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1 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES INSTITUTO A VEZ DO MESTRE PÓS-GRADUAÇÃO LACTO SENSU DESCONSTRUINDO OS MUROS DA ESCOLA UMA ANÁLISE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE SOCIEDADE E EDUCAÇÃO INCLUSIVA JOSÉ VALMIR COELHO DE CERQUEIRA Prof. Orientadora: Maria Esther de Araújo Co-orientadora: Prof. Giselle Böger Brand. Rio de Janeiro 2015

DESCONSTRUINDO OS MUROS DA ESCOLA€¦ · para adestrar os alunos, transformando-os em corpos dóceis. O segundo capítulo se dedica a obra de Paulo Freire que ratifica as críticas

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Page 1: DESCONSTRUINDO OS MUROS DA ESCOLA€¦ · para adestrar os alunos, transformando-os em corpos dóceis. O segundo capítulo se dedica a obra de Paulo Freire que ratifica as críticas

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

PÓS-GRADUAÇÃO LACTO SENSU

DESCONSTRUINDO OS MUROS DA ESCOLA

UMA ANÁLISE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE SOCIEDADE E

EDUCAÇÃO INCLUSIVA

JOSÉ VALMIR COELHO DE CERQUEIRA

Prof. Orientadora: Maria Esther de Araújo

Co-orientadora: Prof. Giselle Böger Brand.

Rio de Janeiro

2015

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

INSTITUO A VEZ DO MESTRE

PÓS-GRADUAÇÃO LACTO SENSU

DESCONSTRUINDO OS MUROS DA ESCOLA

UMA ANÁLISE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE SOCIEDADE E

EDUCAÇÃO INCLUSIVA

JOSÉ VALMIR COELHO DE CERQUEIRA

Monografia apresentada ao

Instituto A Vez do Mestre como

requisito parcial para a obtenção

do título de especialistaem

Educação Especial e Inclusiva.

Orientadora: Prof. Maria Esther

de Araújo.

Co-orientadora: Prof. Giselle

Böger Brand.

Rio de Janeiro

2015

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RESUMO

O presente trabalho é uma pesquisa bibliográfica que pretende questionar a

relação entre educação inclusiva e a sociedade. Deste modo, a pesquisa se

divide em três capítulos, respectivamente: Os muros da escola, Quebrando o

muro: a construção da pedagogia crítica e Transformando a sociedade: A

pedagogia da diferença. O primeiro capítulo elucida o pensamento de Michel

Foucault, filósofo francês que criticou a pedagogia e o sistema escolar através

de uma análise histórica e social em Vigiar e Punir (1975). De acordo com

Foucault, as instituições escolares cumprem um papel de manutenção das

desigualdades e opressões sociais a partir do uso de um poder disciplinar.

Dessa forma, a educação não produz uma aprendizagem, mas serve apenas

para adestrar os alunos, transformando-os em corpos dóceis. O segundo

capítulo se dedica a obra de Paulo Freire que ratifica as críticas ao sistema

educacional que atua como um controle disciplinar, ao mesmo tempo em que

aponta a possibilidade de uma pedagogia crítica que subverte essa ordem. Em

Pedagogia do oprimido (1974)e Pedagogia da autonomia(1996), Freire

desenvolve sua concepção pedagógica que se fundamenta em um saber que

se constrói horizontalmente em um diálogo entre professor e alunos. Por

último, no terceiro capítulo, se compreende, através da obra de Maria Teresa

ÉglerMantoan, que a educação inclusiva pode verdadeiramente influenciar a

sociedade até transformá-la em uma realidade mais democrática. Por meio de

uma pedagogia da diferença, a educação inclusiva se adapta as necessidades

e potenciais dos alunos permitindo que todos façam parte do processo de

aprendizagem. Essa proposta está em oposição à educação disciplinar e

bancária que, ao fazer uso de avaliações e conteúdos fixos, impõem uma

segregação como uma realidade inerente ao modelo escolar. Portanto, a

escola inclusiva é um modo de democratizar a educação e ressignificar as

desigualdades sociais.

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METODOLOGIA

O presente trabalho se fundamenta como uma pesquisa bibliográfica e

qualitativa, suas principais referências são trabalho dos pensadores Michel

Foucault, Paulo Freire e Maria Teresa ÉglerMantoan. Sua proposta é analisar

através de tais obras como a educação pode ser um dispositivo de poder que

reproduz meios de coerção social ou pode estimular e produzir uma

aprendizagem transformadora capaz de formar cidadãos críticos e ativos.

Através do estudo histórico-social desenvolvido por Foucault em Vigiar e

Punir podemos ter acesso a formação de um novo tipo de controle social que

não se inscreve mais nas punições explícitas, mas em uma vigilância constante

que inscreve a disciplina nos corpos individuais que compõem a sociedade,

transformando-os em corpos dóceis. Dentro desse contexto, a escola ocupa

um papel puramente disciplinar, isto é, produz indivíduos bem treinados e

submissos. É em contrapartida a esse tipo de educação que Paulo Freire

constrói sua teoria pedagógica na qual aposta em uma prática docente que não

se dissocia da discência, pois aposta em um pensamento que está em

contínua criação. A pedagogia da autonomia se opõe, portanto, à disciplina que

tem como única função perpetuar a opressão.

A pesquisa se apoia nesses dois autores como pilares para

compreender a dicotomia que envolve a relação entre escola e sociedade,

buscando encontrar respostas para elucidar como um professor pode contribuir

para uma sociedade mais inclusiva em vez de fomentar as estruturas elitistas e

preconceituosas de sua sociedade.

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Sumário:

Introdução...................................................................................................pg.6

Capítulo I: Os muros da escola................................................................pg. 9

Capítulo II: Quebrando o muro: a construção da pedagogia crítica...pg. 17

Capítulo III: Transformando a sociedade: A pedagogia da diferença.pg.26

Conclusão..................................................................................................pg.36

Bibliografia................................................................................................pg.38

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INTRODUÇÃO

Este trabalho é uma pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo que

procura investigar a relação entre a sociedade e a educação inclusiva. Para

esta análise proponho três leituras principais: Vigiar e Punir de Michel Foucault;

Pedagogia da autonomia de Paulo Freire e Inclusão escolar - O que é? Por

quê? Como fazer? de Maria Teresa ÉglerMantoan. As duas primeiras obras se

complementam de modo antagônico já que Foucault se posicionou em sua vida

como um pensador que se opõe à pedagogia enquanto Freire dedicou sua

existência à construção de uma pedagogia crítica. Já a terceira obra nos auxilia

a pensar a relação entre pedagogia e sociedade através da educação inclusiva,

demonstrando a necessidade e a importância de um modo mais democrático

de se conceber as práticas pedagógicas.

O tema desta pesquisa bibliográfica, portanto, é a relação entre

educação e sociedade. Tema que se norteia a partir da seguinte questão: De

que maneira, através da relação intrínseca entre a estrutura escolar e a

sociedade, a educação inclusiva pode transformar a realidade em que

vivemos? O objetivo é analisar diferentes pensadores que dissertaram sobre o

papel da educação no meio social, identificando como o professor pode ser um

instrumento que reproduz ou ressignifica essa ordem. Em outras palavras, esse

estudo pretende observar como a escola pode tanto servir à construção de um

pensamento crítico e transformador, quanto à reprodução de uma ordem social,

sendo um mero dispositivo disciplinar.

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A construção de uma sociedade mais inclusiva, democrática e justa só

pode se dar através de uma educação que também preze por esses valores.

No entanto, a partir de análises sociológicas, filosóficas e pedagógicas

percebemos que, na maioria dos casos, é o sistema regente que dita o modo

como a escola se organiza. Assim, se faz urgente uma análise da estrutura

escolar, apontando em que aspectos ela reflete as tendências normativas e

limitadoras desse sistema e de que modo é possível romper com esses valores

para construir uma nova organização social.

A hipótese da presente pesquisa é que há uma relação intrínseca entre

escola e sociedade, de modo que quando a educação se baseia em um poder

disciplinar, ela atende às necessidades de um tipo de ordem social, enquanto a

educação inclusiva pode ser o início de uma sociedade mais justa e

democrática. Quando os professores valorizam e incentivam as diferentes

possibilidades de casa aluno, abandonando o modelo de ensino que se baseia

em padrões e ideais incompatíveis com tal pluralidade, subvertem a lógica

social que impõe aos indivíduos uma série de cobranças que não se adaptam

as suas necessidades reais. É fundamental que a prática pedagógica seja

capaz de desafiar e reformular a ordem socioeconômica, permitindo que todos

os alunos tenham possibilidades iguais justamente porque são compreendidos

em suas diferenças. Esta pesquisa, portanto, se justifica em função de tal

urgência.

Desse modo, o primeiro capítulo, intitulado Os muros da escola,

questiona, através da análise de Vigiar e Punir de Michel Foucault, a

possibilidade da educação servir a uma função puramente disciplinar

adestrando os alunos em corpos dóceis. Esse capítulo expõe como o poder

disciplinar opera no ambiente escolar organizando esse espaço de modo a

controlar e vigiar os alunos. Além disso, a disciplina também impõe tarefas,

horários e avaliações que servem apenas para capitalizar o tempo e

estabelecer hierarquias. A educação quando é regida exclusivamente pela

disciplina, ignora os diferentes saberes e capacidades que convivem na mesma

sala de aula, exigindo um modelode excelência que divide e segrega esse

espaço. Através da filosofia foucaultiana, podemos, então, perceber como a

educação pode se relacionar com a sociedade de modo a ser uma peça em

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meio uma extensa engrenagem que tem como objetivo reproduzir

desigualdades.

Já o segundo capítulo, Quebrando o muro: a construção da pedagogia

crítica, se concentra em uma leitura de Pedagogia da AutonomiaePedagogia

do Oprimido de Paulo Freire procurando reconhecer o caráter transformador da

educação que em suas práticas pode contribuir para operar mudanças na

sociedade. Freire construiu sua teoria e prática acreditando na possibilidade de

uma pedagogia crítica, isto é, uma pedagogia que provoca questionamentos,

em vez de apenas reproduzir conteúdo. Segundo sua proposta, é preciso

construir um relacionamento entre professor e aluno que preze pela

honestidade e a autonomia. O educador deve participar da aprendizagem de

maneira ativa, construindo um pensamento criativo junto com os alunos.

Por último, o terceiro capítulo, Transformando a sociedade: A pedagogia

da diferença, conclui a análise desse trabalho demonstrando como a relação

entre sociedade e educação pode ser significativamente produtiva quando a

prezamos pela pedagogia inclusiva na qual é o educador que se adapta às

diferentes potencialidades que coexistem no ambiente escolar. O

desenvolvimento desse capítulo fará uso, principalmente, do livro escrito por

Maria Teresa ÉglerMantoan, Inclusão escolar - O que é? Por quê? Como

fazer?, o qual nos auxilia a compreender de modo teórico e prático como a

implementação de uma inclusão escolar contribui para formar uma sociedade

mais justa.

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CAPÍTULO I

OS MUROS DA ESCOLA

Este capítulo tem a intenção de analisar a relação entre educação e

sociedade através do pensamento de Michel Foucault, especialmente a obra

Vigiar e Punir - o nascimento da prisão (1975), de modo a identificar como a

instituição escolar pode ocupar uma função social conservadora,

transformando-se em uma mera forma de poder coercivo.

Vigiar e Punir - o nascimento da prisão é um livro de 1975 escrito pelo

pensador francês Michel Foucault. Foucault foi um intelectual que atuou em

diferentes áreas, como filosofia, ciências sociais, história, literatura e filologia.

Sua teoria marcada pela intersubjetividade discorre, sobretudo, acerca da

relação entre poder e conhecimento. Em Vigiar e Punir, tais questões são

pensadas através da análise de instituições sociais, principalmente as prisões,

que em suas gerências e práticas fundamentam dispositivos de poder.

O livro se divide em quatro partes: O suplício, Punição, Disciplina e

Prisão. Cada uma dessas seções demonstra os processos históricos que

transformaram os meios de coerção social desde o suplício ostensivo dos

condenados até a criação sistemática de leis penais. Essa transformação, em

resumo, implica em exterminar a punição explicitamente violenta que destruía

os corpos daqueles considerados como infratores e implantar uma série de

discursos e técnicas que permitem que todos os cidadãos sejam

constantemente vigiados e disciplinados. A modernidade lida com a punição

através de uma microfísica do poder disciplinar que em vez da destruir os

corpos, se certifica que esses sejam produtivos:

Mas podemos sem dúvida ressaltar esse tema geral de que, em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa “economia política” do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos “suaves” de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão...Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção

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que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (FOUCAULT; MICHEL, 1975, p.28-29.)

Para a presente pesquisa, Vigiar e Punir é uma obra valiosa,

especialmente a seção Disciplina que discorre sobre o adestramento, o

controle e o planejamento dos corpos dóceis - temas importantes para se

pensar o papel social da educação. Através da análise de Foucault é possível

compreender como a pedagogia pode funcionar tanto como uma prática que

treina os alunos para se tornarem corpos disciplinados e produtivos. Nesse

aspecto, a estrutura escolar tem o papel de uma instituição de poder que

reproduz a normatividade exigida socialmente sendo, portanto, apenas um

meio de manutenção do sistema vigente.

Essa seção, Disciplina, se inicia apontando a diferença entre a figura do

soldado no século XVII e no século XVIII. Enquanto no século XVII, o soldado

era identificado pelos suas aptidões naturais, o vigor de seu corpo e a honra de

sua coragem; no século XVIII, o corpo é uma massa inapta que deve ser

moldada até que se fabrique a figura do soldado. Em outras palavras, entre

esses séculos ocorreu uma mudança no modo como se pensava o corpo e as

virtudes, a honra e a habilidade deveriam ser conquistadas a partir do treino e

da manipulação. É, portanto, a disciplina que transforma o corpo e assim se

origina o conceito de um Homem-máquina sempre passível de ser atualizado:

"O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma "anatomia política", que é também uma "mecânica do poder", está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não

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simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segunda a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". (FOUCAULT; MICHEL, 1975, p. 133.)

A disciplina, então, tem o efeito de tomar a autonomia do corpo que

deixa de ser algo que o indivíduo detém - que na verdade, o constitui -, para se

tornar um dispositivo de poder que deve ser medido em termos de aptidão,

capacidade e potência. Foucault, no entanto, ressalta que essa nova forma

política não se instaura subitamente, mas é o resultado de múltiplos processos

que se ratificam em diferentes áreas de aplicação até convergirem em um

método institucionalizado:

A "invenção" dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferente, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos reestruturaram a organização militar. (FOUCAULT; MICHEL, 1975, p. 133)

Ao analisar a imposição do poder disciplinar no século XVIII, podemos

refletir sobre suas implicações em nossa contemporaneidade. A ideia de um

corpo que pode ser moldado e treinado até alcançar um ideal de perfeição

tornou-se popular em nosso século, no qual os veículos midiáticos reproduzem

uma série de imperativos e ofertas que prometem a conquista desse mesmo

ideal. A obsessão pelos padrões de beleza, a gordofobia e a imposição da

saúde como um dever social são exemplos de como o poder disciplinar se

inscreve em nossos corpos e discursos.

Essas questões se tornam ainda mais graves quando percebemos que a

disciplina impõe o corpo perfeito como um dever social, o que não é nada mais

do que a exclusão de qualquer indivíduo que não pode caber em tal padrão

normativo. Em outras palavras, a disciplina como o método pelo qual os

indivíduos conquistam a virtude e a honra, não é nada mais do que o completo

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impedimento de uma sociedade inclusiva.

Em nossa contemporaneidade, fala-se muito sobre meritocracia como

um meio de assegurar conquistas de modo democrático, isto é, as vitórias

econômicas e sociais devem depender exclusivamente do mérito individual.

Esse discurso se alinha perfeitamente a tais ideais de disciplina. Ideais que

operam como dispositivos que asseguram que o poder seja dividido e limitado

entre aqueles que obedecem e se adaptam às normas. O que explica porque

nossa democracia não é inclusiva, muito menos justa. Como Foucault

demonstra, o poder disciplinar se iniciou nas organizações militares no século

XVII, no entanto, se introjetou tão fortemente nos discursos e dispositivos de

coerção social que constitui o senso comum contemporâneo.

Assim, a análise proposta em Vigiar e Punir não se resume a uma

historiografia dos dispositivos de poder que operam nas instituições sociais,

mas é uma leitura atenta das diferentes técnicas e discursos que ratificaram o

poder disciplinar. Foucault atenta para o caráter minucioso que rege as

técnicas disciplinares expondo como a partir do século XVII a política se exerce

em uma microfísica do poder. Dentro desse quadro, a pedagogia exerce uma

forte influência, pois a estrutura escolar impõe a ordem disciplinar desde sua

concepção do espaço até a avaliação dos alunos. É nesse sentido que a

escola pode cumprir uma função meramente estratégica em que os alunos

disciplinados serão os cidadãos alienados do futuro e os alunos que não se

adaptam à ordem são marginais em formação. Quando o educador tem a única

função de disciplinar os alunos, a aprendizagem se transforma em opressão.

Foucault explica que a disciplina atua a partir dos detalhes e controla a

vida humana em diferentes perspectivas. Disciplina, a terceira parte de Vigiar e

Punir, se divide nos seguintes capítulos: Os corpos Dóceis, Os recursos para o

bom adestramento e O panoptismo. Em Os corpos dóceis, Focault elucida

como os dispositivos de poder se organizam e atuam a partir da arte das

distribuições, o controle da atividade e a organização das gêneses e a

composição das forças. Todos esses elementos que compõem o poder

disciplinar são presentes na estrutura escolar. O que comprova a teoria

foucaultiana de que a educação pode servir como um mero dispositivo de

poder que reproduz a ordem social vigente.

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A escola se assemelha às instituições presidiárias e psiquiátricas ao se

organizar através de espaços, horários e medidas hierárquicas nas quais o

tempo e os corpos dos alunos são instrumentos que devem ser moldados até

alcançarem um ideal de perfeição. Isso é visível, primeiramente, pela

distribuição do espaço escolar. Uma escola se divide em andares, salas, fileiras

e carteiras. Cada sala de aula ocupa um lugar hierárquico assim como a ordem

que fixa os alunos em fileiras e os professores à frente – muitas vezes,

literalmente em uma posição superior, em cima de tablados. Vigiar e Punir

esclarece como essa organização não se dá em vão, porque, na verdade,

possui um valor estratégico.

Cada lugar ocupado em uma escola tem um valor atribuído e uma

função disciplinar. Um exemplo palpável de prática pedagógica é quando um

professor impõe a um aluno indisciplinado que se sente na primeira fileira da

classe de modo que possa ser observado de perto. Outro exemplo da relação

entre o espaço e a disciplina são os colégios – em geral privados – que

organizam suas salas de acordo com as notas de seus alunos de modo que

aqueles considerados como melhores alunos são isolados dos que apresentam

mau comportamento. Esses casos ilustram o que Foucault denuncia como uma

hierarquia do saber:

A ordenação de fileiras, no século XVIII, começa a definir grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada ano; alinhamento das classes de idade uma depois das outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente. E, nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou méritos. Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros, num espaço escondido por intervalos alinhados. (FOUCAULT; MICHEL, 1975, p. 142-143.)

Recentemente, a prefeitura do Rio de Janeiro lançou uma campanha

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publicitária sobre seu sistema escolar na qual ilustra algumas crianças

sentadas em carteiras posicionadas em uma linha de produção. O slogan que

acompanha essa imagem é “Nossa linha de produção é simples: Construímos

escolas, formamos cidadãos e criamos futuro”. Assim, podemos visualizar de

modo bem explícito qual o papel da educação em nossa sociedade

contemporânea: São as escolas fábricas que formam o Homem-máquina do

futuro.

O projeto pedagógico que aposta em ideais de disciplina e progresso

que fazem uso da hierarquia para manter os cidadãos desde a infância como

corpos dóceis. Esses corpos devem se adaptar a linha de montagem, cumprir

o papel de sua classe social e colaborar para uma sociedade que os excluí

desde o começo. Aqueles que não se adaptam à linha de montagem são

inúteis, defeituosos e indisciplinados, portanto, pertencem à marginalidade.

Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica - especializando o tempo de formação e destacando-o do tempo adulto, do tempo do ofício adquirido; organizando diversos estágios separados uns dos outros por provas graduadas; determinando programas, que devem desenrolar-se cada um durante uma determinada fase, e que comportam exercícios de dificuldade crescente; qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como percorreram essas séries. (FOUCAULT; MICHEL, 1975, p. 153.)

A escola quando serve ao poder disciplinar tem a função de treinar as

crianças para um futuro ofício. Não constrói uma aprendizagem, mas impõe

uma formação baseada em conteúdos, exercícios e avaliações normativas.

Opera por meio de uma hierarquia que busca capitalizar o tempo através de

uma técnica que treina e qualifica os indivíduos disciplinados, corpos dóceis

prontos para serem os homens máquinas do futuro. O que Foucault esclarece

com precisão quando trata das práticas de adestramento e sanção

normalizadora:

Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra

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a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto – que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida “valorizada”, a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que definirá em relação a todas as diferenças, a fronteira extrema do anormal (a “classe vergonhosa” da Escola Militar). A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza. (FOUCAULT; MICHEL, 1975, p. 174-175.)

Portanto, o pensamento crítico de Foucault denuncia como a escola

pode ser apenas uma instituição que tem um valor estratégico de adestrar os

indivíduos até que a grande maioria se enquadre no que a sociedade impõe

como normal. Desse modo, Vigiar e Punir nos dá uma importante contribuição,

pois dá uma resposta à questão sobre a relação entre sociedade e educação.

De fato, a sociedade pode transformar a educação em um instrumento de

poder que mantém os cidadãos disciplinados em uma completa alienação ou

marginalizados, em ambos os casos, oprimidos.

Assim, a leitura de Foucault é uma necessária aos educadores para que

possam praticar uma autocrítica e reavaliar seus métodos de ensino. Afinal, a

filosofia de Foucault nos ajuda a pensar para quê e para quem construímos

nossa prática pedagógica. O saber do professor – que também é um

dispositivo de poder – serve para dar continuidade aos muros que a sociedade

impõe ou produz uma aprendizagem transformadora, horizontal e crítica? O

texto “Ensaio para uma filosofia da educação” de Sílvio Gallo e Alfredo Veiga-

Neto presente nolivro “Foucault pensa a educação” ilustra com clareza a

importância do pensamento foucaultiano:

Usar a filosofia de Foucault como ferramenta, como dispositivo para descolonizar o pensamento, em lugar de novamente loteá-lo, agora em nome de conceitos e expressões foucaultianas. Fazer da aula e do livro mais espaços para a experiência do que para a verdade. Isso não significa, é claro, que não se tenha também de estatuir verdades que nos sirvam de balizas para o pensamento e para a ação; não se trata, certamente, de um vale-tudo. Trata-se, sim, de estarmos

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sempre atentos, desconfiados e humildes adiante das verdades que nós mesmos, como professores e alunos, ajudamos a construir e a disseminar, de modo a estarmos preparados para, a qualquer momento, revisá-las e, se preciso for, buscarmos articular outras que consigam responder melhor aos nossos anseios e propósitos por uma vida melhor. (GALLO; SÍLVO; VEIGA-NETO; ALFREDO, 2015, p. 515-525.)

Pode parecer contraditório recomendar a leitura de Foucault aos

educadores, já que esse pensador que se identificava com os movimentos

antipedagógicos. No entanto, Foucault se opunha apenas ao projeto

pedagógico que serve como uma prática de opressão e disciplinamento. Pela

sua própria formação marcada pela intersubjetividade de saberes, é possível

notar que Foucault se posiciona a favor da educação que constrói um

pensamento ativo, criativo e crítico. Analisar educação e sociedade através do

pensamento de Foucault é constatar que essa relação pode se dar de um

modo unilateral na qual a ordem social faz uso da escola para a manutenção

de seus poderes coercivos. Em conclusão, podemos compreender a crítica de

Foucault à pedagogia como um legado que permite questionar as estruturas

que fundamentam essa prática até que seja possível romper com sua função

disciplinar. O próximo capítulo irá se dedicar à obra de Paulo Freire, educador

que certamente compreendeu essa crítica e lutou para que as escolas

produzissem transformações no meio social, construindo assim outra relação

com a sociedade.

CAPÍTULO II

QUEBRANDO O MURO: A CONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA

CRÍTICA

Após a análise de Vigiar e Punir e do pensamento de Michel Foucault,

este capítulo se dedica à leitura de Paulo Freire, educador que também se

posicionou criticamente em relação à pedagogia, mas que, ao contrário de

Foucault, dedicou sua vida à tentativa de construir uma prática pedagógica

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revolucionária. Paulo Freire é considerado, desde 2012, o Patrono da

Educação Brasileira, já que esse educador foi um dos maiores pensadores

brasileiros, tendo sua obra reconhecida mundialmente. Apesar dos diversos

títulos que ganhou ao longo de sua vida, Freire jamais se afastou da ideia de

uma prática pedagógica que, em primeiro lugar, se propõe a dialogar com

todos, isto é, que se mantém democrática e não se perde em uma teorização

isolada da realidade. Sua concepção pedagógica, na verdade, defende que

qualquer saber é construído por meio da realidade, ou seja, a aprendizagem é

influenciada pela materialidade que envolver alunos e professores.

Este capítulo se apoia especialmente em Pedagogia da Autonomia

(1996) e Pedagogia do Oprimido (1974) para expor como a pedagogia crítica

proposta por Freire se constrói justamente em oposição à prática pedagógica

que opera como um controle disciplinar, apontando outro modo da educação se

relacionar com a sociedade. Essas obras que foram publicadas com uma larga

diferença de tempo demonstram a coerência e o desenvolvimento do

pensamento de Freire, elucidando suas posições acerca do sistema

educacional.

Em Pedagogia do Oprimido, encontramos uma forte crítica à educação

que se baseia na acumulação de conteúdos – o que Freire chama de

Educação Bancária – e a defesa de uma prática pedagógica que seja crítica. Já

Pedagogia da Autonomia identifica como as relações escolares podem ser

marcadas por uma hierarquia de saberes e propõe uma relação horizontal

entre professores e alunos. Desse modo, pode-se perceber como tais ideias

dialogam umas com as outras, ratificando a compreensão pedagógica de Freire

que aposta em uma aprendizagem que se constrói de modo dialético na

relação entre as pessoas e a realidade que mediatiza seus saberes.

Pedagogia do Oprimido se divide em quatro capítulos: “Justificativa da

pedagogia do oprimido”, “A concepção da educação como instrumento da

opressão”, “A diagelocidade – essência da educação como prática da

liberdade” e “A teoria da ação antidialógica”. O primeiro capítulo, como seu

próprio título já indica, introduz a concepção de pedagogia do oprimido,

elucidando o objetivo desta obra. Freire expõe sua defesa de uma educação

libertária que se constrói através do diálogo e produz uma reflexão crítica sobre

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a realidade. Portanto, a pedagogia do oprimido, ao contrário da educação

disciplinar, promove um questionamento acerca das opressões sociais,

permitindo que a educação faça parte de uma luta pela liberdade:

A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos parece constituir o que vamos chamando de Pedagogia do Oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação. (FREIRE; PAULO,1974, p.417.)

O segundo e o terceiro capítulo - “A concepção da educação como

instrumento da opressão” e “A diagelocidade – essência da educação como

prática da liberdade” – são os mais relevantes para a presente pesquisa, pois

elucidam os conceitos de educação bancária e educação libertária, duas

concepções essenciais para compreender a prática pedagógica proposta por

Freire. O quarto e último capítulo trata da questão da ação antidialógica, ou

seja, da prática que vai em oposição a educação libertária que se constrói por

meio da diagelocidade. A ação antidialógica é característica de setores da elite

que, apesar de fazerem uso de discursos libertários, promovem práticas

opressoras que são marcadas pela tentativa de conquista e não pelo diálogo.

Em Pedagogia da Autonomia encontramos três seções: “Prática

docente: Primeira reflexão”, “Ensinar não é transferir conhecimento” e “Ensinar

é uma especificidade humana”. Ao longo desses capítulos, Freire disserta

sobre a necessidade de a prática pedagógica libertária garantir autonomia aos

alunos. Desse modo, o livro retoma diversos pontos da obra de Paulo Freire,

principalmente questões que foram abordadas em Pedagogia do Oprimido.

Contudo, não se trata apenas uma repetição, mas de uma reformulação dessas

questões a partir de outras perspectivas. Consciente dessa retomada de certos

assuntos,na introdução de Pedagogia da Autonomia, Freire explica o que o

motivou a essa suposta repetição:

Alguns dos aspectos aqui discutidos não têm sido estranhos a análises feitas em livros meus anteriores. Não creio, porém, que a retomada de problemas entre um livro e outro e no corpo de um mesmo livro enfade o leitor. Sobretudo quando a retomada do tema não é pura repetição do que já foi dito. No meu caso pessoal, retomar um assunto ou tema tem que ver

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principalmente com a marca oral de minha escrita. Mas tem a ver também com a relevância que o tema de que falo e a que volto tem no conjunto de objetos a que direciono minha curiosidade. Tem a ver também com a relação que certa matéria tem com outras que vêm emergindo no desenvolvimento de minha reflexão (...) É nesse sentido que reinsisto em que formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas, e por que não dizer também da quase obstinação com que falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens e às mulheres, assunto de que saio e a que volto com o gosto de quem a ele se dá pela primeira vez. (FREIRE; PAULO,1996, p.157- 166.)

Como a citação acima demonstra, Freire criticou a educação que opera

como um treinamento ao longo de toda sua obra. Assim como Foucault, Freire

construiu uma análise crítica da educação que cumpre apenas um papel

disciplinar. Mas, ao contrário de Foucault, Freire não acredita que a pedagogia

tem somente a função de adestrar e avaliar os alunos, essa prática é própria de

um tipo específico de compreensão pedagógica que chama de Educação

Bancária. A educação bancária é uma prática pedagógica em que o professor

deposita seu saber – supostamente, superior – no aluno que é compreendido

como um corpo dócil, vazio, ocupando uma posição meramente receptiva: Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção bancária da educação em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guarda-los e arquivá-los. (FREIRE; PAULO, 1974, p.868.)

A educação bancária atua como um instrumento do poder disciplinar,

pois organiza os espaços e o tempo escolar de modo hierárquico. Nessa

concepção pedagógica as relações entre aluno e professor sempre

pressupõem uma rigidez. O aluno deve ser alguém que recebe e memoriza

conteúdos, ou seja, que é treinado e avaliado pela instituição escolar. Assim

como existe uma figura de um aluno ideal, há a exigência de um modelo de

conhecimento e daquele que o detém, o educador: O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas

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posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca. (FREIRE; PAULO, 1974, p.876.)

Em Pedagogia da Autonomia, Freire aborda o problema da educação

hierárquica, bancária e disciplinar atentando para exemplos práticos do cotidiano escolar, por exemplo, os métodos avaliativos. As práticas de avaliação escolar demonstram com precisão como o ensino que se dá por meio de uma assimilação sistemática de conteúdos não tem um caráter democrático. Os métodos de avaliação impõem uma domesticação ao saber que passa a servir exclusivamente para ser testado em exames que comprovam a capacidade disciplinar do aluno. De modo que os exames de avaliação são, portanto, atestados de disciplina. Através de um modelo específico de avaliação que se dá de um modo vertical:

Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mas insistindo em passar por democráticos... A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação enquanto instrumento de apreciação do que fazer de sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação. (FREIRE; PAULO, 1996, p. 1503.)

O sistema de avaliação é só um dos mais graves exemplos que

demonstram como as práticas pedagógicas têm priorizado uma disciplina

verticalizante que ratifica um sistema hierárquico. Desse modo, a educação

exclui e marginaliza qualquer aluno que não se adéqua aos métodos e

conteúdos propostos. É urgente repensar o papel do educador e da escola na

sociedade, afinal, trabalhamos para perpetuar as opressões sociais? A escola

cumpre apenas um papel estratégico de manutenção do poder disciplinar? É

fundamental que os professores exerçam essa análise de autocrítica para

identificar os erros e possibilidades desse ofício tão delicado. Paulo Freire, então, luta contra a educação que serve ao poder

disciplinar, hierarquizando o tempo e o espaço escolar. Assim como Foucault,

Freire critica o ensino que opera como uma linha de montagem em que cada

etapa tem conteúdos fixos que devem ser assimilados e avaliados de modo

autoritário não é nada mais do que um treinamento dos indivíduos. Esse treino

evidente não leva em conta as pluralidades que constitui o ambiente escolar,

impondo uma média ideal que exclui qualquer um que não consiga se adaptar

em função de demandas e dificuldades particulares. Desse modo, a formação

de cada um dos seres humanos que compõem uma sala de aula não está em

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questão, porque o que se espera é a adequação do treino por meio da

disciplina, como evidencia na seguinte passagem: A desconsideração total pela

formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a

maneira autoritária de falar de cima para baixo. Nesse caso, falar a, que na

perspectiva democrática é um possível momento do falar com, nem sequer é

ensaiado. (FREIRE; PAULO, 1996, P. 1395-1400).

Em oposição à educação bancária que apenas deposita conhecimentos,

Freire aponta o diálogo como a prática que viabiliza uma educação libertária.

Em vez de um monólogo que narra apenas conhecimentos esvaziados de sua

realidade, o educador deve apostar no diálogo, em uma fala que se desenvolve

em ação e reação, ou seja, em uma aprendizagem que se cria no encontro

entre os seres humanos. Freire defende o diálogo como uma relação de amor e

compromisso entre os homens:

A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não têm humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do povo. Não podem ser seus companheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais, (FREIRE; PAULO, 1974, p.1236)

A educação crítica que pensa o saber como uma construção dialética,

na qual professor e alunos estão em uma posição ativa em uma relação

horizontal. Ao contrário da educação bancária que segue o modelo disciplinar,

a educação crítica promove o pensamento livre e em vez de treinar os alunos,

os inquieta, ou seja, os incentiva a questionar o mundo em que vivem. Em Pedagogia da Autonomia, Freire enfatiza diversas vezes que a

docência é um ato que se desenvolve junto à discência, isto é, a docência não se estabelece por meio de uma hierarquia na qual os professores transmitem o saber aos alunos, mas em um diálogo, em uma relação de troca entre esses elementos. Assim, a aprendizagem não é uma transferência de conteúdos e normas, mas uma experiência que lida com um pensamento curioso e crítico instigando tanto alunos quanto professores:

Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina algum coisa a alguém.É por isso, repito, que ensinar não é transferir conteúdo a ninguém, assim como

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aprender não é memorizar o perfil do conteúdo transferido no discurso vertical do professor. Ensinar e aprender têm a ver com o esforço metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho igualmente crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem, no processo de desvelamento que o professor ou professora deve deflagrar. Isso não tem nada a ver com a transferência de conteúdo e fala da dificuldade, mas, ao mesmo tempo, da boniteza da docência e da discência. (FREIRE; PAULO, 1996, p. 1540-1543)

Contudo, em Pedagogia do Oprimido, Freire salienta que o educador

precisa se preocupar com o conteúdo para que o diálogo não se transforme, na

verdade, em um monólogo. Só é possível conceber uma conversa, na qual

todos podem opinar sem uma hierarquização do saber, se o educador não for

cuidadoso com sua linguagem e com o tema em questão. Aprendizagem não

se constrói se há apenas um discurso unilateral que apresenta uma

determinada compreensão de modo inquestionável, isto é, sem abertura e

possibilidade de troca. O professor não deve confundir a pedagogia crítica com

uma doutrinação, dialogar com seus alunos é muito diferente de impor seus

ideias: Não seriam poucos os exemplos, que poderiam ser citados, de planos, de natureza política ou simplesmente docente, que falharam porque os seus realizadores partiram de sua visão pessoal da realidade. Porque não levaram em conta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se dirigia seu programa, a não ser como puras incidências de sua ação. Para o educador humanista ou o revolucionário a incidência da ação é a realidade a ser transformada por eles com os outros homens e não estes. Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores.

(FREIRE; PAULO, 1974, p. 1294-1298.)

O ensino de Paulo Freire é fundamental para a formação de uma

educação inclusiva, pois, a partir de sua noção de educação crítica e educação

bancária podemos refletir sobre aspectos decisivos envoltos na prática

pedagógica. A educação bancária que supõe um professor detentor de um

saber (que é também um modo de poder) e um aluno que recebe e assimila

esse mesmo saber. Desse modo, esse tipo de educação compreende o mundo

a partir de uma perspectiva na qual os seres humanos e seus saberes existem

de um modo específico, exato, no qual se ignora completamente a relação

desses com a realidade social, econômica e cultura. No modelo da escola

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bancária é preciso assumir a ideia de um aluno médio, um saber fixo e um

professor que guarda conteúdos como uma enciclopédia. Não há aí qualquer

possibilidade de troca ou criação, trata-se apenas de uma mera reprodução

mecanicista de conhecimentos que muitas vezes não tem qualquer vínculo com

uma prática.

Evidentemente, a educação que trabalha a partir da ideia de um modelo

específico de saber e de aluno não pode ser democrática ou inclusiva, pois é

incapaz de lidar com as diferentes vivências e potencialidades de cada aluno. A

média é um modelo de exclusão. O projeto pedagógico que demanda que o

saber seja uma posse do educador que conduz seus alunos até o

conhecimento está fadada ao fracasso, pois há aí apenas uma relação vertical,

uma imposição unilateral de saberes.

“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se

educam entre si, mediatizados pelo mundo”. (FREIRE,P.;1974, P.1046), essa é

uma das citações mais famosas de Freire e resume com precisão sua aposta

como modelo pedagógico. O modo como um educador conduz sua prática

demonstra como ele se relaciona com o mundo, ou seja, demanda muito mais

do que um acúmulo de conhecimentos. Um bom educador é aquele que em

vez de assumir uma posição de autoridade, se entregue a aprendizagem e a

constrói junto com seus alunos. Para essa entrega é fundamental reconhecer

que o saber não é um conteúdo descolado da realidade, mas algo que se

revela e forma em nossa relação com o mundo. Em outras palavras, não há

conhecimento ou educação que existam de modo universal e, portanto, caibam

em uma média. O educador deve entender a realidade de seus alunos,

conviver com ela, para criar uma comunicação possível com esses e, assim,

formarem juntos um pensamento que tem um real valor social:

O pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados, ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação. Por isto, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes impostos. Daí que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de marfim, mas na e pela comunicação, em torno, repitamos de uma realidade. (FREIRE; PAULO, 1996,p.974-978.)

A educação é um ofício complexo. O modo como um professor se

posiciona envolve muitas questões e reflete como ele compreende as relações

de poder/saber, mais ainda, como pensa as próprias relações humanas. Paulo

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Freire em toda sua obra expõe como a pedagogia não é apenas uma teoria

isolada de uma prática e muito menos uma prática isenta de uma profundidade

teórica. O modo como Freire defende a tarefa do educador pensa essa função

com uma enorme importância, pois é a educação, como criação coletiva de

saber que promove a possibilidade de mudança e liberdade:

A educação como prática da liberdade, ao contrário naquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens. A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem homem, mas sobre os homens em suas relações com o mundo. (FREIRE; PAULO, 1996,p. 1083.)

Portanto, a educação libertária - e inclusiva - só se constrói através de

uma pedagogia crítica na qual o educador está ciente de que seu ofício nunca

está acabado, mas vive em um constante processo de aprendizagem que

desenvolve junto com seus alunos. Se Foucault nos aponta o papel de

manutenção e exclusão que a educação pode assumir quando se confunde

com um treinamento disciplinar, Paulo Freire nos inspira a questionar essa

ordem através de uma educação dialética e crítica.

É possível destruir os muros da disciplina e construir uma escola

inclusiva que respeita a pluralidade de seus alunos, instigando suas potências

em vez de examinar suas capacidades de adaptação. Através da educação

inclusiva podemos – em pequenos, mas significativos passos – mudar a

comunidade em que vivemos, contribuindo para que seja mais democrática e

justa, a partir do poder transformador e criativo da aprendizagem. Mais uma

vez, Paulo Freire nos responde qual é o papel da educação em relação à

sociedade: O que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade, porque assim eu queira, nem tampouco é a perpetuação do status quo, porque o dominante o decrete. O educador e a educadora críticos não podem pensar que, a partir do curso que coordenam ou do seminário que lideram, podem transformar o país. Mas podem demonstrar que é possível mudar. E isso reforça nele ou nela a importância de sua tarefa político-pedagógica. (FREIRE; PAULO, 1996, P.1449 – 1452.)

Através da leitura de Paulo Freire aprendemos como a pedagogia pode

subverter a ordem disciplinar e se impor como uma prática crítica. Porém, não

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basta a educação ser horizontal e questionadora, a estrutura escolar deve se

preparar para incluir todos os alunos e, desse modo, ser verdadeiramente

democrática e transformadora. O próximo capítulo aborda a educação inclusiva

e seu papel transformador através da obra de Maria Teresa ÉglerMantoan,

pedagoga que é referência nacional no debate sobre a inclusão escolar.

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CAPÍTULO III

TRANSFORMANDO A SOCIEDADE: A PEDAGOGIA DA

DIFERENÇA

Maria Teresa ÉglerMantoan é uma das grandes referências nacionais

quando se trata de educação inclusiva. Professora do Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas e

coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença,

Mantoan é uma especialista em pedagogia inclusiva e já publicou mais de 17

livros, entre esses se destaca Inclusão escolar - O que é? Por quê? Como

fazer? (2015), obra que dialoga com as questões da presente pesquisa

bibliográfica.

Inclusão escolar se divide em três capítulos: "O que é inclusão escolar",

"Por que efetivar a inclusão escolar?" e "Como fazer a inclusão escolar". O

primeiro capítulo explica o conceito de inclusão escolar em comparação com a

ideia de integração escolar. Já o segundo capítulo justifica a inclusão escolar a

partir da questão da identidade versus a diferença; a questão legal e a questão

das mudanças. Por último, o terceiro capítulo apresenta possibilidades para a

criação de uma nova educação através de uma prática pedagógica que busca

ensinar a turma toda e que se norteia pela diferença. Em resumo, a obra

elucida não só no que consiste a educação inclusiva, mas também identifica

seus benefícios, assim como os desafios para colocar em prática tal proposta

pedagógica.

Mantoan é uma das pedagogas brasileiras mais engajadas na causa da

educação inclusiva, desse modo, sua obra é uma referência essencial para

compreender com profundidade as concepções teóricas e práticas que

fundamentam a transformação da estrutura escolar. Através da leitura de

Inclusão escolar - O que é? Por quê? Como fazer? Podemos perceber como a

educação inclusiva se apoia em uma pedagogia da diferença que questiona as

identidades fixas – do professor e dos alunos, principalmente –

desestabilizando a hierarquia presente nas relações sociais. Em outras

palavras, a educação inclusiva demanda uma mudança pedagógica que afeta

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profundamente a maneira como alunos e professores se relacionam:

Precisamos ressignificar o papel da escola com professores, pais e comunidades interessadas e instalar, no seu cotidiano, formas mais solidárias e plurais de convivência. São as escolas que têm de mudar e não os alunos, para que estes tenham assegurado o direito de aprender, de estudar nelas! O direito à educação é indispensável e natural, não admitindo barganhas. Não há o que negociar quando nos propomos a lutar por uma escola para todos, sem discriminações, sem ensino à parte, diferenciado para os mais e os menos privilegiados. Meu objeto, em uma palavra, é que as escolas sejam instituições abertas incondicionalmente a todos os alunos e, portanto, inclusivas. (MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p. 176-180.)

A inclusão escolar é a única proposta pedagógica que realmente pratica

uma mudança nos valores sociais ao prescindir que a educação seja

construída através das necessidades e capacidades dos alunos. Ao inverter a

regra que demanda que os alunos se adaptem às exigências escolares, a

educação inclusiva constrói saberes a partir das diferentes potencialidades que

compõem cada sala de aula. Assim, os alunos são formadores de

conhecimento, cidadãos críticos e ativos, em vez de corpos dóceis que, por

meio da disciplina, são moldados pelas imposições sociais.

O primeiro capítulo de Inclusão escolar se concentra em elucidar a

distinção entre inclusão escolar e integração escolar, uma distinção

fundamental para compreender a radicalidade da transformação proposta pela

educação inclusiva. Segundo Mantoan, ocorreu nas últimas décadas um

processo de conscientização no Brasil que apontava para a urgência de inserir

crianças portadoras de necessidades especiais no ambiente escolar. A

preocupação em garantir escolaridade para todas as crianças, contudo, não

significa a possibilidade de uma educação realmente democrática. Inserir

crianças portadoras de necessidades especiais nas escolas sem repensar a

estrutura disciplinar e normalizadora desses ambientes é, na verdade,

promover outro tipo de segregação.

Integração ou inclusão podem parecer termos semelhantes, contudo,

significam diferentes propostas e compreensões teórico-metodológicas acerca

da estrutura escolar. Enquanto a integração significa a participação de alunos

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com deficiências nas escolas sejam elas regulares ou especiais - isto é,

escolas que se ocupam exclusivamente de crianças portadoras de deficiências

-, a inclusão pretende uma transformação nas práticas pedagógicas de modo

que a escola se adapte às necessidades de todos os alunos. Em outras

palavras, a integração pretende inserir os alunos portadores de necessidades

especiais no sistema escolar, mas de um modo parcial, pois ainda conta com

espaços segregados. A inclusão escolar demanda uma transformação na

maneira como a própria educação é concebida, uma mudança que afeta todos

os alunos e não só aqueles portadores de deficiências:

A lógica dessa organização [escolar] é marcada por uma visão determinista, mecanicista, formalista, reducionista, própria do pensamento científico moderno, que ignora o subjetivo, o afetivo, o criador - sem os quais é difícil romper com o velho modelo escolar e produzir a reviravolta que a inclusão impõe. Essa reviravolta exige, em nível institucional, a extinção das categorizações e das oposições excludentes - iguais versus diferentes, normais versus com deficiência - e, em nível pessoal, que busquemos articulação, flexibilidade, interdependência e transversalidade entre as partes que se conflitavam em nossos pensamentos, ações e sentimentos. (MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p.257.)

Na integração, os alunos ainda precisam se adaptar ao modelo escolar,

pois há apenas algumas alterações nessa estrutura. A integração apenas

acrescenta um tipo de educação especializada para crianças portadoras de

necessidades especiais ao modelo regular, ou seja, não há aí um

questionamento acerca da estrutura e o papel da escola. Afinal, um sistema

escolar que tem conteúdos fixos e um único modelo de avaliação serve apenas

para indicar quais alunos se adaptam melhor aos seus parâmetros, ou seja,

trata-se somente de um modo de disciplinar os alunos e segregar aqueles que

não podem ou se recusam a se adaptar a essas normas. Dar oportunidades

iguais a um grupo constituído por uma vasta diversidade e exigir um único

resultado como o correto não é construir uma sociedade democrática, é apenas

uma manutenção das desigualdades e injustiças sociais:

O objetivo da integração é inserir um aluno, ou um grupo de alunos, que foi anteriormente excluído. O mote da inclusão, ao

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contrário, é o de não deixar ninguém no exterior do ensino regular, desde o começo da vida escolar. As escolas inclusivas propõem um modo de organização do sistema educacional que considera as necessidades de todos os alunos, estruturado em função dessas necessidades. A inclusão implica uma mudança de perspectiva educacional, pois não atinge apenas alunos com deficiência e os que apresentam dificuldades de aprender, mas todos os demais, para que obtenham sucesso na corrente educativa em geral. (MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p.312 – 316.)

A educação inclusiva é mais do que uma medida reparadora que tenta

inserir alunos com necessidades especiais sem transformar a estrutura escolar.

Construir uma prática pedagógica inclusiva é quebrar os paradigmas que

definem essa estrutura de modo a incluir todos os alunos. Em outras palavras,

trata-se de modificar o sistema no qual os educadores ditam as regras do

conhecimento e os alunos se adaptam a essas para uma relação que constrói

o ensino diariamente através das vivências de cada aluno.

A diferença entre integração e inclusão resguarda uma questão ética

acerca da relação entre identidade e diferença. A inclusão em suas práticas

promove a valorização das diferenças que coexistem em um mesmo ambiente

escolar. Essa premissa é completamente oposta à ideia de tolerar e respeitar

aqueles que são diferentes da norma, isto é, da premissa que fundamenta a

integração. A educação inclusiva não se baseia em uma igualdade forçada em

uma ética conservadora a qual impõe a tolerância à diferença apenas para

ratificar a normalidade, pelo contrário, construir uma escola que inclui todos os

alunos demanda a valorização das diferenças. A integração, ao ainda supor a

distinção entre um ensino regular e um ensino especial, serve apenas como um

modo de manutenção dos preconceitos sociais que fixam os portadores de

deficiência em uma identidade alheia a normalidade.

Apostar nas diferenças é atentar para a realidade – a mesma que Paulo

Freire indica como o que media a aprendizagem – que faz com que cada aluno

seja diferente. Em outras palavras, a educação inclusiva rompe com as velhas

normas que pressupõem um aluno ideal e se concentra em educar todos os

alunos, sem excluir ou ignorar suas diferenças. É exatamente nesse ponto que

se localiza a radicalidade da proposta de uma educação inclusiva, pois

somente quando a escola transforma os alunos – em suas diversidades – e

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agentes ativos da aprendizagem que há de fato um rompimento com as

estruturas hierárquicas e disciplinares que fundamentam o ensino

tradicionalmente opressor.

Enquanto a integração é um modelo escolar que ainda se estrutura por

meio da concepção de uma normalidade, ou seja, ainda se apoia em um

ensino que implica em um aluno ideal e abstrato, a educação inclusiva se

constrói através da realidade que mediatiza a aprendizagem, concebendo os

alunos como pessoas reais, únicas e, portanto, diferentes. Como foi exposto no

capítulo anterior que abordou a pedagogia crítica proposta por Paulo Freire, a

educação que aposta em uma média – seja para conceber o ideal de um aluno

exemplar ou para calcular o rendimento desse mesmo aluno – está

necessariamente estruturada por um modelo pedagógico que promove a

exclusão e segregação de alunos:

Os alunos não são virtuais, objetos categorizáveis – eles existem de fato, provêm de contextos culturais os mais variados, representam diferentes segmentos sociais, produzem e ampliam conhecimentos e têm desejos, aspirações, valores, sentimentos e costumes com os quais se identificam (...) O aluno abstrato justifica a maneira excludente de a escola tratar a diferença. Assim é que se estabelecem as categorias de alunos: deficientes, carentes, comportados, inteligentes, hiperativos, agressivos e tantos mais. Por essa classificação é que se perpetuam as injustiças na escola. Por detrás dela é que a escola se protege do aluno, na sua singularidade. (MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p.692-696.)

Portanto, a educação que fundamenta conteúdos e avaliações fixos

concebe uma medida abstrata a qual ignora as diferentes realidades que

compõem uma sala de aula. Desse modo, integrar crianças portadoras de

necessidades especiais sem questionar as estruturas disciplinares e

normativas do ensino regular é apostar na possibilidade de uma falsa

igualdade, pois o discurso que prega a tolerância às minorias sociais

defendendo a construção de uma sociedade igualitária opera, na verdade, uma

exclusão social ao silenciar as diferenças.

No segundo capítulo de Inclusão Escolar, Mantoan ratifica a

implementação da pedagogia inclusiva nas escolas brasileiras, através de

diferentes argumentos, entre esses se destaca a oposição entre identidade e

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diferença. Assim, a autora afirma que é somente através da compreensão e

valorização das diferenças que todos os seres humanos podem finalmente

serem sujeitos diversos e únicos, isto é, podem ser agentes ativos de suas

próprias vidas. Em sua concepção pedagógica, Mantoan demonstra como a

defesa da igualdade resguarda a normalidade como norma, fixando as

diferenças em identidades – o que se torna explícito na concepção de

educação especial que segrega em uma falsa impressão de democracia – e

justifica como apenas a educação que se fundamenta através das diferenças

pode de fato incluir todos os alunos.

Assim como Paulo Freire e Michel Foucault, Mantoan indica a

profundidade que reside na prática pedagógica. O ato de educar demanda uma

intensa reflexão ética e, em alguns casos, filosófica. É o caso da indagação

proposta em Inclusão Escolar acerca da concepção de identidade em

contraposição à concepção de diferença. Mantoan demonstra como as ações

educativas devem compreender as diferenças entre os alunos como algo que

está sempre em produção, isto é, não se trata de uma identidade rígida que

pode ser naturalizada. Somente uma educação verdadeiramente plural e

democrática questiona as identidades – e suas hierarquias – que convivem no

ambiente escolar.

Desse modo, enquanto a integração e o ensino especial compreendem a

sociedade em uma homogeneidade ilusória na qual é preciso respeitar as

diferenças, a inclusão escolar propõe uma nova maneira de conceber a

pedagogia e a própria sociedade ao ignorar a norma e apostar nas diferenças.

Compreender as diferenças é um modo de construir uma nova ética escolar

renegando a prática pedagógica que é disciplinar, hierárquica e excludente:

Se a igualdade é referência, podemos inventar o que quisermos para agrupar e rotular os alunos com deficiência. Mas se a diferença é tomada como parâmetro, não fixamos mais a igualdade como norma e fazemos cair toda uma hierarquia das igualdades e diferenças que sustentam a “normalização”. Esse processo – a normalização – pelo qual a educação especial tem proclamado seu poder propõe sutilmente, com base em características devidamente selecionadas como positivas, a eleição arbitrária de uma identidade “normal” como padrão de hierarquização e de avaliação de alunos, de pessoas.Contrariar a perspectiva de

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uma escola que se pauta pela igualdade de oportunidades é fazer diferença, reconhecê-la e valorizá-la. (MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p. 389-393.)

Contudo, Mantoan recomenda, sobretudo, cautela. A igualdade não

deve ser um parâmetro, se ela serve apenas para tolerar e silenciar as

diferenças, ou seja, se é apenas um discurso que reduz as pluralidades. No

entanto, a diferença também não deve ser tomada como referência, pois isso

também provoca a fixação de identidades que inferiorizam a subjetividade dos

que se submetem a tal rigidez. É preciso não aceitar a igualdade que nega

nossas características individuais, mas também questionar a ênfase às

diferenças que visa produzir identidades concebidas como inferiores:

Não há mais como recusar, negar, desvalidar a diferença na sociedade brasileira e no cenário internacional. Resta-nos, pois, reconhecer o sentido a ela atribuído: diferença como padrão produzido pelos que procuraram se diferenciar cada vez mais para manter a estabilidade de sua identificação; ou diferença como motivo pelo qual se coloca em xeque a sua produção social, como um valor negativo, discriminador e marginalizante. (MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p.405.)

Porém, Inclusão escolar não apresenta uma reflexão teórica sobre a

educação, mas se propõe a indicar ações educacionais que colocam em

prática a inclusão escolar. Desse modo, o terceiro capítulo do livro, Como fazer

a inclusão escolar, se divide em sete seções que apresentam explicações para

recriar o modelo escolar, incluir todos os alunos e preparar o professor para

essa inclusão. Para a presente pesquisa, as duas últimas seções – Diferenciar

para incluir ou diferenciar para excluir? e Uma pedagogia da diferença – são as

mais relevantes, pois se voltam para a questão da diferença através de uma

preocupação de caráter prático.

Esses capítulos descrevem como a inclusão demanda um difícil

equilíbrio ao propor a compreensão das diferenças no ambiente escolar. Há, na

verdade, uma ambivalência que exige muito dos professores, pois é preciso um

constante cuidado para evitar que a valorização das diferenças cai em

identidades fixas ou em igualdades que segregam. Torna-se fundamental

perceber como as diferenças são constantemente produzidas e, portanto,

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instáveis, desse modo, o educador deve dar espaço para que o aluno, como

sujeito ativo, dê vazão e significado as suas diferenças. Não deve ser a escola

que aponta e categoriza as diferenças dos alunos, pois isso pode produzir

equívocos e novas formas de exclusão:

Diferenciar para incluir é possível quando o aluno ou beneficiário de uma ação afirmativa estiver no gozo do direito de escolha ou não dessa diferenciação. Um exemplo é o aluno que pode optar pelo lugar que ocupará em uma sala de aula quando usa cadeira de rodas. Ele não é obrigado a se sujeitar à imposição de sentar-se sempre à frente de todos, em um lugar especial, definido por especialistas, se sua turma de colegas está localizada mais ao fundo. (MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p.105.)

Compreender as diferenças e incentivar que os alunos sejam sujeitos

capazes de expressar suas vontades, necessidades e potenciais. Diferenciar,

portanto, não pode ser de modo algum uma forma de inferiorizar e limitar esses

alunos. Respeitar e incentivar as diferenças não significa impor identidades

fixas. Segundo Mantoan, é urgente atentar para o caráter instável de tais

diferenças. Cada aluno é diferente em sua própria maneira e, como sujeitos em

formação, estão sempre mudando. Assim, cabe muito cuidado aos educadores

na hora de auxiliarem os alunos, pois, em primeiro lugar, é preciso garantir que

esses sejam dotados de autonomia.

Dessa maneira, incluir todos os alunos é deixar que esses sejam sujeitos

ativos no processo de aprendizagem, ou seja, que eles possam construir o

espaço escolar. É através dessa participação ativa, de um diálogo contínuo

entre todos que formam a sala de aula, que as diferenças podem coexistir de

modo livre. Evidentemente, a educação inclusiva demanda uma estrutura que

acolha as possíveis diferenças e necessidades. Essa estrutura vai além da

concepção pedagógica, é essencial que as autoridades públicas providenciem

espaços acessíveis e tecnologias assistivas. É imprescindível que as escolas

possuam a melhor infraestrutura possível para incluir democraticamente

diferentes alunos, por exemplo, rampas, elevadores, sanitários adaptados,

materiais escolares em braile, computadores e todo tipo de tecnologia de

apoio. Contudo, essas estruturas não devem ser impostas aos alunos, na

verdade, são possibilidades que eles devem escolher se desejam ou não

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desfrutar.

O apoio da escola deve ser uma garantia, mas jamais uma obrigação,

pois isso fixa a diferença como uma inferioridade que limita a autonomia do

aluno. A educação inclusiva é desafiadora porque ela precisa tanto garantir o

direito à igualdade, como o direito à diferença. No entanto, a educação – e a

sociedade –democrática só pode se formar quando os educadores aceitam o

desafio de ajudar os alunos sem impor esse auxílio como uma obrigação.

Destruir os muros da escola é justamente exterminar a ideia de

autoridade e hierarquia que faz com que os alunos estejam sempre

subjulgados às opiniões dos professores. Incluir através da diferença – e não

da identidade – é romper com a norma e a hierarquia. Não cabe ao professor a

responsabilidade de decidir o que é melhor para cada aluno ou o que cada um

pode ou não realizar. São os alunos que indicam suas preferências, revelam

seus potenciais e aprendem a lidar com suas dificuldades.

Portanto, a escola que pretende ser inclusiva a partir da chamada

“educação especial”, na verdade, está restringindo os conteúdos dos alunos,

prosseguindo um tipo de exclusão. Mantoan critica a educação especial

afirmando que se trata de uma diferenciação para excluir já que compreende

os alunos em padrões de comportamento, o que ainda dialoga com o

parâmetro de normalidade medido por um aluno ideal e abstrato. Ela denomina

esse tipo de educação como Pedagogia da Diversidade, porque sua proposta é

integrar minorias diversas, apostando em identidades imutáveis que podem

conquistar afirmação social a partir da representatividade:

Muitos poderão entender que essas diferenciações visam incluir o aluno, pois do contrário aqueles com deficiência seriam relegados pela escola, por falta de atenção às suas necessidades. Ocorre que tais programas, por restringirem conteúdos e atividades escolares, são considerados discriminatórios e excludentes e atentam contra a liberdade de o aluno aceitá-las ou não no período de aula. A diferenciação para excluir, muito frequente, limita o direito de participação social e o gozo do direito de decidir e opinar de determinadas pessoas e populações. Na boa vontade de “customizar” o processo educativo, de modo que se ajuste ao feitio de cada um, a exclusão se manifesta, embora estejamos pretendendo o contrário.

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(MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p.1065-1068)

Essa compreensão pedagógica é completamente oposta à educação

inclusiva concebida por Mantoan como uma pedagogia da diferença, na qual

todos que compõem o ambiente escolar são únicos e profundamente

diferentes, de modo que a ideia de representatividade é isenta de valor. Na

pedagogia da diferença não há representantes, pois a inclusão prevê a

autonomia e a liberdade para que cada um possa expressar seus próprios

desejos e necessidades:

A pedagogia a que queremos chegar não seria jamais concebida como uma pedagogia que congela identidades. Que, em função dessa estabilidade construída, estabelece um campo específico, uma fórmula-padrão para atuar com cada uma delas...A essa maneira de fazer educação comum e educação especial podemos chamar de pedagogia da diversidade. Ela se destina a etnias, religiões gêneros, minorias em geral. Celebra identidades estáveis, prontas, que se impõem como representativas de grupos que buscam, entre outros objetivos, a afirmação social. Difere por completo da pedagogia da diferença, construída no entendimento pleno da inclusão e destinada a alunos que não se repetem e para os quais é impensável sugerir qualquer “customização” educativa.(MANTOAN; MARIA TERESA, 2015, p.1083.)

A pedagogia da diferença é a prática educacional que parte do

pressuposto de que todos os seres humanos são únicos e, portanto, diferentes.

De acordo com essa concepção, não cabe aos educadores tolerar à diferença

de alguns grupos de alunos, mas o trabalho de compreender e incentivar o

processo particular de cada aluno na jornada da aprendizagem. Através dessa

prática, a escola abandona não só a ordem disciplinar e normativa, mas a

exclusão inerente a essa estrutura escolar. A educação inclusiva, ao se

construir pelas experiências dos alunos, é um modo de verdadeiramente

democratizar o ensino, ressignificando as desigualdades que compõem nossa

sociedade. Quando a educação inclusiva respeita as diferentes realidades que

coexistem dentro do ambiente escolar, os muros são destruídos e a

aprendizagem se relaciona diretamente com as necessidades e possibilidades

sociais.

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CONCLUSÃO

Esta pesquisa bibliográfica procurou elucidar a relação entre o sistema

escolar e a sociedade, tendo como principal foco a educação inclusiva. Desse

modo, durante a presente análise, foram apresentadas as teses de diferentes

autores que produziram obras acerca da estrutura educacional.

Em seu primeiro capítulo, Os muros da escola, a pesquisa se dedicou a

compreender, através do pensamento de Michel Foucault, a relação entre

escola e sociedade quando essa se estabelece de modo unilateral, tendo a

educação um mero papel de controle disciplinar que, ao reproduzir a

segregação social serve apenas para manutenção dessas desigualdades.

Já o segundo capítulo, Quebrando o muro: a construção da pedagogia

crítica, demonstra a pedagogia crítica concebida por Paulo Freire, educador

brasileiro que lutou por uma educação libertária que se constrói por meio de um

diálogo no qual as posições hierárquicas que compõem o ambiente escolar são

trocadas por relações horizontais.

Por último, no capítulo Transformando a sociedade: A pedagogia da

diferença, se compreende, a partir da obra Educação Inclusiva de Maria Teresa

ÉglerMantoan, como apenas a escola que lida com as diferenças e procura

incluir todos os alunos, transforma a sociedade em um espaço mais

democrático e menos segregador.

Desse modo, a pesquisa conclui que a relação entre educação e

sociedade nem sempre é produtiva, libertária e crítica. Pelo contrário, há uma

forte tendência da escola simplesmente reproduzir os muros e desigualdades

que constituem a sociedade na qual se insere. A educação transformadora

precisa ser inclusiva, porque somente dessa forma é possível construir uma

relação horizontal no qual os alunos são agentes ativos e autônomos no

processo de aprendizagem. A educação que funciona como uma reprodução

de conteúdos e avaliações ignora e segrega as diferentes realidades que

compõem o ambiente escolar – e a sociedade como um todo.

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A pedagogia da diferença que compreende os alunos como seres

humanos reais, únicos e, portanto, diferentes é a única solução para

radicalmente transformar a estrutura escolar e, consequentemente, a

sociedade. Portanto, é preciso que os educadores aceitem o desafio da

autocrítica para que consigam reformular suas práticas pedagógicas e criticar a

hierarquia excludente que, muitas vezes, é inerente a sua posição de

autoridade. Praticar a educação inclusiva certamente não é uma tarefa simples,

exige esforço e atenção, no entanto, é por esse caminho pedagógico que é

possível construir uma escola que integra a sociedade formando cidadãos

ativos, críticos e, principalmente, satisfeitos.

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