Dissertação Mestrado Nilza Silva bom capitulo para ESTADO NOVO e Propaganda

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In Instituto Superior de Cincias Sociais e PolticasUniversidade Tcnica de Lisboa

O Patrimnio como Recurso Ideolgico, Cultural e Turstico: Belm

como Espao Cultural de Identidade e Memria

Dissertao para obteno de grau de Mestre em Antropologia Mestranda: Nilza Maria Lopes da Silva e Sousa Orientador: Professor Doutor Jos da Cunha Barros Lisboa 2011

Agradecimentos A realizao desta dissertao no teria sido possvel sem a ajuda e a participao de algumas pessoas s quais eu agradeo imensamente o apoio e incentivo em cada etapa deste trabalho. As primeiras palavras de agradecimento so dirigidas minha famlia, por todo o carinho e ateno, sem ela este momento no seria possvel. Ao meu marido Vtor por sempre me acompanhar e incentivar nas minhas escolhas. Pela pacincia de me ouvir nos momentos de mais ansiedade, nervosismo, mas tambm nas minhas pequenas vitrias dirias. Os meus agradecimentos ao Professor Doutor Jos da Cunha Barros pela disponibilidade demonstrada e pelo apoio prestado na orientao deste trabalho. O meu muito obrigado aos informantes cuja disponibilidade e conhecimento, foram fundamentais para a elaborao desta dissertao. Agradeo de igual forma, ao funcionrios da Biblioteca Municipal de Belm, do Gabinete de Estudos Olisiponenses, do Centro de documentao do Turismo de Portugal, da Biblioteca Museu Repblica Resistncia, da Biblioteca do ISCSP e ISCTE. Finalmente, agradeo aos meus colegas e amigos, pelo apoio e amizade ao longo

deste trabalho.

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O Patrimnio como Recurso Ideolgico, Cultural e Turstico

Nilza Maria Lopes da Silva e Sousa

ndiceINTRODUO ............................................................................................................................ 6 1- TEMA E PROBLEMA DE PESQUISA .................................................................................... 7 2- ENQUADRAMENTO TERICO-CONCEPTUAL ................................................................. 12 3 - METODOLOGIA................................................................................................................... 28 4 - ORGANIZAO DO TRABALHO........................................................................................ 32 CAPTULO I A IMPORTNCIA DA ARTE ESCULTURA MONUMENTAL NA PROPAGANDA IDEOLGICA DO ESTADO NOVO .............................................................. 34 1.1- CONTEXTUALIZAO HISTRICA E POLTICA DO ESTADO NOVO ......................... 35 1.2- A ARTE AO SERVIO DO ESTADO NOVO: A ARTE POPULAR E NAO NA POLTICA FOLCLORISTA DO SPN/SNI .................................................................................. 42 1.3 - A EXPOSIO DO MUNDO PORTUGUS COMO EXEMPLO DA POLTICA DO ESTADO .................................................................................................................................... 48 CAPTULO II - A RUPTURA COM A CONCEPO DE MONUMENTO: O ANTIMONUMENTO ........................................................................................................................... 57 2.1 - A TRANSFORMAO HISTRICA DA ARTE PBLICA................................................ 58 2.2 - A TRANSFORMAO DO ESPAO ............................................................................... 63 2.3 - A ARTE PBLICA EM PORTUGAL: ESTUDO DE CASO EM BELM ........................... 69 CAPTULO III BELM: CARACTERIZAO DA HISTRIA E DO LUGAR ...................... 81 3.1- ENQUADRAMENTO HISTRICO E GEOGRFICO ....................................................... 82 3.2 - RECURSOS PATRIMONIAIS E CULTURAIS .................................................................. 86 3.3- CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL NO ESTADO NOVO........................ 91 CAPTULO IV - POLTICAS CULTURAIS EM PORTUGAL APS 25 ABRIL ....................... 96 4.1 - O PS 25 ABRIL AT A ACTUALIDADE ........................................................................ 97 4.2 - NOVOS DESAFIOS E ORIENTAES DAS POLTICAS CULTURAIS ....................... 101 4.3 - PRTICAS E CONSUMOS CULTURAIS EM PORTUGAL, ESTATSTICAS CULTURAIS ............................................................................................................................ 104 4.4 - MUSEU ARTE POPULAR, UM MUSEU EM CONSTRUO ....................................... 111 CAPTULO V - A INTERVENO NO ESPAO PBLICO URBANO, A PROMOO E DESENVOLVIMENTO TURSTICO EM BELM ................................................................... 117 5.1-PATRIMNIO CULTURAL COMO COMPONENTE DE DESENVOLVIMENTO DO TURISMO ................................................................................................................................ 118 5.2 - A AUTARQUIA NO ORDENAMENTO E NA DINAMIZAO DO TURISMO................ 123 5.2.1 - POLTICAS URBANAS E REABILITAO DO PATRIMNIO E TURISMO ............. 126 5.3 - A ESTRUTURA MONUMENTAL E A ARTE PBLICA NA PROMOO E ATRACO TURSTICA ........................................................................................................ 129

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5.3.1-BELM, AFIRMAO DE UM TURISMO CULTURAL E RECREATIVO..................... 132 CAP. VI - NOTAS CONCLUSIVAS ........................................................................................ 134 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 138 ARTIGOS DE REVISTA: ......................................................................................................... 144 WEBGRAFIA: .......................................................................................................................... 150 ANEXOS.................................................................................................................................. 151 ANEXO I - DISCURSO DE ANTNIO FERRO NA INAUGURAO DA EXPOSIO DE ARTE POPULAR (1936) ......................................................................................................... 152 ANEXO II - DEFENDEMOS O NOSSO FOLCLORE, POR ANTNIO FERRO (1937)......... 156 ANEXO III - DISCURSO DE ANTNIO FERRO NA INAUGURAO DO CENTRO REGIONAL DA EXPOSIO DO MUNDO PORTUGUS .................................................... 159 ANEXO IV- PEQUENAS EXPOSIES PREVISTAS POR SALAZAR ................................ 165 ANEXO V - ESCOLHA DO LOCAL PARA A REALIZAAI DA EXPOSIO DO MUNDO PORTUGUS .......................................................................................................................... 166 ANEXO VI - GUIO DE ENTREVISTA DRA DANIELA ARAJO ...................................... 167 ANEXO VII - GUIO DE ENTREVISTA A JOS PEDRO CALHEIRO ................................. 168

NDICE DE FIGURAS FIGURA 1 - MAPA DA EXPOSIO DO MUNDO PORTUGUS ........................................... 50FIGURA 2 - PAVILHO DA HONRA ........................................................................................ 52 FIGURA 3 - ALDEIAS PORTUGUESAS................................................................................... 53 FIGURA 4 - LOCALIZAO DOS ELEMENTOS DE ARTE PBLICA EM BELM ................ 70 FIGURA 5 - PADRO DOS DESCOBRIMENTOS ................................................................... 71 FIGURA 6 - FONTE LUMINOSA............................................................................................... 71 FIGURA 7 - CAVALOS MARINHOS ......................................................................................... 72 FIGURA 8 - CONJUNTO DE BOIS ........................................................................................... 72 FIGURA 9 - MONUMENTO A AFONSO DE ALBUQUERQUE ................................................ 73 FIGURA 10 - CONJUNTO DE ESTTUAS JUNTO AO MUSEU DE ARTE POPULAR ......... 74 FIGURA 11 - FIGURA FEMININA SEM TTULO ..................................................................... 74 FIGURA 12 - BAIXOS RELEVOS NA FACHADA DO MUSEU DA ARTE POPULAR ............. 75 FIGURA 13 - ROSA DOS VENTOS .......................................................................................... 75 FIGURA 14 - THE CASTLE OF THE EYE ................................................................................ 76 FIGURA 15 - AUGUSTO GIL .................................................................................................... 77 FIGURA 16 - PEDRA DE DIGHTON ........................................................................................ 77 FIGURA 17 - BANCOS DA PAZ ............................................................................................... 78 FIGURA 18 - COMEMORAO DOS 500 ANOS DA PARTIDA DE PEDRO ALVARES CABRAL PARA O BRASIL0...................................................................................................... 79

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FIGURA 19 - FC BELENENSES ............................................................................................... 79 FIGURA 20 - MONUMENTOS AOS COMBATENTES MORTOS NA GUERRA DO ULTRAMAR ............................................................................................................................... 80 FIGURA 21 - MONUMENTO DEDICADO 1 TRAVESSIA AREA PORTUGAL - BRASIL 80 FIGURA 22 - MUSEU ARTE POPULAR................................................................................. 114

NDICE TABELAS TABELA N 1 - REDE NACIONAL DE BIBLIOTECAS PBLICAS - RECURSOSDOCUMENTAIS POR ANO (1993-2008) ............................................................................... 105 TABELA N 2 - VISITANTES DAS EXPOSIES DA GALERIA DO REI D. LUS I POR NACIONALIDADES E POR ANO (2007-2008)....................................................................... 108 TABELA N 3 - PERA, TEATRO MUSICAL ......................................................................... 108 TABELA N 4 - PRODUES, SESSES, ESPECTADORES E RECEITAS DA CNB (2007-8008) ............................................................................................................................. 109 TABELA N 5 - PRODUES, SESSES, ESPECTADORES E RECEITAS DO TNDM II POR ANO (2002-2008). NMERO E EUROS ........................................................................ 109

NDICE DE GRFICOS GRFICO N 1 - RECINTO DE ARTE DE ESPECTCULO POR REGIES ....................... 105GRFICO N 2, VISITANTES DOS MUSEUS POR ANO (2000-2008) ................................. 107

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INTRODUO

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1- TEMA E PROBLEMA DE PESQUISABelm como espao turstico-cultural de identidade e memria constitui o tema central da presente dissertao de mestrado em cincias antropolgicas. A escolha deste tema foi influenciada por razes de ndole variada. A primeira deve-se ao interesse pelo estudo do turismo como facto sociocultural e transversal na concepo confrontada pela maioria dos autores (Ramos 1999; Smith 1989). A segunda decorre da intensificao da produo e consumos de bens culturais que na actualidade tem marcado a politizao e mercantilizao do patrimnio cultural, bem como de questes suscitadas pelo desenvolvimento e aproveitamento turstico do patrimnio cultural escala local. A terceira ordem de razes que nos levaram a optar por este tema resulta da pertinncia do tema nos discursos antropolgicos. A opo pelo tema de pesquisa no apenas importante num trabalho acadmico, e como indica Carlos Diogo Moreira, o tema deve ser relevante, restrito e suscitar, quando possvel e adequado, um envolvimento pessoal (1994:21). O interesse da Antropologia pelas questes do turismo, surgiram desde os primeiros estudos realizados sobre os fenmenos tursticos.1 O interesse da Antropologia pelo turismo, de acordo com Pereiro, prende-se com o facto de o Turismo ser um fenmeno sociocultural complexo que possibilita, a turistas e residentes, a vivncia da alteridade. O turismo uma indstria de encontros entre locais e visitantes, produtores e consumidores de bens tursticos (2009). Segundo o autor, o turismo, um facto social total e tambm um processo social, econmico e cultural no qual participam vrios agentes sociais (Pereiro, 2009:10). Neste sentido, sendo o turismo um fenmeno social, so fundamentais os vrios intermedirios, quer pblicos quer privados. O turismo visto como uma relao de intercmbio entre turistas e receptores de turistas anfitries e convidados (Smith, 1989). O turismo promove mltiplas inter-relaes com as restantes actividades econmicas, culturais e sociopolticas, sendo hoje um facto social de importncia escala mundial, pelo que alvo de interesse e anlise antropolgica (Nash, 1995:179).1

- O primeiro estudo antropolgico sobre o turismo foi realizado por Theron Nuez (1963), o qual analisou o turismo de fim-de-semana que os norte-americanos praticavam no Mxico, in Turismo Cultural, uma Viso Antropolgica de Xerardo Pereiro, 2009.

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Segundo Santana, podemos dizer que o turismo uma actividade consumidora de culturas (Santana, 2003:121). Desta forma, converteu-se o mesmo num portador de novas formas culturais (MacCannelll, 1999), o que significa que para as entender preciso estudar o turismo e por consequncia, uma boa oportunidade para observar a produo de cultura (Pereiro, 2009). Pereiro salienta, que a antropologia permite pensar o turismo a partir das seguintes perspectivas: o Turismo como intercmbio sociocultural; o turismo como experincia ritual moderna; o turismo como prtica de consumos diferencial; e por fim, o turismo como instrumento de poder poltico-ideolgico (2009:58). Na perspectiva de Francisco Ramos, as principais caractersticas da actividade turstica residem, a nvel socioeconmico, Na mobilidade social, na interaco do individuo e grupos sociais, no processo de comunicao, na criao de riqueza e de postos de trabalho, nas leis da oferta e da procura e na problemtica do desenvolvimento. Politicamente , acima de tudo, um instrumento de promoo da imagem de pases, regies ou localidades, no sentido da aquisio de divisas estrangeiras e do desenvolvimento econmico (1996:84). Assim, o turismo compreendido como um mecanismo scio-poltico subjacente inveno e fabrico do local turstico. Na perspectiva de Ema Pires, o turismo funciona como afirmao poltica, dando lugar a polticas de representao e classificao de monumentos, de paisagem, assim como museus ou as exposies universais que constituem exemplos de formas culturais instrumentalizadas pelos poderes polticos (2003). O interesse pelo patrimnio, centrado nas referncias da antiguidade clssica e voltado para a criao nacional, teve como suporte uma nova atitude comparvel existente nos estudos de cincias naturais, onde se reconhecia que era passvel de descrio, ou seja, os objectos passaram a ser valorizados independentemente da sua natureza. De acordo com Franoise Choay trata-se do triunfo geral da observao concreta sobre a tradio oral e escrita, do testemunho visual sobre a autoridade dos textos (2000:65). Preservar o passado sempre foi uma necessidade inconsciente e/ou consciente do ser humano, mas somente nos sculos XIX e XX que ocorreu uma consagrao institucional do monumento histrico. A procura constante pelo patrimnio inicia-se a partir de ento,

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com a ajuda do turismo, que vai promover a venda desses monumentos histricos. O Turismo Cultural no implica apenas a oferta de espectculos ou eventos, mas tambm a existncia e preservao de um patrimnio cultural representado por museus, monumentos e locais histricos. Em outras palavras, o turismo contribui para a tomada de conscincia da importncia da preservao do patrimnio como recurso escasso e raro para que este possa ser utilizado no presente e salvaguardado no futuro. O patrimnio aparece assim como um recurso turstico durvel e condio necessria para o desenvolvimento do produto turismo cultural. Perante as actuais discusses suscitadas entre turismo e patrimnio cultural possvel apontar que as relaes estabelecidas entre ambos sero duradouras pois, cada vez mais, as pessoas tm procurado, atravs da realizao de viagens tursticas, um crescimento cultural advindo da observao dos diversos tipos de cultura caractersticos de cada local visitado. O patrimnio cultural designa o significado e valor histrico, esttico, cientifico e simblico, como experiencia individual ou colectiva do bem cultural de natureza material e/ou imaterial para as geraes passadas, presentes e futuras. A reflexo que ir ser desenvolvida insere-se, de igual forma, nos estudos da memria, nomeadamente, da forma como o passado representado no presente, e como esse mesmo passado se relaciona e interpretado no presente, tanto no discurso poltico, como no mbito privado. As polticas de gesto dos recursos culturais e patrimoniais tm sido bastante documentadas, nomeadamente no que se refere s tenses decorrentes do conflito de interesses entre os agentes envolvidos nos processos de patrimonializao e as populaes locais (Peixoto et al, 2006), bem como s questes suscitadas pelo desenvolvimento e aproveitamento turstico do patrimnio cultural escala local (Barros, 2004). Neste sentido, as relaes da comunidade com o seu patrimnio cultural circunscrevem-se s diferentes e complexas esferas da vida social, possibilitando que cada se reconhea a si mesmo e sua experiencia de vida colectiva. Por isso, o patrimnio cultural a base da sustentao da identidade da sociedade. Neste sentido, a memria e as representaes sociais da identidade local tm sido objecto de inmeros estudos, como por exemplo, as estratgias de localismos na zona raiana analisados por Ftima Amante (2007) ou os processos de activao patrimonial em lhavo relatados por Elsa Peralta (2008).

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A rea monumental de Belm considerada como uma referncia nacional e internacional, pela sua importncia histrica e cultural, pela sua forte identidade, uma vez que esta constituda por uma multiplicidade de elementos culturais, como exemplo, o Palcio de Belm, o Museu dos Coches, o Museu de Arqueologia, o Centro Cultural de Belm, o Padro dos Descobrimentos, a Cordoaria, o Museu de Arte Popular, o Mosteiro dos Jernimos, o Palcio da Ajuda, entre outros. A estes equipamentos culturais complementam-se os espaos envolventes como os jardins e praas que compem a zona monumental. Belm foi objecto de uma das apropriaes mais bvias do regime portugus de doutrina autoritria, tendo sido reconhecida como um dos principais espaos de representao da Nao e da imagem do Estado Novo. Acresce monumentalidade da zona, como marco histrico, a Exposio do Mundo Portugus em 1940 que para alm do carcter propagandstico da poltica do Estado Novo, teve como objectivo projectar um carcter monumentalidade desta zona da cidade. Depois da Revoluo de Abril que derrubou o Estado autoritrio portugus, Belm continuou a acolher as ocasies solenes de Estado, principalmente com a construo do Centro Cultural de Belm. A escolha do terreno etnogrfico no foi por mero acaso. Justifica-se pelo carcter histrico do lugar que permitiu a constituio de um valor patrimonial excepcional. As componentes da histria possibilitaram ainda a constituio de uma memria referencial obtidas pela forma de mediao, de interesse e sntese. Pela sua relevncia histrica e cultural, pela qualidade patrimonial e arquitectnica, associada a grandes espaos de contemplao e pela sua proximidade com o rio, Belm considerada um ponto de referncia tanto a nvel nacional como internacional. Nesta linha, o problema de pesquisa desta dissertao, pode ser sistematizado atravs da seguinte questo central: como se processa a activao patrimonial como instrumento de poder com finalidades poltico-ideolgicas e como factor de preservao e animao de lugares de memria e de uso colectivo na sua relao com o pblico e o espao pblico? Pretende-se entre outras, determinar, numa perspectiva antropolgica, a activao patrimonial, que contribui para a preservao da memria e identidades locais. No caso, limita-se o estudo, pelos processos de investimento ideolgico na construo de Belm

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como local turstico e, no consequente estabelecimento de narrativas a respeito do interesse da atraco a ser visitada (Castro, 1999:81). Face questo levantada, ser considerada a seguinte hiptese trabalho: o processo de patrimonializao e organizao do espao de Belm foi-se afirmando de forma diferenciada e parcialmente contraditria: assumiu um carcter poltico-ideolgico, com o concurso, designadamente, pela associao do patrimnio monumental com actividades comemorativas efmeras, embora marcantes, visando afirmar uma histria e uma memria colectiva comum; sem perder a sua dimenso como lugar de histria e de memria, veio a afirmar-se como um dos espaos urbanos centrais de uso colectivo, integrante de uma realidade globalizada e atractivo para turistas e visitantes. O estudo incidir sobre um perodo extenso que abrange os preparativos para a Exposio do Mundo Portugus, 1938, at aos dias de hoje. A necessidade de abarcar to extenso perodo prende-se com o facto de se entender que as mais marcantes alteraes orgnicas do espao s podem ser compreendidas num contexto temporal lato.

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2- Enquadramento Terico-conceptualO conhecimento e compreenso do problema de pesquisa obriga ao esclarecimento dos conceitos abrangidos pelo tema em apreo. Efectivamente, os conceitos (), so normalmente avaliados pelo contributo que do para a resposta ao problema em estudo (Moreira, 2007:69), tornando-se fundamental debater as vrias perspectivas tericas e a sua relao com outros conceitos centrais na antropologia. Seria importante comear por abordar a relao da histria com a antropologia. Para os antroplogos, e de acordo com Santos, a cultura pode ser analisada segundo vrios nveis: compreender as caractersticas comportamentais que so exclusivas dos seres humanos; pode ser analisada ao nvel da capacidade humana para gerar comportamentos, e especialmente da capacidade da mente humana em gerar uma quase infinita flexibilidade de reaces, atravs do seu potencial simblico e lingustico (Santos, 2005). Desta forma, muitos estudiosos consideram que estes comportamentos esto fixados nas relaes sociais e noutras caractersticas das sociedades. Segundo Santos, todo este processo leva a um facto empiricamente observvel das culturas humanas, ou seja, as sociedades, como identidades isoladas das distintas sociedades humanas, caracterizadas por tradies culturais especficas. O reconhecimento desta diversidade cultural uma prtica da antropologia social e, sobretudo, da etnografia nas suas dimenses de trabalho de campo realizado pelo antroplogo (Santos, 2005). A abordagem da histria no campo etnogrfico ou antropolgico, a partir da segunda metade do sculo XX, tornou possvel uma configurao da histria que unia a sabedoria frtil, a descrio analtica minuciosa e a interpretao histrica rigorosa (Benatte, 2007). Segundo Clifford Geertz, o historiador no conta propriamente uma histria: no h um enredo, a escrita assume a forma de uma descrio, isto , os historiadores descrevem analiticamente as estruturas da vida social e cultural da comunidade. Benatte acrescenta que, a escrita desce ao nvel do quotidiano vivido, criando um efeito de realidade capaz de nos familiarizar com pessoas comuns, gente como a gente, mas ao mesmo tempo muito diferentes de ns ( ) (2007:06). Desta forma, o encontro da antropologia com a histria, ou vice-versa, uma das ideias daquilo que Geertz chamaria de gnero misturado, isto , estudos que no atendem mais s fronteiras disciplinares estabelecidas pela cincia moderna a partir do sculo XIX (Geertz, 1983). Esta relao vai permitir um estudo mais adequado e profundo da histria do social, pertinente para esta dissertao.

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Seria importante de seguida aferir o conceito de identidade, uma vez que um conceito central na pesquisa. E so vrios os actores que tm abordado esta temtica. Para Castells (2006:23) as identidades constituem fontes de significado para os prprios actores, por eles originadas, e construdas por meio de um processo de individuao. Segundo o autor, A construo de identidade vale-se da matria-prima fornecida pela histria, geografia, biologia, instrues produtivas e representativas, pela memria colectiva e por fantasias pessoais, pelo aparato de poder e revelaes de cunho religioso. Porm todos estes materiais so processados pelos indivduos, grupos sociais e sociedades, que organizam seu significado em funo de tendncias sociais (Castells, 2006:23). Carlos Diogo Moreira, na sua obra Ptria, Identidade e Nao acrescenta o seguinte: A Identidade, como se adverte desde a filosofia grega at ilustrao, simultaneamente o comum e o indivisvel, o diferente e inconfundvel. a permanncia e a mudana, o prprio como dado e o prprio como adquirido. , por outro lado, a antologia monista, o instinto de segurana que se converte em deontologia de unidade, em mecanismo de agregao. Mas tambm paixo pela liberdade, pelo projecto prprio, pelo desenvolvimento das diferentes

potencialidades que nos singularizam. A identidade tenso entre o eu e o outro. a resposta busca de adaptao ao mundo e por isso um perpetuum, isto , constitutivamente incompleta: da a sua plasticidade, o seu dinamismo, a sua contingncia, a sua impureza (2007:35). De acordo com o autor em epigrafe, a memria tem um significado relevante como mecanismo cultural para construir e reforar o sentimento de pertena a determinados grupos, especialmente no caso dos grupos oprimidos, pois a referncia do passado comum, partilhado favorece a auto-valorizao positiva deles mesmo e do grupo (Moreira, 2007). A este tipo de identidade Castells chama de identidades de resistncia, pois foram: Criadas por atores que se encontram em posies/condies desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lgica da dominao, construindo, assim, trincheiras de resistncia e sobrevivncia com base em princpios diferentes dos que permeiam as instituies da sociedade, ou mesmo opostos a estes ltimos (2006:23).

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Segundo Castells, este tipo de identidades defensivas serve desde o princpio de refgio e fonte de solidariedade entre os indivduos, pois constitui uma forma de proteco contra um mundo esterno percebido como hostil. Logo, as identidades so construdas e organizadas em torno de um conjunto especfico de valores cujo significado e uso compartilhado so marcados por cdigos especficos de auto-identificao do grupo (2006). O patrimnio est intimamente ligado identidade. Neste sentido, Peralta afirma, (), toda a construo patrimonial uma representao simblica de uma dada verso da identidade, de uma identidade manufacturada pelo presente que a idealiza. Assim, ainda segundo a autora, (), o patrimnio cultural compreender ento todos aqueles elementos que fundam a identidade de um grupo e que o diferenciam dos demais (2000:219). Dito por outras palavras, atravs do patrimnio cultural que as identidades se afirmam. O patrimnio pode ser considerado como um elemento intrnseco da cultura, mais exactamente a parte da cultura que transmitida de uma gerao para a seguinte. Deste modo, o patrimnio constitui a componente da cultura que proveniente do passado, permitindo-nos afirmar que a identidade de uma sociedade em grande medida baseada no seu patrimnio. Reforando esta ideia Choay, entende que a expresso patrimnio histrico designa um fundo, destinado ao usufruto de uma comunidade alargada a dimenses planetrias e constitudo pela acumulao contnua de uma diversidade de objectos que congregam a sua pertena comum ao passado (Choay, 2000). De acordo com Xerardo Pereiro, O patrimnio uma noo que define todos os recursos que se herdam, bens mobilirios e imobilirios, capitais, etc. O objectivo do patrimnio garantir a sobrevivncia dos grupos sociais e tambm interligar umas geraes com as outras. Neste ponto de vista, tem-se em conta que o patrimnio, enquanto legado, pode ser acumulado, perdido ou transformado de uma gerao para a outra (2006:02). Peralta, refere-se ao conceito de patrimnio como sendo um () legado que herdamos do passado e que transmitimos a geraes futuras. Contudo, segundo a autora, apesar desta definio ainda se manter vlida, (), no podemos entender o patrimnio apenas como os vestgios tangveis do processo histrico. Isto porque, todas as manifestaes materiais de cultura criadas pelo homem tm uma existncia fsica num espao e num determinado perodo de tempo (2000:218).

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necessrio compreender a noo de patrimnio, pois segundo Ballart, (2002), cada pessoa atribui um valor diferente ao mesmo. O autor classifica o valor do patrimnio segundo trs categorias: 1- Um valor de uso: referindo-se unicamente utilidade do patrimnio como objecto que serve para mltiplas funcionalidades, que satisfaz uma necessidade material, de conhecimento ou de desejo. a dimenso utilitria do objecto histrico. 2- Um valor forma: referindo-se ao valor de um determinado objecto, que valorizado segundo a atraco que desperta, pelo prazer que proporciona, e pelo mrito que a caracteriza. 3- Um valor simblico-significativo: reportando-se ao valor simblico que os objectos do passado possuem, enquanto ligao da relao entre as pessoas ou grupos que os produziram ou utilizaram com as pessoas ou grupos que o utilizam hoje. Neste sentido, os objectos actuam pelo tempo, presenas substitutivas e so um nexo entre as pessoas separadas pelo tempo, atravs do testemunho de ideais, factos ou situaes do passado (2002:65-66). Neste sentido, e segundo Lloren Prats, o patrimnio uma construo social (1997:19), isto , aquilo que considerado patrimnio depende do que, para um determinado grupo colectivo se considera socialmente digno de ser legado a gerao futuras. Trata-se de um processo simblico de legitimao social e cultural de determinados objectos que conferem a um grupo um sentimento colectivo de identidade (Peralta, 2008). De acordo com Elsa Peralta, o que define o conceito de Patrimnio a capacidade de representar simbolicamente uma identidade. E sendo os smbolos um vnculo privilegiado de transmisso cultural, os seres humanos mantm atravs destes, estreitos vnculos com o passado (2000:218) Importa tambm apreciar o conceito de Patrimnio Cultural. Este surgiu em Frana em 1980. Surge, segundo Ballart, quando um indivduo ou grupo de indivduos identifica como seus um objecto ou um conjunto de objectos e que redefine os conceitos de folclore, cultura popular e cultura tradicional. Podemos falar em patrimnio cultural como aquela representao simblica das identidades dos grupos humanos, isto e, um emblema da comunidade que refora identidades. Segundo Lus Viana, o conceito de patrimnio cultural, tal como hoje entendido, resulta da ideia de nao, que surge com a revoluo francesa, mas tambm do posterior

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movimento romntico e da reviso que provocou na histria, na arte, na natureza, na cultura ou na tradio. Por outro lado, o patrimnio cultural tende a ter um sentido pblico, comunitrio e de identificao colectiva alargada. Em contrapartida, o patrimnio, ainda que s vezes se utilize com o sentido de patrimnio cultural, tem um sentido mais restrito, familiar e individual, fazendo mais referncia ao contexto privado e particular (Peralta, 2008). De acordo com Lus Viena, o conceito de patrimnio, inclui de um modo geral, tanto as criaes de que se entende de alta cultura, isto , a obra de grandes artistas, como os grandes monumentos e os vestgios arqueolgicos, como as expresses de autor conhecido classificados sob a designao de etnolgico ou etnogrfico. O autor em epigrafe acrescenta, que () este tipo de patrimnio surge associado aos conceitos de folclrico, tradicional, tpico ou pitoresco. O que se deduz que o conceito de patrimnio est intimamente intrnseco a ideia proveniente de tradio folclorista do sculo XIX (2006:154). A noo de patrimnio comum a um grupo social, definidora da sua identidade e objecto de proteco, tem origens no final do sculo XVIII com a viso moderna da histria e da cidade. A preservao do patrimnio insere-se no projecto mais amplo de construo da identidade nacional, e de consolidao dos estado-nao modernos. A Frana uma referncia desse perodo. Choay indica que durante a revoluo francesa se observou uma tenso entre a destruio dos monumentos histricos e sua proteco, o que levou a uma interveno inovadora do pas na gnese do monumento histrico e da sua preservao (2001:119). No perodo ps revolucionrio, a preocupao com a conservao de objectos materiais pertencentes nao este intrinsecamente ligado criao de uma herana nacional (Choay, 2001). A partir dessa data, o conceito de patrimnio passa por considerveis evolues. Ampliouse o conjunto de bens culturais considerados de valor de preservao, respeitando-se cada vez mais a diversidade das culturas e a historicidade dos valores simblicos que informam as manifestaes e iniciativa nesse campo. A partir de 1950, outros tipos de bens so includos na noo de patrimnio, Choay apresenta como exemplo, a arquitectura verncula, os centros histricos e as paisagens culturais. Ainda mais recentemente a noo ganha abrangncia com o reconhecimento da vertente imaterial do patrimnio edificado (Choay, 2005).

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Essa ampliao do conceito de patrimnio resultou tambm das consequncias das polticas de preservao adoptadas que privilegiam o patrimnio arquitectnico e edificado. O fenmeno da globalizao, no s econmica como cultural, tem levado as sociedades recuperao e valorizao do seu legado cultural, procura de valores locais e de elementos de identificao na histria e nas tradies, reforando a sua identidade numa perspectiva global. Neste sentido, a autora Margarida Barretto afirma que, () el turismo es un fenmeno social que actualmente abarca el mundo entero desde el punto de vista geogrfico y todos los estratos y grupos sociales (2007). Perante o crescente processo de globalizao, tem-se observado um acentuar de diferenas culturais, no sentido da afirmao da identidade frente a esse processo. Vinuesa afirma que () la memoria colectiva de nuestra sociedad, dan seas de identidad a nuestras cidades y las configuran como una de las principales aportaciones de la cultura universal (2002:14). Isto significa que, a singularidade cultural um modo de contornar os efeitos da globalizao. Margarida BarreTto nesta matria acrescenta ainda que, todas las culturas tienen en comn el hecho de servir-se de sistemas simblicos, pero cada cultura da a los smbolos significados diferentes. Cada cultura, al mismo tiempo, tiene sus sistemas de valores propios, lo que impide que se pueda hablar de una cultura universal () (2007:19). Na opinio da antroploga Marta Anico, perante as tendncias de globalizao, assiste-se cada vez mais por parte dos agentes locais e poderes institudos, a um resgate do passado, (re)construdo pelo presente, perante a patrimonializao dos elementos culturais. Procura-se proteger a autenticidade de rituais, festas, tradies e demais, que perante um processo de valorizao e activao, se transformem em recursos tursticopatrimoniais, e que consequentemente captem recursos patrimoniais que do origem ao desenvolvimento local (2005b). Assim, na actividade turstica, as manifestaes culturais das grandes cidades ou das pequenas comunidades representam um potencial diferencial turstico. Nesta matria, o autor Miguel Vinuesa afirma, la plena recuperacin cultural implica asignarle funciones que, en muchos casos, se relacionan com el turismo y com la cultura. En este contexto nos interesa situar el tema de la recuperacin y rehabilitacin integral del patrimonio cultural, aspecto fundamental para su configuracin como recurso turstico (2002:09). Outro conceito relevante para este trabalho refere-se ao turismo cultural. Na origem do turismo cultural, os elementos civilizacionais e culturais encontram-se fortemente

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presentes e, constituem, de acordo com Carlos Costa, um dos principais elementos de motivao para que as pessoas se desloquem para outros locais (2005). O autor em epgrafe, indica que no caso de Grand Tour, o factor de motivao da deslocao prendese com a necessidade de desenvolvimento de contactos com outros povos, civilizaes e culturas (Costa, 2005). De acordo com Pereiro, no pode existir turismo sem cultura, da ser possvel falar de cultura turstica, e de turismo cultural, pois turismo uma expresso cultural (2009:108). O turismo pode ser pensado como uma das actividades que mais tem fomentado o contacto entre pessoas, povos e grupos. Neste ltimo aspecto, o antroplogo Appadurai (1990) fala de turismo como um ethnoscape, isto , como uma paisagens caracterizada pelo fluxo de bens, informao, servios e turistas, atravs das fronteiras e num contexto de globalizao. O turismo cultural tem sido considerado como uma diversificao da oferta em relao ao turismo de sol e praia, uma vez que o turismo procura a histria das localidades e compreender o seu quotidiano. A partir da segunda metade de sculo XX, assiste-se a um crescimento da procura turstica por lugares histricos. Isto explica-se de certa forma, pelo processo de internacionalizao que provocou um sentimento de nostalgia, e como tal as pessoas tm a necessidade de se sentirem ligadas ao passado histrico (Barretto, 2007). Margarida Barretto na sua obra Turismo y Cultura, apresenta-nos a definio de turista, como sendo, la existncia de contigentes de personas (turistas) que se desplazan de su lugar habitual de residncia, hacia outro, durante un perodo de tiempo, com su carga de expectativas provenientes de las ms diversas fuentes () y por los ms diversos motivos posibles (2007:25). O turismo particularmente determinado pelos turistas, indica Cunha Barros (2004), e de acordo com o respectivo modelo econmico, so esses mesmos turistas, juntamente com os consumidores, que constituem a procura do turismo. j clssica entre as cincias sociais a definio que a antroploga Valene Smith apresenta de turista: uma pessoa temporariamente em situao de lazer, que voluntariamente visita um local diferente do da sua residncia com o objectivo de experienciar uma mudana (Smith, 1989:1). Segundo a autora, apesar das variadas motivaes por parte de cada indivduo, o turismo uma actividade que assenta sobre trs elementos operativos: tempo livre, rendimento discricionrio e sanes locais positivas (premissas para viajar).

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Segundo Francisco Ramos, as principais caractersticas da actividade turstica, residem a nvel socioeconmico, na mobilidade social, na interaco de indivduos e grupos sociais, no processo de comunicao, na criao de riqueza e de postos de trabalho, nas leis da oferta e da procura e na problemtica do desenvolvimento. Politicamente, o turismo , acima de tudo, um instrumento de promoo de imagem de pases, regies ou localidades, no sentido da aquisio de divisas estrangeiras e do desenvolvimento econmico (Ramos, 1996:84). Tambm segundo este autor, nas sociedades actuais, o turismo tambm o grande veculo de contacto de culturas, o instrumento privilegiado das relaes interpessoais entre ns e os outros. O turismo mediatizado pois, o processo etnoantropolgico da hospitalidade, da anulao do etnocentrismo, do relativismo cultural, da afirmao plena do Homem, simultaneamente singular e igual aos outros homens (Ramos, 1996:84). O plano das actividades tursticas deve ser tido em conta, na componente da oferta turstica. Nesta matria Cunha Barros enfatiza a necessidade de se encontrarem objectivos considerados como mais vantajosos e estratgias mais adequadas (2004:22). O turismo atravs da articulao de um conjunto de expectativas capaz de recuperar as potencialidades do patrimnio como recurso ao desenvolvimento da comunidade. De acordo com o antroplogo Agustin Santana (2003:59), na sua relao com o patrimnio cultural so trs as estratgias de desenvolvimento turstico: 1. Preservao e proteco absoluta de espaos e saberes para o futuro e ao servio da cincia. 2. Conservar e compatibilizar o patrimnio cultural com um uso recreacional orientado para o turismo de massas, democratizando o seu consumo. 3. Conservar o patrimnio cultural e aceitar um turismo minoritrio e de elite. Segundo Xerardo Pereiro, o turismo tem ajudado na preservao do patrimnio cultural e das tradies culturais, inventadas ou reinventadas. O turismo tem servido de igual forma, para inventar novas prticas culturais, sem tradies histricas, que de acordo com o autor, rapidamente so entendidas como tradies para uma melhor comercializao dos produtos tursticos (2006). Para Prats, muitas vezes o turismo apossa-se da cultura e do patrimnio cultural ao ponto de transformar as caractersticas de um povo. O certo que a cultura e o patrimnio cultural tm-se convertido em espectculo de consumo para o turismo, especialmente o turismo cultural (1997). As activaes patrimoniais realizam-se no s com fins identitrios, mas tambm com fins tursticos e comerciais. Segundo esta ideia, Xerardo Pereiro (2007) indica que o patrimnio cultural como recurso turstico pode apresentar trs formas: 1.O Patrimnio cultural como

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produto turstico autnomo, por exemplo: pirmides de Egipto; 2. O patrimnio cultural associado num pacote turstico: viagem, atractivos ldicos, visita a elementos patrimoniais. Ex.: Paris, Barcelona; 3. O patrimnio cultural como mais-valia dos destinos tursticos. Turismo de qualidade, diversificao do produto turstico. Assim, quando se fala de turismo cultural, refere-se aos interesses concretos que determinados turistas tm ao visitar e conhecer certos lugares. O turismo cultural, ao propor aces de promoo e de divulgao do patrimnio cultural procura simultaneamente contribuir para o fortalecimento das identidades culturais e para o desenvolvimento econmico e social das comunidades locais. Por norma, e na maioria das vezes, as revitalizaes urbanas executam-se em reas pontuais do espao urbano, sobretudo reas centrais, visando a requalificao funcional do ponto de vista econmico e comercial - a valorizao imobiliria desses locais, o incremento de activao de lazer e principalmente o turismo. Na perspectiva de Niro, por intermdio de financiamento e parcerias com as iniciativas privadas que se multiplicam esses projectos de revitalizao urbana, com base no restauro de edifcios antigos (Niro, 2009). O patrimnio cultural urbano desempenha um papel cada vez mais importante na identidade e autenticidade das cidades e sociedades. Nesta perspectiva, Cunha Barros, afirma, no caso dos espaos urbanos, pode sustentar-se que, em alguns casos, a centralidade das cidades e vilas, nomeadamente as de carcter histrico, que suscitam uma atractividade mais significativa, face a um dos conjuntos patrimoniais (2006:183). precisamente neste esforo de preservar a herana cultural e reforar a identidade e autenticidade do legado patrimonial que se afirmou o turismo cultural. Este tem como principal limite a apropriao de novas formas culturais, que no o do prprio lazer. O turismo cultural deve ter como objectivo mostrar a imagem da arquitectura e cultura, no apenas a histrica como tambm a contempornea. Os centros histricos devem ser renovados sem que se perca a autenticidade desses valores. O que se tem verificado, que o turismo cultural est em expanso e abrindo caminho a novas oportunidades tanto a nvel da valorizao do patrimnio, como da valorizao social, cultural e econmico de cada sociedade, como indica Andreia Coutinho (2009). A autora acrescenta ainda que, a iniciativa do turismo cultural deve partir, em primeiro lugar, das populaes locais, no sentido de as orgulhar do seu patrimnio cultural (Idem). O turismo surge como um factor benfico na valorizao e recuperao do patrimnio

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histrico e promove o respeito e reconhecimento, cultural e natural. Nos centros histricos, juntamente com as populaes locais deve-se fomentar a reabilitao e renovao do espao que leva de igual forma, actualizao da Identidade e da sua autenticidade, e promoo do turismo. O vnculo entre patrimnio cultural, processos identitrios e memria, prprio de uma concepo mais abrangente de patrimnio, vem acompanhando as discusses sobre preservao ocorridas em mbito internacional. Na acepo da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco), "nosso patrimnio cultural e natural fonte insubstituvel de vida e inspirao, nossa pedra de toque, nosso ponto de referncia, nossa identidade.2 A Carta de Veneza surge em 1964, como um documento impulsionador da aco de preservao e restauro do patrimnio, com participao de organismos como a UNESCO (Nations Educational Scientific and Cultural Organization), o ICOM (International Council of Museums), o ICCROM (International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property) e o ICOMOS (International Council on Monuments and Sites), e em que Portugal acciona um movimento nacional da salvaguarda do patrimnio cultural, aberto internacionalizao, troca de experincias, cooperao cientfica e interdisciplinaridade as cincias e tcnicas de restauro. de extrema importncia, estabelecer-se novas parcerias e formas de colaborao entre os responsveis locais, as entidades com tutela sobre o patrimnio e os organismos, o que leva ao desenvolvimento de programas integrados dos monumentos, e os seus locais. Por outro lado, importa integrar as comunidades locais nos projectos culturais, no sentido de as beneficiar a nvel scio-econmico (Coutinho, 2009). Actualmente, h uma preocupao em realizar um planeamento turstico que valorize e contemple alguns aspectos da trajectria histrico-cultural da cidade e os elementos que a representam, em contraposio a um momento anterior onde essa preocupao era pouco visvel, embora j se manifestasse um apelo cultura. O compromisso de todos os actores sociais na obteno, implementao e avaliao dos projectos de desenvolvimento turstico regional aparece como uma garantia de

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- Disponvel em: http://www.unesco.org.br/areas/cultura/areastematicas/patrimoniomundial/index_html/mostra_. Acesso em 13/Maro/2007.

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sustentabilidade,

assegurando

assim,

o

sucesso

dos

projectos

propostos

independentemente de mudanas polticas que possam vir a ocorrer. O turismo um dos fenmenos scio-culturais que mais tem crescido nos ltimos tempos, e tambm alcanado um papel de destaque quanto aos seus aspectos socioeconmicos. A dimenso deste fenmeno pode ser verificado no mbito local, regional e global. Em 1931, a Europa une-se em prol da conservao e restauro adequados, atravs da Conferncia Europeia, em que surge a Carta de Atenas, que rene uma srie de pressupostos para que o patrimnio edificado se conserve nas melhores condies para a posterioridade. Em 1945, aps a II Grande Guerra Mundial, so despoletadas novas edificaes e novas formas de construir, em que a monumentalidade j no relevante mas sim a arquitectura menor, acrescendo as preocupaes quanto ao patrimnio a preservar. A nova significao diverge para uma nova dimenso, em que o patrimnio construdo passa a abranger as zonas urbanas, assistindo-se a um alargamento de tipologias. Nos discursos antropolgicos, a problemtica em torno das questes do espao tem sido objecto de muita teorizao e discusso, originando a produo de conceitos diversos. Estes conceitos inserem-se nas linhas globais orientadoras do tratamento do espao, que assenta por um lado, na localizao da cultura e, por outro, num debate mais recente das questes do local e do global. A partir da dcada de 90, do sc. XIX, observa-se um novo interesse em torno das questes do espao, com um desenvolvimento dos mais variados ramos do conhecimento, (geografia, economia, sociologia, antropologia, psicologia, etc.), na medida em que constitui uma varivel indissocivel do estudo da realidade social. Esta diferena de perspectiva da antropologia pelo espao, encontra-se no na ateno dada s questes materiais e espaciais da cultura, mas no conhecimento de que o espao uma componente essencial da teoria scio cultural, isto , a noo de cultura repensada e (re)conceptualizada pela via espacial (Low e Lawrence-Ziga, 2003). Segundo Appadurai, o espao, em sentido lato, pode ser visto como o lugar onde o antroplogo comunica com os actores sociais: um lugar de encontro entre o eu (self) e o outro (1988a:17); o lugar onde o antroplogo observa e escreve sobre, e com os nativos que de alguma forma esto encerrados, confinados (Appadurai, 1988b). Aug afirma, um lugar-comum ao etnlogo e aquele de quem ele fala (1998:49).

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Mais recentemente, os trabalhos desenvolvidos por Silvano, Antropologia do Espao (2010), procura compreende as relaes que os actores sociais estabeleceram com o espao, e apresenta textos fundamentais e de importncia indiscutvel, que procura (), cobrir diferentes posturas conceptuais e disciplinares, na qual apresenta uma organizao que obedece, em parte, a uma ordem cronolgica, o que permite dar conta de algumas das filiaes conceptuais que organizam o pensamento dos autores apresentados (Silvano, 2010:11-12). Entre estes autores com importantes contribuies tericas do espao, podemos destacar alguns da escola francesa de pensamento sociolgico, como mile Durkheim, Maurice Halbwachs e Marcel Mauss, que apresentam uma abordagem terica aprofundada em relao caracterizao do espao como um objecto de anlise complexo. Durkheim em Les Fomes elmentaires de la vie religieuse (1912) define que espao corresponde no essencial, forma de organizar e ordenar o heterogneo, ou seja, produzir sentido na realidade material que nos rodeia. De acordo com o entendimento do autor, o espao um resultado de o produto de pensamento colectivo (Durkheim, 2002:13). O espao para Durkheim indissocivel da sociedade que nela habita e a justificao das diferentes formas de organizao do espao, no deixa de fora a ideia de que o espao uma categoria de entendimento, uma relao colectiva, que existe na relao das sociedades que a criou ou lhe conferiu um determinado sentido. nesta relao que procurada a explicao para os diversos tipos de organizao espacial: () se, como ns pensamos, as categorias [entre as quais o espao] so representaes essencialmente colectivas, elas traduzem entes de tudo estados de colectividade: dependem da maneira como esta est constituda e organizada, da sua morfologia, das suas instituies religioso, morais, econmicas, etc. (Durkheim, 2002:13). Desta forma, o autor interessa-se pelo espao colectivo e no o individual. Na obra Quelques formes primitives de classification: contribuition ltude des reprsentations collectives escrita em conjunto com Marcel Mauss, Durkheim, defende a existncia de uma correspondncia entre a forma de organizao social dos grupos humanos e a sua representao do espao. Estes autores estavam particularmente interessados na forma, na composio e na densidade dos grupos humanos, bem em como compreender as categorias espao e sociedade (Durkheim, 2002).

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Em 1950 foi publicado uma obra de Halbwachs, denominada La mmoire collective, em que o autor dedicou um captulo relao entre a memria colectiva e espao, assegurando que este o suporte ideal para as nossas memrias colectivas e individuais. A organizao material do espao surge assim como garante de manuteno e da transmisso da memria do grupo. Segundo o mesmo autor, o espao fixa as caractersticas do grupo, isto porque no h memria colectiva que no se envolva num quadro espacial, e o espao configura-se como uma varivel que persiste no tempo, sendo uma realidade que dura, as nossas impresses afastam-se umas das outras, no h nada que fique no nosso esprito e no compreenderamos que pudssemos rever o passado se ele no se conservasse com efeito pelo meio ambiente que nos envolve (Halbwachs, 1968:156). Henri Lefebvre um dos autores que tem abordado a temtica de produo de espao. A sua obra La prodution de lespace, publicada em 1974, tornou-se numa obra de referncia do pensamento anglo-saxnico sobre o espao. Os antroplogos e investigadores de campo dos estudos culturais, encontraram a ideias inspiradoras, no s no entendimento da relao entre espao e cultura contempornea, mas tambm para estudos mais vocacionados para as sociabilidades urbanas. O autor em epgrafe, na sua obra La prodution de lespace, prope uma nova forma de estudar o espao, afastada das leituras que as diferentes disciplinas foram realizando (Filosofia, Matemtica, etc.). O conceito de lugar tem sido alvo de novas (re)conceptualizaes (Appadurai, 1988a, 1988b; Rodman, 1992; Aug, 1998 so exemplos), superando os trabalhos dos clssicos da antropologia cultural, que at ento, apenas abordavam as dimenses espaciais das prticas culturais, suportadas por quadros tericos, da qual descreviam apenas a paisagem natural do quotidiano. O lugar traado como lugar antropolgico no mais do que uma construo social (Aug 1998) do espao. um lugar fixado de especialidades, identitrio, relacional e histrico (Aug, 1998:59), entendido como um lugar que figura identidades colectivas. Contudo, Aug apresenta uma oposio a este conceito de lugar antropolgico, debruando-se sobre o no-lugar, especfico da ps-modernidade, como um espao de passagem incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade (Silvano, 2001:77). Segundo o Aug e, segundo estas caractersticas, o lugar encontra-se materializado em todos os locais

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pblicos, como sendo superfcies comerciais, auto-estradas, aeroporto, ou seja, que no so pertencentes a ningum. Intimamente relacionado com a construo de lugares antropolgicos, surge o lugar de memria. Na perspectiva de Aug, os lugares antropolgicos integram lugares antigos: inventariados, classificados e promovidos a lugares de memria (1998:84). A memria vista segundo Halbwwachs, como um fenmeno social (1997), e de acordo com Pierre Nora os lugares de memria, so os stios onde a memria se cristaliza. So stios de memria porque j no existem meios de memria, os ambientes reais de memria (1987:07). O conceito de memria habitualmente refere-se a algo pessoal, mas o conceito tambm deve ser entendido como um fenmeno colectivo, construdo em conjunto e passvel de sofrer alteraes no decorrer do tempo. Maurice Halbwachs, fez essa mesma referenciao entre a memria individual da colectiva. O autor parte do pressuposto que no existe a memria interior de uma pessoa, mas armazena e relembra as prprias experincias ao longo dos anos, mas que toda a lembrana significativa um processo socialmente condicionado de reconstruo que se baseia na estrutura social de relquias culturais e rituais de comunicao de um dado grupo. Neste sentido, e sintetizando, Le Goff afirma: a memria um elemento essencial da identidade, tanto individual quanto colectiva, cuja busca uma das actividades fundamentais dos indivduos e das sociedades de hoje (2003:469). O patrimnio cultural compreende os elementos significativos da memria social de um povo ou de uma nao que englobam os elementos do meio ambiente, o saber do homem no decorrer da histria e os bens culturais enquanto produtos concretos do homem. Assim, segundo Peralta, trata-se de um conceito relativo, que varia com as pessoas e com os grupos que atribuem esse valor, permevel s flutuaes da moda e aos critrios de gosto dominantes, matizado pelo figurino intelectual, cultural e psicolgico de uma poca (2000:118). O patrimnio cultural identifica-se atravs da memria e o modo de vida das sociedades, compreendendo tanto elementos materiais como imateriais. O patrimnio cultural, constitui um conjunto de elementos para os quais se reconhecem valores que identificam e perpetuam a memria e referncia do modo de vida das sociedades. O turismo cultural, segundo Margarida Barreto, tem contribudo para manter edifcios, bairros e cidades, isto

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, la preservatin, conservacin y recoperatin del patrimnio histrico en sentido amplio, hace arte de um processo de um proceso de ms envergadura que es la conservatin y recuperatin de la memria (2007:90). Assim, a memria, tem um contributo fundamental para a identidade nacional. No mbito urbano, a tendncia da nostalgia face ao patrimnio tem recuperaes na valorizao do passado das cidades, e torna-se numa caracterstica comum das sociedades contemporneas, afirma a autora Cntia Nigro. A autora acrescenta que as propostas de revitalizao urbana ganham repercusso, caracterizadas como forma de interveno que desejam valorizar e requalificar o chamado patrimnio arquitectnico das cidades. Por outro lado, os projectos de revitalizao urbana actuais propem a valorizao dos marcos simblicos e histricos da rea das cidades (2005). Na perspectiva de Calle Vaquero, as cidades histricas renem um patrimnio cultural de uma riqueza incontestvel, resultado do aglomerado acervo de uma histria urbano. Este patrimnio compreende uma variedade de tipologias de monumentos, quer de dimenso fsica (material), como so os grandes monumentos, as estruturas arqueolgicas; como a cultura imaterial na sua dimenso urbana, caracterizado por determinados estilos de vida local que se manifestam em tradies artesanais e gastronmicas, festas populares e grandes celebraes religiosas (2006). Ainda segundo o mesmo autor, el cidades histricas constituyen un tipo especial de agomerationes urbanas, unas donde el patrimnio cultural constituye el principal referente de la identidad urbana. Ou seja, se configuran como autnticas joyas urbanas que debemos conservar en las mejores conditiones para su disfrurte por las generationes futuras (Calle Vaquero, 2006:17). Assim, as cidades histricas devem ser preservadas e restauradas para que as geraes futuras usufruam desse patrimnio, visto que atravs deste que nos dado a conhecer o nosso passado. O turismo por sua vez, compreendido nas cidades histricas como nova fonte de riqueza, uma vez que h cada vez mais turistas que procuram estas cidades como principal destino turstico porque, el patrimnio constituey el ncleo de la identidad urbana de las ciudades histricas y, de forma paralela, la base de su atractivo turstico (Calle Vaquero:25).

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Segundo Jesus, algumas cidades transformam todo o seu tecido urbano num tecido urbano moderno (2008). Esta ideia de renovao que move as cidades motiva uma renovao identitria e uma difuso de novas imagens, que, de certa forma, se efectua de trs formas: quer atravs da dinamizao cultural, como a organizao de actividades e eventos de diferentes dimenses e regularidades que visam captar novos frequentadores para o espao pblico (Ferreira, 1998); Quer atravs de prticas urbansticas e arquitectnicas que visam inscrever smbolos moderadores nas paisagens urbanas (Idem); Quer ainda atravs da instrumentalizao, da reinveno e da revalorizao de um patrimnio histrico que o suporte de uma estratgia de criao e de aferio de um esprito de lugar (Peixoto, 2006). Em qualquer uma das trs formas, de renovao identitria verifica-se que os centros Histricos so frequentemente instrumentalizados de modo a permitir que a cidade promova uma imagem positiva. Tambm pode ocorrer o contrrio, ou seja, Peixoto indica que na frequente instrumentalizao dos centros histricos pode permitir a difuso intencional de uma imagem negativa da cidade. Dito de outra forma, o objectivo permitir uma dramatizao da condio da cidade que acaba por funcionar como justificao e factor de legitimao de reivindicao de recursos financeira e de instrumentos legais que agilize, a desejada renovao identitria. (2006). So a matria-prima necessria para criar um dcor que sustenta a introduo de elementos modernos na paisagem urbana. esta simultaneidade de diversidades entre o antigo e o moderno no espao urbano que, em boa parte, refora o valor da imagem de marca que os centros histricos representam (Peixoto, 2006).

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3 - MetodologiaNeste ponto procuramos descrever as estratgias e percursos metodolgicos adaptados ao longo desta dissertao. Um trabalho de investigao sempre uma narrativa que se d a conhecer de uma forma pessoal, que ser posteriormente reduzida sob forma textual, a um pblico que a vai ler, analisar e avaliar. Em cincias sociais e em especial na antropologia, a metodologia utilizada

preferencialmente centra-se na pesquisa qualitativa, fundamentada na prpria natureza do problema de pesquisa e dos objectivos propostos. O pilar central em qualquer trabalho de investigao nas cincias sociais baseia-se maioritariamente no uso de fontes documentais, sendo necessrio realizar uma profunda pesquisa bibliogrfica. Como refere Moreira, sempre que uma investigao em cincias sociais envolva estudo de, ou a comparao com um perodo passado, as fontes documentais tornam-se de imediato a principal fonte de informao para esse mesmo perodo (Moreira, 1994:24). Os dados recolhidos completam vrias tipologias de fontes documentais, logo a pesquisa documental baseia-se maioritariamente na anlise de fontes escritas, materializadas sobretudo em revistas e livros (Albarello e tal. 1997:18). Todos estes documentos foram posteriormente analisados sob a tcnica documental (Idem). Para a obteno da informao bibliogrfica dos temas em estudo, pesquisamos em vrias bibliotecas, tais como a biblioteca do ISCSP e ISCTE, da qual adquirimos toda a informao terica-conceptual necessria. Em relao bibliografia referente ao local em estudo, procurei informaes relacionadas com a histria da regio, da histria local, da monumentalidade e componente turstica. No mbito dessa pesquisa visitei a Biblioteca Nacional, a Biblioteca Municipal de Belm, Biblioteca Museu Repblica e Presidncia; Biblioteca de Estudos Olisiponenses, Museu da Cidade e Instituto do Turismo de Lisboa. Nessas locais tivemos a oportunidade de consultar arquivos, livros e revistas, elaborados por autores mais ou menos conhecidos que se dedicaram ao estudo do local de Belm, ou fizeram referncia ao mesmo em obras sobre Lisboa. O estudo dos dados qualitativos foi um processo gradual e complexo de categorizao da informao, e que foi sendo elaborado medida que avanavam as leituras, uma perspectiva defendida por vrios autores (Moreira, 1994), e cuja principal tarefa consistir em categorizar os dados de que se dispe de modo a estabelecer relaes que expliquem os acontecimentos visados na tese (Moreira, 1994:103).

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No que se refere investigao qualitativa este mostrou ser a opo mais acertada, uma vez que se procurou analisar o processo histrico, cultural e etnogrfico no perodo da Poltica do Esprito do Estado Novo e ps 25 Abril, bem como a narrativa turstica relativamente a Belm. Considerando o elevado nmero de conceitos abrangidos pelo tema, assim como a quantidade de obras que se analisa acerca do objecto de estudo, estritamente necessria a seleco cuidadosa e eficaz dos elementos bibliogrficos. Especialmente, no que respeita as fontes secundrias que se lhe relacionam e que por serem constitudos por um livro ou documentos escritos depois de os acontecimentos terem ocorrido ou por algum que no testemunhou pessoalmente os factos descritos (Moreira, 1994:30). Assim, deve partir da explorao acerca da credibilidade da fonte. A anlise de contedo tambm foi concretizada na presente pesquisa, sendo segundo Bardin, o mtodo mais cirrgico e delicado de toda a investigao, com um conjunto de tcnicas homogneas e exaustivas, objectivas e pertinentes (1995). A anlise bibliogrfica na sua fase inicial facilitou a possibilidade de proceder a uma delimitao geogrfica de Belm, que nos ofereceu informao do ponto de vista simblico, necessria para o reconhecimento da zona, bem como das suas ruas e praas mais emblemticas onde a construo da identidade e memria so mais visveis. O estudo da delimitao geogrfica foi facilitado pelo senso comum. O meu conhecimento deste local iniciou-se fora do percurso acadmico, onde j era frequentadora para lazer e cultura. Por outro lado, as fontes estatsticas oficiais do INE e do Observatrio das Actividades Culturais, mostraram-se proveitosas no fornecimento de dados acerca da actividade turstica e de lazer. No mbito da pesquisa qualitativa foi tambm utilizada, a entrevista qualitativa do tipo semi-estruturada, como tcnica de recolha de dados. De acordo com Moreira, na utilizao deste mtodo deve-se ter uma certa prudncia, pois, adaptar este instrumento de pesquisa ao nvel da compreenso e receptibilidade do entrevistado (Moreira, 1994:133). A utilizao deste mtodo teve como particular interesse obter informaes

complementares pesquisa bibliogrfica. A entrevista uma das tcnicas mais utilizadas em investigao social. A entrevista semiestruturada, baseiam-se em um guio de assuntos, ou questes e o pesquisador tem a

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liberdade de introduzir mais questes para a preciso de conceitos ou de obter maior informao sobre o tema desejado (Grinnell, in Sampieri, 2006:318). Neste sentido o objectivo das entrevistas, obter respostas sobre o tema, problema ou tpico de interesse nos termos, a linguagem e a perspectiva do entrevistado (Sampieri, 2006:381). Deste modo, houve a possibilidade de entrevistar uma das responsveis pelo novo Museu de Arte Popular, a Dra. Daniela Arajo. O museu reabriu ao pblico no final de 2010 aps vrios anos de encerramento. O Museu de Arte Popular, foi um exemplo claro da Ideologia propagandista do Estado Novo. A construo do museu foi um culminar de uma poltica folclorista em que a grande preocupao na importncia da sua projeco foi a confirmao de Portugal como uma nao moderna, mas distinta de todas as outras. Aquilo que se procurou com esta entrevista, foi fundamentalmente, percepcionar a forma como a memria e identidade do museu continua a ser preservada, alheio poltica ideolgica de ento, passando a assumir-se como um lugar de lazer, de entretenimento, de investigao, mas fundamentalmente de cultura. Atravs de um passeio pedonal pela rea monumental de Belm, organizado pela empresa SAL - Sistemas de Ar Livre - foi possvel obter mais dados relevantes para a elaborao do trabalho. Esta empresa - SAL - presta servios de animao e turismo na rea da natureza, formao outdoor e lazer activo. Aps um primeiro contacto com os responsveis foi participamos num passeio pedonal intitulado Lisboa Capital do Imprio, onde foi possvel fazer um reconhecimento da zona, e da sua limitao fsica. O passeio teve como objectivo apresentar os pontos histricos, bem como a discrio dos monumentos emblemticos, as praas, ruas, becos, jardins. Neste caso especifico, foi tambm possvel utilizar a entrevista no estruturada, como mtodo qualitativo. Relativamente aos registos dos dados obtidos nas entrevistas realizadas, foi utilizado o gravador, com as devidas cautelas essenciais ao seu uso. No terreno pude avaliar as vantagens e desvantagens do uso do gravador, que se tornou essencial na utilizao feita durante o passeio pedestre, visto este se ter realizado noite, e ser humanamente impossvel registar as entrevistas naquelas condies. A outra razo que levou escolha da utilizao desta ferramenta foi pelo cansao dos participantes aps trs horas de caminhada.

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Com a consequncia da recolha de dados com a entrevista necessrio dar mais um passo na organizao da informao. O primeiro passo revisar o material, produtos das entrevistas; o segundo, consiste em preparar os materiais para anlise (Sampieri, 2006:397). As grandes dificuldades vividas ao longo do processo de inventariao prenderam-se com a seleco documental e o poder de sntese face s inmeras informaes disponibilizadas acerca do objecto de estudo Belm. Por outro lado, foram vrios os contactos estabelecidos com organismos de relevncias para a elaborao desta dissertao da qual no obtivemos qualquer resposta. Referimo-nos especificamente ao Departamento de Turismo da Cmara Municipal de Lisboa.

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4 - Organizao do TrabalhoO trabalho tem incio pela parte introdutria. Nesta, so apresentados o tema e problema de pesquisa, e a metodologia que presidem pesquisa, assim como a estrutura do trabalho, seguindo-se a parte relativa ao desenvolvimento da pesquisa e s concluses. A pesquisa integra cinco captulos. No primeiro, intitulado A Importncia da Arte e da Escultura Monumental na Propaganda Ideolgica do Estado Novo, pretende-se apresentar o panorama global da Poltica Ideolgico do Estado Novo, sistematizando a aco do SPN/SNI, desde a instalao do Estado Novo at ao 25 Abril. A Exposio do Mundo Portugus aqui apresentada como o exemplo mais bvio da propaganda Ideolgica desse tempo. No segundo captulo, abordada a questo da ruptura com a concepo de monumento. A reapropriao de toda uma estaturia como dos monumentos marcou o carcter ideolgico e desempenhou funes e papis nas sociedades modernas e ps-modernas. Em oposio, iniciou-se um novo sistema cultural, patrimonial e artstico cada vez mais diversificado nas suas formas radicais de interveno artsticas e culturais, como o caso do anti-monumento, que se opem s obras comemorativas convencionais. Aqui a arte pblica dividida entre a estrutura monumental, das grandes comemoraes do Estado Novo e a nova forma de expresso artstica da arte pblica que, mais caracterizou a expresso artstica do ltimo tero do sc. XX. Por sua vez, no terceiro captulo, em linhas gerais feita uma breve caracterizao de Belm, ou seja, da rea em estudo. Aqui pretende-se dar a conhecer de forma sintetizada a histrica, a monumentalidade e os recursos patrimoniais deste ncleo da cidade de Lisboa. No ltimo ponto deste captulo, analisa-se a problemtica da cultura popular e da construo da Identidade Nacional pelo Estado Novo o que vai facilitar uma melhor compreenso da narrativa de Portugal e Belm. O captulo cinco traa os aspectos relacionados com as polticas culturais em Portugal aps o 25 Abril, precisamente com a democratizao da cultura. Procura-se em concreto analisar as novas abordagens e perspectivas polticas, atribudas ao patrimnio cultural, produo artstica, e a acessibilidade dos bens culturais a outras camadas da populao que no s a elitista. Neste captulo, aborda-se igualmente o Museu de Arte Popular, por ser um museu construdo sob a ideologia do Estado Novo, e reaberto recentemente com uma abordagem contempornea. Aqui, decidimos empregar a abreviatura do nome do museu - Museu de Arte popular (MAP), visto ser uma designao que se vulgarizou de tal

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forma, que veio a fazer parte do ttulo da exposio permanente que arrancou a abertura do museu: Os Construtores do MAP, Museu em Construo. Por ltimo, no quinto captulo, ponto confluente dos anteriores, centramos a anlise no desenvolvimento turstico de Belm, e da sua afirmao como local de cultura e lazer. Para finalizar, realiza-se o balano, apresentando as concluses do estudo. Aps a apresentao da bibliografia entendeu-se por bem apresentar algumas informaes e dados complementares que embora interessantes no deviam ser includos no corpo do texto e, da, a sua apresentao em anexos.

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Captulo I A Importncia da Arte Escultura Monumental na Propaganda Ideolgica do Estado Novo

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1.1- Contextualizao Histrica e Poltica do Estado NovoEm Portugal, at ao 25 Abril de 1974, vigorou o regime autoritrio salazarista, instaurado na sequncia do golpe militar de 28 de Maio de 1926. Entre o ano de 1930 e 1932 est em curso o processo de transio para o apuramento de um novo projecto poltico: o Estado Novo. Nestes dezasseis anos de Repblica houve oito presidentes e quarenta e quatro primeiros-ministros. O pas com uma populao maioritariamente iletrada, encontrava-se no sector poltico, econmico e social, numa situao quase catastrfica. A histria de Portugal no sculo XX profundamente marcada, temporal e politicamente, segundo Helosa Paulo, pela implantao e pela permanncia do Estado Novo, um Estado antiliberal, antidemocrtico, e at fascista (1994). O estabelecimento de uma nova fora nacional concretizou-se atravs de negociaes e compromissos entre vrios partidos polticos de direita, na tentativa de estabelecer um representante comum. O compromisso da construo do Estado Novo deve-se ento a Antnio Oliveira Salazar, cuja doutrina vigorou at 25 Abril de 1974. A designao de Estado Novo, de acordo com Santos, criada sobretudo por razes ideolgicas e propagandistas, quis assinalar a entrada numa nova era, iniciada pela Revoluo Nacional, marcada por uma concepo antiparlamentar e antiliberal do Estado. Neste sentido, o Estado Novo concluiu o perodo do liberalismo em Portugal, abrangendo nele no s a Primeira Repblica, como tambm o Constitucionalismo Monrquico (Santos, 1998). Em 1926, so promulgados dois decretos cujo teor, de acordo com Paulo, essencialmente o mesmo: impedir que a liberdade de imprensa possa vir a gerar publicaes que acolhem, instiguem ou provoquem aos cidados portugueses a faltar ao cumprimento dos deveres militares, ou ao cometimento de actos atentrios da integridade e independncia da Ptria, isto , que contenham informaes que possam causar prejuzo ao Estado (Paulo, 1994:30). Em 1932, aquando das comemoraes do sexto aniversrio do golpe militar que derrubou a primeira Repblica Portuguesa, anunciou-se o projecto da nova constituio Poltica elaborado sob a orientao de Salazar. Antnio Oliveira Salazar constituiu governo em 1932. Em 1933 criado o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) chefiado por Antnio Ferro, um rgo que se destinava fundamentalmente a veicular a ideologia do regime e a uniformizar o conhecimento da realidade nacional, no deixando espao expresso individual. Segundo Santos, o discurso ideolgico do Estado Novo evidencia o empenho em revitalizar e apropriar o mpeto nacionalista, inventando, se necessrio,

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memrias dos lugares e procurando mostrar o seu valor simblico em actos solenes e comemorativas. (Santos, 1998). O organismo ganha um campo de aco de carcter especificamente cultural, mas trata-se de uma cultura oficial de acordo com os valores do Estado Novo, cuja tnica dominante, que inspirar todas as iniciativas de carcter cultural, ser o nacionalismo e o historicismo (Idem). No perodo ureo da afirmao do projecto ideolgico do Estado Novo, nos anos 30 e 40, apesar das fragilidades internas, o regime definira um discurso propagandstico claro, agressivo, fundamentador de uma nova ordem, procedendo, para tal, quer reviso purificadora e auto-legitimadora da memria histrica, quer criao de um conceito integrador e unificador de cultura popular, de raiz nacional-etnogrfica. (Rosas, 2001). Segundo o autor em epigrafe, o propsito era o de estabelecer uma ideia mtica de essencialidade portuguesa, transtemporal e transclassista, que o Estado Novo reassumira ao encerrar o sculo negro do liberalismo e a partir da qual se tratava de reeducar os portugueses no quadro de uma nao regenerada e reencontrada consigo prpria, com a sua essncia eterna e com o seu destino providencial (Idem). Desta forma, o regime centrou a sua ateno nas questes ligadas ao patrimnio e cultura. O esprito nacionalista do regime havia moldado a sua utilizao desses sectores imagem das suas convenincias. Segundo Lira, o Estado Novo parecia estar convencido de que a imagem transmitida era clara: Portugal era um pas que representava o patrimnio, que protegia os esplios museolgicos, que pugnava pelo respeito aos antepassados ilustres e ao que da sua cultura material havia chegado ao presente (Lira, 2004:99). Afirmando atravs de um discurso ideolgico, o Estado Novo esta determinado em revitalizar, inventando se necessrio, memrias dos lugares e procurava mostrar o seu valor simblico em actos solenes e comemorativos. A recuperao e a recontextualizao do passado so processos indispensveis no aparato ideolgico do regime, pois como afirma Helena Elias, os monumentos evocativos exaltam a Histria dos factos histricos triunfais, procurando assim, estimular o encantamento patritico do povo e estimular a coeso da nao, ou seja, cada monumento potenciava a narrao de um momento triunfal com o objectivo de ensinar a lio da histria a todos os cidados (Elias, 2004: 91). Os anos 30 e 40 foram um perodo do apogeu do regime salazarista e da sua propaganda. Nestes anos foram inauguradas novas "obras pblicas" como por exemplo: hospitais, tribunais, barragens, estdios, quartis para o Exrcito, Marinha e Aviao, edifcios

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escolares, pousadas, entre outros. Contudo, na escultura que o Estado Novo d mais nfase. Por todo o territrio portugus, incluindo o ultramar, ergueram-se os monumentos evocativos aos mortos da Grande Guerra e as esttuas comemorativas dos heris portugueses como - navegadores, chefes militares, reis, literatos, chefes de governo etc. A escultura salazarista definida como evocativa, comemorativa e histrica (Paulo, 1994). A escultura salazarista procurava definir em particularidade, a harmonia com desejo da poltica do Estado Novo. A arquitectura e pintura deviam fomentar o objectivo de Salazar evocar a restaurao do imprio portugus com os seus heris, e a reconstruo da histria gloriosa do pas. Porque a histria seria, para Salazar, feita sobretudo de manifestaes de nacionalismo, de sacrifcios hericos, da clebre poca dos Descobrimentos, que prolongam o passado mas que se voltam para o futuro, para um mundo novo (Bartez, 2009). A denominada Poltica do Esprito iniciada pelo regime do Estado Novo, que visava transmitir Nao mensagens de carcter nacionalista e paternalista concretizava-se numa multiplicidade de prticas culturais. Para esclarecer a nao nos valores do nacionalismo e apelar continuidade da tradio cultural, a propaganda fez muitas vezes uso das cincias e das artes (Bartez, 2009). Foi atravs da criao do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) nos anos 30, que a poltica do Estado veio a concretizar-se com maior fulgor e consistncia. Criado pelo Decreto-Lei n 23 054, de 25 de Setembro de 1933, o SPN assumiu-se desde logo como uma ferramenta de controlo ideolgico ao servio do Estado Novo, muito semelhana daquilo que se passava na Alemanha e Itlia, aos quais foi buscar inspirao. Contudo, foi apresentando no como um meio de moldar a opinio pblica, mas antes como um instrumento de apoio governao, que apenas visava informar o grande pblico. Antnio Oliveira Salazar deixa essa ideia bem explicita na altura da inaugurao do Secretariado: Em primeiro lugar: o Secretariado denomina-se de propaganda nacional. Quem penetrar bem o seu significado, entender que no se trata duma repartio de elogio governativo, que no se trata de elevar artificialmente a estrutura dos homens que ocupam as posies dominantes do Estado; compreender que o Secretariado no um instrumento do Governo mas um instrumento de governo no mais alto significado que a expresso pode ter.3

3-Discurso

proferido por Antnio de Oliveira Salazar em 26 de Outubro de 1933, na inaugurao do S.P.N in Catorze anos de Poltica do Esprito, edies SNI, 1948, P.13.

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O poltico e escritor Antnio Ferro dirigiu a organizao responsvel por esta poltica, consistente na fabricao da imagem de um pas, que rejeitando a contemporaneidade projecta a cultura popular de tempos passados. O secretariado promoveu, desta forma, um conjunto de iniciativas de teor etnogrfico, em que a valorizao da Arte do povo (disse Antnio Ferro) uma das grandes preocupaes do Secretariado de Propaganda Nacional. Desta forma, a actuao do SPN ir ser delineada fundamentalmente, atravs de diversas iniciativas fomentadas na propaganda ideolgica do regime, no desenvolvimento e divulgao da arte popular, como fonte de uma poltica da Cultura Popular que legitima o Estado, e na redescoberta e promoo de turismo em Portugal. Considera Alves que, desta forma, as diversas iniciativas promovidas, foram ajustadas pela constante necessidade de afirmao de Portugal no estrangeiro, e do seu reconhecimento internacional como factor de prestgio nacional (Alves, 2007b). Este objectivo conseguido, atravs das exposies e feiras internacionais, da qual se procura, entre outros, revitalizar o folclore nacional, cumprindo assim um programa que comea desde logo a ser delineado e executado por Ferro, aquando da primeira exposio de arte popular no estrangeiro. A aco do SPN estendia-se por duas frentes: uma interna, que visava a obteno do reconhecimento da sociedade portuguesa em torno do iderio do Regime, e outra externa, tentando captar o apoio da opinio pblica internacional, como sustento claro do regime que se ia afirmando, assim como para a defesa de todo o espao colonial. primeira competia, entre outras obrigaes promover a arte e a literatura nacionais e promover aces de propaganda. Em relao seco externa, havia a inteno de elucidar a opinio pblica estrangeira acerca da sua aco civilizadora e promover a expanso nos grandes centros, de todas as manifestaes de arte e da literatura nacionais (Bartez, 2009). Desta forma e, ainda de acordo com Bartez, o SPN desenvolveu uma poltica folclorista sistemtica e continuada no tempo, com repercusses a nvel interno e internacional. Ao longo dos anos 1930 e 1940 o SPN organizou vrias exposies de arte popular, promoveu o concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal, editou livros de temticas etnogrficas. Lanou tambm espectculos e palestras de dana e msica populares, criou os bailados Verde-Gaio, promoveu concursos de montras, sales e exposies de arte e at, um mecanismo de produo cinematogrfica, essencialmente documental, com

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algumas excepes no campo da fico, fundou o MAP, entre outros.4 A arte surgia assim, como um meio de produo cultural de grande potencial e visibilidade, que deveria actuar e ser percebida e encarada como um pressuposto de contedos propostos pelo organismo. O SPN detinha objectivos definidos para a cultura e as artes. Nesse sentido, criou trs bases fundamentais da "poltica do esprito", segundo Heloisa Paulo: A primeira, consistia no uso da cultura como meio de propaganda, ou seja, os movimentos culturais deviam ser orientados no sentido de glorificar o regime e o seu chefe. A segunda tinha como objectivo conciliar as tradies e os antigos valores com a modernidade daquele tempo, articulando uma ideologia nacionalista, com as ideias modernistas e futuristas de Antnio Ferro e seus parceiros. Em terceiro e ltimo lugar, e tendo em linha de conta o referido anteriormente, o programa cultural do regime procurava estabelecer uma cultura nacional e popular com base nas suas razes e nos ideais do regime (1994). Sobre o carcter autoritrio do regime constatou-se que, de acordo com Maria de Lourdes Santos o regime autoritrio viu-se no direito de definir que cultura convm aos portugueses e quais os valores que devem informar. Para que isso ocorresse foi fundamental o papel da censura, que correspondia ideia instituda por Salazar, de que a liberdade de criao artstica no servia de justificao para os malefcios que dela poderiam advir para a sociedade, havendo a necessidade de a limitar e orientar social e moralmente. A aco poltico-cultural do regime exercia-se, tambm, por via do sistema educativo, onde a Junta de Educao Nacional desempenhava um papel predominante. A Junta dividia-se em vrias subseces, das quais a primeira, a segunda e a quarta eram particularmente relevantes no domnio da cultura (1998). De acordo com a autora em epgrafe, a primeira, correspondia educao moral e cvica e tinha como competncias: emitir uma avaliao sobre peas ou trabalhos de qualquer gnero propostos para exibio pblica, sobre os argumentos dos filmes e sobre os cnticos nacionais, regionais e educativos; estabelecer o programa de teatro, do cinema e da radiodifuso educativo; definir as regras a que deviam subordinar-se a fiscalizao moral e poltico-social dos espectculos e a censura, sendo justificadas pelo bem da sade moral da vida portuguesa. A segunda subseco encarregava-se das relaes culturais, ocupando-se da representao oficial portuguesa no estrangeiro e na promoo do intercmbio intelectual, individual e colectivo. Por ltimo, a quarta subseco estava

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- Para uma descrio mais pormenorizada das actividades do Secretariado, ver Helosa Paulo, op. cit., pp. 73-139.

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destinada literatura, bibliotecas e arquivos de interesse nacional, e salvaguardar o que pudesse afectar o brio da Nao ou enfraquecer os elementos morais da sua coeso (1998). Com a Segunda Guerra Mundial vem o regime colocar algumas questes importantes, principalmente devido derrota dos regimes fascistas na Europa, que vo provocar uma reforma do SPN. Segundo a historiadora Helosa Paulo, a Segunda Grande Guerra levanta questes importantes em termos da orientao a ser levada a cabo pelo regime, no que respeita ao prprio posicionamento adoptado por Portugal perante a Europa, e vai suscitar, de igual forma, com a derrota dos regimes fascistas, uma reformulao do regime (1994:41). Em 1944, com a aproximao do final do conflito, o governo promove a reforma do SPN, publicando o Decreto-Lei n 33 545 a 23 de Fevereiro desse ano, que concentra num s organismo o Secretariado de Propaganda Nacional, os servios de Turismo, os servios de imprensa e de censura, os servios de exposies nacionais ou internacionais e os servios de radiodifuso, nascendo desta forma o Secretariado Nacional da Informao Cultura Popular e Turismo (SNI). Este nome vigorou at a altura em que uma nova reforma levou designao de Secretariado de Estado da Informao e do Turismo. A censura salazarista evitava com cuidado a difuso das ideias socialistas ou comunistas e de todo o movimento e rebelio contra o regime, as informaes das agncias de notcias estrangeiras foram controladas e reformuladas pelas agncias de informao do Estado. A partir de 1944 o SPN atravs da censura controlou a imprensa, o teatro, a rdio o cinema e, mais tarde, tambm a televiso. Desta forma, os servios de censura orientavam todas as actividades relativas informao e fiscalizao dos servios. A literatura portuguesa foi uma das reas confiscadas e controladas.5 Antnio Ferro empenhava-se activamente num conjunto de tarefas que visavam transformar a prpria expresso do pas. Conhecedor das virtualidades desta arte genuna e nacional, vai conciliar o tradicional com o modernismo latente e sob a gide do bom gosto vai coloca-la ao servio de uma arte simultaneamente portuguesa e moderna. O propsito era a alterao do gosto, que passaria a integrar referncias da arte popular, criando assim uma arte plstica e uma arte decorativa portuguesa, mas de formas contemporneas. Assim, o Secretariado procurava levar a cabo uma mudana de

- Durante o regime foram apreendidas centenas de livros, alguns escritores foram submetidos a julgamento pela sua actividade literria, e exemplo disso temos a proibio da venda do romance de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam.5

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sensibilidade esttica dos portugue