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CÂMARA DOS DEPUTADOS
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
COMISSÃO ESPECIAL - PL 3198/2000 - ESTATUTO DA IGUALDADE RACIALEVENTO: Seminário N°: 0526/02 DATA: 28/05/02INÍCIO: 10h36min TÉRMINO: 12h30min DURAÇÃO: 01h54minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 01h56min PÁGINAS: 43 QUARTOS: 24REVISÃO: Cláudia Castro, Monica, Rosa AragãoSUPERVISÃO: Amanda, Gilza, Graça, NeusinhaCONCATENAÇÃO: Neusinha
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃOROBERTO BORGES MARTINS – Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada —IPEA
SUMÁRIO: Seminário: “A Igualdade Racial: Como Corrigir os Problemas Gerados pelaExclusão.”
OBSERVAÇÕESHá intervenção inaudível.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão Especial - PL 3198/2000 - Estatuto da Igualdade RacialNúmero: 0526/02 Data: 28/05/02
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O SR. APRESENTADOR (Carlos Rudney) – Senhores, bom dia. Atendendo
às normas do cerimonial público brasileiro, pedimos às senhoras e senhores
presentes que, a partir deste momento, mantenham os seus aparelhos celulares
temporariamente desligados.
Estamos iniciando a cerimônia de abertura do seminário “A Igualdade Racial:
Como Corrigir os Problemas Gerados pela Exclusão”, iniciativa da Comissão
Especial do Estatuto da Igualdade Racial da Câmara dos Deputados.
Neste momento, convidamos para compor a Mesa o Exmo. Sr. Deputado Saulo
Pedrosa, Presidente da Comissão Especial da Igualdade Racial; o Exmo Sr.
Deputado Luiz Alberto, Vice-Presidente da Comissão Especial da Igualdade Racial;
o Exmo Sr. Deputado Reginaldo Germano, Relator da Comissão Especial da
Igualdade Racial; o Exmo Sr. Deputado Paulo Paim, autor do Projeto de Lei 3.198,
de 2000, que institui o Estatuto da Igualdade Racial; o Exmo Sr. Deputado Alceu
Collares. (Palmas.)
Neste momento, convidamos todos a ficarem de pé para a execução do Hino
Nacional.
(É executado o Hino Nacional Brasileiro. Palmas.)
O SR. APRESENTADOR (Carlos Rudney) – A Comissão do Estatuto da
Igualdade Racial foi instalada para discutir o Estatuto da Igualdade Racial em trâmite
nesta Casa.
Após as audiência públicas em que os membros da Comissão ouviram várias
autoridades envolvidas com a questão racial, deliberou-se sobre a realização de um
seminário, em que a discussão do tema pudesse transcender para toda a sociedade.
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As mudanças e progressos que se esperam do povo brasileiro em relação à
questão racial não acontecerão, se a sociedade não se conscientizar de que sua
evolução passa necessariamente pela solução dos graves problemas que permeiam
a questão racial, como o preconceito ou a discriminação, em função de etnia, raça
ou cor.
Com a palavra o Exmo. Sr. Presidente Saulo Pedrosa.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Sras. e Srs. Deputados,
senhoras e senhores, este seminário é mais uma etapa dos trabalhos que estamos
desenvolvendo no âmbito da Câmara dos Deputados para construir o Estatuto da
Igualdade Racial.
Iniciamos a audiência pública no âmbito das Comissões, com viagens a oito
Estados da Federação para tratar do tema.
Hoje, neste seminário, pretendemos ampliar as discussões desse importante
problema, na esperança de elaborarmos uma lei que reflita os anseios da sociedade
brasileira.
Inicialmente, além de saudar a Mesa, registro a presença em plenário dos
Sub-Relatores temáticos, Deputados Narcio Rodrigues, João Almeida e Osmar
Terra.
Devolto a palavra ao nosso mestre de cerimônia.
O SR. APRESENTADOR (Carlos Rudney) – Dando continuidade à
solenidade, convidamos para fazer uso da palavra o Exmo. Sr. Deputado Luiz
Alberto, que também dará as boas-vindas a todos os participantes.
O SR. DEPUTADO LUIZ ALBERTO - Sr. Presidente, Deputado Saulo
Pedrosa, Sr. Relator, Deputado Reginaldo Germano, Sr. Deputado Paulo Paim,
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autor do projeto de lei do Estado da Igualdade Racial, nobre Deputado e ex-
Governador Alceu Collares, demais presentes, sejam bem-vindos.
Aproveito para registrar minha expectativa em relação ao seminário. Este é
um momento histórico que estamos vivendo na Câmara dos Deputados, que pela
primeira vez se debruça sobre proposta tão abrangente e ampla. Trata-se de um
debate não do projeto do Deputado Paulo Paim especificamente, mas de um
assunto que se está revelando na sociedade brasileira, principalmente a discussão
travada nos últimos trinta anos pelo Movimento Negro Brasileiro.
Esperamos apresentar, de forma objetiva, o produto do debate travado pelo
Movimento Negro. Que o projeto de lei do Deputado Paulo Paim sirva como
orientação, para que, ao final dos nossos trabalhos, tenhamos uma proposta daquilo
que é possível ser apresentado a esta Casa. Esperamos debater o assunto e, ao
final deste ano, aprovar um conjunto de leis que atendam às reivindicações
históricas da população negra brasileira.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. APRESENTADOR (Carlos Rudney) – Neste momento, fará uso da
palavra o Exmo. Sr. Deputado Reginaldo Germano.
O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO - Sr. Presidente, Deputado
Saulo Pedro, Srs. Deputados Luiz Alberto, Paulo Paim, Alceu Collares, Osmar Terra,
João Almeida, Narcio Rodrigues, Damião Feliciano, senhoras e senhores, primeiro,
quero registrar minha alegria e satisfação de estarmos caminhando em direção a um
sonho de tantos anos. Para muitos, era um sonho perdido, mas, com luta, garra e
vontade, superando todas as dificuldades, esta Comissão tem marchado em direção
aos direitos de uma sociedade excluída.
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Estive em Atlanta, nos Estados Unidos, e visitei a Fundação Martin Luther
King. Também visitei o túmulo do reverendo e ali meditei o quanto vale a pena uma
luta, às vezes, até o sacrifício.
Podemos dizer que essa é uma discussão não do interesse geral da
sociedade, mas daqueles que têm sido postos à parte de todas as decisões que
essa sociedade tem tomado desde 13 de maio de 1888.
Minha esperança é dar ou devolver o direito que nos foi tirado com a
assinatura da Lei Áurea. Ao contrário do que comentam e publicam, ao assinar a Lei
Áurea, os negros foram marginalizados, saíram da situação de escravos para a de
marginais, situação em que vivem até hoje.
Espero que, a partir do momento que for sancionado o estatuto dessa lei pelo
Presidente da República, recuperemos o direito de ser considerados cidadãos
brasileiros, participemos das discussões e de todas as decisões tomadas nesta
Nação.
Obrigado. (Palmas.)
O SR. APRESENTADOR (Carlos Rudney) – Concedo a palavra ao Deputado
Paulo Paim.
O SR. DEPUTADO PAULO PAIM - Sr. Presidente, nobre Deputado Saulo
Pedrosa, a quem tivemos a felicidade de acompanhar na maioria das viagens aos
Estados, para discutir este estatuto; Deputado Reginaldo Germano, Relator da
matéria, que junto com os Sub-Relatores estão construindo esta peça histórica; meu
colega, companheiro e amigo de Estado, ex-Governador Alceu Collares, primeiro
Governador negro eleito na história deste País; nobre amigo e companheiro de
partido Deputado Luiz Alberto, militante ativo do Movimento Negro, que chegou a
esta Casa dando um tratamento diferenciado aos debates, muito contribuindo para
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que um momento como este pudesse acontecer. Primeiro, quero situá-los a respeito
do porquê de apresentarmos o projeto do Estatuto da Igualdade Racial.
O Movimento Negro vem há muitos anos tentando estabelecer este debate no
Congresso. Diante da dificuldade de projetos que transitavam individualmente,
pautando-nos no próprio Regimento, entendemos que deveríamos aglutinar as
principais propostas, até o momento debatidas pelo Movimento e apresentá-las em
forma de estatuto.
Nosso objetivo só deu resultado positivo porque tivemos o apoio muito grande
do Movimento Negro deste País e de algumas entidades de caráter nacional.
Também contribuiu muito para este momento acontecer a conferência
realizada na África do Sul. Enquanto uma delegação foi à África do Sul, outro grupo
de Parlamentares e parte do Movimento estavam no Congresso, cumprindo um
papel combinado para que esta Comissão fosse instalada. Hoje, podemos dizer que,
depois de 502 anos, o Parlamento brasileiro parou para discutir e votar uma política
de combate ao preconceito e ao racismo.
Tenho certeza de que este seminário, a exemplo de outros que realizamos
nos Estados, trará grande contribuição para esta peça, não mantendo a forma
original, não é esse o objetivo, mas melhorando-a, ampliando-a e qualificando aquilo
que foi construído até o momento.
A discussão deste Estatuto está sendo travada por toda a sociedade
brasileira. Com muito carinho, amor e força, lembro-me de quando fomos à África do
Sul, em uma missão do Parlamento brasileiro, visitar Nelson Mandela. Na primeira
reunião realizada, no fundo de uma igreja, lá estavam brancos e negros, todos
comprometidos com a luta contra o apartheid.
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Este momento é de interesse não apenas da comunidade negra. Há alegria
neste plenário, onde estão presentes brancos e negros, homens e mulheres,
comprometidos e solidários na construção de uma sociedade em que a capacidade
de um homem não será medida pela cor da pele, mas por sua conduta, suas ações
e forma de agir.
Estivemos com Nelson Mandela ainda no cárcere. Isso nos marcou
profundamente. Ele nos disse: “É importante a solidariedade nacional, mas tenho
certeza, senhores, de que não sairei do cárcere enquanto não houver neste País
uma sociedade democrática que respeite o direito de cada cidadão”. Ele me disse:
“Amandla, amandla, amandla”. Perguntei o que significava aquela palavra e ele
me respondeu: “Cada homem, uma lança; cada homem, um voto”. Ele nos disse que
esperava que naquele país fosse construído outro momento, que tivessem outro
Congresso e fosse eleito o presidente da república.
Saí da África do Sul convencido de que no Brasil as coisas não são muito
diferentes. O apartheid racial e social são profundos. Confesso que fiquei triste ao
tomar conhecimento de que o último censo do IBGE reconheceu que 48% da
população brasileira são constituídos de afro-brasileiros ou afro-descendentes. No
entanto, avançou somente de 5,1% para 6,5% o número de brasileiros que se
assumem como negros. Isso mostra o quanto a nossa auto-estima ainda está ferida
e magoada pela discriminação e por tantos anos de uma política escravocrata, que
marca de forma profunda o conjunto da nossa gente.
Vamos nos lembrar não apenas de Nelson Mandela, como também de nossos
heróis negros, tantos outros que a história omite, como Zumbi dos Palmares. Toda
vez que tivermos oportunidade, deveremos dizer: “Sou negro, sim, senhor. Viva
Zumbi dos Palmares”! É muito fácil ensinar a criança a amar, mas é muito difícil
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ensiná-la a odiar alguém pela cor da pele. Em nome das nossas crianças, da nossa
geração e da geração futura, deixo-lhes os meus sinceros cumprimentos.
Viva Mandela! Viva Zumbi! (Palmas.) Vivam todos que estão neste plenário,
realizando um grande seminário, que, sem sombra de dúvida, fortalecerá a geração
presente e as gerações futuras.
O SR. APRESENTADOR (Carlos Rudney) – Concedo a palavra ao Deputado
Alceu Collares.
O SR. DEPUTADO ALCEU COLLARES – Sr. Presidente, Deputado Saulo
Pedrosa; Vice-Presidente, Deputado Osmar Terra; Deputado Luiz Alberto; Deputada
Almerinda de Carvalho, Deputado Reginaldo Germano; Deputado Paulo Paim, autor
desta proposição, há quase vinte anos muitos Parlamentares tentaram e não
conseguiram fazer com que o Congresso Nacional discutisse o problema do negro.
O Deputado Paulo Paim, pela sua competência, capacidade e acima de tudo
perseverança conseguiu a criação de Comissão Especial para elaborar o Estatuto
da Igualdade Racial. Indiscutivelmente, trata-se de um grande avanço. Depois de
quase quatrocentos anos, damos os primeiros passos na caminhada necessária
para um processo de conscientização do que se passou com o negro no Brasil,
como veio da África, quais foram os tratamentos que as elites e as classes
dominantes lhe dispensaram, durante o tempo em que ele foi o único instrumento da
realização da economia brasileira. Durante 350 anos, o negro foi apenas aquele que
realizava a atividade produtiva, pois o branco tinha constrangimento de dizer que era
trabalhador.
Parece-me ser esta grande oportunidade criada por esta Comissão com a
proposta do Deputado Paulo Paim para um debate aprofundado do tema. O negro
brasileiro foi submetido à mais terrível e hedionda escravidão. O Brasil foi o último
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país a libertar o negro. Nós, negros, precisamos tomar consciência, porque muitos
de nós ainda não despertaram para a necessidade de examinar as causas, os
motivos, as origens, as fontes desta monumental e amazônica injustiça que fizeram
para o ser humano negro. É claro que houve escravidão em outras partes, mas
estamos tratando apenas do nosso problema.
Tenho dito que nós, negros, não estamos fazendo um movimento contra
nenhuma outra raça. Estamos tão-somente a favor da nossa raça, para tentar fazer
com que a monumental dívida social que o Brasil tem para com o negro brasileiro
seja efetivamente paga.
Fomos transportados em porões de navios miseráveis e nossas famílias
foram desconstituídas. Outras etnias para cá vieram depois de uma crise na Europa
em que italianos, alemães, portugueses, poloneses e espanhóis vieram para a
América e para o Brasil na busca de uma nova pátria, de uma nova nação.
A diferença é que vieram por livre e espontânea vontade. Ajudaram a
construir a grandeza deste País, sim, mas aqui já estávamos provavelmente há mais
de duzentos anos. Não viemos por livre e espontânea vontade. Viemos contra a
nossa vontade, viemos como escravos, como animais, como mercadorias, como
produtos, e fomos vendidos.
Ora, isso tudo se acumulou em cima da nossa raça. Aos pouquinhos,
estamos despertando para a consciência individual e coletiva do negro brasileiro
para que ele assuma com inteireza toda a sua história e passe daí em diante a lutar
para convencer a sociedade brasileira de que temos uma dívida social para cobrar
do País.
O 13 de maio foi apenas uma medida de caráter eminentemente econômico
de interesse das classes dominantes, das oligarquias, das elites do País. O 13 de
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maio foi a substituição do braço escravo pelo braço remunerado, porque era a época
conveniente para a economia e porque o mundo estava alarmado também com os
navios negreiros, com a escravidão. A consciência dos intelectuais, dos cientistas
políticos, de historiadores brancos e negros começava a agudizar, de tal maneira
que a pregação começou com a proibição de que houvesse a escravidão ou o
transporte de criaturas humanas, como faziam conosco.
A nossa data é o 20 de novembro que comemoramos a morte de quem
naquela oportunidade teve a audácia, a coragem, o desprendimento de se rebelar
contra a escravidão. Não há outra forma mais deprimente, mais decadente, mais
injusta, mais maquiavélica, mais cruel e perversa do que escravizar uma criatura
humana. E fomos escravizados como se fôssemos bichos e vendidos como animais.
Se não tomarmos essa consciência, ficaremos por muito tempo ainda à margem dos
direitos sociais.
Dou graças a Deus por termos rebelado. Porém, não basta ser negro para ter
consciência da negritude, para assumir individual e coletivamente a
responsabilidade da luta em busca da dívida social que a Nação brasileira tem com
o negro. Fomos largados nas estradas com uma mão na frente e outra atrás; quando
vieram outras raças, deram um eito de terra, ou deram recursos para começarem a
realização da sua atividade. Estamos despertando de tal maneira em prol da luta,
para que o processo da negritude seja assimilado, que o próprio Governo, só depois
de oito anos, quis dar um pacotaço com as cotas, depois com uma série de
pagamentos iniciais da dívida social. O programa das cotas da universidade, quando
outros países já tinham concedido esse direito há muito tempo, está aos pouquinhos
surgindo na consciência do Governo no seu oitavo ano, e algum Ministério reserva
vagas para os negros. Por quê? Porque a nossa comunidade toda foi jogada na
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periferia das cidades; porque não temos oportunidade; não temos igualdade de
oportunidades. Para nós tudo é diferente. Quantos negros há no Exército, na
Marinha, no Poder Judiciário, em todos os comandos do poder político nacional?
Pouquíssimos.
No nosso 20 de novembro, saudamos e homenageamos a consciência do
Zumbi que se rebelou, sem dúvida alguma, de maneira muito corajosa, para
enfrentar na época os caçadores.
Companheiros, poderíamos conversar mais, mas estou sendo avisado de que
a minha cota terminou. Mas gostaria de tentar pelo menos dizer a parte de um
poema que fiz, fui um homem que escreveu para escola de samba.
No auge da ditadura, em 1966, tínhamos uma escola de samba em Porto
Alegre e me pediram para escrever. E escrevi sobre Zumbi:
“Essa é a história de um negro. Seu nome é Zumbi.
Foi vendido aos traficantes de escravos. Imundos porões
de navios miseráveis, sofre o negro desumanos castigos.
Depois da longa noite da escravidão medonha, o duro
trabalho, a saudade matando e o chicote batendo,
batendo no corpo cansado do pobre cativo. O negro
rebelde deixa a senzala e vai pela floresta verde. Zumbi
sai em busca da sua pátria, do seu povo e da liberdade.
Surge o Quilombo de Palmares, nação de negros,
organizada, operosa, socialista e livre. Mas o branco, que
tinha no braço do negro instrumento criador da sua
riqueza, não se conforma e diz: ‘Negro não é gente!
Negro é um animal! Morte aos Palmares!’ Resistem os
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negros com inaudita coragem, tingindo de sangue o solo
de Palmares. Que lutas de ódios, que ataques violentos,
que mortes horríveis sofreram os negros! O fogo se
alastra pelas toscas palhoças, centenas de cadáveres
espalhados no chão, milhares de negros voltando para a
escravidão. E a história nos conta que Palmares caiu,
mas, ainda hoje, se ouve, no fundo da alma do negro, o
grito pungente do valente guerreiro, Zumbi: ‘Liberdade,
liberdade, liberdade’.” (Palmas.)
O SR. APRESENTADOR (Carlos Rudney) - Neste momento, desfaz-se esta
Mesa de honra.
Após os cumprimentos finais dos Deputados, passamos a palavra ao
Deputado Saulo Pedrosa, que, a partir deste momento, presidirá os trabalhos deste
seminário.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Agradecemos à Câmara
pela participação neste evento. A Mesa registra a presença do Ministro-Conselheiro
da Embaixada da Romênia, Alexandru Bogoroditza.
Registramos também realização da exposição itinerante de fotografias do
Círculo de Mulheres da Ilha de Moçambique.
Registro a presença do Deputados Gilmar Machado, Sub-Relator da
Comissão de Educação, Professor Luizinho e Damião Feliciano.
Dando início ao nosso seminário, convido para compor a Mesa o Dr. Roberto
Borges Martins, Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — IPEA,
que falará sobre o tema “Os Problemas Gerados pela Exclusão”. (Palmas.)
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Após a exposição do Dr. Roberto, abriremos espaço para as interpelações.
Os interessados deverão inscrever-se previamente na Secretaria da Mesa.
Incontinenti, com a palavra o nobre expositor.
O SR. ROBERTO BORGES MARTINS – Sr. Presidente, Deputado Saulo
Pedrosa, Srs. Senadores, Deputado Alceu Collares, Srs. Deputados, senhoras e
senhores, com muita satisfação, aceitei o convite para participar deste seminário.
Muitos não sabem, mas muitos já têm conhecimento de que o IPEA tem-se
dedicado intensamente ao estudo, ao levantamento de indicadores e à análise das
desigualdades raciais no Brasil. Faz parte da tradição do IPEA o estudo das
condições sociais e, há cerca de dois anos, introduzimos na nossa temática de
pesquisas as desigualdades raciais, que compõem parte extremamente importante
do problema das desigualdades no Brasil.
Grande parte da imensa desigualdade verificada no Brasil se dá por meio das
desigualdades entre brancos e negros, das imensas desvantagens a que foi
submetida a parcela negra da população brasileira.
Acredito que, nessa luta de tantos séculos em busca da igualdade racial no
Brasil, de algum tempo para cá, temos tido motivos para comemorar e para que as
esperanças sejam renovadas. Há avanços claros, palpáveis, concretos.
A Conferência de Durban, na África do Sul, convocada pelas Nações Unidas,
teve importante participação do Brasil. A delegação do Brasil foi a maior em Durban,
tanto a delegação governamental como a da sociedade civil. Houve um processo
intenso de preparação, e o Brasil, pela primeira vez, participou e até liderou algumas
das melhores exposições apresentadas na referida Conferência.
A Conferência, com o apoio do Brasil, reconheceu a escravidão e o tráfico de
escravos como um crime contra a humanidade e, portanto, passível de reparações.
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Esse foi um grande avanço. Evidentemente, não quero deixar de mencionar que
milhares de militantes negros, de intelectuais negros já lutavam por essa questão há
séculos. Felizmente, de algum tempo para cá, tivemos um avanço importante. Esse
debate deixou de ser um assunto de negros. Finalmente, cada vez mais ele passa a
ser um assunto da sociedade brasileira, o que sempre deveria ter sido. A promoção
da igualdade racial no Brasil não é apenas um interesse dos negros. Trata-se de um
interesse de toda a sociedade brasileira. O IPEA tem demonstrado que a conquista
da igualdade entre as raças, além dos seus aspectos éticos e de promoção da
justiça e da igualdade, também significará imenso avanço econômico. O Brasil será
um país não só mais justo, mas também mais eficiente, mais produtivo, se
conseguirmos diminuir e eliminar as profundas desigualdades raciais.
Nos dois últimos anos, foram apresentados projetos de lei, como esse ora em
discussão, ao Congresso Nacional. Há projetos de lei em discussão e tramitação
nas Assembléias Legislativas dos Estados, alguns já aprovados. Temos assistido,
pela primeira vez, debates nas universidades brasileiras a respeito do tema. Tenho
participado intensamente de debates em diversas universidades públicas e privadas.
Temos assistido a debates no meio empresarial. Não faz muito tempo, houve um
grande debate na FIESP a respeito das desigualdades raciais e da necessidade de
se promover a igualdade. O Supremo Tribunal Federal tem-se manifestado, na
pessoa do seu Presidente, o Ministro Marco Aurélio Mello, inclusive externando
posição extremamente importante e decisiva para essa questão, a de que, no
entender do Presidente do Supremo Tribunal Federal, não existe nenhum
impedimento legal no sistema jurídico brasileiro, para que se estabeleçam as
políticas chamadas de ações afirmativas ou as políticas de compensação ou as
políticas de reparação ou, ainda, se quiserem, as políticas de discriminação positiva.
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O Ministro Marco Aurélio Mello — e eu já tenho visto várias exposições dele a
respeito — considera que, pelo contrário, o que a Constituição Federal do Brasil
determina é que se promova a igualdade e que se busquem os meios necessários
para a promoção da igualdade. Não há nenhum impedimento legal, como às vezes
alegam pessoas contrárias a essa tese.
Finalmente, também devemos registrar que o Poder Executivo tem tomado,
apesar da reclamação do Deputado Alceu Collares, pela primeira vez, na nossa
história, atitudes absolutamente concretas e positivas, no sentido de encarar esse
problema a que o Brasil se recusou fazê-lo secularmente.
O então Ministro Raul Jungmann lançou um programa de ações afirmativas
no seu Ministério; o Ministério da Justiça também lançou seu programa e, no último
dia 13 de maio, ao anunciar várias medidas referentes a direitos humanos, o
Presidente Fernando Henrique Cardoso lançou o Programa Nacional de Ações
Afirmativas e determinou que fosse criada uma comissão de acompanhamento,
implantação e avaliação desse programa.
Para nossa honra, S.Exa. determinou que o IPEA — talvez como
reconhecimento pelo empenho e pela participação que tem tido nos estudos e na
divulgação do problema das desigualdades raciais — represente a Secretaria-
Executiva do Programa Nacional de Ações Afirmativas, dando-me a honra e a
distinção de ser seu Vice-Presidente e Secretário-Executivo. O Presidente é o
Secretário dos Direitos Humanos, Sr. Paulo Sérgio Pinheiro.
Portanto, acredito haver motivo, sim, para alguma alegria, mas o caminho a
ser percorrido ainda é longo, e não apenas quanto ao direito dos negros. Toda vez
que se trata de romper algum privilégio ou conquistar algum direito, há conflito.
Nunca se conquistou qualquer direito nem se quebrou privilégio algum sem que
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houvesse conflitos. No momento em que essas questões começam a ser discutidas,
começam também a surgir reações.
Freqüentemente temos sido acusados — militantes negros e brancos, e
pessoas que defendem a necessidade da reparação dessas injustiças — de importar
problemas dos Estados Unidos e de ameaçar importar soluções. Tenho dito sempre
que importamos tantas porcarias dos Estados Unidos que, quando eles fazem
alguma coisa boa, não nos custa nada importar também.
Na minha apresentação, selecionei pequeno trecho de um discurso do
Presidente Lyndon Johnson. A maioria dos presentes sequer se lembra dele, porque
eram muito jovens quando se tornou Presidente dos Estados Unidos, após o
assassinato de Kennedy. Em 1965, ele estabeleceu o que ficou batizado de ações
afirmativas. E, no famoso discurso em que lançou essa tese, numa cerimônia de
formatura de universidade, disse que não se pode pensar que se está sendo justo
declarando livres os escravos e jogando-os no mundo, na disputa por posições no
mercado de trabalho, pela terra, pelos empregos.
Essa justiça é meramente formal e hipócrita, porque acorrentou-se aquele
grupo da população durante séculos, impediu-se que ele tivesse acesso à terra, à
educação, à propriedade e que recebesse pagamento pelo seu trabalho. Num belo
dia, alguém diz que aquela pessoa está livre para competir em condições de
igualdade com os outros.
Na verdade, esse é o fundamento ético e histórico do que se chama ação
afirmativa, discriminação positiva ou política compensatória. Trata-se do fato de a
sociedade reconhecer que cometeu um crime, que esse crime colocou parcela da
população em condições de extrema desigualdade e que essa desigualdade se
transmitiu através de gerações até o ponto em que alegar igualdade de competições
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nos vestibulares das universidades, na disputa pelo mercado de trabalho, na disputa
pelas posições de mando nas empresas ou no serviço público não é justo. A
condição não é igual.
O Brasil passou de uma mentira construída ainda no tempo da escravatura —
a de que a escravidão no País era mais branda, mais suave, mais cordial do que em
outras partes da América, fato desmascarado por historiadores, sociólogos e
estudiosos do assunto — para outra, a da democracia racial.
Grandes brasileiros do passado, como Gilberto Freire, que tanta contribuição
deu à compreensão da sociedade brasileira, prestaram-nos o enorme desserviço de
afirmar que a escravidão no Brasil era mais suave, mais amigável, mais gentil, e que
depois da abolição o País criou uma democracia racial, ou seja, que os ex-escravos
e seus descendentes integraram-se à sociedade brasileira com os mesmos direitos
que qualquer outro cidadão.
Na nossa história tivemos poucos exemplos, embora tenha havido, de
legislação segregacionista, que explicitamente impedia negros e negras de
freqüentarem determinados espaços ou de ocuparem determinadas posições, mas
nunca tivemos uma democracia racial. Nunca a tivemos e não a temos hoje.
O IPEA tem defendido, e temos lutado junto com companheiros e
companheiras brancos e negros irmanados na luta pela igualdade no Brasil, a idéia
de que ação afirmativa ou discriminação positiva nada mais é do que reparação e
compensação pelo dano causado a importante parcela da população no passado.
Não se trata apenas de cota em universidade. Na ação afirmativa temos de ser
criativos, ter imaginação e competência para encontrar maneiras de atacar esse
problema de desigualdade entre as raças. Cota na universidade é apenas um deles,
e tem a vantagem de gerar grandes polêmicas e, portanto, de esquentar o debate.
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Ação afirmativa nada mais é do que a sociedade reconhecer o crime que
cometeu no passado mediante a escravização de um grupo de seres humanos que,
como lembrou o Deputado Alceu Collares, não vieram para o Brasil por livre e
espontânea vontade, mas na condição de escravos.
E a escravidão moderna, ocorrida depois dos grandes descobrimentos, mais
do que a escravidão praticada na Antigüidade Clássica, dos gregos e dos romanos,
é a forma mais radicalmente excludente já inventada pelo ser humano. O escravo
não tinha direito a nada, sua condição transmitia-se de mãe para filho.
O Brasil praticou esse crime, e a sociedade brasileira é culpada por ele.
Todos os segmentos da sociedade brasileira participaram disso, inclusive a Igreja
Católica e o Governo. Havia os escravos da Nação — brinco sempre, quando
menciono isso, dizendo que os escravos da Nação não eram os funcionários
públicos; naquele tempo eram escravos mesmo —, da Igreja, dos colégios, do
Governo, dos nobres, dos juízes. Todo mundo tinha escravos, até a classe média da
época tinha escravos.
Sou estudioso do tema e darei apenas um número para os senhores terem
idéia da disseminação dessa prática perversa na sociedade brasileira. No meu
Estado natal, na então província de Minas Gerais, no meio do século passado, 34%
de todos os domicílios possuíam pelo menos um escravo. Esse número é maior do
que o de domicílios brasileiros que têm telefone fixo e automóvel hoje.
Era uma prática extremamente disseminada, e a sociedade apoiava isso, não
achava nada de errado com a escravidão, nem com o tráfico de escravos. Pelo
contrário, os grandes escravistas e os grandes traficantes eram agraciados com
títulos, eram os barões e os viscondes do Império. Foi um crime amplamente
praticado e disseminado, e compete a toda a sociedade repará-lo.
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Menciono sempre alguns números de conhecimento dos especialistas, dos
estudiosos da matéria, mas nem sempre suficientemente divulgados. O Brasil foi a
segunda maior nação escravista da era moderna. Só os Estados Unidos tiveram
população escrava maior que a do Brasil, que foi o maior importador de escravos da
história da humanidade. O seqüestro de africanos e seu transporte através do
Atlântico para se tornarem escravos na América foi a maior migração forçada da
história da humanidade. Envolveu pelo menos 15 milhões de pessoas, das quais
não mais do que 10 milhões chegaram vivas à América, tais eram as condições em
que se dava a travessia do Atlântico.
As taxas de mortalidade na travessia eram brutais, e o número de africanos
escravizados na África jamais será conhecido. Sabemos do número aproximado dos
que chegaram vivos às diversas partes da América. O Brasil foi o maior importador
de escravos da história da humanidade. Durante quatro séculos, de 1450 até 1850,
o País importou cerca de 40% de todos os africanos que saíram da África ou
chegaram vivos à América. Ou seja, de cada dez, quatro vieram para o Brasil.
A risonha e querida cidade do Rio de Janeiro foi o maior porto escravista da
história do mundo, o que é trágico. A partir do século XVIII, quando foi descoberto
ouro em Minas Gerais, o tráfico dirigiu-se sobretudo para o Rio de Janeiro, que era o
porto de entrada — o Rio de Janeiro nunca foi outra coisa que não porto de Minas
Gerais. Era dirigido preferencialmente para o Nordeste, para as grandes plantações
de cana e para a produção de açúcar e desviou-se para o Rio de Janeiro, que se
tornou o maior entreposto de escravos do Brasil e da história da escravidão.
O Rio de Janeiro importou mais escravos do que qualquer outra parte da
América, e eles eram distribuídos pelo interior. A nossa cidade maravilhosa chegou
a ser, no meio do século XIX, a maior cidade africana do mundo. Não havia em outro
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lugar, nem na África, aglomeração urbana com tantos africanos nativos, para não
falar nos afro-descendentes, como no Rio de Janeiro.
Pelo recenseamento de 1849, a cidade do Rio de Janeiro tinha 75 mil
africanos nativos e mais de 100 mil descendentes de africanos. Então, foi a maior
cidade africana do mundo. Em função de ter sido o maior importador de escravos da
história, o Brasil tem uma imensa população africana ou afro-descendente até hoje.
Não sei se os senhores sabem que o Brasil tem hoje a segunda maior população de
origem africana do mundo, incluindo os países da África. Só a Nigéria tem uma
população africana maior do que a população afro-brasileira.
Pelo fato de temos praticado o crime da escravidão, pelo fato de termos sido
os campeões mundiais do tráfico atlântico — a maior migração forçada, o maior
seqüestro da história da humanidade — e pelo fato de todos os segmentos da
sociedade terem apoiado a escravidão, inclusive o Congresso, o Governo e a Igreja,
um episódio choca-me muito.
No século XIX, companhias inglesas multinacionais exploraram ouro das
minas que haviam sido exploradas no período colonial, formando companhias
capitalistas na Inglaterra — centro do capitalismo mundial que combatia o tráfico de
escravos —, que se instalaram em Minas Gerais e trabalhavam intensamente com
escravos.
Muitos dos senhores certamente já ouviram falar da Mina do Morro Velho, que
está em operação até hoje. Ela era a Saint John Del Mining Company Limited, uma
mina inglesa. Também já devem ter ouvido falar na Mina de Congo Soco, que não
produz mais ouro, está fechada, mas foi uma grande empresa mineradora.
Chamava-se Imperial Brazilian Mining Company e era uma empresa inglesa.
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Ao examinarmos os registros de Congo Soco, verificamos uma coisa cruel:
quando nasciam crianças escravas, os ingleses faziam com que elas fossem
batizadas por um capelão anglicano na Igreja Anglicana, em Congo Soco.
Encontramos registros de crianças escravas batizadas com nomes ingleses, como
Polly e Peggy. Como requinte de crueldade, de deboche, encontramos crianças
escravas batizadas com nome de personagens shakespearianos. Encontramos, por
exemplo, Otelo e Macbeth.
Isso era amplamente disseminado na sociedade, e só depois da Guerra do
Paraguai, quando milhares e milhares de negros foram lutar no Exército brasileiro e
retornaram, começou a haver alguma consciência antiescravista na sociedade
brasileira.
Naquela altura, o Brasil já era o único país do mundo ocidental que ainda
praticava a escravidão. Até Cuba, em 1870, já tinha abolido a escravidão. De todos
os países que foram colônias e se tornaram independentes ao longo dos séculos
XVIII e XIX, o Brasil foi o último a abolir a escravidão, em 1888, há pouco mais de
114 anos. Isso significa que, quando eu nasci, ainda existiam brasileiros vivos que
haviam sido escravos. Quando os meus pais nasceram, ainda existiam muitos
brasileiros e brasileiras que haviam sido escravos.
É muito recente entre nós a ocorrência desse crime. O Brasil foi o último país
do mundo ocidental a abolir a escravidão, foi o penúltimo país do mundo ocidental a
abolir o tráfico de escravos, foi o maior importador de escravos do mundo e a
segunda maior sociedade escravista da história da escravidão moderna. Portanto,
não é preciso muito mais para caracterizar o crime, usando a linguagem de Joaquim
Nabuco. Tais fatos caracterizam o crime cometido, e não há outra palavra para
designá-los.
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Ações afirmativas não são outra coisa senão a sociedade reconhecer o crime
e tentar compensá-lo. Esse crime foi praticado, essa parcela da população foi
colocada numa posição de desvantagem e desigualdade, transmitida através de
gerações — sabemos que desigualdades, vantagens e desvantagens sociais
transmitem-se através das gerações, por meio da educação, da acumulação de
riquezas, da acumulação de poder, da acumulação de terras.
Ação afirmativa é tentar compensar por isso, ainda que tardiamente. É tratar
os desiguais de forma desigual, com o objetivo de promover a igualdade. Muitas
vezes nos perguntam, ao debatermos a discriminação positiva, se não estamos
propondo racismo às avessas, se não estamos propondo algo injusto, se não
estamos dando algum privilégio. Estamos propondo apenas que seja feita alguma
compensação por aquele desprivilégio, por aquele tratamento discriminatório que
ocorreu ao longo dos séculos e foi transmitido através das gerações.
Tratar desiguais de forma igual é uma hipocrisia, uma mentira. Não se dá a
uma pessoa um Fusca e a outra uma Ferrari, as coloca na linha de largada e se diz
“agora, vão correr a sua corrida”, porque já se sabe qual vai ser o resultado.
Não há nenhum problema ético nisso. O Ministro Marco Aurélio tem-nos
garantido que também não há problema jurídico. Tenho a mais absoluta convicção
de que não há nenhum problema ético em tratar desiguais de forma desigual, para
se promover a igualdade.
As políticas de ação afirmativa são na sua essência temporárias. Se um dia
tivermos a felicidade e a alegria de ver no Brasil a igualdade reinando entre as
raças, entre as pessoas, as ações afirmativas não serão mais necessárias. Aí é
cada um por si, cada um que se vire, cada um que dispute suas vagas, seus
lugares, suas posições. Que vençam os melhores. Mas o que temos hoje não é
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honesto. Não é “que vençam os melhores”. No discurso do Presidente Lyndon
Johnson, que mencionei há pouco, ele dizia que era como manter acorrentado um
dos concorrentes, mandá-lo correr junto com os outros e dizer “que vença o melhor”.
Isso é uma mentira, uma falsidade.
Os senhores devem ter percebido que já desisti de apresentar aquela carreira
de números com que sempre brindo e aborreço a platéia quando faço exposições.
Entrego o CD-ROM para a Comissão. Os números estão no site do IPEA, à
disposição de todos.
É possível demonstrar — e os números do IPEA demonstram com muita
clareza — que as desigualdades historicamente construídas e impostas à população
negra brasileira permanecem entre nós. Estão aí, materializam-se, revelam-se
mediante brutais desigualdades educacionais, ocupacionais, de renda, de condições
de moradia, enfim, de condições de bem-estar da população negra em relação à
população branca. São números muito claros, e, em alguns casos, as diferenças são
brutais.
Dos países da América que praticaram a escravidão negra, nenhum lidou com
os problemas das desigualdades geradas pela escravidão de modo pior que o Brasil.
Todos os outros países conseguiram promover certa igualdade entre negros e
brancos, mas o Brasil ficou para trás nisso também.
Não temos a menor dúvida de que é ético, necessário e importante que se
promovam mecanismos de equiparação, de reparação, de compensação, para que
possamos colocar no mesmo pé de igualdade as populações branca e negra
brasileiras. Aí sim, depois que tivermos conquistado essa igualdade, que se
promova a competição livre, do jeito que as pessoas consideram melhor. Mas
parcela da população foi alijada de tudo, excluída, não pôde acumular educação,
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riqueza, poder. É absolutamente injusto e hipócrita negar isso. A busca da igualdade
e a quebra de privilégios sempre geram conflitos.
Na história do Brasil, em muitas questões temos tido cotas para brancos, e
muitas vezes as cotas são de 100%. Vários segmentos do mercado de trabalho,
vários segmentos da política, das posições de mando e poder têm tido cotas, e elas
são 100% para brancos. No momento em que se tentar dizer “agora são só 80%
para brancos e 20% para negros”, vamos ter resistência. Vamos ter quem acuse os
proponentes dessas políticas de demagogos, de importadores de soluções e
problemas dos Estados Unidos, como se não tivéssemos um problema de
desigualdade racial entre nós.
Tenho ouvido freqüentemente: “Por que esse branco está aí defendendo
questões dos negros?” A resposta que tenho dado é: “Não estou defendendo
assuntos dos negros, não. Estou defendendo a igualdade no meu País. Estou
defendendo interesses do meu País, o interesse de ser um país justo, com
igualdade, melhor e mais feliz”.
Portanto, penso ser extremamente importante esse projeto que está em
apreciação, para o qual foi criada esta Comissão Especial. Penso que se trata de
contribuição significativa. Não devemos ter a ilusão de que as desigualdades vão
desaparecer em virtude disso. É algo para ser conquistado, e ainda vai levar
gerações para se alcançar isso, mas é preciso começar, é preciso dar o primeiro
passo.
A história das relações entre as raças no Brasil sempre foi marcada pela
negação. As pessoas colocaram na cabeça que somos uma democracia racial, e o
Brasil recusa-se a enxergar a desigualdade que existe entre as raças. Não só as
desigualdades e o preconceito acumulados pelo racismo chamado estrutural, que é
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o racismo praticado no passado, mas pelo racismo que existe ainda hoje. Qualquer
negra ou negro brasileiro sabe que determinadas parcelas do mercado de trabalho
estão fechadas. Elas têm de ser abertas. Qualquer jovem negro brasileiro, homem
ou mulher, sabe que a porta das universidades ainda continua em grande medida
fechada.
Deputado Alceu Collares, há um dado estarrecedor que não conferi, mas de
que tenho ouvido falar, e, pela minha experiência, penso ser verdadeiro: nas
universidades públicas brasileiras, existem mais negros africanos do que negros
brasileiros, porque o Brasil tem convênios e recebe estudantes dos países africanos
de língua portuguesa. Assim, recebemos jovens negros africanos para fazer
mestrado e doutorado nas nossas universidades, mas os jovens negros brasileiros
não têm tido acesso.
Por qualquer ângulo que se observe, a desigualdade existe e está presente
entre nós. Foi criada pela sociedade brasileira, e compete a ela reparar esse erro e
promover a igualdade. Ação afirmativa, cota, discriminação positiva, isso não é outra
coisa além de uma forma de promoção da igualdade.
Num debate sobre esse tema, alguém levantou a questão de que, nos países
onde se tentou fazer isso, houve aumento do nível de violência inter-racial e que
temos relações muito cordiais entre brancos e negros no Brasil, somos muito
amigos. Então, para que mexer nesse vespeiro? Para que inventarmos essas coisas
de americano e gerar no Brasil talvez o aumento do ódio inter-racial, o aumento da
violência inter-racial? Perguntaram se já tínhamos pensado no que poderia
acontecer no Brasil se essas políticas fossem adotadas.
E a resposta mais impressionante que eu já ouvi sobre isso foi dada por uma
senhora velha, negra. Ela disse assim: “Vocês estão fazendo a pergunta errada. Em
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vez de perguntarem o que vai acontecer se adotarmos essas políticas, deveriam
perguntar o que vai acontecer com o Brasil se não adotarmos essas políticas”.
Eu não trouxe os números, mas trouxe a essência do argumento que queria
transmitir.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) - Agradeço a magistral
palestra ao Sr. Roberto Martins e anuncio os debates. As pessoas interessadas
levantem a mão, a fim de que a Secretária leve o microfone. Solicito que declarem o
nome, para que fique registrado.
O SR. ROBERTO BORGES MARTINS - Posso fazer um adendo?
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Sim.
O SR. ROBERTO BORGES MARTINS - Há outro ponto importante a respeito
da política de ação afirmativa. Temos observado um dado muito claro quando
medimos a evolução das condições sociais de brancos e negros no Brasil. Mesmo
em áreas nas quais existe melhoria das condições sociais da população em geral —
como, por exemplo, na educação, porque está aumentando a escolaridade de
brancos e de negros no Brasil —, as políticas universalistas, que tratam todos da
mesma forma e tentam atingir a população como um todo, não são focalizadas, não
têm sido capazes de diminuir a diferença entre brancos e negros.
Em alguns casos, os indicadores mostram que, se não fizermos nada, os
negros brasileiros, na média, atingirão daqui a cinqüenta anos a educação que os
brancos têm hoje. Em alguns outros indicadores, como condições habitacionais ou
de renda, os indicadores são divergentes. Ao longo dos anos 90, a diferença entre
brancos e negros não diminuiu. Ela aumentou. Se não fizermos nada, ela vai
tornar-se cada vez maior. Então, um argumento importante a favor da adoção de
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políticas de ação afirmativa é o fato de que elas não têm sido capazes de reduzir as
desigualdades entre brancos e negros.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – O debate começa com a
interpelação do Deputado Alceu Collares. Em seguida, falará o Prof. Ubiratan
Araújo.
O SR. DEPUTADO ALCEU COLLARES – Confesso que estou encantado
com a presença do Presidente do IPEA. É a primeira vez que ouço uma conferência
com tanta profundidade e, acima de tudo, com muita sinceridade.
Temos ouvido grandes conferencistas falando mecânica e linearmente, mas o
Presidente do IPEA está produzindo, sem dúvida alguma, uma verdadeira revolução
no Brasil. O IPEA é um órgão do Governo que está focalizando com profundidade o
problema do negro no Brasil. Por isso, quero cumprimentá-lo. Ao mesmo tempo,
gostaria de dizer que toda a linguagem utilizada das ações afirmativas e da
compensação me parece correta, mas talvez para o processo de conscientização
seja melhor dizer o pagamento da dívida.
Compensar o quê? Se houve um crime, não há como compensá-lo. É a
mesma coisa que Igreja. Deu o perdão, e ficamos na mão? É preciso dar o perdão e
tentar compensar, corrigir os males que fizeram para nós. Não vamos fazer
revolução nenhuma, estamos só num processo de revolução de consciências. O
IPEA, que poderia ter feito isso há quarenta anos, está fazendo pela primeira vez.
Tenho observado o senhor na televisão e no rádio também com essa garra e a
capacidade de observar o problema do negro.
Gostaria de mencionar alguns nomes de pessoas que lutam há muitos anos
pela causa além de José do Patrocínio, como Abdias do Nascimento, do teatro
negro, dos jornais, há cerca de sessenta anos numa pregação solitária. Outro dia, vi
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na televisão um programa sobre o negro em que alguém disse que aplicaria a Lei
Affonso Arinos. Não existe mais a Lei Affonso Arinos. Hoje temos um extraordinário
avanço que conseguimos no Congresso Nacional, uma emenda à Constituição do
Carlos Alberto de Oliveira, o Caó, que considera crime inafiançável o preconceito.
Muitos de nós, negros brasileiros, não sabemos disso. Ofendem-nos, e ficamos sem
saber o que fazer.
Com relação à crítica que fiz a Fernando Henrique, ele foi o primeiro que
escreveu sobre o negro. Saiu da universidade e escreveu um livro belíssimo a
respeito do negro no Rio Grande, o negro na charqueada, no campo, na agricultura,
um belo trabalho. Só estou achando que ele demorou para despertar, porque está
terminando o Governo. É como se pensasse que vai acender a fogueira e sair de
perto.
Quando representaram o Governo brasileiro na conferência realizada na
África do Sul, levaram um documento admitindo as cotas para educação na
universidade. Aí o Ministro da Educação, um gaúcho, Paulo Renato Souza, disse:
“Não é por aí, tem que dar primeiro condições para fazer o vestibular”.
Mandei um telegrama ao Presidente Fernando Henrique Cardoso — não sei
se ele recebeu — dizendo que, quando eu era Governador, se um Secretário não
cumpria determinação do Governo, eu o mandava para a rua. Se o Presidente da
República encaminha uma delegação ao Sul da África e ela leva a proposta das
cotas universitárias, é inadmissível que exatamente o Ministro da Educação diga que
não é esse o melhor caminho.
Elogio mais uma vez seu trabalho. Sabem por que muitos não acreditam que
brancos possam expressar-se como o amigo está expressando-se? Porque só o
negro sente na alma a discriminação e o preconceito. (Palmas.)
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A historiografia brasileira é escrita por brancos, por isso os livros de História
passam como aves de rapina pelas páginas das histórias, contadas rapidamente.
Mas tenho certeza de que, depois desse trabalho do Estatuto da Igualdade Racial, a
situação vai mudar. Aliás, no início eu achava que tinha de ser Estatuto do Negro,
porque existem o Estatuto do Índio, o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Igualdade racial e outros gerados pela exclusão não, gerados pelo crime hediondo
da escravidão! Na exclusão social também estão os nossos irmãos brancos, pobres,
miseráveis e indigentes. Temos na nossa alma e no nosso corpo as marcas do crime
mais hediondo que a humanidade praticou: a escravidão.
Cumprimento o amigo e também o Deputado Paulo Paim pela perseverança
que tem tido na defesa de suas idéias.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Parece-me que não houve
uma interpelação, e consulto o Dr. Roberto sobre se quer fazer algum comentário.
O SR. ROBERTO BORGES MARTINS – Sim, apenas um comentário às
considerações do Deputado Alceu Collares.
A bem da justiça, Deputado, devemos declarar que, quando o IPEA começou
esse estudo, fomos avisados por pessoas de dentro e fora do Governo de que isso
era um vespeiro e gera confusão.
Tenho de dar aqui o meu depoimento de que fomos o tempo todo totalmente
incentivados e apoiados pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, profundo
conhecedor da matéria, como V.Exa. disse, autor de belíssimo livro sobre a história
da escravidão no Rio Grande do Sul. O Presidente estimulou e tem estimulado o
IPEA a prosseguir nesses estudos e nessas divulgações, que têm um tom de
verdadeira denúncia.
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Com a palavra o Sr.
Clodomiro.
O SR. CLODOMIRO BALTAZAR COSTA – Bom-dia.
Fui militar durante algum tempo e observei que não havia um oficial-general
negro. Inclusive, aconteceu um problema com um amigo sargento, cujo nome não
vou revelar, e com outro sargento, ambos engenheiros civis. Eles tiveram
oportunidade de fazer provas para ser promovidos a oficial — ambos fizeram a
prova. O cidadão de cor negra obteve a melhor nota, mas, no momento de escolher
o promovido a oficial, o loirinho de olhos verdes, descendente de alemão ou de outro
país qualquer, levou vantagem. Pelo fato de ser branco e ter olhos azuis, ele foi
escolhido.
Hoje, ao encontrar com ele na rua, soube que é coronel. O cidadão de cor
negra, em função da discriminação sofrida, adquiriu uma doença que o leva a ficar
transpirando ao sol ou sob ar-condicionado. É um rapaz competente, sério, mas foi
discriminado nas Forças Armadas.
Agora, tenho uma pergunta a fazer. A história conta-nos que a união dos
homens se deu em função de autodefesa. Agruparam-se e começaram a dividir
alimentos, etc. Acho que conhecemos a história. Com a criação do nosso primeiro
documento, a nossa certidão de nascimento, a meu ver já começou a discriminação.
Tenho observado — não sei se alguns dos senhores ou das senhoras
observaram — nas certidões de nascimento o seguinte fato: quando a criança é de
família de cor branca, na certidão consta “cor branca”; quando é de cor preta ou
negra, está escrito “cor parda”. Daí pergunto — e não sei a resposta, vou até estudar
para saber — se pardo é cor. Acho que nesse ponto começa a discriminação. Essa
é a pergunta que faço. Não sei se essa cor realmente existe em nossos livros. Os
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senhores a conhecem? Alguém aqui do auditório pode responder? “Pardo” é cor? A
pergunta é essa, e deixo-a para os senhores.
Acho que o Brasil precisa passar realmente a nossa história a limpo. Somos
todos iguais. Pelo menos é o que diz nossa Constituição no art. 1º. No entanto, não
é o que vemos por aí.
Tenho observado outro detalhe. Tive oportunidade de ser convidado a
gerenciar algumas empresas e deparei-me com o seguinte fato: recentemente, as
empresas estão pedindo o curriculum vitae com fotos. A discriminação já ocorre
quando o elemento vê a foto do cidadão. Isso é freqüente. Não sei se isso é do
conhecimento dos senhores, mas quero deixar essa informação. Não vou citar o
local de trabalho, pois não vejo nenhuma necessidade. Não estou aqui para
aparecer. Quero apenas dar minha contribuição. E a minha maneira de contribuir é
pedindo mais justiça neste País não só para o negro, mas para os famintos, os
miseráveis, os desempregados, as donas de casa. Era o que eu gostaria de deixar
bem claro.
Peço a Deus que me conceda mais alguns anos de vida, porque eu gostaria
realmente de ver este nosso País mais justo, mais igualitário, mais humano.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Com a palavra o Dr.
Roberto Borges Martins.
O SR. ROBERTO BORGES MARTINS – Quanto a essa questão que o
senhor levantou a respeito da expressão “pardo”, concordo com ela. “Pardo” não é
cor de gente, “pardo” é papel de embrulho. Acontece que temos pessoas com
tonalidades de cor de pele no Brasil as mais diferentes.
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As estatísticas oficiais do censo e as pesquisas domiciliares das PNADs são
feitas por autodeclaração. O recenseador pergunta às pessoas em que categoria
das apresentadas elas se enquadram: branco, pardo, preto, amarelo, indígena. São
essas as categorias oferecidas à população brasileira para que ela se
auto-identifique. Não estou fazendo uma crítica leviana ao IBGE. O problema é
complicado. Toda vez que se vai preparar um censo, existem várias reuniões,
sessões, às vezes envolvendo toda a sociedade civil. O problema de declaração e
de designação de cor é complicado.
Não se pode deixar a escolha por conta do recenseador, porque ele vai
introduzir na resposta os próprios preconceitos ou a própria visão cultural.
Um recenseador de Santa Catarina é completamente diferente de um da
Bahia na percepção que ambos têm da cor das pessoas. O problema é complicado.
De fato, são essas as categorias que o censo apresenta.
Isso expõe um problema ainda não resolvido. Ao criarmos políticas de ação
afirmativa ou de cotas, ou alguma coisa que seja dirigida, voltada para a população
negra ou afro-descendente, teremos de ter critérios para definir quem são os
beneficiários, quem são os elegíveis para essas políticas.
Na verdade, isso às vezes é colocado como impedimento para essas
políticas. Acho que esse é um falso argumento. Não se trata de impedimento,
porque podemos ter dificuldade com algumas pessoas que estão entre o branco e o
negro, mas não há dúvida alguma de que existem negros no Brasil, de que existem
negros que foram discriminados no passado, de que existem negros que continuam
sendo discriminados. Isso não pode ser impedimento. Isso é uma questão técnica no
desenho de políticas.
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Acredito que, com boas definições e, sobretudo, com controle social na
aplicação dessas políticas, teremos condição de atingir o alvo. Qualquer política
focalizada tem o problema de atingir o alvo. Se quero conceder bolsa-escola para
uma família abaixo de tal renda, tenho de ter o cuidado de garantir que aquela
família seja elegível para o programa. Então, acho que o problema não é diferente
em nenhuma política social focalizada. Ele tem solução, sobretudo se incluirmos
controle social.
Se um loirinho chegar a uma universidade e disser que quer entrar na cota
porque é negro, acho que a comunidade é que vai ter de dizer que ele não é negro.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Tem a palavra o Sr.
Ubiratan.
O SR. UBIRATAN CASTRO DE ARAÚJO – Deputado Saulo Pedrosa, que
dirige esta Mesa e esta Comissão, sempre que me chamarem, estarei disposto a vir
trabalhar por essa causa comum.
O Dr. Roberto Martins — a quem dirijo não o meu agradecimento, mas a
minha solidariedade, porque também é historiador como eu — vem cumprindo
missão importante para a história.
Vimos toda uma onda pós-moderna, em que nossa profissão de historiador
estava condenada a um simples gênero literário, à diversão, se a história seria para
trás e não para frente e que não interferíamos no planejamento.
O trabalho com a história econômica, ainda mais feito pelo IPEA, é um
sustentáculo fundamental de políticas sociais, de intervenção social e de mudança
social. Faço questão de dizer isso aos meus alunos. Sou professor da Universidade
Federal da Bahia e Diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais.
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Faço esta intervenção, primeiramente, para pontuar o que o meu antecessor
falou sobre a cor parda. Digo que isso significa a manutenção da linguagem do
próprio racismo, porque as denominações para nós são as denominações de
animais. Lembrem-se de que mulato é mula, o híbrido de um cavalo com um asno.
Portanto, é animal. O pardo é o passarinho mais miserável que existe, o pardal, que
não canta, não faz nenhuma gracinha, é predador, suja tudo. Portanto, o que nos
dão é uma denominação animal. Rigorosamente, isso deveria ser revisto, a fim de
estabelecer outro tipo de denominação.
Quanto à segunda questão levantada pelo Dr. Roberto, de que a comunidade
deveria dizer qual é a cor de cada um, acho que temos avanços significativos.
No caso da Bahia, há tese de doutorado defendida por nossa colega Delcele
Mascarenhas, “Cor e Gênero no Ensino Superior”, em que ela trabalhou com o
critério induzido de cor, ou seja, com o pesquisador olhando para a foto e dizendo
qual era a cor, e o critério da autodefinição, da autodeclaração de cor. O resultado é
que, na verdade, há certo consenso social sobre as cores. Todo mundo sabe quem
é preto, mestiço, mulato, claro, escuro, branco ou moreno, de tal forma que os
resultados nos dois critérios foram absolutamente convergentes. Portanto, há um
consenso social, sim.
É muito difícil quem é branco se passar por negro. Há três semanas, tivemos
um incidente num sistema de acesso à documentação. Uma senhora foi renovar a
carteira de identidade. E, no momento de fazer a ficha, o funcionário da Polícia
colocou “cor parda”. A senhora, que descende de família de políticos notórios na
Bahia, inclusive com tradição de esquerda, fez um verdadeiro escândalo. Foi buscar
advogado e protestou, porque é branca e não aceitava que dissessem que ela era
parda.
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Também há a consciência de quem é branco, sabe que é branco e conhece
seus privilégios. Não vamos pensar que os brancos renunciaram à sua posição e
que eles também não tenham identidade. Eles não precisam dizer, porque eles têm
o poder, mas eles têm essa identidade sim.
Não pedi a palavra, Sr. Deputado, para fazer esses comentários menores,
diante da conferência tão brilhante do Presidente do IPEA, Dr. Roberto Martins. Pedi
a palavra para expor um caso, porque, atrás de cada número, atrás de cada cifra
levantada e construída pelo IPEA, existe uma pessoa humana, existe um negro
sofrendo.
Recebi, na cidade de Salvador, uma carta que, como professor, me
emocionou, nos seguintes termos:
“Abaetetuba,” — eu não sabia onde ficava, mas
descobri que fica no Pará — “9 de maio de 2002.
Prezado Ubiratan Castro, eu me chamo Benedito
de Sales Santos e o vi numa edição do jornal Bom Dia
Brasil de 31/08/01. Nessa ocasião, o senhor, a Reitora da
Universidade Estadual da Bahia e o pesquisador Jeferson
Alencar” — é “Bacelar”, ele errou o nome — “discutiam a
situação do negro no Brasil. Antes de prosseguir, chamo
sua atenção para o pensamento de Martin Luther King: ‘A
tragédia da escravidão física foi o que levou gradualmente
à escravidão mental’.
Com efeito, o contingente negro brasileiro padece
desse estado de ‘letargia mental’” — ele coloca entre
aspas a expressão. “Além de ser sinônimo de
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contravenção, legado da sociedade escravista, tem de
viver confinado nos guetos.”
Então, ele diz:
“Estou escrevendo para o senhor porque eu fui
aprovado no vestibular da Universidade Federal do Pará
(UFPA), para o curso de Letras da Capital, Belém, mas
existem várias barreiras que me impedem de cursar o
nível superior, e essas barreiras são as mesmas para
milhões de negros como eu, que não têm condições
financeiras para custear o curso.
O Governo Federal fez um empréstimo ao BIRD,
mas ninguém sabe informar o que foi feito com o dinheiro
que garantiria bolsas para negros. Já escrevi para ONGs
que fornecem ajuda às matizes de cor da pele negra, mas
ninguém me respondeu. Como moro no interior, não
tenho como me deslocar para a Capital, Belém, não tenho
onde morar nem como comprar material do curso.
Gostaria que vocês dessem atenção para o drama
em que me envolvi só porque resolvi ser aprovado em
universidade, só porque desejo inserir-me na elite
intelectual, só porque desejo sair do gueto.
Somente vocês, D. Ivete e Sr. Jeferson, podem me
ajudar.”
E aí vem o pedido final:
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“Eu preciso de pelo menos um salário, quem sabe um
crédito do Governo, ou outra forma de ajuda de alguma
ONG. Meu endereço...” — e dá o endereço.
Ora, Benedito Sales Santos é uma pessoa real. É um jovem que venceu
barreiras, passou no vestibular.
Vejam que projeto como esse pode abrir caminho para políticas, não somente
dar cotas. Defendemos essa idéia, e já temos um grupo elaborando proposta efetiva
de cotas para a Universidade Federal da Bahia. Mas é preciso que as cotas estejam
relacionadas a políticas de acompanhamento, políticas de suporte, para que jovens
como esse, que passam no vestibular, possam freqüentar a universidade.
É a nossa esperança de que esse estatuto possa trazer algum tipo de
mudança de comportamento no Estado brasileiro em relação a esse jovem. É
importante que alguém ajude especificamente esse jovem, porque o problema não é
só dele, mas coletivo.
Como disse o Deputado Alceu Collares, somente nós, negros, é que sentimos
essa violência.
E esse rapaz, Benedito Sales Santos, do interior do Pará, teve a coragem de
me escrever pedindo socorro. É um guerreiro, que merece ser ajudado.
Obrigado. (Palmas.)
O SR. ROBERTO BORGES MARTINS – O Prof. Ubiratan levanta uma
questão através desse caso especial.
Evidentemente, no IPEA trabalhamos com números. E, por trás dos números,
existem pessoas, existem histórias de vida. Por isso, os números devem ser bem
apurados.
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O Prof. Ubiratan levanta questão vital relativa a esse caso. Não se trata
apenas de garantir, através de política de cotas ou de qualquer outra, o acesso de
jovens negros e negras aos diversos degraus da escala educacional, chegando até
as universidades. É preciso garantir o acesso e o sucesso. Acesso e permanência,
porque sabemos que entrar na universidade não é suficiente. A pessoa deve ter
meios, deve ter uma bolsa-escola para que possa se manter e se formar. Não é
descabido pensar em cotas também no Crédito Educativo. O jovem dever entrar,
permanecer e formar-se. Senão o sistema de cotas pode ter efeito contrário. Pode
gerar mais preconceito contra esses negros na universidade, porque não
conseguem terminar o curso, quando, na verdade não se entende que eles não
conseguem terminar por falta de condições econômicas.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Com a palavra o Deputado
Damião Feliciano.
O SR. DEPUTADO DAMIÃO FELICIANO – Como membro desta Comissão,
quero dizer da minha alegria em participar deste seminário para discutir também a
questão evolutiva com o Presidente Saulo Pedrosa e os demais membros
Sou o segundo Deputado Federal mais votado e o primeiro Deputado Federal
negro da história do Estado da Paraíba.
Sempre que debatemos o assunto, levamos em consideração a exceção, os
obstáculos que a raça negra encontra neste País para que possa chegar a um lugar
merecido na sociedade brasileira.
Tenho discutido muito em relação à universidade. Apresentei até projeto de lei
corroborando os projetos que tratam das vagas da universidade, que, como disse o
Dr. Roberto, geram mais polêmica do que tudo e abrem mais janelas para a
discussão.
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No início do meu mandato, na primeira audiência com o Presidente Fernando
Henrique, eu lhe disse que queria fazer uma reivindicação. Pedi a S.Exa. que
colocasse um Ministro de cor negra em seu staff. O Presidente argumentou que já
havia colocado um Ministro negro e fez referência a Pelé. Daí eu disse que o Pelé foi
Ministro no Governo passado. Neste segundo mandato, não há nenhum Ministro
negro. E ele disse ter o Agílio Monteiro, Superintendente da Polícia Federal.
Retruquei dizendo ser ele do terceiro escalão. E repeti: Ministro V.Exa. não tem
nenhum.
Dr. Roberto, faço essa referência porque todos necessitam de um espelho, de
um exemplo. Tentamos muito lutar contra essa farsa sobre a camada mais baixa. E
é como se diz na Paraíba: A gente quer entrar como papa, comendo pelas beiras.
Mas, na realidade, não deve ser dessa maneira.
Quando entrei no Congresso Nacional, lutei com determinação, com força —
o nobre Deputado Reginaldo Germano sabe disso — para ser Vice-Presidente. A
luta foi muito grande, mas não consegui.
Professor, precisamos dessa janela para que possamos espelhar-nos nela e
dizer que o negro não serve apenas para jogar futebol, fazer samba para a
Mangueira, desfilar nas avenidas, tocar música de axé na Bahia. O negro precisa
mostrar que é capacitado para levar adiante o Ministério da Educação, capacitado
para dirigir os Ministérios do Planejamento e da Saúde. Devemos ter um exemplo,
para que a nossa capacidade intelectual seja usada na nossa atividade como
referência nacional da nossa cor.
Sr. Presidente Saulo Pedrosa, é disso que sinto falta. Por isso, acho difícil
encaminhar verdadeiramente a ascensão da cor negra. Estou fazendo, nobre
Vice-Presidente Osmar Terra, exatamente a referência a essa janela, a janela de
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espelho, porque o negro precisa ascender. Por exemplo, não me lembro de ter
havido na história da Bahia, cuja população tem mais de 80% de negros, nenhum
Governador negro.
Ainda há pouco, o Deputado Paulo Paim dizia que o Deputado Alceu Collares
foi o primeiro Governador negro da história deste País. Por isso, precisamos
começar a pensar em ocupar lugar de destaque na elite intelectual, para, dessa
maneira, nos destacar exatamente naquilo que a nossa cor merece, a exemplo dos
Estados Unidos.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Em face do adiantado da
hora, quero limitar o tempo das perguntas. Parece-me que só há mais um orador
para usar o microfone. Logo após, vamos encerrar os trabalhos.
Tem a palavra o Sr. Nelson Rabelo.
O SR. NELSON RABELO - Sr. Presidente, Deputado Saulo Pedrosa, sou
representante da Administração Regional do Guará, uma espécie de Prefeito
Municipal de qualquer cidade.
Nobre Relator, Deputado Reginaldo Germano, V.Exa. disse que, apesar de a
Lei Áurea representar a libertação dos escravos, ela marginalizou o negro.
Pergunto: não teria sido daí a origem das pessoas sem terra e sem teto?
Como este País admitiu que os Parlamentares da ocasião, grandes juristas
abolicionistas, fizessem essa lei menor com apenas dois artigos, um que extingue e
outro que revoga as disposições em contrário? Como nossos ilustres juristas do
passado admitiram a Lei do Ventre Livre, que dava liberdade para uma criança,
liberdade que poderia ser a origem da criança abandonada? E como pôde ser aceita
a Lei do Sexagenário? A partir dos 60 anos um homem não produz mais nada —
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naquela ocasião, não produzia, pois raramente atingia essa idade. Não está aí a
origem da velhice desamparada?
Muito obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Com a palavra o nobre
Relator, Deputado Reginaldo Germano.
Em seguida, teremos as reflexões finais do nosso conferencista, Dr. Roberto
Borges Martins.
O SR. DEPUTADO REGINALDO GERMANO – Concordo com as afirmações
em relação aos sem-terra. Mas também afirmo que pessoas não negras, ou sem
representatividade negra criaram um grupo de sem-terra que invadem fazendas. E a
sociedade aceita e ainda legaliza a terra para eles.
Lutamos hoje para titularizar terras de quilombos, mas esse processo não
caminha. Existe aí uma grande diferença. Há um grupo de sem-terra que invade
fazendas não produtivas e, de maneira geral, aceita-se que sejam doadas a eles. No
entanto, lutamos inclusive para inserir no estatuto a titularização de terras de
quilombos e não conseguimos.
Até concordo com que tudo começou a partir dessas leis que hoje tentamos
consertar. A dificuldade que encontramos é exatamente por se tratar de negócios
relacionados à raça negra. Se as terras não fossem de quilombos, ou se não fossem
de negros, fatalmente já se teria achado uma maneira de titularizá-las e entregá-las
aos seus donos. Vejam que os sem-terra não são os donos das terras que invadem,
mas os descendentes de africanos são os verdadeiros proprietários, porque elas
eram de seus ancestrais. Mas esbarramos exatamente na questão da raça negra.
Como disse o Dr. Roberto Martins, a sociedade discute bem qualquer outra
questão, do gordo, do magro, do idoso, do jovem, mas, quando parte para discutir os
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direitos que são não só de fato, mas de direito, dos negros e afro-descendentes, há
dificuldade.
Esta Comissão visa não só corrigir essa desigualdade, como promover
igualdade social neste País em todos os níveis citados por S.Sa.: dos sem-terra, dos
sem-teto, dos idosos.
Outras pessoas falaram — não guardei os nomes — a respeito do assunto.
Quando os direitos são de qualquer outro segmento da sociedade, logo são aceitos.
Por exemplo, a Lei da Anistia, se analisarmos o problema, foi concedida num tempo
em que o prazo já estava prescrito. Já havia passado mais de vinte anos quando foi
concedida a anistia, inclusive com direito à indenização.
Sempre que queremos criar mecanismos para iniciar a formação de uma
sociedade mais justa, encontramos dificuldades, como disse o Dr. Roberto Martins.
Inclusive fui ameaçado em meu Estado de não ser reeleito porque estou cuidando
de uma causa que não dá votos. Estou pouco ligando para votos. Estou cuidando de
uma causa, que é minha também, é minha razão. Como disse, não só fui ameaçado,
mas também o Dr. Roberto Martins. Algumas pessoas me dizem que estou cuidando
dessas coisas, que estou envolvendo-me nisso. Então, como ele disse, há
resistência a tudo que queremos fazer para promover a igualdade, principalmente de
negros com brancos. Sempre encontramos esse desafio e vamos vencê-lo.
Como aos sem-terra, que têm conquistado seus direitos, vamos também dar
aos descendentes de negros o direito de conquistar suas terras de quilombos que
estão sem titularização.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Com a palavra o Dr.
Roberto Martins, para as considerações finais.
(Intervenção inaudível.)
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O SR. ROBERTO BORGES MARTINS – Sim, o Deputado lembra uma
objeção contra a expressão afro-descendente.
Quem fez a objeção alegava que, como a humanidade começou na África,
todos os seres humanos são afro-descendentes. Então, a expressão não separa
ninguém nem determina nada. Vou prestar atenção à observação feita.
Gostaria de, mais uma vez, agradecer a oportunidade de participar deste
debate, de participar de mais esta atividade da Comissão — já estive aqui outras
vezes — e de homenagear todas as pessoas que têm participado dessa luta,
sobretudo os militantes negros e negras, na pessoa do Deputado Alceu Collares.
Lembro-me de que, por questão de justiça, Deputado, o seu partido é o único
que, no meu entendimento, na história do Brasil — de esquerda, de direita, de centro
ou de qualquer época —, tratou com a devida atenção a questão do negro, inclusive
através da liderança de Abdias Nascimento. Essa é uma verdade que não pode
deixar de ser dita. (Palmas.) Outros partidos têm seus departamentos, suas
comissões, mas apenas agora começam a despertar para o problema. O PDT
realmente se dedicou a essa questão com mais garra do que os demais.
Cumprimento os membros da Comissão: o Presidente, Deputado Saulo
Pedrosa; o Vice-Presidente, meu amigo Deputado Osmar Terra; o Deputado Luiz
Alberto; o Relator, Deputado Reginaldo Germano; e o autor do projeto, Deputado
Paulo Paim.
Acho que essa luta é difícil, mas necessária, porque o Brasil precisa
conquistar a igualdade entre brancos e negros, um dos aspectos mais importantes
para a Nação. Essa igualdade deve ser construída passo a passo.
Muito obrigado. (Palmas.)
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Saulo Pedrosa) – Geralmente, aberturas de
seminários são apenas festivas. Fizemos questão de trazer o Dr. Roberto Borges
Martins para dar um sinal, mostrar através dos indicadores a desigualdade racial
existente no Brasil.
Agradecemos muito a S.Sa. a palestra, a todas as representações
organizadas da sociedade civil e a todos os senhores que compareceram nesta
manhã.
Gostaria de lembrar aos participantes que hoje, a partir das 14h, iniciaremos
nosso trabalho propriamente dito, com discussões temáticas nos Plenários nºs 5, 7,
11, 13 e 15. A programação do seminário encontra-se afixada no hall deste plenário.
Nada mais havendo a tratar, vou encerrar os trabalhos.
Muito obrigado a todos. (Palmas.)
Está encerrada a reunião do seminário.