo para explicar a

    transparncia digital;

    d) o percentual de utilizao da internet entre a populao acima de 10 anos do

    municpio tem poder preditivo para explicar a transparncia digital;

    e) o percentual do analfabetismo tem poder preditivo para explicar a transparncia

    digital;

    f) o partido poltico do chefe do poder executivo tem efeito preditivo para explicar a

    transparncia digital.

    As variveis consideradas para a pesquisa deste trabalho so:

    a) variveis independentes ou explicativas: produto interno bruto, ndice de

    desenvolvimento humano, nmero de habitantes, insero da internet entre a populao

    acima de 10 anos, o percentual de analfabetismo do municpio e a inclinao partidria

    do prefeito.

    b) varivel dependente: ndice da transparncia digital de cada cidade pesquisada.

    2.2 PERCURSO METODOLGICO, CORPUS EMPRICO E MTODOS

    Os procedimentos metodolgicos que orientaram a realizao deste estudo, bem como

    de comprovao das hipteses levantadas foram organizados da seguinte forma:

    Etapa 1: pesquisa bibliogrfica para o aprofundamento terico dos pressupostos, das

    relaes e das influncias das temticas publicidade e visibilidade, democracia

    digital, sociedade da informao, governo local, transparncia e governo eletrnico;

    Etapa 2: caracterizao dos experimentos por meio de pesquisa nas ferramentas de

    busca da Internet, visando catalogar os sites oficiais das cidades que foram objeto de

    estudo;

    Etapa 3: estudo exploratrio com a finalidade de compreender fenmenos e

    experincias que pudessem fundamentar e/ou testar as hipteses, bem como auxiliar

    na elaborao e na validao do conjunto de indicadores que pudesse compor modelo

    de anlise do estgio de desenvolvimento da transparncia digital dos sites

    pesquisados;

    Etapa 4: coleta de dados atravs de navegao orientada nos sites das prefeituras das

    capitais brasileiras e do Distrito Federal visando acumular um conjunto de

    24

  • informaes, observaes e dados necessrios compreenso e anlise do problema.

    Foram escolhidas cidades por serem as instncias governativas mais prximas do

    cidado e as capitais em funo da posio poltica e econmica que representam para

    os estados;

    Etapa 5: anlise dos casos estudados levando em conta os parmetros definidos para a

    aferir o estgio de desenvolvimento da transparncia nos portais dos governos das

    cidades pesquisadas;

    Etapa 6: anlise comparativa dos casos, por meio da tcnica da estatstica descritiva e

    da anlise de regresso multivariada, visando verificar a existncia de associao do

    ndice de transparncia com os indicadores sociais, econmicos e polticos das

    respectivas cidades estudadas.

    A pesquisa exploratria parte integrante da pesquisa e tem carter de estudo

    preliminar realizado com a finalidade de melhor construir e adequar o instrumento de anlise

    da realidade que se pretendia conhecer (PIOVESAN; TEMPORINI, 1995). Esse tipo de

    pesquisa possibilita a compreenso das variveis de estudo, do significado e do contexto, bem

    como favorece a percepo da realidade tal como ela e no como o pesquisador pensa que

    seja.

    Foram estudados e analisados os casos dos portais de cada cidade. Para Yin (1987),

    esse tipo de pesquisa indicada quando o pesquisador no exerce controle sobre os eventos

    observados e quando o objeto a ser estudado refere-se a um fenmeno contemporneo que

    ocorre em um contexto real.

    A coleta dos dados e informaes do estudo emprico deu-se por meio de navegao

    orientada com base em um instrumento construdo a partir de subsdios classificados em

    aspectos essenciais, para as informaes e servios com previso legal e, aspectos

    necessrios, para aqueles que tivessem, em outros estudos, elementos para a comunicao

    poltica, a governana, a participao e o controle sociais, bem como a interao homem-

    mquina. De forma resumida, as trs dimenses de anlise (informaes gerais, informaes e

    servios tcnicos e informaes e servios especficos) foram assim consideradas:

    a) Aspectos essenciais: Constituio da Repblica Federativa do Brasil 1988; Lei n

    8.666/1993; Lei n 9.755/1998; Lei Complementar n 101/2000; Lei n 10.257/2001; Lei

    Complementar n 131/2009; Lei n 12.527/2011.

    25

  • b) Aspectos necessrios: Association of Government Accountants (2009); Bragatto

    (2008); Fundo Monetrio Internacional (2008); ndice Latino-americano de

    Transparncia Oramentria (2009); International Budget Partnership (2010); Jambeiro

    et al (2008); Kondo (2002); Lemos (2007); Macintosh; White (2008); Manual dos Dados

    Abertos (2011); Marques e Miola (2007); Indicadores e Mtricas para avaliao de e-

    servios (2007); West (2000); Prez, Bolvar e Hernndez (2008); Pinho (2008); Rover

    (2010); Santos (2004); Silva (2009); Valente (2004); Vaz (2003); Villela (2003); Welch e

    Hinnant (2003).

    Neste estudo, a navegao orientada foi a principal fonte de dados. Por meio desse

    tipo de navegao, foram estipulados a forma de transitar pelos links e pginas, assim como

    os critrios e parmetros para qualificar os objetos catalogados na navegao conforme as

    categorias validadas e estabelecidas na etapa da pesquisa exploratria. Como complemento

    navegao orientada, foram feitos testes e simulaes on-line para checar se os dispositivos

    encontrados nos sites estavam em funcionamento3.

    A interpretao dos dados coletados, inicialmente, passou por uma anlise qualitativa

    e, em seguida, baseou-se nos fundamentos da estatstica descritiva e da anlise de regresso

    multivariada. A estatstica descritiva tem por finalidade sumarizar, descrever e avaliar um

    grupo por meio de mtodos grficos e mtodos numricos (PETERNELLI, s/d).

    26

    3 Mais detalhes sobre a metodologia consultar o captulo 5 desta tese.

  • 2.3 MATRIZ METODOLGICA

    A partir da problemtica anunciada no incio desta seo apresenta-se, a seguir, matriz

    metodolgica com a finalidade de evidenciar a coerncia e a articulao dos objetivos

    propostos para esta pesquisa com os mtodos definidos para testar as hipteses.

    Objetivos Estratgias metodolgicas Resultados alcanados- - Introduo1) identificar, nas teorias da democracia, os aspectos que interessam ao argumento da Internet como modalidade de comunicao a ser empregada para o aperfeioamento das formas de governo democrticas, notadamente os mecanismos que favorecem a transparncia.

    Pesquisa bibliogrfica para o aprofundamento terico dos pressupostos, das relaes e das influncias das temticas publicidade e visibilidade, democracia digital, sociedade da informao, governo local, transparncia e governo eletrnico;

    Captulos 2 e 3.

    2) propor, por meio da reviso de literatura, parmetros e indicadores que permitam examinar o estado da transparncia digital do portais eletrnicos dos municpios pesquisados.

    Caracterizao dos experimentos por meio de pesquisa nas ferramentas de busca da Internet, visando catalogar os sites oficiais das cidades que foram objeto de estudo;Estudo exploratrio com a finalidade de compreender fenmenos e experincias que pudessem fundamentar e/ou testar as hipteses, bem como auxiliar na elaborao e na validao do conjunto de indicadores que pudesse compor modelo de anlise do estgio de desenvolvimento da transparncia digital dos sites pesquisados; Captulos 4, 5 e 6.

    3) avaliar o estgio de desenvolvimento das ferramentas de informao e comunicao digital utilizados pelos governos municipais com a finalidade de favorecer a transparncia pblica;

    Coleta de dados atravs de navegao orientada nos sites das prefeituras das capitais brasileiras e da capital do Distrito Federal visando acumular um conjunto de informaes, observaes e dados necessrios compreenso e anlise do problema.Anlise dos casos estudados levando em conta os parmetros definidos para a aferir o estgio de desenvolvimento da transparncia nos portais dos governos das cidades pesquisadas

    Captulos 4, 5 e 6.

    4) analisar, comparativamente, o desempenho da transparncia digital dos websites das prefeituras com os seus respectivos indicadores socioeconmicos e polticos para verificar a existncia de associao entre eles, bem como identificar os indicadores que melhor explicam o estado da transparncia.

    Anlise comparativa dos casos, por meio da tcnica da estatstica descritiva e da anlise de regresso multivariada, visando verificar a existncia de associao do ndice de transparncia com os indicadores sociais, econmicos e polticos das respectivas cidades estudadas.

    Captulo 7.

    - - Concluso

    27

  • 2.4 LIMITAES DA PESQUISA

    Um aspecto limitador que mesmo com reconhecimento vasta riqueza e diversidade

    de literatura que trata de democracia, publicidade e visibilidade, democracia digital, sociedade

    da informao, governo local, transparncia e governo eletrnico, devem-se considerar as

    restries inerentes tentativa de compreender um fenmeno to complexo e que est em

    pleno desenvolvimento. Outro fator limitante que a observao do emprego das tecnologias

    pelos governos tem recebido contribuies de diversas reas do conhecimento (Comunicao,

    Administrao, Cincia da Informao, Cincia Poltica, Sociologia, Cincias da

    Computao). Isso ao mesmo tempo bom, pois permite uma anlise mais ampla do

    fenmeno, mas um elemento dificultador, pois torna ainda mais complicada a integrao das

    diferentes metodologias de anlise desenvolvidas para a compreenso do objeto.

    Empiricamente, ressalta-se limites quanto coleta de dados e informaes, devido ao

    estudo se concentrar unicamente na anlise das evidncias dos portais, sem realizar

    entrevistas com agentes da prefeitura ou com usurios dos websites. Como medida para

    minimizar esse limite, apostou-se na robustez e no rigor de um modelo de anlise. Ainda se

    pode considerar um aspecto limitante a temporalidade da pesquisa, por no apresentar um

    carter longitudinal. Espera-se que pesquisas futuras adicionem esse carter ao estudo da

    transparncia digital.

    Finalmente, o fator mais delicado a exiguidade de tempo para elaborao, anlise e

    concluso de uma pesquisa de doutorado. Esse o elemento que limita uma maior imerso do

    pesquisador. Contudo, como a cincia e a pesquisa tm a dicotomia como trao essencial,

    nessa hora cabe ao pesquisador escolher o que se apresenta com maior relevncia e exercer,

    com rigor e tica, a descrio do fenmeno assumido sabendo reconhecer os aspectos

    limitantes e potenciais dos resultados para estudos futuros.

    28

  • 3 DEMOCRACIA E INFORMAO

    Este captulo est constitudo por cinco sees. A primeira tem por objetivo apresentar

    o contexto da democracia contempornea, tranando as interfaces entre o modelo hegemnico

    e os modelos alternativos de democracia, e est denominada de O contexto da democracia

    contempornea. Na segunda seo, chamada Democracias locais, so abordadas as

    implicaes da democracia contempornea para o governo das cidades. Na terceira seo, sob

    o ttulo Publicidade: a base do poder visvel, o objetivo traar as bases da publicidade sob

    dois ngulos: (a) a que trata da publicidade como um valor oposto ao segredo e (b) a que

    vincula publicidade a noo de esfera pblica. Em Acesso informao governamental: um

    requisito para a democracia, h um esforo para tratar do acesso informao como um

    direito fundamental, bem como discutir os seus princpios e o seu estado atual. Finalmente, na

    seo Transparncia como a melhor forma de governana, a tentativa traar um panorama

    histrico e conceitual com nfase nos tipos e variaes da transparncia, tratando da

    transparncia como prtica da boa governana.

    3.1 O CONTEXTO DA DEMOCRACIA CONTEMPORNEA

    A democracia contempornea surgiu como resposta ao problema da quantidade

    populacional e da extenso territorial. Sua difuso alcanou os pases ocidentais, por ser

    compreendida como a melhor forma de governo. A principal distino entre a democracia

    moderna e a democracia antiga (direta), segundo Bobbio (2000), refere-se forma de

    governo. Na primeira, prevalece a noo de que democracia sinnimo de governo exercido

    diretamente pelos cidados. Na segunda, em razo do surgimento das sociedades complexas,

    da ampliao da noo de cidadania e da incluso do povo entre os cidados chamados a

    escolher, o exerccio do poder se d pela mediao dos seus representantes. a denominada

    de democracia representativa.

    Sabe-se que, nos dias atuais, o exerccio do poder direto pelo cidado revela-se numa

    aplicao impossvel, em face de inmeros aspectos de vo desde a quantidade de cidados,

    passam pela estrutura governamental capaz de suportar tal empreendimento, at a vasta

    29

  • extenso territorial do Estado brasileiro. Esse problema no exclusivo da sociedade

    moderna. Na Grcia antiga, bero da democracia, a noo de democracia como melhor forma

    de governo era restrita. A participao na vida poltica era exclusiva daqueles que detinham o

    direito ou o privilgio de exercer o poder de deciso. Arendt (1991) destaca que a participao

    nas atividades polticas era um direito especial dos homens livres por serem detentores de

    posses e estarem livres de preocupaes relativas aos meios de sobrevivncia. Assim,

    diferentemente dos escravos e das mulheres (que no tinham o direito de participar dos

    assuntos da polis), os homens livres no tinham obrigaes manuais e podiam se dedicar

    produo de ideias e decises polticas. O que diferencia substancialmente uma concepo da

    outra que, na democracia grega, o princpio da igualdade no se traduzia como um dos

    fundamentos democrticos.

    Na perspectiva moderna, o direito igualdade entre os homens (mesmo conceito

    absorvido pela Revoluo Francesa em 1789 atravs do lema igualdade, liberdade e

    fraternidade) surge e ganha fora num momento histrico bastante propcio, pois ocorria a

    formao dos Estados ocidentais acompanhada do movimento opositor soberania do

    prncipe. Nesse mesmo tempo histrico, desenvolveram-se as teorias da democracia fundadas

    na soberania popular. Bobbio (1999, p. 87) acrescenta que a democracia foi um modelo que

    restou no tempo com forte intensidade nos momentos de gestao de uma nova ordem como

    modelo ideal do governo pblico em pblico.

    Conforme dito anteriormente, a democracia contempornea caracterizada pela

    representao poltica, isto , por uma forma de representao na qual o representante, sendo

    chamado a perseguir os interesses da nao, no pode estar sujeito a um mandato

    vinculado (BOBBIO, 1997, p. 24). Ainda segundo o mesmo autor, a representao poltica

    a anttese do princpio da representao dos interesses, em que o representante, devendo

    atender aos interesses particulares do representado, est sujeito a um mandato vinculado.

    Em complemento s ponderaes feitas ao instituto da representao, Marques (2008)

    aponta que os pensadores clssicos da democracia liberal4 atriburam valor superior aos

    princpios da prestao de contas e da visibilidade do poder, bem como delimitao da ao

    participativa do cidado aos momentos de eleio. Segundo Jambeiro e Borges (2010), os

    expoentes do pensamento liberal defendem que o ponto nuclear da democracia liberal a

    30

    4 Outra forma de se referir democracia moderna.

  • constituio de um arranjo institucional que permite a construo das decises polticas por

    aqueles que chegam ao poder pela luta competitiva dos votos. O processo decisrio ficaria

    restrito s elites, aos que so considerados capacitados para tal. Para essa corrente

    democrtica, altos nveis de participao popular poderiam gerar instabilidade ao sistema. O

    nvel de participao desejvel aquele que faz a mquina funcionar, e qualquer outra

    interferncia da esfera civil nas decises polticas negativa ao processo

    democrtico (JAMBEIRO; BORGES, 2010, p. 127).

    Pouco antes da segunda metade do sculo XX, esse modelo comeou a ser alvo de

    crticas, por no dar conta das novas configuraes que a sociedade ganhava. No difcil

    encontrar autores que levantam a bandeira de que a democracia estaria passando por uma

    crise ou, pelo menos, por uma instabilidade. Contudo h outros pensadores que acreditam que

    a democracia nunca esteve to bem. Para Bobbio (2000), apesar de a democracia no mundo

    no estar gozando de tima sade, no foi suplantada pelos regimes ditatoriais desde a

    Segunda Guerra Mundial. O que houve foi o contrrio: pases ditatoriais lutaram para instalar

    o regime democrtico.

    Norris (2001), ao analisar o debate em torno da crise do sistema poltico, afirma que o

    que ocorre uma tenso entre a ampliao das expectativas do cidado moderno em relao

    efetivao dos ideais democrticos e a capacidade real do Estado de atender s demandas que

    lhe so apresentadas. A sociedade passa a colocar em questo demandas reprimidas, ou

    mesmo, demandas que no existiam at ento. Essa dinmica gera para os governos novas

    perspectivas de ao para a oferta do servio pblico. Dessa feita, por no estarem preparados

    para atender a essas demandas com as condies desejadas pela sociedade, gerada uma

    sensao de crise do sistema poltico.

    Gomes (2005) explica que o que ocorre no uma crise da democracia, haja vista que

    nunca se teve notcia de tantos regimes democrticos em processo e tanta valorizao dos

    princpios democrticos no mundo como nos dias atuais. H, no seu entendimento, dficits no

    regime democrtico moderno, notadamente, em relao participao democrtica que

    resulta: na apatia dos eleitores (que leva ao declnio dos ndices de engajamento cvico), no

    distanciamento entre sociedade poltica e a esfera civil, na queda da confiana na sociedade

    poltica e na informao poltica distorcida. O que se pode notar um aumento do debate em

    torno da necessidade de reformas e melhorias no sistema democrtico, pois um fenmeno

    perceptvel nas discusses sobre democracia o distanciamento entre a esfera poltica

    31

  • (domnio no qual so produzidas as decises no mbito do Estado) e a esfera civil (domnio

    que legitima o poder da esfera poltica).

    Nesse contexto, surgem modelos alternativos ao modelo liberal de democracia com

    reivindicaes de maiores inputs civis na vida pblica. Um dos primeiros surgiu a partir dos

    anos 70 com a denominao de democracia participativa e um mais recente, data dos anos 90,

    e vem sendo chamado de democracia deliberativa (HELD, 2009; HABERMAS, 1995). H

    dois pontos comuns e fundamentais nesses modelos: (1) criticam o modelo liberal e o papel

    que dado ao cidado na democracia representativa e (2) propem reformas que visem

    maiores oportunidades de participao do cidado na vida pblica (SILVA, 2009).

    Esses modelos alternativos, para Gomes (2007b), renovaram e avanaram, em pelo

    menos trs ou quatro dcadas, a hegemonia do modelo elitista do sculo passado,

    [...] na direo do acolhimento de agendas mais decididamente interessadas em valorizar e reconhecer a cidadania em sua relao com o Estado ou em incluir a justia social como parte do projeto de justia poltica. Temas do passado, como autogoverno, soberania popular, participao do povo, engajamento cvico, opinio pblica, justapem-se a ideias recentes como esfera pblica, deliberao civil, controles sociais do governo, visibilidade, formando uma torrente direcionada retomada do Estado pela sociedade civil (GOMES, 2007a, p. 17-18).

    Dahl (2001) advoga que, para o bom funcionamento da democracia representativa

    moderna, sua manifestao deveria ir alm das eleies. O autor acrescenta que necessria a

    existncia de outras instituies polticas bsicas. Essas instituies abrangeriam os seguintes

    mecanismos:

    governantes eleitos: os cidados escolhem os seus representantes nas esferas

    legislativa e executiva, delegando-lhes poder temporrio para as decises de governo;

    eleies livres, idneas e frequentes: realizao de eleies nas pocas previstas, de

    forma harmnica e pacfica e sem coeres ou ameaas aos eleitores um dos sinais

    mais peculiares da democracia;

    liberdade de expresso: a condio essencial para que as pessoas participem de fato

    da vida poltica e para que alcancem esclarecimento das aes do governo;

    variedade de informao: est ligada liberdade de expresso, aos direitos de

    informao previstos legalmente e diz respeito, principalmente, aos meios de

    comunicao;

    32

  • liberdade de formar e aderir a organizaes: diz respeito ao direito de pessoas

    formarem grupos, organizaes ou entidades, como partidos polticos, sindicatos a fim

    de obter direitos necessrios ao funcionamento das instituies polticas democrticas;

    cidadania inclusiva: todos os direitos anteriores devem ser estendidos a todos os

    cidados adultos residentes permanentemente no pas. A noo de cidadania expressa

    pela ideia republicana de que as pessoas que fazem parte da sociedade democrtica

    detm direitos polticos e jurdicos iguais e so portadores, individualmente, de uma

    frao da soberania.

    J Bucy e Gregson apud Gomes (2005, p. 216-217) apontam que os requisitos

    necessrios para uma democracia satisfazer a questo da participao civil em um nvel

    socialmente aceitvel so:

    a) um volume adequado de conhecimento poltico estrutural e circunstancial, um estoque apropriado de informaes no distorcidas e relevantes, suficientes para habilitar o cidado a nveis adequados de compreenso de questes, argumentos, posies e matrias relativas aos negcios pblicos e ao jogo poltico; b) possibilidade, dada aos cidados, de acesso a debates pblicos j comeados e possibilidade de iniciar novos debates desta natureza, onde a cidadania deveria exercitar a oportunidade de envolver-se em contraposies argumentativas, de desenvolver os seus prprios argumentos, de envolver-se em procedimentos deliberativos no interior dos quais pode formar a prpria opinio e deciso polticas; c) meios e oportunidades de participao em instituies democrticas ou em grupos de presso - mediante aes como voto, afiliao, comparecimento a eventos polticos ou atravs de outras atividades polticas nacionais ou locais; d) habilitao para e oportunidades eficazes de comunicao da esfera civil com os seus representantes (em nvel local, nacional ou internacional) e para deles cobrar explicaes e prestao de conta.

    Na perspectiva habermasiana, o funcionamento da democracia numa sociedade

    descentralizada deve estar sustentado em dois pilares: (1) a institucionalizao dos requisitos

    necessrios e dos procedimentos para estabelecer a comunicao entre os cidados e (2) a

    interseco entre a tomada de deciso institucional e a opinio pblica racionalizada.

    Habermas apud Maia (2008) assume que a teoria de democracia deliberativa baseia-se em

    dois planos dependentes: um relativo ao processo de institucionalizao da constituio da

    vontade pblica e o outro relativo regulao dos procedimentos democrticos orientados

    para a tomada de deciso da esfera poltica.

    De modo geral, o que se v nas teorias democrticas so modelos democrticos que

    enfatizam diferentes valores que no so totalmente antagnicos, pelo contrrio, parecem se

    complementar. Na concepo liberal, valoriza-se a proteo dos direitos, da liberdade e da

    33

  • autonomia do indivduo. Na perspectiva participacionista, defendem-se altos nveis de inputs

    do cidado no processo de tomada de deciso que, em seu nvel extremo, se aproximam da

    democracia direta. A perspectiva deliberacionista d importncia existncia de espaos

    prprios e adequados para uma discusso poltica de qualidade que possa alcanar a

    deliberao pblica entre seus participantes.

    Segundo Silva (2009), apesar da hegemonia da corrente liberal, h em funcionamento

    mecanismos de participao e deliberao que demonstram a coexistncia de dispositivos

    mistos que acomodam publicidade, accountability, deliberao pblica e representao

    fiduciria e delegativa com processo de votao ao final para a tomada de deciso. Assim,

    independente das reivindicaes liberais, deliberativas ou participacionistas e respeitados

    limites de cada modelo, assume-se que, no contexto da democracia contempornea, interessa

    o aperfeioamento dos mecanismos que visam ampliar e fortalecer a democracia.

    3.2 DEMOCRACIAS LOCAIS

    Tendo em vista a finalidade deste estudo, faz-se necessrio compreender minimamente

    a influncia dos postulados da democracia moderna no funcionamento governamental das

    cidades. Uma vez que nas cidades que se concentram os homens, suas necessidades e

    possibilidades de toda a espcie, so tambm as cidades o lcus onde est reunida grande

    capacidade de organizao e transformao da sociedade. Bobbio (1999, p. 88) destaca que,

    juntamente com os estudos das teorias do governo democrtico, desenvolveu-se

    [...] um outro tema estreitamente ligado ao do poder visvel: o tema da descentralizao entendida como revalorizao da relevncia poltica da periferia com respeito ao centro. Pode-se interpretar o ideal do governo local como um ideal inspirado no princpio segundo o qual o poder tanto mais visvel quanto mais prximo est.

    Dessa forma, o autor destaca que a visibilidade no se limita apenas apresentao em

    pblico de quem est investido do poder, mas depende da proximidade espacial entre o

    governante e o governado. Assim, tem-se nas cidades o nvel de governo que grande parte das

    atividades e dos servios necessrios legitimao da cidadania ofertada educao, sade,

    saneamento, transporte pblico, coleta de lixo, iluminao pblica etc. Como responsveis

    pela promoo do desenvolvimento social, espera-se que os agentes pblicos municipais

    34

  • operem em bases que convirjam para o mesmo ponto trs necessidades: entender a

    informao como matria-prima para o desenvolvimento das estratgias e polticas

    pblicas; fomentar maior transparncia nas relaes pblico-privadas, com nfase no controle

    social dessas relaes; e, por consequncia, reduzir a burocratizao dos processos decisrios

    e da execuo das decises, evitando as disfunes outrora observadas em muitas esferas da

    gesto pblica.

    A cidade, portanto, , ao mesmo tempo, sujeito e objeto. objeto por existir

    materialmente. sujeito porque exerce influncia sobre os seus habitantes tanto em termos de

    atitudes e quanto de impulsos. Como o homem utiliza e molda a cidade, a cidade faz o mesmo

    (BEAUJEAU-GARNIER, 1980). O crescente processo de urbanizao gerou novas e ampliou

    antigas demandas por bens e servios, o que imps cidade novos desafios (LEAL IVO,

    2000).

    No Brasil, observa-se que as ltimas dcadas foram marcadas por profundas mudanas

    polticas e institucionais. A nova Constituio 1988 desencadeou o processo de

    redemocratizao do pas e estabeleceu uma ampla agenda de reformas econmicas

    estruturais que culminou na adoo de polticas de liberalizao econmica e a privatizao

    de empresas estatais. Nesse mesmo perodo, assistiu-se a uma crescente transferncia de

    responsabilidades e de competncias do governo nacional para os governos locais. Essas

    alteraes impulsionaram profundas transformaes nas instituies de governo local do pas,

    que modificaram o sistema de decises municipais e as prticas dos atores polticos. Santos

    Jnior (2000, p. 27) expe que,

    desde ento, verifica-se um crescente e generalizado processo de fortalecimento da esfera local de governo, centrado na descentralizao e na municipalizao das polticas pblicas. Tal processo tem ensejado mudanas na organizao e no funcionamento dos governos locais, que tm sido incorporadas de forma diferenciada segundo as diretrizes adotadas e o grau de instituio tanto de canais de gesto democrtica como de instrumentos redistributivos da renda e da riqueza produzidas nas cidades.

    A perspectiva da descentralizao municipal tem sido empregada com frequncia na

    literatura para designar os processos de municipalizao poltica e de descentralizao

    administrativa, significando uma ampliao das competncias e dos recursos disposio dos

    municpios. Sobre esse processo, Santos Jnior (2000) explica que, por um lado, mediante

    uma clara oposio aos processos de centralizao, a perspectiva da descentralizao se

    35

  • identifica com a cultura democrtica contempornea, em que descentralizar sinnimo de

    democratizar. Por outro, ela est intrinsecamente vinculada noo de autonomia municipal,

    compreendida como a proteo legal capacidade de auto-organizao, s competncias

    exclusivas e especficas, ao direito de agir em todos os campos de interesse geral da cidadania

    e disponibilidade de recursos prprios no condicionados (CASTELLS; BORJA, 1996, p.

    158).

    A discusso central decorrente da descentralizao municipal e da autonomia local diz

    respeito proximidade entre governo e cidados, que pressupe a existncia de uma possvel

    relao direta e imediata da organizao representativa com o territrio e a

    populao (CASTELLS; BORJA, 1996, p. 158), bem como sujeita esfera local a um maior

    controle pblico do que a federal e a estadual (MELLO, 1986).

    Apesar de ser a perspectiva dominante, Santos Jnior (2000) discute a existncia de

    autores que questionam as virtudes da descentralizao. O primeiro contraponto refere-se

    questo da proximidade do governo local com os cidados. Esse argumento no seria

    elemento suficiente para garantir nem maior democracia e participao nem tampouco maior

    eficincia e eficcia administrativas. Acrescenta que,

    no plano conceitual, o argumento mais importante diz respeito ao fato de que a descentralizao poderia pr em risco a capacidade do Estado de coordenar as polticas pblicas a partir de objetivos mais inclusivos e de diagnsticos mais gerais, na medida em que atores privados inseridos no mercado teriam mais fora para se apropriar de partes do aparelho estatal no mbito municipal e impor seus interesses particulares (SANTOS JNIOR, 2000, p. 48).

    Para o segundo contraponto, Abu-El-Haj (1999) organiza e sintetiza os argumentos de

    Peter Evans e Diterich Ruerschemeyer: (1) o aumento da descentralizao estaria relacionado

    complexificao social e a consequente diversificao de interesses, que resultaria no

    crescimento institucional da mquina estatal para atender s novas funes e demandas; (2) a

    complexificao social e o crescimento institucional trariam como consequncia maior

    distanciamento entre os nveis inferiores da estrutura governamental e a cultura

    organizacional do setor pblico, o que tornaria difcil tanto a coeso interna quanto o esprit de

    corps to necessrio conscincia da sua misso institucional; (3) as incompatibilidades

    criadas pelas antigas e novas estruturas do setor pblico colocariam em risco a coordenao

    administrativa e o carter universalista e integrador das polticas pblicas.

    36

  • A tentao da centralizao dos processos governamentais (e de poder) foi suplantada

    por novos modelos de gesto pblica baseados na autonomia, na agilidade, na participao, no

    conhecimento e na horizontalizao do processo decisrio. Sem falar dos inmeros

    dispositivos tecnolgicos que fazem com que o processo de trocas infocomunicacionais

    superem as barreiras de tempo e espao.

    Osborne e Gaebler (1998) reforam as vantagens da descentralizao no setor pblico:

    (1) as instituies descentralizadas so muito mais flexveis que as instituies centralizadas e

    podem responder com muito mais rapidez a mudanas circunstncias ou nas necessidades dos

    usurios por estarem mais prximas deles e terem o conhecimento in loco da realidade; (2) as

    instituies descentralizadas so muito mais eficientes que as centralizadas, pois o contato

    direto com as dificuldades e os problemas as habilitam a tomar decises mais adequadas

    dificuldade encontrada; (3) as instituies descentralizadas so muito mais inovadoras que as

    instituies descentralizadas na medida em que grande parte das boas ideias surge entre

    aqueles agentes que lidam diretamente com os usurios e no entre aqueles que esto no topo

    dentro da hierarquia governamental; (4) as instituies descentralizadas tm moral elevado,

    so mais comprometidas e produtivas.

    Historicamente, as lutas da sociedade contra o poder centralizador avanaram o

    processo democrtico. A centralizao, no plano governamental, muitas vezes ilusria,

    imagine um modelo baseado no controle central das polticas pblicas do Brasil! Um pas

    com dimenses continentais como o Brasil no conseguiria justapor poder centralizador com

    desenvolvimento. Assim, conforme Osborne e Gaebler (1998, p. 277), necessria uma

    gesto participativa para trazer o controle de volta s mos daqueles que se encontram na

    ponta mais baixa da hierarquia, onde as coisas, de fato acontecem, os lderes empreendedores

    empregam um variado nmero de estratgias. Obviamente, a partir do emprego do poder

    descentralizado, os governos devem implementar estratgias de controle que visem garantir

    um efetivo acompanhamento e monitoramento interno e externo de todo o processo. Outro

    esforo o da articulao das misses, da criao de culturas internas em relao aos valores

    fundamentais e tambm no que se refere prtica da mensurao (e publicao) dos

    resultados.

    Por conseguinte, mesmo que os meios de comunicao de massa e os mediados por

    tecnologias da informao tenham encurtado as distncias entre o eleito e os seus eleitores, de

    acordo com Bobbio (1999, p. 88), o carter pblico do parlamento nacional indireto,

    37

  • efetuando-se, sobretudo atravs da imprensa, da publicao das atas parlamentares ou das leis

    e de outras providncias no Dirio Oficial. J no governo de uma cidade, o carter pblico

    mais direto, e essa proximidade ocorre exatamente porque d maior visibilidade dos

    administradores e das suas decises. Ou ento, pelo menos, uma das razes de que sempre se

    valeram aqueles que defendem o governo local o argumento da restrio e multiplicao

    dos centros de poder (BOBBIO, 1999, p. 88) pode ser traduzida como uma maior

    possibilidade de o cidado de colocar os olhos nos negcios pblicos e deixar o mnimo

    espao ao poder invisvel.

    3.3 PUBLICIDADE: A BASE DO PODER VISVEL

    Por muito tempo considerado a essncia da arte de governar, o segredo um dos

    captulos que no podia faltar nas reflexes sobre poltica de sculos passados. Conforme

    Canetti (1960), o segredo est no ncleo do poder. Assim posto, o segredo representa um

    jogo em que seu praticante deve ter inteligncia e acurcia, alm de deter a conscincia de que

    a sua sobrevivncia depende da rapidez como pratica as suas aes. O silncio um

    mecanismo de dissimulao do segredo que apreciado ao mostrar-se mudo sem ser

    emudecido. O silncio produzido pelo ato de saber ouvir pressupe conhecimento daquilo que

    se ouve. Como arte e como tal, o segredo aperfeioado, por isso, no deve ficar eternamente

    envolto no silncio. Portanto, o autor refora que necessrio o seu refinamento sob disfarce:

    saber o que pode ser dito, como deve ser dito e o que se deve ocultar.

    Para Canetti (1960), a medida do poder a medida do quanto de segredo um homem

    guarda. Assim, acrescenta, o homem precisa deter um sistema no qual o segredo esteja

    protegido mutuamente. Enquanto nos regimes ditatoriais o poder sustentando, em boa parte,

    na fora do segredo, nas democracias, so raros atos e fatos que podem ocorrer em segredo. A

    concentrao do segredo o que torna explosivas as ditaduras, pois todos que vivem sob esse

    regime se sentem vigiados.

    De acordo com o que foi apresentado na seo anterior, pode-se depreender que,

    independente do enfoque que se d teoria democrtica moderna, fundamental a existncia

    da visibilidade do poder para o controle pelos concernidos. A ideia de democracia como

    governo visvel ocupa um lugar-comum nos velhos e novos discursos (BOBBIO, 1997, p.

    83). Todavia, historicamente, essa abordagem no foi a mesma desde a sua origem dentro da

    38

  • teoria poltica. Ao se tratar do poder visvel para a democracia, facilmente vem mente a

    realidade histrica descrita por escritores polticos que buscaram, no exemplo grego, a

    "gora" reunio dos cidados livres num lugar pblico para discutir e apresentar propostas

    relacionadas ao interesse pblico; denunciar abusos ou pronunciar acusaes; e deliberar,

    erguendo as mos ou mediante cacos de terracota retratar a natureza da democracia.

    Nos dias atuais, as possibilidades comunicativas das tecnologias de informao e

    comunicao configuram-se um desafio para os governos explorarem as mltiplas formas de

    publicidade. Os portais eletrnicos na internet so dispositivos de comunicao em larga

    escala, com custo relativamente baixo, com funcionalidades que permitem dilogos

    horizontais, com alta capacidade de armazenamento de informaes e de acesso aberto ao

    pblico de qualquer lugar e a qualquer tempo. Todas essas inovaes seriam alternativas para

    tornar os governos mais capazes de publicizar uma gama de informaes governamentais e de

    interesse pblico, que antes estavam enclausuradas fisicamente e distantes do olhar e do

    conhecimento pblico.

    Para o estudo da transparncia no ambiente digital, inevitvel compreender o que

    representa o princpio da publicidade para a democracia moderna e para a comunicao

    poltica. Assim, torna-se necessrio refletir sobre a publicidade numa perspectiva histrica

    para colaborar com os objetivos desta tese. Foram identificadas na literatura duas abordagens

    indispensveis para a compreenso do fenmeno: (a) a que trata da publicidade como um

    valor oposto ao segredo e (b) a que vincula publicidade a noo de esfera pblica.

    3.3.1 Publicidade como anttese do segredo

    Para entender o princpio da publicidade como um conceito oposto ao segredo no

    funcionamento dos governos, faz-se necessrio buscar, na origem etimolgica do termo, o seu

    significado.

    A palavra publicidade tem origem no latim publicus. Pode significar popular,

    pblico, aberto, da sociedade em geral, de interesse geral. Segundo o Dicionrio Houaiss da

    Lngua Portuguesa (2001), uma adaptao do francs publicit (empregado pela primeira

    vez em 1694). Na lngua portuguesa, designa o ato de divulgar, de tornar pblico.

    Modernamente, Rabaa e Barbosa (1987) identificaram o seu uso no dicionrio da Academia

    Francesa, em sentido jurdico. O termo publicit referia-se publicao (afixao) ou

    39

  • leitura de leis, ditos, ordenaes e julgamentos. Tambm entendido como carter do que

    pblico, do que no mantido em segredo, propriedade do que conhecido; conjunto de

    meios utilizados para tornar conhecido um produto, uma empresa industrial ou comercial.

    Na filosofia, o termo pblico ganha variaes na obra de Kant, conforme Davis

    (1992). O autor relata que os textos de Kant contm discusses variadas sobre a noo de

    pblico. Em A paz perptua, o autor faz uma ligao entre publicidade e direito, afirmando

    que todas as aes relativas ao direito so injustas, se sua mxima no for coerente com a

    publicidade5 (KANT apud DAVIS, 1992, p. 170). Na verso preliminar do ensaio de A paz

    perptua, Kant esclarece que aquilo que no se pode confiar o anncio publicamente como

    uma mxima, sem que se torne impossvel agir segundo a mxima, est em conflito com o

    direito pblico. Assim, a pretenso jurdica deve ter a possibilidade de ser publicada, para que,

    por esse mecanismo, proporcione um critrio a priori da razo, da utilizao, do

    conhecimento e a harmonia do direito das gentes. Alm da obra anterior, Davis (1992) extrai

    de O que o Iluminismo? outros grupos de pblicos. O autor localiza seis grupos diferentes

    com papis especficos no julgamento da moralidade das aes polticas por meio do

    princpio da publicidade6. Conforme Gutmann e Thompson (1997), para Kant, a publicidade

    a amiga principal e mais valiosa da accountability democrtica e, em um governo autocrtico,

    as suas aes so justificadas debaixo do manto do segredo e do poder, pela aplicao de

    decises revelia do olhar do pblico.

    Bentham (1843, p. 2) identifica o princpio da publicidade como um mecanismo

    essencial para a estabilidade de um bom governo

    que a poltica secreta se preserva de alguns inconvenientes, no vou negar, mas creio que, a longo prazo, ela cria mais do que evita, numa situao em que de dois governos, um dos quais deveria seria realizado secretamente e o outro abertamente, este possuiria uma fora, um nimo, e uma reputao que torn-lo-ia superior a todas as dissimulaes dos outros.7

    Alm da razo apresentada, Bentham (1843) acrescenta outras para justificar a

    publicidade no sistema poltico. A primeira diz respeito fora coerciva que tem a

    40

    5 Traduo livre do original em ingls: All actions relating ti the right of other men are unjust if their maxim is not consistent with publicity.6 Sobre os diferentes grupos de pblico de Kant, ver Davis (1992).7 Traduo livre do original em ingls: that a secret policy saves itself from some inconveniences I will not deny; but I believe, that in the long run it creates more than it avoids; and that of two governments, one of which should be conducted secretly and the other openly, the latter would possess a strength, a hardihood, and a reputation which would render it superior to all the dissimulations of the other.

  • publicidade para constranger os representantes ou membros da assembleia ao cumprimento do

    seu dever. A segunda razo refere-se capacidade de assegurar a confiana e o consentimento

    popular s medidas tomadas na legislatura. A terceira razo refere-se possibilidade dos

    governantes tomarem conhecimento das vontades dos governados. A quarta razo diz respeito

    necessidade da publicidade como meio para habilitar os eleitores no processo decisrio nos

    momentos de eleio. E, por fim, a quinta razo o fornecimento de uma variedade de meios

    para o pblico ter acesso s informaes pblicas.

    Apesar de extrair vantagens da publicidade, Bentham aponta limites controversos para

    sua adoo que procuram explicar as razes pelas quais os governos tendem resisti-la. A

    essncia das restries est vinculada ao receio de que a publicidade crie um tipo de

    vigilncia populista ou que produza tribunais populares (SILVA, 2009, p. 115). Entre elas,

    cabe destacar: (1) o pblico no tem conhecimento suficiente para julgar os procedimentos da

    assembleia poltica e, como consequncia, a publicidade gera paixes e demagogia; (2) a

    busca pela popularidade levaria os representantes produzirem debates apaixonados

    desprovidos da racionalidade to necessria ao processo poltico.

    Segundo Silva (2009), o argumento de Bentham para contrapor as resistncias a

    crena no modelo representativo. Gutmann e Thompson (1997) rebatem essa contraposio

    com o argumento de que o cidado pode no ter a mesma capacidade que os agentes pblicos

    no trato dos negcios do governo, mas so capazes o suficiente para julgar o trabalho dos

    agentes pblicos. E acrescentam, se o cidado no consegue fazer um julgamento coerente,

    por lhe faltar informao crtica que omitida pelos agentes pblicos. Apesar dessa posio,

    os autores reconhecem que, para Bentham, as democracias modernas tm na publicidade um

    poderoso instrumento de sano.

    Em acrscimo s razes j apresentadas para a manuteno do segredo, Gutmann e

    Thompson (1997) reconhecem a necessidade do segredo para a efetivao de algumas

    polticas. S para exemplificar algumas, citam as informaes relativas ao funcionamento do

    Estado com carter confidencial e que seu vazamento pode gerar riscos para a segurana

    nacional ou mesmo afetar o estado geral da populao com situaes de pnico. A publicao

    de informaes privilegiadas sobre a poltica econmica do pas para determinadas empresas

    ou para fins especuladores. No campo do processo jurdico, o acesso ao contedo de

    processos ou de investigaes poderia influenciar na produo de provas, o que afetaria o

    resultado final da apurao. No poderia ser deixado de citar as questes concernentes ao

    41

  • direito privacidade. H informaes pessoais, que embora suscitem a curiosidade e o

    espetculo, no dizem respeito aos interesses coletivos (CHEVALLIER, 1988; BOBBIO,

    1999; PRAT, 2003).

    Dessa forma, assume-se que o carter pblico do funcionamento do Estado a regra e

    o segredo deve ser exceo e, como tal, no deve tornar a regra menos importante, j que a

    sua manuteno deve ser, por tempo limitado, independente das medidas de exceo.

    Na sequncia, a publicidade ser analisada a partir da noo de esfera pblica.

    3.3.2 Publicidade como conceito vinculado esfera pblica

    Para estabelecer a vinculao do conceito de publicidade com a noo de esfera

    pblica, faz-se necessrio buscar o sentido do termo esfera pblica, que a priori, se mostra

    polissmico. A expresso esfera pblica tem origem no termo em alemo ffentlichkeit,

    que traduzido para o idioma ingls converteu-se em public sphere. Conforme Gomes

    (2007b), essas apropriaes geraram uma certa perda do sentido, se comparado ao termo

    correspondente espontneo, publicidade. A ffentlichkeit a propriedade comum a todas as

    coisas que so abertas, descobertas, disponveis, acessveis. Nesta perspectiva, esfera

    pblica e publicidade podem ser vistas como expresses intercambiveis, desde que se

    percebam quais as suas faces internas (GOMES, 2007a, p. 52).

    Numa anlise detida de duas obras de Habermas (Mudana estrutural da esfera pblica

    e Direito e democracia), Gomes (2008a) destaca o entendimento do autor sobre esfera pblica

    e sublinha as suas nuances. Como uma tentativa de sumarizar as ideias