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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH • São Paulo, julho 2011 1 A Doutrina das Cores de Goethe como capítulo no desenvolvimento da História das Ciências LUIZ BARROS MONTEZ I. Goethe e o pensamento histórico É fato conhecido que a obra de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) avança sobre variados campos do saber. Contudo, as investigações sobre a sua relação com a história e a historiografia são relativamente tardias. Mais de um século após a sua morte, Ernst Laslowski constata, em um artigo de 1935 intitulado “O pensamento histórico de Goethe”, que a pesquisa histórica alemã (...) voltou-se bastante tardiamente, e raramente, em termos comparativos, para o pensamento histórico de Goethe. Se excetuarmos os dois trabalhos mais antigos, que valoram a posição de Goethe mais pelo lado conteudístico, de F. X. Wegele [1823-1897] e de Ottokar Lorenz [1832-1904], toda a literatura reunida sobre este tema mal passa de uma dúzia de escritos, todos surgidos nos últimos anos (apud ESENWEIN & GERLACH, 1999. Todas as traduções no artigo realizadas do original em alemão são minhas, L.M.). As reflexões de Goethe sobre a história e sua prática como historiador da ciência despertaram dúvidas, já desde os primeiros anos do século XIX, acerca de sua utilidade para a disciplina da história. Mais de um século transcorreu, após a sua morte, até que as novas correntes historiográficas do século XX se debruçassem mais detidamente sobre a real contribuição de Goethe para a ciência histórica. Cinco anos antes do artigo de Laslowski supracitado, dividiam-se já os historiadores alemães em posições por vezes diametralmente opostas quando a discussão girava sobre se e em que medida Goethe teria de fato contribuído para o conhecimento histórico. Em seu livro de 1930 intitulado A concepção da história de Goethe em suas bases, Walter Lehmann fornece o seguinte depoimento: A situação presente das investigações sobre a relação de Goethe com as questões fundamentais da vida histórica apresenta uma contradição de opiniões na qual todas as nuances são possíveis. Uns são da opinião obstinada de que Goethe jamais teria chegado a uma maior compreensão histórica, e mesmo de que ele de modo quase único interpretou de modo profundamente equivocado a trama da história. Outros afirmam a qualquer preço o contrário, e querem, assim, com disposição frequentemente exagerada, festejá-lo mais ou menos como “o precursor mais importante da Professor Associado, Pós-Doutor, da Faculdade de Letras da UFRJ.

Doutrina Das Cores de Goethe Na Historia Das Ciencias

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Teoria da cor

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  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 1

    A Doutrina das Cores de Goethe como captulo no desenvolvimento da

    Histria das Cincias

    LUIZ BARROS MONTEZ

    I. Goethe e o pensamento histrico

    fato conhecido que a obra de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

    avana sobre variados campos do saber. Contudo, as investigaes sobre a sua relao

    com a histria e a historiografia so relativamente tardias. Mais de um sculo aps a sua

    morte, Ernst Laslowski constata, em um artigo de 1935 intitulado O pensamento

    histrico de Goethe, que a pesquisa histrica alem

    (...) voltou-se bastante tardiamente, e raramente, em termos comparativos,

    para o pensamento histrico de Goethe. Se excetuarmos os dois trabalhos

    mais antigos, que valoram a posio de Goethe mais pelo lado conteudstico,

    de F. X. Wegele [1823-1897] e de Ottokar Lorenz [1832-1904], toda a

    literatura reunida sobre este tema mal passa de uma dzia de escritos, todos

    surgidos nos ltimos anos (apud ESENWEIN & GERLACH, 1999. Todas as

    tradues no artigo realizadas do original em alemo so minhas, L.M.).

    As reflexes de Goethe sobre a histria e sua prtica como historiador da cincia

    despertaram dvidas, j desde os primeiros anos do sculo XIX, acerca de sua utilidade

    para a disciplina da histria. Mais de um sculo transcorreu, aps a sua morte, at que as

    novas correntes historiogrficas do sculo XX se debruassem mais detidamente sobre a

    real contribuio de Goethe para a cincia histrica. Cinco anos antes do artigo de

    Laslowski supracitado, dividiam-se j os historiadores alemes em posies por vezes

    diametralmente opostas quando a discusso girava sobre se e em que medida Goethe

    teria de fato contribudo para o conhecimento histrico. Em seu livro de 1930 intitulado

    A concepo da histria de Goethe em suas bases, Walter Lehmann fornece o seguinte

    depoimento:

    A situao presente das investigaes sobre a relao de Goethe com as

    questes fundamentais da vida histrica apresenta uma contradio de

    opinies na qual todas as nuances so possveis. Uns so da opinio

    obstinada de que Goethe jamais teria chegado a uma maior compreenso

    histrica, e mesmo de que ele de modo quase nico interpretou de modo profundamente equivocado a trama da histria. Outros afirmam a qualquer

    preo o contrrio, e querem, assim, com disposio frequentemente

    exagerada, festej-lo mais ou menos como o precursor mais importante da

    Professor Associado, Ps-Doutor, da Faculdade de Letras da UFRJ.

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    orientao cultural-histrica da atualidade, rankiana ou qualquer outra, ou mesmo simplesmente como o grande historiador da natureza. Mas a maior

    parte fica no centro, os que, embora considerando que ele prprio tenha pesquisado historicamente com intensidade e exatido, reconhecem-no somente como um ctico diante das investigaes histricas (apud ESENWEIN & GERLACH, 1999).

    H fortes elementos para se supor que a polmica sobre Goethe e a histria

    derive fundamentalmente da prpria crise do pensamento historiogrfico imediatamente

    anterior emergncia dos Anais de Histria Econmica e Social, de Marc Bloch (1886-

    1944) e Lucien Febvre (1878-1956).

    Desnecessrio dizer aqui em que medida os Annales lutaram contra o factualismo e

    pela constituio de uma histria problema, e a favor de uma abertura da histria a

    outros saberes e prticas no campo das cincias sociais (Cf. DOSSE, 2003: 33-91).

    Antes dos Annales, a busca de uma assim a chamaramos hoje prtica discursiva da

    histria mais aberta a outros saberes e campos epistemolgicos dividia os historiadores,

    colocando-os por vezes em lados radicalmente opostos.

    Algumas dessas questes encontram-se no cerne do pensamento de Goethe sobre

    a histria; portanto, entende-se que esse pensamento tenha se tornado ele prprio objeto

    de disputa em meio batalha historiogrfica no perodo. A discusso sobre Goethe e a

    histria se insere, portanto, na discusso mais ampla sobre o historismo1.

    Tambm no Brasil a relao de Goethe com a histria permanece um tema

    praticamente intocado at o presente momento, isto , em termos de estudos

    sistemticos sobre o assunto. Isso representa uma dificuldade a mais para quem aqui se

    propuser a enfrentar o problema.

    Toda e qualquer investigao sobre o assunto Goethe e a histria precisa

    necessariamente levar em conta esses fatos. Isto significa dizer que, pela sua natureza, a

    opo de estudar o pensamento histrico em Goethe representa desde o incio uma

    tomada de posio bastante heterodoxa, se posta na perspectiva de uma historiografia

    1 O vocbulo alemo Historismus designa a maneira de interpretar os acontecimentos da vida a partir de

    seus dados e desenvolvimento histricos. Em Surgimento do historismo, Friedrich Meinecke (1862-

    1954) entende Goethe como a culminncia desse modo de interpretao histrica (Cf. BARNER,

    1990: 143). No se deve confundir aqui o termo com a designao do movimento que, partindo j da

    primeira metade do sculo XIX ([Leopold von] Ranke [1795-1886]), teve grande fora na Alemanha

    do incio do sculo XX (com a Filosofia da Vida), e cuja teoria do conhecimento da histria buscava entender as manifestaes por meio da intuio e da significao (mtodo idiogrfico), ao contrrio

    das cincias naturais, que procuravam entend-las e explic-las a partir de leis (mtodo nomottico)

    (Cf. BERTELSMANN, 1996).

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    mais tradicional. Entretanto, a preocupao de Goethe com a histria razoavelmente

    mais incisiva do que o ceticismo enunciado pelo prprio escritor faz supor. H, como

    veremos rapidamente, uma grande distncia entre a sua descrena na cincia histrica e

    a sua prpria prtica eventual de historiador da cincia. Somente com base numa anlise

    textual concreta de sua obra e de seu pensamento podemos formar uma convico slida

    acerca de sua posio no desenvolvimento da historiografia das cincias naturais como

    trajetria particular no desenvolvimento da Histria como disciplina na Europa entre os

    sculos 18 e 19.

    Neste pequeno artigo circunscrevemos o problema ao exame de uma publicao

    de Goethe que rene inmeros textos, artigos, excertos, passagens e captulos sobre o

    desenvolvimento de um pensamento cientfico acerca do fenmeno cromtico,

    recolhidos por Goethe em auxlio composio de sua Doutrina das Cores (1810), e

    que leva o nome de Materiais para a histria da Doutrina das Cores. Sem nos

    estendermos mais detidamente sobre os motivos por trs da recolha desta

    documentao, limitamo-nos, no entanto, exatamente com base nela, a estabelecer

    algumas concluses importantes acerca do legado de Goethe como historiador da

    cincia.

    II. Os Materiais para a histria da Doutrina das Cores

    Em um ensaio intitulado Goethe e o mundo histrico, Ernst Cassirer (1874-

    1945) evidencia o profundo contraste existente entre a atitude otimista de Johann

    Wolfgang von Goethe (1749-1832) com relao s possibilidades do conhecimento

    humano sobre a natureza e o total ceticismo do poeta com relao cincia da histria.

    Em vez da desconfiana demonstrada quanto s possibilidades da histria social,

    claramente expressa em um dilogo com o professor e historiador na Universidade de

    Iena Heinrich Luden (1778-1847) em 19 de agosto de 1806 (cf. GOETHE, 1998: 81-

    98), Goethe demonstra grande confiana, otimismo e solidez epistemolgica quando se

    trata do saber nas cincias naturais. Em seus trabalhos preparatrios sobre a fisiologia

    das plantas, o escritor chega a afirmar que, para qualquer pergunta que faamos

    natureza, no fundo possumos a sensao de que a resposta se encontra j em algum

    ponto possvel de ser pensado. Ou seja, existe desde o primeiro momento uma espcie

    de garantia de que a resposta j se encerra na prpria pergunta. Para Goethe, o que ns

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    chamamos de inveno ou descoberta o instante em que exercemos ou colocamos em

    ao uma sensao originria de verdade que, aps permanecer adormecida durante

    longo tempo desde a sua concepo, irrompe sbita e rapidamente como um

    conhecimento produtivo (CASSIRER, 1932: 5).

    A mesma atitude o poeta/cientista assume com respeito sua Doutrina das

    Cores e, particularmente na parte Materiais para a histria da Doutrina das Cores,

    publicada em 1810. Ali, torna a pisar terra firme. No se trata mais de lidar com

    testemunhos inseguros, mas com textos, tratados, assertivas cabais. O fato de Goethe ter

    se ocupado ininterruptamente com a histria da doutrina das cores por tanto tempo,

    entre 1791 e 1810, torna evidente a sua crena na histria da cincia. Quando lemos os

    Materiais para a histria da doutrina das cores (a parte histrica que, juntamente

    com a parte didtica e a parte polmica, compe o conjunto da obra de 1810) nos

    damos conta do avano que ele representa, em termos de escrita da histria, quando

    comparado ao pensamento historiogrfico poca. Para que se entenda este avano,

    necessrio um breve relato sobre as condies de seu surgimento.

    Dois anos aps a publicao das Contribuies tica, em 1791, Goethe

    pensava em formar uma associao de estudiosos que se engajassem em seu projeto da

    Doutrina das Cores. Junto a estes sbios estaria tambm um historiador, com a seguinte

    tarefa:

    [Ele] separar a histria da doutrina das cores da histria da tica e das

    demais doutrinas da natureza. Ele contar, da forma a mais neutra possvel, a

    opinio dos antigos, as hipteses e teorias das pocas mais antigas e atuais, e

    as polmicas; ele procurar as causas morais e polticas da preponderncia

    desta ou daquela doutrina, e acompanhar a mudana das teorias dominantes

    at as pocas mais recentes (GOETHE, 1988 [14]: 273).

    Quando se viu na impossibilidade pessoal da execuo de tal projeto, Goethe

    tomou a deciso de realiz-lo sozinho, assumindo assim para si a tarefa do historiador.

    No obstante o seu isolamento, Goethe teve em Schiller, que ocupava a ctedra de

    histria em Iena desde 1789 e era profundo conhecedor da filosofia histrica de Kant

    um importantssimo interlocutor. Este dilogo com Schiller acerca da histria da

    Doutrina, particularmente entre 1798 e 1799, tornou possvel o amadurecimento e a

    cristalizao do pensamento historiogrfico do escritor.

    O modo de Goethe conceber a escrita da sua histria da cincia do fenmeno

    cromtico cristalizou-se definitivamente entre 1798 e 1801. Entre janeiro e fevereiro de

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    1798, Schiller apresentou-lhe o ensaio de Kant de 1788, intitulado Sobre os usos de

    princpios teleolgicos em filosofia, que contribuiu para a transformao do conceito

    goetheano inicial de histria. Neste ensaio, a histria transcende de simples narrao

    ou descrio do estado atual dos assuntos humanos para uma teoria das origens e do

    desenvolvimento da cincia e do pensamento humano e ele distingue histria da

    natureza (Naturgeschichte) da descrio da natureza (Naturbeschreibung). Foi Schiller

    quem apresentou a Goethe a diferena, estabelecida por Kant, entre histria como

    modo descritivo de escrever e historiografia como teoria do desenvolvimento (FINK,

    1991: 77).

    Em seus contatos, trs anos mais tarde, entre 07 e 12 de junho de 1801, com

    historiadores profissionais de Gttingen como Christian Gottlob Heyne (1729-1812),

    Johann Stephan Ptter (1725-1807), Georg Sartorius von Waltershausen (1765-1828) e

    Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), entre outros (GOETHE, 1988[14]: 461),

    Goethe abandonar a concepo de histria da cincia como uma disciplina

    independente, inteiramente apartada do estudo de qualquer ramo particular da cincia.

    Mas, ainda em 1798, Goethe considerava extremamente necessrio (idem: 277)

    dividir a histria da Doutrina em duas partes: uma histria das experincias

    (Erfahrungen) e uma histria das opinies (Meinungen). A primeira seria a descrio de

    dados empricos, fenmenos da experincia, e a segunda a descrio das assertivas e

    hipteses sobre aqueles dados. Aos poucos foi abandonando a concepo que

    inicialmente atribua ao historiador a mera descrio histrica das fontes, ou a

    justificativa de suas prprias posies atravs de citaes positivas ou negativas de

    outros autores, e passou a pleitear uma histria do saber que tivesse como eixo a

    resposta s perguntas acerca do que os homens aprenderam nas distintas pocas e como

    reagiram a este aprendizado; o que interessou aos homens em todos os tempos, o que se

    buscou para dar conta disto e para satisfazer esta necessidade. Como resultado de sua

    correspondncia com Schiller, Goethe passa da inteno de escrever uma histria a

    priori, e termina por reconhecer que a histria da cincia no necessariamente um

    catlogo de descobertas e teorias cientficas, e sim uma narrativa sobre a busca humana

    por conhecimento (FINK, 1991:82).

    Os Materiais para a histria da Doutrina das Cores formam, juntamente com a

    Parte didtica e a Parte polmica, a Doutrina das Cores. A diviso tripartite foi

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    anunciada decididamente por Goethe em dezembro de 1800. Mas, durante a sua visita

    Biblioteca da Universidade de Gttingen, em agosto de 1801, Goethe chegou a pensar

    em retornar ao esquema inicial de sua histria da Doutrina das Cores. Suas leituras em

    Gttingen, de obras escritas pela maior parte dos cientistas profissionais, lhe sugeriam o

    retorno histria a priori. Chegou a esboar um esquema de histria que, ao contrrio

    do esquema anterior que reservava um volume exclusivo para a histria dissolvia a

    parte histrica, transformando-a na sesso de fechamento de cada uma das trs partes da

    Doutrina (terica, polmica e histrica). Mas voltou atrs, e sua deciso final

    correspondeu a uma ruptura com o esquema tradicional dos modelos de histria da

    cincia que o poeta encontrou em Gttingen. A grande maioria daqueles historiadores

    da cincia lidos por Goethe preocupava-se mais com a organizao das descobertas,

    teorias e sistemas do que com o entendimento do contexto no qual a cincia se

    desenvolve.

    Se Goethe tivesse seguido a tradio, teria escrito uma histria da cincia das

    cores, mas no uma histria dos cientistas. Por conseguinte, no teria realizado o

    deslocamento intelectual que realizou: a transio da reflexo da histria do fenmeno

    cromtico para a reflexo historiogrfica mais ampla. A experincia de Goethe com os

    historiadores da cincia em Gttingen mostrou-lhe a grande diferena existente entre os

    seus interesses cientficos, nos processos da cincia, e os interesses dos historiadores,

    que, em sua maioria, limitavam-se a relatar as realizaes cientficas e o estado em que

    estas se encontravam. Goethe tomou a deciso de investigar os movimentos, as

    transies do pensamento cientfico do homem por trs da cincia.

    Neste sentido, a histria da cincia parecia-lhe um verdadeiro labirinto e assim

    ele define a tarefa do historiador em meio a este processo, num rascunho para a

    Introduo da obra, mais tarde abandonado:

    Muito raramente, e isto em seus momentos mais felizes, o ser humano

    levado a perceber os fenmenos em suas origens mais elementares, a

    exprimi-los claramente em sua fecunda simplicidade, a atribuir todo elemento

    complicado a estas origens e a convencer-se de que chegou aos limites do

    conhecimento, e que, caso seja construda uma cincia, ela tenha que

    repousar sobre tais grandes e simples fundamentos.

    Na histria das cincias e das opinies tudo mais imbricado do que na

    histria poltica universal. Observar experincias, pensar mais ou menos

    corretamente sobre eles, so prerrogativas comuns de todas as naes em

    todas as latitudes. A histria da descoberta, do desenvolvimento posterior, da

    utilizao da descoberta tem que vaguear por todo o planeta, por ser

    igualmente difcil determinar a poca das influncias cientficas. Uma bela

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    descoberta feita, mas a ateno do mundo no atrada por ela, e ela

    repousa sculos. Um pesquisador ainda no famoso, mas atua em silncio;

    finalmente ele mencionado, somente ento aplauso e contradio tornam

    notvel o perodo de sua existncia. Em contrapartida, uma doutrina pode,

    conforme o seu teor, sobreviver a si mesma... Experincias tomam seu

    prprio caminho, multiplicam-se irresistivelmente e formam em silncio uma

    gerao, atravs da qual suplantado aquilo que foi mortal para os antigos...

    De que modo se vagueia tateando para l e para c, enquanto se tenta se

    apropriar do conhecimento, de que modo se tende na cincia a aceitar o mais

    atrasado como se fosse o mais avanado, o inferior como o superior, tal ser

    necessrio representar na Doutrina das Cores, que, na medida em que trata

    de um crculo particular, ter necessariamente a necessidade de descrever

    simbolicamente os destinos de muitos outros esforos humanos (GOETHE,

    1988[14]: 227-278).

    Goethe abandonou posteriormente este rascunho, mas na verso definitiva da

    Introduo aos Materiais deixa claros alguns problemas de natureza semelhante, isto

    , relativos apresentao das inmeras personalidades cientficas ou filosficas

    singulares, no conjunto da exposio:

    extremamente difcil discorrer sobre opinies alheias, especialmente

    quando elas se avizinham, se cruzam e se recobrem. Se quem discorre

    circunstanciado, ele desperta impacincia e tdio; se quer ser conciso, arrisca

    a confundir a sua com a opinio alheia; se evita fazer julgamentos, o leitor

    fica sem saber do que se trata; se se orienta por certas mximas, suas opinies

    tornam-se unilaterais e despertam contradio, e a histria faz ela prpria

    novamente histrias.

    [...] Um homem que tenha vivido um tempo mais longo atravessou diferentes

    pocas; ele talvez no concorde consigo mesmo; ele expe muita coisa das

    quais ns gostaramos de considerar isto correto, aquilo errado; apresentar,

    destacar, anuir, negar tudo isso um trabalho sem fim, que somente

    conseguir realizar quem se dedicar completamente a ele e puder sacrificar a

    sua vida.

    [...] Motivados por estas consideraes, impelidos por estas restries, ns

    deixamos na maior parte das vezes o prprio autor falar. [...] O leitor

    perspicaz conversar com cada um particularmente; ns buscamos facilitar o

    seu julgamento, mas no antecip-lo. As provas esto mo, e um esprito

    capaz saber facilmente fundi-las num conjunto.

    [...] Se aqui nos fosse permitido ainda uma nota divertida, diramos que, deste

    modo, deixando cada autor expressar livremente tanto o seu erro quanto a sua

    verdade, cuida-se tambm dos amigos do no-verdadeiro e do falso, aos quais

    se cria assim a melhor oportunidade para se aplaudir o que for mais estranho

    e insustentvel (idem: 8-9).

    Do ponto de vista de uma histria das cincias a priori, a descrio e a

    exposio dos fenmenos podiam ser feitas progressivamente, na sua sucessividade.

    Mas na histria das opinies humanas a apresentao caminha sempre para

    determinados pontos, para a repetio, como numa espiral, constatar Goethe (idem:

    58). O autor ir resolver este problema expositivo com base na biografia de cada

    personalidade singular. Ir deixar falar cada autor, limitando-se, aps a apresentao

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    biogrfica de cada autor, em sucesso cronolgica, a alinhar os textos, traduzidos por

    ele prprio ou por outros.

    No coincidncia, neste aspecto, que Goethe estivesse exatamente naquele

    momento da redao das trs partes da Doutrina das Cores trabalhando com muito

    afinco em obras de cariz biogrfico. Entre 1796 e 1797 traduziu, e em 1803 acrescentou

    um apndice biografia de Benvenuto Cellini (1500-1571), ourives e escultor italiano,

    sobre a qual escreveu em carta a Heinrich Meyer (1760-1832) em 18 de abril de 1796

    que via todo o sculo muito mais claramente atravs deste confuso indivduo do que na

    exposio dos mais claros historiadores (apud Dorothea Kuhn: 278). Entre 1804 e

    1805, escreve a biografia de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) e, o que nos

    interessa aqui de perto, comeou entre 1808 e 1810 os preparativos para a redao de

    sua autobiografia Poesia e Verdade.

    Pelo que escrevemos anteriormente e pelo vis totalizante do pensamento de

    Goethe, torna-se talvez desnecessrio dizer que o seu mtodo biogrfico no se apia

    numa concepo individualista. Ao contrrio, o esprito de toda a histria da cincia de

    Goethe marcado pela conscincia do trabalho coletivo, pelo dilogo entre pocas e

    homens distantes no tempo, de que os homens autnticos de todos os tempos

    anunciam-se uns aos outros antecipadamente, indicam uns aos outros, preparam o

    trabalho uns aos outros(GOETHE, 1988[14]: 100). A escolha da exposio centrada

    nas inmeras biografias tem como motivao exatamente obter para o leitor o mximo

    de clareza quanto ao carter coletivo e transtemporal da cincia.

    conhecido o ineditismo do tratamento lingustico e literrio conferido por

    Goethe s suas obras autobiogrficas, que as transforma em trabalhos pioneiros no

    gnero. Com relao exposio biogrfica contida nos Materiais, pela extenso do

    assunto seria necessrio um ensaio especfico para que se possa tratar com um mnimo

    de propriedade dos cortes cronolgicos, das escolhas retricas, da forma como o autor

    concebeu linguisticamente o preenchimento das lacunas da histria, das tradues, do

    uso dos originais no conjunto, das inmeras digresses historiogrficas, da defesa

    retrica de sua tese, do tratamento dispensado a Newton etc. Contentemo-nos, por ora,

    em dizer que a apresentao das personalidades do mundo da cincia recebe um

    tratamento lingustico notvel, entre outros motivos, por trazer com frequncia o leitor

    reflexo sobre a relao entre o contedo da histria e a sua forma discursiva.

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    radicalmente moderna, guisa de exemplo, a sua reflexo sobre a necessidade de se

    reescrever a histria levando-se em considerao, como diramos na atualidade, o agir

    discursivo do historiador:

    Que a histria universal tenha que ser reescrita de tempos em tempos, sobre

    isto no resta mais em nossos dias nenhuma dvida. Mas tal necessidade no

    surge em decorrncia de que muita coisa acontecida tenha sido redescoberta

    [nachentdeckt worden], mas porque novas opinies [Ansichten] so dadas,

    porque um contemporneo de um tempo em progresso levado a pontos de

    vista dos quais o passado [das Vergangene] deixa-se avistar e julgar de um

    modo diferente. Assim tambm nas cincias. No somente a descoberta de

    circunstncias naturais e objetos at ento desconhecidos, mas tambm as

    disposies [Gesinnungen] e opinies que se alternam e progridem

    modificam muita coisa, e merecem ser notadas de tempos em tempos

    (GOETHE, 1988[14]: 93-94).

    III. Concluso. O sujeito como articulador da histria.

    Os Materiais para a histria da Doutrina das Cores formam um conjunto de

    enorme extenso. A obra, tal como editada pela Edio de Hamburgo que utilizamos

    (Hamburger Ausgabe, 1988, vol. 14), tem a extenso de 262 pginas. Mas, na realidade,

    o texto que nela aparece limita-se aos comentrios e anlises de Goethe e deixa de lado

    tomando sempre as devidas precaues para que se preserve o esprito sistemtico da

    obra os originais e tradues apensados obra, que, no total, ampliam-na a tal ponto

    que talvez a inviabilizem enquanto projeto editorial para os dias atuais.2 O conjunto

    compe a histria sistemtica dos autores (filsofos, cientistas, pensadores e artistas

    envolvidos com o fenmeno cromtico) e suas respectivas reflexes e pesquisas sobre

    as cores, desde a pr-histria at a poca contempornea ao autor. Como bem registra

    Karl Fink, o ttulo da obra expressa duas dimenses: a palavra materiais sugere uma

    coleo no estruturada de fontes, enquanto a palavra histria

    implica uma narrao na qual os eventos do passado ganham direo e

    interpretao. Ambas as dimenses so representadas no ttulo, e o trabalho

    como um todo compatvel com este paradoxo em sua teoria da

    historiografia. Com a palavra Materiais ele sugere que no construiu um monumento completo, ou formulou a histria baseado em provas matemticas. Com esta palavra ele enfatizou a natureza amorfa da tradio representada na obra. Portanto, o ttulo aponta para a tradio fragmentria

    das tradies, e para a possibilidade de se encontrarem modelos no registro

    das atividades humanas (FINK, 1991: 67).

    2 No Posfcio, Dorothea Kuhn afirma que a extenso ocupada pelos Materiais na edio que utilizamos

    corresponde a cerca de um tero do texto original e que a parte histrica ocupa uma grande parte das

    cerca de vinte e cinco pastas com o material da Farbenlehre (KUHN: 294).

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 10

    Se os Materiais apresentam-se, portanto, enquanto obra inacabada, no podemos

    da inferir que o pensamento histrico do autor seja incompleto. O esprito da obra

    delineia uma metodologia muito ntida de trabalho com a documentao, e solues

    discursivas ousadas para o conjunto de problemas oferecidos pela exposio do

    conjunto. Como os Materiais se articulam em torno de um campo particular das

    cincias e defendem uma posio, em meio polmica com Newton (1642-1727) sobre

    as origens e causas do fenmeno cromtico, que veio posteriormente a mostrar-se

    insustentvel, em termos cientficos, o foco das anlises empreendidas sobre a obra de

    Goethe desloca-se, como inevitvel, para estas questes, e a questo historiogrfica

    naturalmente deixada de lado. Quando separamos as esferas de saber e cotejamos os

    Materiais com o conjunto da obra literria e autobiogrfica do autor, numa perspectiva

    especificamente historiogrfica, podemos entrever que eles representam um conjunto

    muito significativo e ousado de reflexes que merecem uma investigao sistemtica

    mais detalhada.

    Como vimos, no mago da concepo da histria da cincia das cores de Goethe

    encontra-se a proposio do sujeito como centro articulador do discurso historiogrfico.

    Na histria das cincias, o que importa mais so as personalidades particulares dos

    cientistas, subordinando-se os fatos cientficos s suas transformaes intelectuais,

    ideolgicas e cientficas tomadas permanentemente num contexto mvel, dinmico,

    dialogal, de limiares. Esta concepo revela-se igualmente como uma chave decisiva

    para a compreenso do monumental projeto autobiogrfico de Goethe. Lanar luzes

    sobre este projeto equivale a avanar na compreenso no somente dos Materiais, sua

    obra magna sobre a histria da cincia das cores, mas tambm de todo o seu

    entendimento acerca da escrita da histria.

    Bibliografia mencionada

    BARNER, Wilfried. Die Trmmer der Geschichte. ber rmische Erfahrungen Goethes, in: EGGERT, Hartmut; PROFITLICH, Ulrich & SCHERPE, Klaus. Geschichte als Literatur. Formen und Grenzen der Reprsentation de Vergangenheit.

    Stuttgart: Metzler, 1990.

    BERTELSMANN. Lexikon Geschichte. Munique: Bertelsmann Electronic Publishing,

    1996.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 11

    CASSIRER, Ernst. Goethe und die Geschichtliche Welt. Leipzig: Verlag Bruno

    Cassirer, 1932.

    DOSSE, Franois. A histria em migalhas. Dos Annales Nova Histria. Trad. Dulce

    Oliveira Amarante dos Santos. Bauru: EDUSC, 2003.

    ESENWEIN, J. & GERLACH, Harald. Goethe. Zeit, Leben, Werk. Stiftung Weimarer

    Klassik, 1999, Cd-rom .

    FINK, Karl. Goethes History of Science. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

    GOETHE, Johann Wolfgang von. Werke. Hamburger Ausgabe. Munique: Deutscher

    Taschenbuch Verlag, 1988, vol. 14.

    ______. Doutrina das cores. 2 ed. So Paulo: Nova Alexandria, 1996.

    ______. Briefe Tagebcher Gesprche. Cd-Rom. Berlim: Directmedia Publishing GmbH, 1998.

    KUHN, Dorothea. Nachwort. In: GOETHE, J. W. Werke. Hamburger Ausgabe. Munique: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1988, vol. 14, p. 273-296.