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Boletim Paulista de Geografia DEZEMBRO/2006 BPG 85

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Boletim Paulistade Geografia

DEZEMBRO/2006

BPG

85

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA

ISSN 0006-6079

O Boletim Paulista de Geografia é editado pela Associação dosGeógrafos Brasileiros - Seção Local São Paulo.

Os trabalhos exprimem as opiniões dos respectivos autores e nãonecessariamente da AGB-SP ou dos editores do BPG.

EDITORES: Paulo Miranda Favero e Sonia Maria Vanzella Castellar.

CONSELHO EDITORIAL: Alvanir de Figueiredo, Ana Fani AlessandriCarlos, Ana Maria Marques Camargo Marangoni, Ariovaldo Umbelinode Oliveira, Armen Mamigonian, Eva Alterman Blay, Gil Sodero deToledo, João José Bigarella, José Pereira de Queiroz Neto, José deSouza Martins, Juergen Richard Langenbuch, Luis Augusto de QueirozAblas, Lylian Coltrinari, Manoel Fernando Gonçalves Seabra, MarceloMartinelli e Pasquale Petrone.

DIRETORIA DA AGB-SP (2006-2008): Diretora: Regina Célia Begados Santos; Vice-diretor: Leandro Evangelista Martins; 1º Secretário:Tiago de Castro; 2º Secretário: Luís Fernando de Freitas Camargo;1º Tesoureiro: Alfredo Pereira de Queiroz Filho; 2º Tesoureiro: VicenteEudes Lemos Alves; Coordenação de Publicações: Sonia Maria VanzellaCastellar; Coordenação de Biblioteca: Léa Lameirinhas Malina;Coordenação de Intercâmbio: Maíra Bueno Pinheiro; Coordenaçãode Divulgação: Eliane de Mello Garcia; Bolsistas: Gilberto Américo eGilvaney Rodrigues Oliveira.

Os artigos publicados no Boletim Paulista de Geografia são indexados por: Geo abstracts,Sumários Correntes Brasileiros e Geodados: http://www.dge.uem.br/geodados.

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Reservados todos os direitos de acordo com a legislação vigente. Dezembro de 2006

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BOLETIMPAULISTA DEGEOGRAFIA

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Copyright 2006 da AGB

É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

Boletim Paulista de Geografia / Seção São Paulo - Associação dosGeógrafos Brasileiros. - nº 1 (1949) - São Paulo: AGB, 1949.

Irregular

Continuação de: Boletim da Associação dos Geógrafos Brasileiros

ISSN 0006-6079

1. Geografia 2. Espaço Geográfico 3. História do Pensamento Geográfico.I. Associação dos Geógrafos Brasileiros. Seção São Paulo.

CDD 910

Projeto da capa: Paulo Favero

Impressão: Xamã Editora

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIANÚMERO 85 SÃO PAULO – SP DEZ. 2006

EDITORIAL ........................................................... 5

ARTIGOSAntonio Carlos Vitte ................................................ 7METAFÍSICA, NATUREZA E GEOGRAFIA: APONTAMENTOS PARA ODEBATE SOBRE A GEOGRAFIA FÍSICA MODERNA

Dirce Maria Antunes Suertegaray ................................ 29UM ANTIGO DEBATE (A DIVISÃO E A UNIDADE DA GEOGRAFIA) AINDAATUAL?

Angela Maria Rocha ................................................ 39A CIDADE E SUAS REPRESENTAÇÕES

Rosa Iavelberg ....................................................... 55CIDADE: VIA DE ACESSO DA ARTE À ESCOLA

Regina Célia Bega dos Santos .................................... 71ALPHAVILLE E TAMBORÉ: CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS MEDIEVAISNA APROPRIAÇÃO DE TERRAS PARA CONDOMÍNIO DE ALTO PADRÃO

Paola Verri de Santana ............................................ 87DA NECESSIDADE DA FESTA À NECESSIDADE DO ESPETÁCULO

Sonia Maria Vanzella Castellar .................................... 95A CIDADE E A CULTURA URBANA: UM ESTUDO METODOLÓGICO PARASE ENSINAR GEOGRAFIA

ANEXOInstruções e normas para elaboração de originais ............ 113

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EDITORIAL

MUDAR PARA TRANSFORMAR

A Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção LocalSão Paulo tem o prazer de publicar o Boletim Paulista deGeografia número 85. O que deve chamar a atenção de todosé o novo projeto visual do tradicional periódico, maismoderno, com a capa preta, cor que tem o significado deintrospecção e favorece a auto-análise. No nosso caso,permite-nos pensar sobre os rumos que a Geografia vemtomando nos últimos anos e qual o nosso papel diante disso.

O preto também é, para muitos, principalmente nasculturas orientais, a cor que simboliza a sabedoria. Claro queexistem tantas outras interpretações para essa cor, mas nossaintenção é destacar apenas aquelas que têm a ver com o novoprojeto e apenas isso. Apesar da maturidade da publicação, quesurgiu em 1949, o novo projeto gráfico rejuvenesce e dá umnovo gás para que o boletim tenha mais 85 edições de qualidade.

A primeira mudança do BPG havia ocorrido na edição 51,em junho de 1976. Era uma mudança visual e conceitual, nummomento em que a Geografia brasileira também se transformava.Agora, 30 anos depois, a ciência geográfica parece terdesacelerado seu processo de mudança. Mas o nosso importanteperiódico não poderia ficar apático diante de tudo isso.

No BPG 81, foi retomada a primeira capa do boletim – erauma edição histórica sobre os 70 anos da Geografia brasileira e,nesse contexto, aquela capa aparecia como uma homenagem àhistória da Geografia. Essa capa acabou sendo utilizada nosboletins posteriores, até o número 84. Mas coloca-se então oquestionamento de que retomar a capa antiga pode simbolizar

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uma pura reverência a essa Geografia anterior à década de 70.Num movimento dialético, o conhecimento produzido é aqueleno qual nos apoiamos para superá-lo. Assim, esta nova capa –como também se propunha a capa do número 51 – simboliza nãoa rejeição de toda a história do BPG, mas, pelo contrário, aproposta de uma transformação que se produz a partir daquiloque já foi erigido, buscando sempre ir além.

Mas o BPG 85 é feito principalmente pelo seu conteúdo.Esta edição tem uma variedade de textos que passam poruma perspectiva crítica sobre a Geografia Física, pelo urbano,pela arte, pela educação, pela cultura e pelo ensino deGeografia. Cada um do seu jeito ajuda a explicar um poucomais o mundo que vivemos e as transformações que ocorrem(e não ocorrem) a nossa volta.

Assim, esperamos que façam uma boa leitura e nosenviem críticas e sugestões sobre o Boletim Paulista deGeografia. A AGB-São Paulo está de portas abertas a todosaqueles que querem construir uma Geografia para além dosmuros que nos cercam cada vez mais.

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ARTIGOS

METAFÍSICA, NATUREZA E GEOGRAFIA: APONTAMENTOSPARA O DEBATE SOBRE A GEOGRAFIA FÍSICA MODERNA

METAPHYSIC, NATURE AND GEOGRAPHY: NOTES FOR THEDEBATE ON THE MODERN PHYSICAL GEOGRAPHY

Antonio Carlos Vitte1

RESUMOO objetivo deste trabalho é discutir as relações entre a

metafísica da natureza e a Geografia. O trabalho procura demonstrara importância do conceito kantiano de natureza e da concepçãokantiana de Geografia Física na Modernidade (ou a influência kantianana geografia física na Modernidade). Na seqüência, o trabalho resgataa influência da naturphilosophie na concepção de natureza naGeografia Física moderna, discutindo a instrumentalização danatureza e a morfologia. Por fim, o trabalho analisa os impactos daracionalidade instrumental no rompimento da concepçãotranscendental de natureza e procura mostrar como a racionalidadeinstrumental exerceu forte influência na reflexão e na teoriageográfica. Esta racionalidade reificou a natureza, que passa a serconcebida como coisa/objeto. A proposta do trabalho para rompercom esta perspectiva instrumental e reificada na Geografia física éa volta do diálogo com a metafísica e a incorporação da concepçãode co-produtividade da natureza.

Palavras-Chave: Metafísica da Natureza; Geografia Física;Modernidade; Racionalidade Instrumental; Meio Ambiente.

1 Departamento de Geografia, UNICAMP, CP 6152, CEP 13087-970, Campinas(SP). E-mail: [email protected].

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ANTONIO CARLOS VITTE

ABSTRACTThe goal of this article is to argue the relations between nature

metaphysics and the Geography. The work search demonstrate theimportance of kantian nature’s concept and of the conception kantianof Physical Geography in the Modernity (or the influence kantian inthe physical geography in the Modernity). In the sequence, the workredemption the naturphilosophie influence in nature conception inthe modern Physical Geography, arguing for instrumentation of natureand the morphology. Finally, the work analyzes the impacts of theinstrumental rationality in nature and search transcendentalconception breaking show as the instrumental rationality exercisedstrong influence in the reflection and in the geographical theory.This rationality reification of the nature, that raisin the conceivedbeing as objects. The work proposal to break with this instrumentalperspective and in the reification in the physical Geography is thedialog return with the metaphysics and the conception incorporationof co-productivity of nature.

Key Words: Metaphysical of the Nature; Physical geography;Modernity; Instrumental racionality; Environment.

I - NOTA INTRODUTÓRIA

Este trabalho tem por objetivo apresentar uma discussão sobreas relações entre a metafísica da natureza e Geografia, maisparticularmente as relações da metafísica da natureza com ageografia física moderna. O princípio norteador desta reflexão éque a Geografia, enquanto ciência moderna, é moderna por refletire instrumentalizar as discussões em torno da metafísica da naturezae da metafísica do belo e que portanto, muito embora tenha umahistória institucional recente, a Ciência Geográfica é uma forteherdeira das reflexões kantianas e da naturphilosophie. É nestariqueza cultural e filosófica que são estruturados e instrumentalizadosmuitos conceitos da geografia física como morfologia, georelevo, relaçãoprocesso-forma e onde inclusive se organiza a cartografia temática.

Mas se a Ciência Geográfica “nasce” a partir de um “livrejogo” (Kant, 1974) entre a imaginação e o conhecimento do mundo,

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a partir de um intercruzamento entre a teleologia da natureza e aestética kantiana, mediada pela contemplação, como nas obras deAlexander von Humboldt, o desenvolvimento do modo de produçãocapitalista e a organização de uma racionalidade técnica e instrumentalacarretaram uma desontologização da natureza, com influênciasnefastas na reflexão geográfica, na teoria geográfica como um todoe mesmo na organização curricular dos cursos de geografia.

A geografia, no tratamento da problemática ambiental emsua complexidade e em sua diferenciação escalar de espaço e tempo,não pode tratar a natureza apenas como uma coisa, esta reificação,que também é social e cultural, retira a riqueza da teoria geográficacom sérias conseqüências na análise geográfica e na formulação depropostas para a resolução e mesmo superação deste modo deprodução excludente e segregador.

A nossa proposta, para que seja construída uma nova formade abordagem da natureza na Geografia, refere-se a uma retomadadas discussões e relacionamentos da Geografia com a Metafísica,resgatando e ao mesmo tempo desenvolvendo conceitos einstrumentos de análise da natureza no contexto da teoria geográfica.Neste sentido, duas propostas, a do metabolismo entre sociedade enatureza de Marx (1973, 1983) e a da co-produção da natureza deErnest Bloch (1996), cada qual com impactos filosóficos e teóricosbem definidos, mas complementares, emergem para dar suporte aesta relação contemporânea entre Ciência, Técnica, Tecnologia eTeoria e permitem romper com os rígidos cânones da racionalidadeinstrumental moderna, seja no tratamento da questão ambiental ouna edificação da teoria geográfica.

II – CONSIDERAÇÕES SOBRE A NATUREZA A PARTIR DAREFLEXÃO KANTIANA

Pode-se dizer que o processo de constituição da modernaciência geográfica obedeceu a um dos preceitos de Immanuel Kant,de que a geografia constituiu-se modernamente como uma ciênciasui generis, uma vez que é o produto da mobilização da livrelegalidade da imaginação (Kant, 1974) no conhecimento e naapresentação desse conhecimento.

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A geografia moderna nasce a partir de um vínculo e ao mesmotempo de uma inseparabilidade e complementariedade entre ciência,teleologia da natureza e estética, cujo centro de discussão estaligado à metafísica da natureza e às reflexões de Kant sobre anatureza e a geografia.

Assim, para Kant, a unidade sistemática da natureza éconstruída por meio da intervenção da razão, que na Crítica daFaculdade de Juízo (1995) será fundamentada pelo chamado nexoteleológico. Para a constituição de uma unidade sistemática danatureza, além da razão participa também a imaginação, que éuma faculdade de aplicação dos conceitos aos objetos empíricos.

Há uma disposição natural da razão em se considerar que anatureza tem um fim útil e cabe à razão descobrir os finstranscendentais desta disposição. Isto significa dizer que a unidadesistemática da razão funda-se num outro tipo de vínculo entre osfenômenos, um nexo teleológico. Assim, pensar é um ato transcendentalque permite estabelecer a essência e a unidade de um objeto.

Na Crítica da Faculdade de Juízo (1999a), o conceito denatureza é pensado metafisicamente e completamente a priori.Fisicamente, ele é pensado a posteriori, só sendo possível medianteuma experiência determinada. Esta experiência não é apenasdeterminada pelos princípios internos, como pelo entendimento, queconferem aos objetos da natureza um nexo causal; mas tambémpor princípios transcendentais, o que lhe confere um nexo teleológico.Para Kant, esta situação é inevitável, pois os seres da natureza sãoorganizados, ou seja, todos os objetos empíricos devem ser ajuizadosteleologicamente. Esse ajuizamento deve ser para determinar ascondições a priori das mudanças de estado, mas também paradeterminá-los em sua produção ou origem e, por intermédio disto,determiná-los em sua totalidade como seres organizados. Os nexosteleológicos entre as coisas não devem determinar o modo como ascoisas existem ou de seus estados, mas devem apenas permitir pensara causa porque existem ou os fins para os quais foram produzidos.

A partir da Crítica da Faculdade de Juízo (1999a), a concepçãode natureza não está mais associada às rígidas regras da matemáticae da física, mas estrutura-se a partir da noção de organismo, comototalidade com uma finalidade técnica no mundo (Lebrun, 1993;Campos, 1998). A finalidade natural existiria apenas quando as partesse relacionam com um todo, sendo ao mesmo tempo causa e efeito

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de sua forma. Assim, a idéia de organismo é determinante da formae da ligação de todas as partes em uma unidade sistemática, ouseja, o todo. Este princípio de finalidade, por sua vez, estánecessariamente associado à faculdade de conhecer, que prescreveuma lei para a natureza.

Concomitantemente, Kant percebe que somente o uso doentendimento para se conhecer a natureza como sistema não éviável. Assume, então, a necessidade de uma pressuposiçãotranscendental subjetivamente necessária (Kant, 1995; Lebrun, 1993;Marques Filho, 1987) que permita qualificar a natureza como um sistema,apesar da heterogeneidade e da multiplicidade das leis empíricas.

Para Campos (1998), a origem do conceito de finalidade danatureza em Kant surge a partir do desenvolvimento da Biologia e,portanto, toda reflexão kantiana, como exposta na Crítica daFaculdade do Juízo (Kant, 1999a) fundamentando-se na noção deorganismo. Assim, a finalidade natural existiria apenas quando aspartes se relacionam com um todo e que ao mesmo tempo sejamcausa e efeito de sua forma, de tal maneira que a idéia de organismoseja determinante da forma e da ligação de todas as partes em umaunidade sistemática, ou seja, o todo. Mas este princípio de finalidadeestá necessariamente associado à faculdade de conhecer, que prescreveuma lei para a natureza, sendo, portanto, um princípio transcendental.

Kant percebe que os fenômenos do organismo vivo, a naturezafísica animada, embora sigam leis determinísticas, não podem serregulados por leis da física e necessitariam ser tratados como seguiados por uma finalidade (Santos, 1998). O organismo e os órgãosque o compõem devem ser concebidos segundo uma teleologia, mesmoque atue segundo leis físico-químicas causais e mecânicas e nãopodem ser reduzidas a estas leis, pois se assim fosse, a harmonia dotodo seria destruída.

Na Crítica da Faculdade do Juízo (Kant, 1999a), a naturezaviva parece produzir uma harmonia racional presente nas partes doorganismo entre si e no acordo entre as suas partes, que concorremcada qual em sua função determinada para formar um todo vivo ecomplexo. Portanto, para Kant, a natureza tem uma unidade, cabendoao Juízo apreendê-la, assim como a possibilidade de vincular a diversidadede espécies a alguns conceitos de gênero (Keinert, 2001).

Para Kant, conforme enunciado na Crítica da Razão Pura(1989), nos Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza (1990) e

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na Crítica da Faculdade de Juízo (1999a), o princípio metafísico é oúnico capaz de oferecer as bases para uma autêntica ciência da natureza.Em Kant, isto é possível a partir da idéia de um sistema da naturezaque obedece a uma arquitetônica capaz de reunir num mesmo corpusdoutrinário os princípios transcendentais da natureza formal e material,levando à constituição de uma metodologia sólida para um sistema-mundo que será construído em torno da gravitação universal.

III – A GEOGRAFIA FÍSICA SEGUNDO KANT

Para Lebrun (1993) a noção de espaço é fundamental para odesenvolvimento do pensamento kantiano, particularmente no seu intentode tornar a metafísica uma ciência, assim como para a justificação damatemática e de sua aplicabilidade nos estudos da natureza. Se o espaçoestrutura-se no pensamento kantiano de 1770, enquanto fenômenoconstituidor de uma totalidade que poderia ser divisível e representada,segundo as leis da matemática e da física, posteriormente, na Crítica daRazão Pura (1989), o espaço, assim como o tempo, passam a sercategorias necessárias à construção do conhecimento.

Na geografia moderna, infelizmente alguns geógrafostomaram apressadamente as reflexões kantianas expostas naEstética Transcendental sobre o espaço e tempo e elegeram aforma, única e exclusivamente como sendo a melhor representaçãodo espaço, atrelando-se assim, em um empirismo tacanho (Gomes,1997), não havendo preocupação com os porquês desta reflexão eprincipalmente com o papel da geografia no sistema kantiano,lembrando que Kant foi professor de Geografia Física de 1756 a1796 em Königsberg (Livingstone, 1993).

Afinal, porque Kant lecionou Geografia Física? Há alguma relaçãoentre o seu interesse particular por Geografia Física e o seu sistemafilosófico? Qual a função da Geografia Física no sistema filosófico kantiano?

Para Kant, uma ciência da natureza auxiliaria na construçãode um sistema e de uma autêntica metafísica da natureza. Assim, aarquitetônica da razão poderia reunir em um mesmo corpusdoutrinário os princípios transcendentais heterogêneos da naturezaformal e da natureza material, o que permitiria construir umametafísica do mundo (Barra, 2000).

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É neste contexto que se insere a Geografia Física que, paraKant, está confinada ao estudo dos fenômenos da natureza queocorrem próximos à superfície da Terra. Para Kant, a GeografiaFísica é uma ciência empírica que é proveniente de relatos doconhecimento da natureza, preocupando-se com a relação entre oparticular e o concreto, relação esta que está materializada nasdiferenciações do espaço (Capel, 1978; Gomes, 1997; Hartshorne,1978; Moraes, 1999).

Para o filósofo de Königsberg, a Geografia Física trabalhariacom a descrição da natureza, o mundo dos objetos, o mundo visível,em contraste com a antropologia, que trabalharia com o fenômenomental, ou a experiência consciente do homem por meio de suaspercepções (Kant, 1999). Ainda para Kant (1999), a Geografiatrabalharia tanto com a descrição simultânea das ocorrências nopresente sob o aspecto do espaço, assim como os eventos do passado,em uma relação temporal. A preocupação da Geografia Física seriaa de definir uma história da natureza através do tempo.

Segundo May (1974), esta concepção de Kant sobre a GeografiaFísica insere-se em um contexto maior e, ao mesmo tempo, possuiuma função clara no seu sistema de pensamento, ou seja, a GeografiaFísica forneceria os elementos analíticos e comprobatórios não apenasde uma física ou de uma mecânica da natureza, mas forneceriatambém elementos e argumentos empiricamente fundamentadospara as reflexões sobre a teleologia da natureza desenvolvidas naCrítica da Faculdade do Juízo (Kant, 1999a).

O debate sobre a finalidade da natureza, desenvolvido aolongo dos séculos XVII e XVIII, estava afeito ao papel da ciênciaque então se constituía e que se espraiava também para aepistemologia, para a teologia, para a estética. No caso dopensamento kantiano, o terremoto de Lisboa de 1755 foi o marcoem que a Geografia Física passou a assumir uma importância dedestaque de sua reflexão e estava, necessariamente, associadaao conceito de finalidade (Duflo, 1996).

Kant compreende a natureza como um sistema empírico,sendo necessário o uso de um princípio do julgamento reflexivo, noqual apenas o particular é dado e o universal tem que ser encontrado,pois a caracterização sistemática da natureza não é deduzida deprincípios a priori da natureza em geral.

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Neste contexto, em 1765, Kant apresentou a Geografia Físicacomo um “sistema empírico da natureza”, proposta que gerou umgrau de unidade no nível empírico e que foi retomada na PrimeiraIntrodução à Crítica do Juízo, obra de 1790 (Kant, 1995).

Entre 1772 e 1773, em uma das inúmeras vezes em quereescreveu a introdução de sua Geografia Física, antecipou anecessidade de uma distinção entre a divisão lógica e a divisão físicada natureza, envolvendo assim a criação do sistema empírico danatureza. A Geografia Física passou a ser conhecida como um sistemaempírico da natureza, apontando-se para uma visão integrada domundo a partir de leis empíricas, muito embora os casos semelhantesnão pudessem ser deduzidos de leis especiais, a partir de um princípioa priori, mas sim descobertos na própria natureza.

Para Kant, a Geografia Física estudaria a natureza em suaheterogeneidade e diversidade, ou seja, em sua diferenciação espacial.O sistema empírico da natureza não era concebido unicamente como atotalidade da heterogeneidade, aparecendo tanto no nível empíricoquanto no sistemático, manifestando-se no arranjo empírico das classesdos fenômenos. O sistema físico da natureza procura detalhar ascaracterísticas do fenômeno exibindo a conformidade universal das leisa priori da razão, sendo condizente com a heterogeneidade e diversidadeda natureza. Por outro lado, o sistema empírico da natureza procuratrabalhar como a natureza foi diferenciada, além de procurar descobriras similaridades, assumindo que a natureza apresenta uma diferenciaçãoespacial exibindo uma qualidade ideográfica.

O problema que se colocou para Kant foi o de estabelecer adiferenciação das formas naturais uma vez que a natureza nãopoderia ser diferenciada apenas por um princípio lógico, mas sim apartir de uma relação entre o sistema físico da natureza e o sistemaempírico da natureza, pelo julgamento reflexivo (Vitte, 2005).

A diferença entre um sistema físico da natureza e um sistemaempírico da natureza. Para Kant, um sistema da natureza deveestar fundamentado em uma ordem lógica, para que, assim, possaser concebida a idéia de todo. Kant enfatizou que esta concepçãoprovinha de uma geografia da natureza, cuja preocupação era aexperiência no mundo, devendo-se começar pela observação deporções do espaço e do tempo. Concepção esta que, sem dúvida,estaria de acordo e justificava empiricamente suas reflexõesfilosóficas (Bowen, 1981; Kant, 1990).

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Enquanto a física é uma teoria da natureza, com um sistemaconstituído de acordo com os conceitos teleológicos, a geografiaseria uma descrição da natureza. Uma das diferenças centrais entrea teoria da natureza e a descrição da natureza é que teoria deveapresentar proposição em forma matemática e deve ser logicamenteintegrada ou deduzida de um sistema matemático. O sistema empíricoda natureza ou qualquer descrição da natureza não pode ser representadona forma de um sistema matemático, embora para a descrição danatureza possam ser utilizadas as proposições matemáticas.

Para Kant (1999), a Geografia ocupava hierarquicamente omenor nível do sistema da natureza, pois trabalha com objetos físicosem sua particularidade. A Geografia, assim, é uma ciência empíricada natureza, muito embora procure trabalhar com o nível deintegração na visão do mundo.

Kant não se preocupa em mostrar uma divisão lógica e físicada natureza, talvez porque o que ele chama na Primeira Introduçãoà Crítica do Juízo (Kant, 1995) de um “sistema empírico da natureza”fosse mais razoável chamar de um sistema lógico da natureza,formando assim, um campo reservado para a geografia, conformedemonstrou em inúmeras ocasiões em que a geografia é, estritamentefalando, um sistema empírico da natureza.

Isto porque as leis geográficas são mais específicas, particularese contingentes que as da física e estão concernentes com a diversidadeda natureza, a natureza entendida como experiência da diferenciaçãoespacial. Um outro aspecto a ser considerado é que as leis físicassemelhantes às geográficas atentam para uma visão sistemática domundo estritamente no nível empírico. Isto significa que certospostulados geográficos requerem os princípios de julgamento, quesão a priori uma pressuposição necessária para a possibilidade deuma ciência sistemática que se requer no nível empírico.

Para Kant, o sistema lógico da natureza teria dois objetivos:1. o de classificação dos vários objetos da natureza;2. o de promover um arranjo hierárquico de todas as leis

empíricas da natureza e a subsunção de muitas leis particulares aeste arranjo.

Assim, um dos principais objetivos da Geografia é produziruma ordem hierárquica da natureza, na qual a possibilidade de umaclassificação dos objetos da natureza como pré-estabelecido pelojulgamento aparece como um requisito necessário ou propedêutico

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para a Geografia enquanto uma física empírica. Portanto, a GeografiaFísica ao produzir uma hierarquia ou ordem da natureza apareceriamais como produto final do conhecimento.

A obra Geografia Física de Kant (1999), inserida em seusistema filosófico, propunha trabalhar a Geografia como umaexperiência do mundo sensível, em que buscava justificar sua teoriada natureza, que era concebida muito mais como uma teoria doconhecimento da natureza, procurando com isto destacar o papel dohomem enquanto sujeito do conhecimento. Assim, a Geografia Físicacomo um sistema empírico da natureza permitiria a delimitação doterritório da experiência humana e, ao mesmo tempo, forneceriadados empíricos, os fenômenos, que poderiam ser ordenados segundoleis necessárias e universais.

Para Kant, a Geografia Física foi classificada como um sistemaempírico da natureza, preocupando-se com a diferenciação espaciale com o sublime da natureza, além de fornecer argumentos empíricosem prol de uma finalidade da natureza, não mais mecânica, masuma natureza representada, porque mediada pelo juízo reflexivo.

As reflexões kantianas sobre a Geografia Física e a inserçãodela no sistema kantiano como um todo revelam o quanto elaparticipou do processo de mediação entre o homem e a natureza eque culminou na Terceira Crítica, representada pela obra de arte ea construção de um juízo estético.

O papel do juízo estético (May, 1974) na reflexão geográficamarcou o desenvolvimento da cartografia, particularmente a partirdos trabalhos dos artistas que acompanhavam as expedições dosnaturalistas e que trabalhavam nas ilustrações científicas, feitas deuma maneira prática na qual ressaltavam e documentavam as atividadese os objetos de interesse da expedição, e acabaram por produzir umanova cognição do fato observado. A concepção que se desenvolveu foi ade uma visão cósmica do mundo, na qual haveria uma unidade ecológicado inorgânico com o orgânico, gerando uma individualidade fenomênicaque deveria ser teorizada, permitindo, assim, o nascimento do conceitode paisagem na geografia moderna (Stafford, 1984).

É neste momento, por exemplo, que a Europa é despertadapara a variedade geográfica da superfície da Terra, sendo que estavariedade deveria ser retratada pictórica e cientificamente. Nainterpretação de Capel (1978), a relação transcendental-empíriconão seria apenas retratada nas pinturas de paisagens, mas era um

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dever localizá-las na superfície da Terra, sendo esta diversidade amaterialização do noumeno kantiano.

Para Stafford (1984), a melhor expressão para designar operíodo é a de cientista explorador-artista-escritor, onde a noção degênio, como trabalhada na filosofia kantiana e Schellingiana, foimelhor visualizada pela humanidade. Neste período devia-se criaruma nova representação do mundo e era a arte quem deveriaestruturar as referências científicas e normativas do mundo.

IV – DA SAUDADE TRANSCENDENTAL AO PROCESSODE REIFICAÇÃO: A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL EA DOMINAÇÃO DA NATUREZA

Na concepção kantiana, a geografia tinha uma função especial, poisfundamentava uma visão de mundo iluminista e auxiliava na manutenção damodernidade. No entanto, os ideais deste processo emancipador foramcapturados e submetidos à órbita do mundo burguês e de sua temporalidade,materializada pela troca econômica. Segundo Ernst Bloch (1996), namodernidade a máquina enquanto símbolo tecnológico tem a propriedadede retirar todo que qualquer dom natural dado no fenômeno.

Na sociedade moderna, a dominação é uma categoria cruciale que possui na ciência um de seus pilares fundamentais. E estadominação está fortemente relacionada com o manejo instrumentalda natureza, banindo do horizonte da civilização uma totalidadeharmoniosa como aspiravam os filósofos da naturphilosophie.

Segundo Horkheimer (1937), o domínio técnico da naturezaenvolve o conhecimento das leis naturais, com o desenvolvimento deferramentas e de modos de produção, cujo objetivo maior é adominação social, isto é, o estabelecimento de uma organizaçãosocial mais racional dos homens entre si e com a própria natureza.

Se o jovem Marx (2003) considerava o trabalho como umprocesso de progressiva humanização da natureza e ao mesmo tempo,a própria emancipação da humanidade, no modo de produçãocapitalista, acabou acontecendo o contrário, pois segundo Horkheimer(1937) a dominação racional da natureza significa a subordinaçãodos processos sociais à planificação, a racionalidade capaz de eliminaro funcionamento meramente caótico do aparato social.

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Para Horkheimer (1937), a natureza é tudo aquilo que nosdomina, tudo aquilo dotado e desígnios próprios e que escapa denossa determinação conceitual e material. O problema que se colocaao cientista social é a organização social do domínio técnico danatureza, uma vez que cada vez mais as ciências se especializam eao mesmo tempo são identificadas com a sua utilização tecnológicae produtiva, abandonando as potencialidades a filosofia e da arte nacompreensão do mundo.

Segundo a Teoria Crítica, a razão passou a ser na modernidadeum instrumento de reificação. As relações com a natureza passarama ser vistas como que marcadas do começo ao fim pela dissensão. Acivilização originou-se e evoluiu mediante a opressão violenta danatureza, mediante seu recalcamento, onde o progressivodesenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo quegarantiram um crescente triunfo do sujeito sobre a natureza externa,se faz ao preço da crescente supressão da própria natureza humana.(Horkheimer & Adorno, 1985).

O Homem emancipou-se da condição natural no curso dacivilização pelo domínio da natureza, porém este domínio ésimultaneamente o controle e a subjugação de sua natureza interior,pois na modernidade a auto-conservação é o fundamento de todo oprojeto civilizacional. Assim, na modernidade, a natureza é condiçãotranscendental do processo civilizador, onde a dominação progressivatanto da natureza interior quanto da exterior permite o triunfo domodo de produção sobre a natureza exterior. Esta premissa, Horkheimer& Adorno (1985) acreditam que se efetiva para além da consciênciahumana, permitindo a dominação do mundo animado e do inanimado.

Cada vez mais o mundo e os sujeitos são dominados por umarazão subjetiva, que para Horkheimer (1937) está desprendida dosujeito no processo histórico e distanciada do mundo, sendo apenasum mero material. A razão instrumental moderna constitui-semediante a ordenação sistemática dos fatos de nossa consciência.Seu requisito é o da identidade com a natureza de modo que osfatos possam ser sempre previstos a partir do sistema científico quepor sua vez deve ser confirmado a partir dos fatos. Para Horkheimer& Adorno (1985) o sistema científico é capaz de lidar eficientementecom os fatos, mas ao mesmo tempo perdendo a capacidade decompreender e determinar os próprios fins, levando a um constanteprocesso de desencantamento do mundo.

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Este tipo de razão acarretou uma série de transformações namaneira como se compreendia a realidade, pois a razão se refereagora exclusivamente a um objeto ou a um conceito em relação aum dado e não a uma particularidade do objeto ou do conceito.

Atualmente, esta razão pragmática preocupa-se em definiro uso correto e os meios necessários para conseguir um fim,onde o ato de pensar já não serve para discernir a validade deum objetivo, pois a racionalidade é concebida como adaptação,como coincidência com a realidade estudada.

Este processo de inversão do significado da razão, que implicavana compreensão e na determinação dos fins, acaba por gerar e solidificara reificação da sociedade e da natureza. Pois o mundo agora é aqueleonde tudo serve para algo e tem que ser útil para ser reconhecido comoreal, acarretando uma instrumentalização universal do próprio mundo.

A base mais uma vez está no Iluminismo, cujo programa eraliberar o mundo da magia (Horkheimer & Adorno, 1985), mas podemossituar a problemática relativa à natureza na filosofia hegeliana (Hegel,2000) em que a natureza era vista como alteridade que é superadapelo espírito através da energia da razão, pois por ser diferente econtrária ao homem inspirava o medo e a necessidade de sua superação.

Assim, por meio da razão instrumental o homem desejou anatureza como diferente e necessário para a sua realização e auto-afirmação, cuja regra prática foi a de conhecer para dominar.

Mas o paradoxo se instala na sociedade moderna, pois ao mesmotempo em que a razão instrumental permite uma maior liberdade do Homemfrente às forças da natureza, a ponto de poder ter controle sobre algunsfenômenos, por outro lado a transformação da natureza que atualmentenão tem limites volta-se contra o homem, provocando a catástrofe. Assim,a mediatização do mundo através de uma razão que o instrumentaliza paraa dominação constante do Homem sobre a Natureza produz a catástrofe,significando dizer que a mesma razão que o liberta, também o condena.

Pois atualmente o desenvolvimento da racionalidade econômicaconfunde-se cada vez mais com o desenvolvimento da racionalidadetecnocientífica, dando a impressão que as duas esferas estão fundidasem um único movimento. A tecnologia permite cada vez mais aapreensão intelectual das leis e dos processos naturais que, por meioda racionalidade científica, transforma-se em natureza“desnaturalizada”, acarretando a ilusão de não há fronteira entre ahumanidade e a natureza, conduzindo a reificação do ser vivo.

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Hoje, mais do que nunca, a natureza e os seus processosvisualizados de maneira paradoxal pelas recentes catástrofes edesastres passaram a exigir da sociedade um posicionamento etambém respostas filosóficas sobre o seu ser e o seu estar, perguntasque remetem a uma reflexão sobre as relações da sociedade com anatureza e exigem das ciências uma outra postura filosófica e social.

V – A GEOGRAFIA E A CO-PRODUÇÃO DA NATUREZA

Como visto até agora, é a partir da filosofia kantiana, maisparticularmente a partir dos Princípios Metafísicos da Ciência daNatureza (1990) e da Crítica da Faculdade do Juízo (1999a) que anatureza passa a ser pensada metafisicamente e que fundamentaráo nascimento da geografia física moderna, particularmente as obrasde Alexander von Humboldt.

Se no início das reflexões kantianas a natureza ainda é concebidaa partir de rígidos conceitos derivados da matemática e da física, nofinal de sua reflexão, já na Terceira Crítica, a mesma passa a ter umaconsistência ontológica e concebida enquanto sistema.

Assim, para Kant, a natureza deve ser pensada sob o prismada metafísica, havendo uma autêntica ciência da natureza somentese houver correspondentemente uma metafísica da natureza quelhe dê suporte. E é dentro deste contexto que Kant concebe ageografia física, enquanto um sistema empírico da natureza, quefundamentado no juízo teleológico e estético reflexionante (Vitte,2006) permitiria a descrição e a explicação da natureza a partir deseus processos e de suas formas (Livingstone, 1993).

A multiplicidade de fatos e fenômenos, assim como asespecificidades e as contingências da natureza, obrigou Kant arepensar muitos fundamentos da metafísica, particularmente dametafísica da natureza, pois enquanto domínio da razão especulativa,não resolvia o problema da multiplicidade das leis empíricas, sendonecessário um novo conceito e uma nova figura de natureza, de talmaneira que a imagem de natureza preservasse o saber científico eeliminasse, segundo Kant, a imperfeição da chamada multiplicidadenão totalizante das leis empíricas (Kant, 1995, 1999a).

No entanto, o desenvolvimento do modo de produçãocapitalista e de uma nova racionalidade, agora técnico-científica e

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instrumental, se desenvolve concomitante ao processo de compressãoespaço-temporal (Harvey, 1993), criando um paradoxo, pois se odesenvolvimento das próteses informacionais, compreendidas comohíbridos, são capazes de problematizar as relações entre o mundohumano e o não-humano, subsumindo nelas as relações entre anatureza e a cultura, entre o humano e o divino, por outro lado, estacultura contemporânea permanece ligada a hybris do período arcaicogrego, pois ao mesmo tempo em que transgride, constitui um ultraje euma transgressão, criando uma situação ao mesmo tempo dialética detotem e tragédia (Freud, 1973), abrindo canais, que como diz Bataille(1973), por onde flui a situação angustiante do homem.

Para Michel Serres (2000), tanto a técnica quanto a tecnologiafavorecem a saída de si, atribuindo ao homem a potência de criação.Para Bruno Latour (1994), esta situação é dada porque namodernidade o homem especializou-se em criar híbridos, isto é,misturas em vários graus de natureza e cultura, de humanos e não-humanos, num trabalho incessante de mediação.

Segundo Martin Heidegger (1971, 1978), a dessubjetivação ea desteleoligização do objeto da ciência natural moderna estão ligadasà técnica moderna, em cada vez mais a subjetividade humana sedesvencilha e se põe fora da natureza, ao mesmo tempo em que aciência moderna substitui a metafísica, onde a natureza passa a servista como uma reserva de matéria-prima, cujo valor reside somenteem atender aos desejos humanos.

É dentro do contexto da modernidade, marcado pela aceleraçãoespaço-temporal, pelas próteses informacionais, que a natureza vemsendo compreendida dentro da geografia como um objeto (Santos, 1992).

A nosso ver, a compreensão da natureza como objeto retirada mesma toda a historicidade e mais é como se na história daconstituição da ciência geográfica e na formulação da teoriageográfica não houvesse a participação da natureza. Quando narealidade a ciência geográfica constitui-se enquanto corpo explicativoe justificador de uma nova cosmologia agora moderna (Gomes, 1997),a partir da constituição da metafísica da natureza e de suainterlocução com a ontologia e com a estética moderna.

Outra implicação da concepção de natureza enquanto objetoé que esta consideração, assim como a de que a natureza trabalhacom tempo longo, não considera para efeitos de análise amorfodinâmica, concepção que é uma herança goethiana e que

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Humboldt irá concebê-la como sendo o produto da dialética dageoesfera, ou seja, é ignorar a ação processual que dá vida e governaos objetos naturais e muitas vezes é responsável pela modelagem efuncionamento da paisagem atual.

Segundo Schopenhauer (2005) e Horkheimer (1990), uma dasgrandes propriedades da naturphilosophie e particularmente as reflexõesde Schelling foi a de dar visibilidade fenomênica à natura naturata.

As reflexões de Schelling (1856/1861) em sua filosofia-da-natureza e a partir de sua interlocução com Goethe e Alexander vonHumboldt foi a de abordar a natureza como um vir-a-ser, ou seja,um processo, que possui um passado natural indeterminado e que serealiza em formas, em morfologias que possui uma históriadeterminada pelo sujeito humano (Vitte, 2006).

A natureza para Schelling (op. cit.) caracteriza-se porapresentar uma unidade, uma identidade marcada por uma polaridadeentre o ideal e o real e que se realiza materialmente por umaprodutividade geradora de processos e formas em várias escalas ecujo produto é a multiplicidade e a diversidade de seres e formas,caracterizadas por apresentarem uma espacialidade.

Caberia então ao geógrafo-naturalista explicar estamultiplicidade e diversidade de fenômenos e de sua espacialidade,que segundo Ricotta (2003) esta explicação em Alexander vonHumboldt é construída a partir de um “livre jogo” entre a imaginaçãoe a linguagem, mediada pela descrição e contemplação e cujo produtofinal redunda na pintura de paisagem.

Vale destacar que a Geografia é uma das primeiras ciências aincorporar o novo conceito de matéria que passou a perdurar apartir de meados do século XIX e que foi incorporada na obra Kosmosde Alexander von Humboldt (Vitte, 2005), permitindo um grandeavanço na metafísica da natureza desenvolvida pela naturphilosphie(Schopenhauer, 2001, 2005).

A matéria passou a ser concebida como materie, sujeito puroda representação e livre de toda e qualquer causalidade determinanteda ligação entre o espaço e o tempo. Quando intuída e trabalhadapela Vontade, a materie transforma-se em Stoff, a matéria quepode ser empiricamente transformada no espaço e no tempo,portanto geradora de formas e estando sujeita à causalidade e àscondições do conhecimento (Schopenhauer, 2005). É da Stoff que seorigina a forma, que segundo Schopenhauer (2005) tem a propriedade

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metafísica de estabelecer as ligações entre o espaço e o tempo eque pode ser intuída e representada na pintura de paisagens, najardinagem e na arquitetura (Barboza, 2001; Schpenhauer, 2001). Anosso ver, é a partir deste contexto que as reflexões de Alexandervon Humboldt irão convergir e ao mesmo tempo instrumentalizarestas discussões da metafísica da natureza, na concepção degeorelevo, perfis horizontais e verticais, isolinhas e na cartografiatemática como veículo de representação da espacialidade damaterie. Para Schopenhauer (1993) a obra Kosmos de Alexandervon Humboldt demonstrava empiricamente que o espaço era aforma essencial da materie enquanto substância e que o conteúdode Kosmos demonstrava a interlocução entre a metafísica danatureza e a metafísica do belo podendo ser cientificamenterepresentada pela cartografia.

Compreendemos que uma das tarefas neste novo século, sejaa de edificar uma teoria geográfica que mantenha uma base e umainterlocução constante com a filosofia, particularmente, dentro dasestruturas curriculares dos cursos de geografia, as disciplinas ligadasà geografia física, atentem-se para o fato, que a discussão sobre anatureza e a implementação prática de muitas disciplinas, como ageomorfologia, têm sua gênese na filosofia-da-natureza e na estética.

Um dos problemas que se coloca hoje para os geógrafos écomo tratar a questão da temporalidade dos processos naturais edos processos sociais, de tal maneira que a natureza e os processosnaturais possam ser incorporados no contexto da dialética social.Para Leff (1986) a natureza deve ser incluída como uma categoriaimportante e fundamental para o desenvolvimento social e das forçasprodutivas e que o fato de a mesma ser encarada como sendo apenasum objeto colocou a sociedade contemporânea frente a uma grandecontradição, realçada pela questão ambiental.

A nosso ver, a questão ambiental, como a abordada pela ciênciageográfica, está relacionada às determinações e contradições domodo de produção capitalista, em que o Sujeito é hipertrofiado epara a problematização desta temática faz-se necessário umaretomada de categorias e conceitos e suas interconexões com afilosofia e as análises devem estar fundamentadas em uma concepçãoMetafísica, onde a questão ambiental, mais do que uma demonstraçãodo processo de reificação, pode potencializar a construção de umanova utopia social-natural.

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Mais do que uma volta ao idealismo alemão e à naturphilosophie,com a pressuposição de uma suposta harmonia homem-natureza, apremissa que partimos é a de que a harmonia deve ser uma construçãoe portanto urge a reconstrução filosófico-geográfica do que entendemospor natureza e por suas relações com a sociedade.

Marx (1973), por exemplo, identificou uma relação metabólicaentre a sociedade e a natureza, que foi reificada com a separaçãocampo-cidade no modo de produção capitalista levando à alienaçãoda natureza, assim expressa nos Grundrisses:

“Não é a unidade da humanidade viva e ativa com ascondições naturais, inorgânicas, da sua troca metabólicacom a natureza, e daí a sua apropriação da natureza, querequer explicação, ou é o resultado de um processo histórico,mas a separação entre estas condições inorgânicas daexistência humana e esta existência ativa, uma separaçãoque é integralmente postulada apenas na relação do trabalhoassalariado com o capital” (Marx, 1973, p. 489).

Para Ernest Bloch (1996), uma das possibilidades de sereconstruir esta falha metabólica entre a sociedade e a natureza épor meio da noção de co-produtividade da sociedade para com anatureza, em que seria formada por uma nova aliança técnica entrea natureza e o sujeito, com a libertação de ambos frente ao modode produção capitalista. Uma vez que uma relação social é umarelação dos homens para com os homens e para com a natureza.

Para tanto, deve-se compreender a processualidade do mundoe do ser onde não há sistema acabado, sendo necessário areconstrução de uma filosofia da natureza, que a nosso ver, temimplicação direta na constituição da geografia física moderna.

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UM ANTIGO DEBATE (A DIVISÃO E A UNIDADE DAGEOGRAFIA) AINDA ATUAL?

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O tema que nos solicitaram abordar em caráter de ensaio étão antigo quanto a própria geografia e tão atual quanto suanecessidade de reflexão. Trata-se de refletir sobre os fenômenosgeográficos de forma a contribuir para sua visão não compartimentadaentre as duas dimensões presentes na construção destes mesmosfenômenos: a natureza e a sociedade.

Muito já se escreveu para informar que a ciência e a filosofiadesde o Renascimento acalentaram um debate cuja intenção diziarespeito à necessidade da época, qual seja desconstruir a visãoorgânica de mundo, predominante nesse momento. Esta apresentavana sua cosmovisão uma construção onde espaço e tempo eramindissociáveis. Os ritmos da natureza se articulavam aos ritmos daprodução da vida. Esta visão gradativamente deixa de interessar,considerando-se que um mundo em transformação exigia que anatureza fosse pensada em separado da natureza humana e onde ohomem fosse pensado como um ser central catalisador dos benefíciosprovenientes daquela.

Desta necessidade material, na perspectiva de ampliar oprocesso de produção e descoberta de novos mundos, emerge umaconstrução, aquela que fundamenta a construção científica desdeentão, ou seja, a separação da natureza do homem e do própriohomem em corpo/natureza alma/divindade desde Descartes.

Tratava-se do ponto de vista filosófico e científico de dividirpara dominar. Dividir, analisar para explicar fenômenos e ou processose na continuidade intervir, explorando ou manipulando.

Não é preciso dizer que esta construção alicerçou nossa formade pensar o mundo e de construir conhecimento e resultou numoutro momento, quando do advento da revolução Industrial (séc.

1 Professora do departamento de Geografia - UFRGS.

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XVIII), numa construção científica que efetiva esta forma de pensar.Estamos nos referindo, aqui, ao positivismo. Este contribuiu com afragmentação/compartimentação do conhecimento desde omomento em que propôs uma classificação científica e indicou anecessidade de cada ciência definir seu objeto de estudo ou ofenômeno natural ou social de seu interesse.

Diante desta realidade desde o século XVIII/XIX, pelo menos,deparam-se os geógrafos com questões, aparentemente banais, mascom certeza relevantes, em particular, nesse momento histórico.Uma dessas questões diz respeito à compreensão geográfica ou aoentendimento de seu campo de estudo.

Contrariando, em nosso entendimento, a doutrina científicaque gradativamente tornava-se hegemônica, a Geografia coloca-se,desde sua origem, e em particular no momento de sua autonomia(séc. XIX), como uma ciência de interação entre natureza e sociedade.

Observa-se que quando da autonomia da Geografia, duasciências se colocaram para o conjunto científico, como ciências deconexão. A Geografia, historicamente, postulante desta perspectivae a nascente Ecologia. Nenhuma delas teve seu espaço plenamenteassegurado nesse momento.

A ecologia para Dollfus (1982), particularmente na França, sóganha espaço nos anos 60/70 do século XX. Para este autor o conceitode ecologia formulado por Haeckel em 1866 permanece o mesmo.Ao considerar-se a ciência do estudo das relações entre os seresvivos e o meio, a ecologia se pensa unitária e global. Entretanto,indica, esse autor, que esta ao não dispor de uma teoria e de umforte paradigma, torna-se um conhecimento eclético. Acrescentandoque a utilização da teoria dos sistemas parece fornecer à ecologia osinstrumentos conceituais necessários.

A Geografia manteve-se a partir de sua própria divisão. Naprática ela se construiu a partir daí, dividida em Geografia Física eGeografia Humana. Esta divisão não teria sido para dominar?!Aparentemente, teria sido para permanecer no contexto.

Na segunda metade do século XX aproxima-se, em particulara Geografia Física, da lógica globalizante a partir da construção doconceito de geossistema. Conceito, originariamente, construído pelosrussos (Sotchava 1977) e, na França por Bertrand (1972). Emboratenha sistematizado esse conceito e proposto uma Geografia Físicaunitária e o próprio Bertrand (1982) que afirma “a geografia física

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não existe enquanto corpo científico constituído”. Afirma nacontinuidade de sua análise que a Geografia Física não constitui umtodo e também não é parte de um todo. Sua indicação encaminha adiscussão sobre a possibilidade do uso do conceito de Geossistemacomo passível de articulação dos elementos da natureza ao mesmotempo em que aborda os limites deste conceito no campo da análisesocial. No Brasil temos em Monteiro (2000) a expressão máxima dageografia brasileira na constituição de uma perspectiva Geossistêmicadiferenciada de Bertrand e articuladora dos constituintes naturais esociais no tempo e espaço.

As dificuldades de percurso vivenciadas pela Ecologia que nãose fortaleceu, no quadro científico, desde meados do século XIX atéa segunda metade do século XX, e da Geografia que se mantém apartir da divisão em dois campos (Geografia Humana e GeografiaFísica) ao longo deste mesmo século, paradoxalmente, expressamuma posição contrária ao caráter da ciência dominante. Esta buscouao longo da modernidade, conforme Latour (1984), purificar seuobjeto. Geografia e Ecologia se colocaram como ciência das conexões.A Geografia como ciência das conexões entre natureza e sociedadee Ecologia como ciência das conexões entre os organismos vivos eseu meio. Nesse sentido pode se dizer que estes dois campos doconhecimento não conseguiram uma afirmação no conjunto dasciências puras durante o século XX.

São, entretanto, essas duas ciências que mais, recentemente,são resgatadas para veicular uma compreensão mais totalizante dosfenômenos contemporâneos. De um lado a Ecologia respondendo emparte pela demanda atual da sociedade: a questão ambiental. Nesseparticular cabe ressaltar um novo campo da Ecologia, a denominadaEcologia de Paisagem (Zimmerer, 1984). Esta tem na sua origem aconstrução do conceito de clássicos da Geografia a exemplo doconceito de paisagem com base em Troll (1982). Ao resgatar o conceitode paisagem, a Ecologia se propõe a incorporar dimensões não tratadasem suas abordagens clássicas, entre elas, as que dizem respeito àespacialidade e às intervenções humanas.

Paradoxalmente, a Geografia, na intenção de construir umconhecimento articulador baseou-se no conceito de sistema. Estepor sua vez proveniente da Biologia. Entretanto, a Geografia comociência de valorização do espaço e das conexões entre os fenômenos,respondendo pela emergência da variável espacial na identificação

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dos problemas sociais e ambientais tem na sua análise um diferencialem relação ao ecológico, seja na sua perspectiva clássica, seja nasua perspectiva mais recente.

Independentemente desta configuração ou da necessidadepremente, no caso da Geografia, de um retorno à sua origem, arealidade científica ainda se coloca compartimentada. Em que pesetoda a discussão contemporânea sobre a necessidade de valorizaçãodo espaço, de resgate das conexões e da articulação sociedade –natureza – cultura, a Geografia ainda se expressa dicotomizada. Oesforço de unificação, portanto, está tão atual como sempre esteveno debate geográfico. As conexões são possíveis, são tangíveis, comoo exemplo, trazemos um tema derivado de nossa experiência depesquisa: o exemplo da Geomorfologia Urbana.

SÍTIO E PRODUÇÃO DA CIDADE

O sítio urbano constitui um conceito clássico da geografiaurbana. Entende-se na sua construção original como o receptáculo,o local onde se assenta a cidade. Por longo tempo estudamos atravésdeste conceito os elementos naturais sobre o qual uma cidade eraproduzida. Hoje poderíamos dizer que este conceito é poucovalorizado, entretanto, ele pode ser resignificado e ser compreendidocomo o espaço fisicamente produzido, as formas criadas e serinterpretado através dos processos envolvidos na produção da cidade.

As formas criadas a que nos referimos decorrem de processosde ordem natural e econômico-social. Os processos naturais sãorelativos à dinâmica da natureza modificada ou intensificada, nascidades, pela materialidade construída. A dinâmica econômico-socialé relativa aos processos que possibilitam a origem de novas formasde interface com a dinâmica da natureza, alterando-a.

A produção da cidade envolve, por sua vez, diferentes agentes:o setor público, o setor privado, em especial os agentes imobiliários,e a população representada pelas diferentes classes sociais,destacando-se os pobres e os excluídos como agentes de apropriaçãoe construção do espaço urbano, em grande parcela, semagenciamento público ou privado.

A produção do espaço urbano, portanto, não é harmônica, écontraditória, resulta de demandas específicas em conflito. Essas

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demandas, de forma generalizada, podem ser indicadas como:- O setor público, a quem cabe o planejamento da cidade sob

os aspectos de infra-estrutura e serviços entre outros.- Os agentes imobiliários, a quem cabe a produção dos espaços

de moradia (aos segmentos com poder aquisitivo alto e médio e osrealizam de acordo com suas demandas), comércio, produção industrial,cultural etc., no âmbito da apropriação e acumulação de capital.

- A população pobre, de baixa renda e de excluídos, a quemcabe produzir o espaço de moradia, por iniciativa própria e de acordocom suas condições.

Estas demandas e conflitos geram espaços de produção urbanadiferenciados e recriam o sítio com a produção da cidade. Osexemplos, expressos na literatura e em particular nos estudosgeográficos, são muitos. Apenas para citar alguns lembramos: aconstrução de aterros, a construção de túneis, os desvios de arroiose ou rios, a canalização/retilinização de arroios e rios, as modificaçõesem orlas lacustres ou marinhas, o “engordamento” de praias, oaplainamento de áreas de dunas, entre outras.

Neste caso, formas criadas a partir da relação entre poderpúblico e setor privado estão associadas a interesses relativos à melhoriada infra-estrutura urbana e/ou produção de espaços de residência,consumo e circulação, entre outros, para classes altas e médias.

Ao mesmo tempo em que esses espaços se produzem, tambémocorrem ocupações irregulares, geralmente em áreas de planície deinundação e ou áreas de morros. As chamadas áreas de risco.

Disto resulta um novo sítio urbano, constituído de túneis,expansão de áreas planas por aterramento ou aplainamento, mudançana forma dos canais fluviais, soterramentos de cabeceiras fluviais,constituição de novas formas de relevo, como os morros (morretes)derivados da acumulação de lixo (a exemplo do Aterro da Zona Norte/Porto Alegre, feição geomorfológica elevada construída no interiorda planície do rio Gravataí).

Hoje estas formas vêm sendo denominadas detecnogênicas. São formas e ou depósitos resultantes da interaçãoda dinâmica da natureza com a dinâmica social. Estas formasainda são pouco estudadas no campo das Geociências. Mas, cadavez mais são observáveis e cada vez mais exercem rugosidadesna produção do espaço. Constituem ao que se referiu Santos(1997) como próteses ou artificialidades.

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Associados a estas formas e às alterações daí decorrente dosprocessos naturais, temos impactos ambientais significativos como:ilhas de calor, diminuição da insolação nas residências, poluição doar, revestimento/impermeabilização de superfícies (asfaltamento)e em conseqüência alagamentos e ou sob outras intervenções osdesmoronamentos, deslizamentos ou quedas de blocos etc.

Esta realidade exige estudos, compreensão/explicação e gestão.Portanto cabe fazer referência ao significado de gestão. Gestão pode serentendida como uma dimensão do planejamento que deriva dadesconstrução da idéia de planejamento centralizado, onde a estruturade poder se estrutura de forma mais ampliada (relações de poder).Nesse contexto a gestão se utiliza de estratégias técnico-científicas.Trata-se de novas formas de promover a organização do território. Estaspoderão se constituir em formas de planejamento democrático ou poderãoser a expressão das políticas de continuidade do poder instituído.

Por desconstrução do planejamento centralizado entende-se a buscade uma forma de planejar ampliada, e mais representativa, em relaçãoaos diferentes agentes sociais, que poderá atingir um consenso em termospolíticos a partir de uma construção mais alargada das relações de poder.

Essa forma de gestão demanda conhecimento prévio doproblema, sustentado em diagnósticos técnico-científicos. Diz respeitoà valorização do conhecimento técnico-científico como mediadordas políticas de ordenação territorial. Aqui tem-se a possibilidade dotrabalho do profissional da Geografia, a exemplo de suas atuaçõesnos EIAs/RIMAS, Diagnósticos Ambientais, Pareceres Ambientais,Laudos Periciais Ambientais. Estes instrumentos constituem hojefundamentos da gestão territorial, posto que constituem documentoscom vistas a subsidiar tecnicamente a discussão política.

Propõem tomadas de decisão partilhada entre os diferentessegmentos sociais participantes dos comitês de gestão e ouorçamentos participativos...

Implicam em considerar os impactos ambientais e suasconseqüências à população envolvida. Indicam a necessidade depermitir o acesso, por exemplo, à cidade, à propriedade, à infra-estrutura, aos serviços, à qualidade ambiental e ao bem estar social,considerando as demandas das populações envolvidas.

Este caminho, o da participação, é o mais controvertido e namaioria dos casos não temos necessariamente a população envolvidanas diferentes fases de implantação de um empreendimento. Os

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instrumentos técnicos são, na grande maioria das vezes, osbalizadores, por exemplo, de remoção de pessoas de uma área paraoutra, das desapropriações de terrenos, das revitalizações...

O exemplo das transformações do sítio não quer dizer que oúnico caminho de entendimento da cidade na busca de articulaçãoseja este. Este exemplo diz respeito ao campo ambiental e expressauma das formas, em que fica evidente a busca de articulação dediferentes constituintes do espaço geográfico. Este é também umindicativo da demanda contemporânea em pesquisa, daí acreditarmosna necessidade de re-ligação da Geografia.

Ao atentarmos para nossas práticas veremos que grandeparte do conhecimento da natureza feita hoje se articulacom a dinâmica social na busca da explicação dosimpactos ambientais. Refletindo sobre nossa atividadetenho compreendido e neste sentido acompanho as idéiasde Milton Santos. Em meu entendimento sob qualquerperspectiva, hoje, tratamos de natureza artificializada.Sob qualquer perspectiva, desde os diagnósticos, passandopelos monitoramentos e indicação de medidasmitigadoras, quando das análises ambientais estamostrabalhando a partir de uma artificialização. Está éexpressão do nosso tempo. Resulta, portanto, necessárioassumirmos esta discussão. (Suertegaray, 2005, p. 15-16).

POR QUE É NECESSÁRIO UNIR?

Tentando responder esta pergunta, resgatamos algumasreflexões para o conjunto da construção do conhecimento, portanto,é necessário unir porque vivemos um momento histórico:

- em que o Modo de Produção Capitalista e por extensão a culturaocidental, ao separar o homem/sociedade da natureza e buscar purificaros objetos científicos, contribuiu para a verticalização do conhecimento,mas, ao mesmo tempo, promoveu a cegueira no âmbito das conexões.

- onde o descolamento da concepção de tempo em relação aoespaço promoveu a subordinação da natureza à lógica da reproduçãodo capital além da crença no desenvolvimento técnico-científico comopossibilidade de recriação da natureza.

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- onde a reinvenção técnica da natureza, que se manifestanas sucessivas próteses construídas pelo mundo, os chamados objetosartificiais (a exemplo dos sítios urbanos), ou a segunda natureza,que, apresentando-se sob as mais variadas escalas indicam anecessidade de discussão sobre a relação natureza–sociedade, oumelhor dizendo, sobre a produção social da “natureza”.

E ainda, considerando-se que a separação entre homem enatureza constitui fundamento filosófico da filosofia judaico-cristãque sustenta o pensar e o agir do mundo ocidental, não constituiesta a única forma de reflexão e ação do homem em seu viver coma natureza. Esta evidência vem sendo resignificada sob a perspectivade valorização das diferenças culturais, aceitando-se um pensar querelacione natureza e cultura.

No contexto atual este debate diz respeito à epistemologiacientífica, inúmeros são os intelectuais e cientistas que indicam anecessidade dessa conjunção; a Geografia, pela sua história econstrução, deve estar presente nesse debate. Mas não só ao debatelhe cabe uma parcela. Sua tarefa maior é sem dúvida reunir seusfragmentos e construir-se unitária, objetivando desvendar asarticulações não reveladas entre a natureza e a sociedade.

O CAMINHO DA UNIFICAÇÃO

A reunião dos fragmentos do ponto de vista científico vemsendo proposta em termos operacionais através de conceitos comointerdisciplinaridade e transdisciplinaridade. A experiênciainterdisciplinar é algo complexo de realizar e internamente nageografia não é diferente. A transdisciplinaridade, em meuentendimento, seria um caminho possível, desde que entendida deforma diferente da forma concebida mais normalmente, ou seja,como transcendência.

A transdisciplinaridade a que me refiro significa mais do queo horizonte para além das disciplinas, ou a construção do objetoúnico, ou os múltiplos olhares sobre um mesmo objeto. Atransdisciplinaridade que acredito ser possível trilhar na perspectivade busca de articulação é por mim entendida como capacidade detrânsito, como possibilidade de cada um colocar-se no lugar do outrona busca da compreensão ampliada de sua disciplina. Neste sentido,

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a capacidade de transitar pelos diferentes campos é algo a serbuscado. É condição para a construção do diálogo entre disciplinase, mais particularmente, entre os fragmentos geográficos.

Costumo dizer que, ao investigador, nesse momento histórico,lhe cabe uma posição diferente daquela da modernidade, qual seja ocentro de seu campo específico; as exigências de nosso mundo exigemuma posição diferente, ou seja, mais próxima da fronteira, posto queé na fronteira do conhecimento que os fenômenos se tornam híbridos.

Sob uma perspectiva conceitual, internamente à geografia,como o exemplo dado pelo conceito de sítio urbano, temos capacitaçãopara realizar algumas conexões, promover a análise complexa,enquanto uma tecitura de constituintes naturais e humanos.

Entretanto, não nos libertamos, embora a busca de articulação,da filosofia norteadora de nossa cultura, aquela que pensa a naturezacomo externalidade. O fato de buscarmos a articulação não nosisenta de, ao propor restaurações, reconstituições e ou recuperações,almejarmos o domínio da natureza. Portanto, esta é em nossoentendimento a questão central, como já afirmou Leff (2001), acrise ambiental é uma crise do pensamento. Ele propõe recriar umsaber ambiental que responda pelas necessidades atuais. Não é poroutra razão que os geógrafos devem ser estimulados à reflexão.

O saber ambiental no âmbito geográfico nos permite, sob umadeterminada perspectiva, promover as conexões. A experiência deconstrução ambiental tem demonstrado a possibilidade de pensarmos oespaço geográfico através do conceito de ambiente. Este constitui umconceito capaz de desvendar articulações, mas não é o único, dado queo espaço geográfico pode se manifestar pela ótica de outros conceitoscomo paisagem, território, entre outros.

Pensar o ambiente em Geografia é considerar a relaçãonatureza/sociedade, uma conjunção complexa econflituosa, que resulta do longo processo de socializaçãoda natureza pelo homem. Processo este que, ao mesmotempo em que transforma a natureza, transforma, também,a natureza humana. Ou seja, pensar o ambiente naGeografia e pensá-lo enquanto um processo de complexasmediações com significativas implicações na vida daspessoas em relação a suas condições fundamentais deexistência. (Suertegaray, 2005, inédito).

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Pensar o ambiente hoje é ir além do domínio técnico deintervenção, para, sem negá-lo, repensá-lo no âmbito de novas lógicasque se estruturam e dão suporte a uma visão de resgate doentendimento de espaço geográfico na sua unidade e nas suasdiferentes variantes conceituais, na sua multiplicidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A CIDADE E SUAS REPRESENTAÇÕES

Angela Maria Rocha1

RESUMOSabendo-se que as representações não dão conta de

representar o mundo e não se identificam com ele, e que a imagemque podemos ter configurado da realidade não está nela e com elanão se confunde, o que resta é saber que a cidade é produto de umfazer, que cria também um sujeito à sua medida. Em meio a tantasreflexividades, com os instrumentos de conhecimento da cidade de quedispomos, há necessidade de investigar e procurar compreender a gênesee a aplicação de conceitos referentes à cidade. O presente trabalhopretende oferecer uma contribuição nesse sentido, abordando osconceitos de representações e de imagens.

Palavras-chave: representação, imagem, cidade.

ABSTRACTKnowing that representations don’t make out to represent

the world and that they are not identified with it, and that theimage of reality that we may have configured is not in it and is notwith it confounded, what remains to understand is that the city is aproduct of a making of that creates itself a citizen to its measure.In the midst of as many reflectiveness, by the means of understandingwe have available, there is a need to investigate and try tocomprehend the genesis and use of concepts referring to the city.The present work intends to offer a contribution in this direction,approaching the concepts of representations and images.

Key words: representation, images, city

1 Arquiteta e professora doutora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo daUSP, onde é orientadora no mestrado.

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IMAGENS E REPRESENTAÇÕES

Para dizer da cidade, há necessidade de situar inicialmente oterreno das imagens, esse lugar em que se estruturam e se organizamdiversas classes de representações que orientam a apreensão dofenômeno urbano. Octavio PAZ, em texto que tem justamente comotítulo o termo imagem, comenta as diversas significações da palavra.Quando referidas a “uma figura real ou irreal que evocamos ouproduzimos com a imaginação”2, a palavra imagem, nesse sentido,possui valor psicológico. Nesse caso as imagens são, segundo ele,produtos imaginários. Como poeta, está o autor interessado no termoimagem enquanto expressões verbais que se configuram em poemae que são classificadas pela retórica como comparações, metáforas,símbolos, alegorias, fábulas etc. Todos esses termos preservam a“pluralidade de significados da palavra sem quebrar a unidade sintáticada frase ou do conjunto de frases”, como exemplifica através de algumasfiguras de heróis trágicos, entre elas a figura de “Antígona, despedaçadaentre a piedade divina e as leis humanas” ou Édipo, “entre a liberdadee o destino”. E conclui: “A imagem é cifra da condição humana”.3

A cidade poderia hoje ser considerada como imagem doconfronto e aproximação de realidades diversas, opostas,contraditórias e é o que tem sido feito. Com dificuldade, a capacidadeconceitual e científica pode reconduzi-la a abstrações que a descrevamem sua complexidade sem o risco de desmanchar ou fracionar essapercepção que a designa também como uma singularidade atravésde um nome próprio. Se na Antigüidade clássica a tragédia podiacarregar consigo a imagem capaz de refletir sobre as angústias,esperanças e contradições de um tempo e de um povo, o mundomoderno parece ter encontrado na cidade o lugar da revelação dadiversidade e da realização de possíveis ou impossíveis: cidade comoobra. O termo imagem tornou-se aparentemente muito apropriado

2 “A palavra imagem possui, como todos os vocábulos, diversas significações.Por exemplo: vulto, representação, como quando falamos de uma imagemou escultura de Apolo ou da Virgem. Ou figura real ou irreal que evocamosou produzimos com a imaginação. Neste sentido, o vocábulo possui umvalor psicológico: as imagens são produtos imaginários.” PAZ, Octavio. Signosem rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 37.

3 PAZ, Octavio. Op. cit., p. 38.

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para se referir à cidade, mas diferentemente de Octavio PAZ,interessa aqui aquela significação da representação, por ele lembradacomo “figura real ou irreal que evocamos ou produzimos com aimaginação”, segundo suas palavras. Não se trata aqui de enfrentara discussão sobre o valor psicológico, também atribuído à palavraimagem, segundo observações do autor, quando assume o sentidoacima que ele exemplifica assim: “vulto, representação, como quandofalamos de uma imagem ou escultura de Apolo ou da Virgem”4. Podeser diverso o registro material da figura de Apolo em uma esculturaou o nome próprio Apolo. Apolo é referência em ambas. Pretende-seinvestigar nesse trabalho o que é possível dizer sobre processos derepresentações que têm a cidade como referência. Para isso é precisodiferenciar os termos representação e imagem.

Eisenstein5, o mestre das imagens em movimento produzidasno cinema, condensa em sua obra o que seria a objetividade do registromaterial, por um lado, e de outro, a exploração do vínculo dramáticoque a imagem pode conter. Suas intuições e explanações sobre o temapodem estabelecer um importante patamar para a elaboração dessasumária consideração aqui apresentada através das palavras de Paz arespeito da significação desse termo imagem, quando considerada comofigura real ou irreal evocada ou produzida com a imaginação.

Eisenstein estudou engenharia e atribuiu o “gosto pelopensamento racional”6 à clareza e exatidão que encontrou namatemática. Tendo criado uma linguagem cinematográfica nova,procurou desenvolver, investigar e apresentar o seu processo, não sóem sua obra, mas também em seus textos. Neles manifesta-se avivacidade daquele que observa o mundo com interesse e curiosidadee, como artista, procura transferi-las a algum material e compartilharas descobertas que o atravessam. São trabalhos fundados no relatode suas experiências e freqüentados pela vida. É assim que, procurandoentender e explicitar o fenômeno das imagens e das representaçõessobre as quais refletiu em suas investigações sobre o cinema,rememora uma experiência comum a muitos de nós, ao ver-se

4 PAZ, Octavio. Op. cit., p. 37.5 Sergei Eisenstein nasceu em Riga em 1898 e faleceu em Moscou em 1948.6 EISENSTEIN, Sergei. Reflexões de um cineasta. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1969, p. 12.

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obrigado a se localizar em uma cidade desconhecida. O objetivo deseu texto é o de desenvolver e expor com clareza o seu processo demontagem no cinema, fundamentando-o na experiência da percepçãohumana. Numa época em que o cinema era mudo, o autor pôdepensar e conceituar a imagem e refletir sobre seu processo deprodução, investigando suas possibilidades narrativas como recursopara o cinema. A novidade desse novo meio de representação darealidade também estava a exigir maiores reflexões quanto às suaspossibilidades simbólicas e significativas, constituindo-se como arte,e não como mero registro visual. Seu primeiro contato com a arte eque o deixou apaixonado foi através de uma montagem teatral queassistiu em 1913, quando tinha 15 anos. É no teatro queposteriormente inicia a sua formação na arte, depois que a guerracivil interrompeu seus estudos de engenharia. A especificidade daencenação no teatro é a representação de atores, que corporificame objetivam o sentido do texto. Familiarizou-se com línguas orientais,os ideogramas, quando se inscreveu em um curso da Academia deMoscou, e acredita que isso também contribuiu para o rumo tomadonas suas investigações sobre a linguagem do cinema. A genealogia desua formação visa explicitar as contribuições concretas com as quaisfoi desenvolvendo a sua teorização sobre a montagem para o cinema,para a qual se tornou importante discriminar entre representação eimagem, e com essa finalidade retoma-se aqui a sua contribuição.

Vale a pena apresentar agora esse trecho em que Eisensteindescreve sua experiência ao conhecer Nova York, introduzindo umamaneira de representação da cidade identificada por ele e que ofereceráum suporte concreto à diferenciação entre os dois processos que reconhecepresidirem a formação da representação por um lado e a imagem, poroutro, propiciando a explicitação da diferença que atribui aos dois sentidosque estão, em Paz, submetidos ao mesmo termo: “figura”7.

Em Nova York, a maior parte das ruas não tem nome.Elas são designadas por números: Quinta Avenida, RuaQuarenta e dois etc. Para os recém chegados, esse modode designação oferece, de início, problemas difíceis paraa memória. Estamos habituados a dar nome às ruas, eisso facilita a tarefa, o nome logo evocando a imagem e o

7 PAZ, Octavio. Op. Cit. p. 37.

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seu enunciado fazendo afluir, com a imagem, todo umgrupo de sensações. Tive muita dificuldade para lembrar-me da imagem das ruas de Nova York e, por conseguinte,para conhecê-las. Designadas por números neutros – 42ou 45 – elas não me evocavam a imagem, concentrando asensação do aspecto característico de tal ou qual artéria.Para chegar a esse resultado foi-me necessário lembraruma coleção de índices concretos característicos de tal ouqual rua, coleção que se apresentava a meu espírito emresposta ao sinal “quarenta e dois”, o sinal “quarenta ecinco” suscitando outra. Para cada rua que eu queria reter,colecionava em minha memória os teatros, cinemas, aslojas, os prédios característicos etc. A operação para osreter de cor se fazia por etapas. Pude distinguir duas. Naprimeira, à designação verbal “Rua Quarenta e dois” amemória reagia com grandes dificuldades, engrenandotodo o rosário de elementos característicos daquela rua,mas não havia ainda a verdadeira sensação daquela rua,os elementos não combinavam, no momento, em imagem.Somente na segunda etapa é que eles se fundiam em umaimagem única; ao enunciado do número, levantava-se todoum conjunto de seus elementos constitutivos, não maiscomo um encadeamento, mas como um todo único, comouma visão integral da rua, como sua imagem integral.Somente a partir desse momento é que se pode dizer quea rua está verdadeiramente registrada pela memória. Suaimagem começa a surgir, a viver, na consciência e nasensibilidade, exatamente da mesma maneira que na obrade arte se destaca pouco a pouco, a partir de seuselementos, uma imagem una e total que nunca maisesquecemos.Nos dois casos, quer se trate do processo de registro pelamemória ou da percepção estética, a mesma leipermanece verdadeira: a parte penetra na consciência ena sensibilidade por intermédio do todo e por intermédioda imagem (Nota: Destaques do autor).8

8 EISENSTEIN, Sergei. Op. cit. p. 78-79.

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A CIDADE COMO MONTAGEM E A PRODUÇÃO DA IMAGEM

O significado atribuído ao termo imagem, em Eisenstein,afina-se sob muitos aspectos com aquele empregado por Paz para aliteratura. Mesmo atribuindo interesse e privilegiando a locução verbal,acaba por desenvolver os atributos referentes à imagem de modobem próximo ao apresentado por Eisenstein. Considerando os sentidosatribuídos à figura, considerando-as quer como reais ou como irreais,mas de qualquer modo produzidos pela imaginação, Paz lança umaponte para retomar aquela diferenciação que Eisenstein assinalouentre a representação e a imagem. Uma é objetiva, fragmentária,e a outra, ocorrendo na “consciência e na sensibilidade”9, éintegradora. Poderia aqui também ser complementado: “produzidaspela imaginação”10, e isso, quer sejam representações, quer sejamimagens – figuras reais, palpáveis, objetivas no caso dasrepresentações, irreais, impalpáveis e por vezes paradoxais, é o quediz respeito à imagem. Com o intuito de conferir o potencial dramáticoda locução verbal às imagens mudas é que Eisenstein desvenda opoder das representações quando justapostas, e que é designadocomo montagem. Trata a montagem como possibilidade de conferir,despertar para o sentido e produzir imagens a partir derepresentações. Desvendar a diferença entre representação e imagemfoi significativo para ele, porque sem os recursos da locução verbal,tinha ao seu alcance apenas a produção objetiva de figuras alcançadaspela captura da filmadora, tais como as pessoas, os objetos, cenas,paisagens: representações da realidade. Nesse horizonte, sendo esseo meio com o qual contou para produzir o sentido dramático, entendeuque o enlace procurado por ele estava na dependência de algo alémdas representações proporcionadas pelo filme e também além doespectador. Algo que, de certa maneira, se realizaria entre elas eele: a imagem. Palavras e frases desenvolvem-se em imagens quandoas diz o poeta, afirma Octavio Paz. Assim também as figuras, ascenas gravadas, podem também configurar-se em imagens atravésda montagem, mostra Eisenstein.

9 EISENSTEIN, S. Op. cit. p. 7910 PAZ, Octavio. Op. cit.

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A distinção entre representação e imagem é importante quandose trata do seu emprego para o conhecimento, e é possível que a relevânciaatribuída por Eisenstein à sua formação em uma escola de engenhariaseja para ele em um suporte a ampará-lo no campo da arte, no qual seocupa na implicação do espectador no processo da arte.

Cada vez mais as representações produzidas através de meiostécnicos ou por intermédio do desenho têm servido de apoio àsciências e à técnica em todos os campos do conhecimento,submetendo e colocando ao alcance do entendimento humano muitosfenômenos que dependem do campo sensorial e interpretativo paraapreendê-los. Aqui também é necessário trazer para o campo daobjetividade os termos empregados que qualificam essas produçõespara a apreensão sensorial e intelectual e procurar entender a suaabrangência e os seus limites.

REPRESENTAÇÕES DA CIDADE: ALCANCES E LIMITES

Neste texto, Eisenstein faz uso do termo cidade para com elarealizar uma mediação entre coisas e homens, entre abstrações, comonúmeros, e coisas. E também aqui se encontra a descrição de umprocesso que é vital para o homem, a sua orientação e a sua localizaçãono mundo. Essa descrição aponta para uma das representações dasmais elementares para o mundo ocidental, o endereço estabelecidopelo nome (ou número) de uma rua em uma determinada cidade epaís. E é a rua, essa possibilidade de irmos e virmos que acaba porcaracterizar a maioria das representações da cidade com as quais sehabituam os que as habitam. De fato, cada localização no espaço éúnica, singular, e o lugar torna-se identitário. Pode ser o lugar em quese mora, em que se trabalha ou em que se morre, aquele que comparecena historicidade do desenrolar da vida humana, identificado como atributoa acompanhá-la. A possibilidade de localização através do endereçosugere caminhos e assim, o traçado da malha viária que permite oacesso fornece a base para a representação da cidade.

No desenho, as ruas são trajetórias nomeadas. Supõem umolhar que não é o que temos na nossa experiência em transitar pelacidade, mas o vôo de pássaro que tudo vê de lá de cima e emdimensão reduzida, ou ainda relembra a figura do tabuleiro de umjogo. É um olhar que se debruça perpendicularmente ao solo sobre o

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qual se caminha, e que se estende no plano horizontal. Supõe tambéma presença corpórea a orientar os passos com que se simulam ospossíveis percursos pelas ruas. O que nos mostra e o que escondeesse desenho, essa representação da cidade que se faz através deuma superfície bidimensional por meio dessas linhas traçadas emque ruas e quadras definem o solo público do solo privado? De imediato,a dicotomia entre aquele em que se circula e aqueles em que sedesenvolvem as outras atividades. Os lugares dos fazeres humanos sãotantos quantas são as atividades humanas socialmente reconhecidas eestabelecidas. De um lado, o tempo aprisionado nesse ir e vir daspráticas cotidianas parceladas em inúmeras atividades. De outro, pode-se procurar um lugar adequado para o tempo livre, fora da cidade.Edifícios como prisões, hospícios e hospitais criam lugares incomuns econtribuem para identificar como liberdade esse ir e vir da vida urbana,em confronto com os limites espaciais configurados nesses edifícios.

Um endereço, uma localização na cidade também pode revelaroutras implicações. Trata-se da condição de cada um, da presençacorpórea que é o fenômeno capaz de desencadear essa consulta àrepresentação da cidade. Supõe interesses, vínculos entre cada ume a cidade. Um vínculo corpóreo, uma presença que a representaçãodas ruas no desenho não pode contemplar. E é esse vínculo corpóreoque estabelece relações com essa forma de representação: aondenos encontramos? Para a localização de cada um no mapa, é possívelque se recorra a algum movimento, identificando o que está, narepresentação ou na realidade, à frente, à esquerda ou à direita. Senão for assim, de nada adianta essa representação da cidade. Éassim que essa preocupação com o olhar, capaz de identificar osedifícios, a paisagem urbana, o que está à frente dos olhos, torna-se a indicação lembrada e registrada por Eisenstein para referir-se àrua que quer identificar. Um número é uma abstração de igual gêneroque o desenho dos traçados das ruas – e aqui o termo abstraçãoparece estar referido particularmente à ausência da subjetividade capazde criar espontaneamente um vínculo com qualquer uma delas,indiferentes e equivalentes entre si, que não dizem nem mostram nadade suas especificidades locacionais. Os edifícios, tal como é apontado,no texto, criam vínculos, sentidos, afetam, particularizam e definemo local em que se encontram e “conversam” com sua vizinhançaedificada. Criam os horizontes e a paisagem para o olhar humano epodem, configurando-se efetivamente como verticalidades, exigirem

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reconhecimento de um olhar frente a frente: fachadas com suasportas e janelas que se organizam para deixar ver ou ocultar, abrirpassagem ou interditar horizontes. Se dessas representações, quem asvê, delas está ausente, o sentido que aponta o norte, no desenho, podeser referência. Nas ruas, as placas nos localizam em consonância com arepresentação. Representações técnicas, universais, a simplificar acomplexidade dos interesses da cada um.

O que cada um encontra e vê também depende do que faz, decomo vive, e revela interesses particulares. Associações para a memória,como o procedimento estabelecido por Eisenstein, que o descreve comorecurso capaz de superar a abstração numérica para caracterizar umarua, é um dos meios de criar um vínculo pessoal com um lugar. E assim,é possível que cores, lojas, peculiaridades de usos ou funções enlacem ointeresse de cada um criando relações e imagens que superem de longeas representações consagradas de orientações nas cidades, como asplantas com o traçado das ruas. É possível que um turista, um eletricistaou um motorista de ônibus sejam levados por diferentes olhares sobreuma cidade, mas esses desenhos do traçado das ruas poderão acolherindiferentes cada um deles.

As representações da cidade podem abrir-se para aspectossignificativos considerados emblemáticos, aquelas que freqüentam oscartões postais, agências de turismo e o imaginário, consistindo-se naprática como marcas, que fazem de algumas cidades um produto – ouainda – uma mercadoria. Há ainda a cidade como idéia contraposta acampo, sinônimo de séries de adjetivações que caracterizam um estilode vida e assim, aproximar-se de alguma trajetória histórica de algumascidades é penetrar nos mistérios de acontecimentos que eclodem nasruas e reviram a história, como os da Praça Celestial na China, as lutasde rua em 1968 em Paris, a queda do muro de Berlim e certamente sãomuitos os momentos em que a cidade torna-se mais personagem doque palco e, certamente um lugar se torna o testemunho de umacontecimento que a fotografia corrobora e documenta.

Cada vez mais, entretanto, tem-se como norma aquelasrepresentações da cidade que emanam de processos técnicos e quetêm também objetivos de controle do solo e do planejamento,mapeando estruturas e infra-estruturas e todas as redes a elascorrelacionadas. A essas se agregam todos os demais possíveis eimagináveis levantamentos referentes à tipologia dos edifícios,árvores, habitantes por área etc., com os mais diversificados

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interesses que certamente hão de justificar os esforços despendidos.Esses aspectos que quantificam cada metro quadrado da cidade, nasmais surpreendentes categorias, sublinham aquele aspecto percebidono início do século XX nas grandes cidades por Georg Simmel11, aodetectar a quantificação e o cálculo a predominarem e manifestarem-se como sintomas visíveis de um processo mais profundo a afetar avida mental dos habitantes da grande cidade do mundo moderno,pelo recurso de defesa contra a profusão de estímulos. Antes disso,as transformações ocorridas em Paris com a abertura dos boulevares,sob a direção de Haussmann, proporcionaram à vida na cidade ocontato visual entre desconhecidos, fazendo de cada transeunte umobjeto de curiosidade12. Releva a oportunidade da experiência deexposição das pessoas aos olhares uns dos outros, proporcionando àpresença física de cada um a expressão da visibilidade da distinçãosocial, caracterizando o sentido de público dessa porção do espaçourbano em que todos se tornam público uns dos outros em convivência,gratuita e interessada, entre as classes sociais distantes até entãodessa possibilidade. É possível que essas janelas que permitiam que asruas fossem observadas, ou então as grandes janelas que eram vitrinesonde as mercadorias estavam expostas e também os interiores dosrestaurantes que podiam ser vistos, vieram sendo expandidas para asoutras janelas, eletrônicas dessa vez, destinando prioritariamente asruas para endereço e circulação apenas.

Em suas representações gráficas, as ruas se expandem comofluxos em circuitos interligados e sem limites, em confronto com osanéis delimitados das superfícies definidas das quadras que seformam: dicotomia e confronto entre linha e superfície, reproduzindoa outra dicotomia entre espaço público e privado. É ainda toda essamalha dos traçados das ruas que confere unidade ao objeto cidade,aproximando e dando sentido às superfícies que contorna, enunciandoas usabilidades historicamente constituídas em cada lote. Essasdiferenças agrupadas foram percebidas e exaltadas por Ruskin nofinal do século XIX, referindo-se a elas através da seguinte imagem,atento à percepção sensível da cidade enquanto obra humana:

11 SIMMEL, Georg. Metrópole e Vida mental, in O fenômeno urbano, OtávioGuilherme Velho (org.). Rio de Janeiro: Zahar Editores.

12 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo:Companhia das Letras, p.144-150.

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... “a arquitetura se distingue particularmente da pinturapor ser uma arte de acumulação. Um quadro que se possui,é como a interpretação de peças de música com vozsolitária em sua própria casa. Mas a arquitetura seriacomo se se cantasse em um coro de muitas vozes”...Cúpulas sobre cúpulas, torres, cadeias de montanhashabitadas... “a mais sublime emoção que a arte produziuno coração dos homens. E a mais sublime: porque é umalei de Deus e da Natureza que vossos prazeres - comovossas virtudes - sejam enaltecidas pela ajuda recíproca”13.

Esses paralelos e confrontos entre as artes lembram-nos queos processos de produção e fruição também são diversos em cadauma delas. A valorização maior é conferida por Ruskin àquela que seoferece à apreensão sensível como resultante da “ajuda recíproca”,tendo a arquitetura como seu elemento constituinte, a cidade, aquifigurada como obra a manifestar-se como unidade de “um coro demuitas vozes”. A cidade, segundo a descrição desse autor, é muitosemelhante, e poderia ser considerada também aqui comorepresentação do processo manufatureiro, nessa imagem em que acidade se mostra como excelência de um produto realizado por muitos,parte por parte, para fruição de todos, diferentemente de outrosobjetos para consumo e uso privado produzidos por máquinas. Acidade, enquanto configuração sensível, poderia até mesmo abrigarmuitas imagens, e ser eventualmente vir a ser vista comorepresentação topológica da sociedade.

A descrição da imagem da rua memorizada por Eisenstein,que procura dar conta da heterogeneidade constituída pelosfragmentos singularizados em cada uma delas, oferece uma imagemconfusa e emaranhada que, entretanto, é considerada suficiente ecapaz de abarcar o que interessa à sua identificação. A descontinuidadeda imagem descrita traduz a sua conquista, que foi para ele aconstrução em seu imaginário da singularidade de um lugar, e entãoconfia na rememoração das edificações alinhadas, sabendo quepoderá encontrá-las num espaço determinado.

13 RUSKIN, John. Arte primitiva y Pintores Modernos. Buenos Aires: Liberariay Editorial “El Ateneo”, 1944, p. 249.

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O olhar que dá conta da simultaneidade dos objetos à suafrente garante à representação, através de desenhos, figuras oufotografia, um papel privilegiado que, abstraindo o tempo, realizaum corte na realidade vivida, dela oferecendo a possibilidade doexame atento. Imagem e representação acabam assumindo aqui omesmo sentido, e ambas referidas também ao mundo imaginário,como já havia indicado Paz. Na realidade o tempo não pára. Aspalavras, na temporalidade linear da língua, acabam por embaralhara transmissão do modo de olhar e descrever cada rua. Sabemos queEisenstein fala de algo que figura já agora em seu imaginário, masnão podemos compartilhar do seu olhar. Descreve edifícios alinhadosna rua, referindo-se a seus usos e também para um uso específico:o de proporcionar alguma identidade para a memória capaz de vincularum número a uma localização espacial. Os desenhos que situam asruas no plano horizontal, um mapa da cidade, por exemplo, possibilitama simultaneidade da representação das ruas que o olhar domina em umrelance. Esse tipo de representação do espaço foi difundido comolinguagem para a localização dos endereços na cidade, mas no mesmomovimento, ao homogeneizar ruas e espaços, presta-se também paraa atribuição de valores aos terrenos, referenciados a atributospredominantemente locacionais e abstraindo-se de outrasparticularidades significativas, um fenômeno que é também de imediatoobservado na realização do parcelamento do solo para comercialização,que a considera uma superfície plana disponível para recortes.

As fotos aéreas urbanas hoje acessadas pela internet exigemo exercício do reconhecimento das coisas como não são conhecidasvisualmente no cotidiano. Um mapa contém muitas informações,mas não necessariamente aquelas procuradas ou precisadas, masem compensação expõe ao olhar toda a diversidade da fragmentaçãodo solo, ressaltando a dicotomia entre áreas cobertas e descobertas.

O que se evidencia, em todas essas formas de trazer para arepresentação visual o fenômeno urbano, é que em todas elas seapresenta o abandono, ou o esquecimento voluntário de alguns dosaspectos que eventualmente seriam decisivos para algumasinterrogações. Há que se destacar também aspectos como o tempoe o espaço tridimensional, que não podem ser contidos porrepresentações bidimensionais. As operações que visam superar essaslimitações exigem, sem dúvida, outros aportes técnicos e

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instrumentais capazes de, por exemplo, apresentar relevos. Comtodos elencos de representações que objetivam aspectos da cidadeatravés de olhares e recursos diversificados, é possível retomar alição de Eisenstein e relembrar que o que interessa em última instânciaé essa aproximação que é realizada por meio das representações e queresulta em imagem. As representações, cada uma delas, sabemos, éempobrecedora. As imagens configuradas a partir dessas representaçõescontêm lacunas que se tornam depositárias de intenções e afetos, asquais são as contribuições pessoais de cada um à configuração dasimagens e exigiriam outros processos de comunicação, eventualmentepoéticos ou em outras linguagens.

Cada representação, cada desenho ou fotografia produzido eregistrado como meio para dispormos da cidade – sejam produzidostecnicamente ou com aportes de intenção poética, com visadashorizontais ou verticais, todas elas e mais a presença e percurso porqualquer cidade que não aquela, torna-se imagem sobre a qualtambém projetamos as vozes que habitam nossa memória e quetambém já nos relataram e descreveram outros cenários urbanos.Apesar de toda a imperfeição e incompletude que se possa reconhecerem cada modelo conhecido de representação da cidade, sabe-se queas muitas e fragmentadas e que fazem parte da trajetória de vidade cada um é que acabam constituindo o mapa da cidade que secarrega na cabeça e no coração, imagem intangível que aconteceentre o homem e mundo e que é, aqui no exemplo, a cidade.

Como delas falar e delas saber se não se oferecem ao olhar?

CONCEITOS CRÍTICOS PARA O CONHECIMENTO DACIDADE

O esforço empreendido por Eisenstein em diferenciar entrerepresentação e imagem é compreensível, porque de certa maneiraelas acabam por formar “um bloco na percepção de tal modo que setornam necessárias circunstâncias bem peculiares para separar doconceito de tempo a figura geométrica das agulhas” no caso dealguém que olha em um relógio, em exemplo que oferece citandouma passagem de Ana Karenina, de Leon Tolstói. “No terraço dosKarenina, Vronski olhou o relógio; estava de tal maneira perturbado

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e voltado para seus próprios pensamentos que via os ponteiros nomostrador, mas não podia perceber as horas”14. E então Eisensteinacrescenta: “A imagem do tempo que os ponteiros do relógiotraduziam não lhe produzia mais qualquer reflexo. Ele só via arepresentação geométrica dos ponteiros no mostrador.”

Os participantes de uma mesma cultura tendem, como seriade se esperar, a construir imagens assemelhadas em relação àsrepresentações com as quais se defrontam. Atribui-se, por isso, àrepresentação objetivamente construída, o sentido de imagem, istoé, algo que, embora constituído subjetivamente, com a contribuiçãoe participação do imaginário de cada um, considera-se comocoincidentes, representação e imagem formando um mesmo bloco.Dessa maneira objetiva-se um consenso que não é passível de sercontestado de imediato e que muitas vezes sequer existe. À medidaque esse consenso não se evidencie como tal, ou não se apresenteexteriorizado e materializado como realidade compartilhada paraque possa ser discutido ou contestado, passa a vigorar como evidência.Um círculo com mostradores: representa o tempo ou pode desencadearuma imagem do tempo?

É possível entender que a idéia implicada na imagem da cidade,para a contemporaneidade, consista-se de alguma nostalgia a queos termos urbe e polis podem remeter: política, democracia,urbanidade, ou “à nossa maneira de viver juntos – com os outros –na cidade”15. Para a produção das representações da cidade, hámuito por produzir e desvendar, além do conhecimento crítico dosque efetivamente informam aquelas que já são conhecidas. Hánecessidade de um trabalho pedestre e capaz de delinear com maiorconcretude, a partir do chão da cidade, representações das suasespecificidades que subsidiem o seu conhecimento enquantofenômeno espacial, possibilitando a visualização de seus conflitos,contradições e transformações no tempo como produto materialrealizado pelas relações humanas.

14 EISENSTEIN, Sergei. Op. cit. p. 77.15 DEUTSCHE, Rosalyn. Urbanismo sensato. Espaço & Debates. São Paulo: v.

25, nº 46, jan./jul. 2005, p. 11.

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BIBLIOGRAFIA

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. SãoPaulo: Companhia das Letras.DEUTSCHE, Rosalyn. Urbanismo sensato. Espaço & Debates. SãoPaulo: v. 25, nº 46, jan./jul. 2005.EISENSTEIN, Sergei. Reflexões de um cineasta. Rio de Janeiro:Zahar Editores, 1969.PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.RUSKIN, John. Arte primitiva y Pintores Modernos. Buenos Aires:Liberaria y Editorial “El Ateneo”, 1944.SIMMEL, Georg. Metrópole e Vida mental, in O fenômeno urbano,Otávio Guilherme Velho (org.). Rio de Janeiro: Zahar Editores.

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RESUMOO texto trata das questões do ensino da arte contemporânea,

por intermédio de orientações didáticas que inauguram novos modosde acesso a obras de arte originais no espaço das escolas e emtrânsito na cidade, em percursos que ligam a instituição cultural e auniversidade à sala de aula da escola pública com trabalho de mediaçãocultural e estratégias para formação de professores.

ABSTRACTThe text deals with the questions of the contemporary art,

through didactic orientations that initiate new ways of accessing theoriginal works of art in the school space and in the city passages, inroutes that connect the cultural institution and the university to theclassroom of the public school with cultural mediation work andstrategies for teacher education.

Em 2002, iniciamos o trabalho de coordenação do setor educativodo Centro Universitário Maria Antonia da Universidade de São Paulo(CEUMA), órgão da Pró-reitoria de Cultura e Extensão da USP, a convitedo professor Lorenzo Mammì, então diretor daquele centro.

A partir de então, o setor educativo orientou suas ações paraa formação de professores de arte, nas diferentes linguagens, commaior ênfase em artes visuais e arte contemporânea.

Atuamos tanto na capital quanto na periferia da cidade deSão Paulo, com base no princípio de que a identidade cultural dosprofessores dessas regiões demanda ações educativas e culturaisque promovam o interesse pela inclusão do ensino da arte na sala de

1 Profa. Dra. da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e diretorado Centro Universitário Maria Antonia USP.

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aula. Assim, incentiva-se e expande-se o gosto dos alunos peloaprendizado da arte.

Nossa experiência em cursos de formação inicial e continuadade professores em arte das redes pública e privada, em São Paulo eoutros estados do país, levaram-nos a concluir que a articulaçãoentre o que se ensina na escola e a produção de cultura local, regional,nacional e universal de arte, além de ser parte das didáticasatualizadas do ensino da arte, deve ser mobilizada pelas instituiçõesculturais que fazem interface educativa com as escolas.

Sendo assim, criamos dois projetos que percorrem a cidadede São Paulo e chegam até o interior, para levar obras de arteoriginais a alunos de escolas cujos professores, em função dasdistâncias ou da dificuldade para obter transporte para todos osalunos, não conseguem levar os estudantes a mostras de obras dearte da produção contemporânea.

A arte contemporânea não costuma ser estudada na maioriadas escolas porque seus conteúdos são estranhos aos professoresque, como a maioria das pessoas, perguntam em face da produçãocontemporânea: será que isto é arte?

Portanto, estudar essas obras na sala de aula é uma proposta querequer encaminhamentos específicos para lidar com a distância dos professoresem relação a elas, sobretudo em relação à dificuldade de deslocamento nacidade de São Paulo para visitar museus e exposições com seus alunos.

A proposta na área de Arte que se lê nos documentos dosParâmetros Curriculares Nacionais de Ensino Fundamental, dos anos1990,2 tem como ponto de partida o conjunto de princípios que regema aprendizagem na área de conhecimento, em torno dos quais sedefiniram os eixos de aprendizagem significativa. Estes, por suavez, devem ser articulados entre si, associados a conteúdos(conceituais, procedimentais e atitudinais) e temas sociais daatualidade (ética; meio ambiente; orientação sexual; pluralidadecultural; saúde e trabalho e consumo) escolhidos e planejados pelasequipes de cada escola, com autonomia, tendo em vista que essesdocumentos não têm caráter obrigatório nem prescritivo.

Conceituou-se com precisão nos documentos o significado decada eixo de aprendizagem significativa para garantir que o

2 A autora fez parte do grupo que elaborou essa seção dos PCNs.

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desenvolvimento do percurso de criação de cada estudante não ficassesubmisso às poéticas deste ou daquele artista. Ao contrário, pretende-se que o aluno informado por poéticas provenientes de diversasculturas, pudesse alimentar-se e gerar os próprios trabalhos, incluindoa força de sua identidade artística e estética, agindo do mesmomodo para atribuir e extrair significados da produção social de artedos diversos tempos e lugares.

FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE ARTE

A formação de professores de arte precisa se organizar nasmesmas bases epistemológicas e didáticas que se quer efetivadas nasala de aula. Assim sendo, um projeto que parte da instituição culturalpara a escola não pode prescindir do conjunto de princípios,formulados nos PCNs Arte, que regem a aprendizagem na área. Anosso ver, a proposta de ações do projeto, os materiais de apoiodidático confeccionados, as interações com alunos e professores e aavaliação dos resultados na sala de aula precisam compor um todocoerente, que se soma e colabora com as ações em curso nas escolas.

Os projetos são ações pontuais, portanto, não têm comoobjetivo esgotar a pauta de formação continuada de professores dearte, mas, enquanto intervenções, podem ter efeito mobilizador dodesejo pela formação continuada.

Assim, um professor se alimenta por meio destes projetos epode ganhar autonomia se eles forem planejados com este objetivo.Um projeto pode despertar a atenção para temas importantes daatualidade a serem trabalhados na sala de aula, ainda mais quando seorigina de uma instituição cultural, espaço onde convivem artistas,críticos, curadores, arte educadores entre outros profissionais da arte.

SOBRE OS PROJETOS DE FORMAÇÃO

Agora, discorreremos sobre dois projetos de formação querelacionam arte e cidade de modos distintos, mas que guardammuitos aspectos semelhantes. O primeiro, Lá Vai Maria, reúne objetosde arte contemporânea, montados em um “display”, realizados por

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vários artistas da cidade de São Paulo. O segundo, Arte Passageira,ônibus–obra, que circula da universidade para as escolas públicas eeventos culturais em São Paulo, com intervenção da artista plásticaCarmela Gross. Ela transformou o ônibus em uma espécie de grandepedaço de CARNE e assim nomeou seu trabalho.

Esses dois projetos têm em comum:♦ levar obras de arte originais a espaços onde se encontra opúblico de alunos3 ou de moradores da cidade que freqüentammostras promovidas ou apoiadas pela Universidade de São Paulo;♦ oferecer material de apoio didático para que os professorespossam dar continuidade às ações do projeto em sala de aula;♦ realizar encontro técnico para planejar as estratégias dasações com os professores e coordenadores da rede púbica,antes de eles receberem a visita destes projetos em suas escolas;♦ avaliar as ações junto aos alunos e professoresparticipantes;♦ realizar visita orientada por arte-educadores nos espaçosonde os projetos são concretizados;♦ levar a arte contemporânea por meio de obras originaispara distintos públicos, priorizando a escola pública;♦ incentivar o estudo da arte contemporânea nas escolas;♦ documentar, pesquisar e avaliar as ações;♦ envolver alunos da Faculdade de Educação da USP empesquisa e estágio supervisionado nas visitas às escolas públicasda cidade de São Paulo.

Levar a obra original para a sala de aula para que o aluno possater contato direto com a arte contemporânea brasileira é um aspectocentral desses projetos. Assim, o aluno e o professor, ao receberemobras de arte originais dentro do espaço da sala de aula, são capazesde se aproximarem de seus conteúdos, ou seja, de desconstruírem aidéia e a visão de que é difícil compreender a arte contemporânea.

Essa experiência, além disso, visa a garantir o acesso a obrasoriginais aos que não moram perto dos centros expositores e têmdificuldade de transporte.

3 O projeto Lá Vai Maria é voltado para estudantes do ensino fundamental atéa universidade, e o Arte Passageira foi trabalhado também com o segmentode educação infantil.

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Para o aluno, que está na escola, arte é objeto de direito. Achegada do “display” (a mala com as obras) é envolvida em umclima de expectativa e festa, pois, por um lado, trata-se de umevento incomum e, por outro, guarda a característica de umaatividade escolar, por ser realizada em sala de aula. Cria-se dessaforma, com mais eficácia, a possibilidade de gerar o hábito defreqüentação a espaços culturais.

Quando entramos com o “display” em sala de aula, tudo éfeito para que os alunos interajam, e isso realmente acontece. Esteé o principal ponto de reorientação de idéias, ou seja, não se trataapenas de propiciar o contato com as obras, mas também de tornara leitura dessas obras possível, viável e próxima, como algo simples,e não como um bicho de sete cabeças.

O acesso a essas obras na sala de aula valoriza a escola comolugar de estudo da arte contemporânea, além de consagrar o direitode o aluno e o professor da escola pública terem esse contato atravésde formas de mediação que avalizam suas interpretações, as quais têmcom base suas experiências anteriores em arte e autoria nas leituras.

O projeto cria nova mobilidade entre espaços expositivos eformativos da cidade, onde muitos professores e alunos têm demuitas dificuldades para se deslocarem da periferia ao centro parairem a exposições de arte. Numa geografia afeita à inclusão, esseprojeto inverte esta ordem e vai do centro à periferia, deslocandoas obras de seu sítio original para mostrá-las em outros locais.

Nesse sentido, o projeto desperta o gosto pela freqüentação,por incluir os participantes no universo da produção artística. Os “displays”são portadores móveis de obras, criados por dois professores daFaculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, Antonio CarlosBarossi e Helena Ayoub Silva, para que os objetos de arte pudessematravessar a cidade, transportadas em porta-malas de qualquer carro.

Ao visitarmos diversas escolas públicas pelo país, veio-nosessa idéia. Trabalhando com formação de professores de arte,observamos que havia o desejo de se levar os alunos a exposições dearte, mas não existiam meios ou recursos para isso. O projetocomeçou a ser desenvolvido em maio de 2002 e as visitas começaramem agosto, orientadas por arte-educadoras com experiência no tratocom o público escolar e geral. Cada visita dura cerca de três horas,quando são apresentados: tiras de HQ de Laerte, poesia visual deArnaldo Antunes e João Bandeira, fotos de Gal Oppido, esculturas de

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Laura Vinci e Alex Cerveny, pinturas de Sergio Sister e gravura deNuno Ramos, perfazendo um total de nove trabalhos. Além das obrasexpostas nas superfícies brancas do “display”, as duas pequenasesculturas que são manuseadas e tatilizadas pelos alunos, ampliandoo processo de interação e apresentação da arte contemporânea.

Os artistas escolhidos são representativos das poéticas geradas nacidade de São Paulo e a seleção teve orientação curatorial de Lorenzo Mammì.Na interlocução entre o educativo e a curadoria, priorizamos a diversidadede linguagens entre as obras para ensinar sobre a diversidade de meios esuportes nas formas artísticas e selecionamos alguns temas afeitos à culturajovem, já que o projeto é orientado aos alunos do Ensino Médio e tambéma algumas classes de jovens e adultos (segmento de EJA).

O professor recebe um material de apoio didático com umfolhetim sobre cada artista da mala, para apoiá-lo nas aulas seguintes,caso deseje dar continuidade à visita. O objetivo deste material épromover a liberdade criativa do educador, fornecendo as bases paradiscussões futuras, para a construção do conhecimento em arte.Nele estão contidas informações sobre arte contemporânea, textosobre os artistas, orientações para discussão e reflexão com osestudantes, orientações para leitura de imagem (transparência emacetado com as obras contidas em encarte anexo), orientações paraoficinas práticas e um glossário que atende a todos os folhetins.

O material de apoio é redigido mediante pesquisa e entrevista comos artistas e estão abertos às suas intervenções. Fornecemos oito folhetinsde artistas com obras de linguagens diferentes, a fim de expandir o universodos professores na construção de projetos de trabalho em arte com seleçãode conteúdos, ações interdisciplinares e inclusão dos temas transversais.

Com material na mão, passamos a contextualizar o artista esua obra usando o viés biográfico apenas no que ele tem decorrespondência com a poética do autor. A biografia, portanto, nãoé usada como fato anedótico, história de vida, ou como meracuriosidade, o que desviaria o foco do estudo do objeto artístico,principal objetivo do material de apoio didático. As obras sãoestudadas, sim, em conexões com outras do próprio artista e dahistória da arte, modo por meio do qual é possível interpretar ecompreender um trabalho artístico. Assim, propõem-se reflexão ediscussão dos professores junto aos estudantes para promover aconstrução de idéias próprias sobre arte, informadas sempre porfontes teóricas e referenciais de qualidade.

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A sugestão de oficinas práticas tem como objetivo aassimilação dos conteúdos em jogo, descritos em cada folhetim,sem pretender substituir as oficinas de percurso de criação pessoal.Estas oficinas orientadas à aprendizagem de conteúdos específicospor meio do fazer ampliam, a nosso ver, as possibilidades criativasdos estudantes em outros momentos, ou seja, nas oficinas nas quaisfazem arte, escolhendo temas e técnicas para se expressarem econstruírem seus trabalhos em arte. Tudo isso com marca pessoal,cultivando o próprio repertório por intermédio das propostas dosfolhetins, incorporando competências e habilidades.

Propostas de avaliação para o professor, um glossário com verbetesdo universo da arte e uma bibliografia que inclui sites para os professorese transparências em acetato das imagens dos artistas estudados forampensados para otimizar o uso do material de apoio didático.

Entre os materiais incluídos, estão a foto do rapper Sabotagena Galeria do Rock, de Gal Oppido, assim como a inclusão da poesiada Arnaldo Antunes e das tiras de Laerte. Essas obras visam a colocara arte contemporânea em conexão direta com o cotidiano dos alunos,ressaltando temas ligados ao protagonismo juvenil, como a luta pelodireito à cultura jovem e à ética.

A foto de Sabotage, rapper assassinado, costuma ser reconhecidapela maioria dos estudantes jovens. Esta imagem de Gal Oppido é, aomesmo tempo, representante da estética contemporânea, marca denosso tempo e da realidade da cidade de São Paulo. O trabalho vinculaa vida cotidiana, muitas vezes cheia de percalços nas periferias dacidade, às imagens da arte, que, assim, ao invés de serem poucoacessíveis aos não iniciados, chegam de forma fácil.

ARTE PASSAGEIRA

Outro projeto pensado na mesma perspectiva de travessia dacidade do centro às periferias, da instituição cultural às escolas, sai dagaragem da prefeitura da USP Oeste para as escolas públicas da cidadede São Paulo. Trata-se do Projeto Arte Passageira, intervenção artísticaem ônibus da Universidade de São Paulo que terá outras edições.

A primeira versão foi criada por Carmela Gross, quetransformou o circular em um grande pedaço de carne por fora epor dentro, efeito obtido com insufilme nos vidros e adesivagem em

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todas suas superfícies em diversos tons de vermelho. Para o CARNE,como o iluminado letreiro o anuncia, foi feito um material de apoiodidático interdisciplinar de arte, história e geografia para serdistribuído aos professores.4

CARNE, além de deslocar o espaço expositivo do centro àperiferia, ou da Zona Oeste da cidade às periferias, atendeprincipalmente as escolas públicas da Zona Leste. Feito em parceriacom a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão, prefeitura do Campus Oestee Nasce usp/leste, CARNE visa primordialmente a atender os alunoscom menos oportunidades de educação em arte e arte contemporânea.

O ônibus corta a cidade e já é apreciado no percurso àsescolas, causa estranhamento, não passa despercebido. A obra, feitapara circular ou estacionar e ser visitada, em espaço aberto, semponto fixo na cidade remete-nos às categorias de obra itinerante,mostra em movimento, intervenção que atravessa a cidade e dinamizao conceito de arte contemporânea ao ativar sua presença na escola.

O ônibus feito obra deixa de ser ônibus, não serve paratransporte, mas transporta arte-educadoras que atendem seus públicos.

PESQUISA

No projeto Lá Vai Maria, alunos do curso de pedagogia daFaculdade de Educação da USP realizaram estágio supervisionado nasescolas, acompanhando os arte-educadores do Maria Antônia. Istoaconteceu depois de terem estudado os folhetins dos artistas do projetoe dado aulas sobre eles para seus pares durante o curso, na disciplinabásica da graduação por nós ministrada: Arte e Educação do Movimento.

Este processo de formação do pedagogo para ensinar a daraula de arte, inclui estágios supervisionados nas escolas do projetoLá Vai Maria e colabora sobremaneira ao incentivo do ensino de artecontemporânea nas escolas desde a formação inicial.

Assim, o aluno da universidade desloca-se pela cidade paraconhecer a realidade das escolas públicas e novas formas do ensinode arte, no recorte contemporaneidade.

O estudo prévio dos folhetins faz os estudantes de pedagogiafamiliarizarem-se com o projeto. Eles ministram e assistem aulas

4 São autoras: Ernesta Zamboni, Sonia M. V. Castellar e Rosa Iavelberg.

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sobre os folhetins, para depois, na escola, observar o arte-educadordo Maria Antônia, orientando leituras, ministrando oficinas de práticasartísticas, trabalhando informações e temas já estudados por eles.

Como complemento a essa experiência formativa – no brevetempo didático que dispomos na graduação, pois a carga didática dadisciplina básica do curso de Pedagogia, Arte, divide a carga didáticacom Educação do Movimento, ministrada pelo professor Marcos Neira–, buscamos agilizar estratégias de impacto que dinamizem aaprendizagem por meio de projetos mobilizadores que viabilizam ocontato com arte contemporânea e objetos de arte originais e promovemo ingresso do jovem professor em formação no universo da arte. Projetosque envolvem poéticas contemporâneas que tocam o jovem professorpor meio da identidade, proximidade e desejo de atualização.

Puderam se inscrever no estágio vinte alunos da disciplinaArte e Educação do Movimento, do 1o semestre de 2005 da Faculdadede Educação da USP, por adesão e por ordem de procura, queacompanharam duas visitas às escolas junto com os arte-educadoresdo CEUMA. Estes alunos responderam a um questionário,5 cujasquestões visavam à reflexão sobre os diferentes conteúdos envolvidosna situação de aprendizagem do estágio. Destacamos abaixo algumasperguntas para realizar a tabulação em dois âmbitos: aprendizagemsobre arte e sobre dar aula de arte. Tais âmbitos da formação doarte-educador foram enunciados por Ferraz & Fusari (1992). Osresultados dentro destes âmbitos foram classificados nos recortesFormação educacional (fe), cultural (fc) e gerencial (fg) do professorcriadas por nós (Iavelberg, 2003) para o professor de arte a partirde conceitos sugeridos por Antonio Nóvoa (1997).

Como o estágio influenciará em sua prática pedagógica?

♦ contribuirá para pensar sobre a qualidade das perguntasdirecionadas aos alunos 7,1% (aprendizagem sobre dar aulade arte) fe;♦ possibilita verificar como poderei articular na prática ateoria vista na faculdade em uma sala de aula 7,1%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;

5 O questionário foi ordenado e aplicado com minha supervisão pela mestrandaElizabeth Camargo e posteriormente interpretado e tabulado por mim.

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♦ terei mais coragem de trabalhar com os alunos sobre arte7,1% (aprendizagem sobre arte) fc;♦ usarei um olhar mais atento às diferentes linguagensartísticas visando a um trabalho interdisciplinar 7,1%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fc e fe;♦ possibilita ter menos preconceito em relação às váriaslinguagens que nos cercam 7,1% (aprendizagem sobre arte) fc;♦ pude perceber a importância que a arte tem para asociedade, 7,1% (aprendizagem sobre arte) fc;♦ contribuirá para uma atenção na forma como os conteúdossão mediados 14,3% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ contribuirá para refletir sobre práticas pedagógicas emarte, 14,3% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ contribuirá para a maneira de abordar a linguagem estudadae a postura durante a aula 28,8% (aprendizagem sobre daraula de arte) fe e fc.

Aprendizagem sobre arte 21,3%Aprendizagem sobre dar aula de arte 78,7%

O resultado aponta que os alunos compreendem o estágio,neste contexto específico de formação, primordialmente comopropiciador de competências para dar aulas.

O que mais chamou sua atenção na visita?

♦ a rapidez com que os jovens puderam entender uma novalinguagem, 7,1% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ o fato da maioria dos alunos não ter tido aula de arteseste ano, 7,1% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ o desinteresse dos alunos, ao mesmo tempo sua curiosidadepelas oficinas, 7,1% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ a relação positiva entre a arte-educadora e os alunos,14,3% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ o pouco conhecimento dos alunos, sobre conceito de artes,14,3% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe e fc;♦ o interesse dos alunos por uma aula diferente, 21,4%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;

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♦ o interesse dos alunos pelas obras apresentadas, 28,8%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fc.

Aprendizagem sobre dar aula de arte 100%

Na visita concentraram-se na observação da situação didáticae não se referiram aos conteúdos específicos das obras ou da arte.

Como a abordagem e o desenvolvimento da visita contribuírampara sua formação pedagógica?

♦ estimulou a mostrar coisas novas para os alunos, 7,1%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fe e fc;♦ percebi a importância de ensinar arte de forma progressiva,7,1% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe e fc;♦ pelo fato de ver como ocorre uma oficina de artes comuma arte-educadora, 7,1% (aprendizagem sobre dar aula dearte) fe;♦ perceber que o diálogo com os alunos numa apresentaçãode uma atividade é essencial, 7,1% (aprendizagem sobre daraula de arte) fe;♦ percebi que podemos trabalhar com mais linguagens quenão somente a escrita em sala de aula, 7,1% (aprendizagemsobre dar aula de arte) fe e fc;♦ foi a desmistificação de que trabalhar arte com tema paraadolescentes de baixa renda seria complicado,7,1%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fe e fc;♦ percebi a importância para os alunos de trabalhosdiferenciados, dentro de seu próprio ambiente,7,1%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ para ser bom professor é necessário ter domínio desteconteúdo e ser bem preparado, 21,4% (aprendizagem sobredar aula de arte) fe e fc;♦ possibilitou verificar de que forma eu poderia trabalharcom esses conceitos em sala de aula (aprendizagem sobredar aula de arte) e (aprendizagem sobre arte) 29% fe e fc.

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Aprendizagem sobre dar aula dearte e aprendizagem sobre arte 29%

Aprendizagem sobre dar aula de arte 71%

Importância da arte na formação e na transformação da sociedade

♦ observou novas formas de analisar e comparar as linguagensartísticas, 7,1% (aprendizagem sobre arte) fc e fe;♦ conheceu um vocabulário específico, novos conceitos notrabalho artístico, 7,1% (aprendizagem sobre arte) fc;♦ mudou a visão de arte contemporânea, 7,1%(aprendizagemsobre arte) fc;♦ percebeu que os alunos não consideram a fotografia umaexpressão artística 7,1% (aprendizagem sobre dar aula dearte) fc e fe;♦ não mudou o conceito que tinha 14,3% (aprendizagemsobre arte);♦ descobriu que existem várias formas de expressar arte: visual,literatura, plástica, 50% (aprendizagem sobre arte) fc.

Aprendizagem sobre arte 92,9%Aprendizagem sobre dar aula e arte 7,1%

A partir da visita, que possibilidade educacionais você pôdedeslumbrar? Explique.

♦ montar exposições esporádicas, 7,1% (aprendizagem sobredar aula de arte) fg e fe;♦ oferecer espaços da cidade para serem visitados pelosalunos, 7,1%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fg e fe;♦ percebeu como é importante oferecer oportunidades paraos alunos se expressarem, 7,1% (aprendizagem sobre dar aulade arte) fe;♦ realizar visitas a museus de arte contemporânea, seguido de umavisita na escola, 7,1% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ levar arte-educação para a sala de aula, 7,1% (aprendizagemsobre dar aula de arte) fe;

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♦ criar nas escolas um núcleo permanente de arte-educação,7,1% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fg;♦ criar projeto interdisciplinar com arte e educação domovimento, 14,2% (aprendizagem sobre dar aula de arte) fge fe;♦ aprender outras formas de ensinar arte aos alunos, 14,4%(aprendizagem sobre dar aula de arte) fe;♦ propor mais momentos de produção e fazer uma exposiçãodos trabalhos para apreciá-los, 14,4% (aprendizagem sobredar aula de arte) fe e fg;♦ não respondeu, 14,4%.

Aprendizagem sobre dar aula de arte 85.6%Não respondeu 14,4%

CONCLUSÕES

Entre os que responderam realizamos a tabulação nos recortesEducacional, cultural e gerencial.

Formação educacional 42,5%Formação cultural 17,5%Formação cultural e educacional 27,5%Formação gerencial e educacional 10,0%Formação gerencial 2,5%

Entre os que responderam realizamos a tabulação nos recortesaprendizagem sobre arte, aprendizagem sobre dar aula de arte e,ainda, aprendizagem sobre dar aula de arte e sobre arte.

Aprendizagem sobre arte 23,5%Aprendizagem sobre dar aula de arte 70,5%Aprendizagem sobre arte e sobre daraula de arte 6,0%

Os alunos da pedagogia trabalharam com os folhetins doMaterial de Apoio Didático do projeto Lá Vai Maria, disponível na

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biblioteca da Faculdade de Educação da USP, cujas informaçõesretratam o caminho de cada artista produzido por historiador, curadorou crítico de arte e a transposição didática realizada por arte-educadores experientes.

Outro aspecto importante da experiência formativaapresentada é a associação entre a simulação de aula, vivida comoprática didática, aula ministrada, por todos os participantes aospares, ministrada em subgrupos, com base em um folhetim de artistaescolhido e na vivência como aluno destas aulas. Ao todo estudaramseis folhetins depois que apresentamos a proposta na primeira aula.

Como recurso didático, orientamos o uso das tecnologias decomunicação e informação (TIC) como forma de integração derecursos tecnológicos contemporâneos na didática da arte.

O vínculo entre sala de aula e as práticas sociais da arte estácontemplado tanto na leitura dos folhetins como na ida à escola comum profissional de instituição cultural que trabalha com obras originais.

Nas porcentagens indicadoras dos tipos de aprendizagem eâmbitos da formação alcançados, observamos que a aprendizagemsobre dar aulas de arte teve maior evidência, alcançando 70,5% e aindamais 6,0% em combinação com aprendizagem sobre arte, perfazendo76,5% dos indicadores de aprendizagem. A formação em relação àaprendizagem sobre arte foi mencionada por 23,5% dos participantes.

No que se refere aos âmbitos de formação, os resultadosseguem coerentes na relação com os dados sobre aprendizagemencontrados. Entre os professores, 42,5% afirmaram que a experiênciacolaborou em sua formação educacional que, associada ao âmbitogerencial, se traduz em 10% e ao cultural, em 27,5%, alcançando80% dos indicadores formativos, que se relacionam de forma diretacom os 76,5% dos indicadores de aprendizagem sobre saber daraula. O que traduz a eficácia da didática formativa criada para ocontexto educacional deste curso de Pedagogia na formação inicial.

Na formação cultural os indicadores são menos expressivos,alcançando 17% e 27,5%, associados à formação educacional. Isto seexplica pela formação anterior da maioria destes alunos, que nãoconhecem história da arte, não têm hábito de freqüentar instituiçõesculturais e são particularmente distantes, como a maioria das pessoas,da arte contemporânea. Outro aspecto da formação é o gerencial,que expressa apenas 2,5% ou 10,0% associado ao âmbito educacional,completando 12,5% entre os indicadores. Isto se deve à não abertura

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da experiência para os alunos ministrarem aulas reais e ao fato de apesquisa para dar aulas na situação de simulação estar a meio caminhoentre as fontes bibliográficas de arte e um material didático pronto,porque o material de apoio didático é aberto à leitura e à recriação.

A gestão efetiva para dar aulas de arte ocorre no cotidiano doprofessor quando ele tem que lidar com as questões de gestão da escola.No caso da simulação, tais aspectos estavam facilitados pela proposta.

A experiência nos leva a concluir que a criação didática doformador em arte dos alunos de pedagogia é a alternativa viávelpara solucionar o contexto da formação inicial em face da reduzidacarga didática disponível, da pequena formação anterior em arteentre os alunos da pedagogia no que se refere aos aspectos aquidestacados: aprendizagem para saber dar aulas de arte e sobre artee, também, formação educacional, gerencial e cultural destes alunos.

A associação entre simulação de aula no curso de pedagogia eestágio supervisionado na escola pública, a partir da observação deprofissionais habilitados ministrando aulas de arte – com concentraçãoda carga didática em 24,5 aula e 20 horas de estágio –, resulta emaprendizagens importantes aos alunos da formação inicial, devido àseleção das atividades que ordenaram a experiência como um todo.

BIBLIOGRAFIA

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ALPHAVILLE E TAMBORÉ: CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICASMEDIEVAIS NA APROPRIAÇÃO DE TERRAS PARACONDOMÍNIO DE ALTO PADRÃO

Regina Célia Bega dos Santos1

A passagem dos séculos representa uma promoção para ascidades européias; para as americanas, a simples passagemdos anos é uma degradação (...) são construídas parapoderem renovar-se com a mesma velocidade com que foramerguidas, isto é mal (...) Não são cidades novas contrastandocom cidades antigas, mas sim cidades com um ciclo evolutivomuito rápido comparadas com cidades de ciclo lento. Certascidades da Europa adormecem suavemente na morte; as doNovo Mundo vivem febrilmente uma doença crônica:eternamente jovens, nunca são, todavia saudáveis. (Lévi-Strauss, apud Frúgoli Jr.)2

Examinada em globo, São Paulo é uma cidade modernacom os defeitos e qualidades enherentes ãs cidades que sedesenvolvem muito rapidamente. Desigualdades nasedificações e nos arruamentos, (...) irregularidades nasconstruções realizads em plano premeditado, largassuperfícies habitadas sem os indispensáveis melhoramentosreclamados pela hygiene, grandes espaços desocupados oumuito irregularmente utilizados, e a par de tudo isso umapopulação que triplicou em dez annos, grande movimento.Muito commércio, extraordinária valorização do solo e dasedificações... (Relatório da Comissão de Saneamento dasVárzeas de São Paulo, 1890-91, Biblioteca Municipal de SãoPaulo, 7 de novembro de 1891. pp 1-2.)

1 Profa. Dra. aposentada do Departamento de Geografia do IG, UNICAMP.2 FRÚGOLI JÚNIOR, Heitor. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e

negociações na metrópole. São Paulo: Cortez: EDUSP, 2000, p. 198.

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REGINA CÉLIA BEGA DOS SANTOS

O recurso à pesquisa histórica contribui para esclarecerimportantes questões relacionadas ao desenvolvimento das cidades.Neste caso específico, serviu para demonstrar como o direito àmoradia se tornou um privilégio usufruído por poucos.

As articulações entre os detentores de poder público edo capital imobiliário imprimem determinadas tendências naestruturação do espaço urbano. Histor icamente, estasarticulações ocorreram com a ampliação da ação do Estado noauxílio às oligarquias financeiras, ocupantes, por sua vez, depostos chaves do sistema estatal. As relações entre a elitepaulista, os empresários do setor imobiliário e o poder público,no transcurso da história da ocupação da cidade, definiram ascaracterísticas do mercado imobiliário quanto à quantidade eà qualidade de terras e de moradias disponíveis para acomerc ia l i zação, bem como, a forma como estacomercialização se realizava.

As possibilidades de manutenção do monopólio da terra talcomo definido historicamente, através da ação política dos gruposhegemônicos, relacionam-se com a forma como a sociedade seorganiza e atua politicamente. A forma de acesso à terra e àmoradia e a definição de qual ou quais parcelas da populaçãoteve e continua tendo  acesso ao mercado imobiliário foramdefinidos pelos interesses político-econômicos dos gruposhegemônicos que têm se mantido no poder.

A pesquisa histórica de como o capital imobiliário se beneficioudas possibilidades dadas pelo poder público para se apropriar, parcelare valorizar as terras urbanas permitiu explicar alguns aspectos daexpansão metropolitana e da segregação sócio-espacial.Reconstituímos a história da posse das terras que deram origem aosloteamentos pesquisados, partindo da hipótese de que esta históriase relacionava com as possibilidades restritivas socialmente falandode acesso à terra urbana.

O processo de expansão urbana, com o surgimento de novosloteamentos, se deu com a anexação de terras de uso agrícola,nas “franjas” da área metropolitana. Novos usos foram definidosou redefinidos para estes lugares, em função da nova dinâmicaimposta pelo mercado imobiliário, que também atua para averticalização da metrópole, que cresce e muda numa velocidade

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surpreendente, a velocidade das cidades do novo Mundo, comoressaltado por Lévi-Strauss.

Alphaville e Tamboré (localizados nos municípios deBarueri e Santana do Parnaíba, na Região Metropolitana deSão Paulo) são loteamentos de alto-padrão, em condomíniosfechados, instalados parcialmente em terras da União elocalizados a partir do km 21 da Rodovia Castello Branco, noeixo oeste da expansão metropolitana. Alphaville, da décadade 70, é formada por 13 condomín ios , chamados de“residenciais” e numerados de 0 a 12, além do AlphavilleEnpresar ial. Tamboré, que permaneceu com os ant igosdonatários, representados hoje pela família Álvares Penteado,seguindo o sucesso do empreendimento anterior, desde 1982tem colocado novos residenciais à venda. Os residenciais de 0a 4 de Alphaville e os 7 condomínios de Tamboré‚ além do seuCentro Empresarial, pagam aforamento à União. A vitalidadedesta área para o capital imobiliário parece inesgotável.Inúmeros novos empreendimentos, tanto empresariais comoresidenciais, continuam a surgir junto à Alphaville e Tamboréou no seu entorno. Atualmente são 17 residênciais queprocuraram se espelhar no conceito das edge-cities norte-americanas (cidade contorno), uma transformação no estilode morar e viver; onde trabalho, entretenimento, lazer esegurança coexistem no mesmo local, como se verifica nasinformações constantes do site da Tamboré S.A.

O que singulariza estes empreendimentos imobiliários é o fatode estarem localizados em terras da União. Faziam parte de umasesmaria destinada à Aldeia de Barueri, inicialmente sob aadministração da Companhia de Jesus, para abrigar e catequizar osíndios apresados pelo bandeirantismo, no final do século VXI e iníciodo XVII. Parte destas terras foi aforada, ainda no século XVII, a umadas famílias fundadoras de Parnaíba (estas terras foram concedidaspara as filhas de Suzana Dias, neta do Cacique Tibiriçá3 ). Constituem-

3 O índio Tibiriçá casou muitas de suas filhas com cidadãos portugueses. Umadelas, Bartira ou Isabel casou-se com João Ramalho e uma outra, Beatrizcom Lopo Dias. Suzana Dias, filha de Beatriz, fixou residência em Parnaíbadesde praticamente o início do povoado.

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se, assim, em um dos raros casos de enfiteuse4 em territóriobrasileiro. Em uma outra parte foi instalado o sítio ou FazendaTamboré, concedido pela Câmara de São Paulo em aforamento aparticulares, também descendentes de Suzana Dias, por se tratar deterras dos índios de Barueri.5

A situação jurídica destas terras alertou-nos para a suapeculiaridade. Por que e como continuaram, ao longo de todos estesséculos, como patrimônio da União? O que as diferenciam dos outrosloteamentos urbanos que também se originaram do parcelamento

4 De acordo com o artigo 1º, inciso h) do Decreto Lei nº 9.760 de 5 de setembrode 1946, incluem-se entre os bens imóveis da União, os terrenos dos antigosaldeamentos de índios e das colônias militares que não tenham passado,legalmente, para o domínio dos Estados, Municípios ou particulares. Peloartigo 64 desse mesmo Decreto-lei, os bens da União não utilizados emserviço público poderão, qualquer que seja a sua natureza ser alugados,aforados ou cedidos. O parágrafo 2º estabelece que o aforamento se daráquando existir a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e de manter-se o vínculo da propriedade pública; ficando sujeitos ao foro de 0,6% dovalor do respectivo domínio pleno, que será anualmente atualizado (art.101). O parágrafo 2o. do art. 103 versa sobre a remissão do foro, que seráfacultada, a critério do Presidente da República e por proposta do Ministroda Fazenda, nas zonas onde não mais subsistam os motivos determinantesda aplicação do regime enfitêutico. in, Código Civil brasileiro, organizadopor Juarez de Oliveira, edição atualizada até 15/12/1991, SP, Saraiva, 42ªedição, 1992. A enfiteuse, de acordo com o direito romano ocorre quando apropriedade pertence a outrem (a União - no caso presente); o enfiteutaexerce o poder de fato, detém a coisa, mas não a possui. Ocorre quando oproprietário por contrato ou disposição de última vontade, atribui a outrem(o enfiteuta) o domínio útil de um imóvel mediante o pagamento de umapensão anual chamada foro. No Brasil, quando a União é a proprietária dasterras ela pode outorgá-las a outrem com a cobrança do foro. O enfiteutapassa o domínio útil de 83% da área por hereditariedade, ou por venda, orestante continua sendo da União. O foro deve ser pago anualmente,correspondendo a 0,6% sobre o chão (domínio pleno). No caso de venda dodomínio útil, a União cobra o laudêmio: 0,05 do valor da transação que éfeita da seguinte forma: o transmitente vende apenas o domínio útil doimóvel com a concordância do titular do domínio pleno (ou direto), nestecaso a União, ficando o adquirente como foreiro, com a obrigação de pagaro foro anualmente e o laudêmio, somente quando transferir o domínio útil.

5 Ainda hoje é esta família que atua no mercado imobiliário, loteando evendendo unidades residenciais em Tamboré.

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de sesmarias e foram aforados, mas puderam ser transacionadoslivremente no mercado de terras? Como uma aldeia indígena, umasesmaria seiscentista transformou-se em um empreendimentoimobiliário altamente lucrativo, mantendo a relação jurídica originalquanto à posse da terra?

Os aldeamentos indígenas tiveram um importante papel noprocesso de colonização e de conquistas de terras no Brasil, comonos lembra Pasquale Petrone. Em Portugal, o termo aldeia era utilizadoem relação ao habitat rural concentrado, correspondendo ao termofrancês village, já no Brasil colonial designava a aldeia indígena, quenada mais era do que a concentração de ocas. Para os portugueses aaldeia era a “não-cidade”. No Brasil fazia-se, ainda, a distinçãoentre a aldeia, morada dos índios e os bairros rurais ou povoados,habitados pelos brancos. Petrone faz ainda uma distinção entre ostermos aldeia e aldeamento, referindo-se neste caso, aos aglomeradosindígenas não espontâneos, criados dentro do processo de colonização.A Aldeia de Barueri, criada no início do século XVII, faz parte dosaldeamentos indígenas sob a administração direta de sua majestade.6

Os aldeamentos indígenas eram, no período colonial,reservatórios de mão-de-obra escrava. Os índios aprisionados nocentro-sul do país, nos séculos XVI e XVII em expedições organizadaspelos moradores da Província de São Paulo (os bandeirantes), eramcolocados nas aldeias paulistanas para depois serem vendidos para osengenhos açucareiros do nordeste, principalmente. O comércio deíndios escravizados era o principal negócio da Província de São Paulo.

Barueri foi a maior aldeia de São Paulo, abrigando cerca de5000 índios, em 1640. Cresceu muito porque a sua localização eraestratégica: na boca do sertão e nas margens do Rio Tietê que era omais importante eixo fluvial leste-oeste.

As aldeias indígenas eram também utilizadas para a catequese- a conversão ao cristianismo - feita pelos padres missionários daCompanhia de Jesus, que freqüentemente entravam em conflitocom os apresadores e com os governantes, pois o tráfico do indígenaescravizado dificultava o trabalho de sua conquista para a Igreja.

A decadência dos aldeamentos indígenas começou quandoPortugal conseguiu livrar-se do domínio espanhol e extinguiu a

6 PETRONE, P. Os aldeamentos paulistas e sua função na valorização da regiãopaulistana, Livre-Docência, Dpto. de Geografia, FFCL, USP, 1964, p. 64-65.

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Companhia de Jesus. Os jesuítas foram expulsos do Brasil e, com oinício do tráfico negreiro foi definitivamente proibido o comércio deíndios escravizados, com isso os aldeamentos foram perdendo aimportância, permanecendo apenas como reservas indígenas, isto é, apopulação indígena remanescente ficaria ali abrigada, “protegida” pelopoder público, contra a invasão indiscriminada de suas terras pelosbrancos. Nas aldeias poderiam morar, cultivar a terra e viver emsegurança. Porém, não foi o que ocorreu. As terras dos aldeamentosforam gradativamente invadidas e ocupadas pelos brancos.

A política de aldeamento e seu aspecto interiorizante organizou aocupação e a exploração do planalto de Piratininga. Os aldeamentos foramdefinidos nas terras dos apresadores – André Fernandes, filho de SuzanaDias foi um dos principais, conhecido como o corsário do sertão - e osindígenas trabalhavam a intervalos irregulares para os senhores de terras.

Com a expulsão dos jesuítas, porém, houve uma expressivaredução na quantidade de índios vivendo em Barueri (cerca de 500índios apenas em 1660). Além disso, a Aldeia passou a perder terraspara foreiros, que obtinham concessões na Câmara de São Paulo. Nãoraro, o “rateio” das terras era realizado entre os próprios vereadores,juízes, capitães mores da aldeia, procuradores de índios etc.7

Este problema com as terras dos índios já ocorria há maistempo. Cerca de 40 anos antes, Fernão Dias Paes, então capitão-mór e procurador dos índios, já havia autorizado que algunsmoradores de Parnaíba se instalassem em terras da aldeia, sendodele a sugestão para que estas terras fossem aforadas. Anos depois,o próprio Fernão Dias, juntamente com João Leite e Pedro do Prado,pede terras, argumentando que não as tem!

Entretanto, a intensificação da prática de aforamento das terrasindígenas a particulares, ocorreu principalmente a partir da segunda metadedo século XVIII. O confisco de terras foi se tornando normal: os ouvidoresautorizavam os arrendamentos que deveriam ser pagos à Câmara Municipal.

Em decorrência, os índios da Aldeia de Barueri dispersaram-sepor vários lugares, levando ao surgimento de inúmeras outraspovoações ao redor de Barueri. A dispersão também advinha domodo de vida preservado pelos indígenas, que sempre moraram forados aldeamentos, praticando uma agricultura itinerante.

7 Atas da Câmara de São Paulo, vol. IV, p. 121-122.

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O itinerantismo inclusive era o que justificava a grande extensãodas aldeias. Para que os índios pudessem viver der acordo com osseus costumes, era preciso que as aldeias fossem extensas. Aschamadas terras e matas fora da aldeia, sempre mencionadas nospedidos de aforamento, eram indispensáveis para a manutenção detal prática. Para Petrone, foi este caráter disperso do habitat dosaldeamentos e a não delimitação de suas terras que propiciaram adefinição embrionária dos bairros rurais que viriam a ser ocupadospelos brancos, invadindo os limites das aldeias.

A Aldeia de Barueri foi oficialmente extinta em 1759, mas a populaçãoindígena ali abrigada não parou de crescer, já que Barueri era refúgio paraos índios de outras aldeias e aldeamentos.8 As terras desta e das demaisaldeias foram incorporadas aos bens patrimoniais da Coroa Real, mas asdisputas por elas continuavam ocorrendo. Em 1788, o Diretor da Aldeia dosPinheiros aforou terras dos índios de Barueri em razão da não demarcaçãodas terras dos aldeamentos. Quando se concediam aforamentos em locaismais distantes, estes podiam facilmente invadir os limites dos aldeamentos.José Leite Penteado, o Diretor da Aldeia de Barueri se colocou contra esteaforamento, aparentemente na defesa dos índios. Na realidade, defendiaos interesses de sua família detentora de outros aforamentos de terras daAldeia, como o da Fazenda Itamboré.

No início do século XIX a cidade de São Paulo crescia incorporando asterras dos antigos aldeamentos, para o desenvolvimento das atividades urbanastípicas da época, como as olarias. Quanto à urbanização que se iniciava,várias medidas importantes foram tomadas para normatizá-la. Os moradoresdeveriam ter autorização para roçar ou derrubar matos. As terras do municípiodeveriam ser, a partir da década de 30 do século XIX aforadas e não maisentregues por Carde de data, como se praticava até então. Para isso aCâmara deveria informar ao presidente da Província sobre as terras disponíveispara aforamento. As terras estavam dentro do rocio da cidade e das freguesiase seriam aquelas que teriam caído em comisso ou não tivessem título legítimo.A Câmara, no entanto, continuou a conceder as cartas de data.

A Lei de Terras de 1850 exigia que as sesmarias e os aforamentosfossem registrados, definindo ainda o que seria terra devoluta e proibindoa aquisição das mesmas por outro título que não fosse o da compra.Seria considerada terra devoluta aquela que não se achasse no domínio

8 Livro de Tombo número 1 da Cúria Metropolitana.

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particular por qualquer título legítimo, nem fosse havida por sesmariaou outra concessão do Governo Geral ou Provincial.9

A constituição de 1891, do Governo de Prudente de Moraesconsiderava terras devolutas as que não tivessem nenhum uso público,nem estivessem reservadas para o serviço público ou incorporadas. Ospróprios nacionais continuavam de domínio da União e entre estesestavam as áreas remanescentes de sesmarias concedidas aos jesuítas.O conceito de terra devoluta, remanescente do sistema de sesmarias,punia o senhorio que não cultivasse, nem arrendasse as terras. Eleperderia o direito às mesmas e as terras devolutas deveriam serdistribuídas a outrem, para que as lavrasse e aproveitasse.

O uso do termo devoluto como sinônimo de vago, utilizado desteos tempos coloniais, causou muita confusão na história posterior daapropriação territorial. As poucas terras devolutas passaram a ser aquelasem que não houvesse nenhum uso público nacional, estadual ou municipal,e aquelas que não estavam no domínio particular através de títulolegítimo. A falta de clareza e a incapacidade de fiscalização por partedo poder público permitiram a abertura das portas para a “grilagem”.10

Na Província de São Paulo, as terras continuaram sendo concedidasgratuitamente, ignorando-se a Lei de Terras. Nem mesmo o pagamentodo foro – como se exigira anteriormente para as terras dos aldeamentos– era mais exigido. No decorrer do século XX, os aldeamentos vãoperdendo as características de núcleos indígenas, passando a se identificarcom o cinturão caipira de população predominantemente mestiça,totalmente integrada no universo cultural caipira.11 No entanto, o cinturãocaipira guardou as marcas da presença dos aldeamentos e da populaçãomestiça, como ressaltado por Petrone.

9 Lei de Terras de 1850 procurou demarcar as terras devolutas e normalizar oacesso à terra por parte dos particulares. Com esta lei temos a passagem doordenamento jurídico colonial para a forma moderna de propriedade. O sentidooriginal do termo devoluto era “devolvido ao senhor original”. Toda a terra doadaou apropriada não sendo aproveitada, retornava ao senhor de origem, isto é, àCoroa portuguesa. Com o passar do tempo, as cartas de doação, passaram achamar toda e qualquer terra desocupada de devoluta. Assim, na linguagemoficial e extra-oficial, devoluto ficou como sinônimo de vago. In, Silva, LígiaMaria Osório.

10 Osório, Lígia. A Lei de Terra (Um estudo sobre a história da propriedade daterra no Brasil), doutoramento, PUC, São Paulo, 1990, p. 199 e 205, e Jahnel,T.C. “As leis de terra no Brasil”, in BPG, nº 65, AGB, São Paulo, 1987.

11 PETRONE, op. cit. p. 231.

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Convém ressaltar que no século XIX o Vale do Tietê converteu-se no principal eixo de expansão do povoamento paulistano, com assuas grandes extensões de terras provenientes dos aldeamentos alilocalizados. Hoje, não se vislumbra qualquer vestígio dos mesmos, anão ser nas das edificações da Aldeia de Carapicuíba que permanecemrazoavelmente conservadas, tendo sido tombadas pelo patrimônioHistórico e nas terras aforadas de Barueri e de Carapicuíba queoriginalmente pertencia à Aldeia dos Pinheiros. Como os aldeamentosnunca foram demarcados, acabaram por se sobrepor.

Os aldeamentos vinculados à evolução de um sistema depovoamento, como interpretado por Petrone, podem ser consideradoscomo instrumentos significativos para a valorização e organizaçãoespacial de planalto paulistano como um todo. Mas, é importante quese ressalte que a antiga condição de aldeamento é insuficiente, por si,para explicar o processo de ocupação recente de Barueri e Carapicuíba.

Durante a maior parte do século XX, as áreas dos antigosaldeamentos situavam-se à margem do processo de valorização dosolo em relação às lavouras comerciais rentáveis, em parte porqueos seus solos já se encontravam depauperados pelo sistema de roçasdesenvolvido por quatro séculos. De cinturão caipira ao redor de SãoPaulo, as terras dos aldeamentos transformaram-se em cinturão verde– com a finalidade de suprir a metrópole em crescimento com produtoshortigranjeiros. Posteriormente, utilizando as palavras de Petrone,passaram a cinturão da especulação imobiliária. Parte das terras docinturão caipira se urbanizou rapidamente e perdeu estas características.As demais, mantiveram-se como área pioneira, constituindo-se maistarde no chamado cinturão da especulação imobiliária.

Estas terras foram usadas para a formação de loteamentos,isto é, para a produção de terras urbanas para a moradia, definindo-se os bairros periféricos operários – as chamadas vilas. A partir dodesenvolvimento da indústria automobilística, começaram a surgiros subúrbios residenciais de luxo, as zonas industriais, as áreas derecreio, as chácaras de fim de semana etc.

O sítio Tamboré (com mais de mil alqueires) permaneceu nestasituação – de área reserva da especulação imobiliária - até a décadade 70, quando parte do mesmo foi comprado, através da venda dotítulo de aforamento para a construtora Albuquerque Takaoka. Oseu parcelamento para uso urbano iniciou-se quando o mercadoimobiliário em crise, a partir de meados desta década, optou por

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desenvolver projetos visando conquistar um segmento de alto padrão,não afetado pela crise econômica, que começava a se desenhar coma falência do chamado “milagre econômico”.

Para desenvolver os projetos pretendidos, tinha que haver terrasdisponíveis, estocadas. As terras que deram origem a estescondomínios não faziam parte do mercado de terras urbano. Só issojá era suficiente para torná-las atrativas ao capital imobiliário, jáque poderiam ser adquiridas por um valor inferior determinado peloseu uso anterior, não-urbano. Entretanto, o fato de serem terrasaforadas tornava-as mais baratas ainda. Além disso, a execução deum projeto de alto-padrão poderia possibilitar uma valorizaçãoextraordinária, produzindo uma renda diferencial para os loteadoresque adquiriram os direitos de uso a baixo preço.

A Construtora Albuquerque, Takaoka realizou o projeto de umCentro Empresarial, após ter tido acesso às informações sobre adisponibilidade para negócios, das terras dos índios da extinta aldeia deBarueri. As famílias Penteado e Prado, que como vimos, detinham o títulode aforamento do Sítio Tamboré desde os tempos coloniais, estavaminteressadas em “vendê-lo”; assim as construtoras Albuquerque, TakaokaS.A. e Jubran - Engenharia, Comércio e Indústria adquiriram através doServiço do Patrimônio da União (SPU) o direito de utilização de uma partedestas terras através do pagamento de foro, sob o regime de enfiteuse.

Sendo terras desvalorizadas, tanto pela localização, como pelofato de pertencerem à União, as perspectivas de lucratividade com avalorização, a partir da transformação do uso do solo, eram muitograndes. Essas terras não estavam sendo utilizadas pelos detentores dotítulo de aforamento. Entretanto, ali moravam muitas famílias. Eramposseiros que praticavam uma agricultura de subsistência, muitos hámais de 30 anos. Estavam, contudo, impedidos de reivindicar o direitode usucapião destas terras, pois além das terras pertencerem aUnião, o pagamento do foro estava em dia junto à Receita Federal.Usucapião é um instrumento jurídico somente para imóveis urbanosparticulares. Esta restrição quanto à abrangência do usucapião, significa,na prática, promover um tratamento jurídico desigual para as pessoasque estão de fato na mesma condição econômica e social.12 Isto é, as

12 SAULE Jr, Nelson. “Direito e Reforma Urbana”, Anais do 3º Simpósio Nacionalde Geografia Urbana, Rio de Janeiro, 1993, p. 127.

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terras passíveis de usucapião são aquelas que foram “abandonadas”por seus proprietários e, por isso, ocupadas por posseiros que depoisde alguns anos conseguem o direito sobre as mesmas ou o título deposse; já os ocupantes de terras públicas (devolutas) não podemdesfrutar do mesmo direito.

O desalojamento destes posseiros foi realizado com o usoclandestino de força policial e muita violência. O Jornal O Estado deSão Paulo de 8 de julho de 1973, assim relatava este acontecimento:

Um helicóptero com sirenes ligadas, dava vôos rasantessobre suas casas, e de um grupo de policiais contratadospelos pretendentes de suas terras recebiam ameaças eespancamentos. Ontem, finalmente, o drama vivido pelosposseiros da Fazenda Tamboré, no município de Barueri,foi encerrado com o inquérito policial contra osempregados da JUBRAN - Engenharia, Comércio eIndústria, que utilizavam esse método para desalojá-losdas terras em que vivem.

Foram indiciados em inquérito dois policiais militares, dosquais, um era cabo, apresentando-se como capitão, para intimidaros posseiros; o outro, integrante da ROTA (RONDAS OSTENSIVAS TOBIAS

AGUIAR) arregimentou as forças policiais contra os mesmos, com ouso da violência e da truculência que se tornaram mais fortes e maisrotineiras depois da instalação da ditadura militar. Segundo a notíciado jornal, os advogados da Jubran, negavam a sua participaçãonestes acontecimentos.

Os posseiros perderam as terras que ocupavam desde adécada de 30. Muitos assinaram a concordância para a saída movidospelo medo, pois além de todas as violências físicas e psicológicas a queforam submetidos, passaram a ter seus barracos incendiados. Paratermos uma pálida idéia a respeito de como muitos foram ludibriados,alguns posseiros receberam 3 mil cruzeiros da época para deixaremsuas terras; outros recusavam-se a sair pela oferta de 70 mil. Um delesalegava que só deixaria suas terras se recebesse 300 mil cruzeiros!Muitos dos moradores expulsos chegaram a pagar por 20 anos impostosindevidos pelas terras que ocupavam, já que as mesmas pertenciam àUnião e estavam, de acordo com as declarações do delegado de SPU,com o pagamento dos foros atualizados.

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Mais de 100 famílias foram desalojadas da parcela da FazendaTamboré adquirida pelas construtoras Jubran e Takaoka. Foramoferecidos gratuitamente barracos em outro local. Depois damudança, os desalojados descobriram que foram enganados, poissomente a primeira prestação destes barracos estava paga.Entretanto, o trabalho sujo foi feito apenas pela Jubran, que depoisdesaparece como co-propietária do empreendimento.

Estes fatos permitem-nos refletir sobre as possibilidades deapropriação privada das terras públicas. A apropriação destas terrasda forma como ocorreu pelas construtoras só foi possível porque elaspermaneceram como patrimônio público. Se fossem terras devolutas,os posseiros, que lá estavam há mais de 30 anos, poderiam teradquirido o direito sobre as mesmas, tornando-se legítimosproprietários. Entretanto, por serem patrimônio da União, a legislaçãoem vigor impediu que se invocasse o usucapião sobre elas.

Estes loteamentos exemplificam a indicação de Lefebvre deque as relações sociais não são uniformes e nem têm a mesmaidade, coexistindo relações sociais com datas diferentes, numa relaçãode descompasso e desencontro. Sobrevivem de diferentes maneirase circunstâncias históricas. Daí decorre a importância da noçãomarxista de formação econômico-social. “A noção de formaçãoeconômico-social (...) engloba a de desenvolvimento desigual, comoengloba a de sobrevivência na estrutura capitalista de formações eestruturas anteriores”13

As pesquisas que fizemos na Receita Federal forneceramindícios de que possivelmente os demais condomínios de Alphavilletambém ocupam terras outrora aforadas. Descobrimos que existe,desde a década de 70, um processo para a União reaver as terras daantiga fazenda Itahim e do sítio Mutinga (vizinhos de Alphaville eTamboré), sob a alegação de que eram antigos aforamentos.

Foi muito atrativo para o capital imobiliário a existência,ainda nos anos 70, de uma grande quantidade de “áreas desocupadas”em uma localização tão privilegiada. Trabalhamos com a hipótese deque algumas destas áreas pretensamente livres despertaram interesse,justamente por serem terras da União, que as concede a particulares,através de aforamento.

13 MARTINS, José de Souza. As temporalidades da História na dialética de Lefebvre,in Henri Lefebvre e o Retorno da Dialética, São Paulo: Hucitec, 1996, p. 15.

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Procuramos, neste trabalho, evidenciar como a manutençãodestas terras como patrimônio da União, permitiu que se realizassea concentração e a monopolização fundiária pelo capital imobiliário,garantindo-lhe um necessário e “barato” estoque de terras parafuturas e valorizadas operações imobiliárias.

O fato de pertencerem à União pode, num primeiro momento,dificultar a sua comercialização, mantendo-se desvalorizadas. Noentanto, justamente por serem desvalorizadas, são objeto deinteresse dos loteadores. Os empreendimentos imobiliários realizadosvalorizaram-nas, transformando-as num espaço privilegiado, único,dotado de “qualidades” que superararam a desvantagem inicial,produzindo-se, assim, o “sobrelucro” esperado pelo investidor.

Estes dois empreendimentos exemplificam como a atuaçãodo poder público e do capital imobiliário promoveu a anexaçãoprivada de terras públicas.

Alphaville surge como opção para o mercado imobiliário, quandoo mesmo passa a encontrar dificuldades para realizar seu capitalatravés do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), criado pós-1964,com o objetivo de atendimento das camadas populares da sociedade,o que foi precariamente alcançado. A maioria dos projetos einvestimentos atingiu, preferencialmente, as diversas camadas daclasse média. Os investidores do setor procuraram sempre dirigir oprograma e os seus investimentos para este segmento da sociedade.A partir do momento em que as camadas médias empobrecidas nãoestavam mais adquirindo as unidades habitacionais financiadas peloSistema, alguns empreendedores passaram a dirigir seus investimentospara os setores com maior poder aquisitivo, e que não necessitavamdo sistema oficial de crédito.

Além disso, a tendência de descentralização urbano-industrialjá  se apresentava com bastante nitidez. Alphaville, assim, surgecomo uma possibilidade de empreendimento altamente lucrativo,em terras “aforadas”, portanto baratas. Os lucros adviriam damudança no uso da terra e das transformações promovidas pelasofisticada urbanização produzida pelo construtor, que lhe possibilitariaos chamados “sobrelucros de inovação”.

No processo de incorporação destas terras pelo capitalimobiliário para empreendimento de alto-padrão, o empreendedorbeneficia-se das relações com o poder público, apesar de dispensá-lopara a realização da urbanização da área. Mas, depois, cobra essa

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dispensa... É como se o capital investido na urbanização fosse “capitalmorto”, que não retorna acrescido de valor para as mãos do investidor.É como se o construtor-investidor estivesse, benemeritamente,substituindo o poder público na realização de investimentos sociais.É desta contradição que nasce a “aldeia pós-moderna”, substituindoa aldeia de índios de Barueri. Um fragmento de “Ilha da Fantasia”,um espaço homogêneo apenas no “intra-murus”, mas altamentesegregador. Como diz uma moradora: aqui dentro, temos o socialismoBeverlly Hills: todos somos iguais.14 Mas este espaço homogêneo esofisticado só pode existir porque temos Barueri, Carapicuiba,Osasco... É do girar deste caleidoscópio que surge Alphaville, produtoda miséria urbana; mesmo porque se esta não existisse e não“agredisse” tão violentamente este segmento de alta renda dasociedade, não haveria porque o isolar-se no “intra-murus”.

Alphaville é a anti-cidade. De certo modo podemos compará-la às cidades européias da Idade Média, protegidas por altos muros epor um sistema de segurança que impedia a entrada dos “vilões”que viviam fora dela, isto é, os não-cidadãos. Pirenne, no clássico,História Econômica e Social da Idade Média, demonstra que a cidademoderna surgiu, porém, justamente ali, onde habitavam os “vilões”,do lado de fora dos muros da cidadela medieval.15 Poderíamos tambémdizer que em Alphaville tal como no castelo medieval, a fortaleza foiedificada para servir de refúgio, em relação aos que vivem foradela, na cidade verdadeira, repleta de pulsar, de contradições eperigos. A homogeneidade de Alphaville tenta eliminar as contradições,o sistema de segurança tenta proteger dos perigos. A contradição é

14 Talvez por isso os adolescentes de Alphaville não gostem de morar ali. Umareportagem do jornal Folha de São Paulo, de 14 de março de 1993, exibia aseguinte manchete: “Para sair do que chamam ‘gaiola dourada’, adolescentespaulistanos da classe A pensam em fugir de casa.” A mãe de um deles quemanifestou tal desejo, diz: “Aqui você pode andar sem medo, parar o carrosem olhar para os lados, acordar e ir para o jardim. As crianças vivem comose estivessem morando no interior”. Considera, ainda, positivo, o fato deseus filhos conviverem com gente da mesma classe social. Acha saudávelesta espécie de ‘socialismo Beverly Hills’, em que “todo mundo tem umtênis bom, uma moto, um carro. Não existe desigualdade nos condomínios.”

15 PIRENNE, Henri. História Econômica e Social da Idade Média. São Paulo:Ed. Mestre Jou, 1966.

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eliminada apenas na aparência asséptica dos conjuntos residências,e talvez por isso não haja  sistema de segurança eficiente, que dêconta da eliminação dos perigos e da violência que também atinge,apesar de tudo, os moradores dos condomínios.

BIBLIOGRAFIA

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1 Texto elaborado em outubro de 2006 para a defesa da tese diante da bancaexaminadora.

* Economista pela UFPE, Doutora e Mestre em Geografia Humana pelo Depto.de Geografia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas daUniversidade de São Paulo, SP. E-mail: [email protected] [email protected].

DA NECESSIDADE DA FESTA À NECESSIDADE DOESPETÁCULO1

Paola Verri de Santana*

RESUMOA prática social-espacial do maracatu oferece justificativa

suficiente para uma pesquisa na área de Geografia Urbana. Certasáreas são definidas para o turismo, assim o espetáculo econômico serealiza. Muitos jovens, habitantes do centro, encontraram na periferiaum meio de escapar aos estranhamentos do cotidiano. Eles se deslocamem direção aos lugares pobres, onde outros têm o crime como meio devida. Estes movimentos transformam os espaços periféricos e osindivíduos quando a periferia ganha centralidade. Contraditoriamente,uma nova geração parece produzir o espaço de modo a manter osentido de festa do maracatu.

Palavras-chave: Periferia; Centralidade; Maracatu; Recife –Pernambuco - Brasil.

ABSTRACTThe social-spatial practice of Maracatu provides justification

for research in this area, and particularly a greater effort to studyits urban geographical aspects. Certain areas are well-defined fortourism, so that the economic spectacle may take place. Many inner-city youth have found in the periphery a way to escape from thetrials of their everyday lives. They move to poor areas where othershave made their living through crime. These movements change

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spaces on the periphery and start changing people when the peripherygains centrality. The contradiction: a new generation seems toproduce the space so as to maintain the spirit of the celebration ofMaracatu.

Key words: Periphery; Centrality; Maracatu; Recife –Pernambuco – Brazil.

Henri Lefebvre, em o Direito à Cidade2, escreve que “novosusos” tendem a ser “revitalizados” após a vida urbana ter se perdidopor completo. É com esta preocupação que a tese “Maracatu: acentralidade da periferia”3 se propôs a explicar como o maracatunação, historicamente perseguido e estigmatizado, ganha respeitoe reconhecimento no Recife e fora dele. O maracatu passa arepresentar o lugar da festa, assim como os estranhamentos da vidamoderna geram a necessidade da festa no cotidiano urbano.

O sentido de comunidade que pobres e negros parecem terna periferia está presente no momento da festa. A alegria de vivere a sensação de liberdade parecem preservadas ali porque o cantare o dançar resistem como elementos intrínsecos à cultura africana.Esta necessidade de gastar energia é vital, mas é o instinto animalque transparecia como incivilidade.

Pensar a cidade enquanto prática sócio-espacial foi uma hipótesepossível. O espaço-tempo da festa, do uso e do encontro nas ruas évivido através das nações de maracatu. A necessidade de viver estesespaços faz do maracatu e da periferia mediações para a realização domito que envolve a festa. Mas, segundo Maria Isaura Queiroz4 , o mito

2 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. O fenômeno urbano: sentido e finalidadeda industrialização. O principal direito do homem. São Paulo: Documentos,1969, p. 24.

3 A tese foi orientada pela Professora Titular Ana Fani Alessandri Carlos, e teveo apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico, com a concessão da Bolsa de Formação de Pesquisador deDoutorado, com projeto de pesquisa intitulada Lugares da Cultura PopularRecifense: Turísticos ou Espoliantes?

4 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. SãoPaulo: Brasiliense, 1992.

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da liberdade esconde intencionalidades que a concebem como espetáculopara o poder e o capital. É nesta perspectiva que o maracatu faz amediação para a realização do espetáculo.

A crítica à vida cotidiana passa por uma análise dascontradições entre o vivido, o concebido e o percebido. A práticasócio-espacial dá forma e sentido de festa aos lugares. A necessidadedo centro ter a festa implica no interesse pela periferia. Acreditamestar com pobres e negros a vida que lhes parece faltar. Imaginamuma vida pouco mediada pela mercadoria. Idealizam uma periferiaonde o uso exista independentemente do valor de troca.

O maracatu permaneceu nos núcleos de pobreza edescendência escrava africana sob as bases de uma estrutura urbanasegregada. Mas o maracatu se transforma na parte da vida urbanarecifense a ser ofertada como atrativo turístico e culturalpernambucano. Desta vez, os usos passam a ser mediados pela troca.

A cidade também se realiza como mercadoria porque tem omaracatu que torna o Recife tão “africano” quanto Salvador e Rio deJaneiro. A festa, tomada como mercadoria, vira mediação no processode produção e reprodução do espaço. A cidade do carnaval é concebidacomo valor de troca. A imagem da cidade em festa entra na reproduçãocapitalista quando políticas públicas a promovem como atrativo turístico,cultural e, ainda, como ação social com fins eleitorais.

No entanto, a festa que se realiza enquanto mercadoriatende a se reproduzir no centro enquanto simulacro. O vivido eexibido no centro tende a se perder em meio às representações ere-significações do que seja maracatu. O mundo da mercadoriaentra na vida cotidiana e a cidade induz o maracatu a entrarneste circuito. A urbanização é indutora do turismo e da indústriacultural – os festivais, a produção fonográfica – que se apropriamdo maracatu como capital, produto, matéria-prima, mão-de-obraetc. O maracatu atravessa esta cadeia produtiva, mas as naçõescontinuam subjugadas às relações sociais de produção capitalista.Na realidade, os maracatus se deixam cooptar como estratégiade sobrevivência, por isso também constituem resistência.

Os maracatus são usados na representação do espaço recifense,mas seu espaço na periferia parece excluído dos roteiros turísticosconcebidos nos planos urbanísticos. O lugar da cultura popular estána periferia, mas a requalificação urbana coloca os Centros Culturaispróximos aos sítios arquitetônicos, nos centros históricos. A periferia

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como lugar da pobreza e violência urbana do mundo atual é evitadapor quem pretende ser identificado com a riqueza, a ordem, alimpeza. Os gastos com infra-estrutura e serviços urbanos sãoconcebidos para consumidores, por isso há tratamento diferenciadoentre centro e periferia. O centro é visto como campo deoportunidades e a periferia como problema.

Contraditoriamente, as casas-sedes dos maracatus seencontram na periferia. Não obstante, a presença do maracatuestá nas ruas do centro durante os desfiles de carnaval, emfestivais e turnês nacionais e internacionais, sua memóriapermanece na periferia com os mais velhos. O saber sobre areligiosidade e sobre a história das nações de maracatu constituiriqueza que atrai turistas e jovens alternativos que buscam adança e a musicalidade. Assim, a periferia começa a ser vividapelos “de fora”. Turistas e residentes de bairros nobres encontramnos ensaios e preparativos das centenárias nações de maracatuum lugar para o lazer e aprendizado de percussão.

Por outro lado, o desemprego e a baixa remuneração e auto-estima na periferia fazem outros passarem a ver o maracatu comomeio de profissionalização e formação de trabalho e renda. Issocompreende na necessidade da periferia ter o espetáculo. Mestresde batuque aceitam viagens pelo Brasil e Mundo para transmitiremseus conhecimentos através de oficinas de dança e percussão oumesmo para apresentação de seus maracatus centenários.

A periferia se transforma. O estigma da violência e pobrezanão mais inibe os “de fora” de freqüentá-la. Ao contrário, a periferiaconquista centralidade entre jovens e na mídia que capta imagensda cultura popular. Os “de fora” parecem brincar com a seita africanapor ignorar o modo de vida dos “de dentro” e porque não se envolvempor completo na preparação do maracatu.

A delimitação entre os “de fora” e os “de dentro” pode sedar através do pertencimento ou não ao culto nagô, mas os aspectosque parecem perceptíveis são as diferenças de classe e cor. Por estarazão, há controvérsias quanto à participação de ricos e brancos nobatuque das nações tidas tradicionais. A necessidade de diferenciaros “de dentro” dos “de fora” não implica em reforçar a segregaçãoatravés do discurso, nem negligenciar possibilidades de transformaçãoda sociedade em prol de novas formas de sociabilidade.

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A tese trabalhou com a diferenciação entre quem seja“de dentro” e quem seja “de fora” das centenárias nações demaracatu. Isso porque negar que haja diferença seria negar ahistória da formação social brasileira, seria negar o escravismocolonial que fundamentou o maracatu nação. Negar a diferençaseria negar a existência de desigualdade sócio-espacial noRecife, no Brasil e no mundo.

Manuel Correa de Andrade5 disse haver duas festas simultâneasnos engenhos em que viveu. A separação entre casa-grande e senzalase reproduziu. As agremiações carnavalescas também estavamorganizadas conforme estrutura da sociedade, dividida por gênero,cor, corporação de ofício etc. O culto a Nossa Senhora do Rosário seorganizava através das irmandades de homens pretos e homensbrancos. Por isso, cidades como Recife e Ouro Preto tinham igrejasdistintas em homenagem à mesma santa adorada pelos escravosque vinham da África. A regressão histórica feita no trabalho mostroua necessidade de ir até a gênese do maracatu para encontrar seusfundamentos. Isso implicou em achar o espetáculo político contidonas festas coloniais e, em particular, na coroação dos Reis Negros. Amediação da Igreja Católica favorecia a manutenção da ordem socialao mesmo tempo permitia a apropriação, mesmo que de formasegregada, dos espaços da cidade em festa.

A tese apresentou a possibilidade de ruptura da segregaçãoatravés de novas regras de sociabilidade quando mestres das naçõesseculares aceitam batuqueiros “de fora” entrarem na vida cotidianade suas nações de maracatu. A tese mostrou que as antigas naçõesde maracatu se deixam cooptar pelo mundo da mercadoria e quemesmo espetacularizadas conseguem manter o sentido da festa.

5 Em entrevista feita por Rita de Cássia Barbosa de Araújo, In: O fio e atrama: depoimento de Manuel Correia de Andrade. Recife: EditoraUniversitária da UFPE, 2002.

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PAOLA VERRI DE SANTANA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A CIDADE E A CULTURA URBANA: UM ESTUDOMETODOLÓGICO PARA SE ENSINAR GEOGRAFIA

CITY AND URBAN CULTURE: A METHODOLOGYCALSTUDY TO TEACH GEOGRAPHY

Sonia Maria Vanzella Castellar1

RESUMOEste artigo tem como objetivo tratar da relevância do saber

o que se ensina, o porquê e o como se ensina, articulando-o com asconcepções fundamentadas nas teorias de aprendizagem e no campoda epistemologia das disciplinas escolares. Essa análise está focadano estudo da cidade e da cultura urbana como possibilidade deestruturar um projeto educativo interdisciplinar. A compreensão deaspectos significativos da realidade pode mudar alguns parâmetrosdo processo de ensino e da aprendizagem de Geografia. Nessecontexto, o aluno poderá não só compreender o conteúdo trabalhadopelo professor, como também se apropriar do sentido de identidadee pertencimento em relação ao lugar em que vive.

ABSTRACTThe goal of this article is to deal with the relevance of knowing

what it is taught, the reason and how it teaches, articulating that withthe conceptions based on the learning theories and in the field of thescholar’s classes epistemology. This analysis is centered in the study of thecity and the urban culture as possibility to structuralize an interdisciplinaryeducative project. The understanding of significant aspects of the realitycan change some parameters of the education process and the learning

1 Profa. Dra. da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo [email protected].

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of Geography. In this context, the student will be able to not onlyunderstand the content used by the teacher, but also to assume theidentity and belonging in relation to the place where he lives.

Nas últimas décadas, o conjunto de geógrafos ligados ao ensinoe especificamente à metodologia do ensino de Geografia no Brasiltem procurado produzir teorias e práticas voltadas para as tarefassociais que essa área profissional deve cumprir. Investiu-se bastantenesses anos em pesquisas sobre o ensino e a metodologia de ensinode Geografia. Foram feitos diagnósticos, colheram-se depoimentos,foram analisados materiais, elaboradas propostas. Nas discussõesentre os geógrafos que atuam como professores de Geografia,percebe-se cada vez mais a incorporação dessa temática – assimcomo nas pesquisas acadêmicas, inclusive em dissertações e teses.Para esse estudo, os autores desse projeto contribuíram com trabalhosespecíficos, predominantemente voltados para as problemáticas daformação do professor e da metodologia do ensino de Geografia.Dentre eles, podem-se destacar: Callai (1996, 2000, 2001, 2002,2003); Castellar (1996, 2000, 2001, 2003, 2005a.2005b), Cavalcanti(1998, 1999, 2002 a, 2002 b, 2003); Simielli (1996, 2001); Pontuschkae Oliveira (2002), Braga (2000), Pinheiro (2003) entre outros.

Como resultante desse estudo, é possível verificar importantesmudanças no trabalho de alguns professores de Geografia e naaprendizagem de muitos alunos. Porém essas mudanças têm sidopontuais e não se têm notado resultados significativos e alteraçõesnas representações que a sociedade possui em relação ao ensino deGeografia e a sua importância no cotidiano.

Considerando, então, que as propostas de alterações daGeografia escolar só ganham vida na prática realizada por professorese alunos, e que essa prática se inscreve em determinados recortesculturais, torna-se importante conhecer os sujeitos dessa práticapara entender os limites e as possibilidades de que as propostasatuais se realizem de fato. Os sujeitos dessa ação são todos osenvolvidos na prática escolar, ou seja, os atores da comunidadeescolar, com destaque para os professores e alunos.

Destacamos os conceitos de lugar, cidade e de cultura urbana,por serem fundamentais para o estudo geográfico: mesmo que nasdiscussões acadêmicas apareçam concepções diferenciadas, a

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investigação sobre o lugar, a cidade e o urbano é preocupação dosgeógrafos desde a criação do curso de Geografia, no início da décadade 1934, estruturado a partir da chegada dos professores francesesna Universidade de São Paulo (como os professores Pierre Monbeig -1934, Pierre Deffontaines - 1934, e Emanuelle de Martonne - 1936).Na produção acadêmica desses professores podemos destacar osestudos de Monbeig “Aspectos Geográficos do crescimento da cidadede São Paulo”. Além dos geógrafos franceses, o professor Aroldo deAzevedo também possui vários estudos sobre a cidade de São Paulo,como a obra “A Geografia em São Paulo e sua evolução”.

Esses estudos mostram que as cidades têm suasespecificidades, suas histórias, expressam em suas dinâmicas ummodo de vida, elementos da espacialidade urbana que são comunsàs cidades brasileiras e mundiais contemporâneas e à cultura. Paraentendermos a complexidade das cidades, vale considerar aspercepções e as concepções que temos delas. Em função dos saberesescolares e do como desenvolvê-los em sala de aula. A relevância dosaber o que se ensina, o porquê e como está no fato de se ter concepçõesfundamentadas nas teorias de aprendizagem e no campo daepistemologia das disciplinas escolares. Portanto a falta de clareza nosfundamentos teóricos e metodológicos leva a um aligeiramento doprocesso de aquisição de conhecimento, retomando ao velho discursoda superação de um ensino memorístico e sem significado para o aluno.

A crítica, recorrente, é que muito embora se assuma que ametodologia de ensino deve ter fundamentos teóricos, nos diversoscampos do conhecimento, percebe-se que existe um certodesconhecimento sobre as concepções e o sentido da aprendizagemna prática docente. A questão que se coloca é: como o sujeito queaprende constrói seu conhecimento? Às vezes, para não dizerfreqüentemente, o que ocorre é uma preocupação com o conteúdoou com a informação sem que, entretanto, se saiba como fazerpara que o aluno realmente aprenda e não simplesmente memorize,na medida em que os estudantes não são depósitos de informações.

As atividades educacionais e pedagógicas que realizamos nodia-a-dia deveriam ser enquadradas numa concepção construtivistada aquisição do conhecimento. Contudo notamos que o conhecimentoformalizado e adquirido na escola acaba diminuindo a capacidade deconstrução do aluno. Obter conhecimento não é acumular conteúdos.Programar e organizar um currículo de Geografia implica em se ter

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clareza de em qual modelo educativo estamos situando eplanejando as atividades de aprendizagem. Para isso é necessárioconhecer e interpretar os objetivos em relação aos critériosdidáticos que devem ser estudados.

A compreensão que temos sobre a aprendizagem passa pelaconstrução conceitual - isso significa que, em qualquer idade, oconceito elaborado pelo sujeito deve representar um ato degeneralização. Sabemos que o significado das palavras evolui: porexemplo, quando a criança aprende uma nova palavra está iniciandoum processo de generalização, do tipo mais primitivo; à medida queo pensamento da criança se estrutura, a noção construída ésubstituída por outro significado mais elaborado processo este queacaba por levar à formação dos verdadeiros conceitos. A construçãodos conceitos ou dos significados das palavras pressupõe odesenvolvimento de muitas funções intelectuais: atenção deliberada,memória, lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar.

É dessa maneira que entendemos que um conceito cotidianopode ser desenvolvido em sala de aula, possibilitando um caminhopara o desenvolvimento, ou seja, a evolução do conceito espontâneoem conceito científico, requalificando as hipóteses conceituais queos sujeitos têm dos objetos e fenômenos cotidianos.

Os conceitos espontâneos têm como ponto de partida asrepresentações sociais que estão articuladas com a imagem imitativa,o simbolismo lúdico e a própria inteligência representativa. Nesseprocesso, deve-se considerar a intervenção da linguagem, dos signosverbais coletivos na construção de noções ou conceitos. Um exemplodesse processo é o início da alfabetização: a maioria dos alunos,nem sempre só das séries iniciais, faz distinção entre um texto e umdesenho indicando que o desenho serve “para olhar”, enquanto otexto “para ler”. Segundo pesquisa desenvolvida por Ferreiro &Teberosky (1986: 47)

“nenhuma criança indicou somente as imagens como sendopara ler, porém várias indicaram ao mesmo tempo textoe imagem, como se fossem complementares para procedera um ato de leitura.”

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Traçando um paralelo entre o processo descrito por Ferreiroe o ensino de Geografia, observamos que a criança vive em um lugare consegue muitas vezes descrevê-lo, porém não consegue perceberas relações sociais existentes nele. Da mesma maneira que a criançalê através das figuras ou desenhos, na Geografia os alunos lêem aspaisagens dos vários lugares em que vivem e, poderão superar umaleitura superficial e estruturar os conceitos passando para umapercepção mais complexa da realidade. A leitura que a criança fazda paisagem está sem dúvida carregada de fatores culturais,psicológicos e ideológicos.

Qualquer coisa que os alunos queiram representar estárelacionada com a capacidade que terão para diferenciar o significante(nomes) do significado (representações/objetos).

Para os sujeitos, os nomes vinculados pertencem aos sujeitosou aos objetos. Ao confundirem o nome com o objeto, pode-sedizer que eles, ainda, não generalizam e não superaram o realismonominal. Diante dessa situação o nível do desafio para o aluno éelevado, pois os alunos necessitam superar os desafios para ler ecompreender textos, desenhos e relacioná-los com a realidade. Porémtodas as capacidades cognitivas e superação dos desafios fazem partedo processo de processo da aprendizagem. Na fala dos alunosencontramos, ainda na 5a série, algumas confusões entre o significadoe o significante, como mostram os exemplos a seguir:

Pat (13 anos - 5ª série) - Poderíamos chamar o sol de luae a lua de sol? - Não. - Por quê? - Porque o sol aparece dedia e a lua de noite, mas pode acontecer da lua aparecerde dia. - Poderíamos chamar a mesa de cadeira e a cadeirade mesa? - Não. - Por quê? - Porque a mesa a gentecoloca os objetos e a cadeira é para sentar. - Escrevatrês palavras grandes. - Datilógrafo, liquidificador,abundância. - Escreva três palavras pequenas. - Mala,mico, moda. - Qual a palavra maior, boi ou aranha? - Apalavra maior é boi. - Por quê? - Porque o boi é grande ea aranha é pequena. - Qual a palavra menor, trem outelefone? - A palavra menor é telefone. - Por quê? - Porquetelefone é pequeno e o trem é grande. - Escreva duaspalavras parecidas com a palavra bola. - Bolo, bexiga. -Por quê são parecidas? - Porque o bolo é redondo e a bola

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é redonda e a bexiga também. - Escreva duas palavrasparecidas com a palavra espaço. - Espaçoso, espacinho. -Por que são parecidas? - Porque tem espaço grande e temespaço pequeno.

Luc (15 anos - 5ª série) - Poderíamos chamar osol de lua e a lua de sol? - Nós não podemos. Por quê? - Osol é uma coisa e a lua é outra, o sol tem reflexo, e a luanão tem reflexão. - Poderíamos chamar a mesa de cadeirae a cadeira de mesa? - Nós não podemos. - Por quê? -porque a cadeira nós senta, e a mesa a gente come emcima dela nós não pode sentar em cima da mesa. -Escreva três palavras grandes. - Guarda-roupa, escola,geladeira. - Escreva três palavras pequenas. - bala, bola,lixo. - Qual a palavra maior, boi ou aranha? - boi. - Porquê? - o boi é gordo, é grande, e a aranha é pequena. -Qual a palavra menor, trem ou telefone? - telefone. - Porquê? - o telefone ele é pequeno, e o trem é grande. -Escreva duas palavras parecidas com a palavra bola. -bala, balão, boliche. - Por que são parecidas? - elas sãoparecidas porque não muda muitas palavras só mudaalgumas. - Escreva duas palavras parecidas com a palavraespaço. - espaçoso, espelho, espuma. - Por que sãoparecidas? - porque tem o mesmo significado só mudaalgumas palavras mas eles são iguais.

Nos dois casos os alunos estão na 5ª série e têm 13 e 15anos, respectivamente, e ambas as explicações têm referênciana forma do objeto e não no significado da palavra. Em funçãode sua idade e escolaridade, esses alunos deveriam já tercapacidade de generalização e ter superado a relação entre nomee objeto, mas ainda não o fizeram, o que significa que terãodificuldade em compreender e estruturar conceitos científicos.

O que ocorre com os alunos, em função da formação, dadimensão social e cultural, pode acontecer com adultos: Cavalcanti(1998: 130) afirma a dificuldade que os professores de Geografiatêm em relação aos conceitos basilares de sua disciplina. A falta decompreensão conceitual acaba se refletindo em uma práticapedagógica tradicional, ou seja, uma ação didática em sala de aula

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que não avança do ponto de vista da construção conceitual, apenasreforça a memorização de informação.

Os conceitos permitem ao aluno, no estudo da Geografia,localizar e dar significação aos lugares, pensar nessa significação eno papel que os diferentes lugares têm na vida cotidiana de cadaum, além da dimensão cultural.

Organizar um currículo de Geografia a partir dessesfundamentos permite ao aluno articular os conceitos científicos comas suas hipóteses levantadas com base no cotidiano.

Tendo em vista o exposto, esse estudo propõe-se a pesquisaraspectos da cultura de um dos sujeitos do ensino de Geografia – oaluno e o professor –, na expectativa de contribuir para oentendimento das possibilidades latentes e efetivas dessa prática.Porém, para que se possa mudar a prática docente é precisoinserir nessa análise as concepções e a formação dos professores,bem como as relações existentes na gestão escolar. É preciso terclareza do papel da escola, do professor e do aluno no contextoda aprendizagem, pois mediante o tratamento adequado dosconteúdos específicos, das relações estabelecidas com as outrasdisciplinas escolares e a realidade é que podemos consideraravanços no processo de aprendizagem.

Esse conjunto de relações nos remete ao currículo escolar,que normalmente tem uma trajetória particular, não se tratando deuma mera transposição didática daquilo que é discutido na academia.

Os conteúdos disciplinares não são meras imposições à escolapela sociedade que a rodeia, porém essa relação não ocorre sem quehaja conflitos, o que acaba individualizando a organização curricular,ou seja, há um processo de constituição do currículo (e um currículo,como resultado desse processo) próprio de cada escola. Assim, aescola não é uma retransmissora de saberes que foram produzidosfora dela, mas tem como paradigma as ciências que são referênciaspara cada uma das disciplinas escolares.

Desse modo, a análise da disciplina escolar que faremosconsiderará sua gênese, sua função e seu funcionamento. É o quepropomos fazer ao longo desse trabalho, de forma mais ampla parao ensino de Geografia, com base nas localidades definidas pelo projeto.Assim, compreendemos que as discussões acerca da metodologia doensino e da didática em Geografia só terão êxito no sentido socialdas aprendizagens se estiverem articuladas aos conteúdos que lhe

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imprimem o significado. É por essa razão que temos o interessede centrar a discussão no conteúdo de lugar, cidade e da culturaurbana dos professores, isto é, ter a cidade como um projeto deeducação geográfica.

Uma das recomendações que temos feito para a metodologiado ensino de Geografia é a de se considerar o cotidiano, o espaçovivido dos alunos como referência concreta para o encaminhamentodo processo. Nesse sentido, consideramos como fundamental entenderas concepções do professor sobre esse cotidiano, sobre esse espaçovivido, ou seja, suas percepções sobre o lugar de sua vivência e deseus alunos, e compreender como essas percepções podem e têmajudado na formulação das suas propostas de ensino.

EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA E A CIDADE EDUCADORA

A contribuição que trazemos no campo metodológico já vemocorrendo em algumas escolas de diferentes países, por exemplo,na Colômbia, com iniciativas de professores que estão se propondo arever suas ações didáticas, sem perder a objetividade da área deconhecimento e a partir de projetos educativos que representamconcretamente reflexões sobre o saber e o fazer Geografia.

Os projetos didáticos coletivos, tendo como referência acidade, articulam algumas áreas do conhecimento para estudar acidade, ampliando a compreensão do aluno sobre ela, assim ourbano e a cultura urbana têm importância para o método deanálise do fenômeno investigado. Trazer para o currículo daGeografia a cidade e a cultura urbana como tema de projetoeducativo passa por compreender a sua função, a sua gênese e oprocesso histórico no qual foi produzida, podendo estabeleceruma nova referência curricular para a Geografia escolar. Comoconseqüência dessa proposta descontruímos o senso comum, oimaginário de parte da população que considerar a Geografiauma disciplina memorística e sem importância.

Nessa perspectiva, estudar a cidade passa a ser um atoeducativo e ao mesmo tempo um método de análise dos fenômenose das relações que a estruturam, como a função. Fazer da cidade

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um objeto de educação geográfica significa superar asuperficialidade conceitual e estabelecer uma relação mais eficazentre o saber formal e o informal.

Desse modo, os alunos descobrem que o estudo da cidadeé mais do que uma decodificação das informações que ela revelana sua aparência. Não significa retomar as temáticas escolaresem relação ao que está próximo ou distante, trabalhar o entornopor ele trazer conteúdos de mais fácil entendimento ou simplificaro objeto que se busca conhecer – a relevância dessa propostaestá na possibilidade de qualificar o estudo da cidade, do urbanoe da cultura urbana.

No entanto será por meio da vida cotidiana que será possívelperceber as diversas cidades que existem em uma cidade, ampliandoa dimensão limitada que às vezes se tem dela. Nesse sentido, acidade pode ser entendida pela dinâmica do território, o que requero uso de escalas de análise que estabelecem o nível de interpretaçãodo que se investiga e das escalas cartográficas para se localizar nosmapas os fenômenos geográficos.

Ao se estudar a cidade, observam-se as áreas comerciais, ocentro histórico, as áreas residenciais, a ocupação irregular, a exclusãogeográfica, ou seja, investiga-se o espaço, e o aluno compreende ovalor da cidade e vincula o valor do local e o sítio com o relato doshabitantes, que caracteriza a paisagem com a complexidade doselementos locais, incluindo as segregações, as culturas singulares.

Essa compreensão da cidade e do espaço urbano permite aconstrução de um eixo temático de análise: cidade e cultura. Emtais contextos, aprender a cidade significa aprender que ela não éestática, mas um sistema dinâmico, no qual fluem, por exemplo,informações e cultura. Nessa perspectiva torna-se relevantecompreender a cidade como um lugar que abriga, produz e reproduzculturas, como modo de vida materializado cotidianamente.

Aprender com a cidade é facilitar e socializar o processo deaprendizagem, porque os alunos poderão articular os conceitoscientíficos em redes de significados, e em diferentes áreas deconhecimento escolar, elaborando roteiros a partir da observação docotidiano, fazendo leituras de cartas e mapas, além de organizarinstrumentos de pesquisas para descobrir e analisar as várias cidadese itinerários que existem em uma cidade.

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De acordo com Bernet (1993: 194), há três dimensões darelação entre educação e cidade. A primeira consiste em considerara cidade como conteúdo de educação, com suas instituições, recursos,relações, experiências. Essa dimensão identifica-se com a fase:“aprender na cidade”. A segunda dimensão é a que considera o meiourbano um agente educador, um emissor de informação e de cultura;trata-se do “aprender da cidade”. A terceira dimensão é a queconsidera a cidade como conteúdo educativo; a expressão que adefine é “aprender a cidade”.

Essa reflexão pode suscitar algumas questões: em que medidaos cidadãos têm tido nas cidades o direito de viver na cidade, decircular por ela e seus lugares, de consumir seus e nesses lugares?Como estabelecer uma corrente de pensamento pedagógico que tornaa cidade um local onde se materializa a educação geográfica?

Nesse contexto, Bernet (1993: 194) corrobora com essa análiseao afirmar que

“La escuela-ciudad constituye también una estrategiapedagógica de tipo propedéutico para formar alciudadano adulto. Así, Piaget, comentandofavorablemente el self-government, escribía: ‘Más queimponerse a los niños um estudio completamente verbalde las instituciones de su país y de sus deberesciudadanos, está efetivamente muy indicado aprovecharlos tanteos del nino en la constitución de la ciudad escolarpara informale sobre el mecanismo de la ciudad adulta’”

Compreender a cidade nessa dimensão pedagógica configurareconhecê-la como um meio em que a escola está inserida; a cidadenão terá o papel de substituir a escola na formação educativa doaluno, ela é o objeto de estudo que dinamizará a prática docente etornará a Geografia mais significativa.

A Geografia escolar, portanto, contribui para que os alunosreconheçam a ação social e cultural de diferentes lugares. Isso porque avida em sociedade é dinâmica e o espaço geográfico absorve as contradiçõesem relação aos ritmos estabelecidos pelas inovações no campo dainformação e da técnica, o que implica, de certa maneira, alteraçõesno comportamento e na cultura da população dos diferentes lugares.

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Além disso, devemos considerar a dimensão temporal comomais um constituinte da cidade: observamos diversos elementos emque o tempo pode ser percebido, tanto no que se refere ao cotidianoquanto na natureza, pois o modelado do relevo, as avenidas e ruas,as indústrias e os campos, por exemplo, revelam em suas formas,simultaneamente, o passado e o presente. Tudo isso resulta de umprocesso na produção e organização do espaço, analisado a partirdas relações sociais, econômicas, políticas, culturais e ambientais.

No espaço geográfico encontramos objetos técnicos,transformados ou não; nele há relações simbólicas e afetivas,que revelam as tradições e os costumes, indo além da relação serhumano-natureza. Nesse contexto, ao observar os elementos quecompõem o espaço vivido, o aluno perceberá a dinâmica dasrelações sociais presentes na organização e produção desse espaço,bem como o significado do processo de construção de suaidentidade individual e coletiva.

Nesse sentido, o estudo da Geografia auxilia na formação doconceito de identidade, expresso de diferentes formas: na consciênciade que somos sujeitos da história; nas relações com lugares vividos(incluindo as relações de produção); nos costumes que resgatam anossa memória social; na identificação e comparação entre valorese períodos que explicam a nossa identidade cultural.

Estudar as mudanças e as permanências que ocorreram nossítios geográficos e relacioná-los com a forma de ocupação dos lugaresem diferentes períodos é explicativo para o aluno, na medida emque é possível entender as transformações das cidades e do campo earticulá-las com o meio físico e a dinâmica da natureza, o que levaos alunos a superarem uma visão fragmentada da sua realidade. Porisso há a necessidade de se estabelecerem relações entre relevo,solo, hidrografia, clima, cobertura vegetal, em diferentes escalas, etendo uma maior clareza da ocupação do lugar.

Ao destacarmos no ensino da Geografia a localização, a origeme as características dos fenômenos, como, por exemplo, um temano qual se inserem as bacias petrolíferas, é necessário fazer umestudo contextualizando o fenômeno, o que significa conhecer agênese da dinâmica das placas tectônicas, a disposição doscontinentes, a formação dos vales e bacias sedimentares, para quepossamos relacioná-lo com a localização dos recursos minerais e os

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conflitos geopolíticos entre países, sem ficar em fatos e informaçõesque apenas tratam do tema superficialmente.

Com esse mesmo raciocínio podemos articular o estudo dadinâmica terrestre com o clima e as suas alterações paraentendermos os motivos que levaram a existência das ondasgigantes “tsunamis” e as áreas afetadas, além do aumento donúmero de furacões e ciclones em várias partes do mundo, comoo que ocorreu nos Estados Unidos. A Geografia estuda o meio e asua ocupação, as transformações, como os fenômenos searticulam, por isso, quando lemos a seguinte notícia: Na Europao calor é intenso, idosos e crianças estão morrendo desidratadosé importante investigar os motivos: quantidade de habitantes naTerra, emissão de poluentes das indústrias e automóveis,quantidade de partículas de monóxido de carbono na atmosfera,políticas ambientais..., enfim pesquisar dados para que possamosexplicar os que acontece no nosso dia-a-dia.

Vale ainda ampliar esta discussão para a possível relação entreo modelo de produção industrial e o agravamento do aquecimentoglobal, revelando a questão do tempo social e geológico e suasconseqüências sócio-ambientais.

Os conteúdos que são abordados, tendo como referência osexemplos citados, possibilitam a construção do raciocínio geográfico.Ou seja, possibilitam compreender o espaço construído, a ordenaçãoterritorial, a espacialidade e/ou a territorialidade dos fenômenos,bem como a escala social de análise.

Dessa forma, o olhar geográfico do aluno pode ser estimuladoao comparar diferentes lugares e escalas de análises, possibilitandosuperar a falsa dicotomia existente entre o local e o global,superando o senso comum na ordenação concêntrica dos conteúdosgeográficos, que acaba gerando um discurso descritivo do espaçogeográfico. Nesse caso, destacamos a importância de seestabelecer relações entre essas escalas, criando condições paraque o aluno ordene os espaços estudados, comparando osfenômenos geográficos, ampliando a idéia de escala.

Essa idéia se reforça, pois alguns autores, como Callai (2003)e Batllori (2002: 11) chamam a atenção sobre a importância de seeleger uma escala de análise e em seguida outra, para que o alunoconsiga explicar o processo de generalização dos elementos e

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fenômenos de uma área, porque em função da escala pode-se perdera noção de conjunto ou de detalhes do que está se estudando.

A interpretação dos fenômenos geográficos ganhasignificado quando o aluno entende a diversidade da maneiracomo se dá organização dos lugares, quando compreende oconceito de território, por isso reafirmamos que a leitura demapas e a elaboração de mapas cognitivos são imprescindíveispara a compreensão do discurso geográfico.

Esse é um projeto lento e de largo alcance. Para realizá-lo, épreciso tempo suficiente para que os conceitos (geográficos ecartográficos) sejam apropriados e internalizados. Para que seviabilize, é necessário o entendimento de que a cidade é a expressãode um modo de vida e de que esse modo de vida tem comosustentação um modo de produção.

Os mapas e as imagens criados pelos alunos durante as aulaspodem ser utilizados como conhecimento prévio ou estratégias paraaprendizagem, podem ser pontos de partida para iniciar uma discussãoe, ainda, mobilizar habilidades mentais (classificar, analisar, relacionar,sintetizar...), estimulando o pensar do espaço, a partir da observaçãoe da comparação das influências culturais existentes nos diferenteslugares. Isso permite, também, aos alunos, entender os mapas comoconstruções sociais que transmitem idéias e conceitos sobre o mundo,apesar da pretendida neutralidade e objetividade que os meiostécnicos utilizam para confeccioná-los.

Destaco, ainda, que não se trata de ensinar a cidade demodo tradicional, apenas definindo lugar e sociedade local, épreciso ter em conta todos os aspectos que estabelecemorganização da cidade, as relações entre os diferentes lugares, acultura dos grupos sociais, a economia e o processo histórico queoperam em múltiplas escalas.

Trata-se de criar espaços de encontros e análises junto comos membros das comunidades, para aprender a investigar, quedespertem a curiosidade para o saber e que superem as práticaspedagógicas que reproduzem esquemas rígidos de aprendizagem.Todas as cidades educam, à medida que a relação do sujeito, dohabitante, com esse espaço, é de interação ativa e dialética.

A cidade é um espaço público por constituir-se no ambienteda vida coletiva; algumas pessoas são responsáveis pela sua gestão e

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precisam, também, viabilizar e incentivar essa vida coletiva, orientarpara a coexistência humana. A orientação da vida coletiva nas cidadesde diferentes portes acontece em função das ações de vários agentes,que realizam diferentes atividades educativas (agências de trânsitoe ambientais, escolas, ONGs). Mas a cidade não só reúne agentes,ela mesma é um agente educativo. Seu arranjo, sua configuração,é, em si mesmo, um espaço educativo.

Destaca-se, assim, aqui, a possibilidade de se efetivar umprojeto de cidade educadora, que significa, entre outras coisas,realçar seu caráter de agente formador, sua dimensão educativa.Todas as cidades educam, à medida que a relação do habitante comesse espaço é de interação ativa, suas ações, seu comportamento eseus valores são formados e se realizam com base nessa interação.

Porém falar em cidade educadora no contexto do ensino deGeografia significa destacar a possibilidade de, pela mediação daescola e do trabalho escolar com a Geografia, viabilizar esse projeto,objetivando com essa mediação a formação de cidadãos queconhecem, de fato, a cidade em que vivem, que compreendem oslugares como locais produzidos segundo projetos sociais e políticosdeterminados e que, sendo assim, sua participação nessa produçãoé viável, desejável e pode contribuir para que seja garantida nela amelhor vida coletiva possível.

A cidade é educadora: ela educa, forma valores,comportamentos, ela informa com seu arranjo espacial, comseus sinais, com suas imagens, com sua escrita. Ela também éum conteúdo a ser apreendido por seus habitantes. Porexemplo, ao se estudar a cidade de São Paulo, é importanteafirmar que com 450 anos, fundada em 1554, continua sendoum núcleo da região metropolitana da grande São Paulo queconta com uma população aproximada de 17 milhões, comdestaque para o Município de São Paulo, que possui cerca de 9milhões de habitantes. Com muitas contradições econômicase sociais é, também, uma cidade que recebeu muitos migrantesde várias partes do Brasi l e do mundo, dando-lhe umacaracterística multicultural. Ao mesmo tempo é consideradauma metrópole nacional, com um importante centro financeiroe industrial. Atualmente passa por um decréscimo populacional,mas continua tendo a sua área urbana em expansão.

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A metrópole de São Paulo, por outro lado, sofreu alteraçõeseconômicas fundamentais no decorrer de sua história, gerando novosprocessos sócio-espaciais. Para entendê-los é necessário analisar astransformações técnicas do processo produtivo e das formas geraisde organização da produção. A metrópole tem hoje uma estruturaçãoespacial que foi fruto do desenvolvimento produtivo comandado pelosagentes econômicos e políticos.

Para compreender esse processo da transformação da cidadede São Paulo em uma metrópole mundializada, é preciso observarque ela foi no decorrer do tempo adquirindo status econômicosdiferenciados. São Paulo foi se transformando, passando por diversascaracterísticas econômicas; num momento se apresenta como capitalagrícola, ou seja, aquela que concentrava o poder das negociaçõesreferentes às exportações e distribuição da produção agrícola doEstado de São Paulo, cujos resultados excedentes forampaulatinamente sendo investidos na indústria nacional. PosteriormenteSão Paulo tornou-se a capital industrial e durante muitos anoscomandou a produção industrial, organizando os fluxos produtivosem todo o território nacional. Agora, mais recentemente, vem setornando a capital dos serviços, responsável pela formação de umnovo complexo de produção, com destaque para o setor terciário einformacional (quaternário).

Para efeitos de comparação, faz-se necessário elegeralgumas escolas que se situam nas cidades citadas e realizar umestudo sobre a compreensão que os professores possuem dascategorias de lugar e cultura urbana, na medida em que sãoconteúdos ensinados em Geografia.

A intenção é elaborar um projeto educativo para estudarmose apreendermos elementos da cidade e da cultura urbana a partirda vivência dos alunos e professores, em espaços urbanos diferentes,no entendimento de que são atores do processo de ensino eaprendizagem, portadores de cultura que sintetiza sua experiênciavivida no local, seus valores, sua formação escolar e profissional,que lhe permitiu conhecer e analisar espaços urbanos numaperspectiva de totalidade.

Nessa perspectiva, os alunos descobrem que a cidade é maisdo que uma decodificação das informações que ela revela na suaaparência, mas pode-se descobrir sua história, compreender e até

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questionar a organização dos bairros, a circulação das pessoas e dosmeios de transporte, a oferta de espaços para lazer e cultura, alocalização e distribuição do comércio e dos serviços como educaçãoe saúde. No entanto, será por meio da vida cotidiana que seperceberão as diversas cidades que existem em uma cidade, ampliandoa dimensão limitada que às vezes se tem dela.

Para ensinar Geografia precisamos avaliar os conteúdosdesenvolvidos nas escolas, repensar o currículo do ensino básico.Incorporar nas ações do cotidiano uma proposta que tenha comoobjetivo criar condições para que o aluno aprenda, desenvolvaos conceitos científicos, confronte hipóteses e resolva problemas.Assim, os procedimentos provocariam o aluno partir de suashipóteses, confrontar idéias e tomar posições. Essas habilidadescontribuirão para que ele desenvolva competências que, no nossoentender, estão relacionadas com a capacidade de aplicar etransferir conhecimentos sistematizados.

Esse artigo é mais uma reflexão que poderá permitir umaanálise da situação de aprendizagem e a importância da compreensãoque os professores e os alunos têm dos conceitos geográficos ecartográficos. Provocamos, mais uma vez, o professor para quepossa repensar sua prática e fazer mudanças concretas. Portanto épreciso descobrir que há outros padrões de aprendizagem, a partirde uma rede de significados, e que há necessidade de se fazerescolhas. No entanto não há fórmulas prontas e acabadas, existemsim possibilidades de ter êxitos saindo do imobilismo e atuando naperspectiva de utilizar estratégias diversificadas ao abordar conteúdos,exercitando o pensamento, dialogando e ampliando conhecimentosjá adquiridos e construindo, assim, novas situações de aprendizagem.

BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA

BATLLORI, Roser. La escala de análisis: un tema central en didácticade la geografia. In Las Escalas Geográficas. n. 32. Barcelona: Graó,Íber, 2002.BERNET, Jaume Tril la. Outras educaiones: animaciónsociocultural, formación de adultos y ciudade educativa.Barcelona: Anthropos, 1993.

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CALLAI, H. C. & CALLAI, J. C. “Grupo, espaço e tempo nas sériesiniciais”. In. CASTROGIOVANI, A . C. (org.) Geografia em sala deaula, práticas e reflexões. Porto Alegre, Associações dos GeógrafosBrasileiros, Seção Porto Alegre, 1998.CALLAI, H. C. “O ensino de Geografia: recortes espaciais paraanálise”. In. CASTROGIOVANNI, A. C. (org.). Geografia em sala deaula, práticas e reflexões. Porto Alegre, Associações dos GeógrafosBrasileiros, Seção Porto Alegre, 1998._____________. “O misterioso mundo que os mapas escondem”. In:CASTROGIOVANI, A. C. (org.). Geografia em sala de aula, práticase reflexões. Porto Alegre, Associações dos Geógrafos Brasileiros,Seção Porto Alegre, 1998.CASTELLAR, Sônia M. V. “A formação de professores e o ensinode Geografia”. In: Associação dos Geógrafos Brasileiros TerraLivre. 14, 1999._______________________. “O ensino de Geografia e a formaçãodocente”. In CARVALHO, Anna Maria P. (coord.). Formaçãocontinuada de professores. São Paulo: Pioneira ThomsonLearning, 2003._______________________. Alfabetização em Geografia.Espaços da Escola, Ijuí: Editora Unijuí, ano 10 nº. 37 jul./set.2000., p.29-46._______________________. A Percepção do Espaço e a distinçãoentre o objeto e o seu nome. Ensino de Geografia, Caderno CEDES,nº. 39. Campinas: CEDES, Papirus, 1996, p.88-96.CAVALCANTI, Lana de S. Geografia, escola e construção deconhecimentos. Campinas: Papirus, 1998.FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita.Arte Médicas, Porto Alegre, 1986.JUQUE, Afonso; ORTEGA, Rosario & CUBERO, Rosario. “Concepçõesconstrutivistas e prática escolar”. In ARNAY, José (org.). Domíniosdo conhecimento, prática educativa e formação de professores.São Paulo: Ática, 1998.MAURI, Teresa; SOLÉ Isabel; CARMEN, Luis del & ZABALA, Antoni. ElCurriculum en el Centro Educativo. Barcelona: ICE/Horsori,1998.

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ANEXO

INSTRUÇÕES E NORMAS PARA ELABORAÇÃODE ORIGINAIS

O BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA publica trabalhos depesquisa originais e inéditos, de preferência escritos emportuguês, sobre assuntos de interesse científico e geográfico,sejam ou não autores membros da Associação dos GeógrafosBrasileiros, e obedecidas as seguintes normas:

1 - O BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA publica artigoscientíficos com até 65.000 caracteres (sem contar os espaços),notas que apresentam resultados preliminares de pesquisas,comunicações curtas ou outras pequenas contribuiçõesinformativas com até 32.000 caracteres e resenhas bibliográficascom até 10.000 caracteres.

2 - O trabalho deve ser enviado em disquete (Word forWindows ou compatível) juntamente com cópia impressa, osquais devem seguir o seguinte roteiro: I) papel A4, margens 2,2cm cada, fonte Times New Roman, corpo 12 e espaçamentoduplo; II) na primeira folha constar apenas: título do trabalho,nome do(s) autor(es), endereço, telefone(s), endereçoeletrônico, atividade profissional e instituição a que estávinculado; III) iniciar o texto na segunda folha repetindo apenaso título do trabalho.

3 - Os artigos devem apresentar em português e em umalíngua estrangeira (inglês ou francês): título, resumo (máximo700 caracteres) e palavras-chave (máximo de cinco). Os resumose as palavras-chave devem ser incluídos no início do trabalho(folha 2), logo após o título.

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4 - As ilustrações (mapas, desenhos, gráficos, fotografiaem preto e branco etc.) devem constar com a denominação“figura” e ser numerados com algarismos arábicos tanto nocorpo do texto como na legenda. Os originais das ilustraçõese tabelas (papel e arquivo) com os respectivos títulos elegendas devem ser enviados separados do texto em papelvegetal ou em papel branco e ter dimensões máxima de 11 x17 cm. Não serão aceitas cópias xerográficas. Indicar no textoa posição de inserção das ilustrações e tabelas.

5 - Solicitamos a seguinte forma para a bibliografia:

BIONDI, J. C. Kimberlitos. In: CONGRESSO BRAS. GEOLOGIA. 32.Salvador, 1982. Anais... Salvador: SBG, 1982. v. 2, p. 452-464.

LACOSTE, A.; SALANON, R. Biogeografia. 2ª ed. Barcelona: Dikos/Tau, S.A. Ediciones, 1973. 271 p.

SÃO PAULO, Instituto Geográfico e Geológico. Mapa Geológicodo Estado de São Paulo - escala 1:1.000.000. São Paulo: Secretariada Agricultura, 1975.

SCARIN, Paulo Cesar. Crítica à apologia dos objetos. In: GEOusp,Espaço e Tempo. revista de pós-graduação do Departamento deGeografia, FFLCH-USP São Paulo, nº 5, p. 57-60. 1999.

Isto permite a referência bibliográfica e a indicação da fonte decitação ao longo do texto, na seguinte forma: (BIONDI, 1982, p.457) ou (LACOSTE; SALONON, 1973, p. 86).

6 - Os trabalhos para publicação deverão ser remetidos à:ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS - Seção São Paulo

A/C Coordenação de Publicações - Boletim Paulista de Geografia

Caixa Postal 64.525

CEP 05402-970

São Paulo - SP - Brasil

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ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS

A AGB tem por objetivo:· Promover o desenvolvimento da Geografia, pesquisando e divulgando

assuntos geográficos, principalmente brasileiros;· Estimular o estudo e o ensino da Geografia, propondo medidas para o seu

aperfeiçoamento;· Promover e manter publicações de interesse geográfico, periódicas ou não;· Manter intercâmbio e colaboração com outras entidades dedicadas à

pesquisa geográfica ou de interesse correlato, ou ainda à sua aplicação,visando ao conhecimento da realidade brasileira;

· Organizar e manter atualizado um cadastro de seus associados, com seuscurrículos e realizações no âmbito da ciência geográfica;

· Propugnar pela maior compreensão e mais estrita colaboração com osprofissionais e estudantes de disciplinas afins;

· Analisar atos dos setores públicos ou privados que interessam e envolvama ciência geográfica, os geógrafos e as instituições de ensino e pesquisade Geografia, e manifestar-se a respeito;

· Congregar os geógrafos, professores, estudantes de Geografia e demaisinteressados, para defesa e prestígio da classe e da profissão;

· Promover encontros, congressos, exposições, conferências, simpósios,cursos e debates, bem como o intercâmbio profissional, mantendo contatocom entidades congêneres e afins, no Brasil e no exterior, de modo afavorecer a troca de observações e experiências entre seus associados;

· Representar o pensamento de seus sócios junto aos poderes públicos e àsentidades de classe, culturais ou técnicas.

ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS

Sede da Seção Local São PauloAv. Prof. Lineu Prestes, 338 - Prédio da História/Geografia

Cidade Universitária - USP – São Paulo – SP – BRASILFone: (11) 3091-3758

www.agbsaopaulo.org.brCorreio eletrônico: [email protected]

Endereço para correspondência:Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção São Paulo

Caixa Postal 64525 - CEP: 05402-970 - São Paulo – SP – Brasil

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ARTIGOS

ANTONIO CARLOS VITTEMETAFÍSICA, NATUREZA E GEOGRAFIA: APONTAMENTOS PARAO DEBATE SOBRE A GEOGRAFIA FÍSICA MODERNA

DIRCE MARIA ANTUNES SUERTEGARAYUM ANTIGO DEBATE (A DIVISÃO E A UNIDADE DA GEOGRAFIA)AINDA ATUAL?

ANGELA MARIA ROCHAA CIDADE E SUAS REPRESENTAÇÕES

ROSA IAVELBERGCIDADE: VIA DE ACESSO DA ARTE À ESCOLA

REGINA CÉLIA BEGA DOS SANTOSALPHAVILLE E TAMBORÉ: CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICASMEDIEVAIS NA APROPRIAÇÃO DE TERRAS PARA CONDOMÍNIODE ALTO PADRÃO

PAOLA VERRI DE SANTANADA NECESSIDADE DA FESTA À NECESSIDADE DO ESPETÁCULO

SONIA MARIA VANZELLA CASTELLARA CIDADE E A CULTURA URBANA: UM ESTUDO METODOLÓGICOPARA SE ENSINAR GEOGRAFIA