Dozena&Marcelino 2008 Samba Peruche Bexiga

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    Ano 2, Verso 2.0, fevereiro de 2008

    O samba na quebrada do Bexiga e do Parque Peruche Alessandro Dozena e Mrcio Michalczuk Marcelino

    Geografia - USP

    O poeta falou

    que So Paulo enterrou o samba,

    que no tinha gente bamba e eu no entendi por qu.

    Fui Barra Funda, fui l no Bexiga, fui l na Nen.

    Me perdoa poeta, mas discordo de voc(Me perdoa poeta - Leci Brando)

    A alcunha chistosa de tmulo do samba dada a So Paulo por Vincius de Moraes e depoisreafirmada por Caetano Veloso na msica Sampa, apontava a vocao da cidade para otrabalho, em oposio realidade dionisaca do Rio de Janeiro, que seria o bero do sambanacional . Esta afirmao se popularizou , fazendo com que vrios compositores eintrpretes dentre eles a cantora e compositora Leci Brando - buscassem resgatar aimportncia do carnaval e do samba aqui realizados. Interessante notar que para Viana(1995), no houve em So Paulo um movimento para a divulgao ou nacionalizao dosamba paulista, como o que ocorreu com o samba carioca a partir dos anos 30. Em nossaopinio, deve ser considerado o fato do Rio de Janeiro ter sido a capital do pas por umlongo perodo; o que lhe proporcionou maior visibilidade.A partir do material recolhido durante a etnografia realizada nas escolas de samba Vai-Vai eUnidos do Peruche, no perodo anterior realizao do carnaval de 2007 (agosto a janeiro),agrupamos elementos que se direcionam para a diversidade dos participantes do mundo dosamba , que se transmuda em distintas representaes e discursos, impregnados de umvalor histrico a respeito da importncia do samba na conformao dos bairros da BelaVista e Parque Peruche.

    Buscando analisar a variedade de significados a respeito da importncia do samba para osbairros, e vice-versa, isto , dos bairros para o samba, optamos pela utilizao dascategorias do pedao (Magnani, 1998, 2000, 2002) e de fora (Magnani, 1984) para sereferir aos participantes do mundo do samba; por balizar os costumes, as atitudes etambm as representaes deles. Ser da Peruche ou da Vai-Vai expressa para a maioriadas pessoas um forte sentimento de pertencimento escola de samba e ao lugar;sentimento de donos do pedao, proveniente de sua descendncia de antigos moradoresde lugares especficos, que guardam idiossincrasias.

    A escolha desses recortes se justifica por serem reas tradicionais de samba na cidade deSo Paulo. O Parque Peruche encerra um importante destaque na presena de escolas desamba e blocos carnavalescos. Alm disso, nossa afinidade com a comunidade localfacilitou o contato com os moradores durante a realizao do exerccio etnogrfico. No casoda Vai-Vai, a escolha foi feita em virtude de ser uma das mais tradicionais escolas desamba da cidade, localizada em um dos beros do samba paulistano - o bairro do Bexiga;alm de ter um carter cosmopolita, pois congrega freqentadores dos vrios pontos dacidade.

    Utilizando-se de observao direta e entrevistas abertas, e, dentro das oportunidades de

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    convivncia com os sambistas e moradores, iniciamos a aproximao com os moradores doParque Peruche e com os freqentadores da escola de samba Vai-Vai, bem como a coletade informaes para a nossa investigao.

    Gradualmente, as delimitaes de algumas idias foram se configurando, o que possibilitourefletir sobre as relaes e a dinmica da vida nos dois bairros. Assim, foram basilares almdos depoimentos, a observao de fatos do dia a dia e o ingresso nos bastidores do mundodo samba por meio da participao em festas, ensaios de bateria e eventos de sambapromovidos pela comunidade local. Sem isso, dificilmente algumas informaes dessascomunidades poderiam ser obtidas.

    Neste sentido, o que esses grupos valorizam e procuram resguardar so as relaes sociaiscentradas na sociabilidade, cujo referencial a suposta solidariedade que existia quandoSo Paulo era da gente.... Neste contexto, os eventos de samba realizados nas quadrasdas escolas surgem com grande distino, pois so os momentos de expresso emanifestao dessas relaes; quando ento factvel voltar e se apropriar das ruas dobairro ou de alguns espaos pblicos. Acreditamos que esta seja uma das normas deentrada no mundo do samba, pois so nestes eventos de carter pblico que se admitemos de fora.

    Nessa medida, no faz parte das normas que orientam a conduta dos sambistas o valor daindividualidade. A histria que entremeia sua organizao social uma histria de trocas eauxlios, embora existam rivalidades e individualismos principalmente envolvendo a disputano desfile realizado no Sambdromo.

    Alm disso, durante a pesquisa de campo, as palavras que muito ouvimos para designar asociabilidade foram irmandade e famlia. O ser sambista, apesar das exclusividadesprocedentes seja da condio de renda, cor, faixa etria ou de expectativas de vidadiferentes relacionadas prpria histria de vida de cada um, traduz-se na preservao daidentificao desse grupo frente s modificaes pela qual a sociedade paulistana passou.Assim, o processo de metropolizao trouxe mudanas: entrada de novos segmentospopulacionais, constituio de novos bairros pela especulao imobiliria e alteraes em

    sua formao social. Este ser sambista quem por oposio, define ento o outro: oestranho, o de fora, o turista, o chegado, o irmo.

    Para a maior parte dos moradores do Parque Peruche e da Bela Vista, o samba existe e temimportncia enquanto cultura tradicional. Entretanto, importante destacar que paraalguns deles, as escolas de samba so redutos de marginais que ameaam a integridade dapopulao local. Este o caso de uma parte da vizinhana do bairro da Bela Vista, que estrecorrendo Justia para fechar a quadra da Vai-Vai, por se sentirem incomodados com ainterdio das ruas prximas na poca do carnaval . Assim, por exemplo, alguns dosvizinhos da Escola de Samba Vai-Vai cobram do poder pblico a retirada imediata desta dobairro da Bela Vista, desprezando o fato de que a representao da prpria escola desamba est plasmada no bairro . O samba, enquanto manifestao cultural histrica, no

    tem aparncia para este grupo que, mesmo morando no bairro onde os eventos de sambaacontecem, pode ser considerado como de fora. Neste sentido, apesar da ampla defesados diretores da escola quanto importncia de se preservar a tradio do samba nobairro, muitos proprietrios se opem permanncia da mesma. A fala de um dosproprietrios: "quando voc morar perto de uma escola de samba vai entender o que euestou falando", comprova que a casa o territrio do privado e que a no se aceitamintervenes nem incmodos.

    Outro dado interessante observado durante a pesquisa de campo foi em relao a algumaspessoas que vm procurando nas escolas de samba um espao de diverso, principalmentenos finais de semana, durante os ensaios pr-carnavalescos. A valorizao do estilo musical

    samba de raiz ganhou espao na mdia em virtude do valor comercial que passou a ter.

    Isto foi ajudado pelo fenmeno de vendas de compact disc (CDs) nos ltimos anos,principalmente devido ao sucesso de artistas como Zeca Pagodinho, Jorge Arago e DuduNobre. Assim, tambm nas escolas de samba, muitos querem ouvir e valorizar o

    tradicional. Este samba de raiz est evidente em modelos ditados pela indstriacultural, modismo constitudo e articulado por apropriaes de noes superficiais esuprfluas do samba.

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    Pelo visto, o que est em questo a apropriao do samba e o modo pelo qual ela se d.Por um lado, temos os sambistas cuja identidade est atrelada prtica social e histriafamiliar, opondo-se muitas vezes s mudanas impostas pela indstria cultural e docarnaval, cuja modificao associada ao enfraquecimento de seu prprio universo. Estefato se torna evidente no depoimento de Seu Carlo, presidente de honra da Unidos doPeruche, que enftico afirma: O que temos hoje desfile, no mais carnaval.

    Para esse grupo o carnaval no tem importncia isoladamente, faz parte do todo e no oacontecimento mais significativo, pois no v essa festa como antes. Ainda para esse

    grupo, o carnaval adquire sentido enquanto vinculado a outros eventos que acontecemdurante o ano todo e potencializam o encontro .

    Por outro lado, os de fora que s aparecem nos meses que antecedem o carnaval, pagamas suas fantasias e tm acesso escola. Valorizam a escola de samba, mas sem osmesmos critrios dos membros permanentes, repletos de sentimentos de pertencimento aolugar (embora nem sempre os membros da comunidade morem no bairro). Muitas atitudesse mostram contraditrias pelos prprios dirigentes das escolas, j impregnados dapreocupao norteadora ditada pela lgica do lucro, e que em muitas ocasies desprezamos significados projetados por muitos em sua incorporao ao conjunto social da escola desamba e do bairro em que vivem.

    Desse modo, em meio s mudanas que ocorreram e ainda ocorrem na lgica interna defuncionamento das escolas de samba, possvel identificar pessoas e at famlias inteirasque esto se afastando das escolas de samba por no mais concordarem com osdirecionamentos tomados ou por no terem condies financeiras de continuaremparticipando dos desfiles carnavalescos.

    Seguindo a proposta da descrio densa (Geertz, 1973), foi dada muita liberdade aosentrevistados, para que se sentissem vontade para expor suas opinies, vivncias epontos de vista. Esse deixar o outro vontade, intensamente ligado idia de realizarentrevistas abertas com alguma base previamente formulada, mas sem a utilizao dequestionrios fixos, restritos e delimitados, retoma de certa maneira o mtodo geertzianoda descrio densa; no qual trabalha com a descrio interpretativa das manifestaes

    culturais, desvendando as teias de significados tecidas pelos distintos atores sociais.

    O samba na quebrada do Parque Peruche

    Nem reis, nem bares compraro a conscincia de quem faz arder a chama daresistncia (Nei Lopes)

    Quebrada um termo comumente empregado pelos sambistas, referindo-se ao lugar deconvivncia do bairro onde as pessoas esto ou ficam vontade; semelhantemente quiloque o antroplogo Jos Guilherme Magnani classificou como sendo o pedao,O espao intermedirio entre o privado (a casa) e o pblico, onde se desenvolve umasociabilidade bsica, mais ampla que a fundada nos laos familiares, porm mais densa,significativa e estvel que as relaes formais e individualizadas impostas pela sociedade(Magnani, 1998, p. 116).

    A zona norte de So Paulo possui um grande nmero de escolas de samba da cidade, comdestaque para aquelas que fazem parte do grupo especial da Liga das Escolas de Samba deSo Paulo, que controla a elite do carnaval de So Paulo. Podemos citar: Unidos do

    Peruche, Rosas de Ouro, Mocidade Alegre, Imprio de Casa Verde, Unidos de Vila Maria, X9Paulistana; sem contar tantas outras que no esto nesta classificao da Liga, masfazem parte do samba paulistano.

    Demarcando-se inicialmente uma rea a ser pesquisada - o Parque Peruche na zona norteda cidade - observamos grupos diversos e os diferentes significados atribudos ao samba,

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    ao cotidiano e memria do bairro e de seus familiares. Desde os primeiros contatos eentrevistas foi constatada a diviso dessa populao entre os que so da quebrada ouseja, do pedao; e os que no so: na maioria pessoas de outras regies e que noresidem por ali.

    Iniciamos com uma questo genrica acerca do interesse em conhecer um pouco dahistria do samba no bairro. Em seguida solicitvamos que nos contassem o que sabiamsobre a histria do samba naquele lugar.

    Pouco a pouco fomos constatando que, para os mais velhos, falar do bairro tinha o sentidode restaurao da memria afetiva fundada nas festas comunitrias e nas relaesfamiliares. Ao reconstituir a memria de alguns sambistas, mostravam-se as relaes entreos grupos e as escolas de samba no cotidiano da cidade. Entranhados no passado, iam aolongo das conversas nos fazendo entender um pouco da histria do bairro e da cidade.Assim, o Parque Peruche mostrou-se como importante locus de produo de samba e deesperana, apto a aglutinar pessoas e tecer seus cotidianos:

    Eu no consigo imaginar o bairro sem a escola de samba Unidos do Peruche.Sem ela, o bairro ficaria vazio (Jos)

    A raiz da escola est neste lugar. Para ns gratificante ter uma escola desamba num bairro como esse (Dona Ana)

    Repletos de estima pelo passado e por sua histria, do mrito s suas caractersticas depessoas da rea. Embora o bairro tenha mudado muito com o passar dos anos, aindamanifesta a tradio do samba conduzido de gerao em gerao, atuando como cimentosocial:

    Samba coisa que est no sangue. Uma vez que voc entra no sai mais, no

    tem jeito. Aqui uma famlia, todo mundo se conhece desde pequeno. Eu moroaqui no Parque Peruche desde quando nasci. Quem fundou a escola foram meusfamiliares. A Unidos do Peruche o meu segundo corao. (Carlos)

    Com o passar dos anos, a intensa urbanizao no bairro gerou forte aumento populacionale fez com que essa realidade de bairro passasse por transformaes muito expressivas.Assim, surgiram mais duas escolas de samba: a Morro da Casa Verde em 1962 e a Impriode Casa Verde em 1995, alm da Unidos do Peruche que j existia desde 1956:

    Com o crescimento populacional, surgem o Morro da Casa Verde e a Imprio de

    Casa Verde, frutos de um mesmo ideal, embora com interesses diferenciados(Valter).

    Essas sensaes concernentes aos interesses diferenciados de cada escola evidenciam-se,principalmente, em decorrncia da competio no Sambdromo entre as duas escolas doGrupo Especial: a Imprio de Casa Verde e a Unidos do Peruche (esta ltima rebaixada nocarnaval 2007).

    A Imprio de Casa Verde possui uma dinmica diferenciada de poltica internaem relao a Unidos do Peruche e Morro da Casa Verde, pois o problemadinheiro nunca fez parte das suas dificuldades. Sua quadra para ensaios umverdadeiro castelo imperial, com colunas romanas estereotipadas nas suaslaterais da entrada e um enorme tigre ao centro. Ali existe um importantepoder paralelo que extrapola o mundo do samba (Valter).

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    Por outro lado, existe um discurso de pertencimento ao lugar, mesmo entre as pessoas quefreqentam escolas distintas. esse o discurso preponderante que manifestado pelosmoradores do bairro caracteriza profundamente os de dentro, no importando a condioscio-econmica ou a faixa etria em que se encontrem. Para a maioria, a idia deirmandade um elemento forte presente no cotidiano, nos encontros, no lugar:

    Embora existam rivalidades entre as escolas, o discurso da irmandadeprevalece. O conflito se expe na apurao, mas, no geral, existe uma

    camaradagem muito grande. Em alguns casos, ocorre o auxlio financeiro paraa escola poder desfilar e at o emprstimo de peas de bateria (Tiaraj).

    H, nesse discurso, algumas particularidades que merecem destaque, sobretudo no tocantes irmandades religiosas presentes em So Paulo no incio do sculo XX. Este perodo marcado por restries intensas com relao prtica religiosa, sendo as irmandades agrande sada encontrada para a resistncia da religiosidade atrelada ao candombl que, nocomeo do sculo, passa a incorporar mais intensamente algumas mudanas provenientesdas presses impostas pela Igreja Catlica, desde aquela poca representante da religiooficial. Como questo de sobrevivncia, muitos negros tiveram que se associar para poderter maior fora na consolidao de sua resistncia, diante da espoliao imposta:

    Alm das atividades religiosas que se traduziam na organizao de procisses,festas, coroaes de reis e rainhas, as irmandades tambm exerciamatribuies de carter social como: ajuda aos necessitados, assistncia aosdoentes, concesso de dotes, visita aos prisioneiros, proteo contra os maustratos dos senhores e ajuda para a compra da carta de alforria. A mais famosadentre as inmeras irmandades de pretos a de Nossa Senhora do Rosrio.Desde os sculos XV e XVI era sob essa invocao que em Portugal secongregavam os homens negros (Quinto, 2002, p. 75).

    Ainda hoje, muitos negros buscam se associar para restabelecer a identificao perdida nagrande cidade, invocando-se a posio de descendentes de famlias escravizadas,sobretudo nas fazendas de caf. Recuperar na memria a histria do bairro onde passarama infncia e a juventude atravs da comparao com os avs e bisavs, significa reaver assuas prprias histrias que, apesar de diferentes, vm impregnadas das heranas culturaisreferentes ao ser negro no Brasil.

    Todo mundo se junta, todo mundo participa, busca formas de manter a escolade samba. Aqui somos todos irmos, seja na cor da pele, seja nos sentimentos(Carlos).

    No pedao do Parque Peruche, existe uma busca pelos que so iguais, intricando umarede de relaes que combina laos de parentesco, vizinhana, procedncia e vnculos;definidos por participao em atividades comunitrias e desportivas, que se remete a umasrie de cdigos e permite identificar quem e quem no pedao.

    Durante todo o tempo que estivemos em campo pudemos observar, seja atravs dasconversas com moradores ou dos eventos de que participamos, a importncia dos eventospatrocinados pelas escolas de samba, com destaque para os jogos de futebol:

    No Parque Peruche, as pessoas se identificam muito com o futebol e tem neleum importante meio de sociabilidade. Desde o incio do bairro, isto acontece.Apesar de existirem alguns times de futebol tradicionais (Ponte Preta do ParquePeruche, Cruz da Esperana, Drages) na atualidade o time de futebol desalo Memo-Memo o que mais empolga os peruchenses. Apesar de novo(fundado em 2001), j se sagrou campeo paulista de futebol de salo e

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    On-line desde fevereiro de 2008.

    arrasta uma enorme torcida do bairro, com muito batuque por onde quer quev jogar. Curiosamente, na manga da camisa do uniforme do time h umabandeira do Parque Peruche, escolhida pelos moradores na primeira vez emque se comemorou o aniversrio do bairro (Valter).

    Esta presena das batucadas nos jogos de futebol tambm lembrada por Osvaldinho daCuca, importante sambista da cidade de So Paulo, ao comentar sobre a formao docordo carnavalesco Cai-Cai, que depois mudou seu nome para Vai-Vai; ainda na dcadade 1920.

    Antigamente se ia batucar no campo de futebol, fazendo som com instrumentosimprovisados at a noite (Osvaldinho da Cuca) .

    A prtica do futebol propicia a sociabilidade entre pessoas de outras localidades e dos maisdistintos segmentos sociais. Nos encontros, muitas trocas se realizam e novos convitespara partidas so feitos. Esta associao entre a fundao de escolas de samba e a prticado futebol verificada em outros casos, como no da Escola de Samba Rosas de Ouro:

    A Rosas de Ouro se originou do time de futebol Glorioso, a partir da reunio depessoas como ns que acompanhvamos a batucada durante e depois dapartida (Maria Helena Brito) .

    Segundo a perspectiva do grupo de pessoas entrevistadas, a presena das escolas desamba permite a criao de valores identitrios comuns. Para esse grupo, a noo depertencimento vem atrelada ao imaginrio relacionado com a formao do prprio bairro:

    Eu desfilo na escola do bairro onde eu nasci, onde eu cresci, onde eu

    acompanho desde pequena. Ento eu posso falar que a escola do meucorao (Ana).

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    O samba na quebrada do Bexiga e do Parque Peruche

    Depoimentos como estes evidenciam uma profunda conexo com o entorno.Alm do que,existe uma relao afetiva entre as pessoas, capaz de gerar identificaes e sentimentos dealegria.Diferentemente do pedao, onde h uma busca pelos iguais, a mancha oferececombinaes no esperadas, dando a oportunidade para aqueles que no so do pedaointeragir com os que so. Alm disso, propiciam uma multiplicidade de relaes entre osatores sociais e seus equipamentos, edificaes e vias de acesso; abrindo a quebrada doParque Peruche para os que so de fora.

    A mancha aqui exposta formada pelas escolas de samba Unidos do Peruche, Imprio deCasa Verde e Morro da Casa Verde. Fisicamente prximas uma das outras, as trs escolasde samba se complementam com o mesmo efeito; transformando-se em um ponto dereferncia fsico, visvel e pblico para um nmero mais amplo de usurios (Magnani,1988). Por conseguinte, atraem sem discriminao aqueles que so de fora.

    No interior da mancha um complexo movimento se d em funo das especificidades decada uma das escolas de samba. Para o olhar daqueles que so de fora, tudo samba e a

    presena de novos freqentadores depende muito da classificao obtida no ltimocarnaval.

    Na Unidos do Peruche, que a escola mais tradicional da mancha, seu pblico interno formado por indivduos que buscam suas origens, que fazem parte do pedao h muitotempo e por isso trazem em seus sentimentos algo de ancestral. Ou seja, seus familiaresfizeram ou fazem parte da construo do nome da escola, projetando-a para o que hoje. uma escola com 50 anos de existncia, e por essa razo, muitos sambistas antigos sesentem superiores por ter consigo um passado que lhes diz respeito; relacionado histriade suas prprias vidas.

    A Morro da Casa Verde, apesar de tambm ser querida pelos moradores do Parque

    Peruche, no possui uma quadra, mas apenas uma sede. Seus ensaios acontecem nas ruasdo pedao e talvez por esta razo tenha poucos participantes. Pelo fato de no serconcorrente direta da Unidos do Peruche por estar h muito tempo em grupos diferentes nodesfile carnavalesco, tem nos seus desfiles e seus ensaios (que so em dias nocoincidentes com a Unidos do Peruche) a participao de grande nmero de perucheanos.Em termos econmicos, o Morro da Casa Verde o primo pobre da mancha, utilizando-se de uma escola municipal situada dentro do Parque Peruche para a realizao de seusensaios em dias de chuva.

    Por outro lado, a Imprio de Casa Verde a caula da mancha e sua fundao se deuatravs de uma dissidncia com a Unidos do Peruche. Com apenas doze anos de existncia, formada por um pblico mais jovem em comparao com as outras duas e como toda

    irm caula, invejada pelas irms mais velhas. Muitos da quebrada do Parque Peruchedizem que uma escola de samba nova e como todo produto novo possui prazo devalidade. Apesar de ter sido campe do carnaval do Grupo Especial em 2005 e 2006 epossuir maior capacidade de investimentos por razes j destacadas anteriormente, aUnidos do Peruche e a Morro da Casa Verde continuam tendo destaque entre os moradoresdo Parque Peruche.

    Mesmo com todas essas peculiaridades das escolas de samba citadas, elas se reconhecem ese respeitam. Na lgica interna do pedao, a mancha bem demarcada por essaspeculiaridades, embora para os de fora do pedao, trata-se apenas de uma rea comconcentrao de escolas de samba que servem ao lazer e ao espetculo.

    A quebrada do samba evidencia como um olhar de perto e de dentro permite desfazer aimpresso de que a cidade produz apenas o isolamento do indivduo, a fragmentao, adesordem, contrapondo-se os de longe aos de fora; sem exclu-los.

    J foi anteriormente colocada a importncia, principalmente do futebol, na constituio daquebrada do samba. Tambm j foi comentado aqui que com o crescimento desordenado

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    dessa rea, muitos espaos destinados prtica do futebol cederam espao ocupaocom interesses residencial e comercial. Esses espaos acabaram por se concentrar noslimites da mancha e hoje constituem reas de parada para um pblico ecltico.

    Quem joga futebol e freqenta esses espaos no necessariamente o pblico dopedao. O futebol permite o encontro dos diferentes, pois times chegam de todas aspartes de So Paulo para jogar com o pessoal da quebrada do samba. Um exemploclssico o do Grmio Esportivo Cruz da Esperana, que tem dois ex-jogadores muitofamosos como diretores. Este fato atrai pessoas de vrios bairros da cidade e dos mais

    diferentes segmentos sociais, fomentando um circuito que abre a possibilidade dopedao sair de seu mbito particular e conviver com desconhecidos. O circuito dofutebol une os bares, as escolas de samba e os campos de futebol em uma srie depossibilidades para o novo. Aquilo que aparentemente nada tem em comum, revela-sereconhecido pelos seus usurios .

    Muitas vezes um time que chega na quebrada composto somente por empresrios, oupor funcionrios de uma churrascaria, ou mesmo por malandros de outra quebrada.Assim, muitas trocas vo se realizando nestes encontros e inevitavelmente novos convitessero feitos.

    O samba na quebrada do Bexiga

    Quem nunca viu o samba amanhecerVai no Bexiga pra ver, vai no Bexiga pra ver.O samba no levanta mais poeiraAsfalto hoje cobriu o nosso choLembrana eu tenho da Saracura

    Saudade tenho do nosso cordoBexiga hoje s arranha-cue no se v mais a luz da LuaMas o Vai-Vai est firme no pedao tradio e o samba continua.(Tradio de Geraldo Filme)

    A msica Tradio de Geraldo Filme expressa a expropriao que a urbanizao trouxe aosespaos do samba no Bexiga, engolindo parcelas deles. Mas, como diz o compositor, aVai-Vai continua firme no pedao, pois parte da tradio do samba paulistano .

    Como evidenciado anteriormente, existe uma forte vinculao entre a formao de escolasde samba e blocos carnavalescos, que se organizam a partir de times de futebol de vrzea.Este o caso do Cordo Carnavalesco Vai-Vai que surgiu de um time de futebol de mesmonome, que por sua vez foi fundado para rivalizar com outro time existente no bairro: o Cai-Cai (Simson, 1989, p.96).

    Situada na Rua So Vicente n 276, no bairro da Bela Vista, a escola de samba Vai - Vai mais do que um local de encontro entre pessoas envolvidas com a dinmica do samba, elaguarda a tradio do pedao, conforme cantou Geraldo Filme em sua mais famosacomposio. No momento em que comeamos a freqentar a escola, tnhamos comointento o entendimento da dinmica do bairro a partir da anlise da mais visvel escola de

    samba da cidade. Pretendia-se perceb-la relacionando-a com o cotidiano das pessoas queali residem e tecem suas relaes sociais dirias.

    Em nosso exerccio etnogrfico, observamos alguns aspectos da organizaoadministrativa, da conformao das alas, dos ensaios da bateria, da escolha do samba-enredo e formao das parceradas . Uma de nossas primeiras constataes foi a de que

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    a escola apresenta uma dimenso cosmopolita, aberta no apenas ao Bexiga, mas atmesmo aos freqentadores de outras escolas de samba e de outros bairros. Comoexplicao, h de se destacar o fcil acesso dado pela proximidade a corredores de nibus egrandes avenidas, como a Brigadeiro Lus Antnio, a Nove de Julho e a Paulista. Pode-seilustrar tal fato, com uma conversa que tivemos com um freqentador, que dizia morar no

    fim da zona leste e passou a freqentar a escola quando trabalhou na regio; quesegundo ele tem um acesso fcil.

    Mapa do Sub-Distrito da Bela Vista So PauloFonte: http://www.ajorb.com.br/

    O tracejado em azul indica o hipottico limite do

    bairro do Bexiga, que fica totalmente dentro doSub-Distrito da Bela Vista

    Tiramos muito proveito do perodo anterior ao carnaval de 2007, quando os ensaios seintensificaram e a Vai-Vai passou a atrair freqentadores de diversas regies da cidade,transformando-se em local para a diverso, alm dos ensaios.

    Atrados pelo samba, fonte de lazer nesta poca do ano, muitos vo para a escola como sefossem para um bar ou casa noturna. Com tanta gente acrescida, h necessariamente aocupao das ruas vizinhas da quadra para a realizao de alguns eventos (como podemosverificar na foto abaixo, a quadra pequena) . Nesses dias, a quadra fica aberta para avenda e exposio de fantasias, enquanto o samba enredo entoado entusiasticamente na

    rua.

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    Roda de Samba na Vai-Vai

    Na ocasio em que ocorreu o ltimo ensaio antes do carnaval, presenciamos a concesso debeno a todos os presentes na quadra, efetuada pelo padre da Igreja Nossa SenhoraAchiropita. Segundo alguns entrevistados, isto serve de reforo da confiana para o desfilecarnavalesco realizado no Sambdromo. Interessante ainda notar que no ms de maio oucasualmente em outros meses, realizada a Missa Afro na Igreja Nossa SenhoraAchiropita. Nesta oportunidade, os cantos catlicos cedem lugar msica afro-brasileira emuitos elementos do catolicismo so amalgamados queles dos cultos afro-brasileiros.H de se salientar a devoo dos sambistas aos protetores das religies afro-brasileiras. Emalgumas das escolas que visitamos soubemos da existncia de altares dedicados aos orixse divindades afro-brasileiras, alm daqueles destinados aos santos catlicos. Como os

    dedicados aos orixs ficam em lugares acessados apenas pelos do pedao, os de forasomente visualizam os altares dos santos catlicos, que em geral esto bem visveis nasquadras das escolas de samba. No conseguimos fotografar nenhum altar para os orixs,mas somente um dedicado a alguns santos da igreja catlica. Interessante notar a presenade santos catlicos ao lado de orixs em algumas das escolas de samba visitadas. Este fatocomprova a tese de Rita Amaral de que sobretudo no estilo de vida festivo do povo desanto e dos freqentadores das escolas de samba que se pode entender como essesespaos mantm entre si uma relao de proximidade e sobreposio (Amaral, 2002[1992]).

    Altar dedicado aos santos catlicos na Unidos do Peruche

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    Cabem algumas palavras sobre o acompanhamento da disputa dos sambas-enredos de2007. Existem algumas estratgias para a divulgao do samba junto comunidade,dentre elas a gravao de compact disc (cd) para distribuio nos ensaios. Esta prtica temcomo propsito divulgar as composies com a maior abrangncia possvel, atenta premiao do samba vencedor na forma de dinheiro ou carro . Por outro lado, esta

    gravao demanda um investimento que visa o retorno financeiro posterior, proveniente daescolha do samba-enredo que representar a escola no desfile carnavalesco. Portanto, muito comum compositores pedirem apoio a polticos e comerciantes para a confeco eimpresso das letras das msicas, posteriormente distribudas. Muitas vezes, o compositorcontrata cantores profissionais que, alm de dar maior qualidade interpretao dacomposio concorrente, atraem pessoas para a quadra durante a fase de eliminatrias.

    Outra informao a respeito da escolha do samba-enredo nos foi dada por um de nossosentrevistados: o samba que ganha sempre o samba do presidente. Neste sentido, nemsempre importa a qualidade do cd gravado ou da composio, pois o samba-enredo que irvencer passa pelo crivo da diretoria. Com um detalhamento maior, percebe-se que tambmo carnavalesco tem um importante papel de orientao na escolha do tema do ano, na

    medida em que o responsvel pela confeco da sinopse (orientaes gerais sobre oenredo do ano), podendo opinar a respeito das composies, dizendo se a mesma est

    fora do tema ou no .

    No caso da Vai-Vai, d-se muito valor aos compositores que so da casa e que soreconhecidos pelos vnculos com a comunidade; sendo portadores dos mesmos smbolos,orientaes e valores. Outra observao interessante nesta experincia foi a necessidadede que as composies se enquadrassem na sinopse fornecida pela diretoria da escola aoscompositores. Ou seja, a letra obrigada a se relacionar com o tema escolhido para ocarnaval do ano. Cabe salientar que as entrevistas realizadas at o presente momento nosapontam que existe o interesse de captar recursos por meio de patrocnios e auxliosprovenientes de pessoas e empresas escolhidas para serem homenageadas pelo samba

    enredo .

    Um detalhamento maior revela que a circulao de compositores entre as agremiaes intensa no perodo de eliminatrias dos sambas-enredo (agosto a outubro). Isto s noocorre, em raras excees, quando o compositor exclusivo da sua agremiao (exemploda Vai-Vai e da Camisa Verde). Os compositores que somente concorrem em suaagremiao so chamados de compositores de ala fechada. Ainda vale ressaltar que acirculao dos compositores s no bem vista quando realizada entre as escolas domesmo grupo (como as do Grupo Especial) ou quando realizada com escolas originadas apartir de torcidas de futebol .

    Com relao ao pblico freqentador, podemos classific-lo em turistas (aqueles que sbuscam diverso e aparecem nos momentos que antecedem o desfile carnavalesco, nemsempre conhecendo as normas internas) e os do pedao, que se conhecem e convivemdurante o ano todo. Para estes, os eventos que ocorrem na escola durante o ano todofuncionam como oportunidades de lazer e de encontro; onde a quadra o ponto dereferncia.

    No que se refere s normas, observamos a existncia de uma organizao administrativaque, da mesma forma que nas outras escolas de samba, integra uma hierarquiarigidamente estabelecida e respeitada pelos membros integrantes (na maioria, pessoas dacomunidade). No topo, encontram-se o presidente e os diretores, seguidos pelos membrosdistribudos nas alas e na bateria Assim, podemos pensar que no interior de uma escola desamba como a Vai-Vai existem diferentes formas de apropriao simblica que ocorrem noespao da quadra: o lugar para a diretoria, o lugar para os membros da velha guarda, olugar para os integrantes da bateria, o lugar para os mais idosos, o lugar para os solteiros,o lugar para conversar, o lugar para tocar e no tocar etc.Embora a organizao interna da escola revele esta hierarquia com relao ao uso eapropriao diferenciada, cada um dos integrantes ressalta a importncia de seu trabalhopara a escola, alm de aparecer presentemente em seu discurso a idia de trabalho

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    coletivo com fins de vencer o desfile.

    Outro fato que nos chamou a ateno foi o respeito existente internamente, sendo banidoqualquer ato preconceituoso. Busca-se tratar a todos como iguais, embora no se possaafirmar que todos sigam esta norma. Estas normas de convivncia, constitutivas dasrelaes sociais ali desenvolvidas, transparecem em frases como aqui dentro todo mundo respeitado e por isto eu te respeito ou no importa o que a pessoa faz l fora, aquidentro ela tem que andar na linha.

    Ao pretender estudar os eventos e atividades realizadas na Vai-Vai entre os meses deagosto a janeiro de 2007, tnhamos tambm como inteno captar o sentido comunitriodessas atividades, concebendo o samba como produto social. Mas, com o decorrer dasvisitaes, algo novo se vislumbrou: a importncia da quadra da escola para a comunidadedo Bexiga e arredores. Isto nos permitiu enxerg-la no apenas como mero espao fsico,mas como um produto social repleto de significaes. Nela so realizadas as reunies dadiretoria, as rodas de samba semanais e os vrios eventos - que s poderiam acontecer damaneira que acontecem neste ambiente, visto que os encontros e trocas ali existentesprovm de uma sociabilidade derivada da combinao de vrios fatores. Neste sentido, aquadra atua como fonte de relaes sociais especficas, que so o produto de prticassociais remotas e em constante dilogo com as atuais.

    Em outras palavras, a escola de samba foi observada como o resultado de uma redeemaranhada de relaes sociais desenvolvidas historicamente pela comunidade local, ondeo passado e o presente dialogam constantemente com a prtica cotidiana da comunidade,promovendo novos vnculos e reafirmando antigos laos sociais. Nesse sentido, a quadra daescola refora e promove vnculos de interao com o lugar e entre as pessoas,constituindo-se em uma forma simblica espacial que contm representaes construdaspelas pessoas e que envolvem o passado, o presente e o futuro.

    A anlise acima exposta dever nos servir como pista orientadora para futuros exercciosetnogrficos. Neste sentido, adotamos uma postura em que foi dado valor interaopesquisador-pesquisado. A partir desta postura, pudemos articular as informaesrecolhidas de modo a perceber a interao existente entre as pessoas e o lugar. Sem a

    existncia de um ambiente para o encontro, os vnculos existentes entre os membros daescola de samba no seriam to estveis e slidos. Sem a existncia de alguns arranjosparticulares que somente existem no interior da quadra da escola, esta no passaria deuma construo material. Mais do que isto, ela possui uma fora aglutinadora de pessoas,sendo um lugar de troca e encontros onde se instauram cdigos entendveis apenas pelos

    do pedao, que se conhecem e reconhecem mutuamente. Tanto que em nossas primeirasvisitas, fomos considerados estranhos pelos freqentadores habituais da escola, que seaproximavam e perguntavam quem ramos e o que fazamos.

    A partir das evidncias constatadas, passamos a acreditar que a quadra poderia serclassificada como um pedao, na medida em que este definido por Magnani (1998). O

    pedao da Vai-Vai dependente dos vnculos mantidos e fortalecidos pelos encontros

    propiciados em diversos momentos do ano. Esse nosso recorte revelou algumas reflexesassociadas ao pedao. Dessa forma, configurou-se uma explorao da escola de sambaVai-Vai, sua organizao, seus eventos, seus integrantes e algumas das suas normas defuncionamento.

    Como j exposto, nem todos os freqentadores pertencem ao bairro da Bela Vista, devido localizao central da escola e sua referncia para o samba paulistano. Alm deste fato, umde nossos entrevistados afirmou que:

    A Vai-Vai uma escola de samba universal, aberta, por mais que tenha avinculao com o Bexiga. Com a construo das avenidas, valorizao dosterrenos e remoo dos cortios, muitos de seus componentes foram para acidade inteira. (Tiaraj)

    Embora uma boa parte dos freqentadores seja proveniente de outros bairros, buscam umponto de aglutinao para a construo e fortalecimento de seus laos. Mais do que alguns

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    significados relevantes subjacentes estrutura da escola de samba Vai-Vai, abriram-senovas possibilidades de estudo que no se faziam presentes inicialmente, delineandoalguns novos rumos que podem ser tomados como orientadores de futuras idas a campo.

    Com a expanso da cidade, a noo de pertencimento sofreu modificaes, visto que boaparte dos integrantes da Escola de Samba Vai-Vai, por exemplo, no mais residem nobairro da Bela Vista. Pelo que temos constatado isto tambm ocorre em outras escolas, demaneiras diferentes, pois em alguns bairros as pessoas podem ter se mudado menos eterem maiores vnculos com o lugar; em outras palavras, estarem mais territorializadas.

    Em virtude desta nova possibilidade que se vislumbra, torna-se necessria a busca de umacategoria que mostre que a noo de pertencimento extrapola a noo de bairro. Ou seja,que mostre que o pertencimento a uma escola de samba nem sempre constitui vnculo demoradia com aquele bairro, mas insere-se num circuito no molde do conceito trabalhopor Jos Guilherme Magnani (2000). Esta categoria pode se mostrar adequada anlisedas prticas de circulao associadas ao samba, por sua flexibilidade em ativar ou desativaras aes dos sambistas nas diferentes formas de apropriao territorial. Assim sendo, asprticas sociais ligadas ao samba demonstram ter enorme fluidez e mobilidade, alm deserem realizadas sazonalmente por alguns ou de maneira regular por outros.

    NotasO presente trabalho um exerccio etnogrfico fruto de reflexes realizadas nas disciplinas Pesquisa de Campo em

    Antropologia e Dimenso Cultural das Prticas Urbanas, ministradas pelo Prof. Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani na

    Universidade de So Paulo.Em visita recente cidade do Rio de Janeiro, ao nos apresentarmos como pesquisadores do samba paulistano,

    ouvimos a seguinte frase: Em So Paulo, cordo s se for de isolamento e bloco de concreto. Interessante destacar queesta uma provocao antiga feita pelos cariocas aos paulistas, que nos anos 70 gerou dezenas de respostas emmatrias jornalsticas escritas pelo diretor de teatro Plnio Marcos. Em 1975, Plnio criou a Banda Bandalha, ainda

    existente com a denominao de Banda Redonda, atualmente organizada por Carlos Alves Costa.

    A designao mundo do samba visa englobar as atividades que tm o samba como o elemento central, dentre elasaquelas que acontecem nas escolas de samba, rodas de samba, bares e casas noturnas especializadas, projetos e

    movimentos de samba.Artigo publicado na Folha de So Paulo de 16 de Fevereiro de 2007, intitulada Vai-Vai enfrenta juzes do Carnaval

    2007 e do Tribunal, sob autoria de Alice Assuno.

    A escola de samba Tom Maior j teve seu endereo mudado por trs vezes, exigindo uma flexibilidade maior dosmembros de sua comunidade.

    Como exemplo citamos o Cantinho da Peruche, que acontece todas as segundas-feiras noite na Escola de SambaUnidos do Peruche. Mais do que uma roda de samba, trata-se de um momento de encontro entre os integrantes daescola e a ala de compositores, responsvel pela preservao da tradio na escola. A faixa etria mdia dosfreqentadores est acima dos 40 anos, demonstrando a importncia da velha guarda para a preservao da tradiona escola. Por cerca de trs horas, as msicas de antigos compositores so tocadas e cantadas pelos participantes.

    Depoimento transcrito do documentrio Samba Pau l i s ta : F ragmentos de uma h is t r ia esquec ida . Escola de

    Comunicao e Artes USP, So Paulo, 2006.Entrevista cedida ao programa Meu bairro minha escola da Rede Globo de Televiso, exibido no dia 11 de fevereiro

    de 2007.Em nossa pesquisa de campo nos deparamos com uma srie de bares, mercearias e botecos, mas um deles merece

    referncia. Conhecido como Picanharia do Gacho esse estabelecimento iniciou suas atividades vendendo picanhasargentinas e uruguaias em uma churrasqueira de lato colocada na calada. Atualmente um importante ponto de

    referncia no meio da mancha. Curioso notar que, tal a heterogeneidade de seus freqentadores, que alm dopessoal do pedao encontramos gachos, nordestinos e pessoas das mais diversas regies de So Paulo. No anopassado, cerca de quinze pessoas, entre funcionrios e freqentadores da picanharia do gacho, resolveram seorganizar e participar do desfile carnavalesco em uma das escolas de samba da mancha. Temos a uma representaoclara de um novo padro de troca, entre os funcionrios da picanharia - na maioria gachos, e os freqentadores muitos deles moradores do Jardim So Bento, bairro situado dentro da mancha e formado por famlias de alta renda.Neste sentido, se estes moradores ficassem nas piscinas de seus condomnios, dificilmente teriam a oportunidade de tercontato com uma escola de samba, visto que antes deste acontecimento provavelmente jamais teriam ido a uma quadrade escola de samba. Interessante observar ainda que alguns deles se empolgaram tanto que convidaram amigos de

    Miami (EUA) para desfilarem no prximo ano.Homenagem semelhante foi feita por Carlos Drummond de Andrade no Poema Nao Mangueirense, enredo da

    Escola de Samba Mangueira no ano de 1987.As parceradas so junes de compositores para a elaborao do samba-enredo. D-se muito valor queles que so

    da casa e reconhecidos como tendo maiores vnculos com a comunidade; sendo portadores de mesmos smbolos,

    orientaes e valores.

    A quadra tem aproximadamente 170 m de rea, compreendendo um salo maior, um mezanino e vrias salasmenores.

    Um caso de samba-enredo que se tornou famoso e rendeu importante retorno ao compositor foi o da Escola de SambaGavies da Fiel no ano de 1995, que tinha como refro: Me d a mo me abraa viaja comigo pro cu, sou gaviolevando a taa, com muito orgulho pra delrio da Fiel. Alm de ter conduzido a escola sua primeira vitria no Grupo

    Especial, este samba-enredo ficou amplamente conhecido.

    Em termos gerais, a sinopse expe as orientaes sobre o tema escolhido para o desfile carnavalesco para cada ano,

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    On-line desde fevereiro de 2008.

    especificamenteEm algumas das escolas de samba que visitamos, como a Imprio de Casa Verde, notamos a existncia de camarotes

    reservados diretoria e patronos da escola que nela aplicam grandes montantes de capital). Paradoxalmente, pode-se

    dizer que se reproduz na dinmica interna das escolas a estrutura de classes sociais segregadas e segregadoras.Apesar de fazerem parte do mundo do samba, as escolas de samba originadas de times de futebol Gavies da Fiel,

    Mancha Verde, Camisa 12 e Torcida Jovem Santista apresentam uma lgica de torcida uniformizada e, muitas vezes,reproduzem no desfile os mesmos atos de agresso praticados nos estdios. Dentre as inmeras ocorrncias, destaca-seo carnaval de 2005, quando integrantes da Gavies da Fiel deram as costas durante o desfile das escolas rivais, alm decausarem transtornos no dia da apurao. Por conta destas atitudes, a partir de 2006 passaram a vigorar dois ttulos nocarnaval paulistano. Alm do ttulo do Grupo Especial, h agora o do Grupo Especial das Escolas de Samba Desportivas,vencido pela Mancha Verde em 2007. Observamos que estas escolas no fazem questo de assumir o discurso depertencimento a um bairro especfico.

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