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gabriela-sarubbi
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Este trabalho se trata de um exercício experimental aplicado na disciplina de História do Design da Universidade Federal de Pernambuco, no primeiro semestre de 2016, ministrada pela Prof. Oriana Duarte, com monitoria do aluno Denizá Rodrigues. A proposta foi desenvolver uma narrativa ficcional ambientada na escola Bauhaus na primeira metade do século XX e tem como objetivo uma outra possibilidade de apreensão do saber histórico. Os conteúdos apresentados aqui não devem ser usados como documentos históricos.
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ESTE DIÁRIO PERTENCE A:
Reflexos do meu terceiro ano na minha casa
chamada Bauhaus
Este trabalho se trata de um exercício experimental aplicado na disciplina de História do Design da Universidade Federal de Pernambuco, no primeiro semestre de 2016, ministrada pela Prof. Oriana Duarte, com monitoria do aluno Denizá Rodrigues. A proposta foi desenvolver uma narrativa ficcional ambientada na escola Bauhaus na primeira metade do século XX e tem como objetivo uma outra possibilidade de apreensão do saber histórico. Os conteúdos apresentados aqui não devem ser usados como documentos históricos. O personagem criado se trata de Ludwig Otten, estudante da Bauhaus de Dessau e portador da ainda não conhecida síndrome de Klinefelter.
É um alívio poder ver a grandeza da
Bauhaus novamente. Após as intermináveis
semanas das férias de inverno, finalmente
estar de volta à minha amada escola me dá
uma sensação de alívio, como se estivesse
voltando à minha própria casa. De certa
forma, isso não é mentira, pois passarei todo
o período morando nos arredores do prédio
mais encantador de Dessau, assim como tenho
feito nos últimos dois anos.
Hoje à tarde, já acomodados em
nossos respectivos dormitórios, eu e alguns
amigos decidimos levar a câmera até a
fachada, para tentar fazer alguma fotografia
interessante. Não como parte de um trabalho,
ou coisa parecida, mas por simples vontade de
experimentação, e, de minha parte, para
guardar uma lembrança.
Abril, 1930
São essas as situações em que me sinto
mais feliz: rodeado por esses desconhecidos e
inovadores artistas que me consideram seu
igual.
Ao contrário dos moradores da minha
cidade natal, que, por conta de minha
deficiência, me têm como uma afronta à pureza
de sua raça, o amontoado de peculiares alunos
me recebe de braços abertos, carinho que não
recebo em nenhum outro lugar.
Depois de uma ida sorrateira à sala
escura do recém-fundado Departamento de
fotografia, ao qual não nos é permitida a
entrada, esse foi o resultado.
Revirando minhas anotações antigas,
hoje cedo, encontrei estudos meus realizados no
primeiro semestre, durante o curso preliminar.
O estudo era a respeito do desenho analítico
aplicado pelo meu antigo professor Kandinsky e
consistia em representar algo a partir de suas
forças. Tentei representar Cibylle, um cão que
tive na infância. Esbocei Cibylle a partir
das memórias que eu tinha, tentando usar
minha capacidade eidética, que de longe
chegava ao nível da do meu antigo professor
Kandinsky. Dizem que ele até reproduzia
quadros que via em exposições apenas usando
sua memória visual. Eu não chego a esse nível,
mas me esforço.
Feito o esboço de Cibylle, tracei as
linhas que representavam as forças da forma.
Achei o resultado incrível no momento, mas
hoje, revendo, creio que posso fazer muito
melhor do que fiz há cerca de dois anos.
Abril, 1930
E por falar em Kandinsky, o encontrei
pelos corredores hoje. É tão engraçado vê-lo.
Sinto saudades do curso preliminar e da época
em que eu só o conhecia por suas obras escritas
na Rússia. Me interesso pela ideia de síntese
de todas as artes que ele prega. Para mim, e
aposto que para muitos outros alunos,
Kandinsky não é apenas uma pessoa, é
também um conceito. Escrever esse relato me
deu vontade de ouvir Beethoven, pois isto para
mim representa nostalgia. Creio que tive um
momento de sinestesia agora... acontece quase
sempre que falo no senhor Kandinsky.
Este é um objeto unicamente de metal
que fiz hoje!
Por sorte, consegui entrar na oficina de
metais. Tinha medo que fosse indicado a
alguma outra, assim como o senhor Albers foi
em sua época. Ele foi indicado para a pintura
mural, embora quisesse muito ir à oficina de
vidro. No fim, ele seguiu em rebeldia seu desejo
e suas obras com vidro foram tão incríveis que
ele foi posteriormente integrado à oficina de
vidro!
Abril, 1930
Eu não tive essa dificuldade e hoje estou
feliz com as minhas produções. Hoje concluí a
minha Colher Dual. É um objeto que reflete como
me sinto quanto ao meu corpo. Minha síndrome de
me faz ser um misto de homem e mulher que é
considerado uma aberração horrenda por muitos lá
fora.
Bem, sobre a colher. Tentei explorar os
conceitos de textura, estrutura e fatura que Albers
criou com base no estudo da epiderme de Moholy.
Quanto à estrutura, temos a fria, lisa e brilhosa
superfície do metal. Para à fatura, apliquei de
dois tipos: na concha deixei o metal liso e suave,
no cabo, deixei o metal rugoso utilizando batidas
de um martelo. Aí está a dualidade, da
delicadeza unida à grosseria. Por fim, para
aplicar mais do que aprendi, fiz a colher conseguir
se manter equilibrada na concha, dado os estudos
de centro de gravidade, tal como faz a mestra
Ursula Schneider (quero chegar ao nível dela um
dia!).
Essas são algumas ideias que
tive hoje pela manhã com meu amigo Klaus,
para os cartazes que faremos agora à tarde.
Estamos indo para uma reunião para a
produção do material que utilizaremos no
Bauhaus Carnival, daqui a duas semanas.
Planejamos, junto com os alunos
interessados, fazer uma grande manifestação
contra os ideais nazistas que cresceram tanto
na cidade, nos últimos anos.
Maio, 1930
Me sinto feliz ao ver os alunos com
tanta iniciativa, e decididos a lutar pelo que
acreditam. Klaus é um deles, sempre
encabeçando todas as manifestações comunistas
que fazemos. Cada vez mais, observo
organizações do tipo, mesmo pequenas, e vejo
mais pessoas se posicionando politicamente,
principalmente com uma tendência aos princípios
da esquerda.
Pelo que escuto de estudantes
antigos, isso se deve, em parte, ao atual diretor
da Bauhaus, Hannes Meyer. Eu não cheguei a
conhecer o trabalho de Walter Gropius. O ano
em que entrei foi, coincidentemente, o mesmo em
que Meyer, antigo diretor do Departamento de
Arquitetura, foi apontado diretor. Mas
concordo quando o colocam como um dos motivos
da radicalização dos alunos.
Ele é um marxista declarado, e
adaptou vários aspectos do ensino da Bauhaus
de acordo com seu lema “A necessidade do povo
antes da necessidade de luxo”, influenciando os
pensamentos de muita gente.
Devo dizer que fui um deles. Acredito
que somos todos iguais, e que deveríamos ser
tratados como tal, em níveis que o sistema
capitalista atual não satisfaz.
E, sendo assim, eu não podia estar de
fora dessa reunião, pois entre os períodos letivos
e todo o trabalho que produzo, são poucas as
oportunidades que tenho de apenas me sentar
com outras pessoas para discutir o que
pensamos. Acredito que escrevo meus
pensamentos muito mais do que os falo, mas
estou tentando mudar isso.
Mais um achado! Uma fotografia
retirada por meu amigo Erich Consemuller de
um estudo de papel que realizei também no
curso preliminar. Tive a sorte de entrar na
Bauhaus justamente no ano em que o senhor
Albers se tornou o diretor do curso preliminar.
Sua metodologia parece me agradar mais do
que me agradaria a do senhor Itten ou do
senhor Moholy-Nagy, que visavam uma
formação artesanal específica. Prefiro o
caráter mais amplo aplicado por Albers.
Bem, essa fotografia mostra um estudo
em papel. Um dos primeiros que realizei.
Lembro-me como se fosse ontem o dia em que o
senhor Albers chegou à sala com jornais velhos
pedindo para que os transformássemos em
“algo mais”.
Maio, 1930
Fiz algo muito extravagante,
esquecendo das limitações do meu material, o
papel. Naquele dia aprendi que o simples
pode ser mais respeitoso com o material com o
qual estamos lidando. Enfim, depois daquele
dia, aprendi a respeitar a matéria do meu
trabalho, e o resultado é esse:
Hoje aconteceu uma coisa incrível. Dois
anos de Bauhaus e essa escola ainda me
surpreende. Durante as festividades da
Bauhaus, nosso grupo de estudantes fez os seus
protestos, e foi sensacional. Havia alguns
estudantes com máscaras metálicas e muitos
carregavam cartazes com escritos nas
tipografias originais
da Bauhaus. Aproveitei o momento da
festividade para tirar uma fotografia utilizando
a máscara. Eu não tinha vontade de usá-la
porque pareceria uma não aceitação de mim
mesmo, e as pessoas de lá sempre me ajudaram
a aceitar que eu não sou diferente. Na verdade,
usar a máscara sem receio me faz realmente me
sentir igual. Uma sensação tão completa quanto
pintar meus quadros.
Junho, 1930
Hoje não foi um bom dia.
Fui passear pela cidade com Elsa e seu
novo amigo, Hans Thiemann. Normalmente, eu
tento ao máximo não sair do território da
Bauhaus, mas não pude recusar o pedido de
ajuda da minha amiga, que está com
dificuldades no trabalho de fotografia que
Peterhans havia passado e, por isso, buscava
novos espaços onde pudesse fazer boas
composições comigo e com Hans.
Passávamos por uma rua um pouco
mais vazia, ao mesmo tempo que um grupo de
rapazes vinha na direção oposta. No momento
em que nos cruzamos, um deles me deu um
empurrão que me fez perder o equilíbrio e cair na
calçada, enquanto escutava o riso conjunto.
Outro ainda disse que pessoas como eu eram um
atraso, um peso para o povo alemão, e que eu
deveria tomar cuidado ao andar por aquela
área, ou eles seriam obrigados a “dar um jeito
em mim”.
Junho, 1930
Claro, todo aluno está acostumado com
algum tipo de estranhamento por parte dos
cidadãos comuns. Elsa, por exemplo, com seu
corte de cabelo inusitado, e até masculino, já
passou por isso. Hans, que começou seu curso
esse ano, está começando a se deparar com isso.
E com minha síndrome, naturalmente, as
situações se agravam. Mas nunca me
ameaçaram daquela maneira. Aquilo me deixou
com muito medo. E com uma profunda tristeza.
Mas não vou deixar suas palavras me
atingirem. Eu não sou uma doença.
No momento, estou em um trem,
voltando para minha cidade natal, guardando
essa última lembrança da minha amada escola.
Após a manifestação, a imprensa de direita
caiu em cima dos estudantes e de tudo
relacionado à Bauhaus, descrevendo-os como
“bolcheviques culturais”. Eles não descansariam
até que Hannes Meyer deixasse a diretoria...
Agora, sem um diretor, a escola será fechada
por tempo indeterminado, e só resta a mim rezar
para voltar a este lugar.
Agosto, 1930
Estou escrevendo, mais uma vez, de
dentro do meu dormitório na Bauhaus. Depois
de tudo o que aconteceu, porém, ele não
aparenta mais ser uma parte do complexo que eu
chamava de lar. Mas me sinto feliz por pelo
menos estar aqui, pois nem mesmo sabia se isso
seria possível.
Toda a confusão envolvendo a cidade e a
escola parece resolvido. Com a saída de Meyer,
um novo diretor foi nomeado; um que, por
coincidência, tem o mesmo nome que eu: Ludwig
Mies van der Rohe. À primeira vista, ele me
pareceu um homem tranquilo, mas sério e
disciplinado, enquanto discursava para os
estudantes confusos no auditório. Prometeu
continuar o excelente trabalho feito até então,
aclamando principalmente o trabalho de Walter
Gropius, e afirmou que, apesar disso, mudanças
precisavam ser feitas para o bem da instituição.
Outubro de 1930
Devido ao período conturbado, não tive
tempo de produzir nenhum estudo hoje. Estou
pensativo demais e, no fundo, preocupado com o
rumo que vem tomando o Nacional Socialismo
em Dessau. Entendo que talvez as
manifestações estudantis tenham fugido de
controle, mas, se a inclinação política de um
diretor é pretexto suficiente para que o conselho
da cidade o demita, tenho medo do que esse
mesmo conselho pode fazer conosco.
Há um mês, falei sobre Rohe, e a
necessidade de mudança que ele via em nossa
escola. Desde então, não me senti motivado a
escrever. Mas não posso mais guardar a
revolta para mim mesmo. De fato, muitas
mudanças ocorreram.
Primeiramente, percebemos que muitos
estudantes nem ao menos retornaram para o
semestre de inverno, inclusive meu amigo
Klaus, o militante comunista. Me pergunto se
a iniciativa foi dele, ou se Rohe apenas o
considerava muito radical para os novos
parâmetros adquiridos. A segunda opção vem
acontecendo com tanta frequência que me sinto
inclinado a acreditar nela. Além disso, todos
os estudantes foram proibidos de realizar
qualquer manifestação política, tanto de
direita quanto de esquerda (porém, todos nós
sabemos qual das duas essa regra pretende
atingir).
Novembro de 1930
Para completar, toda a pedagogia
progressista que eu admirava nos cursos e
oficinas foi trocada por uma abordagem
totalmente convencional. Todos as atividades
foram restringidas em cinco departamentos:
Arquitetura, Tecelagem, Fotografia, Belas
Artes e Design de interiores e Construção, do
qual participo.
Tenho tido, também, algumas aulas
de desenho livre, mas não é a mesma coisa de
antes. Nosso diretor fez questão de dar ênfase
à parte estética do nosso trabalho, o que vai
contra todo o pensamento de simplicidade e
experimentação que construímos com Meyer.
Minha frustração não pode ser medida nessas
palavras. Sinto falta dos meus amigos que
partiram, assim como do curso que tanto
amava.
Entretanto, a necessidade de expressar
isso me levou a tomar uma boa iniciativa: reuni
um grupo de alunos que se sente da mesma
forma, e decidimos montar uma exposição com
pinturas e fotografias que traduzam nosso
sentimento. O intuito é não fazer referência a
partidos ou ideologias, focando apenas no nosso
interior. Esses são alguns esboços do meu futuro
quadro. Ultimamente, é a única coisa que têm
me deixado empolgado.
A exposição foi um sucesso! Eu tinha
minhas dúvidas quanto a isso, principalmente
pelo fato de nossas atividades estarem cada vez
mais vigiadas pela escola. Mas, enfim, tudo
ocorreu como planejado. Nós expomos nosso
trabalho em um pequeno restaurante, em uma
parte afastada da cidade. Acontece que o dono
do estabelecimento é um grande fã da Bauhaus
e de arte, e concordou em nos receber.
Removemos as mesas e cadeiras do local,
transformando-o num grande salão, que logo se
encheu de espectadores. Tive um pouco de medo
no início da noite.
Novembro, 1930
Me lembrei da ameaça que sofri, e
me angustiei com a possibilidade de alguma
violência. Mas os jovens que vi não
apareceram. Foi uma noite tranquila. Eu sei
que não deveria me amedrontar, pois é isso
que eles querem. Mesmo assim, é um impulso
que não posso controlar.
Lendo o comentário da página anterior,
é até engraçado o quanto eu estava animado
naquela noite. Como não estive em muito tempo.
Hoje fui obrigado a sair de novo. O motivo,
dessa vez, foi minha mãe, que veio me fazer
uma visita. Acho que ela está preocupada
comigo, levando em conta o clima pesado que se
apresenta em todo país a respeito de pessoas
como eu. Mas não quero que ela se sinta a
mesma angústia que sinto. Por isso, para
mostrar que está tudo bem, decidi buscá-la na
estação de trem.
Naturalmente, saí acompanhado da
maior quantidade de amigos que consegui. Não
me sinto mais seguro andando na rua sozinho.
A ida à estação prosseguiu tranquilamente. Na
volta, no entanto, não pude deixar de perceber
os grupos de jovens fardados a nos observar com
olhares cheios de ódio e punhos cerrados.
Dezembro de 1930
O pior, porém, foram os sussurros que
ouvi pelas minhas costas. Havia uma nova ideia
circulando pela cidade. A de que minhas
produções, por representarem formas distorcidas
e duais, não passavam de uma expressão do meu
próprio ser deformado, que não é capaz de se
manifestar de uma forma “bela”, apenas de
uma maneira quebrada e inferior. E eu não faço
ideia de quem começou a afirmar isso.
Eu não aguento mais. Eles podem
criticar o quanto quiserem minha aparência e
minha deformidade. Mas, minha arte?
Acho que estou ficando paranoico.
Hoje, depois da oficina, voltei
diretamente para o meu dormitório. Não consigo
deixar passar esse sentimento de insegurança.
Até mesmo aqui, no lugar que considero o mais
seguro que conheço.
Já faz um tempo que tenho visto eles
passando pelos arredores do prédio da Bauhaus,
e especialmente pela parte em que se encontram
os dormitórios. É um grupo de meninos fardados
que sei que já vi em algum lugar. Tenho certeza
de que é a mim que procuram.
Depois que fiz minha exposição, o clima
ficou consideravelmente mais pesado quando
estou sozinho. Mas não consigo mais ficar entre
outras pessoas. Me sinto julgado, preso.
Quando estou sozinho, sinto medo.
Dezembro de 1930
Sinto que não vale a pena colocar uma
foto do que produzi hoje. Mas amanhã é um
novo dia. Vou tentar produzir alguma coisa boa
e prometo inserir nesse diário. Por ora, vou
dormir. Mas sinto que estou sendo observado
enquanto o faço.
REFERÊNCIAS
DEARSTYNE, Howard. Inside the Bauhaus. Michigan: Rizzoli, 1986. DROSTE, Magdalena. Bauhaus, 1919-1933. Michigan: Taschen, 2002. WICK, Rainer. Pedagogia da Bauhaus. Brasil: Martin Fontes, 1989. Bauhaus Online, Names. Disponível em: <http://bauhaus-online.de/en/atlas /personen>. Acesso em 11 de Julho de 2016.