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PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICA
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO
Azoilda Loretto da Trindade1
“(...) o que aconteceu, no Brasil, é que os africanos [e as africanas] foram tão fundo nas
construção desse país, que hoje eles [elas] já não são eles [elas] eles [elas] somos nós, os
brasileiros [as brasileiras]” 2.
Construir um documento que dialogue com outro/outros, no caso com um documentário e,
ainda, com outras séries do programa Salto para o Futuro sobre a temática das africanidades, é
um grande desafio.
Um desafio que se desdobra em outros:
• Desafio diante da riqueza histórica e cultural (no sentido mais pungente, visceral e amplo do
termo) do patrimônio legado pelos africanos e pelas africanas a toda a humanidade.
• Desafio de não reproduzir preconceitos e estereótipos que nos foram transmitidos por uma
educação racista, elitista e excludente, que todas nós, pessoas que educam, certamente,
recebemos, de maneira tão subliminar, às vezes, que são quase imperceptíveis.
• Desafio de conseguir tocar os corações e as mentes dos professores e professoras brasileiras
que tecem, re-tecem, constroem cotidianamente a nossa escola, no que se refere à importância
e à urgência de se consolidar uma escola que respeite, sem hierarquizar, os diversos saberes e
fazeres das diferentes matrizes culturais e étnicas que constituem nossa brasilidade, e, no caso
mais específico deste material, as africanidades.
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 2 .
• O desafio de convidar todos os educadores que demonstram indignação diante de qualquer
injustiça a ampliarem a rede dos que sabem do convite que a Vida, neste momento histórico
da nossa existência, nos apresenta: UMA ESCOLA DE QUALIDADE, INCLUSIVA,
DEMOCRÁTICA DO E PARA O POVO BRASILEIRO.
• Desafio que é alimentado por nossa indignação e inquietação diante do racismo e de
qualquer expressão de injustiça social e, conseqüentemente, que se desdobra na não
submissão, na não sujeição a circunstâncias e situações racistas e injustas presentes no nosso
cotidiano, inclusive, escolar. Somos, também, alimentadas por um imenso amor e fé na Vida.
O documentário “Africanidades brasileiras e educação” tem como objetivo principal ser
um instrumento que possa ser utilizado na formação de docentes, gerando estudos, reflexões e
debates acerca das africanidades brasileiras em ambientes formais e não-formais de
aprendizagem, na perspectiva de potencializar positivamente a presença negra na sociedade
brasileira.
Como historicamente percebemos uma minimização das temáticas das africanidades, muitas
vezes vistas como secundárias em relação às temáticas “universais” ou outras, achamos
importante destacar a nossa compreensão acerca da amplitude da vida humana e suas diversas
expressões: de etnia, de gênero, de inserção social e cultural, de condição econômica, de
aparência física, das chamadas deficiências... Nossa compreensão é de
que as discriminações e os preconceitos aos quais os seres humanos são submetidos são vários
e de tipos os mais diversos. Contudo, abordaremos as africanidades brasileiras3 em função
dessas premissas: um cronificado quadro de desigualdades aos quais os negros são
submetidos; historicamente, estarmos aos 120 anos da abolição da escravatura; termos uma lei
que institui a obrigatoriedade do ensino da história e culturas africanas e afro-brasileiras nos
currículos escolares, ampliada para as questões indígenas. Tudo isto nos leva a pensar o que
sabemos sobre a nossa afro-ascendência e a nossa ascendência indígena, além de estereótipos.
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 3 .
Compreendemos que os preconceitos, os racismos e as discriminações não se circunscrevem
aos negros e às negras, contudo, enfocaremos as africanidades brasileiras, como uma
contribuição ao longo processo de construção de uma pedagogia voltada para a compreensão,
a valorização e o respeito à nossa brasilidade.
África não é um país
Parece brincadeira, mas muitas vezes ouvimos pessoas se referirem à África como sendo um
país ou um continente homogêneo, ou como “o local onde Tarzan viveu”... Enfim, várias
situações que denotam um desconhecimento do patrimônio geopolítico, cultural e histórico
que é o continente africano.
Lembro-me de que, com 17 anos, numa aula de pré-vestibular, escutei uma revelação de um
jovem professor negro, de História, que foi emblemática na minha vida. Ele revelou, para a
turma, que atentamente o ouvia, que Cleópatra não era como Elizabeth Taylor, mas era uma
mulher negra, inteligente e estrategista, e que o Egito, das pirâmides, dos hieróglifos, da
esfinge, das técnicas de irrigação... era negro, situava-se na África.
Outro episódio emblemático aconteceu, uns quatro anos depois do relatado acima, já nos anos
80, quando eu lecionava numa escola pública municipal, na Zona Oeste carioca. Contava uma
história sobre um dia no zoológico e uma menina negra, de oito anos, levanta-se e sai do
fundo da sala de aula para olhar de perto a imagem exibida durante a leitura da história. Era
uma imagem com várias pessoas no zoológico fazendo coisas diferentes. A imagem era
panorâmica, logo as pessoas apareciam bem pequeninas. A menina vem à minha frente, olha,
olha outra vez a gravura, como se não acreditasse no que via e diz: “Ih! Uma pretinha!”
Depois, retornou, com um aspecto de satisfação, ao local onde estava sentada.
Até hoje fico impressionada com o que pode ter significado para ela aquela ilustração.
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 4 .
Compartilho estes episódios, pois acredito que você leitor(a), ao parar para pensar, certamente
terá pelo menos uma situação ilustrativa da invisibilização ou minimização da presença negra
na sociedade e na escola, ou em diferentes contextos educativos. Creio que essas situações,
episódicas ou não, precisam ser lembradas, refletidas, recordadas, criticadas, compartilhadas,
para serem libertadoras, para romperem com o silêncio que a escola e a sociedade têm
produzido em relação às desigualdades étnico-raciais brasileiras. Situações sugerem questões
e questões não nos faltam!
Você já se perguntou por que conhecemos tão pouco sobre a África? O que aprendemos na
escola, o que lemos a respeito, o que vimos no cinema ou na TV sobre o continente que é o
berço da humanidade?
Desconhecemos o passado remoto e recente da África e pouco sabemos sobre o seu presente.
No entanto, essa é uma história que influencia definitivamente nosso modo brasileiro de ser e
de estar no mundo.
O que estudamos sobre africanos e africanas que foram trazidos para o Brasil na condição de
escravizados? Será que temos nos perguntado por que condições históricas os
afrodescendentes, assim como os povos indígenas e outros grupos sociais, têm tido seus
direitos mais básicos desrespeitados ou mesmo negados?
A desigualdade que marca profundamente a sociedade brasileira tem raízes no colonialismo e
no escravismo. Alterar positivamente esse cenário injusto tem sido bandeira de luta dos
movimentos organizados. Algumas conquistas já podem ser vislumbradas, inclusive no
campo das políticas públicas. No caso da educação, destacam-se a Lei n. 10.639/03 e a Lei n.
11.645/08 que preconizam, respectivamente, o ensino da história e da cultura africana e
afrobrasileira nas escolas e, no caso da lei mais recente, que substitui a anterior, a também
inclusão das temáticas indígenas na educação.
África (re)conhecida
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 5 .
Se a África é o berço da humanidade, no mínimo, o continente africano produziu e produz um
imenso patrimônio sócio-histórico e cultural, entendendo cultura no seu mais amplo sentido,
no qual estão envolvidas arquitetura, ciência, engenharia, medicina... No entanto,
lamentavelmente para todos os seres humanos, a escravatura e o racismo nas suas nuances e
atualizações, vem colocando a riqueza deste continente na subalternidade, na invisibilidade:
“É importante que a gente lute contra essa idéia de uma África fixa e homogênea que
durante três séculos forneceu escravos para o Brasil e procurar pensar, procurar estudar que
sociedades eram essas, que culturas eram essas, em que dinâmica eram inseridos esses
africanos que vieram para o Brasil e que trouxeram tantas coisas importantes! Que
trouxeram para o Brasil sua força de trabalho, suas técnicas, suas competências, suas
religiões, suas cosmologias, suas formas de entender o mundo, formas essas que ficaram
gravadas no modo como o Brasil, como os brasileiros são ainda hoje. Outro ponto
importante que a gente deve ressaltar na história africana na sala de aula é a própria historia
africana em si mesma. Essa África milenar, essas culturas que são múltiplas e interessantes,
a gente se deter na história das relações dos africanos com o mundo, nas criações, na
emergência de reinos na África ocidental, entender o Egito como uma civilização que está
inserida no contexto africano, que é tributário das cidades africanas, ele próprio um marco
importante. Então, entender o Egito no contexto africano é interessante, entender a própria
história da África em suas próprias dinâmicas. Existe material para isso, para pensar a
própria história africana em si mesma. Eu acho importante o estudo da África
contemporânea, dos seus dilemas, das suas questões que não são tão diferentes assim das
questões pelas quais a América Latina vem vivendo. Acho que as lutas africanas são
importantes, as tomadas de consciência, o processo colonial, o processo pré-colonial, o
mundo contemporâneo, então a geografia tem muito o que explorar. Eu acho que existe
uma riqueza enorme nas culturas africanas hoje, nos países africanos, em termos de uma
literatura muito interessante, disponível em Português, para o caso de literaturas africanas
em língua portuguesa, é preciso investir nesses estudos. Investir nesse diálogo que a África
faz entre sua própria história e o mundo, juntando tradição e modernidade, acho que são
formas específicas de aliar a sua própria tradição, seu próprio legado com o presente, a
música africana é riquíssima, a arte africana é lindíssima, tanto essa arte tradicional como a
arte contemporânea, que você encontra nas bienais, que você encontra enfim numa série de
exposições. É preciso pesquisar essa África urbana, essa África vibrante, das músicas, das
cores, da arte, da literatura, ela está aí, ela está disponível para ser trazida para a sala de
aula como uma maneira, como mais um diálogo conosco mesmo. Acho que ela faz parte do
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 6 .
mundo contemporâneo, então, esse interesse pela África como parte do nosso mundo, do
nosso mundo globalizado, do nosso mundo que se aproxima cada vez mais pela Internet,
pelos fluxos, a África está nesse fluxo e está esperando ser descoberta pela Brasil” (Luena
Nascimento – antropóloga/UNICAMP/Bolsista).
África diversa, África plural, África de ontem e hoje com riquezas, contradições e conflitos,
que precisa ser apresentada, reapresentada às educadoras e aos educadores do Brasil por
brasileiras(os) e por africanos(as) de variados países africanos.
Vozes d’África: trechos de entrevistas
Chimamanda4 - escritora (Nigéria):
“(...) é muito importante que as pessoas contem suas próprias histórias. E a África é uma
região do mundo que por muito tempo teve suas histórias contadas por outras pessoas.
Muitos dos textos africanos foram na verdade escritos por europeus, se voltarmos duzentos
anos atrás. Eu acho que é uma coisa boa ouvirmos histórias de África contadas por
africanos.”
“África não é uma coisa única. Poucos pensam sobre África de forma diferente. Pensam na
África das girafas, ou pensam em AIDS, ou pensam em guerras, ou pensam na pobreza.
Uma das perguntas que me foi feita por um dos jornalistas brasileiros, antes que eu
chegasse aqui, foi ‘como você pode ajudar ao seu país?’ E eu pensei, meu país não é apenas
um lugar para eu ajudar. Há muita coisa acontecendo na Nigéria. Há nigerianos que estão
ajudando a nigerianos. Há nigerianos que são pobres; nigerianos que são ricos. Há muita
coisa acontecendo. Acho que a única coisa que posso dizer é que há muitas Áfricas. Não há
apenas uma. Há várias histórias em África. As histórias de ricos e pobres; as histórias
felizes e tristes; e todas elas são histórias africanas, e é importante que nos lembremos
disso.”
“Não temos como apagar o colonialismo da nossa experiência. É parte da nossa
experiência. Parte da experiência de nigerianos, de quenianos, de senegaleses... A África foi
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 7 .
colonizada. E é tudo muito recente. Tornamo-nos independentes em 1960. Há pouco tempo
atrás. E a forma como vivemos hoje é ainda uma reação ao colonialismo. O colonialismo é
ainda parte de nossa existência. O sistema educacional da Nigéria, por exemplo, não mudou
muito desde os anos 1950. As pessoas aprendem muito sobre a Inglaterra e muito pouco
sobre África, porque foi assim que eles organizaram o sistema educacional. Então, é difícil
responder ‘o que você tem a dizer sobre o fim do colonialismo na sua obra?’ Acho que
estou apenas escrevendo histórias sobre pessoas que vivem em um tempo em que o
colonialismo é parte integral de nossas vidas. Mas isto não significa que as pessoas não
tenham [iniciativa]. Os africanos são pessoas que têm iniciativa.”
Pepetela – escritor (Angola)
“A literatura acaba por mostrar que também no continente africano já há pessoas que
pensam, começa por aí. E um dos estigmas que haviam passado pela Europa é que em
África praticamente só havia macacos em cima das árvores. Portanto, a literatura é uma
forma boa para dar a conhecer a realidade, certa realidade e, sobretudo, para chamar a
atenção para problemas, quaisquer que sejam. Não para resolver problemas, não porque não
é trabalho que se possa exigir do escritor. É para isso há outras instituições e pessoas, mas
levantar os problemas, chamar a atenção, é obrigar as pessoas a pensar sobre esses
problemas.”
“(...) Mas o fato de ser a língua materna [a portuguesa] a língua na qual eu me expresso,
não me impede nunca de deixar de escutar essas outras línguas que eu não falo. E há em
mim uma busca incessante da necessidade, da harmonia de todas essas línguas e que foram
trazidas em primeira mão pelas ‘mulheres’, primeiro na família, depois na sociedade,
depois no mundo inteiro que também tem outras vozes que eu também escuto.
É curioso porque eu vou dizer mais uma vez: foi em português que eu falei dessas mesmas
línguas, mas há todo um patrimônio da tradição oral e mesmo fixado em português que foi
importante para eu chegar ao conhecimento dos locais, das regiões, do meu país, em suma.
Eu penso que toda a gente é de um lugar, como é de uma infância, com é de uma
determinada região e aí, essas mesmas línguas silenciadas durante todo o processo colonial,
elas foram só aparentemente silenciadas, porque elas estavam lá, o meu trabalho nem
sequer foi muito grande, foi apenas ouvir, ficar atento.”
Ana Paula Tavares - escritora (Angola)
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 8 .
“Se eu tivesse que escolher um tema para as minhas coisas, desde logo a palavra ‘mulher’
seria muito importante. Desde cedo eu me habituei a olhar a volta e notar que o país, a
região local dependia dessa força enorme, dessa energia enorme das mulheres. São elas que
inventam a água, são elas que fazem as comidas, são elas que sustentaram um país que,
como vocês sabem, durante tantos anos, esteve na guerra. Os homens estavam a fazer a
guerra, eram as mulheres que faziam com que o país funcionasse com que o país se
reproduzisse. Eram elas que cuidavam dos vivos e dos mortos. Então, se há alguma coisa
que possa ser recorrente numa obra que tenta tocar todos os temas, a palavra ‘mulher’ é
talvez a mais forte e eu sou muito tributária dessas vozes que eu ouvi, dessas mulheres que
falavam outras línguas que não a língua portuguesa que é a minha língua materna.”
“São Tomé e Príncipe é um país insular, é um arquipélago com menos de mil km2, 160 mil
habitantes, eu acho que cabemos algumas vezes no estádio do Maracanã, e a origem da
sociedade creola santomense é escravagista, o povoamento se fez com povos levados de
diversas partes do continente africano e essa mescla de culturas, esse cadinho de cultura,
faz com que a questão da identidade também atravesse a poética santomense. Em mim, a
questão da identidade está muito presente e é um dos aspectos centrais da minha poesia. O
desejo de tentar iluminar trechos obscuros ou apagados ou rasurados da história do meu
povo. A presença do escravo, o sofrimento do escravo, dos nossos antepassados, o
silenciamento das suas vozes, contudo não morreram porque eu degluti essas vozes e elas
estão hoje na minha poesia. Por outro lado, a firme vontade de através da palavra poética
como que fazer justiça histórica a esse segmento fundamental do meu país e do meu
passado, porque há uma grande preocupação com o meu passado. A memória, portanto,
escreve-se aí, a memória familiar, a memória pessoal, a memória histórica. Outra
preocupação central tem a ver com o social presente e mesmo quando eu me inspiro no
passado e vou ao passado e vou à história, esse tratamento não é meramente revitalista. Há
uma relação entre o silenciamento e a injustiça, um presente marcado por fortes
estratificações, por uma classe dominante que tem muito e uma maioria que tem muito
pouco.”
Conceição Lima – escritora (São Tomé)
Há um provérbio guinense que diz assim: quando alguém insiste em dizer que conhece
fulano muito bem, que ele não seria capaz de tal coisa ou que ele é capaz de fato de fazer
ou cometer esse erro! Há a voz de um velho que pergunta: Há quantos anos vocês moram
juntos? Quando você diz: há cinco, há três, há sete... ele diz: não, você não conhece, porque
nós vivemos uma vida inteira e não nos conhecemos a nós mesmos, porque às vezes nos
surpreendemos com atitudes, com palavras que saem da nossa boca. Eu parto desse
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 9 .
provérbio guinense para dizer que não é fácil conhecer o outro, mas é possível criar
condições, criar um patamar de partilha de experiências, então eu acho que falta qualquer
coisa para essa partilha. Há como que um preconceito de parte a parte, nós mesmos muitas
vezes nos olhamos com preconceito e nós olhamos o outro com preconceito e temos medo
de admitir esse preconceito que nós temos e todo o mundo tem um pouco desse preconceito
lá no canto. Então, eu acho que cada vez que nós damos um passo para nos desinibirmos
um pouco mais, para limparmos este preconceito que às vezes nós temos do outro, porque o
outro é aquele que nós mal conhecemos e que, muitas vezes, porque não conhecemos,
porque é algo que se parece, em nossa vista, como misterioso, nós não conhecemos e ali há
algo de que temos medo também e é esse medo que está a constituir a barreira desta
partilha, desse mau conhecimento do outro, de nós a nós mesmos, do Brasil a si próprio,
para depois nós partilharmos esse conhecimento que vai passar pelo reconhecimento da
cultura do outro, das nossas culturas, nós africanos, as vossas culturas, vós, brasileiros, para
conhecerem que o Brasil é um continente. O Brasil é uma imensidão e a África é outro
continente, então é preciso que cada um de nós saiba se conhecer a si próprio, saiba
tolerar-se a si próprio, saiba conhecer a sua história e, como diria Paulo Freire: Cada vez
que nós ensinamos a ler e a escrever a um homem e a uma mulher, nós estamos a dar a este
homem e a esta mulher instrumentos para que ela e ele próprios consigam escrever e
reescrever a sua própria história e rever-se nela, sem complexo e com a responsabilidade
própria.
Odete Semedo – escritora (Guiné-Bissau)
Quando eu tive conhecimento dessa lei, eu disse: bom, eu acho que o Brasil pôs na mesa o
assunto para ser discutido, um assunto que me parece que é um assunto tabu. As pessoas
não querem falar de racismo, em discriminação, no negro e de várias coisas, parece que a
história nos envergonha. Então, essa lei vai permitir um olhar para trás, um olhar para a
história do Brasil, um olhar sem complexos, eu espero. E mesmo que seja um olhar com
complexos, mas desde que permita a abordagem do problema já está a pôr à mesa uma
questão que é uma questão não só brasileira, mas africana e universal, porque o racismo, a
discriminação, não é só no Brasil, não é só em África. Há um pouco em cada canto dos
países da Europa ou da América do Norte. O meu olhar sobre essa lei é que ela vai permitir
um olhar para trás, um olhar o presente e, em perspectiva, o futuro sem receio, sem
complexos, isso é o que eu vejo. Eu acho também que essa lei vai permitir um olhar sobre
a África com outros olhos, não o olhar de uma África folclórica, não a África de guerras, de
fome, mas uma África que é como um continente com vários países, com várias culturas,
várias línguas, várias maneiras de estar, de viver, de olhar o mundo. Portanto, eu acho que
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 10 .
essa lei é mais uma porta que se abre, não vai mudar o mundo, mas é um passo, é uma
pedra no meu entender.
Pensar a Diáspora Africana
Pensar a Diáspora Africana é pensar na África como um continente que se expandiu, de onde
seus filhos e filhas se espalharam pelo mundo, antes, durante e depois do chamado período da
escravização negra. E isto é importante, uma vez que aqui, no Brasil, constituiu-se uma
parcela desta diáspora africana.
Esta presença africana no Brasil, marcada por histórias, memórias, culturas e valores
civilizatórios, estabelece aqui referenciais que se constituem como valores civilizatórios afro-
brasileiros, valores tecidos no diálogo, nos confrontos, nos encontros diaspóricos dos
africanos, afro-brasileiros entre si e com os demais grupos aqui existentes. Que valores seriam
estes? Ilustrativamente, podemos citar o da circularidade como um valor que nos permitiu,
enquanto afrodescendentes e afro-brasileiros, ressignificar a dor do processo cruel da
escravização negra, do racismo, e positivizá-la, produzindo vida afrodescendente fora da
África.
O principio do axé, da energia vital, outro valor que acena para esta presença no cotidiano
brasileiro, o comunitarismo, a cooperação, a memória inscrita no corpo, a corporeidade, a
ludicidade imbricada no processo de transformar a dor em potência...
“(...) os africanos chegaram praticamente com o seu corpo, foram muito poucos os objetos
trazidos, eles eram na verdade desnudados, vinham quase que nus nos navios. O patrimônio
maior cultural era o corpo. O corpo passou ser a caixinha de segredo. Então, o corpo trazia
não só as marcas do mundo perdido, das culturas a que, na verdade, esses africanos que
para cá foram transladados pertenciam. As marcas culturais vinham com o corpo nos
gestos, nos hábitos, nos comportamentos das condutas corporais e também nas
escarificações, das cicatrizes, das marcas do corpo. O corpo era na verdade o grande
arquivo que continha a memória das experiências que agora eram violentamente
abandonadas, agora, se podemos falar de patrimônio histórico e cultural das populações
africanas transladadas, o primeiro território, o primeiro objeto, o primeiro elemento
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 11 .
fundamental dessa memória é o corpo. É com o corpo que o africano vai reconstruir a sua
experiência perdida, é através desse corpo, através da gesticulação, através da dança,
através do modo de andar, através da oração, através da culinária quer dizer com o corpo,
pelo corpo é que a experiência patrimonial, civilizatória vai ser reconstituída” (Julio César
de Tavares – Professor de Antropologia da Universidade Federal Fluminense).
“(...) em comunidades remanescentes se festeja tudo, se festeja a vida, e juntamente com a
questão do festejo vem a questão do canto, vem a questão da música, vem a questão da
dança, que constitui momentos que, se formos analisar na comunidade o que se significa a
festa, são movimentos reivindicatórios, são movimentos revolucionários, onde se revitaliza
a potência de se tentar colocar frente ao mundo branco, frente a tantas expropriações a que
os quilombolas estão sujeitos” (Georgina Helena Lima Nunes – professora da
Universidade de Pelotas – RS).
Pensar a Diáspora africana não apenas nas bases culturalistas, mas também políticas, pois os
valores trazidos e vivenciados podem ser fatores de transformação social.
Em toda cultura nacionalNa arte e até mesmo na ciênciaO modo africano de viverExerceu grande influênciaE o negro brasileiroApesar de tempos infelizesLutou, viveu, morreu e se integrouSem abandonar suas raízes (Nei Lopes e Wilson Moreira).
Africanidades brasileiras e educação
“(...) estudar Africanidades Brasileiras significa estudar um jeito de ver a vida, o
mundo, o trabalho, de conviver e lutar por sua dignidade, próprio dos descendentes de
africanos que, ao participar da construção da nação brasileira, vão deixando nos outros
grupos étnicos com quem convivem suas influências e, ao mesmo tempo, recebem e
incorporam as daqueles” (Petronilha Gonçalves e Silva – Professora da Universidade
Federal de São Carlos - UFSCar).
Pensar as Africanidades Brasileiras na atualidade nos remete ao fato de que é impossível
negar a presença negra em todos os setores da sociedade brasileira. Contudo, em alguns
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 12 .
espaços, essa presença está aquém do que é desejado e necessário, e ainda é marcada pelo
racismo, pela exclusão, pela subalternização. No entanto, é importante ressaltar que:
“Uma sociedade pautada em qualquer tipo de discriminação é uma sociedade que vai
deixar, sem dúvida, à margem da participação, digo participação produtiva, produtiva
intelectual e produtiva econômica, uma grande parcela da sua população. E nesse sentido,
quando nós pensamos em racismo, nós estamos pensando em mais de 50% da população
negra ou pelo menos quase 50%, se formos seguir as cifras oficiais apresentadas pelo
IBGE. Então, nós estamos dizendo que numa sociedade que exclui e exclui pelo racismo,
que é a nossa discussão aqui, nós vamos ter metade da população do Brasil fora dos
regimes de direitos de todas as áreas e isso traz no mínimo subdesenvolvimento para o
país” (Joselina da Silva - Professora da Universidade Federal do Ceará).
“É preciso que os educadores brasileiros entendam o seguinte. Que eles se perguntem: o
que eu sei de Ásia? Estou vendo um japonês aqui, este aqui é uma dessas populações. O
que eu sei da história do português, da história de Portugal, será que eu sei alguma coisa? O
que eu sei da história da Itália? Então, eles têm que perguntar a eles mesmos, ao invés de
partir do que já sabem” (Yedo Ferreira - Militante Movimento Negro).
A despeito do racismo, das desigualdades étnico-raciais, talvez alimentados pelos seus
valores civilizatórios, ainda que inconscientemente, o povo negro, ou afro-brasileiro, afirma
cotidianamente sua energia vital, seu axé, sua presença, sua existência:
“(...) a escola deve ser impregnada pela diversidade das culturas que compõem a nação
brasileira. Então, temos que admitir que existem várias culturas e não só as culturas
oriundas da Europa. O tempo todo se fala nessa mítica das três raças compondo a nação
brasileira, mas, entretanto, os valores ocidentais não são somente os hegemônicos, são os
que detêm a supremacia na produção desses valores na escola. Então, uma escola
democrática é uma escola que aposta na diversidade, mas não só diversidade congelada,
coloca ali uma estátua do berimbau, ou uma estátua do orixá dentro da escola e falar que
isso é diversidade. São esses valores que compõem a força das diferentes culturas, em
especial da cultura afro-brasileira, eles devem não só estar presentes, como também
assegurar que a sua dinâmica se entrelaça no cotidiano da escola, eles devem estar
presentes na culinária, na merenda escolar, eles devem estar presentes naturalmente nas
atitudes cotidianas desses jovens na escola, devem estar presentes no esporte, devem estar
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 13 .
presentes na própria discussão religiosa, devem estar presentes na matemática, as formas de
pensar a matemática, o número dentro da África deve aparecer no ensino da matemática,
valorizar as diferentes etno-matemáticas, as diferentes matemáticas culturais. A matemática
não é somente a matemática ocidental, a matemática como forma de pensar
geometricamente, aritmeticamente a natureza, isso existe em várias culturas, então existe
uma forma de pensar matematicamente na África, que deve aparecer. Essa diversidade deve
se entrelaçar no cotidiano da escola, esse entrelaçar e o impregnar, a gente tem que
produzir essa impregnação, essa interculturalidade, mais que a multiplicação das culturas,
temos que fazer com que haja o encontro e o intercurso dessas culturas. A impregnação da
cultura afro-brasileira seria talvez o maior desafio, porque é muito fácil, por conveniência,
os diretores da escola fazerem lá o dia do negro, como fazem o do índio. Isso não é
transformar essa cultura como presente, congelando num único dia, dos 365 dias do ano, é
preciso fazê-la presente diariamente conforme a cultura ocidental do europeu está presente
nos 365 dias, você não tem o dia da cultura alemã, você tem ela presente o tempo todo, a
cultura italiana, a cultura portuguesa ou a cultura espanhola, como cultura ocidental, elas
estão presentes os 365 dias do ano. Então, queremos que também durante os 365 dias do
ano a cultura africana e a cultura indígena estejam presentes e as demais culturas, a cultura
cigana, todas as outras culturas. É importante que haja um local de manifestação dessa
multiplicidade, desses universos múltiplos das diferentes culturas. A cultura afro-brasileira
tem uma riqueza gigantesca para oferecer a essa moldagem da nação brasileira num
universo intercultural, precisamos estar convictos, nós, professores, diretores da escola, que
é importante para produção de um novo brasileiro, essa impregnação e a convicção
significa na adesão generosa, na adesão amorosa, na adesão afetiva a essa cultura.
Digamos, abrir o coração a essas culturas, abandonarmos a força colonial que nos coloca
quase que de joelhos diante daquilo que é europeu super, hiper valorizando o que é europeu
e desvalorizando, desqualificando o que é africano, o que é indígena na cultura brasileira.
Isso é que precisa ser superado e essa superação só poderá se dar com amor se não houver
convicção da necessidade de afeto no tratamento com afeição, com generosidade, com
gentileza dessas culturas, compreendendo a presença delas já existente dentro de nós
mesmos, dentro da cultura que nós temos. Imagine você que o Brasil tem a feijoada como
seu prato nacional e ainda discute se deve ou não garantir a impregnação da cultura afro-
brasileira no nosso cotidiano. É tamanha a hipocrisia, a ignorância e o grau de colonialismo
em que vivemos que precisamos superar isso com uma certa dose de amor, não é violência,
é amor, vamos abrir o coração e compreender que a cultura brasileira está presente o tempo
todo ao lado da cultura afro-brasileira, ela é um dos principais modeladores da nação
brasileira (...) (Julio César de Tavares – Professor de Antropologia da Universidade
Federal Fluminense).
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 14 .
Estamos na capilaridade da sociedade brasileira, somos, nesse sentido ampliado, todos afro-
brasileiros.
“Essa presença está no cotidiano do brasileiro, está no ar que o brasileiro respira está no
ritmo do corpo do brasileiro, está na comida do brasileiro. Só que o brasileiro também não
percebe isso e gostaria de ser considerado como europeu. Isso está claro no sistema de
educação. Nosso modelo de educação é uma educação eurocêntrica. A escola é o lugar
onde se forma o cidadão, onde se ensina uma profissão. Escolas que sabem lidar com os
dois lados da educação ensinam a cidadania e a profissão. Uma história que é ensinada, a
história da Europa, dos gregos e dos romanos, portanto, brasileiros não só descendentes de
gregos e romanos, de anglo-saxões... São descendentes de africanos também, de índios e
descendentes de árabes, de judeus e até de ciganos. E se a gente olhar o nosso sistema de
educação, onde estão esses outros povos que formaram o Brasil? Então, há um problema no
Brasil, além dessas pessoas serem as maiores vítimas da discriminação social, do sistema
de educação formal, elas são simplesmente ocidentalizadas, elas são simplesmente
embranquecidas. Então, há um problema na educação do brasileiro. Se a gente colocar as
questões: quem somos, de onde viemos e por onde vamos, vamos ver que o Brasil nasceu
do encontro da culturas das civilizações, dos povos indígenas, africanos que foram
deportados os próprios imigrantes europeus de várias origens. Até estamos agora
comemorando os cem anos da imigração japonesa, se fala mais dos cem anos da imigração
japonesa do que 600 anos da abolição. Não tenho nada contra isso, mas fala-se muito pouco
da abolição. Se a gente quer saber quem somos, devemos conhecer todas as nossas raízes,
aqueles povos que formaram o Brasil, alguns dizem que somos um país mestiço, mas essa
mestiçagem não caiu do céu. Já que a gente não quer reconhecer a diversidade das coisas,
suponhamos que sejamos todos mestiços, vamos pelo menos estudar as raízes da nossa
mestiçagem, faz parte da nossa cultura” (Kabengele Munanga – Professor de
Antropologia / USP – Diretor Centro de Estudos Africanos).
Diante da nossa diversidade étnico-racial, cultural, creio que fomos colocadas(os) no
desafiante território da construção, enquanto educadoras e educadores brasileiros, de uma
pedagogia brasilis, uma pedagogia com/da e para a real e diversa população brasileira.
Um sorriso negro, um abraço negro
Traz.... felicidade
Negro sem emprego, fica sem sossego
DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO 15 .
Negro é a raiz da liberdade
Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio, é luto
negro é... a solução
Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade.. (um sorriso negro!) (Dona Ivone Lara)
Bibliografia:
Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: MEC, SECAD, 2005.
Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC,
SECAD, 2005.
Histórias da Educação do Negro e outras histórias. Brasília: MEC, SECAD, 2005.
Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnicos-Raciais. Brasília: SECAD,
2006.
GARCIA, Januario. 25 anos 1980 – 2005: movimento negro no Brasil. Brasília, DF:
Fundação Cultural Palmares, 2006.
SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de
Janeiro: SESC Nacional, 2007.
Notas:
1Pesquisadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Consultora do documentário.
2 Retirado do documentário “Povo Brasileiro” (baseado na obra de Darci Ribeiro).
3 O Salto para o Futuro, ao longo da sua história, já tem uma tradição de documentários temáticos, inclusive,
sobre questão indígena, cultura popular, dentre outros.
4 Tradução Kátia Santos.
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Presidente da RepúblicaLuís Inácio Lula da Silva
Ministro da EducaçãoFernando Haddad
Secretário de Educação a DistânciaCarlos Eduardo Bielschowsky
TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO
Diretor de Produção de Conteúdos e Formação em Educação a DistânciaDemerval Bruzzi
Coordenador-geral da TV EscolaÉrico da Silveira
Coordenadora-geral de Capacitação e Formação em Educação a DistânciaSimone Medeiros
Supervisora PedagógicaRosa Helena Mendonça
Acompanhamento PedagógicoAna Maria Miguel
Coordenação de Utilização e Avaliação Mônica MufarrejFernanda Braga Copidesque e RevisãoMagda Frediani Martins
Diagramação e EditoraçãoEquipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil Gerência de Criação e Produção de Arte
Consultora especialmente convidadaAzoilda Loretto da Trindade
E-mail: [email protected] page: www.tvbrasil.org.br/salto Rua da Relação, 18, 4o andar - Centro.CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)Outubro de 2008
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