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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” AVM FACULDADE INTEGRADA A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS Por: Larrane Reder Ferreira Orientador Prof. Jean Alves Rio de Janeiro 2014 DOCUMENTO PROTEGIDO PELA LEI DE DIREITO AUTORAL

DOCUMENTO PROTEGIDO PELA LEI DE DIREITO AUTORAL fileRESUMO O presente ... Lumen Juris, 2001, 32. 2 Idem. Ibidem, p. 32. 8 evolui-se de fides para bona fides, momento em que o Direito

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

Por: Larrane Reder Ferreira

Orientador

Prof. Jean Alves

Rio de Janeiro

2014

DOCUMENTO PROTEGID

O PELA

LEI D

E DIR

EITO AUTORAL

2

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

Apresentação de monografia à AVM Faculdade

Integrada como requisito parcial para obtenção do

grau de especialista em Direito Privado e Civil.

Por: Larrane Reder Ferreira

3

RESUMO

O presente trabalho tem como principal escopo traçar um breve

panorama sobre o importante princípio da boa-fé e seu emprego cogente nas

relações contratuais.

Verificar-se-á a abordagem histórico-conceitual do princípio em voga,

como forma introdutória e para melhor entendimento do leitor, que a partir daí

analisará as consequências jurídicas, até se chegar ao mundo das relações

contratuais e suas implicações na esfera civil.

4

METODOLOGIA

A metodologia utilizada para a elaboração do presente ensaio foram

pesquisas em livros, artigos, sítios eletrônicos, Código Civil, Código de Defesa

do Consumidor e jurisprudências de diversos Tribunais do Brasil.

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 06

CAPÍTULO I - O princípio da boa-fé 07

CAPÍTULO II - Aplicação da boa-fé nas relações contratuais 25

CONCLUSÃO 36

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 37

6

INTRODUÇÃO

Desde os primórdios tempos onde se iniciaram as relações

comerciais viu-se uma intensa necessidade de uma postura leal e de confiança

entre as partes envolvidas naquela relação.

Os Romanos foram a primeira civilização a positivar, delimitar e

definir como seria a aplicação do princípio da boa-fé nas relações negociais.

Pregavam que entre os contratantes era imperiosa a necessidade de um

comportamento leal e de confiança recíproca entre os contratantes, conduta

esta que deveria existir durante toda a vigência do contrato celebrado.

Com a evolução da sociedade mundial e com a evolução das

práticas comerciais, novos conceitos foram emergindo, ocasionando o

aprofundamento do manejo do princípio da boa-fé, culminando em alocá-lo

como principal princípio a ser utilizado nas relações contratuais.

O trabalho em foco discorrerá sobre os contratos privados e a

importância do princípio da boa-fé e sua consequência no ordenamento

jurídico, considerando o atual Código Civil e o estudo da jurisprudência dos

Tribunais brasileiros.

7

CAPÍTULO I

O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

Em que pese não estar o princípio da boa-fé previsto

expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é

possível encontrá-lo com facilidade no Código Civil e no Código de Defesa do

Consumidor.

1.1 - Histórico

O princípio da boa-fé tem sua positivação mais remota no Direito

Romano, eis que lá as fides tolhiam a utilização de meios que pudesse tornar a

execução do contrato mais difícil ou onerosa. Ou seja, havia uma proibição de

todo e qualquer comportamento doloso em relação à execução do contrato.1

Cumpre elucidar que a expressão fides expressa o ideal de lealdade

em todas as fases do contrato, configurando uma garantia às partes

envolvidas. Conceitualmente, a palavra fides pressupõe saber o que disse,

cumprir o que se diz ou promete.2

Esclareça-se que a fides era invocada ou referida nos atos mais

solenes da vida habitual, como o casamento, tutela, empréstimos, etc. Os

romanos tem na fides o elemento inaugural para o elo para o mundo jurídico.

Posteriormente, a fides ultrapassa sua origem de preceito ético-

religioso e, mantendo a moral como basilar, passa a exprimir idéia de

promessa, ou seja, as pessoas devem se ater ao que dizem. Desta forma,

1 MARTINS, Flávio Alves. A boa-fé objetiva e sua formalização no direito das obrigações brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, 32. 2 Idem. Ibidem, p. 32.

8

evolui-se de fides para bona fides, momento em que o Direito Romano incutiu

a idéia de equidade, renovando, assim, o seu sistema legal.

A fides bona expressa noções de confiança, de correção, de

honestidade e, principalmente, lealdade entre as partes e que à época

norteava o emergente campo das relações contratuais.

Com a finalidade de se solucionar descumprimentos contratuais,

cumprimentos parciais ou mau cumprimento, a jurisprudência romana

constituiu a bonae fidei iudicia como a ação adequada, possibilitando ao juiz

não só declarar a existência e o valor da obrigação, como também examinar o

quão distante manteve-se o réu ou o autor das exigências da fides bona.3

Durante o período romano a boa-fé era tão importante que Cícero se

manifestou dizendo ser ela o fundamento da justiça, isto é, a fidelidade e a

sinceridade das palavras e acordos.4

Na Idade Média, sob forte influência do Direito Canônico, que pregava

que quem não procedesse de maneira cautelosa na relação contratual estaria

pecando, conferiu a boa-fé uma tonalidade ética5.

Não obstante, foi na baixa Idade Média que o princípio do

consensualismo se firmou, com respeito à palavra dada, por interferência do

Direito Canônico, conforme pode ser evidenciado na Decretais de Georgio IX,

de 1243: “Pacta quantumque nuda servantur” (qualquer pacto, mesmo o nu,

deve ser mantido).6

Na Idade Moderna, configurou-se a prevalência da autonomia da

vontade, passando a boa-fé ser considerada subjetiva.

3 MARTINS, Flávio Alves. Op. cit., p. 36. 4Idem. Ibidem, p. 36. 5 Idem. Ibidem, p. 38. 6 Idem. Ibidem, p.39.

9

Desta forma, neste período, a boa-fé passou a ter aplicação restrita,

com aplicação na maioria das vezes em assuntos relacionados aos direitos

reais.

1.2 – A boa-fé no Código Civil de 2002

O Código Civil de 1916 baseou-se nos ideais do Código Napoleônico, na

legislação luso-brasileira anterior e nos ensinamentos da escola alemã dos

pandecistas. Aqui a maior crítica era ao exclusivismo jurídico dominante na

visão positiva do Direito que se contentava com princípios e regras de caráter

empírico, vez que a vida não se limitava a uma sucessão de fatos

desvinculados de valores.

O Código Civil de 2002 veio justamente para afastar esse

individualismo, passando a ser basilar a aplicação da boa-fé. Ou seja, nesta

nova concepção legal, a boa-fé não era um imperativo abstrato, mas sim uma

norma que condiciona e legitima toda a relação jurídica.

1.3 – O Conceito de boa-fé no Código Civil de 2002

É de bom alvitre ressaltar a existência de dupla faceta da boa-fé no

Código Civil de 2002: a objetiva e a subjetiva.

1.3. 1 – Boa-fé subjetiva

A fé subjetiva lastre-se em atitudes psicológicas, isto é, uma decisão de

vontades. Consiste em um estado de espírito, um estado de consciência,

como, por exemplo, o conhecimento ou o desconhecimento de uma situação

fundamentalmente psicológica.

10

No entendimento de Otávio Guimarães, o estado psicológico da boa-fé

subjetiva liga-se a noção de erro:

“Ocorre um êrro, ou uma falsa representação da realidade, e tal

fato determina uma apreciação defeituosa do acontecimento. O

sujeito delibera, contrata e põe-se em relação com outras

pessoas, acreditando que o fato tenha uma certa expressão,

quando realmente é diverso o seu sentido. O êrro, então, gera a

boa-fé, ou o pensamento de não ofender o direito alheio.”7

Geralmente, a subjetividade deriva de uma ignorância do sujeito a

respeito de uma determinada situação, como por exemplo, na hipótese de um

possuidor da boa-fé subjetiva que desconhece o vício que denigre a posse.

Assim, o legislador o protege, não fazendo o mesmo em relação ao possuidor

de má fé.

Sua primeira aparição no ordenamento brasileiro ocorreu no Código

Comercial de 1950 e, posteriormente, com o advento no Código Civil de 1916

a noção de boa-fé pode ser verificada diversas vezes, de forma explícita, mas

sempre sob o prisma psicológico, fundada em erro de fato ou num caso de

ignorância desculpável.

No Código Civil de 2002 encontra-se basicamente alusão a boa-fé

subjetiva em matéria de ordem de direitos reais e casamento putativo.

Vejamos:

“Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de

boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes

7 GUIMARÃES, Otávio. A boa-fé no direito civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1953, p. 29.

11

como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença

anulatória.

§ 1º Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o

casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos

aproveitarão.

§ 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o

casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão.”

“Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou

o obstáculo que impede a aquisição da coisa.”

“Art. 1.214. O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar,

aos frutos percebidos.”

“Art. 1.217. O possuidor de boa-fé não responde pela perda ou

deterioração da coisa, a que não der causa.”

“Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das

benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às

voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o

puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de

retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.”

“Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que,

contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir

por dez anos.”

12

Neste esteio, vislumbra-se que na boa-fé subjetiva premente a

necessidade de se fazer uma análise da percepção individual do agente cuja

conduta está sendo analisada, com o escopo de verificar se este acreditava

que tal agir era correto, mesmo que esse não seja o padrão de conduta normal

do homem médio naquela situação.

1.3. 2 – Boa-fé objetiva

O princípio da boa-fé objetiva tem como principal escopo imbutir na

mente dos contratantes a idéia de procederem em todas as fases do contrato

com alinho, de forma que ambas as partes da relação contratual não se vejam

como concorrentes, mas sim, como parceiros.

Trata-se de uma cláusula geral que deve ser rigorosamente cumprida

pelos contratantes, com a finalidade de se harmonizar a relação negocial.

Elucida-se que as cláusulas gerais ou abertas são normas jurídicas

incorporadoras de um princípio ético orientador do juiz na solução do caso

concreto. Elas remetem o intérprete para um padrão de

comportamento/conduta aceito no tempo e no espaço.

Boa-fé objetiva, segundo magistério de Cláudia Lima Marques:

“[...] é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal, tutelada

em todas as relações sociais. A proteção da boa-fé e da

confiança despertada formam, conforme Couto e Silva, a base do

13

tráfico jurídico, a base de todas as vinculações jurídicas, o

princípio máximo das relações contratuais.”8

Por sua vez, Ruy Rosado de Aguiar, citado por Renata Domingues

Barbosa Balbino, define-o da seguinte forma:

“Geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de

acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera

deveres secundários de conduta, que impõe às partes

comportamentos necessários, ainda que não previstos

expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim

de permitir a realização das justas expectativas surgidas em

razão da celebração e da execução da avença.”9

Imperioso se aclarar que a boa-fé objetiva possui um aspecto positivo e

negativo. Positivo, por que diz respeito à obrigação de cooperação entre os

contratantes, para que seja cumprido o objeto do negócio jurídico de forma

adequada, por exemplo, as relações de consumo. Negativo, vez que o

contratante tem o dever de agir com lealdade e honestidade, por exemplo,

sujeito que diante do princípio da boa-fé objetiva se vê compelido a agir com

lealdade ao vender o seu veículo automotor que possui vício oculto.

A boa-fé objetiva nada mais é do que um padrão a ser seguido na

relação negocial e é exatamente este o ponto a ser perquirido pelo Código Civil

de 2002.

88 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. Arts. 1º a 74 – Aspectos materiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 125. 9 BALBINO, Renata Domingues Barbosa. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil. Revista do Advogado. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 2002, nº 69, p. 114.

14

Não se trata da mitigação do princípio da autonomia da vontade dos

contratantes, vez que continua a existir, contudo, colidindo com a boa-fé

deixará de aplicada. Em outros termos, havendo desequilíbrio contratual entre

os contratantes, derivado da autonomia da vontade, será aplicado o princípio

da boa-fé objetiva, a fim de equilibrar a relação contratual.

Nas palavras de Flávio Alves Martins, “mesmo que se reconheça serem

os particulares os melhores conhecedores de seus próprios interesses, não se

pode deixar de considerar a importância da imposição de limites a esse

princípio das obrigações, isto é, o da autonomia, que está submetido a uma

revisão crítica, a qual se manifesta na redução do campo de sua aplicação,

embora permaneça como essência do negócio jurídico.”10

O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, foi o primeiro instituto

brasileiro a positivar expressamente a boa-fé objetiva. Vejamos:

“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por

objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o

respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus

interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem

como a transparência e harmonia das relações de consumo,

atendidos os seguintes princípios:

[...]

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações

de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a

necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de

modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem

econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base

na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e

fornecedores;”

10 MARTINS, Flávio Alves. A boa-fé objetiva e sua formalização no direito das obrigações brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 70.

15

Neste mesmo diploma legal surgiu como cláusula geral:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas

contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que

coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam

incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

No Código Civil de 2002, pela primeira vez na legislação civil brasileira,

a boa-fé objetiva passa a ser aplicada de forma expressa e clara, utilizada como

norma cogente, consoante art. 422:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na

conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de

probidade e boa-fé.”

Na Lei Adjetiva Civil constata-se diversas vezes menção a utilização da

boa-fé objetiva, como nos casos a seguir:

“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados

conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao

exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu

fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

16

O jurista alagoano Paulo Luiz Netto Lôbo, afirma que "a boa-fé objetiva

é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais.

Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as

pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum,

usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A

boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de

comportamento".11

Logo, a boa-fé objetiva, empregada nas relações de consumo,

responsabilidade civil e direito contratual, caracteriza-se como uma exigência

de lealdade (modelo objetivo de conduta), sendo possível afirmar que o

objetivo aqui se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta,

segundo a boa-fé objetiva, é entendida como noção sinônima de “honestidade

pública”.

A boa-fé objetiva também é fonte das denominadas obrigações anexas

ou laterais, também denominados deveres anexos. Doutrinariamente é divido

em três grupos: deveres de lealdade e cooperação, deveres de proteção ou

cuidado e deveres de informação ou esclarecimento.

O dever de lealdade e cooperação corresponde a colaboração mútua

entre as partes para que o contrato atinja a sua finalidade.

Já o dever de proteção e cuidado refere-se ao objeto da prestação, mas

a ele não se limita, incidindo também entre os próprios contrates.

11 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v. 42.

17

Por fim, há o dever de esclarecimento e informação que pode ser

invocado ainda que a hipótese não se amolde ao artigo 147 do Código Civil12,

vez que a informação a respeito do objeto da prestação ou da forma como esta

será executada é elemento essencial para que o contratante possa fiscalizar o

cumprimento da avença.

A violação dos deveres anexos configura a quebra positiva do contrato,

ou seja, o chamando “adimplemento ruim”, que é fonte de obrigação, embora

não contamine a validade do contrato.

Como conseqüência da boa-fé objetiva, temos: o venire contra factum

proprium, surrectio, supressio e tu quoque.

O princípio do venire contra factum proprium significa vedação do

comportamento contraditório, baseando-se na regra do pacta sunt servanda.

Pressupõe uma incoerência entre o comportamento atual com o

comportamento anterior do próprio agente. Isto é, trata-se de duas ações

lícitas e sucessivas, uma posterior a outra, que, contudo, se repelem. A título

elucidativo impõe-se a análise de alguns julgados:

“Direito processual civil. Ação renovatória. Prova pericial que já

havia sido deferida e, posteriormente, vem a ser proferida decisão

reconsiderando o pronunciamento anterior e determinando o

prosseguimento do processo sem a produção daquela prova.

Impossibilidade. Violação ao princípio da boa-fé objetiva.

Vedação de comportamento contraditório que alcança todos os

sujeitos do processo, inclusive o Estado-Juiz.

Nemo venire contra factum proprium. Cerceamento de defesa

caracterizado. Anulação da decisão que reconsiderou a produção

12 Art. 147. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado.

18

da prova pericial, a qual deverá ser colhida. Provimento do

recurso“13

“Apelação Cível. Relação de Consumo. Ação de Obrigação de

Fazer com Pedido de Tutela Antecipada. Plano de saúde. Autora

que celebra acordo para quitação da dívida e reativação do plano

de saúde. Descumprimento do acordo pela operadora do plano

de saúde. Cancelamento do plano de saúde. Conduta

Contraditória. Vedação pelo ordenamento

jurídico. Venire Contra Factum Proprium". Responsabilidade

objetiva. Dever de indenizar. Dano moral fixado de acordo com os

Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade. Arguição de

ilegitimidade passiva pela segunda apelante. Preliminar acolhida.

Ausência de comprovação de que a apelante compõe a

administração do referido plano ou fez parte da relação

contratual. Reforma da sentença. Precedentes citados: 0148283-

74.2011.8.19.0001 APELAÇÃO - DES. REGINA LUCIA PASSOS

- Julgamento: 05/12/2013 - VIGÉSIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL

CONSUMIDOR - 0184619-43.2012.8.19.0001 - APELAÇÃO DES.

REGINA LUCIA PASSOS - Julgamento: 19/11/2013 VIGÉSIMA

QUARTA CÂMARA CÍVEL CONSUMIDOR. DESPROVIMENTO

DO PRIMEIRO RECURSO E PROVIMENTO DO SEGUNDO.”14

“PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÕES. AÇÃO RENOVATÓRIA.

LOCAÇÃO COMERCIAL. CONAB. IMÓVEL DE EMPRESA

PÚBLICA. LEI N. 8.245/1991. PROIBIÇÃO DO

COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO (NEMO POTEST

13 TJRJ. Processo nº 0025324-02.2014.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 1ª ementa - DES. ALEXANDRE CAMARA - Julgamento: 18/07/2014 - SEGUNDA CAMARA CIVEL 14 TJRJ. Proc. Nº 0039262-62.2013.8.19.0206 - APELACAO – 1ª ementa - DES. REGINA LUCIA PASSOS - Julgamento: 16/07/2014 - VIGESIMA QUARTA CAMARA CIVEL CONSUMIDOR

19

VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM). SUCUMBÊNCIA

RECÍPROCA. INOCORRÊNCIA. ART. 21, PARÁGRAFO ÚNICO,

DO CPC.”15

O supressio ou verwirkung redunda do direito não exercitado durante

certo tempo, sob determinadas circunstâncias e que não pode mais sê-lo, pois,

de outra forma, contraria a boa-fé. Esse instituto indica a possibilidade de se

considerar extinguida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não

exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa

expectativa de que esse não exercício se prorrogará no tempo.

Exemplificando, abaixo alguns julgados:

“DECISÃO MONOCRÁTICA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE

PRESTAÇÃO DE CONTAS. PRIMEIRA FASE - AUSÊNCIA DE

INTERESSE DE AGIR - CUMULAÇÃO DE PEDIDO REVISIONAL

- PRESCRIÇÃO TRIENAL -SUPRESSIO - SENTENÇA

MANTIDA. [...] Finalmente, alega a parte apelante que o direito de

exigir contas é abusivo e viola a boa- fé objetiva, sendo

necessária a aplicação da teoria da supressio, porquanto a parte

apelada sempre usufruiu dos serviços postos à sua disposição

sem nunca reclamar e, repentinamente, considera todos os

lançamentos indevidos. Pois bem. A supressio não se caracteriza

pela simples falta de exercer um direito por determinado tempo,

mas sim quando a demora em exercê-lo prejudica a parte

contrária, na medida em que quanto maior o lapso temporal,

maior será o valor a ser restituído. Todavia, ressalte-se que a

inércia do apelado também não permite à instituição financeira

cobrar valores indevidos na relação contratual e o direito do

correntista em ver prestadas as contas, por parte da instituição

15 STJ. REsp 1224007 / RJ – MIN. LUIS FELIPE SALOMÃO – QUARTA TURMA – Julgamento: 24/04/2014.

20

financeira, decorre do direito de informação do consumidor,

conforme TRIBUNAL DE JUSTIÇA Apelação Cível nº 1216180-5

16 Estado do Paraná disposto no art. 6º, III do CPC.”16

Por seu turno, a surrectio ou erwirkung serve para criar um direito em

consequência do continuado comportamento de alguém, ainda que em

contradição do que foi convencionado ou ao ordenamento jurídico. No art. 330

do Código Civil encontra-se a positivação deste instituto.

“Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz

presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no

contrato.”

Quanto ao tema, assim tem se posicionado os Tribunais Brasileiros:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER,

CUMULADA COM PEDIDO INDENIZATÓRIO. NEGATIVA DE

CUSTEIO DE TRATAMENTO DE SAÚDE. - Impugnação à

gratuidade de justiça que deve ser formulada em autos

apartados, conforme entendimento recente do Superior Tribunal

de Justiça. - Ilegitimidade passiva que deve ser afastada, na

espécie, conforme precedentes desta Corte. - Demandante que

não comprovou a efetiva desídia da ré em cumprir a decisão

antecipatória dos efeitos da tutela. Impossibilidade de

condenação da demandada ao pagamento de astreinte. - Parte ré

que já havia autorizado o procedimento realizado pelo autor em

outras oportunidades. - Recusa de atendimento que se configura

violação do principio da boa-fé (surrectio). - Indenização por

16 TJPR. Processo: 1216180-5 (Decisão Monocrática), Des. Luiz Fernando Tomasi Keppen, 16ª Câmara Cível, Julgamento: 18/07/2014.

21

danos morais que se revela adequada e capaz de reparar os

prejuízos causados ao demandante. - Sentença que se mantém,

tal como lançada. NEGATIVA DE SEGUIMENTO AOS

RECURSOS, NA FORMA DO ARTIGO 557, CAPUT, DO CPC.”17

“REGIME DE EXCEÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO. PLANO

DE SAÚDE. CONTRATO FIRMADO POR EMPREGADOR.

DEMISSÃO SEM JUSTA CAUSA. MANUTENÇÃO DO PACTO.

ARTIGO 30 DA LEI 9.656/98. SURRECTIO. JUSTA

EXPECTATIVA. BOA-FÉ. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. 1. O

objeto principal do seguro saúde é a cobertura do risco

contratado, ou seja, o evento futuro e incerto que poderá gerar o

dever de ressarcir as despesas médicas por parte da seguradora

de saúde. Outro elemento essencial desta espécie contratual é a

boa-fé, na forma do art. 422 do Código Civil, caracterizada pela

lealdade e clareza das informações prestadas pelas partes. 2.Há

perfeita incidência normativa do Código de Defesa do

Consumidor nos contratos atinentes aos planos ou seguros de

saúde, como aquele avençado entre as partes, podendo se definir

como sendo um serviço a cobertura do seguro médico ofertada

pela demandada, consubstanciada no pagamento dos

procedimentos clínicos decorrentes de riscos futuros estipulados

no contrato aos seus clientes, os quais são destinatários finais

deste serviço. Inteligência do art. 35 da Lei 9.656/98. Aliás, sobre

o tema em lume o STJ editou a súmula n. 469, dispondo esta

que: aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos

de plano de saúde. 3.É assegurado ao empregado demitido, sem

justa causa, a manutenção da condição de beneficiário, nos

mesmos moldes de cobertura assistencial de que usufruía

17 TJRJ. Processo nº 0215495-49.2010.8.19.0001 - APELACAO – 1ª ementa - DES. TEREZA C. S. BITTENCOURT SAMPAIO - Julgamento: 12/11/2013 - VIGESIMA SETIMA CAMARA CIVEL

22

durante a vigência do pacto laboral, desde que assuma o

pagamento integral do prêmio. Inteligência do artigo 30 da Lei

9.656/98. 4.A ré deixou transcorrer o dobro do prazo máximo

garantido em lei para manutenção do benefício. Evidentemente

que isso criou uma justa expectativa na parte autora de que

poderia manter o contrato indeterminadamente. Surrectio, dever

anexo da boa-fé. 5.Por fim, como a adesão a outro plano coletivo

decorreu da injusta negativa de manutenção do pacto anterior, a

ré deve ser condenada a restituição dos valores decorrentes da

diferença entre a mensalidade paga na nova contratação e

aquela que seria devida se a autora houvesse permanecido como

beneficiária do contrato rescindido. Dado parcial provimento ao

apelo.”18

A título ilustrativo pode-se invocar a seguinte situação: em uma relação

contratual bilateral onde o devedor pratica um ato fora do que está

estabelecido no contrato, mas é aceito pelo credor, por um determinado lapso

de tempo, faz nascer um direito para o devedor, pelo fenômeno do surrectio, e

faz desaparecer o direito do credor de cobrá-lo fazer o que está estabelecido

no contrato, por causa do supressio. E no mais, tendo o credor aceitado essa

prática sem nunca ter questionado ou notificado o devedor, não poderá

exigir instantaneamente que o devedor volte a cumprir o contrato, pois isso

caracterizaria um venire contra factum proprium, ou seja, estaria adotando uma

postura contraditória.

Por seu turno, tu quoque significa “tu também” e representa as

situações nas quais a parte vem a exigir algo que também foi por ela

descumprido ou negligenciado. Nestes termos, aplica-se nos Tribunais

Brasileiros:

CONSUMIDOR.

23

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO. AÇÃO

DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE TÍTULO DE CRÉDITO.

NOTA PROMISSÓRIA. ASSINATURA ESCANEADA.

DESCABIMENTO. INVOCAÇÃO DO VÍCIO POR QUEM O DEU

CAUSA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.

APLICAÇÃO DA TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS SINTETIZADA

NOS BROCARDOS LATINOS 'TU QUOQUE' E 'VENIRE

CONTRA FACTUM PROPRIUM'. 1. A assinatura de próprio

punho do emitente é requisito de existência e validade de nota

promissória. 2. Possibilidade de criação, mediante lei, de outras

formas de assinatura, conforme ressalva do Brasil à Lei Uniforme

de Genebra. 3. Inexistência de lei dispondo sobre a validade da

assinatura escaneada no Direito brasileiro. 4. Caso concreto,

porém, em que a assinatura irregular escaneada foi aposta pelo

próprio emitente. 5. Vício que não pode ser invocado por quem

lhe deu causa. 6. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como

concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos

brocardos latinos 'tu quoque' e 'venire contra factum proprium',

segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em

contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada

objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé 7.

Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 8. RECURSO

ESPECIAL DESPROVIDO.”19

APELAÇÃO CÍVEL - PRELIMINAR - PEDIDO DE

DESENTRANHAMENTO DE ADENDO À CONTESTAÇÃO -

PRECLUSÃO - IRREGULARIDADE INEXISTENTE - SIMPLES

18 TJRS. Apelação Cível Nº 70056798697, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 28/05/2014. 19 STJ. REsp 1192678 / PR – TERCEIRA TURMA – MIN. PAULO DE TARSO SANSEVERINO – Julgamento: 13/11/2014.

24

PETIÇÃO QUE REITERA O TEOR DA CONTESTAÇÃO -

EXPEDIENTE UTILIZADO TAMBÉM PELOS ADVERSÁRIOS -

TU QUOQUE - REJEIÇÃO - MÉRITO - RECONHECIMENTO DE

UNIÃO ESTÁVEL - RELAÇÃO DE CONJUGALIDADE

SIMULTÂNEA - IMPEDIMENTO LEGAL - ARTS. 1.723, § 1º E

1.521, VI, CCB - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE

IMPROCEDÊNCIA - RECURSO DESPROVIDO.20

Como exemplo, temos a seguinte situação: se a parte "a" descumpre

determinada cláusula bilateral, está legitimando a parte "b" pressupor que tal

cláusula não é essencial ou que seu descumprimento será tolerado. Gerada

expectativa por fato próprio, não ressoa ético aquele que anteriormente não

observou um comportamento exigi-lo de outrem.

20 TJES. Proc. Nº 035060069198 – APELAÇÃO CÍVEL – DES. CATHARINA MARIA NOVAES BARCELLOS – 4ª Câmara Cível - Julgamento: 21/07/2009.

25

CAPÍTULO II

APLICAÇÃO DA BOA-FÉ NAS RELAÇÕES

CONTRATUAIS

Conforme amplamente demonstrado, o princípio da boa-fé deve

estar insculpido, enraizado, presente em todo contrato celebrado, sob pena de

eivá-lo de vícios.

2.1 – Definição de contratos

Contrato, do latim, contractu, significa trato com. É a combinação de

interesses entre pessoas sobre determinado objeto ou serviço.

Trata-se de negócio jurídico bilateral que para a sua validade é

necessário a observância de alguns requisitos, a teor do art. 104 do Código

Civil21.

2.2 – Princípios fundamentais

No direito contratual temos 05 princípios fundamentais.

21 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.

26

2.2. 1 – Princípio da autonomia da vontade

De acordo com este princípio as partes podem livremente acordar os

termos do contrato, como melhor lhe convier.

Para Maria Helena Diniz “o principio da autonomia da vontade se funda

na liberdade contratual dos contratantes, consistindo no poder de estipular

livremente, como melhor convier, mediante acordo de vontades, a disciplina de

seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.”22

2.2. 2 – Princípio do consensualismo

O acordo de duas ou mais pessoas é valido para a formação do

contrato.

2.2. 3 – Princípio da relatividade dos efeitos do negócio jurídico

contratual

As avenças se vinculam somente as partes que nela intervieram, não

aproveitando e nem prejudicando terceiros.

2.2. 4 – Princípio da obrigatoriedade da convenção

As estipulações feitas no contrato devem ser fielmente cumpridas (pacta

sunt servanda), sob pena de execução patrimonial quanto ao inadimplente.

22DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 24˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v.3, p. 23.

27

2.2. 5 – Princípio da boa-fé

Na interpretação do contrato deve-se buscar mais a intenção do que o

sentido literal, as partes devem agir com lealdade e confirmação, auxiliando-se

mutuamente tanto na formação quanto na execução do contrato.

2.3 – Fases do contrato e a boa-fé objetiva

Pela detida análise do art. 422 do Código Civil que estabelece que “os

contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como

em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, verifica-se que o

princípio da boa-fé deve estar presente em todas as fases do contrato,

incluindo a controvertida fase pré-contratual e a pós-contratual.

Nas palavras de Sylvio Capanema de Souza, citado por Eduardo de

Oliveira Gouvêa23:

“O princípio da boa-fé objetiva exige que os contratos tenham

equações econômicas razoavelmente equilibradas. Não que seja

pecado ou crime lucrar no contrato, pois ninguém contrata por

diletantismo ou altruísmo, todos nós contratamos para tirar do

contrato um proveito econômico principalmente numa sociedade

capitalista como a nossa. Só que esse proveito econômico agora

tem um limite da construção da dignidade do homem, da

eliminação da miséria, das injustiças sociais, fazer com que os

contratos não estejam apenas a serviço dos contratantes, mas

também da sociedade, construindo o que se convencionou

chamar o estado do bem-estar.”

23 GOUVÊA, Eduardo de Oliveira. Boa-fé objetiva e responsabilidade civil contratual – principais inovações. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 369.

28

Cumpre trazer à baila que doutrinariamente a responsabilidade civil é

classificada em contratual e extracontratual. Contratual, àquela derivada de

uma relação jurídica obrigacional preexistente e extracontratual, também

denominada aquiliana, é aquela em que a obrigação de indenizar é imposta

por preceito geral de direito ou pela lei.

Não obstante, parte da doutrina admite ainda a responsabilidade civil

pré-contratual, também conhecida como culpa in contrahendo ou culpa na

formação dos contratos, assunto este bastante polêmico no mundo jurídico,

vez que corresponde à obrigação de indenizar antes da conclusão do negócio

jurídico, seja pela recusa em contratar, quer seja pelo rompimento das

negociações preliminares.

A polêmica gira justamente em torno da liberdade de contratar das

partes. Ao se iniciar uma negociação não significa a obrigação de se contratar.

Estar-se-ia ferindo o princípio da autonomina da vontade, vez que ao admitir a

existência da responsabilidade pré-contratual significaria dizer que há uma

restrição na liberdade dos contratantes, forçando-os a celebrar determinado

contrato, até mesmo contra a sua própria vontade, com o objetivo de não ser

surpreendido com uma eventual indenização, sob o fundamento de

responsabilidade pré-contratual.

Segundo esta parte da doutrina, haverá abuso na recusa de contratar

quando o motivo ensejador se pautar em motivos como aparência física,

religião, cor, raça, apresentação, classe social, opinião política, etc. A recusa

por si só não acarreta no dever de indenizar, deve haver abuso de direito. Terá

que se fundamentar na intenção de prejudicar aquele com quem não quer

contratar, seja proferindo recusa através de um ato discriminatório; seja

fazendo-a de forma arbitrária, tendo em vista ser o único possuidor de

determinado produto/serviço em uma cidade; seja ainda através qualquer

forma capaz de lesar outrem.

29

Nas palavras de Antônio Chaves24:

“a recusa não oferecerá margem a qualquer reclamação desde

que o seu motivo permaneça no âmbito fechado da consciência

íntima do recusante. Uma vez externado, pode fazer surgir a álea

de uma ação de indenização, não pela recusa de contratar em si

e por si, mas justamente pela ofensa que encerra à honra, à

dignidade, ao brio em que o fato possa implicar.”

No atual panorama contemporâneo, as concepções liberais e

individualistas não mais se aplicam ao direito contratual, conforme já

explanado anteriormente. Ultrapassou-se, por conseguinte, o período que as

negociações preliminares são tidas como meras tentativas de se celebrar um

contrato, sem qualquer força vinculante. Daí emerge também o dever de

indenizar por responsabilidade pré-contratual na fase das negociações

preliminares.

Este dever de indenizar surge a partir do momento que uma parte

interessada em celebrar um contrato com outra vier a criar para esta uma

verdadeira crença que ocorrerá a celebração do contrato, obrigando-a,

inclusive, a realizar gastos para viabilizá-la, e, posteriormente, sem qualquer

justificativa, encerrar as negociações, caberá ao outro a ser ressarcido do real

prejuízo causado.

Impende, para melhor entendimento desta modalidade, tecer breves

considerações acerca das distintas fases de formação do contrato: puntuação,

proposta e aceitação.

24 CHAVES, Antônio. Responsabilidade pré-contratual. 2ª ed. São Paulo: Lejus, 1997, p. 17.

30

A fase da puntuação correspondente às negociações ou tratativas

preliminares. A proposta, ou policitação, compreende a oferta de contratar que

uma parte faz a outra (aqui, aplica-se o art. 427 do Código Civil25). Por seu

turno, a aceitação é a aquiescência de por uma das partes a uma proposta

anteriormente formulada pela outra.

Com base nesse entendimento, esclarecedor é o julgado proferido pelo

Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, abaixo transcrito:

“Responsabilidade pré-contratual ou culpa in contrahendo. Tendo

havido tratativas sérias referentes à locação de imóvel, rompidas

pela requerida sem justificativa e sem observância dos deveres

anexos decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, cabe

indenização. Lições doutrinárias. Apelo provido em parte.”26

Saliente-se, contudo, que se a recusa de uma proposta ocorrer logo

após a sua apresentação, não há que se falar em qualquer tipo de dano que

culmine em indenização. Isto somente ocorrerá quando entre as manifestações

de vontade dos contratantes existir amplo transcurso de tempo.

Vale frisar que mesmo que não haja a conclusão de determinado

contrato, a relação pré-contratual não deixa de produzir seus deveres, pouco

importando se o direito positivo indique ou não qualquer caráter obrigacional à

relação.

Por sua vez, a responsabilidade pós-contratual é aquela existente após

a finalização de determinado contrato, onde as pessoas devem continuar se

comportando seguindo o princípio da boa-fé, sob pena de responsabilização

por perdas e danos. Não quer dizer que a pessoa tenha que sofrer toda a vida

25 Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso

31

para preservar a boa-fé objetiva, mas sim, não se utilizar de sua situação

privilegiada para ocasionar dano a outrem, trata-se de um dever lateral de

conduta de lealdade.

Nas palavras de Sílvio Venosa “essa responsabilidade contratual, ou

culpa ‘post factum finitum’, decorre primordialmente do complexo geral de boa-

fé objetiva em torno dos negócios jurídicos. Trata-se de um dever acessório de

conduta dos contratantes, depois do término das relações contratuais, que se

depreende do sentido individualista do contrato imperante até o século

passado e se traduz em um sentido social das relações negociais, como, aliás,

propõe o novo Código Civil.”27

Frise-se ainda que o Código Civil Brasileiro prevê a possibilidade da

existência de defeitos nos negócios jurídicos e, com o escopo de proteger o

contratante de boa-fé aplica sanções que poderão anular ou nulificar o contrato

celebrado, conforme pode ser percebido através da leitura dos artigos 138 a

184 do Código em comento.

Logo, os contratantes são obrigados a guardar nas negociações

preliminares, conclusão do contrato, no transcorrer da execução e na fase pós-

contratual, os princípios da boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do

contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade.

2.4 – Breves considerações sobre defeitos no negócio

jurídico

Os defeitos no negócio jurídico se classificam em:

26 TJRS - 16ª Câmara Cível, AP nº 598209179, j. 19.08.1998. 27 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 2, p. 484.

32

a) Vícios de consentimento – são aqueles que manifestação

de vontade não é expressa de forma verdadeiramente livre.

Exemplo: erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo.

b) Vícios sociais – são aqueles que manifestação de vontade

não tem no fundo a intenção e a boa-fé que se diz ter. Exemplo:

fraude contra credores e simulação.

Imperioso se afiançar que os casos de vício de consentimento e a

fraude contra credores são passíveis de ação anulatória pelo prejudicado, e,

por sua vez, a simulação acarreta na nulidade absoluta do feito (art. 166 do

Código Civil)28.

O erro ou ignorância (art. 138 a 144 CC) consiste em uma falsa noção

da realidade, um engano fático, não há indução intencional da pessoa

interessada. O erro só é considerado causa para anulabilidade se for essencial

ou substancial, nos termos do art. 138 e art. 139 do CPC, podendo ser

perdoado ou escusável (art. 144 CC).

“Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as

declarações de vontade emanarem de erro substancial que

poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face

das circunstâncias do negócio.”

28 Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;

II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

IV - não revestir a forma prescrita em lei;

V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;

VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

33

“Art. 139. O erro é substancial quando:

I - interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da

declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais;

II - concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a

quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído

nesta de modo relevante;

III - sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei,

for o motivo único ou principal do negócio jurídico.”

“Art. 144. O erro não prejudica a validade do negócio jurídico

quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige,

se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do

manifestante.”

No dolo uma pessoa induz a outra em erro com o objetivo de tirar

proveito para si ou para terceiro na realização do negócio jurídico. Sua

previsão legal encontra-se nos arts. 145 a 150 do Código Civil.

A coação é definida como uma pressão de ordem psicológica que se

faz mediante ameaça de mal sério e grave que poderá atingir o agente,

membro da família, pessoa a ele ligada ou ainda ao seu patrimônio forçando-o

a praticar determinado negócio jurídico. A coação pode ser absoluta, que lhe

tolhe totalmente a vontade, desta forma, o negócio jurídico é considerado

inexistente, e coação relativa, que é o vício da vontade propriamente dito,

acarretará a anulabilidade do negócio jurídico. Está positivado nos arts. 151 a

155 do Código Civil.

O estado de perigo configura-se, consoante art. 156 CC, “quando

alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de

34

grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente

onerosa.” Segundo o enunciado nº 148 da III Jornada de Direito Civil realizada

pelo Superior Tribuna de Justiça afirma que ao estado de perigo, previsto no

art. 156 CC, aplica-se por analogia o disposto no §2º do art. 157 do referido

diploma legal29, em outras palavras o negócio jurídico celebrado em estado de

perigo pode convalescer se houver suplemento suficiente ou se houver

redução do proveito alcançado pela parte favorecida.

Por sua vez, a lesão se caracteriza pela obtenção de lucro

desproporcional por se valer uma das partes da inexperiência ou necessidade

econômica da outra; o vício é concomitante à formação do contrato. Este

negócio jurídico por ser, via de regra, anulável, contudo, caso se enquadre ao

disposto no art. 157 §2º do Código Civil, não se decretará a anulação.

Concernente à fraude contra credores, impo-se aclara que trata-se da

prática de negócio jurídico por devedor insolvente ou na iminência de o ser,

que importe em redução de seu patrimônio, com a única finalidade de frustrar o

direito de seus credores ou represente violação da igualdade dos credores

quirografários. Impõe a necessidade de dívida antes da prática do ato negocial,

mesmo que não vencidas. No Código Civil está delineada nos arts. 158 a 165.

A ação para anular atos praticados em fraude contra credores denomina-se

ação pauliana ou revocatória, devendo ser ajuizada em até 4 anos contados a

partir da data de realização do negócio jurídico que se pretende anular.

Por derradeiro, ocorre a simulação quando há uma declaração falsa,

enganosa da vontade, visando aparentar negócio diverso do efetivamente

desejado. Nulifica o negócio jurídico. Sua definição legal consta no art. 167 §1º

do Código Civil30, no entanto, conforme preleciona o art. 170 do Código Civil,

29 Art. 157. § 2o Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito. 30 Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

35

se o negócio jurídico nulo possuir requisitos de outro, subsistirá este quando o

fim a que almejavam as partes permitir supor que o teriam querido se

houvessem previsto a nulidade.

I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

36

CONCLUSÃO

O princípio da boa-fé é a base para todo e qualquer negócio jurídico

celebrado, devendo ambas as partes o manejarem em todas as suas fases.

Considerando como norte o Código Civil de 2002 e o Código de

Defesa do Consumidor, o presente trabalho discorreu sobre a origem,

conceituações e consequências da boa-fé, bem como destacou a sua

importância antes, durante e após a celebração de um contrato, inclusive

demonstrando que sem ele pode ensejar a nulidde ou anulabilidade do negócio

jurídico pactuado.

Indubitável, outrossim, se afirmar que, pela detida análise do que ora

se apresenta, os contratos configuram verdadeiras molas propulsoras da

economia de qualquer nação e justamente por esta razão devem ser

regulamentados de forma cuidadosa para que sempre seja utilizada a boa-fé

em sua elaboração.

37

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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São Paulo, 2002, nº 69.

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38

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TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil. Volume Único: Método, 2013.

VENOSA, Silvio de Salvo. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações

e Teoria Geral dos Contratos. Atlas, volume 8.

______________________. Direito civil. Teoria geral das obrigações e teoria

geral dos contratos. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 2.

39

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