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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA WILLIBALDO RUPPENTHAL NETO A PSYKHÉ ENTRE OS GREGOS: DO MITO HOMÉRICO ÀS CONCEPÇÕES PRÉ-SOCRÁTICAS CURITIBA 2014

do mito homérico às concepções pré-socráticas

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    WILLIBALDO RUPPENTHAL NETO

    A PSYKH ENTRE OS GREGOS:

    DO MITO HOMRICO S CONCEPES PR-SOCRTICAS

    CURITIBA

    2014

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    WILLIBALDO RUPPENTHAL NETO

    A PSYKH ENTRE OS GREGOS:

    DO MITO HOMRICO S CONCEPES PR-SOCRTICAS

    Trabalho de Concluso de Curso submetido Universidade Federal do Paran, como partedos requisitos necessrios para a obteno dograu de Licenciatura em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. Renan Frighetto.

    CURITIBA

    2014

  • Dedico este trabalho a Deus,

    criador e sustentador de todas as coisas,

    e a todos os que me apoiam diariamente nesta caminhada acadmica.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos que me apoiaram, especialmente:

    A Deus,

    a quem devo a existncia.

    A meus pais,

    a quem devo minha educao em todos os nveis.

    A meu irmo,

    grande amigo e apoiador.

    A Juliana,

    por ser minha companheira em todas as situaes.

    Ao prof. Renan Frighetto,

    por ser um conselheiro e mentor.

    Aos meus colegas e amigos,

    pelo suporte e auxlio.

  • RESUMO

    Este trabalho visa apresentar e analisar os vrios sentidos e significados do conceito de psykh na

    Grcia Antiga, de Homero aos pr-socrticos, buscando evidenciar as ideias e mentalidades que

    geraram tais transformaes e suas relaes com as re-significaes do conceito ao longo da

    histria. Da compreenso homrica da psykh como uma sombra que vai para o Hades, esta passou

    a ser percebida como imortal a partir das religies de mistrio, sendo ainda relacionada com a

    individualidade desenvolvida pela literatura ps-homrica e por fim tomando forma e conceituao

    com as teorias pr-socrticas. A psykh nos textos homricos , evidentemente, uma sombra que se

    esvai do corpo para o Hades no momento da morte, expressando no uma parte do ser humano, mas

    algo que existe apenas no momento da morte e aps este no Hades, se aproximando muito pouco do

    conceito posterior de alma enquanto uma realidade imortal que expressa a realidade individual de

    cada pessoa. Esta transformao presente na histria do conceito de psykh na Grcia Antiga o

    objeto de estudo deste trabalho.

    Palavras-chave: Alma; Grcia Antiga; Histria dos conceitos.

  • Sumrio

    INTRODUO....................................................................................................................................41. HISTRIA DOS CONCEITOS: PROPOSTA METODOLGICA................................................71.1. A CONSTRUO DE CONCEITOS...........................................................................................71.2. CONCEITOS E MENTALIDADES.............................................................................................81.3. CONCEITOS E IDEIAS.............................................................................................................101.4. CONCEITOS E TEMPOS HISTRICOS..................................................................................122. HISTRIA DO CONCEITO DE PSYKH...................................................................................132.1. HOMERO....................................................................................................................................142.1.1. A Tradio: Homero e Hesodo................................................................................................142.1.2. O mundo de Homero: sociedade e estrutura poltica................................................................162.1.3. Antropologia homrica: o homem segundo Homero................................................................162.1.3.1. Representao de hipotaxe e parataxe............................................................................172.1.3.2. A estrutura potico-mimtica e a corporeidade.....................................................................212.1.4. A psykh em Homero...............................................................................................................222.1.4.1. A sombra que vai para o Hades.............................................................................................222.1.4.2. A vida que se vai com a morte...............................................................................................242.1.4.3. Entre psykh e phrnes: a expresso na ao........................................................................252.1.4.4. Sentido paratxico: situao e forma de manifestao......................................................282.2. RELIGIES DE MISTRIOS....................................................................................................312.2.1. Mistrios de Elusis..................................................................................................................332.2.2. Dionisismo................................................................................................................................352.2.3. Orfismo.....................................................................................................................................372.3. LITERATURA PS-HOMRICA..............................................................................................412.3.1. Poesia lrica..............................................................................................................................412.3.2. Tragdias...................................................................................................................................442.4. PR-SOCRTICOS....................................................................................................................492.4.1. Tales..........................................................................................................................................502.4.2. Herclito...................................................................................................................................522.4.3. Pitagricos................................................................................................................................532.4.4. Empdocles...............................................................................................................................572.4.5. Demcrito.................................................................................................................................57CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................................59REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...............................................................................................60

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    INTRODUO

    A histria da Grcia antiga apresenta processos de grandes transformaes culturais e sociais

    em poucos sculos, dos tempos homricos a Scrates e Plato. Neste perodo de tempo ocorreram

    diversas transformaes e criaes, tais como: as cidades-Estado e o pensamento poltico (que

    atinge seu apogeu com A Repblica de Plato e A Politica de Aristteles1); as religies de mistrios,

    que surgem no intercmbio religioso entre ocidente e oriente; a filosofia, proveniente de uma

    postura de reflexo crtica racional; alm das diversas criaes artsticas, que vo desde as artes

    plsticas at as tragdias, que marcaram a histria da arte e serviram de modelo para as posteriores

    retomadas renascentistas. Este perodo de grandes modificaes culmina na revoluo estrutural

    da qual fala Anthony M. Snodgrass (SNODGRASS, 1981: 15-84.), na qual tambm a religio sofre

    diversas modificaes, uma vez que o prprio sistema religioso profundamente reorganizado em

    estreita conexo com as formas novas de vida social representadas pela cidade, a

    plis2(VERNANT, 2006: 41).

    Este desenvolvimento da cultura grega que fundamentou a cultura ocidental como um todo

    serviu no desenvolvimento de vrios estudos desde as cincias naturais, at o prprio

    autoconhecimento do homem, na sua relao consigo mesmo, com os outros e com o cosmos. Neste

    sentido desenvolvem-se ideias e formam-se conceitos variados que, tendo surgido no contexto

    mitolgico-religioso, passam a ser analisados e explicados por vias racionais, ganhando novos

    sentidos. Um exemplo disto o conceito de psykh, que de seu sentido em Homero at sua

    compreenso pr-socrtica passa por variadas transformaes, acompanhando as mudanas de

    mentalidade, do imaginrio e mesmo da sociedade grega. O presente trabalho visa analisar a histria

    deste conceito (psykh), expondo as variadas compreenses do mesmo, relacionando-as aos

    respectivos contextos histricos, identificando as diretrizes e motivos de mudanas de percepo,

    alm de problematizar as permanncias e relaes destas diferentes ideias ao longo da histria.

    No estudo da cultura e religio gregas, necessrio compreender-se que trata-se de um

    contexto de conceitos, ideias, mentalidades e realidades completamente diversos dos quais o

    homem contemporneo est acostumado. Da religio grega atual ideia de religio, h uma grande

    1 Isto no quer dizer que as prticas polticas no continuassem com influncias de foras predecessoras tais como osorculos e augrios, uma vez que estes, segundo Martin Nilsson, eram o meio mais eficaz de influenciar o homemcomum que votava na assembleia popular (NILSSON apud FINLEY, 1985: 116).

    2 A relao entre formao da ideia de Estado na Grcia e os demais avanos (culturais, religiosos, econmicos) difcil de ser explicada, de tal forma que tanto se percebe uma forte vinculao de todos os avanos ideia deEstado, como tambm os demais processos comeam a criar certa independncia: O desenvolvimento do sculooitavo na Grcia, verdade, parece quase completamente centrado em volta de uma ideia abstrata: o novo conceitode Estado. Mas os avanos materiais e tcnicos associados a esta ideia logo desenvolveram um mpeto prprio.[Minha traduo, assim como dos demais textos em lnguas modernas alm do portugus] (SNODGRASS, 1981:49).

  • 5

    distncia, uma vez que houveram transformaes tamanhas que as prprias noes (bsicas) de

    religio e tudo que esta envolve, tal como seu papel, suas funes, tanto quanto seu lugar dentro

    do indivduo e do grupo (VERNANT, 2006: 1) j no so mais como eram antes. Quando se

    estuda a religio dos antigos gregos tenta-se, portanto, perceber as diferenciaes e relaes com o

    contexto atual o que gera dificuldades e problemas metodolgicos. Havendo tal situao, h vrias

    formas de se perceber a religio grega, uma vez que surgiram muitas teorias de anlise cujos autores

    so referncias nos estudos de religio e cultura grega: Andr-Jean Festugire, grande estudioso,

    sendo cristo, acabou entendendo apenas o culto dos gregos como pertencente ao que ele

    denominava mbito religioso, deixando elementos essenciais tal como a mitologia grega fora

    deste sistema, uma vez que no os compreendia na lgica crist de religio3; Domenico Comparetti,

    de forma diferente, percebia apenas o orfismo como religio grega; James George Frazer e Jane

    Ellen Harrison4, da escola antropolgica inglesa, percebiam a religio grega como tendo fundo de

    crenas primitivas5, vendo as religies de maneira progressiva e valorativa. Apesar de ser

    necessrio dar o devido crdito a tais autores, acompanhamos Jean-Pierre Vernant na ideia de que

    as religies antigas no so nem menos ricas espiritualmente nem menos complexas e organizadas

    intelectualmente do que as de hoje. Elas so outras (VERNANT, 2006: 3). esta diferenciao que

    se faz necessrio no estudo historiogrfico o respeito pela alteridade o que gera os necessrios

    espaos para a incompreenso e problematizaes, como o caso do conceito de psykh nos seus

    vrios contextos.

    Ao mesmo tempo que se respeita tal alteridade, necessria a aproximao para

    compreenso e descrio desta realidade to complexa que a religio da Grcia antiga, e para isto

    so necessrias as analogias, uma vez que se no houvesse analogias, no poderamos falar, a

    propsito dos gregos, de piedade e de impiedade, de pureza e de mcula, de temor e de respeito

    diante dos deuses, de cerimnias e de festas em homenagem a eles (VERNANT, 2006: 3), ou

    mesmo de coisas referentes alma. Porm, tambm se faz necessrio construir a relao destes

    termos com os sentidos especficos que possuam estas ideias ou conceitos em seus contextos. Esta

    3 Andr-Jean Festugire no seu estudo sobre a religio grega comea definindo a religio como a busca do Ser queexiste absolutamente, em toda perfeio e esplendor (FESTUGIRE, 1954: 1), e buscando entre os gregos o quese aproxima desta sua definio de religio, no percebendo que a religio grega existe para alm desta percepo dereligio como busca de um Ser supremo.

    4 Apesar dos limites interpretativos pelo mtodo antropolgico ingls, a estudiosa Jane Ellen Harrison um dosgrandes nomes no estudo da Grcia antiga, sendo sua obra Themis de importncia crucial para um estudopormenorizado das origens sociais da religio grega. Cf. HARRISON, 1912.

    5 A distino clssica entre moderno e primitivo desenvolve-se especialmente com Lucien Lvy-Bruhl, queconsiderou a diferena bsica entre o pensamento primitivo () e o pensamento moderno reside em que oprimeiro completamente determinado pelas representaes msticas e emocionais. (LVI-STRAUSS, 1989: 30).Esta ideia de diferenciao de sistemas pela mentalidade primitiva, La mentalit primitive como o ttulo do livrode Lvy-Bruhl, apresenta-se como equivocada segundo a ideia de muitos estudiosos, como Claude Lvi-Strauss, quetenta fugir deste sistema na fundamentao sobre a ideia de selvagem.

  • 6

    a histria do conceito de psykh apresentada neste trabalho.

  • 7

    1. HISTRIA DOS CONCEITOS: PROPOSTA METODOLGICA

    No trabalho aqui proposto, busca-se realizar um estudo de histria no qual analisa-se a

    construo do conceito de psykh desde seu significado em Homero at seu significado em Plato.

    Para se compreender a diferenciao destes significados, faz-se necessrio compreender-se tambm

    as relaes entre este conceito e os elementos que lhe so associados, tais como a mentalidade e as

    ideias destes contextos6.

    1.1. A CONSTRUO DE CONCEITOS

    Os conceitos so criados para expressar ideias, que acompanham as impresses gerais do ser

    humano. As impresses so construdas sobre preconceitos at serem reconfiguradas por novas

    compreenses7 estruturadas o suficiente para serem tidas por conceitos, reunindo caractersticas

    variadas e expressando uma ideia da totalidade destas caractersticas, como bem explica Ernst

    Cassirer:

    O conceito constitui-se () quando certo nmero de objetos acordantes em determinadascaractersticas e, por conseguinte, em uma parte de seu contedo, reunido no pensar; esteabstrai as caractersticas heterogneas, retm unicamente as homogneas e reflete sobre elas, deonde surge, na conscincia, a ideia geral dessa classe de objetos. Logo, o conceito (notio,conceptus) a ideia que representa a totalidade das caractersticas essenciais, ou seja, a essnciados objetos em questo. (CASSIRER, 1992: 42).

    As impresses preconceituosas das pessoas, porm, so tambm expostas e concretizadas

    atravs da formao de conceitos generalizantes8, que tornam-se preconceitos pela abrangncia e

    consequente perda de definio e preciso9. Assim, conceitos definidores de classes como

    burguesia (no seu sentido ps-Marx10), como tambm conceitos definidores de ideologia, ou

    6 Um exemplo de procedimento neste sentido foi a pesquisa de Michel Foucault sobre a palavra grega parresa(FOUCAULT, 2004).

    7 A perda de preconceitos muitas vezes praticamente inconsciente: O desaparecimento de preconceitos significasimplesmente que perdemos as respostas que nos apoivamos de ordinrio sem querer perceber que originariamenteelas constituam respostas a questes. (ARENDT, 2011: 223).

    8 Um grande exemplo de conceito generalizante que expressa uma impresso preconceituosa o conceito debrbaro, que possui longa histria, com variados significados, mas que originalmente relacionava-se com aimpresso preconceituosa dos gregos sobre os demais, distinguindo-se dos outros pela lngua em comum(elemento de identidade). Sendo assim, a noo de brbaro s era possvel pela identificao dos gregos pelalngua grega: os brbaros eram, ento, todos aqueles que no a compreendiam, nem a falavam ou que falavamincorretamente (TODOROV, 2010: 24-25).

    9 A formao de um conceito pressupe a limitao das caractersticas formantes do conceito, de tal forma que umconceito, uma reunio de objetos em uma mesma classe somente quando existem certos traos fixos, mediante osquais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou dessemelhantes, coincidentes ou no-coincidentes(CASSIRER, 1992: 42).

    10 (...) o homnimo 'burgus' [Brger] vazio de significado, se no for examinado pela perspectiva da mudana desentido do conceito: de cidado ou habitante da cidade [(Stadt-)Brger] por volta de 1700, para cidado do Estado

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    mesmo de mentalidade, tais como fascista11, direitista, fundamentalista, so utilizados de

    forma extremamente equivocada, mostrando a generalizao para o qual tendem e tornando-se

    preconceitos.

    Reinhart Koselleck, historiador alemo especialista (e maior nome) da histria dos

    conceitos (alemo: Begriffsgeschichte), bem afirmou que os '-ismos' que serviram como

    conceitos de agrupamento e de dinmica para ordenar e mobilizar as massas estruturalmente

    desarticuladas (KOSELLECK, 2006: 102-103), acabam indo hoje desde o clich at o conceito

    definido academicamente. Basta lembrar termos como 'conservadorismo', 'liberalismo', ou

    'socialismo'. (KOSELLECK, 2006: 103). Sendo assim, a compreenso e uso de conceitos algo

    extremamente complicado, por lidar ao mesmo tempo com ideias preconcebidas e ainda latentes

    sobre conceitos e suas definies formais e acadmicas. Assim sendo, no estudo da histria de um

    determinado conceito, acaba havendo uma gama de compreenses sobre determinado conceito num

    mesmo contexto histrico, especialmente se tratando do pblico leitor para o qual o estudioso se

    dirige, uma vez que o conceito ter sobre si um nmero maior de estratificaes de significado.

    1.2. CONCEITOS E MENTALIDADES

    Para o estudo dos conceitos, se faz ento necessrio o estudo das mentalidades, uma vez que

    h entre eles uma forte relao. Para se perceber a relao entre os conceitos e as mentalidades,

    basta atentar-se para os limites de interpretao e traduo de textos de culturas com outras

    mentalidades, uma vez que h regras de hermenutica que devem ser respeitadas, tais como as

    listadas por Giovanni Reale:

    Em primeiro lugar, na linguagem, alm do nosso pensamento, exprime-se o prprio corpo, quemanifesta no s a prpria existncia, mas o modo pela qual recebe as coisas e o mundo no qualvive.Em segundo lugar, as palavras pronunciadas na prpria lngua so ricas de significadosemocionais, que espelham a vida no mundo com o qual aquela lngua est ligada.Em terceiro lugar, uma lngua no nunca passvel de traduo perfeita em outra, porque, paraalcanar a compreenso e a expresso perfeita das mensagens comunicadas com aquela

    [(Staats-)Brger] por volta de 1800 e, por fim, para burgus [Brger], no sentido de no-proletrio, por volta de1900. (KOSELLECK, 2006: 105).

    11 Paul Veyne bem lembra-nos que o nazismo da II Guerra Mundial causava transtornos ao seu grupo comunista:Lembro-me da confuso doutrinal que em 1952 o antissemitismo hitleriano causava em nosso pequeno grupo deestudantes comunistas: estava entendido que o 'fascismo' hitleriano tinha estado a servio da burguesia, mas paraque podia ter servido o antissemitismo? Quando nos deparvamos com o problema em nossas cabeas, pensvamosrapidamente em outra coisa para no perder a f. (VEYNE, 2011: 205 nota 5). Koselleck bem percebe que talimpossibilidade de definio marxista do fascismo possui sua origem na prpria limitao de linguagem domarxismo que tende a generalizaes e assim acaba atribuindo o fascismo ao capitalismo: Quando surgiu ofascismo, no previsto nesta linguagem ortodoxa, ela s poderia ser interpretado enquanto estgio mais avanado docapitalismo. (KOSELLECK, 1992: 134-146 [145]).

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    linguagem, seria preciso ser diretamente participante do mundo que se exprime naquelalinguagem. (REALE, 2002: 46).

    O estudo de histria das mentalidades justamente a percepo das diferentes formas dos

    homens sentirem e agirem no mundo em relao a determinadas questes, tais como a morte, a

    religio ou mesmo os medos em geral12. Tais modos de agir e pensar esto necessariamente

    conectados cultura do ser humano13, ou seja, ao seu contexto histrico, sendo impossvel

    ultrapass-lo completamente14:

    Nenhum esprito pode ser completamente independente de seu ambiente e de sua poca; cadaum tem um processo na formao, que determina sua orientao atravs do duplo caminho daadaptao e da reao aos influxos que padece; em consequncia disto, fica vinculado suapoca e histria anterior do pensamento e da cultura. (MONDOLFO, 1969: 32).

    Na relao entre conceitos e mentalidades tambm se faz necessrio compreender-se a

    metodologia prpria da pesquisa historiogrfica, onde faz-se necessrio que o pesquisador esteja

    livre de ideias preconcebidas o quanto possvel15, de forma a definir os delineamentos do estudo

    atravs do que a prpria pesquisa oferece, ao longo desta. Trata-se de se ter uma conscincia

    metodolgica onde as mentalidades, transmitidas em conceitos analisados e de anlise devem ser

    construdas a partir da prpria pesquisa, e no anteced-la por completo, em forma de preconceitos

    nos quais o pesquisador se fixa. neste sentido que muitas pesquisas sobre a Grcia Antiga foram

    12 A chamada histria das mentalidades (francs: Histoire des Mentalits) surge no contexto da historiografiafrancesa com a Escola dos Annales. Os grandes nomes desta corrente historiogrfica foram os dois primeirosrepresentantes dos Annales, Marc Bloch e Lucien Febvre, que buscaram definir as mentalidades de perodosespecficos como a Idade Mdia. Suas pesquisas identificaram ento a mentalidade religiosa da Idade Mdia emesmo a impossibilidade do atesmo neste perodo como bem se percebe no estudo de Febvre sobre Rabelais.Dando continuidade a esta forma de pesquisa, outros nomes e pesquisas surgiram, tais como as pesquisas da relaodos homens com a morte (de Philippe Aris e de Michel Vovelle), com seus medos (Jean Delumeau), etc. A histriadas mentalidades, porm, acabou sendo utilizada em novas metodologias de pesquisa, sendo incorporada einfluenciando outros estudos, tais como a histria cultural e a psicologia histrica. Seja como for, os dois paisdos Annales foram importantssimos no desenvolvimento destes estudos, uma vez que a histria das mentalidades,tal como foi praticada a partir dos anos 60 por Georges Duby, Robert Mandrou, Jacques Le Goff e tantos outros,deve muito ao exemplo de Febvre, como tambm ao de Bloch (BURKE, 2010: 47).

    13 Cultura justamente, como bem define Claude Lvi-Strauss, todas as atitudes ou aptides aprendidas pelo homemenquanto membro de uma sociedade (LVI-STRAUSS apud TODOROV, 2010: 38). Desta forma, o homemnecessita de cultura para expressar-se, pois necessariamente expressa-se culturalmente em modos de agir e sentirrelacionados s suas experincias, podendo compreender-se cultura como uma pr-organizao da experinciavivida (TODOROV, 2010: 38). Sendo assim, a cultura fornece elementos e instrues sem os quais nopoderamos estar certos de ter comunicado, nem mesmo nossas emoes mais elementares, ou seja, o medo e aalegria. (TODOROV, 2010: 39).

    14 O historiador francs Fernand Braudel, assumindo a liderana da Escola dos Annales aps Marc Bloch e LucienFebvre (criando a chamada segunda gerao), distancia da histria das mentalidades de seus antecessores, masem seus estudos histricos marcados pela economia, buscava tambm encontrar as grandes duraes econsequentemente as rupturas de estruturas, que apesar de comearem em episdios especficos, demoram muitopara se efetuarem realmente.

    15 Como bem disse Fustel de Coulanges: (...) reside a a maior causa de erro em histria. H espritos que, por essenico motivo, so como que incapazes de enxergar a verdade. Se a histria a mais difcil das cincias, sobretudoporque exige do pesquisador que esteja livre de qualquer ideia preconcebida. (COULANGES, 1887, In: HARTOG,2003: 317).

  • 10

    criticadas, como o faz Jean-Pierre Vernant sobre a anlise de Nietzsche16, que impe sua

    mentalidade Grcia Antiga, diferente de J.-P. Vernant, que pelo seu estudo de psicologia histrica,

    busca alcanar uma proximidade do que seria a mentalidade grega a partir dos seus estudos. Busca-

    se aqui alcanar por fim o que foi definido pelo historiador francs Lucien Febvre como

    utensilagem mental (francs: outillage mental), definida da seguinte forma:

    (...) inventariar em detalhes e depois recompor, para a poca estudada, o material mental de quedispunham os homens desta poca; atravs de um esforo de erudio, mas tambm deimaginao, reconstruir o universo, fsico, intelectual, moral, no meio do qual se moveram asgeraes que o precederam; tornar evidente, de um lado, a insuficincia das noes de fatosobre tal ou tal ponto; por outro lado, o estudo da natureza engendraria necessariamente lacunase deformaes nas representaes que certa coletividade histrica forjaria do mundo, da vida, dareligio, da poltica. (FEBVRE apud RAMINELLI, 1990: 109).

    1.3. CONCEITOS E IDEIAS

    Alm da relao entre conceitos e mentalidades, h tambm uma relao entre conceitos e

    ideias, muito prxima relao anterior, mas que lhe difere. Dentro de uma mesma mentalidade h

    diversas ideias, e estas ideias podem se relacionar com um mesmo conceito. Tambm a mudana de

    mentalidade apenas surge a partir de transformaes anteriores sobre as ideias, que fazendo parte,

    modificam (aos poucos) as mentalidades. As mentalidades se modificam, portanto, ao longo do

    desenvolvimento das ideias. Compreendendo a psykh enquanto variadas ideias conectadas por um

    elo invisvel da linguagem, podemos entender que a psych passa a existir no momento em que

    historicamente acontece, mas seu acontecer continua acontecendo atravs da Histria, e se

    mostrando a quantos tm as condies necessrias para captar o sentido do que est acontecendo

    (ROCHA, 2001: 70). Ou seja, as variadas modificaes de ideias se relacionam entre si, formando

    uma unidade, mesmo que esta no possa ser percebida ou compreendida antes de seu

    16 Jean-Pierre Vernant afirma o seguinte sobre a anlise de Nietzsche da Grcia antiga: (...) no acredito de formaalguma na oposio entre Apolo e Dioniso feita por Nietzsche. Para mim, trata-se de pura construo, fabricao.Traduz apenas problemas e um horizonte espiritual e religioso que eram os de Nietzsche e de sua poca.(VERNANT, 2009b: 347). De fato Nietzsche em sua obra O nascimento da tragdia, deixa claro que parte depressupostos e ideias preconcebidas para analisar a Grcia antiga, com modelos pr-definidos prontos paraencaixar o que encontrasse em sua anlise. Isto fica evidente no prprio formato do texto, que no 1 constri ateoria dos modelos apolneo e dionisaco, sendo os pressupostos para as anlises que comeam a partir do 2, ondeescreve: Depois dessas pressuposies e contraposies gerais, aproximemo-nos agora dos gregos, a fim dereconhecer em que grau e at que ponto estavam neles desenvolvidos esses impulsos artsticos da natureza.(NIETZSCHE, 2010: 29). A lgica dos impulsos apolneo e dionisaco no construda a partir da anlise da Grcia,pois trata-se de uma realidade da prpria natureza, segundo Nietzsche, na qual os gregos necessariamente tero quese encaixar, sendo descoberto apenas em que grau e at que ponto estavam neles desenvolvidos esses impulsosartsticos da natureza. Desta forma Rachel Gazolla chega seguinte concluso: Herdeiro da filosofia e doromantismo alemes, Nietzsche tem uma leitura da tragdia grega marcada pelo sculo XIX, ao mesmo tempo queresgata ngulos dessa manifestao cultural especfica da plis do sculo X a.C. que, diramos, so a-histricos.(GAZOLLA, 2011: 47).

  • 11

    desenvolvimento completo.

    Tal relao entre ideias e conceitos, porm, deve evitar equvocos metodolgicos, sendo

    necessrio compreender-se o contexto dentro do qual cada conceito e processo histrico se

    encontra. Deve-se evitar pressuposies e formulaes deterministas como de enlaces e

    direcionamentos irreais, conectando impropriamente ideias e conceitos de mentalidades

    completamente diferentes, como o fez Paul Carus (1900) ao propor a percepo dos mistrios

    gregos como preparao para o cristianismo17. Deve-se portanto evitar estas anlises que colocam

    elementos criados a posteriori enquanto intrnsecos dentro do processo histrico, como se a histria

    necessariamente tivesse que culminar em determinados elementos18, tal como a ideia da

    imortalidade da alma realidade tardia dentro da histria da Grcia Antiga que muitas vezes

    relacionada indevidamente com outras religies, como a crist. Demonstra-se aqui que a ideia

    platnica da imortalidade da alma desenvolve-se conectada s antigas ideias relacionadas com o

    conceito de psykh, mas no se trata de um resultado necessrio ou mesmo planejado.

    Como bem destacou Walter Friedrich Otto (2006), h uma tendncia historiogrfica que data

    do sculo XIX de compreender-se a religio grega em perspectivas evolucionistas19, buscando em

    fatos mais antigos evidncias que apontem para um direcionamento prvio no sentido de

    determinados resultados, ou mesmo imaginando pressentimentos e antevises de ideias religiosas

    posteriores, tais como as de alma, imortalidade ou mesmo monotesmo, como se as

    modificaes religiosas fossem melhorias naturais e resultantes da prpria fora histrica, que

    direcionaria o homem s verdades hoje compreendidas, de tal modo que muitas vezes os

    pesquisadores tm projetado no homem arcaico sua prpria imagem (OTTO, 2006: 33),

    17 A ideia da filosofia grega ou de elementos gregos (tal como neste caso as religies de mistrios) enquantopreparao para o cristianismo (recorrente com a expresso latina Praeparatio Evangelica) foram desenvolvidasdesde a antiguidade atravs do neopitagrico Numnio e os apologistas cristos, desenvolvendo-se no Renascimentoe continuando a influenciar por muito tempo as vises aceitas (BURNET, 2007: 31).

    18 Esta compreenso equivocada da histria a histria teleolgica, especialmente presente no regimehistoriogrfico vigente no sculo XX, na mentalidade e crena no progresso. Trata-se do regime de historicidadeque Franois Hartog define como 'regime de historicidade moderno' que marcado pelo futurismo, ou, de acordocom a terminologia koselleckiana, pelo progressivo afastamento entre o horizonte de expectativas e o espao deexperincias. Trata-se de um regime em que estudar a histria, investigar o passado, uma forma de realizar ofuturo. A histria no aparece na modernidade como fonte de exemplos, no se busca ensinamentos, ela no mestrada vida. O estudo do passado relaciona-se ao sentimento de desenraizamento promovido pela acelerao temporalmoderna, e, sobretudo, pelo desejo de se conhecer o sentido da histria. (ROCHA, 2008: 2). Neste modelo sedesenvolveram as famosas filosofias da histria. Ludwig von Mises aponta para duas caractersticas necessrias s'filosofias da histria': Toda variedade de filosofia da histria deve responder a duas questes. Primeira: qual ofim objetivo ltimo e o caminho a este ser alcanado? Segunda: por que meio as pessoas so induzidas ou foradas aseguir este curso? Somente se ambas as perguntas forem completamente respondidas o sistema completo. (VONMISES, 2007: 162-163). Konrad Lorenz, porm, define trs atos que formam a unidade funcional de um sistemateleolgico (como as 'filosofias da histria'): primeiro, a definio de um objetivo () segundo, uma escolha dosmeios a partir do objetivo definido () terceiro, a realizao do objetivo atravs da sequncia causal dos meiosescolhidos. (LORENZ, 1986: 23).

    19 Cabe destacar que o debate em que Walter Otto se insere muito amplo, no cabendo aqui uma posio sobre todosos pontos que so por ele questionados na historiografia ou mesmo na crtica a autores bastante importantes nestapesquisa aqui apresentada, tais como Martin P. Nilsson e seus pares da escola etnolgica.

  • 12

    entendendo as diferenas do homem arcaico como ausncias ou mesmo deficincias em relao

    ao homem moderno, como se a alma, por exemplo, tivesse sido descoberta, e no formulada. Trata-

    se de um equvoco que o filsofo alemo Martin Heidegger cometeu e que muitos pesquisadores

    continuam cometendo.

    1.4. CONCEITOS E TEMPOS HISTRICOS

    A histria da filosofia, assim como a histria de um conceito no podem dar-se

    independentes de um estudo das estruturas sociais e econmicas com as quais se relacionam. Alm

    de se perceber a dependncia evidente entre as ideias e as situaes sociais, deve-se compreender

    que h tambm uma influncia mtua, ou seja, trata-se de uma relao de construo, como se

    percebe com as interrogaes que o filsofo George Thomson fez: Mas se o progresso do

    pensamento depende do progresso da sociedade, de que depende o progresso da sociedade? E que

    relao mantm o pensamento civilizado com a sociedade civilizada? (THOMSON, 1972a: 213).

    Thomson encontrou o marxismo enquanto resposta para tais interrogaes, entendendo a luta de

    classes como o mecanismo propulsor das transformaes da sociedade e do pensamento, porm

    cabe um estudo mais profundo antes de se concluir alguma coisa.

  • 13

    2. HISTRIA DO CONCEITO DE PSYKH

    Em geral os dicionrios filosficos explicam o termo psykh no sentido da interpretao

    socrtico-platnica enquanto um elemento divino no homem, contrapondo-se ao corpo do mesmo

    porm, o conceito de psykh sofre diversas modificaes ao longo dos sculos dentro da cultura

    grega, de tal forma que simplesmente traduzir este termo por alma20, hoje relacionado com o

    conceito platnico (ou mesmo cristo), uma postura hermenutica que no leva em conta as

    transformaes histricas sofridas pela lngua e mentalidade grega (OLIVEIRA, 2008: 9). Tais

    transformaes podem ser percebidas e analisadas na histria grega desde Homero at Plato.

    Somente seguindo esta trajetria e analisando as vrias mentalidades e ideias com as quais este

    conceito se relaciona ao longo da histria grega, que pode-se compreender a pluralidade de

    significados que o conceito de psykh possuiu e ainda possui nos diversos textos e fontes que

    possumos da Grcia Antiga.

    Busca-se evitar as tendenciosas perspectivas sobre o desenvolvimento do conceito de psykh

    na Grcia antiga, como se houvesse um universo espiritual pr-definido para o qual as ideias

    teriam se direcionado desde o incio do processo , at porque no h universo espiritual existente

    em si, fora das diversas prticas que o homem desenvolve e renova continuamente no campo da

    vida social e da criao cultural (VERNANT, In: VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1988: 21).

    Assim, faz-se necessrio o estudo no apenas da religio e filosofia gregas, onde o conceito ter

    papel principal, mas tambm do contexto cultural e social na qual os vrios momentos e percepes

    estavam inseridos. Ao mesmo tempo, porm, se entender que h uma histria psicolgica do

    homem ocidental (VERNANT, In: VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1988: 38), na qual os

    conceitos se constroem sobre ideias que so desenvolvidas em um processo de dependncias, ou

    seja, apesar de evitar-se aqui uma perspectiva teleolgica, no se pode evitar perceber as

    mudanas no conceito de psykh na Grcia antiga dentro de uma perspectiva linear, percebendo os

    vrios usos deste conceito no como estgios, mas como momentos de um mesmo processo

    histrico.

    20 A palavra psykh tradicionalmente traduzida nas lnguas modernas pelo equivalente em portugus de alma; emingls, soul; francs, me; em alemo, seele; em espanhol, alma; em italiano, anima. A traduo da palavra por alma a menos inadequada e aceita amplamente pelos especialistas, mas os significados de alma nas lnguas modernasno abarcam completamente a rea semntica do original (OLIVEIRA, 2008: 10). Uma simples traduo notransmite os vrios significados e a histria por trs deste conceito.

  • 14

    2.1. HOMERO

    2.1.1. A Tradio: Homero e Hesodo

    O primeiro contexto que se faz necessrio analisar-se para se entender a histria do conceito

    de psykh na Grcia Antiga a obra de Homero, sendo necessrio para isto compreender-se quem

    era Homero para os gregos antigos. Homero e Hesodo no eram apenas a base da tradio grega,

    mas eram quase a tradio cultural grega em si. certo que Homero era considerado por todos os

    gregos no apenas como o maior de todos os poetas, mas tambm o prprio nome de Homero

    tornou-se sinnimo de poeta (CARPEAUX, 1959: 52). Suas duas principais obras, a Ilada e a

    Odisseia, eram utilizadas como livros didticos nas escolas gregas, servindo como mecanismos de

    exemplificao mtica, alm de servirem de base cultural e mesmo vivencial para crianas e adultos,

    uma vez que os gregos de todos os tempos encontraram em Homero respostas quanto conduta da

    vida (CARPEAUX, 1959: 59). Homero era, portanto, a base da paidia21 grega, chegando a ser

    por muito tempo o equivalente do que o grego mdio entendia por 'paideia' (JAEGER, 2002: 65),

    ou seja, o educador grego por excelncia (TEIXEIRA, 1999: 13)22. Porm, a partir do sculo VI

    a.C. comea a ocorrer um processo de crtica homrica, na qual comea-se a questionar-se a autoria

    homrica e a veracidade dos fatos narrados.

    A crtica homrica, conhecida como questo homrica23, fez-se na antiguidade de forma

    muito semelhante crtica moderna da Bblia, como bem compara Otto Maria Carpeaux: (...) a

    autenticidade das epopeias homricas a famosa 'questo homrica' teria tido a maior importncia

    para os gregos antigos, a mesma que tinham nos sculos XVIII e XIX as discusses entre os

    21 Apesar da comum traduo de paidia por educao, o sentido original do conceito de paidia vai para muitoalm, como bem destacou o grande nome neste assunto, o estudioso alemo Werner Jaeger: No se pode evitar oemprego de expresses modernas como civilizao, cultura, tradio, literatura ou educao; nenhuma delas,porm, coincide realmente com que os Gregos entendiam por paidia. (JAEGER, 2003: 1). Para se compreender oque realmente significava a paidia, necessrio um estudo histrico semelhante (ou muito superior, como oestudo de Jaeger) ao que se pretende aqui com o conceito de psykh, uma vez que o seu contedo e significado sse revelam plenamente quando lemos a sua histria e lhes seguimos o esforo para conseguirem plasmar-se narealidade. (JAEGER, 2003: 1).

    22 O prprio Plato afirma que Homero foi o educador da Hlade [Grcia], em: Repblica, X, 606e.23 Apesar da questo homrica ter comeado na antiguidade, onde haviam mesmo escolas de anlise crtica, tais

    como a de Alexandria e a de Prgamo (SOUSA, 2010: 323) que no criticavam apenas os textos homricos, masbuscavam tambm encontrar as melhores cpias dos textos clssicos (RIVAUD, 1962: 14) , a questo foiressuscitada por Friedrich August Wolf, que em seus Prolegomena ad Homerum (1795) mostra as discrepnciasentre a Ilada e a Odisseia. Com seus estudos, Wolf negou a unidade das epopeias, que seriam composies dognio coletivo dos gregos (CARPEAUX, 1959: 57). A partir de Wolf outros estudiosos deram suas teses: KarlLachmann, que considerou a Ilada como a unificao de 16 poemas independentes; G. Hermann, que admitiu onome de Homero apenas para dois poemas curtos dentro das duas grandes obras. Em outro sentido se deram asteorias unitrias, pelas quais h uma unidade nestas obras, mostrando uma autoria, decorrente da composio a partirda tradio oral. No sentido da teoria unitria as pesquisas de Milmann Parry e Albert Lord foram de grandeimportncia, mostrando as frmulas existentes, que conectam os poemas, de modo que a teoria unitarista comeoua ganhar mais espao na discusso.

  • 15

    telogos sobre a autenticidade dos livros bblicos. (CARPEAUX, 1959: 53). Porm, tal crtica de

    modo algum anulou a validade e importncia de Homero, que continuou a ser da em diante uma

    autoridade (BURKERT, 1991: 60), at porque no se questionava a existncia de Homero ou

    mesmo sua autoria das obras, mas somente de certas passagens (VIDAL-NAQUET, 2002: 121)24. O

    nome de Homero no apenas significava a 'tradio' (CARPEAUX, 1959: 52), como tambm

    significava o prprio mundo grego (CARPEAUX, 1959: 59), sendo a base da literatura grega em

    um contexto no qual a identidade grega, helnica, se dava especialmente pela lngua e pela cultura25,

    ou seja, em grande parte por Homero.

    Na tradio grega, logo abaixo de Homero est Hesodo, que lhe sendo posterior, no faz

    uma reproduo do seu predecessor, mas narra mitos ignorados ou apenas esboados nos poemas

    homricos (ELIADE, 1994: 132) buscando elementos e crenas religiosas pr-homricas, de modo

    a construir o outro lado da tradio26, pois canta em verso as sombras que Homero evitava

    (SCHLER, 2002: 170). Distante de Homero que trata das guerras e aristocracias27, Hesodo

    escreve para camponeses, tratando especialmente da justia. Como bem disse Otto Maria Carpeaux,

    Hesodo o Homero dos proletrios28, o reverso da medalha (CARPEAUX, 1959: 61). Pode-se

    afirmar, portanto, que tanto Homero quanto Hesodo tiveram na religio grega um valor quase

    24 Uma das principais questes de conflito sempre foi a grande diferena de estilo e linguagem entre a Ilada e aOdisseia, levando os crticos modernos, e talvez mesmo Aristteles se a teoria de James A. Notopoulos (1949: 7-8)estiver correta a perceberem que se trata de uma unidade inorgnica.

    25 A identidade grega no se dava tanto pela questo racial, existente mas pouco determinante no contexto da GrciaAntiga. Sabia-se da existncia de vrios povos no territrio grego aqueus, olios, jnios, dricos, etc. - porm taldiferenciao no tinha o valor da real identificao dos gregos, que se dava atravs da lngua. Apesar da identidadegrega se construir tambm dentro de espaos, como o caso de Olmpia, cujo santurio ficou conhecido na histriada Grcia antiga como o local neutro de encontro para os gregos competirem nos jogos e exporem suasindividualidades e similaridades culturais (LAKY, 2012), a identificao grega se faz na contraposio com ooutro, construdo na imagem do brbaro, sendo que a noo de barbaroi inicialmente de carter lingustico,designando aqueles que no falam grego, sendo proveniente de barbar, onomatopeia de imitao ao som de quemtem dificuldade de se expressar, que possui um modo de falar spero (HARTOG, 1999a: 112).

    26 Hesodo inova, por exemplo, na categorizao dos seres divinos, uma vez que foi o primeiro a distinguir de modoclaro e ntido () as diferentes classes de seres divinos repartidos entre quatro grupos: deuses, demnios, heris,mortos. (VERNANT, 2006: 51). Tambm inova por surgir como indivduo, autor, alm de seu mtodo genealgico:[Hesodo] o mais antigo escritor grego que surge como indivduo; ao mesmo tempo, o representante e criadordeterminante de uma forma de pensamento arcaica fundamental, a Genealogia (BURKERT, 1991: 43). Aomesmo tempo que inova tambm retoma mitos antigos deixados de lado por Homero. Segundo Rodolfo Mondolfouma das tradies retomadas por Hesodo evidenciada pelas pavorosas vises descritas por este quanto amonstros como Tifeo, sendo documento da sobrevivncia de antigas representaes religiosas, as quais no seapagam das tradies mticas dos gregos (MONDOLFO, 1957: 36)

    27 Trata da guerra e das aristocracias tendo como pblico tambm guerreiros aristocratas: Quando lemos a Ilada e aOdisseia, no podemos esquecer que esses poemas eram destinados a serem recitados para um auditrio de homensricos e poderosos, capazes de ir guerra armados da cabea aos ps (VIDAL-NAQUET, 2002: 15).

    28 Trata-se de um termo anacrnico, cujo sentido o de referir-se s camadas baixas dentro do contexto socio-econmico da Grcia Antiga: aos pastores e agricultores da raa antiga que se dirige (BURNET, 2007: 24). Aquesto de diferenciao entre Homero e Hesodo, , portanto, o pblico. Mesmo que Homero tenha influenciadotoda a Grcia, ele destinou seus poemas a uma audincia especfica: os membros de uma aristocracia militar(ELIADE, 1994: 131). Assim se compreende a prpria forma aristocrtica na qual delineia os deuses: Acomunidade divina uma cpia das condies da poca cavaleiresca. A sede dos deuses , portanto, uma acrpolecom sua fortaleza real, o Olimpo; () Ali se sentam os deuses em seus tronos e bebem vinho, como os prncipesfecios na casa de Alcino. (NILSSON, 1961b: 185).

  • 16

    cannico (VERNANT, 2006: 16), mesmo que Homero tenha tido maior destaque.

    2.1.2. O mundo de Homero: sociedade e estrutura poltica

    Equivoca-se quem pensa a religio grega como sendo unilinear ou mesmo homognea.

    Mesmo os textos homricos maiores representaes da autoridade e tradio religiosa

    evidenciam a mistura presente na religio grega, ao mesmo tempo, anatlica e grega, ctnica e

    urnica (LVQUE, 1988: 120). Ora, a prpria Grcia, Hlade, apresentava-se como uma unidade

    relativa, j que tratava-se de diversas ilhas e territrios tanto da Anatlia quanto da pennsula

    balcnica que possuam elementos culturais em comum, mas no necessariamente uma cultura

    nica ou mesmo estruturas sociais semelhantes. Tambm aquilo que compreendeu-se por cultura

    grega deu-se de forma gradual, onde elementos de vrias culturas como a micnica e a minoica

    exerceram influncias. De fato existia na antiguidade um forte comrcio que se estendia dos Blcs

    at o Oriente, conectando a atual Grcia e a Babilnia, tendo como um dos principais pontos a ilha

    de Creta, destacada em sua cultura avanada e seu comrcio. Esta acabou por desaparecer, mas

    deixou influncias difceis de se determinar e precisar na cultura grega, pois como bem afirmou

    Pierre Lvque nunca se dir tudo acerca do que a religio grega retirou da cretense

    (LVQUE, 1988: 119). Porm ao mesmo tempo difcil se precisar as influncias asiticas na

    cultura minoica, certamente considervel29.

    2.1.3. Antropologia homrica: o homem segundo Homero

    A compreenso homrica de alma, ou seja, o uso que Homero faz do conceito de psykh,

    bastante divergente do que vir a ser posteriormente a compreenso platnica de alma. A forte

    relao estabelecida entre Plato e toda a cultura ocidental faz com que seja necessrio distinguir-se

    a compreenso tradicional sobre psykh influenciada por Plato e o sentido homrico desta.

    Tambm se faz notar que para compreender e avaliar a novidade efetiva da compreenso da alma

    no Fdon de Plato, impe-se precisar o conceito de psych em Homero (SANTOS, 1999: 24). Em

    Homero os termos gregos psykh e soma possuem sentidos completamente diferentes do que se

    compreende hoje ou mesmo se compreendeu na poca de Plato por alma e corpo (SANTOS,

    1999: 22).

    De fato, pode-se dizer que no h em Homero nem o conceito de alma nem o conceito de

    29 O filsofo marxista George Thomson analisa em seu livro The First Philosophers a influncia asitica na culturagrega, destacando o comrcio mediterrneo, evidenciado pelas pesquisas arqueolgicas tais como as de Claude F. A.Schaeffer e Sir Leonard Woolley (THOMSON, 1974a: 129-134).

  • 17

    corpo. Diferente do que viria a se tornar a psykh em Plato, esta no compreendida em Homero

    como parte do homem, uma vez que este no era dividido entre corpo e alma, nem era visto de

    forma dualista, at porque a psykh no possua origem divina (ou essncia divina), e em nenhum

    momento estava relacionada imortalidade pessoal em uma vida ps-morte, pois esta ideia era

    inexistente na mentalidade e no imaginrio homrico. Assim, define-se em contraste com Plato o

    que psykh no era para Homero, mas no define o que esta era, naquele contexto para tanto

    necessrio compreender-se a mentalidade homrica, expressa no apenas nos escritos como na

    prpria linguagem destes.

    Para se compreender o sentido homrico de psykh, faz-se necessrio entender-se a

    mentalidade homrica em sua plena conexo com o corpo, expressa tanto na ideia quanto na

    linguagem homrica, uma vez que a linguagem, que constri os conceitos, no s instrumento do

    pensamento ou da alma, mas tambm do corpo (REALE, 2002: 46). Tal realidade especialmente

    perceptvel e mesmo evidente em Homero, que expressa seu modo de expressar-se que pode ser

    definido como paratxico, uma definio generalizante mas que serve como mecanismo de

    estudo.

    2.1.3.1. Representao de hipotaxe e parataxe

    Apesar das pesquisas na relao entre linguagem e corporeidade ainda estarem em processo

    de desenvolvimento30, h conceituaes importantes que colaboram muito no estudo e compreenso

    30 Jean-Pierre Vernant prope a compreenso da conexo e da diferenciao entre os diferentes modos de figurao dodivino na religio: mito, rito, representao figurada, tais so as trs formas de expresso verbal, gestual, porimagem atravs das quais a experincia religiosa dos gregos se manifesta, cada uma constituindo uma linguagemespecfica que, at em sua associao s outra duas, responde a necessidades particulares e assume uma funoautnoma (VERNANT, 2006: 24). necessrio, portanto, diferenciar as formas de expresso, pelo fato de que sedesenvolvem em suas peculiaridades. Porm, tais conexes se do de forma indissocivel numa espcie de rede,como afirma Georges Dumzil: Conceitos, imagens e aes articulam-se e formam por suas ligaes uma espciede rede na qual, de direito, toda a matria da experincia humana deve se prender e se distribuir (DUMZIL apudVERNANT, 2006: 28); desta forma, mito, figurao e ritual operam todos no mesmo registro do pensamentosimblico (VERNANT, 2006: 28), apesar das diferenas e especificidades. Segundo Walter Otto, rito autnticosem mito no existe, assim como no h mito autntico sem rito () [pois] os dois so a mesma coisa (OTTO,2006: 42). Sobre o simbolismo das aes tambm comentou Friedrich Nietzsche quando escreve a respeito dainovao dionisaca na cultura grega, que incorpora o simbolismo corpreo (apesar de no concordarmos com ateoria nietzschiana): Agora a essncia da natureza deve expressar-se por via simblica; um novo mundo desmbolos se faz necessrio, todo o simbolismo corporal, no apenas o simbolismo dos lbios, dos semblantes, daspalavras, mas o conjunto inteiro, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rtmicos. (NIETZSCHE,2010: 32). Infelizmente, porm, no possumos informaes completas destes trs elementos, dos quais fala Vernant provavelmente influenciado por Otto, que defende haverem trs estgios da auto-manifestao mtica dadivindade: a gestual, a imagtica e a verbal, como pode-se entender a partir do que ele escreve (OTTO, 2006: 42-44). Enquanto temos informaes dos mitos e imagens em abundncia, os ritos em sua maioria se perderam:Nenhum mito grego chegou at ns com seu contexto cultural. Conhecemos os mitos como 'documentos' literriose artsticos e no como fontes, ou expresses, de uma experincia religiosa vinculada a um rito. Todo um setor,vivente, popular, da religio grega nos escapa, e justamente porque no foi expresso de uma maneira sistemtica porescrito. (ELIADE, 1994: 138).

  • 18

    da mentalidade homrica e consequentemente de seu sentido para o conceito de psykh. As

    pesquisas de Gerhard Krahmer, estudioso alemo da arte grega, levaram-no a distinguir duas formas

    especficas de compreenso e representao da realidade, evidenciadas nas expresses artsticas: o

    modo da hipotaxe e da parataxe. A primeira forma, a hipotaxe, vale-se da subordinao,

    implicando em nexos lgicos precisos, enquanto a segunda forma, a parataxe, vale-se da

    coordenao, implicando na justaposio e sucesso, sem explicitao dos nexos lgicos (REALE,

    2002: 23). Neste sentido, pode-se afirmar que a compreenso da antropologia homrica aproxima-se

    muito mais da forma paratxica, exprimindo-se e mesmo pensando o mundo de forma semelhante

    a outras mentalidades, como o caso da antropologia semtica, quando em comparao com formas

    hipotxicas de expresso e pensamento mesmo que sejam da cultura grega, como o caso da

    antropologia platnica. Neste sentido a relao da compreenso homrica do homem com a

    compreenso semtica pode ser de grande valia como veremos adiante pelo fato de que ambas

    encaixam-se no modelo de pensamento paratxico. A expresso paratxica do homem tende a

    represent-lo simplesmente como partes dissociadas evidenciando seus braos, pernas, etc

    (como partes coordenadas, pode-se dizer), diferente da expresso hipotxica, que tende a

    represent-lo em sua unidade, como pessoa ou mesmo corpo (como partes subordinadas). Esta

    diferenciao construda por Krahmer serviu especialmente para diferenciar na arte grega antiga as

    formas de representao do perodo arcaico (paratxico) e clssico (hipotxico), porm quando

    comparada com outras expresses artsticas demonstra como as artes e tal definio de modelo

    artstico serve para expressar modelos de compreenso da prpria realidade, ou seja, a utensilagem

    mental (francs: outillage mental) das vrias culturas e tempos, como diria Lucien Febvre31.

    Seguindo uma lgica paratxica, Homero como bem explica Bruno Snell no tem

    nenhuma palavra para designar o brao ou a perna, mas apenas a mo, o antebrao, o brao

    superior, o p, a canela e a coxa. Falta igualmente uma palavra para designar o tronco (SNELL

    apud REALE, 2002: 21). Assim, Homero no fala de corpo, sendo utilizado por ele o termo grego

    soma que posteriormente utilizado como corpo em sentido de cadver apenas, como j

    havia percebido Aristarco32. Homero vale-se para designar ideias prximas ao que posteriormente

    veio a ser compreendido como corpo (soma) das seguintes palavras: demas (), que

    31 Lucien Febvre foi o criador do conceito de utensilagem mental (outillage mental), sendo ao lado de Marc Blochum dos fundadores do que ficou conhecida como a histria das mentalidades (como j explicado anteriormente). Emseu artigo Les Principaux Aspects D'une Civilisation (1962), Febvre examinou as condies materiais e seus efeitossobre as estruturas fsicas e psicolgicas dos homens dos sculos XVI e XX. Tinha o intuito de realizaraproximaes para constatar as diferenas no modo de sentir das sociedades, em suas vivncias, em determinadascondies materiais (SANTANNA, 2008: 42). Sendo assim, pode-se comparar o mtodo de relao entre condiesmateriais e estruturas psicolgicas utilizado por Febvre e Krahmer.

    32 Aristarco da Samotrcia (216 a.C. - 144 a.C.) foi um fillogo e gramtico da Escola de Alexandria. Foi diretor daBiblioteca de Alexandria e um dos grandes estudiosos de Homero, sendo nome destacado na questo homrica.Segundo a Suda, teria publicado mais de 800 livros. Veja: Suda, .3892.

  • 19

    possui muito mais o sentido de figura, estatura, aspecto (SANTOS, 1999: 23); melea

    (), que se aproxima mais de membros; gyia (), que tambm tem o sentido de

    membros; e chros ()33, que significa pele (REALE, 2002: 30-32). Neste sentido a

    corporeidade, com suas partes, essencial na compreenso do vocabulrio homrico e sua

    mentalidade, uma vez que apesar destes termos se aproximarem em parte do conceito de corpo

    que viria a se desenvolver posteriormente com soma, na verdade a lngua homrica no dispe

    tampouco de um outro vocbulo capaz de indicar o corpo em sua unidade viva e orgnica

    (SANTOS, 1999: 23).

    No que diz respeito ao mtodo lexical utilizado por Bruno Snell (2005) e outros autores, faz-

    se necessria uma explicao. Bruno Snell deduz que, no havendo uma palavra correspondente a

    determinada ideia, como o corpo, a alma ou mesmo a pessoa (self), tal ideia inexiste na

    mentalidade homrica. Trata-se do argumento ex silentio do mtodo lexical, segundo o qual se uma

    cultura no possui uma palavra para algo, ento no reconhece a existncia deste algo (GASKIN,

    1990: 3). H estudos que apontam no sentido de que necessrio se compreender tambm que um

    texto no necessariamente vai se valer de todos os conceitos de uma cultura34, da mesma forma que

    uma cultura pode se construir a partir da leitura dos textos. De fato, pode-se pensar que o exame do

    vocabulrio de um autor no suficiente para a compreenso textual (SCHLER, 2002: 170)35,

    porm as evidncias tanto de vocabulrio quanto de mentalidade ideias, conceitos e cultura

    parecem apontar para a possibilidade das (des)construes conceituais de Snell, sendo necessria

    33 Segundo Giovanni Reale, a palavra chros a palavra do vocabulrio homrico que mais se aproxima do sentidoposterior de corpo (REALE, 2002: 32), uma vez que, como bem destacou Bruno Snell, chros no a pele emsentido anatmico (derma), e sim a pele como superfcie do corpo, como invlucro, como portador da cor, eassim por diante (SNELL, 2005: 6). Porm, segundo Bruno Snell, entre as palavras que encontramos em Homeroa que, mais que todas, corresponde forma mais tardia a palavra (SNELL, 2005: 5).

    34 Como bem destaca Trajano Vieira, o mtodo lexical adotado por Bruno Snell e aqui evitado uma abordagemque tem sido alvo de crticas constantes (VIEIRA, In: SNELL, 2005: xv). De fato os crticos dessa tesemultiplicaram-se nos ltimos anos (VIEIRA, In: SNELL, 2005: xv), com destaque no Brasil para Paula da CunhaCorra, segundo a qual, o que no existe nos textos homricos poderia ter existido no vernculo jnico ou emoutras tradies poticas da poca (CORRA, 1998: 49). De fato sua crtica vlida e importante, porm, quandoafirma que Snell no leva em considerao uma palavra que, em Homero, representa o corpo vivo na suatotalidade: dmas (CORRA, 1998: 32), no procede de forma a demonstrar de fato o que faz Snell. Snell analisa otermo dmas e chega a afirmar que trata-se da palavra que em Homero mais que todas, corresponde forma maistardia (SNELL, 2005: 5). A questo que Corra no aceita o argumento de Snell quanto a dmas ter sentidodiferente de soma por ser encontrado somente no acusativo (CORRA, 1998: 32 nota 8).

    35 Cabe destacar que a crtica de Donaldo Schler a Bruno Snell (SCHLER, 2002) quanto ao seu mtodo lexical no suficiente nem pretende questionar sua validade, uma vez que suas crticas so mais irnicas que argumentativas:Mas como entender os gregos afeitos a banquetes (Ulisses mais que todos) se lhes faltava estmago? () Muitomenos se entende o navegador que deslumbra Nauscaa, se ele no era mais que braos e pernas (SCHLER, 2002:197). A crtica de Schler quanto ao fato de que deveramos pensar em inveno e no em descoberta (SCHLER,2002: 196), j era respondida por Snell: O esprito no 'inventado' da maneira que o homem inventa uminstrumento apto a melhorar o rendimento de seus rgos fsicos, ou um mtodo para o estudo de determinadosproblemas. (SNELL, 2005: xviii). A crtica de Schler quanto ao determinismo evolucionista de Bruno Snell(SCHLER, 2002: 196), porm, apesar de breve vlida (explicada pelo curto espao do artigo referido).

  • 20

    uma anlise mais apurada, como o faz Richard Gaskin (1990)36. De fato no possvel deduzir,

    com base no fato de uma palavra no ser utilizada, que no exista o sentido que ela designa37

    (VIEIRA, In: SNELL, 2005: xv), porm deve-se tomar em conta que o argumento fortalece-se

    tambm no fato de no somente identificar a ausncia de palavras que expressam determinada

    ideia, mas tambm a prpria presena de palavras que expressam determinada ideia, tendo outros

    sentidos no contexto. A isto tambm se soma uma compreenso da prpria mentalidade do perodo,

    na qual o trabalho de Snell como fillogo foi de buscar solues para as lacunas antes constatadas

    de modo a formar-se uma explicao coerente e sistemtica38. A ausncia de linguagem resultado

    de uma ausncia no plano psicolgico, como bem atesta Jean-Pierre Vernant sobre a ausncia da

    vontade entre os gregos: ausncia que j denuncia, ao nvel da linguagem, a falta de uma

    terminologia apropriada da ao voluntria (VERNANT, In: VERNANT & VIDAL-NAQUET,

    1988: 53). O erro est na deduo do mtodo lexical, de fato adotado por Snell e bem criticado por

    Gaskin, que bem demonstra que ao contrrio do que o mtodo lexical supe, bem possvel (e

    mesmo inteiramente normal) para um indivduo ou cultura em dispor de um conceito para o qual

    no se possui um nome (GASKIN, 1990: 4).

    O mtodo lexical, portanto, bastante precrio, porm as ideias aqui assumidas fortalecem-

    se na identificao do vocabulrio com elementos da mentalidade, da cultura e mesmo da estrutura

    dos poemas, como ser exposto abaixo. O fato que os recortes apresentados nesta pesquisa so

    conscientemente medidas com certa generalizao, mas que se fazem necessrias para um estudo

    mais pormenorizado.

    Atravs dos exemplos mencionados anteriormente quanto ideia de corpo pode-se

    perceber os elementos paratxicos em Homero, porm de fato a parataxe em Homero se estende

    para alm do estilo e caracteriza a estrutura e pensamento dos poemas (NOTOPOULOS, 1949: 7),

    como bem evidencia James A. Notopoulos em seu artigo Parataxis in Homer (1959). O prprio

    fato das obras homricas serem uma unidade inorgnica, com uma pluralidade de histrias, sendo

    36 A crtica de Gaskin centra-se na negao das concluses de Snell, defendendo que diferente do que este afirma, omundo de Homero contm pessoas (selves) (GASKIN, 1990: 5). Segundo Gaskin, Snell aproxima-se de Homerocom expectativas inapropriadas (GASKIN, 1990: 2), no percebendo que, apesar de no haver uma palavra (nome)para o 'self', isto no implica em no haver a ideia (conceito) do mesmo, evidente no uso dos pronomes pessoais enomes prprios. Ora, o prprio portugus no possui nenhuma palavra que traduza ou exprima completamente osentido da palavra inglesa 'self', utilizada por Gaskin, mesmo que tal conceito seja presente no pensamento brasileiroque vale-se desta lngua que a portuguesa. O 'self' deve ser, portanto, buscado simplesmente no que significa aquilo que unifica as vrias funes da mente (GASKIN, 1990: 3), entendidas por Gaskin (1990: 5) comoexistindo na linguagem homrica em determinados usos de nos () e thyms (), havendo ainda o casoexplcito de non ka thymn ( ), onde obviamente forma uma ideia nica com ambos elementoscognitivo e volitivo (GASKIN, 1990: 6).

    37 Nesta crtica, a argumentao de Corra bastante interessante, lembrando que no h um nico termo em alemoque traduza todos os usos e significados de mind (ingls), mas vrios termos como Gemt, Seele, e Geistque lhe sobrepem (CORRA, 1998: 34, nota 14).

    38 Cf. a explicao do prprio Snell: SNELL, 2005: xxii.

  • 21

    o resultado de uma composio oral e certas condies que acompanham as composies orais

    (NOTOPOULOS, 1949: 9), demonstra o carter paratxico, muito prximo de algumas imagens

    semelhantes, tais como o Vaso Franois, cuja disposio paratxica semelhante homrica

    (NOTOPOULOS, 1949: 12) ou mesmo de esculturas, cuja transformao de um modelo paratxico

    para um hipotxico acompanha a literatura e a pintura.

    Segundo James A. Notopoulos, as pesquisas do aspecto paratxico da Grcia Antiga no

    devem ignorar o artigo de Ben Edwin Perry intitulado The Early Greek Capacity for Viewing

    Things Separately (1937), por se tratar de uma das mais importantes contribuies compreenso

    da literatura pr-clssica (NOTOPOULOS, 1959: 14). Neste artigo, Perry busca mostrar o triunfo

    da parataxe sobre a hipotaxe no pensamento como na gramtica (PERRY, 1937: 404), relacionando

    o carter paratxico da poesia pica com sua origem na oralidade: uma vez que a poesia pica

    oral em origem e comeo, sua sintaxe e estilo de composio so consequentemente mais

    espontneos e menos lgicos em muitos aspectos (PERRY, 1937: 410). Assim Perry fornece um

    importante aspecto na compreenso da mentalidade homrica, que a relao da parataxe com a

    estrutura potico-mimtica da obra de Homero. Cabe, portanto, um estudo mais aprofundado nesta

    questo.

    2.1.3.2. A estrutura potico-mimtica e a corporeidade

    Para se compreender a mentalidade de Homero que se d na relao entre corpo e

    linguagem , tambm se faz necessrio entender-se a estrutura de oralidade potico-mimtica na

    qual que se assentam as obras homricas. Tal estrutura foi bastante estudada por Eric Havelock, que

    designa o discurso mtrico homrico resultante desta como sendo um discurso articulado mediante

    um conjunto complexo de movimentos dos pulmes, da laringe, da lngua e dos dentes, que

    precisam se combinar inconscientemente com uma grande exatido segundo um determinado

    padro (HAVELOCK apud REALE, 2002: 47). As pesquisas e teorias de Milman Parry e Albert B.

    Lord sobre as frmulas homricas e sua estrutura correlacionada com a tradio oral contribuem

    para perceber-se Homero sobre uma nova perspectiva (VIDAL-NAQUET, 2002: 123-124), na qual

    as opes de palavras devem ser entendidas no apenas em seus sentidos mas tambm em suas

    medidas e sonoridades39.

    Compreendendo-se tratarem-se de poesias orais, o estudo a partir de uma perspectiva

    hipotxica precrio para compreender-se a mentalidade paratxica de Homero, na qual as

    39 Mais um fator para negar-se o mtodo lexical de Snell, uma vez que a ausncia de certas palavras possvel emesmo justificada pelo mesmo fato de que outras so utilizadas: a sonoridade e beleza potica.

  • 22

    frases so construdas no pelas conexes de sentido, mas muito mais pelas construes sonoras

    praticamente invisveis no texto, presentes na leitura articulada e discursada de suas obras, seguindo

    o propsito real destas, obras de um rapsodo40. Tambm se deve entender que, como bem nos

    demonstra a histria dos conceitos, a escrita transmite ideias de seu contexto, porm a leitura gera

    novas compreenses destes41. Isto vale especialmente para Homero, pela sua forma mitolgica42 de

    escrever e pela sua influncia sobre o pensamento grego, como bem demonstra Eric Havelock:

    Os poemas picos homricos constituam um conjunto de escritos invisveis impressos nocrebro da comunidade. Eles representavam um monoplio exercido pela tcnica pica sobre alngua culta. () durante toda a Grcia arcaica e clssica ainda se diziam as coisashomericamente e se tendia a pensar sobre elas homericamente. Aqui, no se tratava apenas deum estilo potico, mas de um estilo internacional43, um idioma superior de comunicao.(HAVELOCK apud REALE, 2002: 49-50).

    2.1.4. A psykh em Homero

    2.1.4.1. A sombra que vai para o Hades

    Para se entender a ideia de psykh em Homero, alm da compreenso da ideia de homem

    o qual no descrito em Homero como tendo um corpo mas pelas suas partes tambm se faz

    necessrio compreender-se a ideia homrica de ps-morte, que centra-se no mundo dos mortos, o

    Hades44. Primeiramente cabe destacar que a ideia homrica de psykh bastante distante do uso

    40 Recitadores ambulantes, rapsodos, Homridas atravessavam o pas, recitavam os seus textos em fetivais dosdeuses com um promio adequado de cada vez ocasio, os chamados Hinos Homricos. (BURKERT, 1991: 57).Tambm, nas cidades da Grcia clssica, a Ilada e a Odisseia eram cantadas todos os anos, diante de todo mundo(DETIENNE & SISSA, 1990: 29). Contava-se que tal leitura pblica fora instituda em Atenas pelo tirano Hiparco,filho de Pisstrato, no sculo IV a.C. (DETIENNE & SISSA, 1990: 280).

    41 Mesmo o carter de tradio oral colaborava para a fundamentao mental dos gregos sobre Homero: essasnarrativas, esses mythi, tanto mais familiares quanto foram escutados ao mesmo tempo que se aprendia a falar,contribuem para moldar o quadro mental em que os gregos so muito naturalmente levados a imaginar o divino, asitu-lo, a pens-lo. (VERNANT, 2006: 15).

    42 Os estudos de relao entre mito e linguagem tm mostrado que uma das caractersticas do mito justamente a forade influncia e fundamentao do pensamento, de tal forma que para Max Mller, Mitologia, no mais elevadosentido da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento, e isto em todas as esferaspossveis da atividade espiritual. (MLLER apud CASSIRER, 1992: 19). impossvel que um mito sejacompreendido pura e simplesmente na dimenso racional, pois apreend-lo em absoluto impossvel, sendo apenaspossvel sentir e perceber seu significado ao nvel intuitivo: No somente a metafsica mtica de naturezasimblica, mas ainda a traduo, ao traduzir termos inadequados como 'causa primeira' e 'mistrio', continua aservir-se de uma linguagem figurada. Toda metafsica, miticamente representada ou conceitual, possui um carterpuramente simblico. (DIEL, 1991: 28).

    43 A unidade cultural e mesmo religiosa na Grcia antiga apenas possibilitada por estes elementos de referncia,especialmente Homero e Hesodo, smbolos e a prpria tradio, uma vez que se no existissem todas as obras depoesia pica, lrica, dramtica, poder-se-ia falar de cultos gregos no plural, mas no de uma religio grega(VERNANT, 2006: 16). Ora, ao mesmo tempo todas estas expresses religiosas e artsticas tiveram como origem einspirao os mitos homricos. De fato, em nenhuma outra parte vemos, como na Grcia, o mito inspirar e guiarno s a poesia pica, a tragdia e a comdia, mas tambm as artes plsticas (ELIADE, 1994: 130).

    44 Hades o termo tanto para o local, o mundo dos mortos, quanto para a divindade que lhe rege. Este deus, Hades,

  • 23

    platnico da mesma palavra, ao ponto de James Redfield chegar a afirmar que Homero no possui

    conhecimento da alma (REDFIELD apud VERNANT, 1992: 186).

    Na verdade o que Homero compreende por alma, valendo-se do termo psykh, num

    primeiro sentido uma sombra (FAIRBANKS, 1897: 743), uma imagem (eidolon) do vivo, que no

    possui corpo nem motivaes ou mesmo emoes, mas d-se enquanto semelhana imagem do

    vivo, tendo como destino o Hades. O termo psykh utilizado enquanto ideia de sombra do vivo

    que permanece aps a morte em diversas passagens de Homero at Aristfanes45, aparecendo em

    Homero neste e em um segundo sentido46. Pode-se pensar que tal ideia da sobrevivncia

    (continuidade) do homem apenas como sombra tem a ver com os prprios ritos funerrios pois

    diferentes ideias da alma so favorecidas por diferentes tipos de enterro (FAIRBANKS, 1897:

    755) que so descritos nos textos homricos e segundo os quais os corpos eram queimados. No

    cumprir os ritos designados era tido por uma grande falta e as almas dos mortos no poderiam

    seguir o destino correto (TARBELL, 1884: 38) ou mesmo ter o descanso apropriado. H passagens

    de Homero que ilustram bem esta ideia, como no encontro da psykh de Ptroclo47 com Aquiles

    (Hom. Ilada. XIII, vv. 71-74):

    Sepulte-me depressa, para que eu possa entrar pelos portes do Hades. Pois os espritos memantm distante, os fantasmas dos homens que me impedem, nem permitem que eu me junte aeles para alm do rio, mas em vo eu ando pela casa fechada do Hades.

    Alm da percepo da psykh como sombra que vai para o Hades, em Homero

    encontramos o mesmo termo tendo como significando a vida, encontrando-se tal sentido de

    Homero a Xenofonte48, porm, em Homero trata-se da vida que se vai com a morte.

    precisamente o nico a no ter nem templo nem culto (VERNANT, 2006: 53).45 Segundo Ernest DeWitt Burton (1913: 576-577), tal sentido de psykh como sombra pode encontra-se de Homero

    a Aristfanes nas seguintes passagens: Hom. Il. i. 3; v. 654; vii. 330; ix. 408; xi. 445; xvi. 625, 856; xxi. 569; xxii.362; xxiii. 65, 72, 100, 104, 106, 221; Od. x. 492, 530, 560, 565; xi. 37, 51, 65, 84, 90, 141, 150, 165, 205, 222, 385,387, 467, 471, 538, 541, 543, 564, 567; xxiii. 251, 323; xxiv. 1, 14, 15, 20, 23, 35, 100, 102, 105, 120, 191; Pind.Nem. 8, 44; Pyth. 4. 159; 11. 21; Isth. 1. 68; sq. Pers. 630; Agam. 1545; Sf. Oed. Col. 999; Antig. 559; Eurip. Hec.87; Aristf. Av. 1557; Pax 829.

    46 Como bem lembra Thomas M. Robinson, a utilizao do termo psych, nos poemas de Homero, est longe de serunvoca, mas parece justo afirmar que os vrios usos da palavra podem ser reduzidos, em grande parte, a dois: (a)'sombra' (ski) e (b) 'vida', 'fora vital' ou 'entidade vivificadora' que encontra o seu fim quando morremos...os doissentidos permeiam os poemas em pacfica incongruncia, o contexto geralmente torna claro o sentido pretendidopelo poeta. (ROBINSON, 2010: 16-17).

    47 Vale destacar que o fantasma de Ptroclo no necessita de sangue para manter o dilogo, como ser com asalmas no Hades que Odisseu encontra. Possivelmente tal situao se d pelo fato desta alma no ter aindaingressado no Hades e bebido das guas do esquecimento (TARBELL, 1884: 40).

    48 Segundo Ernest DeWitt Burton (1913: 574-576), o sentido de psykh como vida (inclusive animal) encontra-se deHomero a Xenofonte nas seguintes passagens: Hom. Il. v. 296; viii. 123, 315; ix. 322, 401; xi. 334; xiii. 763; xiv.518; xvi., 453, 505; xxii. 161, 257, 325, 338; xxiv. 168, 754; Od. i. 5; iii. 74; ix 255, 323, 423; xix. 426 (animal);xxi. 154, 171; xxii. 245, 444; Pind. Nem. i. 47 (animal); Pyth. iii. 101; Ol. viii. 39 (animal); sq. Agam. 965 (938),1457, 1466, 1545; Eumen. 115; Sf. Oed. Tyr. 94, 894; Oed. Col. 1326; Antig. 559; Elect. 786, 1492; Aj. 1270; Eurip.And, 419; Hec. 22, 176, 182; Orest. 643, 845, 1034, 1163, 1171, 1517; Phoen. 1005 (998), 1234 (1228), 1291; Med.

  • 24

    2.1.4.2. A vida que se vai com a morte

    Dentro das diversas interpretaes sobre o conceito de psykh para Homero, Erwin Rohde

    tem carter pioneiro, sendo o primeiro a dedicar um estudo minucioso sobre a alma e a

    imortalidade entre os gregos (OLIVEIRA, 2008: 11)49 e iniciando os debates do que se tornariam

    as pesquisas posteriores sobre a compreenso da histria do conceito de psykh. Rohde possua

    como uma de suas principais referncias a pesquisa de Herbert Spencer, de forma que definiu a

    religio grega aos moldes da viso deste outro estudioso pela relao com as religies dos demais

    povos primitivos:

    O homem, segundo a concepo homrica, existe duas vezes, uma na forma sensvel, outra naimagem invisvel, que se liberta somente com a morte. Isto e no outra coisa a sua psique.Naturalmente, parece-nos muito singular que se possa conceber um homem vivo, plenamenteanimado, no qual habite um hspede estrangeiro, um duplo seu mais fraco, um outro eu, comosua psique. Mas esta justamente a f dos assim chamados 'povos primitivos' de toda a terra,como demonstrou acuradamente Herbert Spencer. (ROHDE apud REALE, 2002: 74-75).

    Para Rohde, portanto, a psykh homrica seria um outro eu, existente mas oculto,

    aparecendo no momento da morte: A psique , para ele [Homero], quase sempre, um ente real, o

    outro eu do homem (ROHDE, 1948: 33). Na continuao dos estudos da psykh, outro grande

    estudioso, Werner Jaeger, corrige algumas questes da interpretao de Rohde, de modo a

    demonstrar que a psykh em Homero no era um outro eu sempre presente, mas evidente a partir

    da morte era justamente uma representao do morto: s quando sai do corpo, a psych adquire

    uma existncia 'personalizada' j que 'imagem' do homem que vivia (SANTOS, 1999: 26). Walter

    Otto alinha-se com Werner Jaeger e desenvolve a ideia de que trata-se de uma representao do 'ser

    do ter sido': No se trata de continuao da vida, porque o ser prprio dos mortos o ser do ter

    sido. Os gregos compreenderam que ter sido ser no sentido verdadeiro e prprio da palavra, e ter

    compreendido isto uma das suas grandes intuies. (OTTO apud REALE, 2002: 75). Porm, a

    problemtica aumenta quando se percebe exemplos em que a traduo de psykh dos textos

    homricos se d apenas pela palavra vida ou existncia50:

    326, 968; Alc. 301, 704, 715; Rhes. 183; Troiad. 1214, 1135; Herac. 15, 297, 530; Her. Fur. 1146; Ion 1499; Hipp.440, 726; Aristf. Acharn. 357; Vesp. 375; Nub. 712, 719; Pax 1301; Thesmoph. 864; Antipho 115.15; Herod. 1. 24;2. 134; 3. 130; 7. 39; Tucdid. 1. 136; 3. 39; 8. 50; Xen. Cyr. 3. 1. 36; 4. 4. 10; 4. 6. 4; Hier. 4. 9; Eq. Mag. 1. 19.

    49 Oliveira refere-se a: ROHDE, Erwin. PSIQUE: la idea del alma y la inmortalidad entre los griegos. Pnuco, Mxico:Fondo de Cultura Econmica, 1948.

    50 Outros exemplos: Ilada, IX, vv. 398-409; Ilada, XXI, vv. 563-570.

  • 25

    Tanto o ocioso, que aos mais esforado, iguais prmios so dados;as mesmas honras se outorgam ao fraco e ao heri mais galhardo.Morre da mesma maneira o inativo e o esforado guerreiro.Vede! Nenhuma vantagem me veio de tantos trabalhos,e pr em risco a existncia [psykhn] nos mais temerosos combates. (Ilada, IX, vv. 318-322).

    Ora, como aferir a mesma palavra vida e ao mesmo tempo ao no estar mais vivo? Cria-se

    um problema, para o qual outro estudioso, Bruno Snell, fornece uma soluo: estes casos em que o

    sentido de psykh de vida ou existncia, esto conectados com a possibilidade de morte

    trata-se do uso destes termos em situaes de risco de morte51, de forma que quando se diz que

    algum combate pela prpria , que empenha a prpria , que procura salvar a , faz-se

    sempre referncia alma, que, na morte, abandona o homem (SNELL, 2005: 9). A importncia da

    morte e o destaque do momento da morte sempre foram perceptveis nas obras homricas em

    especial na Ilada52 , porm a percepo da relao desta com a psykh em seu pleno sentido de

    indissociabilidade s foi construda a partir das pesquisas mais recentes. Podemos entender, ento,

    que a psykh em Homero sempre apresentada em conexo com a morte (REALE, 2002: 77),

    justamente por ser, segundo a definio de Joachim Bhme, vida que se vai com a morte.

    2.1.4.3. Entre psykh e phrnes: a expresso na ao

    O estudioso Jan N. Bremmer (2002) defende que as culturas primitivas, tal como a de

    Homero, possuem uma dupla percepo sobre a alma, na qual h duas formas de alma: 1) a alma-

    livre (free-soul), que representa a identidade e personalidade da pessoa e que se evidencia quando o

    corpo est inativo (desmaios, sonhos e morte); 2) as almas-corpo (body-soul), numerosas, que

    dotam as pessoas de vida e conscincia mas que no permanecem aps a morte.

    Aplicando esta concepo anlise da concepo homrica de alma, Bremmer aponta a

    psykh como uma forma de alma-livre, enquanto thymos, noos e menos so as manifestaes

    homricas das almas-corpo53. Esta teoria possui sua qualidade, mas entra em contradio com o fato

    de que em Homero a ideia de alma no se d enquanto personalidade, conceito ainda inexiste que

    51 Arthur Fairbanks j havia destacado em 1897 que o termo psykh s utilizado quando a morte est presente,mesmo que como pano de fundo (FAIRBANKS, 1897: 743), atribuindo a H. Grotemeyer tal observao.

    52 A Ilada, temos argumentado, est preocupada acima de tudo com a significncia da vida e morte heroica. Estepropsito leva a uma srie de mortes () Milhares de linhas narram, com detalhe clnico e destaque, o assassinatoem batalha de um heri aps o outro. Estes que so mortos tm pouca significncia individualmente, e existem, namaioria dos casos, apenas para o momento em que eles so vistos morrendo. (GRIFFIN, 1983: 103).

    53 A origem de tal teoria das duas formas de alma parece se dar em F. M. Cornford, que defende que o homem, emHomero, possui duas almas. Sua eidlon ou psych se escapa da boca no momento da morte e tem uma formareconhecida que pode, por algum tempo, visitar nos sonhos os sobreviventes. Porm no existe at o momento damorte, nem leva ao mundo das sombras parte alguma de sua fora vital. Esta ltima reside na segunda alma(thyms), cujo veculo visvel o sangue, e s bebendo sangue a eidlon recobra sua razo ou conscincia...(CORNFORD apud PAULO, 1996: 21, nota 38).

  • 26

    para se desenvolver requeria ulteriores e complexas aquisies (REALE, 2002: 113). Tambm

    Jean-Pierre Vernant j demonstrou a ideia de psykh em Homero como um fantasma, com forte

    associao com outros conceitos homricos como phasma e oneiros: sua unidade provm do fato

    que no contexto cultural da Grcia arcaica, estes so percebidos pela mente no mesmo sentido e

    todos contm um significado anlogo (VERNANT, 1992: 187). Assim, percebe-se que a

    interpretao de Bremmer que vale-se de conceitos e teorias da antropologia escandinava

    (BREMMER, 2002) possui equvocos. A psykh em Homero no possui conexo com a inatividade

    humana e nem com a personalidade de um indivduo: trata-se de um conceito relacionado com a

    ao, com o ato de morrer, que no se d apenas passivamente54, mas tambm ativamente no ato de

    soltar ou enviar a psykh seja sua ou de outro. A permanncia do homem homrico, definido

    por suas aes, termina com sua ltima chance de ao, na liberao da psykh, enquanto o cadver

    permanece, indicado pela contraposio entre (enviar para) referente alma e

    (aqui mesmo) referente aos corpos (OLIVEIRA, 2008: 14). Os mortos em Homero, portanto,

    apesar de despertarem para fala e conscincia, no o fazem de modo algum para a ao (OTTO,

    2006: 83), uma vez que a ao o elemento essencial da vida para o grego antigo55. Com a morte

    termina a vida e portanto a ao, no havendo no Hades uma continuidade da vida, no sendo

    lugar de castigo nem de prmio (OTTO, 2006: 85), mas lugar de inexistncia, onde as almas

    vagueiam como sombras sem vigor e quando, por um instante, se lhes desperta a conscincia,

    lamentam-se por haver perdido a luz do sol (OTTO, 2006: 82).

    Tambm a psykh em Homero no uma parte dos homens ou uma propriedade que

    possuem, no portanto uma alma-livre que se evidencia com a morte, pois os homens no

    possuem psykh: eles se tornam, depois de mortos, psykha, sombras inconscientes que levam uma

    existncia diminuda nas trevas subterrneas (VERNANT apud OLIVEIRA, 2008: 16). Estas

    almas, psykha, porm, j no so mais homens. A psykh um duplo do homem (OLIVEIRA,

    2008: 16), um eidolon, uma imagem, mas no um homem, uma vez que privada dos elementos

    bsicos da vida humana, pois perde-se as noes de sofrimento e prazer, condies necessrias da

    existncia para os gregos (OLIVEIRA, 2008: 16), como fica evidente na Ilada (XXIII, vv. 103-

    104): Ora a certeza adquiri de que no Hades, realmente, se encontram/ almas [psykh] e imagens

    dos vivos [edolon], privadas contudo de alento [phrnes]. O termo phrnes possui muitos

    54 Os textos homricos falam que a psykh deixa o homem (HOMERO. Ilada, V, v. 696), escapando pela boca(HOMERO. Ilada, IX, vv. 408-409), pelos membros (HOMERO. Ilada, XVI, v. 856; XXII, v. 362), pelo peito(HOMERO. Ilada, XVI, v. 505) ou por uma ferida no flanco (HOMERO. Ilada, XIV, v. 518). O thymos tambmdeixa o corpo (HOMERO. Ilada, IV, 470), mas uma propriedade essencialmente corporal. Sendo assim, oscadveres baixam terra quando esvaziados de thymos (HOMERO. Ilada, VI, vv. 16-18).

    55 Jane E. Harrison destacou, com sua usual perspectiva social da religio grega, a no funcionalidade dos mortos naperspectiva homrica, em contraposio ao damon simbolizado pela grande serpente, representando o coletivo dosmortos que segundo as crenas seria o responsvel pela fertilidade da terra (HARRISON, 1922: 518-519).

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    significados, sendo rgos situados prximos ao corao com sentido de proporcionar sentimentos

    ou mesmo estando ligados mente (OLIVEIRA, 2008: 15). psykh contrape-se o thymos, que

    sopro de vida e s vezes tambm traduzido por alma, ou corao (SILVA, 2010: 58) ao

    mesmo tempo que o que fornece os movimentos e sentimentos, de homens e deuses56. Conforme

    se perde o thymos, se perdem os movimentos:

    Joga em segundo lugar a hasta longa e brilhante Sarpdonsem que no inimigo acertasse indo a lana possante encravar-sena p direita de Pdaso o qual relinchando jogou-sea estrebuchar no cho duro exalando nas vascas o esprito [thymos].(HOMERO. Ilada, XVI, vv. 466-469).

    O destino do homem , portanto, perder sua vida57, thymos, que vai para o nada enquanto sua

    psykh vai para o Hades (REALE, 2002: 76), onde se dissolve: Quando a vida [thymos] se retira da

    esse brancura tambm a psique bate leves asas e se dissolve como um sonho (HOMERO.

    Odisseia, XI58, vv. 221-222). O homem homrico se perde neste momento, uma vez que definido

    por suas aes, enquanto vida. A psykh sem thymos uma vida sem vida (ROCHA, 2001: 71). O

    homem homrico compreende-se muito mais no seu agir do que no seu ser (FRNKEL apud

    REALE, 2002: 84), muito diferente da ideia (platnica) de um ser oculto dentro de um corpo

    enquanto cpsula a ser aberta:

    O homem identifica-se, portanto, com a sua ao, e se deixa compreender de modo completo e

    56 O thymos fonte dos sentimentos tanto de homens como de deuses (em Homero), que tambm o possuem, assimcomo outros elementos do ser humano: Mas os deuses mostram igualmente toda a gama das faculdadesdeliberativas e intelectuais: vontade (boul), 'corao' (thumos), intelecto (nous). Os aspectos mais ativos dasubjetividade lhes pertencem. O thumos sobretudo, sede dos sentimentos, mas tambm dos impulsos voluntrios edas decises que se impem ao ego humano, funciona normalmente nos deuses. Querer , para Atena, ser impelidapor seu grande corao (thumos); exprimir o que pensa , para Zeus, dizer o que no seu peito lhe dita seu'corao'... (DETIENNE & SISSA, 1990: 57). Mesmo que os deuses no sejam homens, possuem caractersticasbastante humanas e corporais: O regime alimentar priva talvez os deuses de sangue, mas todo o seu comportamentosocial repousa numa 'biologia das paixes', numa inscrio no corpo, na qual os gregos deviam facilmente sereconhecer. (DETIENNE & SISSA, 1990: 56).

    57 A perda da vida o destino de todos os homens, que estes devem aceitar com submisso, mesmo que sejam os maishonrados dos homens, tais como Aquiles: Hei de baixar ao sepulcro, tambm, se o Destino igual sorte/ mereservou; mas desejo, antes disso, alcanar alta glria... (HOMERO. Ilada, XVIII, vv. 120-121). Na obra homricatodos os homens so mortais () mas isso no quer dizer que todos os homens sejam iguais, muito pelo contrrio(VIDAL-NAQUET, 2002: 43), uma vez que a diferena est na vida e no no ps-morte. A glria est na vida, umavez que o Hades no oferece nada nem para o maior entre os mortos, como se percebe na resposta de Aquiles aOdisseu quando de sua descida ao Hades na Odisseia: No tentes embelezar a morte na minha presena, meuatilado Odisseu. Pr