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DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA ESTRANGEIRAS MARÍLIA MEZZOMO RODRIGUES TRADUÇÃO E LEGENDAGEM DO DOCUMENTÁRIO LE PROCÈS CÉLINE: UMA ANÁLISE EM RETROSPECTO FLORIANÓPOLIS 2018

DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA ESTRANGEIRAS · Em 2014, o documentário Le Procès Céline (FRA. Dir.: Antoine de Meaux, 2011) foi traduzido e legendado do francês para o português,

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DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA ESTRANGEIRAS

MARÍLIA MEZZOMO RODRIGUES

TRADUÇÃO E LEGENDAGEM DO DOCUMENTÁRIO LE PROCÈS CÉLINE:

UMA ANÁLISE EM RETROSPECTO

FLORIANÓPOLIS

2018

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MARÍLIA MEZZOMO RODRIGUES

TRADUÇÃO E LEGENDAGEM DO DOCUMENTÁRIO LE PROCÈS CÉLINE:

UMA ANÁLISE EM RETROSPECTO

FLORIANÓPOLIS

2018

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)

apresentado para a obtenção do grau de

Bacharel em Língua e Literatura

Francesas, na Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC)

Orientadora: Profa. Dra. Noêmia

Guimarães Soares

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Rodrigues, Marília Mezzomo Tradução e legendagem do documentário Le Procès Céline : uma análise em retrospecto / Marília Mezzomo Rodrigues ;orientadora, Noêmia Guimarães Soares, 2018. 32 p.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -Universidade Federal de Santa Catarina, Centro deComunicação e Expressão, Graduação em Letras Francês,Florianópolis, 2018.

Inclui referências.

1. Letras Francês. 2. Tradução Audiovisual, Skopos,Legendagem, Tradução Amadora. I. Guimarães Soares, Noêmia .II. Universidade Federal de Santa Catarina. Graduação emLetras Francês. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, profa. dra. Noêmia Guimarães Soares, de quem tive o

privilégio de ser aluna em língua francesa, linguística, estudos da linguagem,

literatura, leitura expressiva e dramática, tradução. Tantas coisas aprendidas num

curto tempo, que pareceu se expandir enormemente em função de tudo o que pude

aprender em suas aulas, atividades e conversas. O que este trabalho puder conter

de bom é graças a ela.

À doutoranda Juliana de Abreu e ao prof. dr. Sergio Romanelli – cujas seriedade e

qualidade dos trabalhos são mais que nunca necessários na universidade – pela

disposição de integrarem a banca examinadora deste TCC.

À turma de Letras Francês que chegou à UFSC em 2015, amig@s querid@s com

quem eu dividi aulas, cafés, corredores, pontos de ônibus, burn book e muito mais,

principalmente, Heloá Barroso, Fabrício Leal Cogo, Walter Costa Filho, Jamila

Delavy, Renata Zoldan; Gustavo Stopassoli, Adriene Tomaz, Bruno Popenga,

Kamile Coutinho, Maria Paula, Bruna Inácio; ao trio do bacharelado Lúcia Dória,

Francieli Guarienti e Wesam Ashour.

Às “boas”, Neuza Silveira Pereira, Elise Freitas e Janny Fioravante – a “vizinha” de

todas as horas, trabalhos em grupo, discussões acadêmicas e sobre a vida, em

várias travessias da ponte.

Aos integrantes do NEHLIS, em especial os drs. Luiz Alberto Souza e Kelly Yshida,

o me. Guilherme de Castro, incentivadores da tradução e da legendagem do

documentário, e o professor dr. Adriano Duarte (curso de História/UFSC).

A mon cher et tendre Alain Rojo, pelo apoio de sempre, em tudo, a cada novo permi

de conduire...

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Democracia acima de tudo; Estado laico acima de todos.

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RESUMO

Tradução e legendagem do documentário Le Procès Céline:

uma análise em retrospecto

Em 2014, o documentário Le Procès Céline (FRA. Dir.: Antoine de Meaux, 2011) foi

traduzido e legendado do francês para o português, de forma amadora e informal,

para exibição e posterior discussão em um grupo de estudos formado por alunos e

professores universitários, pesquisadores e pessoas externas ao ambiente

universitário com interesse nas relações entre história e literatura (NEHLIS). Mesmo

sem embasamento teórico, apenas conhecimentos adquiridos na prática, a atividade

se guiou pelo público alvo, não falante de francês. Esta legendagem foi escolhida

como objeto de análise pela possibilidade de discutir e rever algumas escolhas

intuitivas à luz de uma visão teórica mais ampla sobre a tradução, principalmente a

partir das premissas da Teoria do Skopos, sistematizada por Christiane Nord, e

também mais específica, em se tratando da tradução audiovisual (TAV), tendo em

vista as proposições de Yves Gambier e Jorge Díaz-Cintas.

Palavras-chave: Teoria do skopos; tradução audiovisual; documentário; Louis-

Ferdinand Céline

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RESUMÉ

Traduction et sous-titrage du documentaire Le Procès Céline :

une analyse a posteriori

En 2014, le documentaire Le Procès Céline (de Antoine de Meaux ; France, 2011)

fut traduit et sous-titré, de manière amatrice et informelle, pour l’exhibition et le débat

dans un groupe d’études (NEHLIS) formé par des élèves et professeurs

universitaires, chercheurs et membres extérieures à l’université ayant pour intérêt les

relations entre l’histoire et la littérature. Ce sous-titrage fut choisi comme objet

d’analyse parce qu’il permet de discuter et revoir des choix intuitifs à partir d’une

conception théorique plus ample à propos de la traduction, principalement la Théorie

du Skopos, systématisée par Christiane Nord, et aussi d’une théorie plus spécifique,

celle de la traduction audiovisuel (TAV), avec les propositions de Yves Gambier et

Jorge Díaz-Cintas.

Mots-clés : Théorie du Skopos ; traduction audiovisuel ; documentaire ; Louis-

Ferdinand Céline

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – O tribunal ................................................................................................. 3

Figura 2 – Print screen com o Subtitle Edit (SE)...................................................... 10

Figura 3 – A pesquisadora e profa. Anick Duraffour fala sobre Céline.................... 10

Figura 4 – Capa do DVD de Le Procès Céline, do Canal ARTE ............................. 15

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:10:39 do documentário

................................................................................................................................. 21

Quadro 2 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:17:21 do documentário

................................................................................................................................. 21

Quadro 3 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e texto alvo que figura na legenda aos 00:24:36 do documentário

................................................................................................................................. 22

Quadro 4 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:09:30 do documentário

................................................................................................................................. 23

Quadro 5 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:37:02 do documentário

................................................................................................................................. 23

Quadro 6 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:48:52 do documentário

................................................................................................................................. 24

Quadro 7 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:50:51 do documentário

................................................................................................................................. 24

Quadro 8 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:10:23 do documentário

................................................................................................................................. 25

Quadro 9 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:10:31 do documentário

................................................................................................................................. 25

Quadro 10 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:13:35 do documentário

................................................................................................................................. 26

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Quadro 11 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:04:43 do documentário

................................................................................................................................. 27

Quadro 12 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua

tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:11:01 do documentário

................................................................................................................................. 27

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................1

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: OLHANDO O PROCESSO DE LEGENDAGEM

A POSTERIORI ...........................................................................................................4

3. LE PROCÈS CÉLINE: ASSUNTO, FORMATO E SKOPOS DA LEGENDAGEM

................................................................................................................................... 11

4. ANÁLISE DE ALGUNS EXCERTOS DA LEGENDAGEM .................................. 18

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................29

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 32

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1. INTRODUÇÃO

Em 2014, realizei a tradução e a legendagem francês-português de um

documentário sobre o escritor Louis-Ferdinand Céline. À época, eu ainda não havia

iniciado a graduação em Letras-Francês na Universidade Federal de Santa Catarina,

mas o francês já era minha “segunda língua”, por questões familiares.

O documentário é Le Procès Céline (O processo Céline), exibido pelo canal

franco-alemão ARTE em 2011, na ocasião dos 50 anos da morte do escritor. Ele traz

depoimentos de escritores, historiadores, críticos literários, ativistas e

contemporâneos do autor, que foi soldado, empregado em uma companhia de

exploração agrícola na África, médico, escritor, polemista, fugitivo da justiça. Foi

reconhecido como referência por Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Henry Miller,

Charles Bukowski, Jean Genet, Michel Audiard, Jim Morrison, Jean-Luc Godard,

Phillip Roth, Martin Scorsese, Sergio Leone entre outros. De início, entre seus

leitores mais entusiastas estavam Leon Trotsky, Simone de Beauvoir, Louis Aragon,

Joseph Stalin. Entre seus detratores, Jean-Paul Sartre. O escritor era pacifista e

anti-imperialista, não tolerava a burguesia e nem a esquerda, não acreditava nas

idealizações sobre “o povo” e era antissemita panfletário. Preso um ano e meio ao

final da Segunda Guerra por colaboração com os nazistas, parece nunca ter pago o

suficiente por seus engajamentos – muitos são os que pedem, ainda hoje, o

banimento de seus livros, pois obra e autor seriam indissociáveis. Para outros,

pouco importariam as ações execráveis de um autor, se seus livros são marcos

literários.

Ao debruçar-se sobre essas discussões, o documentário também trata de

questões mais amplas relativas à literatura, ao engajamento político de artistas e à

história contemporânea. Por esse motivo, em 2014, foi escolhido para uma das

discussões no Núcleo de Estudos História, Literatura e Sociedade (NEHLIS/UFSC),

que eu integrava. Foi necessário então traduzir e legendar o material, inédito no

Brasil.

Até aquele momento, minha formação era na área de história (graduação,

especialização, mestrado e doutorado). Aprendi o francês oralmente, de início, e vivi

dois anos na França (2001-2003). Pude aprofundar esse conhecimento da língua no

trabalho (elaboração, digitação e publicação online de anúncios imobiliários) e num

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curso de francês para estrangeiros, que frequentei por três meses no Lycée René

Cassin (Paris). De volta ao Brasil, realizei traduções eventuais de textos acadêmicos

e publicitários, de maneira informal, mas sempre mantendo contato com a oralidade,

leituras, filmes e programas de TV franceses, cotidianamente. No segundo semestre

de 2015, iniciei a graduação em Letras Francês na UFSC. Durante a disciplina

Elaboração do Projeto de TCC, em março de 2018, surgiu a ideia de utilizar a

tradução e legendagem do documentário como tema para o trabalho, sob orientação

da professora doutora Noêmia Guimarães Soares.

Assim, este TCC discute e revê essa legendagem, agora apoiando-se em

conhecimentos adquiridos nos estudos da tradução. Acreditamos que o trabalho

pode ser de interesse, já que a atividade foi realizada com base apenas no

conhecimento implícito, prático e intuitivo que eu possuía sobre tradução e tradução

audiovisual (TAV). Tais características têm sido cada vez mais abordadas em

pesquisas na área, por conta de sua expansão, proporcionada por séries e

programas de TVs a cabo, games, canais on demand ou em redes sociais

(YouTube, por exemplo), que também contam com traduções não profissionais.

Para apoiar essas reflexões a posteriori sobre a legendagem, utilizei

pressupostos funcionalistas da Teoria do Skopos, sistematizada por Nord (2016), e

estudos sobre tradução audiovisual, principalmente os de Gambier (2004) e Díaz-

Cintas (2003; 2005). Isso orientou a análise sobre a situação de comunicação na

qual se insere a tradução e também uma visão a posteriori dos aspectos práticos de

criação e inserção das legendas e as escolhas em função dos elementos

socioculturais específicos do texto fonte.

O trabalho possui três capítulos, além da Introdução e das Considerações

Finais. No primeiro, apresenta-se a fundamentação teórica para a análise a

posteriori da tradução/legendagem de Le Procès Céline, com a discussão de

pressupostos das teorias do Skopos e da Tradução Audiovisual (TAV). No segundo

capítulo, apresenta-se o documentário em seus aspectos técnicos (equipe e período

de produção, contexto de exibição e difusão); formato (organização das entrevistas,

apresentação dos entrevistados, seleção de imagens, músicas, trechos de livros,

entre outros); biografia e produção literária de Louis-Ferdinand Céline; e o skopos da

legendagem, com suas motivações. O terceiro capítulo apresenta alguns excertos

com escolhas de tradução feitas na época, que exigiram soluções para além de uma

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pretensa equivalência no texto alvo, bem como as estratégias encontradas para a

legendagem, em função de tempo, espaço e coerência com as imagens.

Com relação ao texto deste trabalho, mesmo entendendo a pesquisa

acadêmica como processo coletivo, fruto de contribuições variadas e nunca uma

atividade individual e isolada, optei pelo uso da primeira pessoa na sua

apresentação e dos impessoais no restante. Como realizei a tradução e legendagem

em um momento anterior e realizo sua análise neste trabalho, foi importante marcar

os dois momentos como distintos através das “duas vozes”.

O documentário Le Procès Céline com as legendas em português está

disponível como vídeo não listado em <https://youtu.be/icIJWlB3Lxo>, apenas como

parte integrante deste TCC.

Figura1. O tribunal.

Fonte: imagem do documentário Le Procès Céline (ARTE, 2011), captada em 00:26:41.

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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: OLHANDO O PROCESSO DE

LEGENDAGEM A POSTERIORI

A tradução/legendagem do documentário Le Procès Céline, realizada em

2014, foi escolhida como objeto desta análise por conta dos desafios que a atividade

representou. Além disso, pela possibilidade de discutir e retomar a tradução como

um todo e algumas escolhas, feitas intuitivamente na época, à luz de uma visão

funcional.

No Prefácio da edição brasileira em português de Análise textual em

tradução: bases teóricas, métodos e aplicação didática, Christiane Nord (2016, p. 5)

cita o vivo interesse que seu livro continua suscitando, desde sua publicação em

1988. Este permanece relevante nas leituras de alunos de estudos de tradução, que

“se referem a este livro e não a qualquer outro que eu tenha escrito”. Este texto foi

fundamental1 para a análise da legendagem do documentário, permitindo chaves de

leitura mais sofisticadas e esclarecendo procedimentos na relação texto-contexto,

tendo em vista a coerência intratextual e a coerência intertextual. Assim, não se

entende a função do texto alvo a partir da análise do texto fonte, mas compreende-

se que essa função é pragmaticamente definida pelo propósito que levou à ação

tradutória (NORD, 2016, p. 30).

De acordo com Nord (2016, p. 22), na ação tradutória, há um iniciador que

contrata um tradutor, pois necessita que um texto alvo chegue a determinado

receptor. Este iniciador

desempenha um papel fundamental. Além de ser um indivíduo (a não ser que, evidentemente, o papel do iniciador seja feito pelo tradutor, o receptor do TA etc.), com suas próprias características pessoais, o iniciador é o fator que começa o processo e determina seu curso (NORD, 2016, p. 27).

No caso do documentário analisado, iniciador e tradutor eram a mesma

pessoa.

1 Publicada por Rafael Copetti Editor, a tradução brasileira em português de Análise textual em

tradução: bases teóricas, métodos e aplicação didática foi realizada por Hutan do Céu Almeida, Juliana de Abreu, Meta Elisabeth Zipser, Michelle de Abreu Aio e Silvana Ayub Polchlopek. A revisão final da tradução é de Meta Elisabeth Zipser e Juliana Abreu, que em 2017 ministraram a disciplina Pesquisa em Letras Estrangeiras, da qual fui aluna e que foi fundamental para as primeiras reflexões deste trabalho.

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O tradutor deve saber qual é a função do texto que traduz na cultura-alvo, ou

seja, o skopos do texto alvo. Nesse sentido, o princípio orientador dos processos

tradutórios é a sua finalidade, a saber, as necessidades e expectativas dos

receptores, bem como as condições situacionais da tradução (por que se traduz e

para quem). A partir dessa teoria funcional da tradução, compreende-se que a

finalidade do texto alvo e a situação comunicativa na qual será produzido têm tanta

relevância para o tradutor quanto o texto-fonte. (REUILLARD; FURTADO, 2013).

Na legendagem de Le Procès Céline, para além dos aspectos biográficos do

autor e da possibilidade de discussões sobre história e literatura, observa-se que,

mesmo sem o conhecimento teórico a respeito da tradução, um dos principais

determinantes das escolhas tradutórias foi o público a quem se dirigiu a

legendagem.

Era um grupo que começou suas atividades em 2011, chamado NEHLIS, que

se reunia no espaço físico da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sem

vinculação institucional. Contava com professores, alunos de história, letras,

sociologia, educação e também pesquisadores e pessoas interessadas sem ligação

com a universidade. Em suas reuniões semanais, depois quinzenais, se estudavam

as conexões entre história e literatura, levando em conta diferentes aspectos sociais,

políticos, culturais e econômicos, suas múltiplas expressões na sociedade, assim

como sua interação com outras linguagens. A maior parte não possuía

conhecimentos da língua francesa, e os conhecimentos que alguns integrantes

tinham do idioma não lhes permitia assistir a um documentário sem legendas em

português. Mesmo sem esse conhecimento linguístico, tratava-se de um grupo

familiarizado com o vocabulário da literatura, das ciências humanas e sociais. Logo,

o público do texto alvo não era o mesmo público do texto fonte, ainda que pudesse

haver alguma similaridade entre ambos.

Nesse sentido, Nord (2016, p. 26) aponta a importância de se ter em mente

que os textos podem existir “fora da sua situação original, podendo assim ser

aplicados a novas situações — um processo que pode mudar completamente sua

função ou suas funções. Uma dessas situações novas é a tradução”.

Produzido em francês, o texto fonte em questão se dirigiu primeiramente ao

público telespectador do canal franco-alemão ARTE, habituado a programas,

espetáculos, entrevistas e reportagens de cunho literário, artístico e cultural em

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geral. O documentário foi realizado e veiculado em 2011, por ocasião dos 50 anos

da morte de Céline, quando houve reedições e leituras públicas de suas obras,

debates, redifusão de suas entrevistas, entre outros. Ou seja, a função deste texto

fonte (documentário) referia-se a um público, em menor ou maior escala já

familiarizado com o tema, o autor, suas obras e, claro, falante de francês (para a

difusão na Alemanha, houve voice over e algumas legendas).

Segundo Nord (2016, p. 136), quando se analisa a função do texto, a intenção

do emissor e as expectativas do receptor são “dimensões cruciais”, mesmo que

outros fatores também possam reduzi-la, como o emissor, o meio, o lugar, o tempo.

“As relações pragmáticas entre emissor, receptor, meio e motivo fornecem ao

tradutor uma série de pré-sinais que anunciam uma função especial, que será na

sequência confirmada ou descartada pela análise das características intratextuais”.

Assim como a relação qualitativa e quantitativa entre texto fonte e texto alvo

se dá em função do skopos da tradução em sentido amplo, definindo “elementos do

TF-em-situação que podem ser ‘preservados’ e os que podem, ou devem, ser

‘adaptados para a situação alvo” (NORD, 2016, p. 62), na tradução audiovisual

(TAV) ocorrem situações similares. A legendagem do documentário orientou um tipo

de tradução (oral à escrito) também muito relacionada às limitações da modalidade.

Nesse sentido, é possível pensar num diálogo entre a Teoria do Skopos e a TAV.

O pesquisador Yves Gambier afirma que a atividade é uma tradução seletiva

com adaptação, compensação e reformulação. Ele fala em tradaptação

(tradaptation), definindo-a como um conjunto de estratégias (explicitação,

condensação, paráfrase) e atividades, incluindo revisão e formatação. Para

Gambier, a TAV também é entendida como um todo, levando em conta os gêneros,

os estilos de filmes e programas, da mesma forma que os receptores em sua

diversidade sociocultural. A acessibilidade deve ser seu principal objetivo, levando

em conta a aceitabilidade, definida linguisticamente (escolhas linguísticas, retóricas,

terminológicas); a legibilidade, em termos de velocidade de exibição das legendas e

caracteres tipográficos; a sincronicidade, no caso da dublagem; a pertinência ou o

volume de informações a oferecer, omitir ou completar, para que não se aumente o

esforço cognitivo na escuta ou leitura; o estranhamento, definido em termos

culturais, ou seja, o limite do acolhimento de outras formas de narração, valores,

comportamentos, entre outros (GAMBIER, 2004, p. 4-9).

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Nessa perspectiva, o texto fonte é adaptado em função dos receptores.

Porém, ele chama a atenção para dois entraves possíveis: o tradutor se conformar à

“mercantilização generalizada” da indústria cultural, com divisão de públicos em

categorias discriminatórias; e a tradução misturar-se à domesticação ou

naturalização de programas e filmes, manipulando-os para atender às preferências

dominantes, transmitindo o que é considerado “assimilável” como alteridade,

chegando ao limite de reforçar purismos linguísticos, censurar diálogos ou mesmo

modificar partes de uma intriga.

Gambier também aponta temas de interesse dentro da TAV que se firmam

desde o início dos anos 2000, como as dimensões multisemióticas, por conta da

complexidade tecida entre linguagem, imagem, música, sons, cores, ritmos, que

tornam a interdisciplinaridade inevitável; o lugar e a influência da TAV para além das

fronteiras nacionais e culturais, incluindo escolhas políticas; a expansão de

modalidades mais recentes de TAV, incluindo a áudio-descrição, a legendagem para

surdos e a legendagem para óperas e outros espetáculos teatrais; o perfil do público

que prefere a legendagem e o do público que opta pela dublagem, assim como os

problemas contextuais encontrados nessa última (palavrões, estereótipos, censura).

Para o autor, mesmo com o interesse sobre essas questões, outras têm

permanecido relegadas, como a formação do tradutor de audiovisual, competências,

problemas relativos a direitos intelectuais, os impactos da TAV sobre os estudos da

tradução, com relação a noções de texto, original, sentido, interpretação, normas

descritivas, equivalência, skopos, relação escrita e oralidade (GAMBIER, 2004, p.

11).

O que se percebe é que a TAV continua conquistando mais espaços. Para

Jorge Díaz-Cintas (2005, p. 320), “as universidades finalmente notaram que a TAV é

uma área de especialização em demanda por parte dos alunos, os quais estão

aderindo a ela com muito entusiasmo”, em função das possibilidades tecnológicas

(vídeo games, programas de legendagem grátis, fansubbing2, tecnologia digital, uso

de emoticons). Ele percebe cada vez mais acadêmicos, do mundo todo, dedicados à

TAV, porém, ainda trabalhando isoladamente, quando poderiam criar amplos

projetos coletivos de pesquisa com bons resultados. Também cita a existência de

estudos na área que adotam abordagens tradicionais, comparando texto fonte e

2 Fansubbing é a atividade de legendagem realizada por fãs, principalmente de séries e filmes, de

forma amadora e sem autorização dos canais exibidores. A palavra é a contração de fan e subtitling.

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texto alvo em uma perspectiva linguística apenas; e estudos realizados por

pesquisadores que se debruçam na tradução de referentes culturais e na tradução

do humor.

Díaz-Cintas (2005, p. 316) acredita que temas abordados em outras áreas da

tradução devem integrar as discussões sobre a TAV, como por exemplo, “estudos

de corpora, a luta de poder entre os diferentes agentes no processo tradutório, a

manipulação consciente do texto alvo e as perspectivas pós-coloniais e de gênero”.

Dessa forma, abordagens linguísticas e abordagens culturais não seriam mais vistas

em oposição, mas de forma complementar. Assim como Nord e Gambier em seus

trabalhos específicos, o professor e pesquisador espanhol entende que “uma

perspectiva puramente linguística é claramente insuficiente” (DÍAZ-CINTAS, 2005, p.

316). Pode-se citar aqui, entre outras, a necessidade de uma prática de TAV que

leve em conta elementos mais complexos, como regionalismos, gírias ou expressões

ligadas a situações bem particulares, por conta de seu conteúdo histórico e cultural.

Para a legendagem do documentário Le Procès Céline, utilizou-se o Subtitle

Edit (SE), editor de legendas gratuito e de código aberto desenvolvido pelo

dinamarquês Nikolaj Lynge Olsson para criar, editar, ajustar ou sincronizar legendas

para vídeos. O SE possui mais de 200 tipos de formatos de legendas, sendo os mais

utilizados SubRip, Timed Text, SubStation Alpha, Micro DVD, SAMI, D-Cinema,

BdSub, em 29 idiomas. Para o documentário foi utilizado o formato SubRip (srt.),

com utilização de configurações-padrão, já mais ou menos definidas para a inclusão

das legendas.

Uma vez que o vídeo em questão é selecionado e aberto no editor, existem

indicadores de início de inserção de texto e sua duração. Além disso, o próprio editor

indica se a legenda na qual se trabalha contém linhas sobrecarregadas, que venham

a dificultar sua leitura. Essa indicação se dá a partir de cores aplicadas aos

caracteres: uma vez ultrapassados 38 caracteres com espaços numa mesma linha,

esses passam a ser apresentados em alaranjado. A partir de 44 caracteres com

espaços numa mesma linha, o texto da legenda aparece em vermelho. As linhas não

correspondem a frases inteiras, pois os indicadores se referem à legibilidade da

legenda. Assim, é possível “quebrar” as frases, ou seja, reparti-las em várias linhas –

não sendo indicadas mais de duas linhas por legenda.

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Pode-se afirmar que um conhecimento mais aprofundado do SE e uma

exploração mais completa de suas possibilidades antes de iniciar a legendagem

imprimiriam muito mais qualidade aos resultados. Mas da mesma forma que na

tradução das falas e narração do documentário, na utilização do SE observa-se

também um trabalho com “ensaio e erro”, no qual se adquiria prática e se percebiam

as possibilidades à medida que a atividade era realizada.

Esses elementos também serão explorados nos capítulos a seguir.

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Figura 2. Print screen com o Subtitle Edit (SE), indicando espaços de inserção de legendas,

marcações de início e término, tempo de exibição e frame do documentário.

Figura 3. A pesquisadora e profa. Anick Duraffour fala sobre Céline

Fonte: imagem do documentário Le Procès Céline (ARTE, 2011), captada em 00:28:54.

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3. LE PROCÈS CÉLINE: ASSUNTO, FORMATO E SKOPOS DA

LEGENDAGEM

Para se compreender melhor o documentário Le Procès Céline, o motivo de

sua seleção para um debate sobre história e literatura e, principalmente, a retomada

de sua tradução e legendagem, é importante começar conhecendo o assunto que os

motivou, ou seja, o autor e seu contexto.

Louis-Ferdinand Céline é um dos escritores franceses mais traduzidos no

mundo. Nasceu em 1894 em Courbevoie, na região parisiense, como Louis

Ferdinand Destouches, numa família de pequenos comerciantes. Viveu até os 13

anos em Paris, depois foi aluno interno na Alemanha e na Inglaterra. De retorno à

França 1910, foi aprendiz numa chapelaria e numa joalheria. Como a perspectiva de

tornar-se comerciante como os pais não o agradasse, alistou-se no exército em

1912, integrando a cavalaria. Foi voluntário na Primeira Guerra Mundial, chegando

ao posto de marechal-de-logis (sargento). Ferido no início do conflito, foi

condecorado e reenviado da linha de frente ainda em 1914.

A experiência nas trincheiras marcou-o para sempre: “Das semanas de 14

sob os aguaceiros viscosos, nessa lama atroz e nesse sangue e nessa merda e

nessa asneira dos homens, eu não vou me recuperar”3 (CÉLINE [1930], apud

PEDRAZZINI, 2013, p. 4). A descrição que o historiador inglês Eric Hobsbawm fez

do conflito vai ao encontro das experiências do escritor:

[...] uma máquina de massacre provavelmente sem precedentes na história da guerra. Milhões de homens ficavam uns diante dos outros nos parapeitos de trincheiras barricadas com sacos de areia, sob as quais viviam como – e com – ratos e piolhos. [...] Dias e mesmo semanas de incessante bombardeio de artilharia [...] “amaciavam” o inimigo e o mandavam para baixo da terra, até que no momento certo levas de homens saíam por cima do parapeito, geralmente protegidos por rolos e teias de arame farpado, para a “terra de ninguém”, um caos de crateras de granadas inundadas de água, tocos de árvores calcinadas, lama e cadáveres abandonados, e avançavam sobre as metralhadoras que os ceifavam, como eles sabiam que aconteceria. (HOSBABWM, 1995, p. 33)

3 Céline escreve a Joseph Garcin, em 1930 : Des semaines de 14 sous les averses visqueuses, dans

cette boue atroce et ce sang et cette merde et cette connerie des hommes, je ne me remettrai pas (tradução minha). As demais informações biográficas sobre o autor foram retiradas do documentário Le Procès Céline; da Encyclopédie Larousse (verbete Louis Ferdinand Destouches, dit Louis-Ferdinand Céline); e de La série documentaire de France Culture – Louis-Ferdinand Céline, citados em detalhe nas referências.

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Reformado ainda durante a guerra, Céline parte aos Camarões, onde

administra uma grande propriedade agrícola francesa. De retorno à França ao fim do

conflito, casa-se, tem uma filha e inicia os estudos de medicina, terminados em

1924, com a defesa de uma tese higienista (La vie et l'oeuvre de Philippe-Ignace

Semmelweis/ A vida e a obra de Philippe-Ignace Semmelweis). O resultado das

eleições legislativas nesse ano o revoltam, pois uma aliança entre os socialistas e os

comunistas consegue eleger a maioria no parlamento. É o período em que ele

começa a construir uma imagem de si como “filho do povo”, trabalhador, “médico

dos pobres”. Tenta publicar uma peça de teatro, L’Église (A Igreja), assim como sua

tese médica. Ambas são recusadas pela editora Gallimard, uma das mais

importantes e influentes casas de edição francesas no século XX, pois são

consideradas violentas e panfletárias do antissemitismo. Ele escreve

constantemente aos jornais, os quais publicam trechos de seus textos e também

suas opiniões.

Em cartas a amigos próximos, define a si próprio como “um fenômeno” e a

crítica literária, como ambígua. Então, se faz de fanfarrão, bravateia, provoca,

inventa, aguardando sua vez de ser incensado. Isso ocorre em 1932, quando a

editora Denoël publica Voyage au bout de la nuit (Viagem ao fim da noite). Mesmo

indicado, não recebe o Prêmio Goncourt. Recebe o Prêmio Renaudot e ocupa as

páginas literárias dos maiores jornais franceses, em resenhas e elogios vindos de

autores consagrados. Céline se torna conhecido e reconhecido. Seu livro é narrado

pelo personagem principal, Bardamu. Assim como o autor, o personagem foi um

poilu (peludo), ou seja, soldado na Primeira Guerra (1914-8), se aventurou na África,

esteve nos Estados Unidos e, de volta à França, terminou os estudos de medicina e

se consagrou às pessoas dos subúrbios pobres de Paris. Num tom cínico, niilista,

misantropo e com um humor corrosivo, Céline/Bardamu reforça seu pacifismo, o

anticapitalismo, o anarquismo e o anticolonialismo. Assim como seu personagem, o

autor “persegue a verdade”, para ele biológica, inscrita nos corpos humanos. O

futuro é o apodrecimento desses corpos, a evolução da doença e do vício. Após a

Primeira Guerra, a fisiologia como parte da caracterização dos personagens

literários está presente em toda a literatura ocidental, assim como a concepção da

sociedade como um organismo.

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Cenários prosaicos figuraram como meio privilegiado para o desenvolvimento das narrativas, apresentando também o que poderia haver de miserável, sujo, repugnante até. Elementos como doença, sensações e deformações físicas, sangue, pruridos em geral e corpos mutilados participaram da caracterização do meio e dos personagens não apenas como dados de uma descrição, mas também como metáforas para o que de pior havia no mundo. (RODRIGUES, 2009, p. 117)

Os pressupostos do higienismo e da eugenia estavam na ordem do dia. A

eugenia, entendida como a “higiene da raça”, foi teorizada na Inglaterra do século

XIX e ficou para sempre colada à ascensão do nazismo e seus infames campos de

extermínio. Mas até a década de 1930, tinha vários sentidos, e muitos de seus

defensores foram ativistas da justiça social. Na América Latina, era sinônimo de

saúde e higiene, por exemplo. Na França, estava associada à medicina social e ao

saneamento (STEPAN, 2005). Certamente o viés racista também integrava o

entendimento sobre a eugenia, e muitos foram os médicos a preconizá-la nesse

sentido. Céline foi um deles, associando o racismo à crítica da injustiça social

aprofundada pelo capitalismo.

Outra característica da narrativa de Céline é o trabalho com a língua, de

maneira a soar como o linguajar das ruas transposto diretamente para o texto

literário, o que não é exatamente o caso. Há um trabalho sobre as expressões e

gírias para que soem “naturais” e “populares”. Como explica a tradutora Rosa Freire

d’Aguiar (2009, p. 6), “era comum que ele esticasse uma frase com interjeições e

expletivos só para reforçar sua oralidade.” Céline imprime um efeito de real em suas

descrições e diálogos, ou seja, o leitor tem uma experiência intensificada do real

também em função das descrições físicas dos personagens e do meio –

características peculiares, evolução de doenças, sujeira, miséria.

Após Voyage..., ele publica Mort à crédit (Morte a crédito, 1936), também com

Bardamu servindo de narrador. Desta vez, o livro traz a experiência do personagem

na Primeira Guerra e, em retrospecto, suas infância e adolescência, misturadas às

próprias experiências de Céline (pais comerciantes, o cotidiano nas passages e suas

variadas butiques, a vivência escolar, as férias, até o alistamento e os fatos

traumáticos no front e após o fim do conflito). A crítica recebeu mal este segundo

livro, no qual o trabalho com a linguagem se intensificou, quase transformando a

própria narrativa em personagem, e no qual a denúncia social aparece mais

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matizada, entrelaçada à memória. Publica Mea Culpa (1936) e, em seguida, os

textos que ficaram conhecidos como os três panfletos: Bagatelles pour un massacre

(Bagatelas para um massacre, 1936), L’École des cadavres (Escola de Cadáveres,

1938) e Beaux Draps (Belos Panos4, 1941). Nestes, o autor critica comunistas,

nazistas, nacionalistas, socialdemocratas e a própria democracia ocidental.

Constante nos três textos é o ódio dirigido contra os judeus que, para Céline, são

todos os que forem passíveis de sua crítica, não apenas as pessoas com

ascendência judaica. Nos panfletos, judeu transforma-se em insulto, sendo utilizado

para avaliar pessoas, ações políticas ou expressões artísticas. Assim, um escritor de

quem ele desgostasse por conta do estilo, por exemplo, recebia a pecha de “judeu”.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45) e a ocupação nazista da

França (1940-4), Céline colaborou com os alemães, mesmo que desprezasse Hitler,

Pétain (o marechal francês à frente do governo de Vichy, alinhado aos nazistas) e

outros dirigentes. Teve uma vida tranquila no período, ao lado da bailarina Lucette

Almanzor, incensado por colaboracionistas (les colabos) e uma intelectualidade

reacionária que ele menosprezava, mas da qual se aproveitava. Chegou a denunciar

algumas pessoas, o que podia ter lhes valido a prisão ou a perda de empregos.

Assim que a lei proibindo judeus em postos públicos e de direção passou a vigorar

na França, ele denunciou às autoridades o médico-chefe do dispensário em que

trabalhava, buscando obter o cargo para si.

Em 1944, pressentindo a derrota alemã pelos aliados, Céline e Lucette

Almanzor fogem para a Alemanha, evitando a prisão e a morte. Mesmo foragido, ele

é condenado na França por Indignité Nationale (indignidade nacional), o que lhe

retirava o direito ao voto, de ser eleito, à aposentadoria, entre outros. O casal se

refugia, então, na Dinamarca, onde Céline cumpre um ano e meio de prisão e depois

retornam à França no fim da década de 1940. Julgado por suas ações

colaboracionistas, teve metade de seus bens confiscados e foi absolvido. Mesmo

assim, artistas, jornalistas e intelectuais continuam a condená-lo moralmente,

evitando que ele seja indicado a prêmios, desprezando suas novas publicações5,

4 Há algumas versões em português para o título: Os belos panos, Bonitos os panos, Belos panos.

Encontrei-as online, citadas em críticas literárias e páginas de jornais, sem referência a editoras ou tradutores. Seja como for, creio que o título faça referência a uma expressão: drap em francês é lençol, e a expressão dans de beaux draps (“em belos lençóis”) refere-se a uma situação complicada. Pode-se pensar na expressão em maus lençóis. 5 Guignol’s Band (1944), Casse-Pipe (1949), Féerie pour une autre fois (1952), Normance (Féerie II)

1954, Entretiens avec le Professeur Y (1955), D'un château l'autre, (1957/ De castelo em castelo,

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Fonte: ARTE Boutique. <boutique. arte.tv/detail/louis_ferdinand_celine>

enfim, condenando-o ao ostracismo. Até 1961, ano de sua morte, Céline buscou

retomar seu lugar entre os literatos franceses.

Mesmo excluído dos círculos oficiais, por conta da baixeza de suas atitudes e

engajamentos, ele continua sendo lido e elogiado, influenciando escritoras e

escritores de diferentes gerações. Esses pontos polêmicos são o fio condutor de Le

Procès Céline.

Figura 4. Capa do DVD do documentário Le Procès Céline, do Canal ARTE (2011).

1968), Nord (1960/ Norte, 1972), Guignol's band II (1964), Rigodon (1969). Quando voltou à França, o próprio Céline proibiu que seus chamados quatro panfletos fossem republicados (mesmo que houvesse exemplares em bibliotecas). Ao final de 2017, a editora Gallimard, que detém atualmente os direitos de publicação na França, anunciou a reedição desses textos, mas desistiu dela no início de 2018, por conta da polêmica causada pelo anúncio. Há uma publicação quebequense, Écrits Polémiques de Céline (Huit, 2012), que inclui os panfletos. A publicação foi autorizada por Lucette Destouches, viúva do escritor, hoje (novembro de 2018) com 106 anos.

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O documentário foi escrito por Alain Moreau e dirigido por Antoine de Meaux6,

com realização da produtora francesa Program33 e difusão do canal franco-alemão

ARTE em 17 de outubro de 2011. Possui 55 minutos de duração, é narrado em

língua francesa, com depoimentos, análises, imagens de arquivo e entrevistas

igualmente em francês.

Seu formato lembra um julgamento, com cenas em uma sala de júri vazia e

entrevistados participando como se dessem depoimentos nesse julgamento. Fotos,

filmes e objetos são apresentados como se fossem provas. Trechos dos livros,

panfletos e cartas de Céline são lidos em off, com encenações de marionetes

(guignols), provavelmente em referência a seu livro Guignol’s Band. Apesar do

formato, Le Procès Céline não se propõe a “inocentar” ou “condenar” o autor por

suas escolhas pessoais, mas a compreender o século XX e como a literatura o

abordou. Nesse sentido, também busca entender o contexto da ocupação nazista na

França (1940-4) e também o anterior, nos quais ideias racistas eram discutidas

abertamente, notadamente o antissemitismo, acentuado no país desde o século XIX

(o caso Dreyfus é um dos exemplos mais flagrantes).

Com essas informações, quer-se mostrar que, Céline não foi o único a pensar

e agir dessa forma na França durante a guerra, mas, por ser conhecido e pela

difusão de suas ideias, foi julgado e serviu de exemplo, como vários outros,

enquanto muitos na mesma situação passaram incólumes. O documentário também

busca perceber a originalidade das criações literárias do autor, tanto em termos de

linguagem quanto em termos da construção de temas, pois são elementos que

geraram e fixaram uma possibilidade de expressão na literatura do século XX. Da

mesma forma, Le Procès Céline permite mostrar como os diversos momentos de

uma existência podem alimentar a literatura, sem que se confundam.

Os entrevistados são identificados pelo nome e profissão, quando se trata de

pesquisadores, historiadores, biógrafos, escritores, ou nome e o tipo de relação e

contato que tiveram com Céline até 1961 (ano da morte do autor). Assim, a não ser

que se conheça previamente os participantes, não se sabe a priori se são críticos do

autor ou admiradores de suas obras. Isso se depreende de suas falas durante o

documentário. Os participantes são Annick Durafour, Dominique Pinson, Émile

6 Antoine de Meaux nasceu em Lyon (1972), é escritor (Mémoire cavalière, 2007; Le Fleuve guillotine,

2015), roteirista e diretor de filmes e documentários para a televisão. Alain Moreau é ator, produtor, diretor, cenarista e diretor de fotografia, engenheiro de som, em cinema e televisão.

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Brami, Emmanuèle Amiot Pinson, François Gibault, Frédéric Vitoux, Henri Godard,

Madeleine Chapsal, Marc-Edouard Nabe, Pascal Ory, Pierre Assouline, Pierre-André

Taguieff, Philippe Alméras, Philippe Sollers, Serge Klarsfeld, Serge Perrault,

Stéphane Zagdanski e Yves Pagès.

Trechos de entrevistas com o próprio Céline, feitas para a televisão francesa

nos anos 1950-60, ocupam uma parte do documentário, que também traz uma das

duas músicas compostas pelo autor na década de 1930 e gravadas por ele próprio

em 1955 (Le nœud coullant e Règlement).

O documentário também trata de questões relativas à literatura, ao

engajamento político de artistas e à história da primeira metade do século XX. Por

isso, como já mencionado, foi escolhido para uma das discussões no Núcleo de

Estudos História, Literatura e Sociedade (NEHLIS). Cada uma das discussões do

grupo organizava-se a partir da leitura de um texto literário específico e de textos

teóricos, para um debate posterior. Em alguns momentos, contou também com a

apresentação de determinada obra por professores de literatura, assim como a

discussão sobre filmes. Le Procès Céline foi o único documentário apresentado, cuja

exibição foi sugerida em uma das reuniões. Assim, juntamente com a legendagem,

as escolhas tradutórias se fizeram em função desses interesses e do perfil do grupo.

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4. ANÁLISE DE ALGUNS EXCERTOS DA LEGENDAGEM

Este capítulo é mais extenso, pois apresenta e examina algumas escolhas

tradutórias à luz dos pressupostos discutidos anteriormente, principalmente com

relação ao skopos da tradução e à TAV.

Para a tradução e a legendagem em português de Le Procès Céline, o

documentário foi assistido três vezes, nas quais foram anotadas as expressões e

palavras mais difíceis a serem entendidas, além daquelas mais exigentes para a

tradução. Em seguida, iniciou-se a transcrição do áudio e a tradução propriamente

dita. A legendagem se deu de maneiras diferentes, em função do texto a ser

traduzido e das especificações técnicas do programa utilizado. Em alguns

momentos, foi realizada simultaneamente com a tradução, quando se tratava de

frases consideradas sem maiores problemas semânticos ou gramaticais.

A tradução dos períodos mais complexos foi feita mais lentamente,

demandando pesquisas e o registro de versões com diferentes possibilidades. Em

seguida, essas eram testadas no editor de legendas, em função de espaço, tempo,

informações que pudessem ser suprimidas, acrescentadas, simplificadas ou

adaptadas. Algumas dúvidas foram sanadas pela escuta repetida de determinados

trechos. Outras, pela pesquisa sobre determinado assunto ou período, na qual eram

esclarecidos termos que haviam passado despercebidos ou mesmo que não tinham

sido compreendidos anteriormente.

Houve consultas a um locutor francês sobre determinadas expressões, o que

possibilitou que alguns erros de tradução fossem assinalados e corrigidos antes da

exibição do documentário. Isso aconteceu quando, na descrição das atividades de

Céline no exército francês durante a Primeira Guerra Mundial (1914-8),

compreendeu-se que ele servira num cuirassé, ou seja, num encouraçado. Em

pesquisas sobre a biografia do autor, a informação parecia confirmar-se. Como este

tipo de navio de guerra blindado foi utilizado no período, aparentemente não havia

contradições nos dados, logo, a primeira versão de uma legenda do documentário

informava que Céline havia servido num encouraçado. Na verdade, ele fora

cuirrasier, ou seja, couraceiro, um soldado da cavalaria que portava uma cuirasse

(couraça), espécie de colete de metal que cobria o peito e as costas. Somente a

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escuta da informação e depois a pesquisa de dados não foram suficientes para

detectar o erro.

No decorrer do documentário, são apresentados trechos de livros, panfletos e

entrevistas na imprensa escrita de autoria de Céline. Estes foram traduzidos para as

legendas de maneiras diferentes. Para os trechos de Voyage au bout de la nuit

(Viagem ao fim da noite), o áudio foi comparado à tradução de Rosa Freire d’ Aguiar

para a Companhia das Letras (2009) e adaptado por conta do espaço das legendas

e seu tempo de exibição, para que pudessem ser sincronizadas e lidas facilmente.

Para trechos de Morte a crédito (Mort à crédit), a tradução disponível foi a de Vera

de Azambuja Harvey e Maria Arminda de Souza-Aguiar, da Editora Nova Fronteira

(1982). Nesta comparação, houve mais propostas diferentes para a tradução em

português, não apenas para adaptação do texto ao espaço das legendas, mas

porque foram percebidos outros sentidos não presentes na edição em questão. Os

trechos de panfletos não publicados no Brasil foram traduzidos diretamente do

documentário. Alguns dos panfletos estão disponíveis na internet em traduções

portuguesas não profissionais, mas que permitiram comparações com o texto

traduzido para o português brasileiro.

Neste ponto, é interessante retomar algumas proposições de Christiane Nord

(2016, p. 51) relativas a uma pretensa reprodução fiel da totalidade de elementos do

texto fonte que a tradução deveria buscar. Ela alerta que, em muitos casos, até

linguistas e críticos literários sustentam essa ideia, referindo-se a equivalência. E

sublinha que equivalência deve significar a maior correspondência possível entre

texto fonte e texto alvo, mas que a “equação pouco aprofundada da tradução e

equivalência parece ser responsável pelos eternos debates acerca da fidelidade ou

da liberdade na tradução, debates esses que não nos têm levado a lugar nenhum.”

De volta a Le Procès Céline, o documentário também apresenta fatos

históricos e trechos de periódicos do início do século XX, como L’Illustré National,

Aujourd’hui, Je suis partout. Existem uma voz narradora para o documentário e outra

para os trechos dos livros Viagem ao fim da noite, Morte a Crédito, Bagatelas para

um massacre, Guignol’s Band, De um castelo a outro. Há também os depoimentos

de pesquisadores, biógrafos, escritores e pessoas que conviveram com o autor. Em

alguns casos, percebe-se que o volume de informações de determinada fala ou da

narração do documentário foi reduzido na tradução, pois sobrecarregavam o espaço

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possível da legenda ou dificultavam a leitura e a sincronização. Ou seja, trata-se

aqui de um aspecto da tradução funcional.

Nesse sentido, ao analisar a tradução e a legendagem, Sabine Gorovitz

aponta que há uma “redução significativa dos elementos semânticos”, pois:

O tradutor, pelas limitações técnicas impostas, deve resumir e sintetizar ao máximo o diálogo, tentando produzir uma mensagem curta e clara e tendo unidade semântica. Essas restrições são condicionadas pelas necessidades do olho físico em relação ao tempo de leitura. Assim, a mensagem deve estar contida em, no máximo, duas linhas de até 56 caracteres. A posição da legenda, a fonte utilizada, a cor, o tempo de exposição, a escolha de palavras facilmente apreensíveis devem respeitar regras rígidas e, assim, limitam a liberdade do tradutor (GOROVITZ, 2006, p. 65-6).

Outra questão importante para a compreensão a posteriori das escolhas de

tradução e legendagem para Le Procès Céline pode ser encontrada nas discussões

de Nord (2014, p. 330). Trata-se do conhecimento sobre as culturas nas quais se

inserem o texto fonte, o texto alvo e o público deste último. Quando o tradutor se

depara com convenções culturais, uma boa estratégia para lidar com a língua-alvo é,

segundo a pesquisadora, atentar para as convenções culturais, não linguísticas.

Outros definidores dos textos finais da legendagem foram o programa de

edição SE e a leitura das legendas na tela à medida que ficavam prontas. Estas

serviram como balizas para as modificações do texto. Por exemplo, entre duas

versões para uma mesma frase, a escolha se dava em função do tempo de

exposição da legenda para determinado frame. Se o texto da legenda se referia a

uma imagem específica, como uma fotografia, era necessário que o tempo de

exposição do texto acompanhasse essa imagem, caso contrário a compreensão da

ideia ficaria comprometida para o público do texto alvo. Isso reforça a importância

dessas questões na legendagem do documentário.

A seguir, apresentam-se algumas dessas escolhas, dispostas em quadros

que contêm o texto fonte e sua localização temporal no documentário; a tradução

integral desse texto fonte, muitas vezes literal; e o texto final que aparece nas

legendas. É possível perceber, para além das questões de espaço da legendagem,

que a tradução privilegiou o público do texto alvo e suas expectativas, que eram

diversas daquelas do público do texto fonte.

Por exemplo, com relação a essas informações:

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Quadro 1 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:10:39 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto da legenda

00:10:39

Décoré de la Médaille Militaire et de la Croix de Guerre, puis reformé.

Condecorado com a Medalha Militar e a Cruz de Guerra e, em seguida, reformado.

Condecorado e depois reformado.

Nesta frase, a tradução priorizou as duas informações principais sobre a

participação de Céline na Primeira Guerra Mundial: ele foi condecorado e em

seguida reformado. A especificação das condecorações (a primeira, do século XIX,

concedida a soldados e suboficiais por bravura, assim como a segunda, instituída na

Primeira Guerra) não foi considerada essencial para a compressão desse contexto.

A informação “condecorado” traz subentendida a ideia de alguma ação de destaque,

de merecimento. Foi o dado escolhido também por conta das limitações de tempo, já

que o texto acompanha uma fotografia do autor, em 1915, fardado e condecorado.

Outro exemplo é a fala do escritor Stéphane Zagdansky:

Quadro 2 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:17:21 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto das legendas

00:17:21

Et, ça il ne dit pas, mais en effet, on peut faire un parallèle étonnant, c’est que lui-même, il va, d’une certaine manière, parce qu’humainement c’est un maladroit et parce qu’il a besoin de se mettre en transe, s’inoculer la fièvre antisémite.

E, isso ele não diz, mas realmente, podemos fazer um paralelo espantoso, é que ele mesmo, ele vai, de certa maneira – é humanamente desastrado e porque precisa entrar em transe – se inocular a febre antissemita.

Ele não diz, mas podemos traçar um paralelo espantoso

Pois Céline, um desajeitado que precisa se colocar em transe Vai se inocular a febre antissemita

O enunciado apresentado acima traz marcas da oralidade, como repetições e

apostos. A tradução trouxe para a legenda a ideia de um “paralelo espantoso” entre

o antissemitismo de Céline e um higienista acidentalmente inoculado com a doença

que estudava. Assim, as frases foram estrategicamente simplificadas, para caber

nas três legendas correspondentes ao período em que o entrevistado fala.

Da mesma forma, a explicação do historiador Pascal Ory também sofreu

reduções:

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Quadro 3 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:24:36 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto das legendas

00:24:36

La gauche n’a pas vraiment des préoccupations stylistiques dans cette affaire. Elle considère, au moment même où elle prend de plus en plus au sérieux, la proximité d’arriver au pouvoir, où il y a rapprochement entre les socialistes, les communistes, voire les radicaux, des choses incroyables cinq ans auparavant… Céline reste indecrottablement noirâtre, désespérant. Il désespère Billancourt, Meudon et Courbevoie.

A esquerda não tem, verdadeiramente, preocupações estilísticas neste caso. Ela considera, no mesmo momento em que leva cada vez mais a sério, a proximidade de chegar ao poder, em que há uma aproximação entre os socialistas, os comunistas e mesmo os radicais, coisas inacreditáveis cinco anos antes... Céline permanece incorrigivelmente sombrio, desesperador. Ele desespera Billancourt, Meudon e Courbevoie.

A preocupação da esquerda não é estilística nesse caso. Ela leva a sério a possibilidade de chegar ao poder Há uma aproximação entre socialistas, comunistas, radicais Coisas impensáveis antes E Céline continua incorrigivelmente sombrio, desesperador.

Distribuída em cinco frases curtas no texto alvo, percebe-se que a fala no

texto fonte é longa, com muitos adjetivos e informações socioculturais que não são

evidentes ao público desse texto alvo, pois se referem a detalhes da vida política da

França nos anos 1930. É o caso da referência a Billancourt, Meudon e Courbevoie,

cidades em torno de Paris. Billancourt e Courbevoie fazem pensar no grande

número de operários que ali habitava na década de 1930 e mesmo em movimentos

sociais e sindicais. Mas não é o caso de Meudon. Em comum, há o fato de as três

cidades pertencerem ao departamento de Hauts-de-Seine. Certamente há outros

fatores que as ligam e as fazem ser citadas pelo historiador no documentário. Mas

essas informações não aparecem na tradução, o que não comprometeu o sentido e

o entendimento da fala do pesquisador. De acordo com Nord (2016, p. 101)

O background comunicativo do público, ou seja, toda a sua bagagem de conhecimentos de disciplinas e assuntos específicos, é de especial importância para a análise textual orientada para a tradução. De acordo com sua avaliação da bagagem do público, um autor não só seleciona os elementos particulares do código que será utilizado no texto como também corta ou omite todos os detalhes que podem, “supostamente”, ser conhecidos pelo receptor, ao mesmo tempo em que sublinha outros (ou mesmo apresenta-os com informações adicionais) de forma a não esperar demais (nem muito pouco) do público leitor.

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Por outro lado, houve momentos nos quais foram acrescentadas algumas

(poucas) informações no texto alvo, para caracterizar melhor as afirmações dos

entrevistados e orientar a compreensão de determinados sentidos. Foi o caso desta

passagem:

Quadro 4 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:09:30 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto das legendas

00:09:30

Parce que son père, de temps en temps, signe avec la particule, donc, il s’appelle Des Touches

Porque o pai, de tempos em tempos, assina com a partícula, assim, ele se chama Des Touches.

Pois o sr. Destouches, o pai Às vezes assina com a partícula “Des” Assina “Des Touches”

A “partícula” a que se refere o escritor François Gibault é o de ou o des dos

sobrenomes franceses que indicam uma origem aristocrática. Muitos foram

incorporados aos sobrenomes durante a Revolução Francesa, para encobrir ou

rebaixar essa origem. Assim, o pai de Céline (cujo verdadeiro sobrenome era

Destouches), assinava Des Touches para enobrecer o próprio nome.

A mesma questão aparece em outro momento:

Quadro 5 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:37:52 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto das legendas

00:37:52

Et donc, on ira chercher quelqu’un qui est tout aussi vulgaire, mais qui a une particule, lui, qui s’appelle Darquier de Pellepoix.

E então, vão procurar alguém tão vulgar quanto, mas que tem uma partícula, ele, que se chama Darquier de Pellepoix.

Então, vão buscar alguém tão vulgar quanto Mas com “estirpe”: Darquier de Pellepoix

Neste caso, o termo “partícula” foi traduzido como “estirpe”, pois o que o

biógrafo Émile Brami quis sublinhar foi o fato de as origens aristocráticas terem

influenciado a escolha de Darquier de Pellepoix para um determinado cargo, mesmo

que ele fosse vulgar (tão vulgar quanto Céline, que foi preterido para o mesmo

cargo). Mais uma vez, para o público do texto fonte, o termo “partícula” dá conta do

sentido, mas isso não ocorreria com o público do texto alvo.

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Essa carga cultural de determinadas palavras também determinou o

acréscimo de termos para orientar o sentido de algumas afirmações, como esta a

seguir:

Quadro 6 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:48:52 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto das legendas

00:48:52

Or, comme il est antisémite, il ne dit pas “j’étais fait pour m’entendre avec les juifs”, il dit “j’étais fait pour m’entendre avec les ‘youtres’.”

Ora, como ele é antissemita, ele não diz “eu fui feito para me entender com os judeus”, ele diz “eu fui feito para me entender com os ‘youtres’.”

Ele não diz: “Fui feito para me entender com os judeus” Como é antissemita, ele usa o pejorativo “youtre”.

A explicação, também de Zagdansky, foi simplificada para a legendagem e

adaptada, indicando que o termo youtre é um pejorativo para designar judeu. A

indicação não aparece no documentário, mas trata-se de uma gíria racista, utilizada

na França entre o final do século XIX e o início do século XX, com mais força

durante a Segunda Guerra. O termo pejorativo foi então inserido para que o sentido

ficasse claro, já que se relaciona à condição antissemita de Céline.

Da mesma forma, houve acréscimo de informações nesta passagem:

Quadro 7 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:50:51 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto da legenda

00:50:51

Brasillach, on le pardonne, parce qu’il a payé

Brasillach, nós o perdoamos, porque ele pagou

Perdoamos Brasillach porque ele pagou (fuzilado em 45)

No contexto em que se insere a frase acima, François Gibault explica que o

fato de Céline ter sido absolvido da acusação de colaborar com os nazistas gerou

mal-estar em parte da opinião pública, que não o perdoou. O entrevistado cita,

então, outros autores que “pagaram” pelo mesmo motivo, como o escritor e jornalista

Robert Brasillach. Ligado à extrema-direita, anticomunista e simpatizante do

nazismo, foi preso em 1944 e condenado à morte. Apesar de suas posições, vários

escritores e intelectuais fizeram uma petição contra sua condenação (entre eles,

Paul Valéry, Paul Claudel, François Mauriac, Albert Camus, Marcel Aymé, Jean

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Cocteau, Colette, Jean Anouilh, Jean-Louis Barrault), mas o general De Gaulle não

concedeu o perdão. Brasillach então “pagou pelo crime”, aos 35 anos, tendo sido

fuzilado.

O público do texto fonte provavelmente identifica mais facilmente essas

informações sem a necessidade de mais explicações. Mas para quem não conhece

a história da Épuration (depuração) pós-guerra na França e todas as suas

contradições, a frase “Perdoamos Brasillach porque ele pagou” não explica o que

aconteceu. A inserção da informação “(fuzilado em 45)” veio nesse sentido, visando

o público do texto alvo. Além disso, a tradução aproveitou a possibilidade de uma

frase curta na legenda, que não ultrapassava o número ideal de caracteres. Para o

debate no qual o documentário se inseria (relação história e literatura, escritores e

escolhas pessoais), o dado era importante.

O mesmo procedimento de acréscimo de informação ocorreu na passagem

sobre o soldado cuirassier, citado no início do capítulo:

Quadro 8 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:10:23 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto da legenda

00:10:23

… le jeune Louis s’engage, à 19 ans, dans les cuirassiers

... o jovem Louis se engaja, aos 19 anos, nos couraceiros

O jovem Louis se alista aos 19 anos como couraceiro (na cavalaria)

Aqui, além do acréscimo de informação (na cavalaria), a expressão “se

engaja” foi substituída por “se alista”, para frisar o sentido deste engajamento.

Houve situações nas quais não foi possível um acréscimo de informações

para garantir o sentido pretendido no texto fonte, por conta das questões culturais,

mas principalmente por conta de questões históricas. Por exemplo:

Quadro 9 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:10:31 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto da legenda

00:10:31

Volontaire dans une mission, le maréchal des logis Destouches …

Voluntário numa missão, o “marechal des logis”...

Voluntário numa missão, o sargento Destouches...

O posto “marechal de logis” designava um suboficial do Exército francês

durante a Primeira Guerra Mundial. Foi substituído pela patente de sargento

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(sergent), como no similar brasileiro. A tradução atualizou o termo, sem prejuízo do

sentido do texto fonte.

Na passagem seguinte, a tradução baseou-se em uma solução similar:

Quadro 10 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:13:35 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto das legendas

00:13:35

Les histoires, il y en a plein dans la rue, n’est-ce pas ? Je vois partout, des histoires. Plein aux commissariats, plein dans les correctionnelles

As histórias, há muitas na rua, não é? Eu vejo por toda parte, histórias. Está cheio [delas] nos comissariados, cheio nas correcionais

Histórias, há muitas na rua. Vejo histórias por toda parte. Delegacias estão repletas, tribunais estão repletos.

As frases acima são ditas por Céline durante uma entrevista para a televisão

(1960). Nas legendas, algumas marcas da oralidade desapareceram, como no caso

de repetições, e a ordem das frases foi invertida, para que ficassem mais diretas e

acessíveis em uma leitura mais rápida. No caso do termo correctionelles

(correcionais), variante antiga para tribunals correctionnels (tribunais correcionais), a

tradução conservou somente tribunais.

Em outros momentos, gírias e expressões idiomáticas exigiram soluções

específicas para a tradução. É importante destacar que:

Para a legendagem, talvez o problema linguístico mais intimidante seja a falta de correspondente para uma expressão na língua-alvo. A paráfrase, recurso ao qual o tradutor pode recorrer no caso da tradução de texto escrito, pode não caber no tempo e espaço correspondente à legenda, exigindo do tradutor um esforço de síntese ou uma reformulação completa da frase. Os problemas próprios do texto a ser traduzido citados por Nord são as figuras de retórica, os neologismos e os jogos de palavras. Também representam um problema para a legendagem e exigem do tradutor o mesmo esforço e criatividade exigidos por uma tradução de texto escrito. (REUILLARD, FURTADO, 2013 )

Por exemplo:

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Quadro 11 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:04:43 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto da legenda

00:04:43

Ou il se paye notre tête…

“Ou ele se paga nossa cabeça” (tradução literal)

Ou ele está curtindo com a nossa cara...

A expressão se paye notre tête, utilizada nesta frase por um dos entrevistados

no documentário, exigiu uma tradução que desse conta da informação e de sua

informalidade. Se payer la tête de quelqu’un quer dizer debochar de alguém. Por

isso, optou-se pela expressão curtindo com a nossa cara.

Vejamos o seguinte exemplo:

Quadro 12 – Comparação entre trecho de Le Procès Céline (texto fonte), sua tradução integral e o texto alvo que figura na legenda aos 00:11:01 do documentário

Tempo

Texto fonte Tradução integral Texto da legenda

00:11:01

Il ne pense pas que c’est la Der des ders

Ele não pensa que é a “última das últimas”

Ele não pensa que aquela foi a última das guerras

A expressão la Der des ders está ligada ao contexto histórico francês da

Primeira Guerra Mundial. O horror foi tamanho que as pessoas se referiam ao

conflito como La Der des Ders, simplificação de la dernière des dernières, desejando

que aquela tivesse sido a última das últimas guerras. Na legenda, a solução foi a

expressão “a última das guerras”, principalmente por conta da velocidade de fala do

entrevistado e o pouco tempo para a exibição da informação combinada com o

frame da imagem do entrevistado.

Em todos os casos apontados, as substituições, reduções ou acréscimos

buscaram preservar o sentido das palavras dos entrevistados e do roteirista do

documentário. Ao mesmo tempo, o público do texto alvo orientou as escolhas, que

não foram simplificações, mas soluções que também preservaram certos elementos

da cultura fonte.

A situação de um tradutor pode ser comparada à do produtor do texto. Apesar de ambos terem de seguir as instruções do emissor ou iniciador e cumprir as normas e regras da língua e da cultura alvo, geralmente lhes é permitido exercer o livre arbítrio quanto à sua própria criatividade e às suas preferências estilísticas, se assim o

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desejarem. Por outro lado, podem decidir manter as características estilísticas do texto fonte, desde que sua imitação não viole as normas e convenções textuais da cultura alvo. (NORD, 2016, p. 86)

Por meio das comparações vistas acima, é possível perceber momentos nos

quais o fator determinante da tradução, ou seja, seu skopos, foi tornar o

documentário acessível a uma audiência com conhecimentos acerca da literatura e

da história contemporâneas, mas não de detalhes específicos ligados à língua e à

cultura francesas. Recorrentes, estes eram necessários à compreensão geral em

alguns momentos, ou passíveis de elipses em outros. Nesse sentido, pode-se

entender que as inserções, reduções e substituições foram realizadas a partir

desses objetivos.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O documentário Le Procès Céline foi apresentado num canal da televisão

francesa não disponível no Brasil. Sua tradução, informal e intuitiva, teve como

objetivo a difusão do material para um número maior de pessoas – estudantes de

história e literatura, professores e demais interessados no tema. Foi realizada, assim

como sua legendagem, sem conhecimentos teóricos dos estudos da tradução e da

tradução audiovisual especificamente, mas orientadas pela ideia do que poderia ser

mais importante a transmitir aos participantes. Havia apenas o conhecimento prático

sobre estas, adquiridos em situações anteriores, igualmente informais e amadoras.

Para entender de maneira ampla essa ação de tradução realizada

anteriormente, foi utilizada a teoria funcionalista, havendo a necessidade de se

lançar mão da teoria da tradução audiovisual, por conta das limitações impostas pela

modalidade da tradução para legendagem.

Além do conhecimento da língua, a formação em história auxiliou no

processo, pois no trabalho historiográfico é necessário explorar as fontes,

contextualizá-las e explicá-las. Muitas vezes, há expressões, nomes e funções de

instituições, produtos, procedimentos, hábitos, entre outros, que não existem mais. É

necessário descrevê-los e/ou “traduzi-los” para quem não tem familiaridade com os

termos. Ou seja, o trabalho do historiador também é, em certo sentido, uma

tradução.

E se vários conhecimentos, para além dos acadêmicos e específicos do

ensino de um idioma, são acessados no momento de uma tradução, buscou-se

analisar aqui a hipótese que, mesmo intuitivamente, as escolhas do tradutor se

fazem em função dos receptores do material a ser traduzido e da intenção que

motivou essa atividade, como preconiza a teoria funcionalista da tradução.

O documentário Le Procès Céline traz informações sobre literatura, crítica

literária, sociologia e história. Mas as apresenta a partir de uma cultura específica,

com expressões da cultura francesa, relativas ao passado, conhecidas pelo público

do texto fonte. Um conhecimento acerca da cultura e da história possibilitou

escolhas no momento de traduzir, como se viu nos exemplos analisados. E por mais

limitado que fosse, o conhecimento prático da língua francesa possivelmente supriu

lacunas na tradução.

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As questões mais complexas na tradução para o público alvo brasileiro

recaíram sobre os regionalismos, gírias ou expressões muito específicas. Elementos

que Paulo Rónai (2012, p. 56) definiu como holófrases, para ele, “palavras que

designam noções peculiares a uma civilização, sem correspondente nos demais

ambientes culturais”. Assim, ficou clara a necessidade de se conhecer temas da

história literária, no que se refere ao contexto no qual Céline começou a publicar,

aos seus referenciais familiares e sociais, às revistas literárias em circulação na

França, à crítica; da história contemporânea, por conta do vocabulário da belle-

époque, da Primeira Guerra e suas expressões (La Der des Ders, poilus, cuirassé),

do período da Ocupação e o da Liberação na França (youtre, colabo, épuration,

l’Indignité Nationale, gouvernement de Vichy); da história da mídia, para

contextualizar algumas das imagens presentes no documentário (programas de

televisão e alguns jornais franceses dos anos 1950 e 60); da história da medicina

(hygiénisme, eugenisme), para compreender a tese de Céline sobre Semmelweis e

o imaginário racista da França no início do século XX; das expressões idiomáticas e

gírias mais atuais, utilizadas pelos entrevistados.

Da mesma forma que esta tradução e legendagem, outras se produzem

diariamente, em grande quantidade e nem sempre são consideradas nas discussões

acadêmicas (mesmo que atualmente esse panorama esteja se modificando).

Conhecimentos que não apenas aqueles indicados nos pressupostos teórico-

metodológicos mais tradicionais da tradução profissional são acessados, sejam eles

técnicos ou oriundos de experiências pessoais ou profissionais e contribuem nos

processos tradutórios, oferecendo mais possibilidades para o trabalho de tradução e

seus receptores. Certamente que isso ocorre em todas as atividades de tradução,

mas nem sempre são apontados como válidos. De acordo com Nord (2016, p. 65):

Em nossa opinião, a tradução não é um processo linear e progressivo que vai de um ponto de partida F (= TF) a um ponto de chegada A (= TA), mas, sim, basicamente, um processo circular e recursivo que inclui um número indeterminado de retroalimentações (...).

Como a autora também sublinha, tradutores trabalham “tendo em vista as

necessidades comunicativas do iniciador ou do público do TA [texto alvo], como se a

leitura do TF fora feita pelo olhar do Outro.” (2016, p. 32) É possível perceber que a

prática da pesquisa histórica, assim como teorias historiográficas, influenciaram as

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escolhas tradutórias, visto que o público era, se não majoritariamente, ao menos em

grande parte, ligado a essa área. Além disso, o skopos da tradução do documentário

era, após tê-lo assistido, debater sobre relações entre história e literatura.

Mesmo sem os conhecimentos dos estudos da tradução, a prática levou às

questões que Nord (2014, p. 319) aconselha ter em mente antes de se iniciar um

trabalho: “quem lerá isso? Não é para usar muita terminologia? O leitor-alvo é um

especialista na área ou alguém que não sabe muito sobre os conceitos e termos?

Qual será o meio de comunicação? [...] Há limitações de espaço?”.

Por fim, pode-se dizer que o elemento definidor das escolhas tradutórias e de

legendagem para o documentário foi o público e o meio (a legendagem), tanto para

sua exibição quanto para discussão.

Em quase todas as abordagens relevantes de análise textual para tradução, o público (a quem nos referimos principalmente como “receptor”) é considerado fator muito importante, se não o mais importante. (...) a situação do público é a dimensão pragmática por excelência. (NORD, 2016, p. 97)

Foi possível compreender igualmente que, em alguns casos, as situações

reais de tradução levam esse aspecto em conta, de maneira intuitiva. Serem bem

sucedidos ou não é algo que requer conhecimentos da língua, obviamente, mas não

somente aqueles gramaticais e semânticos de um ensino mais tradicional. São

importantes, claro, mas há um volume de conhecimentos que os tradutores

amadores podem ter que ultrapassa esse âmbito e que pode contribuir

qualitativamente na atividade tradutória. Nord (2013, p. 32) entende que o tradutor

não lê o texto a traduzir “de forma ingênua ou intuitiva”, mas que realiza “uma

análise crítica, global e de boa compreensão orientada para a tradução”. Talvez seja

possível argumentar que, por mais que uma tradução seja intuitiva, ela não é

necessariamente ingênua, já que outros conhecimentos, referenciais e valores são

acessados para tanto.

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